Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MINHA BELA DESCONHECIDA
Warwickshire, 1825
A música proveniente dos festejos de 1 de Maio que enchia o ar chegava flutuando da aldeia até o castelo de pedras de cor mel que havia junto ao lago. Um dos habitantes desse castelo, Damon, lorde Savage, marquês do Savage, ia andando pelo caminho à aldeia, atraído por essa música, apesar de contrariado.
Ele não era um homem frívolo, tampouco lhe agradava participar de reuniões de muitas pessoas. Ao longo dos dois últimos anos, Damon tinha dedicado sua vida a reconstruir a fortuna da família, e a cuidar de seu irmão e de seu pai doente. As responsabilidades que tinham recaído sobre ele não lhe deixavam tempo para a diversão. Nesse momento, uma mescla de curiosidade, solidão e a necessidade de estar ao ar livre o impulsionaram a dirigir-se ao povo.
Uma multidão de moças vestidas de branco, douradas pela luz malva do entardecer, dançavam em volta de uma árvore adornada com fitas e grinaldas. Os aldeãos se reuniram para celebrar as festas pagãs de 1 de Maio, rindo e bebendo; continuariam assim toda a noite.
Sem fazer-se notar, Damon se manteve a margem da multidão, enquanto caía a noite. Acenderam-se abajures e tochas que projetavam sombras vacilantes sobre a grama. Damon tinha presenciado muitas vezes os ritos de 1 de Maio e, entretanto, seguia impressionando-o o quadro pitoresco que constituíam as donzelas que enlaçavam largas fitas em volta do poste pintado e adornado com flores que sempre se colocava no centro do lugar dos festejos. Elas saltavam com graça, em roda, com seu cabelo adornado com coroas de flores, as largas saias brancas ondulando em volta de suas pernas embainhadas em meias três-quartos.
Igual a todos outros homens presentes, Damon se fixou nas moças mais atrativas. Fazia muito tempo que não estava com uma mulher. Prometeu-se a si mesmo que, mais adiante, tomaria uma amante e gozaria dos prazeres aos que tinha renunciado, mas de momento tinha muito que fazer. Rogou poder livrar-se do incômodo desejo de sentir o contato de uma mulher, do suave perfume de uma pele feminina, de uns braços esbeltos rodeando-o. De dia, estava muito ocupado para pensar, sequer, no tema, mas, pelas noites...
Um tenso suspiro agitou o peito do Damon. Observou os festejos uns minutos mais, percebendo dentro de si um vazio que não se apaziguava. Decidiu retornar ao castelo e beber um grande cálice de conhaque; voltou-se disposto a partir. De súbito, deteve sua atenção para um grupo de atores itinerantes que tinham chegado para participar dos festejos. Entoavam um ruidoso canto, elevando suas vozes; assim se uniram à multidão, marcando com suas palmas o ritmo da música.
Uns aldeãos amistosos animaram aos recém-chegados a que se juntassem às donzelas que dançavam. Duas das mulheres aceitaram o convite, mas a terceira, uma esbelta moça de tranças loiras presas no cocuruto, negou com a cabeça com gesto categórico. Os farristas insistiram, apesar de sua negativa, arrastando e empurrando à moça a volta do poste de maio. Alguém lhe pôs um diadema de flores sobre a cabeça, fazendo-a rir contra sua vontade, e ela se uniu às outras moças que giravam em volta da árvore cheia de grinaldas.
Damon contemplava, fascinado, à moça. A distinguia sem inconvenientes graças a seu vestido escuro e à graça com que se movia. Parecia uma fada que tivesse surtado de repente, emergindo do bosque, e que se desvaneceria em qualquer momento. O efeito que exercia sobre ele era estranho, pois sentia como se seu corpo estivesse vazio de tanto desejá-la e todos seus sentidos estavam enfocados nela, em sua doce e musical risada sonora.
"Não é mais que uma menina", disse para si mesmo, tentando inutilmente livrar-se dos desejos que o consumiam. "É uma menina como qualquer outra." Mas não era certo. Assustou-o, eletrizou-o a intensidade da reação que essa moça lhe provocava. Teria dado tudo o que tinha para passar uma noite com ela. Ele nunca era presa de impulsos repentinos como esse, nunca se tinha deixado levar por nada que não fosse a lógica e a razão. Teve a impressão de que a temeridade a que jamais se permitiu ceder tinha caído toda sobre ele nesse instante.
Damon se deslocou pela margem da multidão com os deliberados movimentos de um depredador, com a vista cravada nela. Não sabia bem o que faria; só estava seguro de que precisava estar perto dela. Agora, ela dançava a maior velocidade, impulsionada pela música e pelos impacientes empurrões das outras moças a cujas mãos estava presa. Ela conseguiu romper o círculo, rindo e ofegando, e soltar-se aos tombos. A grinalda de flores caiu de sua cabeça e aterrissou perto dos pés do Damon. Ele se inclinou, seus dedos a agarraram e, sem adverti-lo, esmagou alguns das fragrantes pétalas.
A moça secou o rosto suado com a manga e se afastou em sentido contrário ao da multidão. Damon a seguiu, com o coração palpitando com força em seu peito. Embora não fizesse ruído, ela deve ter percebido sua presença. Deteve-se e se voltou de cara à ele, enquanto as pessoas seguiam festejando em 1 de Maio. Damon avançou para ela e se deteve muito perto.
— Acredito que isto é teu — disse, em voz densa.
Ela levantou a vista para ele e, na escuridão, ele não pôde ver de que cor eram seus olhos. A terna curva de seus lábios desenhou um sorriso.
— Obrigada.
Alargou a mão para as flores, e seus dedos frescos roçaram um instante os dele, lhe fazendo sentir uma espécie de sacudida elétrica em todo o corpo.
— Quem és? — resmungou Damon.
A moça pôs-se a rir, tão surpreendida pela brutalidade dele como o próprio Damon.
— Não sou nenhuma pessoa importante. Uma simples atriz que viaja com sua companhia itinerante, — e, depois de uma breve vacilação: — E você?
Ele guardou silêncio, sem poder responder e sentindo o aroma embriagador das flores, do vinho e da transpiração que chegava a seu nariz e acelerava o ritmo do sangue em suas veias. Sentiu desejos de apartá-la do povo, levá-la nos braços ao bosque, estendê-la sobre o chão coberto de folhas úmidas... Quis apertar a boca sobre sua pele pálida e desfazer suas tranças até sentir que seu cabelo ondulava entre os dedos dele.
A moça o observou com curiosidade, inclinando sua cabeça.
— Você deve ter vindo do castelo — disse e, imediatamente, sua expressão se tornou receosa. — Acaso é um dos Savage?
Damon negou com a cabeça, renegou sua identidade com o desejo de separar-se de tudo o que havia em seu passado e em seu futuro.
— Sou um visitante neste lugar, — disse, em voz um pouco rouca. — Igual a você.
Ela o olhou com incredulidade, mas se afrouxou.
— De onde é? — perguntou Damon.
Os dentes da moça relampejaram na escuridão. Ele nunca tinha visto nada tão belo como seu sorriso.
— Prefiro não pensar em meu passado — respondeu, jogando atrás umas mechas de reluzente cabelo loiro que tinha caído sobre sua testa. — O que te tem feito sair, senhor? Foi a necessidade de tomar ar ou de contemplar o baile?
— A necessidade de te encontrar.
Ela deixou escapar uma risada nervosa e ficou tensa, como um pássaro a ponto de voar. Damon percebeu que ela ia escapulir e reagiu sem pensar conscientemente. Pôs as mãos a ambos os lados da cabeça dela e a reteve, contra a seus alarmadas protestos.
— Me deixe — sussurrou.
Um tremor percorreu seus dedos que apertavam as aveludadas bochechas dela. Esmagou sua boca sobre a dela, que ficou imóvel. Damon sentiu o fôlego rápido e quente dela sobre sua pele enquanto seu sabor se derramava sobre seus sentidos embriagando-o de repente. Ele sentiu sua resposta e, então, o tempo ficou em suspense por um instante mágico, diferente a tudo o que lhe tivesse acontecido até então.
Ela virou seu rosto apartando o dele, emitindo uma exclamação confusa. Damon teve uma intensa percepção do aveludado contato da bochecha dela apoiada na sua, da proximidade de seu corpo. Os dois estavam em silêncio, imóveis, bebendo a sensação de estar tão perto um do outro.
— Boa noite — sussurrou ela.
— Não vá — disse ele.
Mas ela se afastou andando, e ele teve a impressão de que ela se fundia com a multidão.
Damon poderia havê-la seguido mas preferiu não fazê-lo. Parecia-lhe impossível que uma mulher assim pudesse ser real. Em certo sentido, não queria que fosse. Era melhor que seguisse sendo uma fantasia, uma imagem que ele pudesse conservar durante o resto de sua vida, que permanecesse intacta, sem ser roçada pelas realidades desagradáveis que tanto abundavam em sua vida. Abandonou os festejos de 1 de Maio, sem poder separar de sua mente a repentina intuição de que, de algum modo, algum dia... voltariam a encontrar-se.
Londres, 1825
Chegava tarde. Julia apertou o passo e, ao mesmo tempo, tratou de evitar que suas saias se arrastassem pelo chão enlameado enquanto protegia seu rosto da persistente e fria garoa de outono. Se não chegasse logo ao teatro Capital, seus cabelos e suas roupas ficariam empapados.
— Minha prova — murmurou desesperada, abrindo espaço entre as pessoas que andavam pela escorregadia calçada.
Uma pluma que tinha sido de um intenso amarelo caiu sobre a aba de seu pequeno chapéu e ela a jogou para trás, impaciente.
Esse era um dos dias mais importantes de sua vida. Se tudo saía bem, ela passaria a formar parte da companhia de teatro de maior êxito da Inglaterra. Pelo contrário, se não conseguisse impressionar ao Logan Scott com seu talento, teria que retornar ao sombrio e minúsculo teatro Daly, no Strand. O administrador desse lugar, o senhor Bickerston, considerava prostitutas a todas as atrizes e extraía lucros delas organizando encontros com homens ricos. Estava furioso com a Julia porque ela negava a encontrar-se com um velho barão libidinoso que estava disposto a pagar uma tarifa exorbitante para ter o privilégio de deitar-se com ela.
— Segue minhas regras — lhe havia dito Bickerston, — pois, do contrário, não seguirá pertencendo à companhia. A próxima vez que eu encontre um homem para ti, se não o aceitar, irá ao inferno!
Para piorar as coisas, Bickerston tinha problemas com os jogos de azar e, com frequência, acontecia que não poder pagar aos atores. Se Julia não ganhava dinheiro logo, não poderia pagar o quarto no apartamento de cobertura que tinha alugado. E não podia recorrer ao que faziam as outras atrizes: vender seus favores sexuais para aumentar seus ganhos. Essa alternativa não existia para ela, mesmo que morresse de fome.
Julia suspirou e lhe arrepiou a pele ante a idéia de voltar para o Strand. Tinha que achar um lugar melhor para trabalhar. Apertou mais o maço de papéis úmidos que levava em seus braços, baixou a cabeça e acelerou o passo. De súbito, chocou-se contra um objeto duro que esteve a ponto de fazê-la cair para trás. Os papéis caíram em cascata de seus braços. Agradecida a que um homem a sujeitasse rapidamente pelos ombros, ela não caiu no pavimento enlameado.
— Você está bem, senhorita? Perguntou o homem, ajudando-a a estabilizar-se.
Julia se inclinou para recolher seus papéis molhados. Para sua consternação, a prega de suas saias se arrastou por um atoleiro de lama.
— Você deveria olhar por onde caminha.
— Eu poderia dizer o mesmo de você, senhorita.
A voz do indivíduo era tão seca e suntuosa como uma taça de vinho tinto. Ele a ajudou a recolher os papéis caídos e, enquanto isso jogou-lhes uma olhada.
Julia os tirou antes que ele tivesse tempo de ler algo.
— Estou indo a uma prova disse ela com rigidez. E estou atrasada.
Pôs-se a andar deixando-o para trás, mas ele a deteve lhe tocando o ombro.
— A que teatro quer chegar?
Ela o olhou piscando, pois uma rajada de vento carregado de chuva açoitava seu rosto. O homem era alto, de bom físico, seus largos ombros envolvidos em um pesado casaco negro. Através do véu da chuva que gotejava da aba de seu chapéu escuro, ela viu que as feições dele eram algo toscas mas atrativas e que seus olhos eram de um intenso azul.
— Estou tratando de achar o Capital — respondeu ela.
— Chegou a ele — disse o homem, lhe indicando uma entrada que estava perto deles. — Por essa porta se entra na sala verde, que é a sala de espera e onde, geralmente, realizam-se as provas.
— Como você sabe disso? — perguntou ela, desconfiada.
A expressiva boca do homem se curvou de um lado, em um sorriso torcido.
— Sou membro da companhia.
— Ah — exclamou Julia, desconcertada e um tanto ressentida.
Que sujeito afortunado, que formava parte de um grupo de tanto prestígio, pensou ela.
O homem seguiu sorrindo enquanto a contemplava.
— Se quiser, eu posso guiá-la.
Julia assentiu e transpôs a porta à frente dele, para entrar em um corredor silencioso e pouco iluminado. Aliviada de não estar sob a chuva, sacudiu suas saias úmidas e tratou de as acomodar. Seu acompanhante teve a cortesia de esperar que ela se tirasse o chapéu que jorrava e a capa, e tomou em suas mãos.
Deixaremos estes objetos em um vestiário desocupado para que se sequem disse ele, e adiantou-se a abrir uma porta e pendurar os objetos em uns grandes ganchos de bronze fixos à parede.
Ele também tirou o chapéu e o casaco e passou os dedos pelo curto cabelo ondulado tentando ordená-lo.
Julia alisou também seus cabelos escurecidos, desejando contar com um espelho para arrumar-se um pouco.
— Você tem muito bom aspecto — comentou o homem, como se lhe tivesse lido os pensamentos.
Julia lhe sorriu pela primeira vez, embora algo insegura.
— Esperava algo mais que isso.
Ele sacudiu os ombros.
— Sua aparência não terá tanta importância como seu talento para atuar.
— Sim, claro.
Ela caminhou atrás dele pelo corredor e passaram pelos vestuários, escritórios, oficinas de carpintaria e salas de guarda-roupa. O teatro Capital era um grande complexo que compreendia um teatro principal e quatro construções anexas. Nunca o tinha considerado no mesmo nível que o Teatro Real do Drury Lane até que Logan Scott se encarregou de sua administração. Sob sua brilhante direção e ao impulso de suas impressionantes atuações, o Capital se conver-teu em um dos teatros mais respeitados da cidade.
Apesar de ser um homem jovem, que ainda não tinha chegado à casa dos trinta, já tinha alcançado um nível legendário no teatro. E ante a perspectiva de conhecê-lo, o estômago da Julia deu uma reviravolta violenta. Se ele chegava à conclusão de que ela não tinha talento, sua carreira teria acabado.
— Quanto tempo faz que você está com a companhia? — perguntou Julia, sentindo que seu nervosismo ia aumentando à medida que se ingressavam no edifício.
Passaram junto a uns trabalhadores que circulavam pelo corredor e giraram em uma esquina onde se ouviam as vozes dos atores nas salas de ensaio.
— Desde que começou, faz quatro anos — respondeu seu acompanhante.
— É você muito afortunado de trabalhar com ele.
— Sério? — perguntou ele, em tom seco. — Ele tem um caráter bastante forte, sabe?
— Isso pode perdoar-se em um artista tão brilhante. O senhor Scott é o maior ator da Inglaterra. Todos o chamam o novo David Garrick.
O indivíduo soltou um bufo irônico.
— Eu acredito que isso é um exagero.
Surpreendida, Julia lhe lançou um olhar.
— Você não admira ao senhor Scott?
— Às vezes sim. Mas acontece que não acredito que seja comparável com o Garrick. Ao menos por agora.
Julia encolheu os ombros.
— Como ainda não o vi no cenário, reservo minha opinião.
Chegaram à sala de espera que, em realidade, não era verde como a chamava, e Julia, apertando seus papéis, entrou. A grande habitação pintada de cor creme estava cheia de cadeiras e bancos gastos, mesas desmanteladas e uma bandeja onde se amontoavam pão, frios defumados e queijo. Havia duas mulheres sentadas em um canto, enquanto que uma moça e um jovem repassavam uma cena ao outro lado da sala e se interrompiam para rir ante alguma estupidez coreográfica. Um robusto cavalheiro de mais idade estava sentado a um lado, lendo uma obra e recitando as linhas para memorizá-las.
Todos elevaram a vista quando entraram os recém chegados. Imediatamente, aproximaram-se do acompanhante da Julia amontoando-se a seu redor, até o ponto que a empurraram, afastando-a. Ele evitou uma corrente de perguntas e exigências com um gesto de suas mãos levantadas.
— Depois — lhes respondeu. — Neste momento tenho que me ocupar de certo assunto: uma audição.
Julia o olhou com os olhos dilatados. Agora que se encontravam na bem iluminada sala de espera, ela descobriu nele muitos detalhes que lhe tinham escapado antes. O homem ia vestido com roupas caras, de bom corte: calças escuras, um suntuoso colete de cor verde esmeralda, uma gravata de seda negra. Ela nunca tinha visto um homem com um cabelo tão formoso, de rebeldes ondas castanhas que soltavam brilhantes reflexos acaju. Levava-o curto e escovado para trás; entretanto, tinha aparência desordenada e parecia pedir que uma mão feminina o alisasse.
Emanava do homem um ar de autoridade inconfundível. Somado a isso, o atrativo timbre de sua voz de baixo e, sobretudo, esses fascinantes olhos azuis, confirmaram a Julia de quem se tratava. Sentiu que o coração ia aos pés e soube que tinha empalidecido.
— Você é Logan Scott — murmurou. — Deveria haver isso dito.
Os olhos dele brilharam de malícia e desafio:
— Você deveria havê-lo perguntado.
Pesarosa, ela assentiu admitindo-o e se perguntou se teria quebrado todas suas possibilidades de produzir uma impressão favorável.
— E qual é seu nome? — perguntou ele.
— Sou a senhora Jessica Wentworth — respondeu Julia, dando o nome artístico que ela mesma tinha inventado.
A meia dúzia de pessoas que havia na habitação a observaram com curiosidade, e ela teve vontade de arrastar-se até um canto escuro e ocultar-se.
— Muito bem, senhora Wentworth — disse Logan Scott em voz suave.
— Vejamos do que é capaz.
Estendeu uma mão para receber as peças que ela tinha levado para a prova e folheou os papéis molhados.
— Vejo que preparou uma cena da Mathilda. Excelente. A temporada passada, fizemos essa obra durante bastante tempo. Charles está bastante familiarizado com ela — disse ele, chamando com um gesto a um jovem alto e loiro que estava a uns passos dali. — Incomodaria fazer o papel de lorde Aversley, Charles?
O jovem obedeceu com presteza.
Scott se acomodou na cadeira e outros o imitaram.
— Senhora Wentworth, se não lhe importar, permitiremos que os outros membros da companhia observem sua audição.
Em realidade, a Julia incomodava sim. Era muito mais difícil atuar uma cena para um grupo muito reduzido que para um grande público. Além disso, todas essas pessoas eram atores: o público mais crítico de todos. Ririam dela por sua pretensão de formar parte do Capital... Notariam imediatamente que ela não tinha preparação e que tinha muito pouca experiência. Julia se obrigou a sorrir e destravou seus joelhos para reunir-se com o jovem no centro da sala.
Ao parecer, Charles não era o lorde Aversley ideal, pois o via muito delicado e arrumado para fazer o papel de um vilão consumado. Mas, por outra parte, do jovem transcendia um ar de segurança em si mesmo que impressionou a Julia. Ela não tinha dúvidas de que ele seria capaz de atuar de maneira convincente em qualquer personagem que fizesse.
— Mathilda é um papel trapaceiro para uma prova — comentou Logan Scott. Não podia discernir-se se o dizia a Julia ou a outros. — Geralmente, o papel da heroína sofrida causa aborrecimento.
Julia assentiu com ar grave e fixou o olhar no rosto imperturbável do Logan.
— Procurarei não ser aborrecida, senhor Scott.
Houve um tremor de risada contida nas comissuras da boca do homem.
— Comece quando estiver preparada, senhora Wentworth.
Julia assentiu e cravou sua vista no chão para concentrar-se, preparando-se para a cena. A história da Mathilda" tinha dado fama a seu autor, 5. R. Fielding, fazia só dois anos, primeiro sob a forma de uma novela, e logo, como clamoroso êxito na cena. Ao público lhe fascinei a história de uma ambiciosa moça do campo, sua descida à prostituição e sua posterior redenção. Julia tinha eleito uma cena crucial, em que Mathilda, ainda virgem, era seduzida pelo diabólico libertino de lorde Aversley.
Julia levantou sua vista para o Charles e começou a falar com áspero acento camponês. Ele, por sua parte, respondeu-lhe com o tom aristocrático do Aversley. Julia sentia que, a cada linha, sumia-se mais profundamente no personagem. Adotei uma atitude que era, pela metade de paquera, pela metade de temor, avançando e retrocedendo à medida que Aversley a perseguia pelo salão.
Logan se concentrei na moça, que tinha absorvido todos seus sentidos. Era uma mulher miúda, um pouco por debaixo da estatura medeia e, entretanto, graças a seu corpo esbelto, parecia mais alta. Com seu cabelo loiro cinza, seus intensos olhos azul esverdeados e seu rosto de delicados ângulos, era até muito bonita. Era pouco comum encontrar a uma mulher de tão impecável beleza que fosse, ao mesmo tempo, talentosa atriz. Pelo general, as mulheres realmente formosas não estavam acostumadas ter a profundidade emocional nem o instinto para fazer nenhum outro papel que não fosse o de ingênua.
Logan não necessitei mais que um minuto, do começo da cena, para compreender que Jessica Wentworth tinha essa aula de presença notável que o fazia arrepiar os cabelos da nuca. Possuía o dom de transformar-se no personagem que representava. Sem a menor vaidade, sabia que ele possuía a mesma habilidade e que um ou dois dos atores da companhia podiam obtê-lo, de vez em quando. Mas era um talento estranho em uma moça que não devia ter mais de vinte anos.
Jessica Wentworth interpretava ao personagem da Mathilda com aparente falta de esforço. Sua atuação era estranhamente comovedora, imbuída da curiosidade de uma menina e a penosa fascinação para o homem que lhe arruinaria a vida. Além disso, havia uma beira de cálculo em sua atitude, uma ardilosa e sutil compreensão da desviada ambição da Mathilda, que a levava a ter em seu poder a esse homem rico. Logan sacudiu apenas a cabeça, detectando a fluidez de sua atuação. Jogou um olhar aos outros atores e viu que eles contemplavam encantados a recém chegada.
Julia começou a relaxar-se e a desfrutar do trabalho com um ator tão bom como Charles. O tornava assombrosamente fácil para ela acreditar nesse Aversley que soprava com desdém e a espreitava por todo o salão. Entretanto, quando ouviu que a voz do Logan Scott interrompia o diálogo, ela titubeou e se deteve.
— Eu terminarei a cena com ela, Charles.
Surpreendida, Julia viu que Scott deixava sua cadeira e se aproximava dela. Indicou ao Charles que se sentasse e tomou seu lugar. Por um momento, Julia ficou sobressaltada ao ver a mudança que se produziu no Logan Scott, o repentino estalar da tensão no ambiente, o chiado de fogo azul que apareço em seus olhos. Dedicou-lhe um leve sorriso e começou a falar como Aversley. Foi emocionante. Julia teve vontades de sentar-se e dedicar-se a escutar o poderio contido que expressava essa voz. Ele conferia uma qualidade felina ao personagem do Aversley, tina ridícula jactância e um inesperado toque de amargura.
Julia adaptou sua atuação a dele, respondendo como Mathilda e por uns instantes, resultei-lhe fácil perder-se em seu papel, esquecer-se de quem era ela. Aversley brincava com a Mathilda, equilibrava-se sobre ela lhe prometendo agradar e tortura com sua voz sedosa e seus ardentes olhos azuis. Sujeitou-lhe os braços, e Julia se surpreendeu experimentando a autêntica sensação de ver-se apanhada. Lutei para soltar-se, mas ele a reteve perto de si e lhe falei com sua boca próxima a dela, lhe roçando os lábios com seu fôlego quente.
Estavam na parte da obra em que Aversley beija a Mathilda e a leva do cenário, deixando liberado à imaginação do público o resto da ação. Em braços do Logan Scott, Julia ficou tensa, sentindo-se presa de seu forte apertão. Por um instante, pensou que ele a beijaria, mas sentiu alívio quando a máscara desapareceu de seu rosto e ele a soltei: a cena tinha concluído.
Todos os presentes guardaram silêncio. Julia sentia seus olhares sobre ela e, dando um passo atrás, esfregou os braços onde Scott a tinha sujeito.
Ao vê-la, Scott se voltou para ela arqueando uma sobrancelha:
— Tenho-lhe feito mal? — perguntou, com certo assombro.
Julia se apressou a negar com a cabeça e deixou cair as mãos. A sujeição não tinha sido dolorosa, mas caminho que o contato perdurava nela depois de que ele a tinha solto.
Depois disso, produziu-se uma prolongada pausa, durante a qual outros membros da companhia seguiam olhando fixamente a Julia; Scott, por sua parte, observava-a com ar especulativo. Estava agradado, decepcionado3 dúbio? Opinava que ela tinha méritos como atriz? Julia cedeu ao impulso de romper o silêncio.
— Devo provar com outra cena? — perguntou, em voz baixa. — Talvez outra obra?
— Não será necessário — respondeu ele, subitamente impaciente, jogando em redor um olhar de leopardo enjaulado. Elevou uma mão elegante em um resto para indicar a Julia que saísse com ele. — Venha, senhora Wentworth. Levá-la-ei a percorrer o teatro.
Ninguém se surpreendeu por essa reação. O homem maior que estava no rincão sorriu a Julia, quando passava, para lhe dar ânimos. Uma bonita jovem de encaracolado cabelo castanho e vivazes olhos verde mar lhe aproximou quando ela tinha chegado à porta.
— Fez a melhor Mathilda que vi em minha vida — lhe disse a moça.
Julia sorriu a modo de agradecimento e o comentário a fortaleceu. Entretanto, a opinião que podia significar vida ou morte era a do Logan Scott; até esse momento, ele não havia dito uma só palavra.
— Você tem pouco ou nenhum treinamento — lhe disse ele, guiando-a através de um labirinto de escritórios administrativos.
— Assim é — disse Julia, sem alterar-se.
— E não muita experiência.
— realizei algumas apresentações pelas províncias com uma companhia itinerante. Nestes últimos tempos, trabalhei no teatro Daly, no Strand.
— O Daly — repetiu ele, sem mostrar-se muito impressionado. — Você merece algo melhor que isso.
— Oxalá seja assim, senhor
O se deteve e lhe mostrou a biblioteca do teatro, cheia de prateleiras com livros sobre vestuário, cenários e técnica de como atuar, como assim também inumeráveis volumes de distintas obras. Deteve-se ante uma pilha de papéis, escolheu uma gasta edição de Muito barulho Por Nada e a entregou a ela. Julia apertou o livro contra seu peito e seguiu ao Scott para a saída.
— Eu exijo aos atores de minha companhia que se esforcem por obter o estilo mais natural possível — assinalou Scott. — Não posso suportar as posturas e as atitudes estudadas que vi na maioria dos teatros londrinos. Muitos atores não são mais que idiotas muito preparados que substituem a verdadeira atuação por gestos e pausas extravagantes.
Julia, tomada de uma admiração que conflitava com a fascinação, assentiu, demonstrando que pensava o mesmo.
— Dizem que você revolucionou a cena inglesa e européia, em geral... — começou a dizer ela, mas ele a interrompeu com expressão irônica.
— Não me agrada que me adulem, senhora Wentworth. Isso só serve para inflar a opinião que tenho sobre mim mesmo, e isso é perigoso. Já sou muito arrogante sem elogios.
Surpreendida, Julia pôs-se a rir.
— Estou segura de que isso não é verdade.
— Espere até que me conheça mais.
No peito da moça borbulhou a esperança.
— Conhecê-lo-ei? — atreveu-se a perguntar.
Ele sorriu.
Que estranho lhe pareceu que o sorriso de um homem pudesse ser tão cálido e, ao mesmo tempo, emanasse dele a sensação de que era inalcançável.
— Possivelmente — respondeu ele. — Tem você um grande potencial como atriz, senhora Wentworth. Não seria uma má aquisição para a companhia.
Chegaram ao teatro passando desde atrás do cenário. Julia acompanhou ao Scott até as luzes do tablado, na borda do cenário, e olhou para o pátio de poltronas. Era formoso e estava em penumbras, haveria umas quinhentas poltronas e filas de camarotes que se elevavam a alturas imponentes. Julia nunca tinha estado ali. Era um teatro magnífico pintado de branco, salmão e verde escuro. Junto às paredes se alinhavam colunas cobertas de dourado e com incrustações de cristais verdes, enquanto que o interior dos camarotes estava revestido de suntuoso papel floreado.
O cenário estava ereto em cima de um pendente, de modo que os atores em foro se elevavam uns centímetros por sobre os que estavam no tablado. De pé sobre esse chão coberto de marcas, Julia podia imaginar como seria atuar ante uma concorrência de mil pessoas ou mais.
— Há certas questões das que é necessário falar — comentou Scott, de repente. — Seu pagamento, a quantidade de atuações pedidas, as exigências que eu apresento aos atores, como os ensaios, por exemplo. Eu quero que todos os atores e as atrizes estejam presentes em todos os ensaios, por mais que saibam suas partes. Você pode levar adiante sua vida do modo que o deseje, mas qualquer que falte a um ensaio ou a uma atuação se expõe a ser multado ou, inclusive, despedido. O mesmo se aplica à embriaguez, a chegar tarde, a gravidez, às aventuras com outros atores ou qualquer outra coisa que interfira com a rotina do teatro.
— Entendo-o — disse Julia, enquanto um leve rubor subia por suas bochechas.
— Eu administro a companhia de acordo com um sistema particular — continuou ele. — Se tiver uma queixa, há um momento e um lugar adequados para apresentá-la: mais adiante se informará por meio de que canais. Em minha casa jamais recebo visitas relacionadas com a administração do teatro. Atribuo um alto valor a minha intimidade.
— É lógico — disse Julia, sentindo que a excitação começava a acelerar os batimentos do coração de seu coração.
Pelo modo em que lhe falava, tinha a impressão de que pensava contratá-la.
— Há outra coisa que deve ficar clara — disse Scott. — Fora dos méritos artísticos que possa ter, o Capital é uma empresa comercial. Adoto todas minhas decisões de acordo com a necessidade de obter lucros... e nunca o ocultei. Se decidir contratá-la é porque você fará ganhar dinheiro ao teatro. Todos os atores, incluindo a mim, compreendemos que nossa presença aqui se deve ao proveito econômico que contribuímos.
Julia ficou rígida e, de súbito, todas suas esperanças se desvaneceram. Acaso estaria sugerindo que ela se conver-tesse em prostituta para apoiar ao teatro?
— Não tenho interesse em ser alcoviteira de ninguém — murmurou Scott, divertido, adivinhando o que ela pensava. — Só assinalo que uma de suas responsabilidades assim como uma das minhas e a de todos outros, consiste em atrair auspiciantes em cada nova temporada. Você pode aproveitar seu talento e seu encanto para obtê-lo. Não é preciso que se deite com alguém... a menos que o deseje, claro.
— Não o desejo — replicou Julia, veemente.
— Esse é um tema que só concerne a você — assegurou ele. Um cenho fugaz apareceu em sua frente, enquanto a olhava. — Acaba de ocorrer-se me que não recordo ter marcado uma audição para ninguém, no dia de hoje.
A dúvida a surpreendeu com a guarda baixa, e ela respondeu imediatamente:
— Acredito que foi marcada por meio de um de seus gerentes...
— Aqui ninguém faz nada sem minha permissão.
Julia assentiu, e seu rosto se tornou escarlate.
— Menti — admitiu. — Do contrário, jamais teria conseguido vê-lo.
A gargalhada dele teve um matiz de irritação.
— Penso que você nos emprestará uma boa utilidade. Diga-me, senhora Wentworth... Está realmente casada?
Embora Julia tivesse se preparado para a pergunta, sentiu que se ruborizava, incômoda. Não podia lhe dizer a verdade embora soubesse que ele era um ator muito talentoso para aceitar com facilidade uma mentira. Caminhou ao azar pelo cenário, com os braços cruzados sobre seu peito.
— Em realidade, não — respondeu ela, sem olhá-lo. - O que pensei foi que se passasse por senhora estaria melhor protegida de avanços não desejados.
— Muito bem.
Ao ver que não fazia mais pergunta, Julia lhe jogou um olhar surpreendido. Vai perguntar-me a respeito de minha família? Meu ambiente?
Ele negou com a cabeça enquanto mexia, distraído, numa mecha de cabelo mogno avermelhado.
— Suponho que, como muita gente do teatro, você tem um passado de que queria escapar.
— Você também? — atreveu-se a perguntar ela.
Scott assentiu.
— Houve sucessos em minha vida dos que estive fugindo a muito tempo. Mas nunca cheguei mais longe que aqui — disse ele, jogando um olhar em torno pelo cenário vazio. Pareceu relaxar-se. — Em nenhum lugar me hei sentido por inteiro cômodo, salvo no Capital. Para mim, é o lar... e confio que também chegue a sê-lo para você, senhora Wentworth.
O rosto dela se iluminou com um sorriso.
— Sim — murmurou Julia, percebendo uma parte do motivo pelo que ele amava esse lugar.
Não lhe custava imaginá-lo cheio de milhares de histórias e de personagens que tinham adquirido vida nesse cenário, fazendo vibrar o ar com a música e as vozes, comunicando ao público as emoções dos atores: medo, esperança, amor...
No teatro, a gente podia esquecer quem era, ao menos por um tempo. Os atores podiam conver-ter-se em qualquer que desejassem ser. Isso era o que ela queria para si mesma. Viveria como Jessica Wentworth e sepultaria até o menor rastro da Julia Hargate... e do segredo que a tinha acossado durante toda sua vida.
— Eu lhe havia isso dito — dizia Nell Florence, e seu enrugado rosto se abriu em um estranho e belo sorriso. — A melhor alternativa que tinha era te aproximar do Logan Scott. Eu admiro sua obra no Capital. Em que pese a que é tão jovem, é um diretor capaz. Tirará mais proveito formando parte da companhia do Scott do que obtiveste no Drury Lane — disse, e um estremecimento sacudiu seus ombros frágeis e em seu rosto apareceu uma expressão desdenhosa. — O empresário norte-americano Stephen Price, com seu extravagante gosto para o espetáculo, está arruinando ao Drury Lane. Você deveria ter nascido faz meio século, para ter trabalhado com o David Garrick: ele teria sabido bem o que fazer com uma moça de seu talento. Imagino como teria feito o papel oposto a ele no The Wonder!
— Isso significa que o senhor Scott te parece bem? — perguntou Julia, levando-a com delicadeza outra vez ao tema, antes de que a senhora Florence caísse em uma de suas largas reminiscências.
— OH, sim. Suas produções têm um estilo maravilhoso e sua dedicação à arte da atuação é indiscutível.
Permaneceram sentadas, bebendo chá na sala da senhora Florence, com seus móveis estofados de seda rosada que cheiravam a umidade e suas paredes cobertas de antigas lembranças de uma vida dedicada ao teatro. Julia tinha conhecido à anciã fazia uns meses, quando a senhora Florence tinha aceito um pequeno papel no teatro Daly. Pelo comum, uma aparição no Daly teria estado por debaixo do nível de uma atriz tão importante, que tinha atuado no Drury Lane durante mais de trinta anos. Mas o senhor Bickerston tinha pago uma fortuna à senhora Florence, consciente de que seu nome encheria o teatro.
Depois de uma temporada de um mês de êxito com a obra, a senhora Florence tinha abandonado ao Bickerston e ao Daly, mas, antes, tinha levado a Julia à parte e lhe tinha dado um conselho carregado de boas intenções:
— Aqui, seus dons estão desperdiçados — havia dito a Julia. — Tem que encontrar outro teatro, um respeitável; assim receberá uma boa preparação.
Julia se havia sentido tão adulada que ficou sem palavras. Ela admirava muito a essa amadurecida mulher cuja vida ela mesma tinha convertido em um êxito. Nell Florence, nascida no seio de uma pobre e numerosa família, no extremo leste de Londres, tinha tirado proveito de seu considerável talento para a cena e, além disso, de algumas discretas aventuras amorosas com homens de fortuna. Embora sua legendária beleza se desvanecesse com os anos, com seu formoso cabelo avermelhado, agora salpicado de prata, ela seguia sendo uma mulher formosa.
Fazia uns anos, a senhora Florence se retirou e vivia em uma casa no centro de Londres, e a cuidava uma reduzida dotação de serventes. Se se enrabichava com um aspirante a ator ou a atriz, cada tanto dava lições de atuação. E embora Julia não pudesse pagar suas elevadas tarifas, de todos os modos a senhora Florence tinha decidido cobri-la sob sua asa.
— Se o desejar posso me dar o luxo de ensinar por prazer — lhe havia dito. — Estou segura de que nosso vínculo será benéfico para ambas. Eu te ajudarei a obter o êxito que você merece, e você iluminará minha vida com suas visitas. Os anciões devem ter perto a pessoas jovens, você se assemelha muito a mim quando tinha sua idade.
Uma vez por semana, Julia visitava a senhora Florence e, enquanto bebiam chá em sua lotada sala, em taças de porcelana grafite, ela escutava, extasiada, as instruções da anciã. Julia tinha sido contratada no Capital; ao sabê-lo, a senhora Florence se alegrou tanto como a própria Julia.
— Eu sabia que Scott não vacilaria em te contratar apenas se te visse atuar — comentou a mulher mais velha. — Tem uma qualidade que ele não podia deixar de ver, querida minha. Dá tudo de ti quando está em cena... e entretanto te reserva o suficiente para que, quem lhe veja, desejem mais. Nunca dê tudo, Jessica, pois desse modo não lhe valorizarão — seguiu dizendo, depois de reclinar-se na amaciada cadeira e contemplar a Julia com olhos brilhantes: — E agora, me conte como foi trabalhar em uma cena com um ator de seu calibre?
— Comovedor — respondeu Julia, imediatamente. — Me fez acreditar, quase, que estava acontecendo de verdade. Jamais conheci a alguém que faça que uma cena de uma obra pareça um momento da vida real.
— Assim acontece com os grandes — comentou a senhora Florence, pensativa. — Mas, tome cuidado Jessica, depois de alcançar essas alturas que, às vezes, alcança-se no teatro, a vida real pode te parecer decepcionante. Possivelmente ocorra que desperte uma manhã e descubra que sua profissão te roubou anos preciosos. E, nesse caso, estará como eu, rodeada de objetos e retratos descoloridos, sem outra coisa que as lembranças para te sustentar.
— Eu adoraria ser exatamente como você — disse Julia, com ardor. — Você deixou sua marca no teatro, é respeitável, leva uma vida cômoda e independente, não poderia pretender nada melhor que isso.
Por um momento, os olhos da senhora Florence se encheram de tristeza.
— Não sempre tenho feito as escolhas corretas, filha. Tive que viver muito tempo pagando as consequências.
— Quer dizer que...? — Julia a olhou, perplexa. — Lamenta, acaso, não te haver casado?
— Eu só queria me casar com um homem em particular — explicou a anciã, com uma careta amarga em seus lábios. — Por desgraça, ele não estava relacionado com o teatro. Ele queria que eu abandonasse tudo, por isso... — estendeu suas mãos em um gesto de impotência — deixei que partisse. Quanto invejei às mulheres que não se viram obrigadas a fazer essa escolha!
Contemplou Julia com certo toque de compaixão em seu semblante, como se estivesse convencida de que, algum dia, a moça teria que enfrentar o mesmo conflito. Julia desejou poder dizer a verdade à senhora Florence: que nunca teria que escolher entre o amor e sua profissão, que ela, em realidade, já estava casada e que seu marido não representava o menor obstáculo.
Em silêncio, Julia foi para o dormitório de sua mãe, situado na sombria ala leste do Hargate Hall. A luxuosa mansão gótica era escura e sólida, com altas chaminés e janelas estreitas e altas. Erguia-se em meio das colinas calcárias do Buckinghamshire, e se comunicava com o mercado do povo por meio de um fundo e antigo atalho de um par de quilômetros de longitude, e que se achava no mesmo estado desde fazia décadas. Hargate Hall era sombria e silenciosa, com seus pesados móveis de mogno e seus tetos baixos decorados em forma de leque, cheias de teias de aranhas.
Entrar no lar que tinha abandonado fazia dois anos enchia a Julia de uma sensação de desconforto e de fechamento. Com movimentos resolvidos, subiu por uma das largas escadas laterais, temendo, até certo ponto, ouvir a voz de seu pai, cortante como uma faca, lhe ordenando que partisse.
Ninguém se atreveu a lhe dirigir a palavra, salvo uns poucos criados que ela conhecia desde sua infância, que a saudaram com discrição. Todos, no Hargate Hall, sabiam que ela não era uma visita bem recebida, pois seu pai lhe tinha proibido pôr um pé na propriedade; entretanto ninguém lhe impediria de visitar a Eva, sua mãe, agora doente.
O ar viciado que havia no dormitório da Eva fez franzir o nariz a Julia, que se apressou a correr as cortinas e a abrir a janela para deixar entrar a brisa de fora. Sob as mantas, algo se agitou e chegou a voz débil da Eva:
— Quem é?
— Sua filha pródiga — respondeu Julia com ligeireza e, aproximando-se da cama, inclinou-se e beijou a testa pálida de sua mãe.
Eva piscou e tratou de incorporar-se, com seu rosto endurecido pela consternação. Era uma mulher miúda, magra, de cabelo loiro cinza manchado de prata e grandes olhos castanhos. Dava a impressão de ter envelhecido muito nos últimos dois anos, sua pele incolor estava sulcada por pequenas linhas e os ossos de sua cara se viam mais proeminentes que nunca.
— Julia, não deveria estar aqui. É perigoso!
— Não há problema — disse Julia, sem elevar sua voz. — Você me tinha escrito me dizendo que hoje não estaria meu pai. Não o recorda?
— OH, sim — disse sua mãe, esfregando a testa com expressão afligida. — Este último tempo, as coisas se vão de minha cabeça com tanta facilidade... — lamentou-se, suspirando e apoiando de novo seus ombros no travesseiro. — Estive doente, Julia...
— Sim, sei — repôs ela, apertando os lábios e observando a sua mãe, que sempre tinha sido magra. Agora, estava tão frágil que parecia um pássaro. — Não teria que estar encerrada neste quarto escuro, mamãe. Necessita luz, ar fresco, caminhar ao ar livre...
— Não deve ficar muito tempo — disse sua mãe, com voz débil. — Se chegasse a voltar seu pai em forma inesperada...
— Jogar-me-ia — concluiu Julia, esboçando uma careta sarcástica. — Não se preocupe, mamãe. Não lhe temo. Agora, já não pode dizer nem fazer nada que me importe.
Seu rosto se suavizou ao notar a aflição de sua mãe, e se sentou com cuidado no bordo do colchão. Tomou nas suas uma das magras e frias mãos de sua mãe e a oprimiu com delicadeza.
— Edifiquei uma vida nova para mim. Agora, sou atriz; bastante boa — disse, sem poder conter um sorriso ao ver a expressão de sua mãe. Atriz, não prostituta... Embora admito que a maioria das pessoas não percebem a diferença. Esta temporada trabalharei no teatro Capital e me prepararei com a guia do próprio Logan Scott. Terei um bom pagamento, meu próprio carro, uma casa... e escolhi um novo pseudônimo para mim: Jessica Wentworth. Você gosta?
Eva moveu sua cabeça.
— Não nasceste para isso — disse, com seus lábios ressecados. — Você não isso.
— Quem sou eu, mamãe? — perguntou Julia em voz suave, embora já conhecesse a resposta.
Uma súbita desdita oprimiu seu peito.
— É a marquesa do Savage.
Julia se levantou da cama de um salto, pois não podia suportar o mero som desse sobrenome.
— Isso é assim só porque não pude evitá-lo. Estou casada com um homem que não conheço, e só para satisfazer as ambições sociais de meu pai. É uma situação absurda. Não conheço lorde Savage nem de vista e nunca intercambiei correspondência com ele, sequer. Às vezes, pergunto-me se existe de verdade!
— Ao parecer, lorde Savage não tem mais desejos que você de reconhecer o matrimônio — admitiu a mãe. — Nem seu pai nem o duque do Leeds tivessem imaginado que os filhos de ambos guardariam tanto ressentimento com respeito ao matrimônio.
— Não guardar ressentimento de que lhe tenham roubado seu futuro? — exclamou Julia, passeando pela habitação enquanto seguia falando, acaloradamente. — Fui vendida para conseguir um sobrenome, lorde Savage, em troca de uma fortuna. Meu pai tem agora um título para sua filha, e os Savage se salvaram da ruína econômica. E o único que tiveram que fazer foi sacrificar a seus filhos primogênitos.
— Por que tem que obstinar-te nesse mau sentimento para seu pai? — perguntou sua mãe com tristeza. — Ele fez algo muito similar ao que fazem outros pais em nossa posição. Consertam-se matrimônios continuamente.
— Isto foi diferente. Eu só tinha quatro anos de idade, e meu assim chamado marido, não era muito maior — recalcou Julia, indo para a janela e olhando por entre as cortinas, fazendo passar o veludo bordado de seda entre os dedos. — Quando eu me inteirei disto, tinha doze anos e albergava a fantasia de estar apaixonada por um moço da aldeia... Até que meu pai me levou à parte e me disse que jamais teria o direito de amar a nenhum homem porque já estava casada — recordou, movendo a cabeça e rindo sem alegria. — Eu não podia acreditá-lo. Ainda não posso. Durante anos, perseguiam-me as dúvidas com respeito a meu "marido", perguntava-me se, ao crescer, teria se convertido em um retardado, em um pesado, em um mulherengo...
— Por isso ouvimos a respeito dele, a reputação de lorde Savage é a de um homem tranquilo e responsável.
— Não me importa como ele seja — replicou Julia, até sabendo que a sua mãe soaria como pura teima de sua parte e, possivelmente, em certo modo tivesse razão.
Mas também se devia à convicção de que se aceitava a vida que seu pai tinha escolhido para ela, iria apagando até conver-ter-se na mesma classe de pessoa dócil e desventurada a que pertencia sua mãe.
— Não importaria embora lorde Savage fosse um santo. Não penso me conver-ter, nunca, na duquesa do Leeds. Não estou de acordo com os planos que meu pai elaborou para mim. Controlou cada dia, cada hora, cada minuto de minha vida até que, por fim, eu reuni a coragem suficiente para fugir.
— Ele queria abrigar-te e te proteger...
— Meu pai me manteve encerrada nesta propriedade, sem me permitir sair nunca nem conhecer ninguém. Desde o dia em que nasci, esteve decidido a que me casasse com um homem de título importante; pergunto-me se alguma vez lhe ocorreu pensar que, talvez, um dia eu poderia conhecer um duque ou a um conde, sem sua intervenção. Ou pensou, alguma vez, na possibilidade de que eu não quisesse isso para mim? Imagino que seria esperar muito que ele pudesse querer minha felicidade...
Julia se interrompeu ao ver que seus dedos apertavam as dobras de veludo. Afrouxou-os e fez uma inspiração profunda para acalmar-se. Doía-lhe saber que, embora ela tinha escapado do domínio de seu pai, Eva ainda estava sob seu controle. O único recurso de sua mãe tinha sido refugiar-se na enfermidade, conver-tendo-se pouco a pouco em uma inválida. Essa era a única defesa da Eva contra esse marido autoritário que tinha manipulado as vidas de todos que o rodeava.
Edward, lorde Hargate, desprezava qualquer enfermidade. Em realidade, temia-lhes porque as enfermidades eram alheias a sua vigorosa natureza. Era um homem forte, com um impulso inflexível que o levava a deixar de lado qualquer sentimento que não fosse dele. Às vezes era cruel, e negava às pessoas aquilo que mais desejavam para demonstrar sua riqueza e seu poder. O resto da família Hargate, primos, irmãos, tios e tias, evitavam-no todo o possível. Entretanto, quando ele estava de seu pior aspecto, sua esposa o defendia e o apoiava porque era seu dever.
— Tem que haver alguma outra coisa que possa fazer — murmurou Eva — que não seja dedicar sua vida ao teatro. Quando penso em minha filha vivendo entre essas pessoas, trabalhando sobre um cenário... Soa-me muito sórdido.
— Estarei muito bem no Capital — repôs Julia, com firmeza. — É uma companhia respeitável. E atuar é a ocupação perfeita para mim. Como estive tanto tempo encerrada, quando era menina, desenvolvi uma poderosa imaginação.
— Lembro quanto me afligia — murmurou Eva. — Você parecia viver em um mundo de fantasia quase todo o tempo; fingia ser outra pessoa.
Julia voltou junto à cama e sorriu a sua mãe.
— Agora, pagar-me-ão um bom dinheiro por fazê-lo.
— E o que me diz de lorde Savage?
Julia se encolheu de ombros.
— De momento ele não deu sinais de querer reconhecer o matrimônio. Não me ocorre nenhuma outra alternativa para levar adiante minha vida — incômoda, fez uma careta. — Que estranho resulta saber que pertenço a um desconhecido... Que ele tem mais direitos sobre mim que eu mesma, do ponto de vista legal. Essa idéia desperta o desejo de fugir ao último limite da terra. Admito que me dá medo descobrir que classe de homem é, em realidade. Não estou pronta para isso... talvez, nunca o esteja.
— Não poderá lhe escamotear o corpo à verdade para sempre — disse Eva. — Algum dia, lorde Savage descobrirá que sua esposa esteve trabalhando no teatro. Como crê que se sentirá?
— Não me cabe dúvida de que quererá a anulação — repôs; de repente um sorriso malicioso apareceu no rosto da Julia. — E eu terei muito gosto em agradá-lo. Estou segura de que serei muito melhor atriz que duquesa.
Londres 1827
Assim que o detetive contratado saiu da habitação, Damon abandonou todo intento de fingir calma. Jamais se dava o luxo de perder o controle de si mesmo, mas esta frustração era muito grande para suportá-la. Sentiu vontades de gritar, de golpear a alguém; com muita dificuldade pôde conter-se. Não teve consciência de que tinha um copo de cristal na mão até que ouviu que se estrelava na chaminé da biblioteca com forte explosão.
— Maldita seja, onde está ela?
Uns instantes depois se abriu a porta e seu irmão, lorde William, apareceu a cabeça.
— Parece que o detetive não teve a sorte de encontrar a nossa misteriosa marquesa.
Damon guardou silêncio, embora um rubor pouco frequente nele delatava suas emoções. Embora a semelhança entre os dois irmãos era notável, seus temperamentos não podiam ser mais diferentes. Os dois tinham cabelo negro e as impactantes e bem cinzeladas facções características do clã Savage. Entretanto, os olhos cinzas do Damon, de uma cor que recordava à fumaça e às sombras, estranha vez deixavam ver seus pensamentos enquanto que a expressão dos do William era, quase sempre, de picardia. William era dono de um encanto e de um ar despreocupado que Damon, o maior, nunca tinha tido tempo nem vontades de cultivar.
Até essa altura de sua breve vida de vinte anos, William as tinha arrumado para meter-se em um sem número de enredos e situações difíceis. Tinha passado por eles com a juvenil convicção de que nunca lhe aconteceria nada mau. Apesar de tudo, era estranho que Damon o arreganhasse, pois sabia que, no fundo, William era um bom moço. Que importância tinha se se permitia, de vez em quando, entregar-se à alegria? Damon queria que seu irmão menor tivesse toda a liberdade e as vantagens que ele jamais tinha tido... e estava disposto a proteger ao William das duras realidades que ele não tinha podido economizar-se.
— O que há dito? — quis saber William.
— Agora não tenho desejos de falar.
William entrou na habitação e enfiou para um aparador que havia sobre um pedestal e onde guardavam fileiras de luxuosos vasos de cristal esculpido.
— Sabe uma coisa? — disse o jovem, como ao passar, — não é necessário que encontre a Julia Hargate para te liberar dela. Estiveste procurando-a durante três anos e não há sinais dela nem aqui nem no estrangeiro. É evidente que os Hargate não querem que a achemos. Seus parentes e amigos não querem ou não podem divulgar nenhuma informação. Eu me atreveria a afirmar que poderia obter a anulação.
— Mas não o farei sem que Julia saiba.
— Mas, por que? Deus sabe que você não lhe deve nada.
— Devo-lhe uma fortuna — replicou Damon, turvo. — Melhor dizendo, a família a deve.
William meneou a cabeça enquanto entregava a seu irmão um copo com conhaque.
— Você e seu condenado sentido da responsabilidade. Qualquer outro, em sua situação, teria se liberado da Julia Hargate como se fosse um lastro não desejado. Nem sequer a conhece!
Damon bebeu um generoso gole de conhaque, levantou-se de sua cadeira junto ao escritório e começou a passear pelo quarto.
— Preciso encontrá-la. Nesta situação, ela foi uma vítima tal como o fui eu. O casamento se realizou sem nosso consentimento, mas, ao menos, podemos dissolvê-lo juntos. Além disso, não quero dar nem um passo em nenhum sentido sem fazer algum tipo de acerto em benefício dela.
— Ela, com o respaldo da fortuna de sua família, não necessita nenhum acerto.
— Existe a possibilidade de que ela tenha quebrado com os Hargate. E eu não saberei até havê-la encontrado.
— Custa-me acreditar que Julia seja uma indigente, irmão. O mais provável é que esteja divertindo-se em alguma praia da costa francesa ou italiana e vivendo muito bem com o dinheiro de papai.
— Se fosse assim, a estas alturas já a teria encontrado.
William viu que seu irmão se aproximava da janela. Gozava-se, dali, de uma vista espetacular, ao igual a desde quase todas as habitações desse castelo medieval modificado. Estava construído sobre um lago, com grandes arcos de pedra que o sustentavam sobre a água, e nos quais se apoiava a antiga construção que se elevava para o céu. Muitos dos muros de pedra cor âmbar, outrora impenetráveis, tinham sido substituídos por magníficas janelas fechadas com painéis de cristal em forma de rombos. Atrás do castelo se estendia a verde e interminável campina do Warwickshire, com seus viçosos pastos e seus jardins. Muito tempo atrás o castelo tinha sido uma sólida defesa contra os invasores da Inglaterra; agora, parecia haver-se apaziguado até conver-ter-se em um edifício de suave e graciosa maturidade.
A família Savage tinha estado a ponto de perder a posse de seu lar ancestral e todas suas outras posses, a consequência dos maus investimentos do atual duque, por não mencionar sua inclinação ao jogo. Quão único tinha salvado à família da ruína tinha sido o matrimônio do Danion com a Julia Hargate e o dote que tinha entregue o pai dela. E agora, deviam a jovem o título de duquesa, que não demoraria em chegar a julgar pelo mal estado de saúde do Frederick, o pai deles dois.
— Graças a Deus que eu não sou o primogênito — disse William com acento sincero. — Foi um acordo bastante estranho o que realizou nosso pai casando a seu filho aos sete anos para assim poder contar com dinheiro para pagar suas dívidas de jogo. E, mais estranho ainda, é o fato de que você não a tenha visto após.
— Eu nunca quis ver a Julia. Para mim, foi mais fácil fazer como se não existisse. Não podia aceitar que ela era... é parte de minha vida.
Os dedos do Damon se apertaram ao redor do copo.
— O matrimônio é legal? — perguntou William.
— Não... mas esse não é a medula da questão. Nosso pai tem feito uma promessa faz anos, e essa promessa me envolve . Eu tenho a responsabilidade de honrá-la ou, ao menos, reembolsar aos Hargate o dinheiro que tínhamos recebido deles.
— Honra... responsabilidade... — refletiu William, estremecendo-se e fazendo uma careta brincalhona. — As duas palavras que menos me agradam.
Damon fez girar a bebida e cravou seu melancólico olhar no copo. Embora Julia não tivesse culpa, cada uma das letras de seu nome era um elo da cadeia invisível que o atava. Não poderia estar em paz até que não resolvesse a questão.
— Imaginei a Julia de cem maneiras diferentes — disse Damon. — Não posso deixar de especular a respeito dela e de me perguntar o que foi o que a levou a desaparecer deste modo. Por Deus, como queria ver-me livre dela!
— Possivelmente, quando a encontrar, Julia queira te exigir que cumpra sua obrigação. Tinha pensado nisso? Você triplicou a fortuna da família desde que te fez cargo das finanças dos Savage — lhe fez notar William, com um brilho zombador em seus escuros olhos azuis. — E você resulta atrativo às mulheres, apesar de seu caráter sombrio. Por que crê que com a Julia seria diferente? Ela quer quão mesmo todas as mulheres: um marido com um título aristocrático e uma fortuna que acompanhe a ambas as coisas.
— Eu não sei o que ela quer de mim — disse Damon, deixando escapar uma amarga gargalhada. — A julgar pelo fato de que ainda se oculta, parece não querer nada de mim.
— Bom, será conveniente que faça algo com respeito a esta condenada situação, pois, do contrário, Pauline te conver-terá em bígamo.
— Não vou casar-me com o Pauline.
— Ela há dito a todo mundo em Londres que vais casar-te com ela. Por Deus, Damon, não crê que deveria dizer a Pauline que os rumores de que está casado são certos?
A alusão a Pauline, lady Ashton, fez que o cenho do Damon se aprofundasse. Essa viúva jovem e sensual tinha estado perseguindo-o durante um ano, invadindo sua intimidade, abandonando-o em cada uma das reuniões sociais às que ele assistia. Pauline pertencia a essa classe de mulher que sabia muito bem como agradar a um homem. Era uma bela mulher de cabelos escuros, sem inibições na cama e com um seco senso de humor que atraía ao Damon.
Contra seu próprio sentido comum, ele tinha iniciado um romance com Pauline fazia uns seis meses. Depois de tudo, ele era um homem com as mesmas necessidades que qualquer outro, e não lhe agradavam muito as prostitutas. Tampouco tinha interesse nos bandos de virgens obcecadas pelo matrimônio que se apresentavam em sociedade cada temporada. Elas estavam proibidas para ele, embora o fato de seu matrimônio não fosse muito conhecido pelo público.
O último tempo, entretanto, Pauline tinha iniciado uma campanha para conver-ter-se na seguinte marquesa do Savage. Até esse momento, tinha tido a astúcia de não pressioná-lo nem lhe exigir nada. Mais ainda, ainda não se atrevia a lhe perguntar se era certo o rumor de que ele já tinha esposa.
— Já hei dito muitas vezes ao Pauline que não abrigue esperanças de forjar um futuro comigo — replicou Damon, em tom áspero. — Não a compadeça: ela foi generosamente recompensada pelo tempo que aconteceu comigo.
— OH, não compadeço a Pauline — assegurou William. — Tenho uma idéia bastante clara das jóias, vestidos e contas bancárias que lhe deste — disse, desenhando um matreiro sorriso. — Deve ser sobremaneira divertida na cama para merecer tudo isso.
— Ela é boa em muitos aspectos. Bela, encantadora e inteligente. Em suma, não seria uma má esposa.
— Não estará pensando seriamente em... — William franziu o sobrecenho e olhou, surpreso, a seu irmão. — Esta classe de conversação me alarma, Damon! É provável que agrade a Pauline, até pode que esteja afeiçoada contigo mas, em minha opinião, ela não é capaz de sentir amor.
— Talvez, eu tampouco — murmurou Damon, com semblante inescrutável.
Fez-se um silêncio estranho, durante o qual apareceu no rosto do William uma expressão estupefata. Então, lançou uma breve gargalhada:
— Bom, eu não diria que te tenha visto loucamente apaixonado... mas ter estado casado aos sete anos é um obstáculo para isso. Não quiseste sentir nada por uma mulher devido a uma suposta obrigação por uma moça que jamais conheceste. Eu te aconselharia que te desfizesses da Julia... e talvez te surpreenda do logo que se degela seu coração.
— Sempre o mesmo otimista — lhe reprovou Damon, indicando a seu irmão com um gesto que saísse da habitação. — Terei em conta seu conselho, Will. Enquanto isso tenho coisas que fazer.
Julia reprimiu um bocejo de aborrecimento enquanto percorria o salão com o olhar. O baile era uma festa elegante, com música alegre, grande desdobramento de lanches e bebidas, e uma quantidade de convidados com titulo e fortuna. Fazia muito calor no salão, mesmo com as imponentes janelas retangulares que estavam abertas e deixava passar a fresca brisa do verão que chegava do jardim. Os convidados secavam, com dissimulação, os rostos suados e bebiam inumeráveis copos de ponche de frutas, entre uma e outra peça de baile.
Face às objeções da Julia, Logan Scott tinha insistido em que ela o acompanhasse à festa de todo o fim de semana que davam lorde e lady Brandon, em sua casa de campo do Warwickshire. Julia tinha plena consciência de que não era sua companhia, precisamente, o que Logan desejava embora, nos últimos dois anos, tinham cercado uma certa amizade. Em realidade, ele procurava a ajuda dela por sua capacidade para atrair doações para o teatro Capital.
Julia, de pé junto ao Logan em um rincão do salão, conversava discretamente com ele, antes de que cada um deles se mesclasse, por separado, com diversos convidados. Ela alisou a saia de seu vestido de seda de cor azul gelo, de singelo desenho, com um amplo decote reto que quase deixava ao descoberto seus ombros. Fora das quatro bandas de cetim azul que rodeavam o vestido a sua esbelta cintura, seu único adorno era o sutil desenho de cordões e bandas de cetim na prega.
Logan falou junto ao ouvido da Julia, enquanto seu olhar perspicaz varria o salão.
— Lorde Hardington está amadurecido para cair. É aficionado ao teatro e tem debilidade pelas mulheres belas. E, o mais importante, tem um ingresso privado de dez mil libras por ano. Por que não comenta com ele a temporada que se aproxima e a necessidade que temos de contar com mais auspiciantes?
Julia sorriu com chateio enquanto observava ao ancião e robusto cavalheiro de bochechas coradas. Voltou sua vista para o Logan, que produzia um impacto com seu smoking negro de festa, seu colete de seda verde esmeralda e suas ajustadas calças de cor creme. As luzes dos candelabros faziam brilhar seu cabelo como se fosse de mogno lustrado. Todos os presentes tinham assistido à festa por motivos sociais; Logan, em troca, via a reunião como uma oportunidade para fazer negócios. Estava disposto a usar sua atitude e seu encanto para solicitar recursos para o Capital... e, como sempre, teria êxito. Quase todos queriam associar-se com um homem a quem se considerava um dos maiores artistas da cena que Londres tinha conhecido.
Para surpresa da própria Julia, sua popularidade tinha crescido rapidamente no teatro e lhe tinha outorgado um relevo social que era considerado significativo para uma atriz. Tinha um elevado pagamento que lhe tinha permitido comprar uma casa na Rua Somerset, a pouca distância da de sua antiga professora, a senhora Florence. A anciã se orgulhava do êxito da Julia como se tivesse sido dela e a recebia calorosamente cada vez que Julia tinha a possibilidade de ir tomar o chá com ela e a conversar sem pressa.
Nesse mesmo momento, Julia desejava estar com a senhora Florence em lugar de estar perdendo o tempo com pessoas que se consideravam superiores a ela; Julia soltou um suave suspiro.
— Não me agradam estas reuniões com tanta gente — disse, mais para si que para o Logan.
— Não se nota. Move-te entre estas pessoas como se tivesse nascido neste meio — disse Logan, enquanto tirava um penugem de sua manga. — Faria bem em recrutar a lorde Landsdale, o de baixa estatura, que está junto à mesa dos sanduíches, e a lorde Russell, que recentemente recebeu um interessante patrimônio. Talvez, um sorriso cálido e um pouco de animação o convencessem de conver-ter-se em patrono das artes.
— Oxalá esta seja, por um bom tempo, a última festa de fim de semana a que tenha que assistir. Incomoda-me adular a homens velhos e ricos com a esperança de que dêem parte de seu dinheiro para o teatro. Possivelmente, a próxima vez possa trazer para o Arlyss ou a alguma das outras atrizes...
— Não quero a uma das outras. Você é tão eficaz nestas reuniões como o é no cenário. No término de dois anos, conver-teste-te na aquisição mais valiosa do Capital... fora de mim, claro.
Julia sorriu com picardia.
— Caramba, senhor Scott, se segue me elogiando, talvez lhe peça um aumento no pagamento.
Ele soprou pelo nariz.
— Não me tirará um só xelim mais. Já é a atriz melhor paga da que eu tenha notícia.
Sua expressão carrancuda fez rir a Julia.
— Ah, se o público soubesse que ao mesmo indivíduo que me trata tão apaixonadamente sobre o cenário e me conquistou milhares de vezes como Romeo, Benedict e Marco Antonio, fora do cenário só lhe importam os temas relacionados com os xelins e os negócios... É provável que pareça um personagem romântico às damas de Londres, mas tem a alma de um banqueiro, não de um amante.
— E graças a Deus. E agora, vá e enrola aos cavalheiros que te indiquei.., ah, e não se esqueça desse — disse Logan, indicando com a cabeça a um homem de cabelo escuro que se encontrava em meio de um grupo pequeno, a poucos metros dali. — Ele administrou as propriedades da família durante os últimos anos. Ao ritmo que leva, em qualquer momento vai conver-ter-se em um dos homens mais ricos da Inglaterra. Faria bem em convencê-lo de que se interesse no Capital.
— Quem é?
— Lorde Savage, o marquês do Savage.
Logan lhe dirigiu um breve sorriso e se afastou, para reunir-se com alguns conhecidos.
Lorde Savage, o marquês do Savage. A confusão paralisou e emudeceu a Julia. De súbito, seu cérebro custava funcionar. Duvidou de ter ouvido bem. Era estranho ouvir esse sobrenome e esse título de lábios do Logan Scott, estranho que, depois de ter imaginado tantas visões temíveis e revoltantes, descobrir que o objeto de seu ressentimento era um homem de carne e osso. Por fim, seu passado tinha aterrissado de cabeça em seu presente. Ah, se ela pudesse arrumar um modo de desaparecer... mas, ao contrário, não atinava a fazer outra coisa que permanecer aí, apanhada a campo raso. Tinha medo de que, se se movia, não poderia conter-se e sairia correndo como uma raposa perseguida por cães.
Não se explicava por que não tinha esperado que seu marido fosse tão arrumado, esplêndido, moreno e elegante como um príncipe estrangeiro. Era um indivíduo alto, de presença potente e serena. Sob uma jaqueta negra, um colete a raias âmbar e cinza, calças cinza escura, os largos ombros dominavam sobre um torso que se afinava para a cintura e os quadris. Suas facções eram austeras e perfeitas, seu olhar, vazio de emoções. Formava um surpreendente contraste com os homens com os que ela estava acostumada vincular-se como, por exemplo, Logan e os outros atores da companhia, que ganhavam a vida graças à expressividade de seus rostos. Este homem, em troca, parecia inacessível.
Como se ele tivesse percebido sua presença, olhou em sua direção. Sua testa se crispou em um cenho intrigado e inclinou um pouco a cabeça, como concentrando-se. Julia tratou de apartar o olhar mas ele não o permitiu, pois não apartava o seu do rosto dela. Dominada por um repentino pânico, ela se voltou e começou a caminhar com passos controlados, mas já era muito tarde. Cortou-lhe o passo e se aproximou dela, obrigando-a a deter-se, sob pena de se chocar com ele.
Julia sentiu que seu coração pulsava dolorosamente em seu peito. Levantou o olhar e se encontrou com os olhos mais extraordinários que tivesse visto nunca, frios e cinzas, desumanos e inteligentes, emoldurados por pestanas negras tão largas que lhe enredavam nos extremos.
— Você me resulta conhecida.
Sua voz não tinha a suntuosa claridade da do Logan Scott, mas vibrava nela um atrativo e sutil matiz rouco.
— Sério? — disse Julia, pronunciando com dificuldade pelos lábios rígidos. — Talvez me tenha visto no cenário.
Ele seguiu olhando-a fixamente e ela, por sua parte, só podia pensar: "É meu marido... meu marido".
Ao Damon intrigava quão jovem estava ante ele. Teve a impressão de que a música e as cores que reinavam no salão retrocediam até o fundo da cena enquanto ele contemplava o rosto dela. Sabia que jamais os tinham apresentado; Deus era testemunha de que ele jamais tivesse esquecido a uma mulher como ela, mas havia algo tão familiar nela que o inquietava. Era magra, e parecia fria com seu vestido azul claro, com sua pose régia que não dava lugar ao menor sinal de incerteza. Seu rosto se assemelhava mais à criação de algum artista que a um rasgo de uma mulher real, fascinante, com as altos maçãs do rosto que formavam um pronunciado ângulo com as suaves curvas das bochechas e a mandíbula. O mais notável eram seus olhos azul esverdeados, próprios de um anjo cansado de tão virginais, ternos; entretanto, refletiam o conhecimento das maldades deste mundo.
"Talvez me tenha visto no cenário", havia dito ela.
— Ah — disse ele em voz suave. — Você deve ser a senhora Wentworth.
Ela era muito mais jovem do que ele tivesse suposto dessa popular atriz cuja imagem se difundiu por toda a Inglaterra em pinturas, imagens e gravuras. O público estava enlouquecido com ela, como também os críticos que elogiavam seu atrativo e seu talento. Este talento era inegável, mas, mais que isso, o que lhe tinha ganho o ardor do público, tornando-a familiar e querida, tinha sido sua calidez.
Contudo, esse personagem guardava uma distância sideral da jovem que tinha ante si, como uma aparição. Deu-lhe a impressão de que seu pescoço era muito magro para sustentar o peso de suas grossas tranças loiras, retorcidas e sujeitas em sua nuca. Ele não teve consciência de ter tomado sua mão nem de que ela a oferecesse, mas, de repente, os dedos enluvados dela estavam entre os seus. Quando os aproximou de seus lábios, notou que ela tremia.
Sua mente se encheu de perguntas. Teria-lhe medo? Por que estava sozinha, ali? Sem notá-lo, baixou sua voz até um tom mais baixo que o habitual, como se não quisesse assustar à criatura que tinha ante si.
— Posso lhe servir em algo, senhora? Eu sou...
-Sim, sei. Você é o marquês do Savage — interrompeu ela e, imediatamente, seu semblante trocou e seus lábios se abriram em um sorriso de compromisso. Retirou sua mão. — Meu produtor teatral, o senhor Scott, desejava que eu conhecesse você. Ao parecer, acredita que eu seria capaz de convertê-lo em um patrocinador do Capital.
Surpreso pelo direto de sua abordagem, Damon lhe respondeu, sem lhe devolver o sorriso:
— Se gostar, pode tentá-lo, senhora Wentworth. Mas eu nunca esbanjo dinheiro em propósitos frívolos.
— Frívolos? Não crê, acaso, que as pessoas precisam escapar para o mundo do teatro de tanto em tanto? Uma obra pode fazer que o público viva uma experiência que jamais tenha imaginado. Em ocasiões, descobrem que depois de ter visto uma peça de teatro seus sentimentos e opiniões trocam e que contemplam sua vida de outra maneira... não se pode dizer que isso seja frívolo, não é certo?
Ele encolheu de ombros.
— Eu não preciso escapar.
— A não? — replicou ela, olhando-o com mais intensidade, se isso era possível. — Eu não acredito isso, milord.
— Por que não?
Nenhuma mulher se atreveu a lhe falar com tanta audácia. Ao princípio, ela estava tremendo e agora o desafiava. Se o que ela queria era lhe tirar dinheiro, tinha uma maneira nova de tentá-lo.
Pelo pescoço dela subiu um rubor até suas bochechas, como se estivesse fazendo um esforço para conter certa potente emoção.
— Jamais conheci a uma pessoa que se sinta em paz com seu passado. Sempre existe algo que nós gostaríamos de trocar ou esquecer.
Damon permaneceu imóvel, com a cabeça inclinada para ela. Parecia tensa e inquieta, como um pássaro disposto a levantar vôo. Ele teve que conter sua necessidade de aproximar-se dela e abraçá-la, e retê-la consigo. Algo vibrava no ar, entre os dois... certa alusiva consciência que o atraía.
— E você? — murmurou. — O que é o que trata de esquecer?
Fez-se um prolongado silêncio.
— Um marido — sussurrou ela, ocultando os olhos azuis atrás de suas pestanas.
Julia não soube o que a tinha movido a dizer semelhante coisa. Horrorizada por sua temeridade, dirigiu-lhe uma breve reverencia e se escorreu até perder-se entre a multidão, antes de que ele tivesse tempo de reagir.
— Espere... — acreditou ouvir ela, mas não fez caso e fugiu do salão.
Damon ficou olhando o lugar onde ela tinha estado e, nesse momento, recordou-a e a imagem dela ardeu em sua mente. Recordou a noite de Maio no Warwickshire, a feiticeira moça que dançava à luz das tochas. Ela era atriz e formava parte de uma companhia itinerante, e lhe tinha roubado um beijo. Não lhe cabia dúvida de que se tratava dela e, em certo modo, sua premonição de que voltaria a encontrá-la se tinha completo ao fim.
— Meu deus — disse ele baixo.
Atônito ante esse golpe de boa sorte, Damon ficou com a vista fixa no lugar onde ela tinha estado. Antes de que pudesse refazer-se, notou que lady Ashton se aproximava dele. A mão da mulher flutuou sobre sua manga em um gesto de proprietária.
— Querido — ronronou brandamente perto de seu ouvido. — Ao parecer, conheceste a uma mulher. Ela escapou antes de que eu pudesse chegar a ti. Deve me dizer do que falaram você e a senhora Wentworth! OH, não franza assim o sobrecenho... Já sabe que eu me inteiro de tudo o que faz. Você não tem segredos para mim, querido.
— Talvez tenha um ou dois — murmurou ele.
Nos olhos negros do Pauline apareceu uma expressão interrogante e seus lábios vermelhos desenharam uma careta.
— Ela representou para ti?
— Perguntou-me se patrocinaria ao Capital nesta temporada.
— E, como é natural, você recusou.
— Por quê o dá por certo?
— Porque nunca te desprende de um xelim a menos que seja indispensável.
— Sou generoso contigo — assinalou ele.
— Sim; isso se deve a que é a atitude indispensável para seguir conservando meu afeto.
Damon tornou a rir.
— E bem que vale a pena — repôs ele, deixando deslizar seu olhar pelo corpo voluptuoso dela.
Levava um vestido verde mar que rodeava seus peitos redondos empurrando-os para cima em opulento desdobramento. Uma saia adornada profusamente com flores de seda e contas de jade contornava seus quadris plenos.
— Me fale da senhora Wentworth — pediu Pauline, alisando o cabelo escuro dele, com plena consciência de que todos que os rodeava notariam esse gesto de proprietária. — Como era ela?
Damon rebuscou, inutilmente, em seu vocabulário uma palavra adequada para descrever à mulher que tinha conhecido. Não achou nenhuma e elevou de ombros, impotente.
Os lábios do Pauline se franziram em uma careta petulante e sacudiu a cabeça fazendo balançar a pluma de cor esmeralda que levava sujeita entre seus cachos escuros.
— Bom, não me cabe dúvida de que ela deve ser como as outras atrizes, que sempre estão dispostas a levantar a saia ante qualquer homem.
Damon pensou com cinismo que o comportamento da Julia Wentworth não era diferente do de Pauline, com a diferença de que esta estava convencida de que sua ascendência a convertia em um ser superior.
— Não me deu a impressão de ser promíscua.
— Em toda Londres se diz que tem um romance com o Logan Scott. Basta vendo-os juntos para sabê-lo com certeza — afirmou ela, estremecendo-se um pouco para dar ênfase a seu comentário. — O ar entre eles arde, virtualmente! Estou segura de que esse é o efeito que causa o senhor Scott sobre qualquer mulher.
Damon não conhecia muito o mundinho do teatro embora, como todos, conhecia bem os êxitos do Logan Scott. Este promovia um estilo de atuação mais natural que o que se usou até esse momento. Seu Hamlet, potente e, ao mesmo tempo, vulnerável, era lenda; por outra parte, manifestava o mesmo talento em papéis cômicos, como no marido enganado. E embora Damon estivesse longe de ser um crítico qualificado, tinha reconhecido o extraordinário dom que tinha Scott, que permitia fazer participar ao público dos pensamentos e emoções de cada personagem.
Mais impressionante ainda era o fluxo de dinheiro que Scott tinha contribuído ao Capital, conver-tendo-o em digno rival do Drury Lane. Era bom diretor, tanto de pessoas como de ganhos. Sem dúvida, um homem de semelhantes habilidades devia ser cortejado pela creme da sociedade e, por certo, Scott tinha muitos amigos proeminentes e de nobre berço. Entretanto, nunca seria plenamente aceito por eles. Era um homem que se construiu a si mesmo; a nobreza suspeitava que ele aspirava a uma posição para a qual não estava destinado. Os homens e mulheres que abraçavam a profissão teatral existiam para entreter tanto às massas como à aristocracia, mas não pertenciam a nenhuma das duas classes a não ser, mas, a seu próprio mundo intermediário de arte e ilusões.
A imagem do belo rosto da Jessica Wentworth apareceu sem ser chamada na mente do Damon. O que seria dela quando já não pudesse ganhá-la vida sobre um cenário? Uma atriz não tinha muitas alternativas, salvo correr o risco de conver-ter-se na querida de um homem de fortuna ou, se tinha sorte, casar-se com um viúvo ancião ou um nobre pouco dotado... mas a senhora Wentworth já estava casada.
"O que é o que você trata de esquecer?"
"A um marido”.
Com que classe de homem se teria casado? Quem seria ele e por que...?
— Querido, no que está pensando? — perguntou-lhe Pauline, puxando-lhe a manga em atitude imperiosa. — Não estou acostumada a que a atenção de um homem discorra tão longe de mim quando eu estou perto.
Damon apartou seus pensamentos da Jessica Wentworth e olhou a Pauline.
— Então, me dê algo no que pensar — murmurou ele, e sorriu enquanto ela se inclinava para ele para derramar provocadores sussurros em seu ouvido.
Quando Julia chegou à escada de mármore pela qual subia aos quartos da planta alta, lhe tinha constrangido a garganta e as lágrimas lhe ardiam nos olhos. Deteve-se no primeiro patamar, aferrando-se aos corrimãos.
— Jessica — ouviu que a nomeava a voz inconfundível do Logan Scott, e seus passos aproximando-se dela pela escada. Esperou sem voltar-se, pois não queria que lhe visse o rosto. — O que passou? — perguntou-lhe, com certa irritação. — Por acaso, olhei em sua direção e te vi fugindo do salão como uma gata escaldada.
— Estou fatigada — conseguiu dizer ela, com muita dificuldade. — Esta noite já não posso voltar ali.
— Alguém há dito algo que te desassossegasse? — perguntou-lhe ele, agarrando-a do braço e obrigando-a a voltar-se de cara a ele. Conteve o fôlego ao ver que ela chorava. — Diga o que aconteceu — insistiu, com um chiado de fúria em seu olhar. — Se algum canalha se atreveu a te insultar, sentá-lo-ei de traseiro e o levarei a chutes daqui A...
— Não — murmurou Jessica, soltando-se de seu duro apertão. — Ninguém me há dito nada. Estou muito bem.
Logan ficou carrancudo enquanto ela enxugava com dissimulação as bochechas úmidas.
— Tome — disse ele, depois de uma rápida busca em sua jaqueta verde, lhe entregando um lenço de linho.
Julia aceitou o oferecimento e secou os olhos tratando de controlar suas emoções. Não sabia muito bem o que era o que sentia: medo, aborrecimento, tristeza, até alívio, talvez. Por fim, tinha conhecido a seu marido, falado com ele, tinha-o cuidadoso aos olhos. Savage dava a impressão de ser um homem frio, controlado, um homem com quem ela não queria ter nada que ver. E ele sentia o mesmo: não a queria, não lhe tinha escrito nem tentado achá-la, e ficaria muito tranquilo ignorando sua existência. Por absurdo que parecesse, sentia-se traída por ele.
— Possivelmente eu possa te ajudar de algum modo — ofereceu Logan.
Um sorriso amargo esticou os lábios da jovem.
— Até agora, nunca me tinha devotado ajuda. Por que agora?
— Porque nunca te tinha visto chorar.
— Viu-me chorar centenas de vezes.
— Nunca na vida real. Quero saber o que aconteceu esta noite.
— Está relacionado com meu passado — respondeu ela. — Isso é tudo o que posso te dizer.
— É certo isso? — disse ele e, quando sorriu, seus olhos azuis reluziram. — Nunca tive tempo nem paciência para resolver mistérios mas sinto curiosidade com respeito a ti, senhora Wentworth.
Julia assoou o nariz e espremeu o lenço no punho. Fazia dois anos que conhecia o Logan e jamais lhe tinha feito um comentário de índole tão pessoal. Interessava-se nela do mesmo modo que em todos outros atores da companhia: para extrair deles a melhor atuação que fosse possível. Julia se tinha acostumado a seu amistoso autoritarismo, a suas explosões de impaciência, ao modo em que, às vezes, trocava sua personalidade para obter o que queria. Mesmo assim, admitir que sentia curiosidade com respeito a ela... Não era próprio dele.
— Meus segredos não são muito interessantes — repôs ela, sujeitando a saia e reatando lentamente a ascensão da escada.
— Não sei se será certo — murmurou Logan, e ficou observando-a até que desapareceu de sua vista.
Para alívio da Julia, o dia seguinte não viu lorde Savage em nenhum momento. Os convidados à festa, que se estendia todo o fim de semana, estavam ocupados em diversas atividades ao ar livre. Era um belo dia, e o céu azul estava estriado de brancas nuvens semelhantes a encaixes. As senhoras caminhavam pelos cuidados jardins, provavam sorte com os arcos ou foram à passeio em luxuosas carruagens, a visitar os lugares interessantes da localidade. Os homens foram praticar tiro no bosque, pescavam em um arroio próximo ou se reuniam a beber e conversar.
Apesar de Julia estar melancólica e inquieta, fez todo o possível por sustentar animadas conversações com os outros convidados. Era fácil entreter lady Brandon e a suas amigas relatando anedotas relacionadas com o teatro. Às mulheres fascinavam os detalhes de um mundo tão alheio a elas como esse. O que mais garantia um grande interesse feminino era qualquer menção que fizesse do Logan Scott.
— O senhor Scott desempenha muito bem o papel de amante em cena — comentou uma das mulheres, em um lascivo ronrono. — Uma não pode menos que pensar que é igual de amoroso fora da cena. Poderia nos esclarecer esse ponto, senhora Wentworth?
A escandalosa pergunta arrancou exclamações de indignação, embora logo as mulheres do grupo se inclinaram um pouco para diante para escutar a resposta. Julia sorriu à formosa mulher de cabelos escuros a quem a anfitriã lhe tinha apresentado, antes, como lady Ashton.
— Tenho entendido que o senhor Scott é amoroso com uma grande quantidade de senhoras... Mas segue a política de não envolver-se jamais com uma atriz, por motivos que jamais explicou.
— Eu lhes vi a vós no Romeo e Julieta — exclamou outra das mulheres. — Dava a impressão de que entre vós houvesse um sentimento genuíno! Não era real, ao menos em parte?
— Em realidade, não — admitiu Julia, sincera. — Salvo em algum instante, de vez em quando, em momentos em que a atuação me parece tão real que chego a me acreditar o personagem que estou representando.
— E nesse instante, apaixona-se você do primeiro ator?
Julia pôs-se a rir.
— Só até que cai o pano de fundo.
Depois do chá, todos foram as suas habitações a trocar-se para a noite. A seu tempo, as mulheres apareceram com vestidos de finas sedas ou gazes com galões, os homens com resplandecentes camisas de linho, coletes estampados e estreitas calças presas com bandagens para mantê-los direitos. Julia pôs um vestido de seda de cor champanha, de profundo decote, adornado com diminutas pétalas planas. A separação entre seus peitos estava oculta, pela metade mas não de tudo, detrás de uma magra banda de encaixe de cor natural. As mangas curtas e abaloadas eram de gaze, bordadas do mesmo encaixe.
O jantar foi um desdobramento espetacular de diversas carnes assadas, pudins de formas caprichosas, gelatinas saborosas e um grande número de pratos preparados com verduras em molho. Um exército de criados se deslocava com movimentos dignos para servir aos duzentos convidados sentados às duas largas mesas situadas no centro do salão. Para o final do banquete, serviram cestas de merengue cheios de cremes, bolos e fontes carregadas de bagos e frutas.
Apesar de tentadoras que eram as coisas que tinha diante, Julia comeu pouco. Já sabia que, como estava acostumado a acontecer, foram pedir ao Logan que entretivesse aos convidados depois do jantar e que a ela lhe pediria que contribui-se. Nunca tinha sido capaz de atuar bem com o estômago cheio pois, nesse estado, sentia preguiça e sonolência. E essa noite, em especial, queria conservar a lucidez.
Julia entreviu a lorde Savage na mesa vizinha, conversando com duas mulheres que estavam a seu lado. Ao parecer, para ambas a companhia dele era fascinante. Levavam-se com frequência a mão à cabeça para arrumar seus cachos ou brincavam com suas jóias, como aves esvoaçantes que estivessem exibindo-se para conquistar a admiração dele. Julia se perguntou se todas as mulheres reagiam assim ante o Savage. Talvez fosse inevitável. Fosse qual fosse seu temperamento, não se podia negar que era rico e arrumado. Até mais; sua atitude reservada era das que faziam que qualquer mulher se esforçasse por atrair sua atenção. Para a Julia foi um alívio que não olhasse, sequer, em sua direção. Ao parecer, esqueceu-se dela, desviando seu interesse para outras mulheres mais acessíveis.
Quando teve concluído a comida, as damas se retiraram a tomar o chá e intercambiar falatórios; deixaram aos homens sós para que desfrutassem com uma seleção de charutos e taças de bom porto. Depois, voltaram a reunir-se no grande salão onde se dispuseram em grupos, cadeiras e sofás.
Julia entrou no salão do braço do Logan e não se surpreendeu quando lady Brandon se aproximou com expressão ansiosa em sua cara redonda. Não qualquer anfitriã teria a possibilidade de oferecer a seus convidados um entretenimento levado a cabo por personalidades como Logan.
— Senhor Scott — murmurou lady Brandon, avermelhadas suas grossas bochechas, — talvez queira nos fazer a honra de recitar algo ou de representar um fragmento de alguma obra.
Com um elegante gesto, Logan tomou a mão roliça da dama e inclinou a cabeça para ela. Ele tinha tal habilidade em seu trato com as mulheres, qualquer fosse sua idade, seu aspecto ou as circunstâncias, que as fazia desmaiar de prazer. Nesse momento, olhou aos olhos a lady Brandon durante um lapso tão prolongado que ela acreditou que se inundaria nas profundidades azuis de seu olhar.
— Será um grande prazer para mim, senhora... e constituirá uma pobre recompensa por tão magnífica hospitalidade. Prefere algo em particular?
— OH — exalou lady Brandon, sua mão tremeu de maneira evidente. Seus lábios rosados se estiraram em um sorriso incontido. — OH, algo que você escolhesse estaria bem, senhor Scott. Mas... seria muito agradável que fosse algo romântico!
— Algo romântico — repetiu Logan sorrindo-lhe como se ela fosse a mulher mais inteligente da terra. — Faremos o melhor que possamos, senhora — disse, jogando um olhar a Julia e arqueando suas sobrancelhas avermelhadas. — Tentamos com uma cena de minha nova obra, senhora Wentworth?
Julia respondeu que sim com um murmúrio acompanhado de um sorriso modesto, embora soubesse que ele já o tinha preparado. Uma ou duas vezes por temporada Logan apresentava uma obra escrita por ele, e sempre se tratava de uma sátira social, cheia de engenho e de encanto. Embora Logan não fosse um gênio, era um escritor inteligente e tinha um certeiro instinto com respeito ao que desejava o público. Sua mais recente criação, Senhor Engano, era a história de um nobre e uma mulher de bom berço que, através de uma série de circunstâncias improváveis embora divertidas, encontram-se cumprindo os papéis de seus próprios criados; ele, como lacaio, ela como donzela. Como é de esperar, conhecem-se e se apaixonam e com seus constantes esforços por sustentar seus respectivos enganos e, entretanto, seguir sendo sinceros um para o outro, provocam consequências bastante cômicas. A obra brincava gentilmente a custa da aristocracia, burlando-se de suas estreitas miras e de suas asfixiantes regras sociais.
Não se podia afirmar que fosse um tema original, embora Logan tivesse a habilidade de apresentá-lo sob uma forma fresca e entretida. A Julia gostava da história dessas duas pessoas que tiravam o chapéu mutuamente sem as restrições de sua vida habitual. Logan não tinha decidido ainda quem faria o papel feminino protagonista. Era óbvio que escolheria entre a Julia e Arlyss Barry, outra jovem atriz da companhia. Julia queria o papel para ela, mas sabia que isso dependia de se Logan preferia o estilo romântico da Julia ou o do Arlyss, mais francamente cômico. Possivelmente essa noite se tudo saísse bem e isso inclinasse a decisão dele em seu favor.
Uma vez que a concorrência se distribuiu pelo salão, deixando um espaço livre à frente, Logan se adiantou, apresentou-se a si mesmo e apresentou a Julia. Descreveu uma síntese da cena que estavam a ponto de representar para entreter aos convidados e anunciou que, se queriam ver a obra completa, seria exibida no teatro Capital, mais avançada a temporada.
Enquanto Logan falava, Julia repassava em sua cabeça as linhas do diálogo. Sentiu um estranho calafrio nervoso que lhe percorria as costas, e perdeu a concentração ao perceber a sombria presença de lorde Savage. Como se ali houvesse um ímã, seu olhar se dirigiu ao rincão onde ele estava sentado em companhia de lady Ashton.
Savage tinha um ar depravado e cômodo, com suas largas pernas estiradas ante si e, aparentemente, emprestando ouvidos ao falatório superficial de lady Ashton. Entretanto, seu olhar alerta estava cravado na Julia. Palpitou-lhe com força o coração ao compreender que ele, até sem querer, sentia-se tão fascinado por ela como ela por ele. Talvez, em certo modo, ele pudesse perceber o vínculo que tinha sido forjado entre eles desde que eram meninos, um vínculo que tinha trocado o curso da vida de ambos.
Julia jamais teria imaginado que, um dia, estaria atuando ante o olhar dele. Ela já tinha representado cenas similares com o Logan ou com os outros atores. Mas o fato de atuar ante um público tão reduzido conferia à situação uma qualidade mais íntima. Como estavam mais perto, não precisavam levantar muito a voz, e ela podia empregar uma variedade mais sutil e fina de gestos e expressões faciais. Pelo geral, desfrutava em situações similares... Mas esta vez, não. Teve a sensação de que lhe tinham apagado, por completo, até o último vestígio de habilidade, até a última palavra de sua memória.
Logan fez a Julia um gesto para que se aproximasse na frente do salão. Ela tratou de lhe obedecer, mas, pela primeira vez em sua vida, paralisou-se. A única sensação que tinha em seus pés era um comichão gelado à altura dos tornozelos e um tamborilar de pânico em seu peito. Não podia fazê-lo, não podia representar a cena. Cravou os olhos no Logan e viu que seu semblante se modificava e que começava a falar como um homem apaixonado. Sentiu que ela mesma se deslizava sem esforço para seu papel, quase sem pensá-lo. Concentrou-se como não o tinha feito nunca em sua vida. Percebeu, vagamente, a vibração excitada que reinava no salão, mas estava muito abstraída para afundar nisso.
À medida que os personagens descobriam seu mútuo engano, foram passando por uma vertiginosa cadeia de reações: descrença, indignação, defesa, alívio e paixão desenfreada. Os gracejos do Logan provocavam ataques de risada ao reduzido público, e a doce, romântica e ofegante atuação da Julia equilibrava a cena, lhe dando uma ternura assombrosamente profunda.
Damon contemplava a cena sem piscar, quase sem respirar. Parecia que cada palavra era espontânea, como se os atores estivessem vivendo a cena em lugar de representar uma obra que teria sido ensaiada muitas vezes. Eles davam à arte de atuar a aparência de algo que não custasse esforço algum. Era evidente que Jessica Wentworth era uma atriz de extraordinário talento.
— Meu deus, os dois são esplêndidos— murmurou Pauline, que jamais elogiava a ninguém a menos que pudesse incluir-se a si mesma no elogio.
Damon não respondeu. Em que pese a sua admiração, enquanto olhava aos dois atores o alagou uma desagradável sensação. Seria verdadeira a corrente subterrânea de emoção que parecia fluir entre eles? Como era possível que tão apaixonada intensidade fosse só uma ilusão? Perguntou-se se, alguma vez, Logan Scott tinha tido em seus braços a Jessica e a tinha beijado de verdade, se alguma vez tinha esmagado seu corpo delicioso debaixo do próprio. Não lhe cabia dúvida de que, para qualquer homem normal, ela teria constituído uma tremenda tentação. Damon imaginou como seria Jessica Wentworth presa de sua paixão, trêmula e entregue a seu amante.
Sentiu que lhe corria o suor sob sua gravata engomada. Damon aspirou uma profunda baforada de ar, e acreditou que seus pulmões estavam a ponto de estalar. Embora fosse uma loucura, quis precipitar-se para frente do salão e arrancar a ela do lado do Logan Scott. Deixava-o atônito a penetrante consciência que tinha da presença dela, o anseio enlouquecedor de tocá-la, cheirá-la e saboreá-la. Sempre tinha sido um indivíduo capaz de controlar a si mesmo e a suas circunstâncias; esforçou-se por sê-lo desde que tinha memória. Não tinha permitido que ninguém adquirisse poder sobre ele... Desde muito tempo atrás, quando tinha compreendido que tinham sacrificado seu futuro em altares do bem-estar de sua família. Nunca tinha desejado a ninguém com desejo tão irracional, com esse sentimento que se apoderava de seu corpo e de sua alma e que não lhe deixava outra alternativa que obedecer a ele.
A cena concluiu quando Logan Scott se inclinou sobre a Jessica e lhe deu um beijo apaixonado. Damon apertou os punhos e sentiu que os ciúmes o enchiam de uma onda de veneno. Soaram os aplausos no salão, e os convidados lançaram exclamações de deleite. Logan Scott sorriu amplamente e rechaçou os rogos que pediam outra cena, um monólogo, qualquer outra coisa para entretê-los. Imediatamente, ele e Jessica Wentworth ficaram rodeados de admiradores.
— Um formoso casal — comentou Pauline, movendo um leque de seda e encaixe para refrescar-lhe o rosto e o pescoço. — Esta tarde, a senhora Wentworth afirmou que a relação entre eles é estritamente profissional... Mas só um idiota acreditaria semelhante coisa.
Antes que Damon pudesse replicar, seu irmão menor, William, aproximou-se deles e fez uma reverência sobre a mão que Pauline lhe estendia graciosamente.
— Esta noite está arrebatadora, lady Ashton... Como sempre.
Pauline lhe dedicou um sorriso coquete.
— Que encantado é, lorde William.
William se voltou para o Damon, com os olhos azuis acesos de entusiasmo.
— Que boa cena, não crê? Jamais imaginei que pudesse existir uma Logan Scott feminina e te haja aqui que a senhora Wentworth é tão magnífica como ele. Quero conhecê-la, Damon.
— É uma mulher casada — repôs Damon, sem rodeios.
— Que mais dá.
Tanta paixão juvenil fez rir Pauline.
— Como é tão arrumado e de nobre berço, não acredito que te resulte difícil, meu querido moço. Depois de tudo, ela é atriz. Só te advirto que tenha em conta que possivelmente ela te exija uma fortuna em jóias em troca de seus favores.
— Teria que ser, de verdade, uma fortuna para exceder seu preço, querida — disse Damon sem elevar sua voz. Pauline o olhou com sua testa crispada em um altivo cenho, enquanto William sufocava uma gargalhada impudica. — Desculpem — disse Damon, ficando de pé; — quero falar umas palavras com o senhor Scott.
— Para que? — perguntou Pauline imediatamente.
Mas não lhe fez caso e se dirigiu para onde estava Logan Scott, cuja cabeça de matizes avermelhadas se sobressaía por cima do coro que o rodeava. Damon experimentou uma impaciência, como não tivesse conhecido. Quis fazer desaparecer a todos os presentes no salão, com exceção da Jessica Wentworth.
Por mais que Scott estivesse atendendo a outra gente, não pôde deixar de notar sua presença junto a ele. Seus olhos azuis encontraram o olhar do Damon e, embora não tivessem sido apresentados, houve entre eles uma corrente de reconhecimento. As engenhou, com habilidade, para desembaraçar-se das duas ou três conversações simultâneas que estava desenvolvendo e se aproximou do Damon. Embora não era tão alto como Damon, seus ombros eram largos e seu corpo maciço. Scott tinha o aspecto do homem próspero, de cultura superior, e sua presença de indivíduo acomodado desmentia que fosse filho de um tosco peixeiro do leste de Londres.
— Lorde Savage — disse Scott, passando sua taça de vinho da mão direita à esquerda para poder estreitar a mão do outro em um firme apertão. — Lamento que não tenhamos tido a oportunidade de nos conhecer antes.
— Senhor Scott - disse Damon, retribuindo o apertão. — Faz muito tempo que admiro seu talento.
— Obrigado, milord — respondeu, e suas expressivas facções adotaram um ar de moderada interrogação. — Espero que tenha desfrutado da cena desta noite. É uma pequena amostra das muitas produções valiosas que nesta temporada serão exibidas no Capital.
— Assim foi. Mais até: desfrutei-a tanto que me vi impulsionado a fazer uma contribuição ao teatro.
— Ah — exclamou o ator; um relâmpago de satisfação apareceu nos olhos azuis do Scott e bebeu um pequeno gole de vinho. — Será devidamente apreciada, milord.
— Espero que cinco mil libras lhe resultem úteis.
Para ouvir a quantidade, Scott esteve a ponto de engasgar-se com o vinho. Recuperou rapidamente a compostura, e olhou ao Damon com franca surpresa.
— Não duvido de que você deve ser consciente que sua doação é de uma generosidade pouco comum, lorde Savage. Você receba minha mais profunda gratidão, assim como a do resto dos atores do Capital — fez uma pausa, suspeito que você quer algo em troca de uma soma tão elevada.
— Só um pequeno pedido.
— Isso pensei - repôs Scott, elevando as sobrancelhas a modo de interrogação.
— Eu gostaria que a senhora Wentworth jantasse uma noite comigo em minha propriedade.
O pedido deixou imperturbável ao Scott. Era indubitável que muitos homens tinham manifestado já o mesmo interesse pela Jessica Wentworth.
— E se ela se negasse?
— O dinheiro seguirá sendo seu.
— Alivia-me sabê-lo, lorde Savage, posto que a senhora Wentworth não é dessas mulheres a quem se possa comprar nem tampouco cortejar facilmente. Poderia lhe falar de um grande número de cavalheiros que fracassaram ante ela. Ao parecer, não lhe importam a riqueza nem a posição social e, que eu saiba, não deseja o amparo de um homem. Para ser francos, apostaria a que ela não aceitará nenhuma classe de convite que você lhe faça.
— Talvez você possa exercer alguma influência sobre ela — sugeriu Damon em voz baixa. — Confio em que a empregará você, em meu proveito.
Os olhares de ambos se encontraram, os olhos azuis sondaram os de cor cinza aço. Damon não pôde discernir se ao Scott o impulsionava um sentimento paternal com respeito à Jessica Wentworth ou se tinha cruzado a soleira do verdadeiro ciúme. Scott falou em tom inexpressivo.
— Não estou disposto a ser responsável por obrigar à senhora Wentworth a aceitar uma situação que pudesse ser comprometedora ou difícil para ela...
— Só quero passar umas horas com ela — disse Damon, sem alterar. — Lhe dou minha palavra de que não será ofendida em modo algum. Eu gostaria que você a convencesse de que aceitasse meu convite. De todos os modos, embora não a aceite, minha doação ao Capital será entregue tal como prometi.
Scott vacilou um bom momento e logo bebeu um gole de vinho. Como era um homem de mundo, compreendia que era inevitável fazer alguma concessão... que era necessário, apesar das afirmações do Damon em contrário. E não se podia afirmar que era muito pedir um jantar em troca de cinco mil libras.
— Muito bem. Conversarei com ela a respeito disto.
— Obrigado.
O rosto do Damon se manteve inescrutável, embora ele sentisse que podia exalar uma baforada completa de ar pela primeira vez desde que Jessica Wentworth o tinha apanhado em seu feitiço. Devia fazê-lo... Scott devia convencer a de que se encontrasse e passasse umas horas a sós com ele.
Quando se separou do Logan Scott, Damon espionou a Jessica, que estava a uns metros dele, com um grupo de admiradores. Tinha parecido no seu olhar acusador, como se já soubesse o que ele tinha feito.
— Que lhe há dito? — perguntou Pauline, assim que ele retornou junto a ela e ao William.
Era evidente que não lhe tinha gostado de ficar abandonada, até uns poucos minutos.
Damon se encolheu de ombros e a olhou sem alterar-se.
— Decidi patrocinar ao Capital.
— Sim? — exclamou ela, olhando-o com ar cético.
— Alguma vez assistiu ao teatro a menos que lhe tenham dado um golpe na cabeça e arrastado até ali — comentou William. — A que se deve esse súbito interesse no Capital?
Sim, a que? Perguntou Pauline, com a boca tensa pela suspeita.
— Quero alargar meus interesses — respondeu Damon, com uma impressão em seus olhos que advertiu a ambos sobre a inconveniência de seguir interrogando-o.
— Que te há dito ele? Perguntou Julia, assim que pôde separar-se dos outros convidados e levar ao Logan Scott à parte para falar com ele em privado.
Os olhos do Logan eram dois lagos azuis de inocência.
— Quem?
— Lorde Savage respondeu ela, entre dentes. O que ele falou? Vi a expressão de sua cara: é a mesma que tem cada vez que alguém te oferece dinheiro.
— Bom, acertaste — disse ele, sorrindo e abrindo as mãos em um gesto encantador. — Vai fazer uma esplêndida doação ao Capital. Um tipo muito generoso. Agradável, cavalheiresco...
— Deixa de elogiá-lo e me diga o que pretende a troco!
— Já falaremos mais tarde.
Julia, presa de uma irritação que ia aumentando, agarrou a manga dele e afundou seus dedos no fino tecido bege de sua jaqueta.
— Falou de mim?
— Por quê o pergunta? — quis saber Logan, lhe sondando o olhar.— De fato, sim o fez. O que acontece entre vós?
— Nada — respondeu ela, imediatamente. — E nada passará. Eu não tenho o menor interesse por ele.
— É uma pena, porque eu tenho feito uma espécie de promessa.
— Você não tem direito de fazer nenhuma promessa que me implique! — disse ela com veemência.
— Tranquila — murmurou Logan, consciente das pessoas que tinham perto. — Ninguém vai obrigar-te a fazer nada. Falaremos depois, quando tiver controlado suas emoções.
Julia se esforçou por acalmar-se e soltou a manga da jaqueta do Logan.
— Se não me disser isso agora, voltar-me-ei louca.
— Savage quer jantar contigo uma noite destas.
— Antes que te negue me permita te recordar alguns feitos. Eu te dou o pagamento mais alto da companhia, além do meu. Não regulo gastos quando mando a fazer seus trajes com as melhores sedas e os melhores veludos, e quando devo comprar jóias verdadeiras para que você use. Rodeei-te que os melhores elencos que estiveram jamais sobre um cenário e selecionado obra para que seu talento se luza mais. Não me parece que um jantar platônico com lorde Savage represente um sacrifício muito grande para ti, em troca das cinco mil libras que ele doará ao teatro.
— Jantar platônico? — ironizou ela. — Senhor Scott, se for conver-ter-se em um fanfarrão, bem poderia dizê-lo com franqueza. Eu não sou nenhuma ingênua.
— Não; só é uma ingrata — replicou ele, imediatamente.
— Trabalhei duramente para ti durante os dois últimos anos... e isso é tudo o que exige meu contrato.
— Qualquer outra atriz da companhia aceitaria com agrado o convite do Savage.
— Se for assim, envia a uma delas em lugar de mim. As envie a todas!
— Maldita seja — disse Logan em voz firme. — Rechaça ao Savage, se deve fazê-lo. Mas terá que pagar um preço por isso. Esta noite, demonstraste que merece o papel de protagonista em Senhora Engano.., mas não obterá esse nem nenhum outro papel que deseje durante esta temporada a menos que aceite o convite de lorde Savage. E antes que clame que sou injusto, recorda que, sem a aprendizagem que eu te brindei, sem minha especial atenção a sua carreira, o mais provável é que estivesse em turnê pelas províncias com um grupo de atores itinerantes.
Julia lhe disparou um olhar de fúria impotente e se afastou dele roçando aos cavalheiros que estavam tratando de lhes ser apresentados.
Quando chegou ante a porta fechada de um dos dormitórios do segundo andar, Julia levantou a mão para golpear, mas vacilou e a deixou cair a um flanco. Era tarde, todos se tinham retirado a suas habitações, a dormir. Depois dessa porta e detrás muitas outras, ouviam-se ruídos de gavetas e armários que se abriam e se fechavam, assim como murmúrios de quão criados ajudavam aos convidados a despir-se e colocar sua roupa de dormir.
Julia tinha subornado a um criado para que lhe dissesse em que habitação se alojava o marquês do Savage e se aproximou dela com uma mescla de medo e decisão. Nunca, até então, tinha estado no quarto de um homem, mas pensava que esta era a única maneira em que poderia falar com o Savage a sós. Tinha que enfrentá-lo, deixar em claro que, quaisquer fossem as intenções dele, não obteria nada dela. Possivelmente, então, ele retirasse seu convite.
Estava muito nervosa, atendida pelo mesmo pânico que tinha sentido horas antes. Fez uma inspiração profunda para serenar-se e se obrigou a bater na porta. Seus nódulos trementes com muita dificuldade roçaram a porta, mas, por mais que o som tivesse sido leve, foi ouvido. Julia empalideceu para ouvir a amortecida pergunta de dentro.
Segundos depois, o atirador girou e ela se encontrou com os sombrios olhos cinzas de lorde Savage.
Julia tratou de falar, mas sua garganta estava fechada, só atinou a permanecer ali em silêncio. Seu coração pulsava de maneira frenética e enchia seus ouvidos o ruído desse veloz tamborilar. Ela tinha visto os atores do Capital em distintos graus de nudez, quando a necessidade de rápidas mudanças de vestuário fazia impossível a intimidade... Mas isso era por completo diferente a enfrentar-se com um lorde Savage vestido só por uma bata de seda bordou. No âmbito mais reduzido da suíte ele parecia muito maior que no vasto salão de baile da planta baixa, com seus largos ombros abatendo-se sobre ela, seu dourado pescoço nu à altura de seus olhos.
Savage inclinou uns centímetros a cabeça sem apartar a vista do rosto dela. Julia notou que o tinha surpreso com sua aparição ali, a essa hora. Bom, ela queria que ele a visse audaz e confiada.
— Posso entrar? — perguntou, em voz milagrosamente firme.
Em lugar de responder, ele abriu a porta e lhe fez gesto de que entrasse. Julia o fez, e logo se deteve o ver um valete que recolhia lençóis em um canto.
— Isso é tudo — murmurou Savage ao criado, que assentiu e partiu imediatamente, fechando a porta sem ruído ao sair.
Estavam sozinhos, em um quarto cheio de detalhes de brocado amarelo, móveis de mogno e pinturas que representavam harmoniosas cenas pastorais... sós e frente a frente, depois de tantos anos. Era impossível que Savage soubesse quem era ela, mas mesmo assim se sentia exposta e em perigo, como se seu único amparo fossem seus segredos.
Savage seguiu olhando-a fixamente até que Julia começou a pensar que talvez houvesse algo desconjurado em seu aspecto. Incômoda, alisou o cabelo e logo apartou sua mão com brutalidade. Não teria importância que cada mecha de seus cabelos estivesse rígida: a tinha sem cuidado o que ele opinasse.
Savage reparou em sua escassez de roupa e ajustou o cinturão de sua bata de seda.
— Eu não tinha pensado receber visitas — disse ele.
Ela cruzou os braços em uma atitude que era tão aguerrida como protetora de si mesma.
— Não ficarei muito tempo.
Ele voltou a olhá-la com atenção. Sentia-se tão incômodo como ela com o silêncio que se fez entre os dois... mas, por outra parte, ele se sentia incapaz de rompê-lo. Julia tentou, em vão, ler seus pensamentos, mas ele não revelava nada. Que classe de homem era? Pelo geral, ela não tinha dificuldades quando se tratava de discernir a personalidade de alguém, de perceber se se tratava de uma pessoa intrinsecamente bondosa, egoísta, tímida ou honrada. Savage, em troca, não mostrava nada de si mesmo.
Seu rosto era belo e austero, com seu largo nariz, os nítidos ângulos de suas bochechas e o contorno agressivo de sua mandíbula. A larga curva de sua boca e os olhos cinza de largas pestanas lhe conferiam um surpreendente matiz de suavidade. Para muitas mulheres, devia ser uma tentação irresistível fazer sorrir ao Savage, lhe arrancar um olhar de desejo, despertar qualquer classe de emoção nessas facções enigmáticas. Ela mesma se surpreendeu tratando de imaginar como seria conquistar sua confiança, ter sua escura cabeça apoiada sobre o regaço, acariciar seus grossos cabelos...
— Por que está aqui, senhora Wentworth? Perguntou ele.
Julia percebeu que ficava carrancuda e respondeu em tom crispado:
— Penso que você já sabe milord.
— Scott falou com você.
— Sim, falou-me. E eu vim a retificar a impressão de você. Ao parecer, você pensa que, com dinheiro, pode comprar algo.
— A maior parte das vezes é assim.
— Bom, mas a mim não pode comprar.
Já a tinham vendido uma vez em sua vida, em troca de um título de nobreza que ela não tinha pedido nem queria. Nunca mais voltaria a acontecer.
— Acredito que houve um mal-entendido — disse ele, sem alterar-se. — Se puser você objeções à possibilidade de jantar comigo, tem plena liberdade para negar-se.
— Você o tem feito impossível. Se não aceitar, perderei todos os papéis desta temporada no Capital. Se aceitar, terei esses papéis!
A expressão dele manifestou perturbação, suas sobrancelhas escuras se uniram em um cenho.
— Quer que eu fale com o senhor Scott?
Não! Isso não faria mais que piorar a situação. Savage se encolheu de ombros e lhe respondeu de um modo realista que enfureceu a Julia.
— Nesse caso, acredito que não terá mais remédio que suportá-lo o melhor possível.
— E o que me diz da mulher que estava sentada com você, no rincão, ontem à noite? — perguntou ela. — Lady Ashton, se não me equivocar. Dá a impressão de estar muito afeiçoada com você.
— Lady Ashton não tem nenhum direito sobre mim. Entre ela e eu não há mais que um acordo.
— Muito sofisticado de sua parte — replicou ela com ironia. — Permita que lhe faça uma pergunta, lorde Savage. Se fosse você um homem casado, seguiria desejando jantar a sós comigo?
— Posto que seja solteiro — respondeu ele com calma, — a pergunta carece de importância.
"Solteiro!" Julia se encheu de indignação ao compreender que ele tinha decidido ignorá-la, fazer de conta que ela tinha desaparecido da face da terra. Em um esforço por ser sincera consigo mesma, ela tinha feito algo semelhante... mas as situações de um e outro eram muito diferentes. Depois de tudo, ela tinha passado os últimos anos lutando por construir uma vida nova para si, enquanto que ele tinha desfrutado em seu papel de senhor da herdade com o dote dela!
— Não incomoda a você, absolutamente, que eu tenha marido? — perguntou ela. — Que pertença a outro?
Ele titubeou comprido momento.
— Não.
Julia moveu lentamente a cabeça e lhe dirigiu um olhar desdenhoso.
— Já sei o que pensa você de mim, milord, todos os homens de sua posição pensam coisas semelhantes a respeito das atrizes. Mas posso lhe assegurar que eu não sou uma prostituta e, por certo, não pode me ter pelo preço de um jantar e umas poucas promessas...
— Não é isso o que eu penso — repôs Savage, avançando para ela ao ponto que ela pôde sentir a tibieza de seu fôlego sobre a pele, coisa que a enervou. Ela percebeu a força latente do corpo dele, uma força que a intimidava embora, quando falou, sua voz era amável. — Não vou aproveitar-me de você, senhora Wentworth. Quão único quero é passar uma noite com você. Se não desfrutar você em minha companhia, pode partir em qualquer momento que o deseje, mas não quererá fazê-lo.
A arrogância dele provocou nela uma risada insegura.
— Está você muito seguro de si mesmo, não é assim?
— Esperá-la-ei no Capital na sexta-feira depois da apresentação.
Julia apertou a boca enquanto o avaliava em silêncio. Savage era um indivíduo perspicaz. Se tentava forçá-la, diretamente, ela resistiria até seu último fôlego. Ele se tinha precavido disso e lhe tinha cedido a possibilidade de rechaçá-lo, se queria.
Savage esperou sua resposta com o ar espectador de um felino que estivesse espreitando a um animal pequeno com o que se havia encaprichado. Ela não soube bem por que a paciência dele a comoveu. Em um instante de intuição, Julia pensou que, talvez, ele temesse e desejasse, para seus adentros, as mesmas coisas que ela. Ele tinha sofrido a influência dos mesmos manejos que ela e, talvez, também se rebelasse contra eles a seu modo.
Como podia não sentir curiosidade com respeito a ele? Como teria podido qualquer resistir a oportunidade de saber mais sobre o desconhecido com quem estava casada? Além disso, ele não tinha idéia de quem era ela. Por que não passar umas horas com ele? Que mal poderia haver nisso? Quase todas as noites, depois da apresentação, ela ia diretamente a sua pequena casa da rua Somerset e lia um livro ou permanecia pensativa contemplando o fogo. Esta mudança seria interessante, por dizer o menos. Pelo resto, não era necessário que lhe dissesse que ela era Julia Hargate.
O irônico da situação lhe provocou desejos de sorrir. Que boa brincadeira seria, embora só ela pudesse apreciá-la. Se seu pai soubesse que, depois de tantos anos de rebelião, ela ia jantar com seu marido. Dar-lhe-ia apoplexia!
— Está bem — disse, e se surpreendeu a si mesmo de seu tom prático. — O verei na sexta-feira.
— Grato senhora Wentworth — disse Savage, com uma faísca de satisfação em seus olhos cinzas. — Lhe asseguro que não o lamentará.
— Parece que ele é um cavalheiro elegante — disse Arlyss, acomodando suas curtas pernas debaixo do corpo ao sentar-se na gasta cadeira da sala de espera.
— Não — repôs Julia, pensativa. — Esse término dá idéia de um caráter despreocupado. Coisa que não distingue ao Savage. Sua atitude tem algo de sobremaneira controlado e intenso de uma vez.
— Fascinante.
As duas mulheres bebiam de suas xícaras de chá e conversavam de maneira relaxada enquanto esperavam a que as chamassem para o ensaio. Logan Scott, Charles Haversley, um arrumado ator loiro de pouco mais de vinte anos, e outros dois atores ocupavam o cenário nesse momento, tratando de superar um complicado bloqueio. Estavam ensaiando A fera domada, produção que Julia desfrutava especialmente porque era sua primeira oportunidade para desempenhar o papel do Katherine. A Arlyss tinham atribuído o papel da Bianca, a irmã menor.
Embora frequentemente Arlyss e Julia competissem pelos mesmos papéis, fizeram-se amigas nos últimos dois anos. Cada uma delas tinha chegado a reconhecer que a outra possuía um talento diferente do de si mesma. Havia papéis mais aptos para o talento cômico do Arlyss enquanto que, outros, requeriam a maior variabilidade que possuía Julia. Entre ensaios e funções, tinham falado a respeito de sua vida pessoal, de seus temores e ambições, embora Julia sempre cuidasse de não revelar muito seu passado.
Por que essas coisas alguma vez me acontecem? — queixava-se Arlyss, revolvendo o açúcar que tinha agregado ao chá. Era uma gulosa incorrigível e lutava todo o tempo para manter seu corpo baixo e bem formado sem gordura excessiva. — Adoraria que me pretendesse um atrativo marquês que, além disso, fosse tão rico como Creso. Em troca, quão único consigo são homens velhos e gordos que só querem uma rápida queda na cama e, depois, me assinalar quando estou no cenário e fanfarronar ante seus amigos.
Julia a olhou com simpatia.
— Você permite que os homens se aproveitem de ti, Arlyss e não é necessário. É bela, tem talento é uma das atrizes populares do cenário londrino! Não tem por que dar seus favores com tanta facilidade.
— Sei — respondeu Arlyss com um suspiro triste e brincando com sua massa de cachos castanhos. Tirou algumas fivelas de seu desordenado penteado e as voltou a colocar sem prestar muita atenção ao que fazia. — No que aos homens concerne, não posso evitá-lo. Eu não sou como você, Julia! Essa vontade de ferro não é natural em uma mulher. Acaso alguma vez se sente sozinha? Não tem saudades às vezes a companhia de um homem em sua cama, embora só seja para que te recorde que é mulher?
— Às vezes admitiu Julia. Fixou seu olhar em sua xícara de chá, contemplando suas ambarinas profundidades. — Embora, pelo geral, consigo reservar esses sentimentos para empregá-los no cenário.
— Possivelmente eu deveria tentar algo similar — disse Arlyss. — Depois de tudo, os homens com quem me relaciono não são outra coisa que substitutos do que realmente quereria.
Julia a olhou com uma mescla de compaixão e humor, pois sabia bem a quem se referia Arlyss.
— Já conhece a regra que se fixou o senhor Scott com respeito às atrizes. Por outra parte, não entendo seu amor por ele.
— É mais que um amor! É um amor inextinguível. Custa-me entender que haja mulheres que não sintam o mesmo por ele!
— O senhor Scott dista de ser um homem perfeito — disse Julia com amargura. — Por Deus, mas se já te contei que maneira me obrigou para jantar com lorde Savage! Talvez Scott dê a impressão de ser um homem de sólidos princípios, mas, no fundo, não é mais que um ambicioso.
Arlyss desprezou o comentário com um gesto.
— Todos os homens têm defeitos. Além disso, ele tinha razão: cinco mil libras não é algo que se possa desdenhar — disse, e mordiscou, com ar pensativo, uma fatia de bolo seco, baixando-a com mais chá. — Ouvi dizer que, neste preciso momento, há uma mulher vivendo na casa do senhor Scott: sua última querida. Não lhe durará mais de seis meses... nunca lhe duram mais.
O senhor Scott é tão contrário ao matrimônio! Deve lhe haver acontecido algo no passado... algo sombrio e doloroso...
Ante a expressão sonhadora de sua amiga, Julia soprou pelo nariz.
— Vamos, Arlyss, aferra-te muito às ilusões românticas. Eu acreditava que a vida no teatro te teria curado disso.
— Não, ao contrário, piorou-o! Se todo o tempo tecer ilusões românticas para outras pessoas não pode impedir que lhe apanhem.
— A mim não.
— Você é feita de ferro — disse Arlyss. — E não sei se te invejar ou te compadecer — comentou. Inclinou-se para diante e seus olhos verdes se iluminaram de interesse. — Diga, como vais vestir-te quando jantar com sua senhoria?
— Com algo singelo e favorecedor.
— Não, não, não... ponha algo que lhe faça saltar os olhos de suas órbitas! Algo que lhe faça secar a boca, dar voltas a cabeça, palpitar seu coração...
— Como se ele sofresse uma horrível enfermidade - disse Julia, rindo.
— Tem que te pôr o vestido negro e rosado — disse Arlyss. — Não vou permitir-te que leve outra coisa.
— Pensá-lo-ei.
Julia levantou a vista, pois um dos empregados da casa apareceu na sala de espera e lhes informou que o senhor Scott as chamava em cena.
Depois de dias de ensaios, a apresentação da sexta-feira da Megera domada foi soberba. Julia, tal como lhe tinha indicado Logan, pôs todas suas energias na ressonante produção. Em adaptações anteriores, tinham apresentado a história diluída, transformando-a em uma espécie de comédia ligeira, despojando-a de boa parte de seu audaz humor. Logan Scott lhe havia devolvido tudo isso, além de acentuar o aspecto físico que assombrou e encantou ao público. Resultou uma obra viçosa e vigorosa ante a qual, muitos críticos lançaram clamores de desgosto e, outros, de deleite.
Logan fazia o papel do distinto Petruchio, junto à endiabrada Katherine da Julia, e os dois faziam uivar de risada ao público com suas vulcânicas batalhas e o reduziam a um enfeitiçado silêncio nas partes mais ternas e tranquilas. Infelizmente, ao final da apresentação Julia se sentia golpeada e dolorida. A obra exigia muita entrega física, por exemplo, na parte em que Katherine tratava de atacar ao Petruchio e este a sacudia de cima como se fosse uma boneca de trapo. Por mais cuidadoso que fosse Logan, a Julia não era difícil encontrar algumas machucados em seus braços e em seu torso.
Sem fazer caso das repetidas reclamações a sua atenção, Julia se encerrou com chave em seu camarim, limpou a cara de suor e maquiagem e se deu um consciencioso banho de esponja, empregando duas jarras de água. Colocou perfume no pescoço, no interior dos cotovelos, entre os peitos e se concentrou no vestido que tinha levado com ela. Fazia caso da insistência do Arlyss e decidido colocar seu vestido de noite preferido. Estava confeccionado em seda negra italiana, de tensa superfície sulcada por finos cordões. Uma rosa de intensa cor rosada adornava cada uma das mangas curtas e rodeadas. O único adorno era umas aberturas verticais de cor rosada na prega, que se abriam e fechavam formando ondas, segundo o ritmo de seu andar.
Julia se vestiu com esmero e, deixando sem fechar os ganchos das costas, olhou-se no espelho. Um suave sorriso apareceu em sua cara. Fosse o que fosse o que sentia por dentro, tranquilizava-a comprovar que estava esplêndida. A seda negra produzia um contraste dramático com sua pele branca e seu cabelo loiro cinza; os adornos rosados destacavam a cor de suas bochechas.
— Senhora Wentworth — se ouviu a voz de uma donzela através da porta. — Posso entrar e me ocupar de suas coisas?
Julia abriu e deixou passar à moça roliça de cabelos negros. Betsy era uma criada eficiente, que se ocupava de seus trajes, mantinha a ordem no camarim e a ajudava em uma multidão de outras pequenas questões práticas.
— Grampeia-me o vestido, por favor?
— Sim, senhora Wentworth. Trouxe mais flores.
— Pode ficar com elas, se quiser — disse Julia, indiferente.
O camarim já estava repleto de acertos florais e seu denso perfume enchia o ar.
OH, mas estas são tão belas! Jogue-lhe uma olhada, nada mais — disse Betsy, aproximando o imponente ramo.
Julia lançou uma exclamação de prazer ao ver a profusão de viçosas rosas, do rosado mais suave até o rico encarnado, mescladas com exóticas orquídeas e altas espadas em púrpura e branco.
— Quem as enviou? — perguntou.
Betsy leu o cartão:
— Diz "Savage".
De modo que as tinha enviado lorde Savage. Julia tirou uma das rosas rosadas do ramo. Brincou com suas pétalas e levou a rosa até sua penteadeira. Enquanto Betsy lhe grampeava o vestido, Julia formou um coque com seu cabelo e o sujeitou no alto de sua cabeça, deixando que alguns cachos pendurassem sobre sua têmpora e seu pescoço. Depois de um instante de vacilação, Julia quebrou o caule da flor, envolveu a ponta em uma parte de papel e a sujeitou no coque com um comprido alfinete.
— Está preciosa — assegurou Betsy, rompendo o caule de outra rosa e sujeitando-a a pequena bolsa de mão da Julia, que era de seda negra. — Deve de ser um homem muito especial se você tomar tanto trabalho, senhora Wentworth.
Julia tomou um par de suaves luvas negras que lhe cobriam os cotovelos.
— Poder-se-ia dizer que estive esperando-o toda minha vida.
— Que estupendo... — começou a dizer Betsy, mas se interrompeu ao ver as marcas escuras nos antebraços da Julia e no ombro nu; sua cara redonda se crispou. — Meu Deus, isso está muito feio.
Julia contemplou seus braços com expressão compungida.
— Temo que não possa evitar. Tenho sorte não ter mais, depois das resistências que temos no cenário o senhor Scott e eu.
Betsy se apoderou de uma pastilha de maquiagem facial de cor carne, umedeceu com água as gemas dos dedos, esfregou com eles a superfície e logo pulverizou a cor sobre as manchas. Julia ficou quieta, observando o trabalho da donzela com sorriso agradado.
— Assim, com muita dificuldade se notarão. Obrigado, Betsy.
— Necessitará algo mais antes que guarde os vestidos?
— Sim... poderia ir ver se há um carro me esperando lá fora?
Logo retornou Betsy para lhe informar que, em efeito, havia um veículo na parte de trás do teatro, uma elegante carruagem negra com adornos chapeados, um par de cavaleiros acompanhantes, e dois choferes embainhados em librés vermelho escuro.
Julia sentiu que se acelerava o ritmo de seu coração até lhe doer. Apoiou uma mão em seu peito como se assim pudesse acalmar os violentos batimentos do coração e respirou fundo.
— Senhora Wentworth? Neste momento, de repente, parece doente.
Julia não respondeu. O que poderia haver levado a passar umas horas a sós com lorde Savage? O que poderiam dizer-se um ao outro... que louco impulso a tinha levado a fazer isso? Fez provisão de valor e afrouxou os ombros que pareciam haver-se subido até suas orelhas.
— Betsy a ajudou a vestir um casaco de seda negra com capuz sobre a cabeça e os ombros. Deu boa-noite a sua donzela com um murmúrio, saiu de seu quarto de vestir e caminhou pelo labirinto das salas do teatro.
Quando saiu pela porta de trás, um reduzido grupo de espectadores avançou ao encontro dela e, inclusive, alguns audazes se atreveram a tocar sua capa e seus braços enluvados. Um imponente chofer a ajudou a passar por entre a multidão e chegar até o carro que a aguardava. O homem desdobrou, com destreza, um degrau para facilitar a ascensão da Julia ao interior do luxuoso veículo e fechou a porta atrás dela. Foi realizado com tanta rapidez que Julia quase não teve tempo de piscar quando já estava instalada em um assento estofado de veludo e de couro brando.
Julia viu lorde Savage sentado frente a ela, um flanco de seu rosto como afiado pela luz de um dos abajures do carro, e o outro sumido em sombras. Sorriu-lhe; seu sorriso tinha o perigoso encanto de Lúcifer. Julia se apressou a baixar a vista, fixando-a em seu regaço. Manteve as mãos unidas, quieta quando o que ansiava, em realidade, era retorcer seus dedos entre si para dar liberdade a sua agitação.
Lorde Savage fazia parte de um mundo do que ela tinha estado fugindo desde anos. Ela tinha o direito, e até se poderia dizer que o dever de assumir o título e a posição que seus pais tinham conseguido para ela. Havia resistido a isso com toda sua vontade, movida pelo ressentimento e, sobretudo, pelo medo a descobrir a que classe de homem tinha sido entregue. Julia não queria deixar de temer ao Savage, não queria que suas defesas se debilitassem em modo algum. Apesar de tudo, sua curiosidade a tinha levado a isto, além da aflita atração que falava entre os dois.
— Esta noite, esteve extraordinária — lhe disse Savage.
Julia piscou, manifestando seu assombro.
— Isso significa que você presenciou a apresentação, não? Não o vi entre o público.
— Foi uma atuação exigente para você.
— Sim, é exaustiva.
Por um instante, perguntou-se o que teria pensado ele do total intercâmbio entre ela e Logan Scott, se se teria divertido como o resto do público ou se lhe tinha desagradado. Algo deve ter expressado seu semblante porque ele se inclinou para diante e cravou nela o olhar de seus desconcertantes olhos chapeados.
— O que há?
Julia chegou à conclusão de que não tinha nada que perder e disse o que tinha estado pensando.
Savage pareceu sopesar com cuidado sua resposta e a pronunciou marcando as palavras:
— Eu não tenho direito de desaprovar o que faz você sobre o cenário. A atuação é a profissão que você escolheu.
— Não tem você sentimentos pessoais? Perguntou ela - na parte quando o senhor Scott me beijava ou me perseguia pelo cenário e...
— Não me agradou disse ele, e ela teve a impressão de que a resposta lhe tinha escapado antes de que pudesse contê-la. Sua boca desenhou uma careta de desprezo para si mesmo. Você e Scott são muito convincentes em seus papéis.
Julia teve a sensação de que ele estava tão surpreso por essa admissão de ciúmes de parte dele como ela mesma. Tão alarmada como adulada, tornou-se para trás até que seus ombros se afundassem no estofo de veludo.
— Não é mais que uma representação disse.
— Eu tinha visto antes atuar. Vocês parecem... diferentes. Julia ficou carrancuda e fixou sua vista em sua bolsa. Conhecia o difundido rumor de que ela e Scott seriam amantes e também conhecia a razão desses rumores. Entre ela e Logan no cenário, gerava-se uma química especial, dessa classe que os fazia possível atuar juntos de maneira tão convincente que ilusão e realidade se confundiam com uma perfeição sem fissuras.
Entretanto, essa estranha harmonia que se dava entre eles quando atuavam juntos não podia nem devia estender-se mais à frente do cenário. Essa idéia não tinha cruzado jamais pela cabeça da Julia. Recorria ao Logan como todos outros, em procura de direção, de guia, elogio e crítica, mas para nenhuma outra coisa que não estivesse diretamente relacionada com sua carreira. Não havia, na atitude do Logan, nada confortável, nada que convidasse à confiança ou ao mais remoto sinal de segurança e calidez, sequer. Era óbvio que Logan jamais amaria nenhuma mulher como amava seu teatro, nem se sacrificaria por pessoa alguma o que era capaz de sacrificar a esses deuses gêmeos que eram, para ele, a arte e a ambição.
Possivelmente fora esse, precisamente, a origem da química sobre o cenário, porque ambos percebiam que o outro seria incapaz de entregar-se a outra pessoa. Isso brindava segurança, dava-lhes a certeza de que não existiria entre eles o risco do amor, a dor, a desilusão, de que quaisquer fossem as emoções que se exibissem sobre o cenário, quando caísse o pano de fundo não ficaria nada delas.
Desde que tinha chegado a ser adulta Julia tinha tratado de conformar-se com a independência que tanto valor tinha para ela. Ah, se pudesse deixar de desejar algo mais... Ansiava que alguém a entendesse e a quisesse, um homem a quem pudesse entregar-se por inteiro, sem temores nem dúvidas. Era seu sonho mais íntimo embora detestasse confessar inclusive a si mesma.
Em ocasiões, sentia-se como dividida em dois; uma parte dela que desejava isolar do resto do mundo e a outra que ansiava ser possuída e amada como nunca o tinha sido em sua vida. Seu pai, com sua forma de ser dominante, não tinha muito amor para oferecer a ninguém. Sua mãe sempre tinha sido tímida, tinha estado muito sumida na sombra de seu marido para dar a Julia a atenção que uma menina necessitava. E o constante ir e vir de serventes no lar dos Hargate tinha impedido que Julia cercasse um vínculo forte com nenhum deles. O amor era algo mais temido que desejado.
Julia cobrou consciência de que tinha permanecido em silencio durante um lapso inusitadamente prolongado, e jogou ao Savage um olhar receoso, temendo que seus pensamentos se refletissem em sua atitude.
— Já quase chegamos — foi quão único disse ele em um murmúrio que, sem saber bem por que, tranquilizou-a.
O carro, que circulava pela Rua Upper Brook, girou para subir pelo comprido atalho que chegava até a imponente mansão onde preponderavam o branco e o creme. Era uma construção fria, bela e perfeitamente simétrica, de altas colunas gregas e um largo pórtico que adornava a fronte. Da estrutura central se abriam duas graciosas alas brancas nas quais se viam fileiras de resplandecentes janelas de estilo pseudoclássico. Era por completo diferente da lúgubre mansão gótica em que tinha crescido Julia.
Savage baixou o primeiro da carruagem e lhe tendeu a mão para ajudá-la a apear-se. Com suas mãos enluvadas a sujeitou firmemente até que ela tocou o chão e, então, ofereceu-lhe seu braço. Enquanto caminhava a seu lado subindo os largos degraus de mármore para entrar na casa, Julia teve percepção aguda dos duros músculos do antebraço dele e de como media suas largas pernadas para adaptar-se aos passos mais curtos dela.
Um mordomo de rosto alargado os recebeu e tomou o casaco da Julia e o chapéu e as luvas do Savage. O que Julia viu no vestíbulo de entrada e nos quartos que estavam além de este, assombrou-a: céus cetins a doze metros de altura, colunas antigas, chãos revestidos com deliciosas lajes em verde, azul e âmbar.
— Que belo — exclamou.
— Sim — respondeu Savage, embora a olhava a ela e não ao ambiente que os rodeava.
— Me mostre a casa — lhe pediu ela, impaciente por ver mais.
Savage a agradou, acompanhando-a através de diversos quartos, detendo-se para lhe contar a história de alguns quadros ou de algum móvel. Era evidente que a família Savage tinha grande avaliação pela arte. Em muitos dos céus rasos havia medalhões incrustados nos que se viam anjos pintados com delicadeza, nuvens e figuras mitológicas; além disso, em cada canto havia alguma estranha escultura. Havia paredes decoradas de dourado e branco nas quais se exibiam retratos pintados por Van Dyck e Rembrandt e paisagens do Gainsborough, Marlow e Lambert.
— Poderia contemplá-los durante horas — disse Julia, olhando com deleite uma parede com pinturas penduradas nele.
— Eu não estou acostumado a ter tempo para desfrutá-las.
— O que o tem tão atarefado, milord? Imagino que devem ser tudo seus investimentos e seus interesses comerciais.
— Há muitas coisas das que tenho que me ocupar — admitiu-o, enquanto olhava pensativo o Van Dyck que havia ante eles.
De súbito, Julia se sentiu mortificada pelos indiscretos grunhidos de seu estômago. Apoiou uma mão no ventre.
— Muito pouco digno de uma dama. Agora caio na conta de que não comi nada desde esta manhã.
Um sorriso tironeou das comissuras da boca dele.
— Vamos jantar?
— Sim, estou morta de fome.
Julia se tomou outra vez do braço dele e passaram ante outros deslumbrantes quartos cheios de obras de arte. Ela sabia que deveria melhor escolher um tema neutro de conversação, mas não pôde resistir à tentação de sondá-lo.
— Estou segura de que poderia você contratar a agentes de propriedade e administradores que se ocupassem de seus negócios, milord.
— Prefiro dirigi-los eu mesmo, em sua maior parte.
— Custa-lhe confiar em outras pessoas — observou ela.
— É verdade — confirmou-o. — Em especial, quando estão em jogo as finanças de minha família.
Julia observou a linha inflexível de seu perfil, suas sobrancelhas arqueadas em manifestação de moderada surpresa. Por que teria que admitir semelhante coisa ante ela? Todos os membros da aristocracia, sem exceção, faziam acreditar que seus recursos monetários eram ilimitados e que podiam ser dilapidados sem nenhuma preocupação.
Savage continuou, sem modificar a inflexão de sua voz:
— Meu pai se ocupou, em pessoa, dos assuntos familiares até que caiu doente, faz já vários anos. Quando eu me fiz cargo do controle de tudo, descobri que os Savage tinham contraído uma pesada dívida e que todos nossos assuntos comerciais eram uma ruína. O duque tinha inclinação pelo jogo; se alguma vez fez um investimento proveitoso, foi por pura casualidade.
— Ao parecer, você beneficiou bastante à família após. Seu pai deve estar agradado ao saber que você trocou a situação.
Savage se elevou de ombros.
— O duque jamais admite ter estado equivocado com respeito a nada. Não reconhece que cometeu enganos.
— Entendo-o.
Pronunciou as palavras em um sussurro, mas Savage não podia saber até que ponto Julia, em efeito, entendia-o. Como ela sempre tinha suspeitado, os pais de ambos eram o mesmo tipo de pessoa. O duque do Leeds, ao igual a lorde Hargate, tinha tratado de controlar a sua família com mão de ferro. Quando resultou evidente que era um mau administrador tanto de propriedades como de pessoas, tinha sacrificado o futuro de seu filho em troca de uma forte soma contribuída pelos Hargate.
Julia suspeitava que fizesse já muito tempo lorde Savage tinha decidido que ninguém voltaria a controlá-lo nunca mais. Sentiu um impulso de simpatia por ele, até de irmandade, embora estivesse segura de que, como marido, seria inflexível, desconfiado e remoto. Um marido bastante pouco recomendável, ao menos para ela.
A abundância dos pratos servidos durante o jantar poderiam ter satisfeito a doze pessoas. Julia se sentou à direita do Savage ante uma larga mesa sobre a qual tinham disposto floreiros em forma de cálice, cheios de orquídeas e flores pendentes. O primeiro prato era um consome de verduras, seguido de rodas de salmão cobertas de creme e ervas. Depois, os criados entraram com umas fumegantes bandejas nas que havia faisões cheios de trufas e avelãs, e escalopes de vitela que nadavam em molho Bordeaux.
Quando viu que chegavam mais pratos, Julia protestou; pudins, bolos abertos, moelas e verduras.
— Isto é muito. Ser-me-ia impossível lhes fazer justiça!
Savage sorriu e a animou a provar um ovo de codorna cheio de creme e caranguejo. Julia se permitiu gozos que fazia tempo que não desfrutava, bebendo uma seleção de vinhos franceses e dedicando-se a agradar ao banquete. Savage demonstrou que, quando queria, podia ser um companheiro de jantar encantador, capaz de conversar de maneira agradável sobre uma grande variedade de temas.
— Por que te conver-teste em atriz? — perguntou-lhe, quase ao final da parcimoniosa comida, reclinando-se em sua cadeira enquanto retiravam seus pratos e colocavam ante eles bolos e frutas frescas. Julia brincou com um vermelho morango que havia em seu prato.
— Tive esse desejo desde que era menina. Abandonei o lar de minha família quando tinha dezoito anos para me unir a uma companhia de atores itinerantes, logo atuei em um teatro do Strand até que tive a boa fortuna de ser contratada pelo senhor Scott.
— E seus pais a apoiaram?
A idéia fez soprar a Julia, em sinal de ironia.
— Por certo que não. Eles queriam que eu ficasse em casa... só que debaixo certas condições que para mim eram inaceitáveis
— Quando te casou? — perguntou ele. — Quando estava no Strand?
Ela franziu o sobrecenho.
— Nunca falo sobre meu matrimônio.
Um semi sorriso apareceu nos lábios dele.
— Não estou seguro de que, de verdade, tenha um marido.
— Tenho-o — assegurou ela, bebendo um gole de vinho.
"Ele existe, do mesmo modo que sua esposa existe", teve vontades de dizer, mas se conteve.
— Não quererá ele que deixe o teatro alguma vez?
— Seria um grande hipócrita se pretendesse semelhante coisa — disse ela com altivez. — Ele mesmo é ator.
Conteve um sorriso ao ver a faísca de interesse na expressão dele, consciente de que ele tomaria suas palavras ao pé da letra. Contudo, era verdade. Era inegável que lorde Savage tinha habilidade para ocultar a verdade e apresentar-se sob uma falsa aparência. Era um ator tão talentoso como qualquer dos que trabalhava no Capital.
Parecia que estava a ponto de perguntar algo mais, pois, de repente, entreabriu os olhos e cravou seu olhar no antebraço nu dela.
— Milord? — perguntou Julia, intrigada por sua expressão.
Antes de que ela pudesse reagir, Savage tinha agarrado seu braço com uma mão larga e cálida e o tinha aproximado da luz. Ali se distinguia com claridade a capa de maquiagem sobre o cardeal. Julia tratou de soltar-se e resmunguei, confundida:
— Não é nada, estou perfeitamente bem, isto passa na atuação, entende?...
— Cala.
Ele se voltou para um criado que se aproximava e lhe pediu, com brutalidade, que trouxesse um recipiente com unguento dos que guardava a ama de chaves.
Julia viu, em atônito silêncio, como Savage molhava a ponta de um guardanapo em um copo com água fria. A surpresa a fez ficar tensa quando ele passou brandamente o pano molhado pelo machucado. Savage descobriu outras marcas de dedos e uma mancha escura no ombro. Tirou a pintura que dissimulava os pontos com todo cuidado.
Sobre a pele da Julia se estendeu um vivo rubor que subiu do pescoço para a cara. Nenhum homem a havia tratado nunca deste modo. O rosto dele estava tão perto que ela podia distinguir o nascimento das escuras costeletas sobre sua pele barbeada e o grosso leque de suas pestanas.
Desprendia-se dele uma grata fragrância, em que se mesclavam o perfume da colônia com o aroma do tecido engomado. Seu fôlego estava carregado com a doçura do vinho de sobremesa. O coração da Julia começou a palpitar com força quando cruzou por sua cabeça a idéia de roçar com as gemas de seus dedos esse cabelo negro, a curva nítida da orelha, o arco audaz das sobrancelhas. Tinha bebido muito. Sentia-se enjoada, acalorada, queria afastar-se e, entretanto...
O criado retornou levando uma lata pequena com unguento e a entregou a lorde Savage. Ao partir, fechou a porta e se foi, deixando-os a sós.
— Não é necessário que... — disse Julia, titubeando.
Sua voz foi apagando-se enquanto Savage desentupia o recipiente, que continha uma pomada rosada, de aspecto gorduroso, que despendia forte aroma de ervas.
Os olhos cinzas do Savage elevaram seu olhar para a dela. Pela primeira vez, ela notou sutis pontos de azul e verde no profundo de seus olhos. Quando ele começou a falar, fê-lo em um tom mais grave que o habitual.
— Scott teria que ter mais cuidado contigo.
— Tem-no — sussurrou ela. — O que acontece é que me aparecem hematomas com muita facilidade.
Sem apartar seu olhar do dela, ele afundou seus dedos na pomada e se tornou para diante. Uma trêmula negativa apareceu nos lábios da Julia, mas, por alguma razão que desconhecia, não pôde emitir som. Sentiu que os dedos dele pulverizavam o unguento sobre seus machucados. Tratava-a como se ela fosse feita de porcelana e o contato de seus dedos sobre a pele dela era quase imperceptível. Julia nunca imaginou que um homem podia ser tão delicado.
Ele passou ao ombro ocupando-se desse hematoma enquanto ela permanecia imóvel. Julia sentiu que se alagava de loucos impulsos: queria apoiar-se sobre ele, sentir toda sua mão sobre a pele, guiar os largos dedos para a curva de seus peitos. Conteve o fôlego, procurando que esses sentimentos desaparecessem, mas, ao contrário, esses desejos cresceram até tal ponto que seus mamilos se ergueram, levantando a tensa seda de seu vestido. Impotente, aguardou a que ele terminasse, cravando seu olhar na cabeça inclinada dele.
— Há outros mais? — perguntou ele.
— Nenhum que possa ver — conseguiu dizer ela.
Um sorriso cruzou o rosto do homem. Tampou o recipiente e o deu a ela.
— Obsequio-lhe isso, senhora Wentworth. Estou seguro de que necessitará mais antes que terminem as representações da Megera Domada.
— Obrigado — disse Julia, recolhendo suas luvas negras, que havia tirado ao começo do jantar, e com elas abanou o rosto acalorado. Faz muito calor aqui — disse, sem convicção.
— Quer que demos um passeio pelo jardim?
Ela assentiu agradecida, e saíram juntos do salão, cruzaram uma sala de espera para transpor umas largas portas que davam ao atalho de um jardim pavimentado. Fora estava escuro e fresco; uma picante brisa fazia sussurrar as folhas das árvores e as dos cercos.
Caminharam em silêncio, passando ante densos cercos de disco e ante uma fileira de ameixeiras florescidas. Perto do centro do jardim havia uma grande fonte cheia de esculturas de anjos. Julia se deteve para admirar a paisagem e notou uma sebe feita de roseiras que chegavam à altura do peito e que bordeavam o atalho. As flores lhe resultavam familiares, e eram como grandes chama de cor rosada pálida, que exalavam um perfume indescritivelmente doce.
— Rosas Summer Glory — murmurou. — As preferidas de minha mãe. Ela estava acostumada passar horas em seu jardim, as cuidando. Dizia-me que eram as mais belas e as mais espinhosas, também.
Savage a viu inclinar-se sobre uma rosa e inalar seu perfume embriagador.
— Esta é uma variedade muito estranha, sobretudo na Inglaterra. Recebeu-a minha família, faz já muito tempo, de mãos de... — interrompeu-se, e sua expressão se tornou surpreendidamente alerta. — Um amigo — concluiu.
Pareceu que as duas palavras pendiam entre os dois, riscando uma interrogação no ar.
De repente, Julia sentiu que seus pulmões se esvaziavam de ar e teve que esforçar-se por voltar a enchê-los. Por certo, as Summer Glory eram uma variedade única. Pensou-o com cuidado e compreendeu que só as tinha visto na propriedade de sua família, e em nenhum outro lugar. Também compreendeu que, sem dúvida nenhuma, tinha sido Eva, sua mãe, a que tinha dado galhos aos Savage, fazia tantos anos. Antes de haver-se convertido em uma inválida, Eva se orgulhava de sua destreza para cultivar rosas exóticas e sempre dava de presente mudas a seus amigos e conhecidos.
Julia pensou de que maneira podia encobrir o tropeço e optou por trocar de tema o mais rápido possível. Passou de comprimento ante o arbusto com fingida indiferença.
— Está inteirada lady Ashton de minha presença aqui, esta noite? — perguntou, de repente.
— Lady Ashton — repetiu Savage, manifestando surpresa ante o abrupto da pergunta. — Não, não o hei dito.
— Se ela o descobrisse, isso te conduziria um problema?
— Ela não tem esse direito sobre mim.
— Ah, sim é certo que tem um "acordo" com ela... — disse Julia encolhendo-se quando uma pedrinha se meteu dentro de seu sapato forrado de seda. Deteve-se para tirar o sapato e o sacudiu para tirar o cascalho. — Acaso lady Ashton não abriga esperanças de casar-se contigo, milord?
— Está você formulando perguntas muito pessoais, senhora Wentworth.
— Estou segura de que é assim — disse Julia, respondendo a sua própria pergunta. — É um solteiro muito cobiçado, não é certo?
Savage lhe tirou o sapato da mão e se ajoelhou para voltar a calçar-lhe um pé apoiando-se em um ombro dele e descobriu, com assombro, que sua jaqueta não tinha ombreiras. Sentiu seus músculos sob a palma da mão como se fossem de carvalho.
— Não tenho intenções de me casar com lady Ashton.
— Por quê não? — perguntou ela, contemplando o brilho marinho do cabelo dele à luz da lua. — Ela não cobre suas elevadas expectativas?
Conteve o fôlego ao sentir os dedos dele em seu tornozelo que guiavam brandamente seu pé para o sapato.
A voz dele chegou um pouco amortecida.
— Tenho a intenção de me casar por amor.
A surpresa que levou Julia estava mesclada com um golpe de simpatia. De modo que, baixo esse exterior de indivíduo prático, controlado, existia um sonho íntimo, o mesmo que tinha sido arrebatado a ambos.
— Não teria imaginado uma idéia tão romântica em um homem como você, milord.
— O que teria imaginado a respeito de mim?
— Que te casasse por conveniência e procurasse o amor em qualquer outro lado.
— Isso foi, exatamente, o que fez meu pai. Estou seguro de que minha mãe, que é uma mulher sensata, não esperava outra coisa dele, mas eu acredito que, mesmo assim, isso a machucava. Jurei mesmo que eu faria algo diferente.
— Mas não sempre é possível.
— Para mim o será.
Como ia ser possível? Sem dúvida, devia estar pensando em uma anulação. Para poder casar-se, antes teria que livrar-se dela, a menos que não lhe importasse cometer bigamia.
— Como pode estar seguro? — perguntou Julia. — Nada te garante que ache a sua alma gêmea.
— Claro que não há garantia — concedeu ele, lhe soltando o tornozelo. — Só abrigo a esperança.
Ele se incorporou e a olhou do alto de sua estatura. Sua cabeça ficava por cima da dela, seu rosto estava sumido nas sombras. Julia deveria lhe soltar os ombros, mas sentia falta de equilíbrio, como se isso equivalesse a soltar o único sustento seguro que tinha no mundo.
— Já nos vimos antes, sabe? — disse ele, em voz suave.
Essa afirmação provocou a Julia um calafrio de alarme.
— Está equivocado.
— Nunca esqueci aquela noite — disse ele, rodeando com firmeza a cintura dela com suas mãos, sustentando-a e contemplando seu rosto voltado para cima: — Faz três anos, no Warwickshire. Eu tinha saído do castelo a dar um passeio e presenciar os festejos de 1º de Maio no povoado. E te vi dançar.
Guardou silêncio, observando como o semblante dela passava do desassossego à compreensão.
— Ah — disse Julia, com voz débil. — Eu não imaginei...
Ao princípio, pensou que ele estava referindo-se ao matrimônio entre ambos. Bom Deus, assim que ele era o desconhecido que a tinha beijado aquela noite! Baixou a vista e a fixou no centro do peito dele, recordando de que modo esse beijo a tinha açoitado durante meses. Era incrível que o destino houvesse tornado a reuni-los.
— Aquela noite, perguntei-te se era um dos Savage e você o negou. Por que não me disse, então, quem era?
— Não tinha modo de saber como reagiria você. Poderia supor que eu trataria de me aproveitar de ti.
— Fê-lo: beijou-me contra minha vontade.
Um sorriso relutante cruzou a cara dele.
— Não pude evitá-lo. Foi a mulher mais bela que eu tinha visto. Ainda o é.
Julia tratou de apartar-se, mas ele a manteve grudada me sí.
— O que quer de mim? — perguntou ela, vacilante.
— Quero ver-te outra vez.
Ela negou com veemência sacudindo a cabeça.
— Não pode comprar outra noite comigo, embora comprasse todo o teatro Capital.
— Por que não? Porque seu marido se oporia?
— Já te hei dito que não falarei contigo a respeito dele.
— Não permitirei que te negue a me explicar por que não quer ver-me.
— Porque não me interessa ter uma aventura contigo e, dadas nossas respectivas situações, é o único que está em condições de me oferecer.
O sangue da Julia adquiriu um ritmo caprichoso. Com o corpo dele tão perto do dele, ela ouvia sua respiração, sentia seu calor e se via atraída por ele como uma traça por uma chama. Queria jogar sua cabeça para trás e sentir sua boca sobre a dela, apertar-se contra ele. Nunca tinha experimentado uma tentação assim, nem sentido a promessa de algo extraordinário tão a seu alcance. Entretanto, não estava disposta a entregar-se a esse impulso destrutivo. Se o fazia, seria um desastre.
— Não voltarei a ver-te — disse, retorcendo-se até que ele a soltou e ela ficou livre. — Devo partir.
Retornou depressa o caminho até a fonte e se deteve no cruzamento de dois atalhos.
Ouviu a voz do Savage justo a suas costas.
— Por aqui.
Voltaram para a casa em silêncio, detentos de uma tensão que nenhum dos dois podia romper.
Quando a carruagem se afastou com sua adorável passageira dentro, Damon, já sozinho, cruzou o chão de mármore do vestíbulo de entrada. Sua mente estava cheia dela; reviveu cada instante das horas passadas e quis mais.
Queria a ela. Queria-a com uma urgência irracional, cega, que estremecia todos seus nervos. E lhe tinha raiva por isso mesmo.
Foi, com passos lentos, para a larga escada que subia às dois últimos andares da casa. Deteve-se no primeiro patamar e se sentou em um degrau. Apoiou os antebraços sobre os joelhos e olhou, sem ver, as luminosas tapeçarias medievais que cobriam a parede.
Jessica Wentworth estava comprometida com outro. Ele também. Habitavam mundos separados. Ela estava certa: era pouco o que ele podia lhe oferecer que não fosse uma aventura. E teria que ter em conta a Pauline. Ela não merecia que a traísse e a abandonasse. O que havia entre eles era fácil e cômodo, e lhe tinha bastado, até que encontrou a Jessica Wentworth
Teria que tirar de sua cabeça a Jessica Wentworth. Era a única alternativa lógica. Entretanto, algo dentro dele se rebelava ante essa perspectiva. Nunca havia se sentido tão encerrado, com suas possibilidades limitadas por um passado que pesava sobre ele como uma cadeia de ferro de um quilômetro de comprimento. Estava casado com uma mulher a que nem sequer conhecia.
Ah, se pudesse encontrar a Julia Hargate, maldita seja, e arrancá-la de sua vida de uma vez e para sempre...
Assim que entrou na sala de espera, Julia se encontrou com meia dúzia de olhares espectadores, fixos nela. Estavam ali reunidos os atores principais da A Megera domada; manifestavam uma impudica curiosidade com respeito ao que tinha ocorrido em sua noitada com lorde Savage.
O único que dava a impressão de estar preocupado com as notas do ensaio para advertir sua entrada era Logan Scott
— Chega tarde, senhora Wentworth - disse, sem levantar a vista.
— Perdão, fiquei dormida — murmurou Julia, indo para uma cadeira desocupada.
Era certo. Depois de ter voltado para sua pequena casa da Rua Somerset, tinha permanecido acordada durante longo momento, bebendo vinho e olhando fixamente a um nada. Meteu-se na cama, mas, de todos os modos, o sonho se mostrava esquivo. Tinha a impressão de que, quando ao fim dormiu, já era a hora de levantar-se e devia enfrentar o dia com os olhos avermelhados e olheiras.
Não tinha podido deixar de pensar no Savage. A noite anterior se produziu a culminação de todos os temores e a curiosidade que a tinham açoitado durante anos. Agora, todas suas fantasias concernentes a seu marido desconhecido tinham desaparecido. Ele era real para ela, e mais perigoso do que tivesse sonhado nunca que fora. Savage era um homem esplêndido: inteligente, poderoso, ativo, da classe de indivíduos capazes de dominar a vida de uma mulher de modo tão completo que ela terminaria perdendo-se à sombra dele. Nesse sentido, ele se assemelhava muito a seu pai. Julia não queria ser a esposa de um homem forte, pois se tinha esforçado muito para conver-ter-se na Jessica Wentworth.
Teria sido mais fácil fazer a um lado ao Savage se não fosse pelo matiz de vulnerabilidade que ela tinha detectado nele, pelo modo delicado em que a havia meio tocado, pela surpreendente confissão de que ele queria casar-se algum dia por amor. Haveria mais coisas escondidas atrás desse exterior tão fechado? Jamais poderia correr o risco de averiguá-lo. Pensar no que tinha acontecido entre eles a enchia de um estranho desespero. Ela não tinha deixado lugar a dúvidas quanto a que não queria voltar a vê-lo e, no fundo de seu coração, sabia que era o melhor. Então, por que se sentia como se tivesse perdido algo imensamente precioso?
— Aqui está — ouviu o murmúrio do Arlyss, e a miúda atriz lhe alcançou uma xícara de chá quente.
Julia a recebeu, agradecida, e bebeu um gole do líquido doce e lhe reanimou.
— Ele não te deixou pegar olho, né? — perguntou-lhe Arlyss, encantada. — Nunca te vi tão fatigada. Tão bom foi ele, Jessica?
Julia lhe dirigiu um olhar severo e cansado.
— Não estive com ele... como você crê.
— É obvio que não — disse o senhor Kerwin, um robusto ator de uns sessenta anos, que se considerava homem de mundo. Era excelente desempenhando papéis de pais ansiosos, maridos afligidos, bêbados e bufões, todos com o enviesado encanto que tinha ganhado o afeto do público. — Querida minha, nunca admita nada: sua vida privada deve seguir sendo-o.
Sublinhou o comentário com uma piscada amistosa.
A voz do Logan, cheia de ironia, intrometeu-se na recém iniciada conversação.
— Senhora Wentworth, poderia vir conosco? Tenho uma página cheia de notas relacionadas com seus enganos na apresentação de ontem à noite. Não me cabe dúvida de que quererá as ouvir.
Julia assentiu e seguiu bebendo seu chá, perguntando-se a que se devia o estado de tensão do Logan. Deveria ter estado contente, pois a apresentação tinha sido bem recebida, tanto pelo público como pela crítica, e ela tinha contribuído com o Capital assistindo ao jantar prometido com lorde Savage. Que mais quereria ele?
Antes de que Logan pudesse começar a ler as notas, abriu-se a porta da sala de espera e apareceu a cara de um dos contra-regras do teatro, com expressão incerta.
— Com seu perdão — disse, para todos os presentes em geral, e logo olhou a Julia. — Acabam de entregar um pacote para você, senhora Wentworth. O moço que o entregou há dito que devia ser posto em suas mãos imediatamente.
Intrigada, Julia estendeu sua mão para o pequeno pacote envolto de maneira singela, e o contra-regras o alcançou. Ao ver a expressão carrancuda do Logan, o contra-regras não demorou para desaparecer. Julia estava muito tentada de abrir o pacote mas o deixou a um lado para fazê-lo depois, sabendo que Logan se zangaria se se produzissem mais interrupções da reunião de trabalho. Todos os integrantes da companhia observavam com atenção a misteriosa caixa, sem fazer o menor caso dos gestos impacientes com que Logan folheava suas notas.
— Que esperas? — disse-lhe, ao fim, Logan a Julia, torcendo sua boca em uma careta irônica. — Será melhor que abra esse maldito pacote. É evidente que ninguém vai prestar atenção ao trabalho que temos por diante até que o tenha feito.
Arlyss apareceu por cima do ombro da Julia, seus olhos brilhantes de curiosidade, seus cachos castanhos bailando de impaciência.
— Mandou-o ele, não?
Julia desembrulhou com cautela a caixa e encontrou dentro um papel dobrado. Todos se inclinaram mais para ela como esperando que o lesse em voz alta. Ela aproximou a nota mais a seu corpo e a leu em silêncio:
Senhora:
Tenho entendido que isto pertenceu, em outro tempo, a uma dotada atriz, a senhora Jordan. Merece ser usado por uma pessoa que possua a graça e a beleza para exibi-lo como é devido. Rogo-lhe que aceite este obsequio na compreensão de que não vai acompanhado de nenhuma obrigação por sua parte, salvo o que o desfrute.
Seu servidor
Damon, lorde Savage
Com certo receio, Julia tirou da caixa um pequeno saco de veludo azul, então derrubou seu conteúdo sobre a mão. Arlyss lançou uma audível exclamação, enquanto que o senhor Kerwin aprovava com um retumbante som gutural. Incapazes de resistir, o grupo de atores formou roda ao redor da Julia para ver o presente.
No centro da mão da Julia brilhava o broche mais delicioso que ela tivesse visto: um diminuto ramo de rosas com resplandecentes pétalas de rubis e folhas de esmeraldas. Não lhe custou trabalho acreditar que a senhora Doura Jordan, esposa do irmão do rei, fazia muitos anos, houvesse possuído uma peça tão magnífica. Embora muitos pretendentes lhe tinham devotado a Julia jóias e presentes, que ela tinha recusado, nada lhe tinham dado nunca tão elegante. Atônita, contemplou o pequeno tesouro que tinha na mão.
— Eu... eu tenho que devolvê-lo — disse com esforço, o qual provocou um imediato coro de desaprovação.
— Por quê?
— Conserva-o, garota, tem que pensar em seu futuro...
— O marquês, com sua fortuna, poderia comprar mil mais desses e não senti-lo, sequer!
— Não te apresse — lhe aconselhou Arlyss. — Antes de fazer nada, pensa um dia ou dois.
— Está bem, já é suficiente — disse Logan, tirando impaciente uma mecha de seus cabelos avermelhados.— Temos coisas muito mais coisas do que nos ocupar que a conquista da senhora Wentworth.
Os atores, obedientes voltaram para seus lugares. Julia encerrou em seus dedos a jóia, com sua mente feita um torvelinho. Claro que devia devolvê-lo, pois, até então, jamais tinha aceitado um presente de um homem. Face ao que tinha expressado lorde Savage, ela sabia que ele esperaria algo em troca. Não pertencia à classe de homens que dariam algo por nada. Então, um estranho pensamento foi a sua cabeça. Ele era seu marido; por que não haveria ela de aceitar de parte dele? Esse matrimônio de tão larga data já a tinha privado de muitas coisas. Por certo, tinha direito a uma pequena compensação. O broche era muito belo, muito tentador e harmonizava com ela à perfeição.
"A conquista da senhora Wentworth", pensou, ruborizando-se de confusão e de deleite. Não deveria sentir prazer de que lorde Savage se interessou por ela a não ser alarmada. Que assombroso giro do destino ser pretendida por seu próprio marido! Devia pôr fim a esta paquera antes que seguisse mais adiante.
Deslizou de novo o broche ao interior do estojo e se esforçou por prestar atenção às notas do Logan. Estava calada e abatida, enquanto que os outros formulavam perguntas e propunham mudanças relacionadas com a obra. Quando terminou a reunião, ela foi a seu camarim, desejosa de uns minutos de intimidade para poder pensar.
— Senhora Wentworth — murmurou Logan quando Julia passou.
Ela se deteve e o olhou inquisitiva.
— Sim, senhor Scott?
No rosto do Logan se via a expressão de quem se ocupa de questões práticas, mas suas sobrancelhas avermelhadas se crispavam, revelando certo tumulto interior.
— Ao parecer, o jantar com lorde Savage não foi uma prova tão dura, depois de tudo.
— Não — disse ela. — Foi bastante agradável.
— Voltará a vê-lo?
Enquanto o dizia, sorriu como burlando de si mesmo, como se lhe parecesse uma tolice havê-lo perguntado.
— Não, senhor Scott.
A Julia sentiu que a expressão dele se relaxou. Estaria preocupado ante a possibilidade de que uma relação com lorde Savage dificultasse a carreira dela? Ou haveria algum motivo pessoal na pergunta.
— Então, terminou — disse.
Julia apertou em sua mão o broche em seu estojo de veludo.
— Certamente, senhor Scott.
Pauline, lady Ashton, estava recostada sobre a colcha de seda marfim bordada de sua cama, seu corpo voluptuoso vestido só com uma bata rosada, levemente transparente. Com um lânguido murmúrio, saudou o Damon que entrava no dormitório da elegante casa londrina de Pauline. Tinham estado separados durante uma semana, enquanto ela estava de visita na casa de sua irmã, no Hertfordshire.
Assim que tinha retornado, Pauline tinha enviado um breve bilhete perfumado e selado com lacre dourado à casa do Damon na cidade. A julgar pelo tom imperioso da mensagem, Damon supôs que Pauline já estava inteirada de suas últimas atividades. Deus era testemunha de que o vigiava de perto: dava a impressão de que tinha contratado a uma rede de espiões para que o seguissem.
— Olá, querido — disse Pauline, lhe indicando com um gesto de sua esbelta mão branca que se aproximasse.
Atraiu para ela sua cabeça e lhe deu um beijo ardente, retendo-o junto a ela com assombrosa força. Damon jogou sua cabeça atrás e a olhou com curiosidade. Viu no rosto dela uma expressão que não lhe agradou, mescla de excitação e triunfo, uma luz espectadora em seus olhos castanhos escuros. Parecia estar preparando-se para a batalha e estar em posse da arma que lhe asseguraria a vitória.
— Pauline, queria te dizer uma coisa...
— Eu já sei — lhe interrompeu ela, sem alterar-se. — Sabe? É humilhante suportar as risadas dissimuladas e a falsa piedade da aristocracia e comprovar que competem por ser os primeiros em te dizer que te há encaprichado com uma pequena atriz de pouca subida.
— Não era minha intenção te pôr em uma situação incômoda.
— Foi muito ardiloso de sua parte planejar uma noitada quando sabia que eu iria ao campo, a visitar minha irmã! Como esteve ela, querido? Deve ter sido emocionante ter em sua cama a tão famosa prostituta...
— Não aconteceu nada entre nós.
Ela lançou uma gargalhada cética.
— De verdade? Assim que esse é o jogo dela. Eu mesma usei essa tática, recorda-o? Fiz-te esperar todo um mês antes de permitir que me possuísse. A espera faz que a vitória seja muito mais doce, não é assim?
Até esse momento, Damon não sabia bem o que era o que queria de Pauline nem que obrigações tinha contraído com ela. Durante vários meses, ela tinha sido uma companheira entretida. O nunca lhe tinha mentido, jamais se tinha dado procuração de nada que não lhe tivesse sido devotado de maneira voluntária e tinha pago generosamente pelo privilégio de que ela o recebesse em sua cama. Ele não tinha ido à casa dela com a intenção de terminar a relação, embora sabia que esta aventura se havia posto rançosa. Nunca tinham compartilhado outra coisa que o prazer físico. Não se tinha gerado entre eles uma compreensão profunda nenhuma intimidade que fosse além do físico, e jamais aconteceria.
— Por que me fez vir? — perguntou ele.
Esse novo matiz na voz dele, esse frio desinteresse que não tinha notado antes, fê-la ficar rígida.
— Quero falar com respeito a suas intenções, querido. Pensa conver-ter a Jessica Wentworth em sua nova amante?
— Isso não é assunto de sua incumbência.
— Vais deixar-me por uma mulher como essa? Ela não é mais que uma bonita quinquilharia da que logo te cansará... e quando isso ocorra, voltará para mim.
A arrogância de Pauline o exasperou. Nunca tinha permitido a ninguém que lhe reprovasse alguma de suas ações, e não estava disposto a outorgar esse direito a Pauline.
— Se eu me meter na cama de outra mulher — disse, em tom suave, — que me condenem se te peço sua aprovação.
— Muito bem, milord. Posso te perguntar, ao menos, o que será de mim?
Damon a disparou flechas com um olhar avaliador. Como bela e desejável que era Pauline, não demoraria uma semana em encontrar a um novo fornecedor. Ele não se iludiu de que ela o amasse, pois não manifestava sintomas dessa enfermidade. O fim da relação entre eles não lhe partiria o coração nem a faria sentir-se abandonada.
— Arrumar-se-á isso muito bem — respondeu ele. — Não acredito que exista um homem que te tenha cuidadoso e não te deseje, Pauline — lhe disse, e suavizou um pouco o tom para prosseguir: — desfrutei contigo estes meses. Eu gostaria de acabar as coisas de um modo agradável, sem arruinar as lembranças. Certificar-me-ei de que sejam pagas todas suas contas. Quero te deixar um presente de despedida: um carro novo, mais jóias, uma casa... você só me diga o que preferiria.
Os olhos castanhos dela se cravaram nos dele.
— Já me tem feito um presente de despedida — disse, sem piscar.
Havia em sua voz um sotaque de ironia que ele não compreendeu. Levou lentamente sua mão a seu ventre um pouco arredondado e a deslizou sobre seu tensa superfície em uma carícia carregada de intenção.
Ainda sem compreender, Damon observou o movimento de seus brancos dedos. Sua mente não aceitava o que ela estava tratando de lhe dizer.
— O que poderia pedir? — murmurou Pauline, mantendo sua mão no ventre em atitude protetora. — Talvez, algo mais que dinheiro, e logo deveria te prometer que não voltaria a te incomodar com respeito a meu estado. Este costuma ser o acerto habitual, não? Os homens em posições como a tua concebem à miúdo filhos ilegítimos e não sentem a menor obrigação para com as mães de seus bastardos. Mas eu te conheço, querido. Você não é como a maioria dos homens.
— Nós tomamos precauções... — disse ele com voz áspera.
— Às vezes essas precauções falham.
— Quero que veja um médico.
— Já o tenho feito. É obvio, está convidado a te encontrar com ele para que te confirme a notícia — disse ela e, depois de uma pausa adicionou, com súbito arranque de vulnerabilidade. Pode ser que não me creia ou que afirme que o menino não é teu, mas ao menos eu sei que te hei dito a verdade.
Se era um engano, era magistral. Pauline falava sem alterar-se, sem o revelador rubor nem o pulso acelerado de uma mulher que estivesse mentindo. Conservava uma calma e uma lucidez totais.
Um filho... dele e de Pauline. Todo seu ser se rebelou ante essa idéia. Durante toda sua vida adulta, jamais se tinha descuidado no que às mulheres concernia. Tinha escolhido muito bem suas mulheres e, que ele soubesse, jamais tinha concebido filhos ilegítimos com nenhuma delas. Pauline tinha razão: era estranha a vez em que um homem se acreditasse na obrigação de fazer algo com respeito a suas amantes grávidas, salvo uma contribuição como financista para o sustento de seus filhos. Isto não deveria ser uma armadilha... mas para ele o era. Sentiu frio. Voltou-se de costas para a cama para que Pauline não pudesse ver refletida a repelente verdade em seu semblante.
Agora, não podia abandoná-la, sem importar o que sentisse por ela. Estava ligado a ela para sempre através desse menino. Pauline o conhecia o bastante bem para entender que ele não poderia viver com sua consciência se não se fazia cargo dela e do menino. De agora em adiante, sua vida estaria ligada às deles.
Ele sabia que Pauline queria conver-ter-se em sua esposa, que abrigava essa expectativa com relação a ele, e que ele o esperaria de si mesmo a menos que houvesse um obstáculo. Um sorriso amargo torceu seus lábios e, para sua própria surpresa, disse:
— Não posso me casar contigo.
— Entendo sua relutância, querido. De todos os modos, terá que considerar certos feitos. Você necessita um herdeiro, pois, do contrário, seu irmão herdará seu título. Por outra parte, terá que pensar no bem-estar do menino...
— Eu já estou casado.
Era a primeira vez que Damon o admitia, inclusive ante si mesmo. Apertou os punhos e uma raiva impotente o arrasou. Maldito fosse seu pai por havê-lo levado a semelhante situação!
Fez-se na habitação um silêncio tão absoluto que ele se voltou para Pauline. O rosto dela estava cinzento, embora ele não pudesse discernir se era de impressão ou de fúria.
— O que? — exclamou sibilante. — De modo que os rumores são certos? Jamais o teria acreditado de um homem como você...
— Aconteceu faz muitos anos. Eu era menino: tinha sete anos. Meu pai o arrumou.
— Se este for uma estratagema...
— É a verdade.
Na cara do Pauline o tom cinzento foi substituído por uma quebra de onda púrpura.
— Por Deus... e por que tinha que ser um diabólico segredo? Onde tiveste escondida a sua esposa todo este tempo?
— Não tornei a vê-la desde o dia em que nos casaram. Ambas as famílias estiveram de acordo em que devíamos crescer separados e que nos "apresentariam" quando chegássemos à idade apropriada — respondeu Damon, fazendo uma profunda inspiração para continuar: — Mas isso não aconteceu nunca. Eu não sei como explicaram os fatos a ela. Meu pai optou por sublinhar que afortunado era eu de estar vinculado a uma família rica e não ter que passar nunca pelos inconvenientes de ter que escolher uma esposa por mim mesmo. Eu o odiei pelo que me tinha feito, quaisquer tivessem sido seus motivos. Eu resisti a todo intento de minha família de nos reunir aos dois, e Julia...
— Julia — repetiu Pauline, aturdida.
— ... ao parecer, ela tinha tão poucas vontades como eu de que nos conhecêssemos. Quando, ao fim, eu decidi tomar o assunto em minhas mãos e me enfrentar com ela, tinha desaparecido. Isso faz três anos. E ainda não pude achá-la.
— Como que desapareceu? Ninguém sabe onde está? Nem sua família?
— Se algum de seus amigos ou parentes sabem, não vão dizer. Contratei detetives que procuraram em toda a Europa sem achar rastros dela.
— Mas, por que teria que desaparecer deste modo? Algo tem que lhe haver acontecido — assinalou ela com uma nota esperançada na voz: — Possivelmente esteja morta! Sim, ou desfigurada a consequência de um acidente... ou pode que tenha feito votos e esteja oculta em um convento...
— Tivemos em conta todas essas possibilidades, mas não existe evidência alguma que as sustente.
— Se ela estivesse viva se apresentaria a ocupar seu lugar como a próxima duquesa do Leeds.
Damon se encolheu de ombros.
— Existe a possibilidade de que não lhe agrade a idéia de me ter como marido — replicou ele com secura.
No semblante de Pauline se evidenciou a luta entre a ira e o desejo, que fizeram se sobressair as pequenas veias azuladas de suas têmporas e sua garganta.
— O que fará com respeito à senhora Wentworth? — perguntou, em voz tremente. — Ou, acaso, pretende ter a toda uma coleção de mulheres a sua disposição?
— Ela não tem nada que ver com a Julia Hargate nem contigo.
— Ela será minha substituta — disse Pauline entredentes. — E isso apesar do que me tem feito e do que me deve!
Enquanto observava as facções enfurecidas de Pauline, na mente do Damon surgiu outra imagem: os claros olhos turquesa da Jessica Wentworth e o brilho de sua pele sob a lua. "Eu não tenho interesse em ter uma aventura contigo, havia dito ela, "e isso é quão único tem para me oferecer."
— Não vou voltar a vê-la — repôs Damon, sem alterar-se. — Ela merece muito mais do que eu posso lhe dar.
— E o que há com respeito a mim?
— Suas necessidades ficarão cobertas. E as do menino, também. Mas a relação entre nós já não será a mesma, Pauline.
Ela se afrouxou; foi evidente que tinha optado por ignorar o significado de suas palavras.
— É natural — disse, em um tom muito mais suave. — Eu sabia que você não me abandonaria querido.
Estirou-se para ele em atitude suplicante, e seus lábios vermelhos se abriram incitadores. Damon sacudiu a cabeça e se encaminhou para a porta do dormitório; teve que apelar a toda sua capacidade de controle para não sair correndo dessa perfumada prisão.
— Damon temos que falar!
— Depois — murmurou ele, cada vez mais contente a cada passo que punha distância entre eles.
Não queria fazer amor nem conversar; só queria deixar de pensar e de sentir, ao menos por um tempo.
Na loja de madame Lefevrbre o ambiente estava carregado dos aromas acres de tinturas, tecidos e chá fervendo. Em Londres havia outras costureiras com lojas melhor dispostas, com móveis estofados de veludo e paredes cobertas de espelhos com marco dourado, mas nenhuma delas atraía a classe de clientela rica e distinguida que concorria à casa de madame Lefevrbre. A Julia adorava os desenhos singelos e tentadores da empreendedora francesa, do mesmo modo que as belas sedas, musselinas e lãs que empregava.
Madame Lefevrbre interrompeu a explicação que estava dando a outra mulher e se aproximou para receber em pessoa a Julia e a lhe dar a bem-vinda a sua loja. Apreciava que Julia fosse sua cliente, não só por sua crescente popularidade mas também porque Julia pagava pontualmente suas faturas, ao contrário das inumeráveis mulheres que tinham que enrolar a seus relutantes maridos ou amantes para poder pagar seus vestidos novos.
— Senhora Wentworth, chegou cedo à prova — exclamou a senhora Lefevrbre, conduzindo a Julia para uma cadeira que havia junto a uma mesa carregada de pilhas de desenhos, amostras de tecido e minúsculos manequins vestidos com versões em miniatura dos últimos modelos. — Se não lhe incomoda esperar uns minutos aqui...
— Não, madame.
Sorriram-se, demonstrando o respeito mútuo que havia entre duas mulheres que estavam acostumadas a manterem-se por si mesmos. Julia se sentou na gasta cadeira, rechaçou uma xícara de chá e começou a folhear as revistas de modas.
— Logo voltarei a atendê-la — disse a costureira, e desapareceu depois das cortinas de musselina que ocultavam o anexo.
Enquanto Julia observava com atenção o desenho de um vestido, com fitas de cetim que cruzavam sobre os peitos, notou que alguém ocupava a cadeira vizinha.
A atrativa mulher de cabelo escuro tomou uma das bonecas e brincou com o diminuto babado franzido que lhe rodeava o pescoço. Jogou um olhar a Julia e sorriu.
Julia lhe devolveu o sorriso, que se desvaneceu ao cair na conta de que essa mulher era lady Ashton. Gemeu para seus adentros, sem poder aceitar que lhe tivesse ocorrido tão desventurada coincidência. Sem dúvida, lady Ashton já se inteirou de seu encontro secreto com lorde Savage. Começou a estender-se por sua pele um rubor de culpa, e o combateu raciocinando para seus adentros. Ela não tinha feito nada mau em jantar com lorde Savage e, além disso, depois de tantos anos... tinha direito a passar uma noitada com seu próprio marido, embora mais não fosse!
Lady Ashton, fazendo ornamento de uma sólida compostura, não manifestava a menor confusão ante o encontro fortuito das duas.
— Senhora Wentworth — disse, com uma voz aveludada, que grato vê-la outra vez.
Julia conseguiu compor um sorriso de aquiescência.
— É uma surpresa encontrá-la aqui — comentou.
— Não é tão surpresa. Eu procurei que madame me desse uma entrevista próxima a de você. Esperava que tivéssemos uma oportunidade de conversar.
Julia se esforçou em que não se notasse seu desconforto, e lhe cravou a vista arqueando uma sobrancelha.
— Quantas pessoas a admiram, senhora Wentworth — assinalou lady Ashton, deixando a boneca e tomando outra. Fez escorregar um olhar sobre a figura esbelta da Julia. É encantadora, talentosa e desejada pela maioria dos homens de Londres. Vi gravados seus retratos por toda parte... como a atriz mais admirada pela cena inglesa. Estou convencida de que poderia conquistar a qualquer homem com quem se encaprichasse. Quem poderia resistir?
— Não sei muito bem a que se refere — disse Julia, com uma entonação inquisitiva em sua voz. Fez-se entre elas um tenso silêncio, e Julia se maravilhou da capacidade interpretativa da outra. Se lady Ashton se sentia indignada, ferida ou humilhada, não deixava escapar o menor indício disso.
A outra se elevou de ombros.
— Talvez, o que esteja tratando de dizer é que qualquer mulher, eu, por exemplo, seria uma rival perdedora ante uma pessoa tão célebre como você.
Julia a olhou sem piscar.
— Não tenho desejos de rivalizar com ninguém.
Lady Ashton lançou uma leve gargalhada, mas em seus olhos castanhos não apareceu o menor traçado de humor.
— Isso me tranquiliza muito. Por certo, espero que nenhuma mulher que tenha suas vantagens tente arrebatar a um homem que pertence a outra.
Através de seus olhares, intercambiaram mensagens tácitas. "Não trate de dar procuração do que é meu", diziam os olhos de lady Ashton, e os da Julia replicavam em silêncio: "Não tem nada que temer de mim".
Em um momento dado, lady Ashton apartou seu olhar e concentrou sua atenção na vestimenta de encaixe que levava a boneca que tinha em braços. Com supremo cuidado, deixou-a sobre a mesa.
-Esta é a primeira vez que visito madame Lefevrbre — comentou. — Temo que necessitarei uma grande quantidade de vestidos novos.
— Estou segura de que você estará muito bem com algo que ela desenhe — replicou Julia, em forma automática.
Com um corpo esbelto e voluptuoso como o de lady Ashton, era provável que estivesse elegante até vestida com um saco de estopa.
— É uma pena que não vá ser assim por muito tempo — replicou lady Ashton, aplaudindo o ventre e olhando-a com ternura. — Em questão de meses, sofrerei mudanças significativas.
As revistas tremeram nas mãos da Julia, e as apoiou sobre seu regaço. A notícia a sacudiu como um raio, conver-tendo a seus pensamentos em um caos. "Por Deus, um menino!" O filho de lorde Savage. Consciente de que lady Ashton a observava com atenção, recuperou-se o suficiente de sua confusão para aparentar um grande interesse em um dos modelos. Perguntou-se se lorde Savage já estaria informado dessa gravidez antes, se saberia agora, e como se sentiria a respeito...
Zangado, talvez. E apanhado. Sobretudo, responsável. Não seria tão desumano para abandonar a uma mulher em cujo ventre se gerava um filho dele. Havia-lhe dito que não tinha intenções de casar-se com lady Ashton... que queria casar-se por amor. Agora, esse sonho era impossível. Julia esteve tentada, quase, de compadecê-lo, mas não se podia negar que ele mesmo se colocou na presente situação. Bom casal faria ele com esta mulher calculadora: os dois eram morenos e exóticos, os dois seguiam inflexíveis impulsos em detrás do que queriam.
Bom, lorde Savage teria que ver-se com as circunstâncias que ele mesmo tinha criado, e Julia redobraria seus esforços por manter-se longe dele. Que ele e lady Ashton resolvessem seus problemas; ela tinha que ocupar-se de sua própria vida.
Para alívio da Julia, a grata voz de madame Lefevrbre interrompeu seus pensamentos quando lhe indicou que fosse à parte de atrás da loja para realizar a prova. Ficou de pé e forçou um sorriso, que dirigiu a lady Ashton.
— Bom dia — murmurou. — Lhe desejo o melhor.
A outra respondeu com uma sacudida de cabeça, evidentemente satisfeita do que tinha obtido essa manhã.
Fazia pouco, Julia tinha recebido carta de sua mãe, Eva, e sabia em que preciso momento seu pai estaria ausente do Hargate Hall. Ele ia com frequência a Londres para assistir a reuniões no clube ou encontros com seus assessores financeiros. Julia podia visitar sua mãe uma vez ao mês ou cada dois meses; quase nunca desperdiçava essa oportunidade de fazer a viagem de uma hora em carro para visitar a casa de sua família. Nunca sabia no que estado encontraria a Eva, pois sua saúde era irregular: às vezes boa, às vezes, má.
Esse dia, Julia teve o gosto de encontrar a sua mãe sentada em sua sala privada, com uma ligeira manta bordada sobre os joelhos. A cútis da Eva estava mais luminosa que de costume, e sua expressão era serena. Sobre o chão, perto de seus pés, havia um cesto com um trabalho ao meio fazer. Eva abriu os braços lhe dando a bem-vinda, e Julia se precipitou a abraçá-la.
— Tira-me o fôlego — exclamou Eva, rindo, ante o forte apertão de sua filha. — Caramba... acredito que algo aconteceu da última vez que veio.
— Trouxe-te um presente.
Abriu o cordão de sua bolsa, tirou o pequeno estojo e deixou cair o reluzente alfinete de rubis em sua mão.
— Foi um presente que me fez um admirador — disse, com indiferença. — decidi que seria muito mais adequado para ti que para mim.
Por muito que gostasse da peça, não podia conservá-la. Queria desfazer-se de tudo aquilo que recordasse a lorde Savage.
— OH, Julia... — exclamou Eva em voz firme, ao ver o ramo adornado com gemas.
Prova-lhe, a animou Julia, sujeitando o broche no decote branco que adornava o pescoço de sua mãe. — Aí está: agora sempre terá rosas, qualquer seja a estação.
Não deveria aceitar lhe disse isso Eva, levantando sua mão para tocar o delicado broche. — É muito valioso; se seu pai o visse...
Ele nunca nota estas coisas. E se chegasse a notá-lo, pode lhe dizer que lhe deixou isso um amigo recentemente desaparecido — aconselhou-lhe Julia, olhando a sua mãe com sorriso radiante. — Não rechace meu presente, mamãe. Vai à perfeição.
— Está bem — disse Eva, sua expressão se limpou, e se inclinou para dar um beijo a sua filha. — Quero que me conte deste teu admirador. É por isso que está tão animada? Ou é que o senhor Scott te atribuiu o papel que desejava na nova obra?
— Nenhuma dessas coisas — respondeu Julia, olhando-a aos olhos, e sentindo que suas bochechas se ruborizavam. — Eu... conheci-o, mamãe.
Eva ficou olhando-a, sem compreender até que, pouco a pouco, caiu na conta. Não teve necessidade de perguntar quem era "ele". Seus lábios se moveram mas não emitiu som.
— Como? — perguntou ao fim, em um sussurro.
— Por pura casualidade. Foi em uma festa de fim de semana. Para ouvir seu sobrenome, voltei-me e aí estava ele. Ele não sabe quem sou eu. Não pude dizer-lhe.
Eva meneou lentamente a cabeça. Via-se o pulso pulsar na fina pele de suas têmporas.
— OH, Julia — exalou, em voz débil e atônita.
— Ele me convidou para jantar — continuou Julia, sentindo um alívio indescritível ao poder contar a alguém o que tinha acontecido. — Para ser mais precisa, fui obrigada. Ele prometeu ao senhor Scott uma generosa doação ao teatro em troca de minha companhia, por isso acessei.
— Jantou com lorde Savage? Julia assentiu com vigor.
— Sim, faz uma semana, em sua propriedade de Londres.
— E não lhe há dito...
A voz da Eva foi perdendo-se até o silêncio.
— Não, não pude. E ele nem o suspeita. Para ele, não sou mais que uma atriz em quem está interessado — disse, e apertou com mais força as mãos magras de sua mãe. — Ele diz ser solteiro. Acredito que se nega a reconhecer nosso matrimônio.
No rosto da Eva apareceu uma expressão de culpa.
— O que opina dele, Julia? Parece-te atraente?
— Bom, eu... — titubeou Julia, retirando as mãos e brincando com as dobras de sua saia, dobrando com os dedos a musselina de cor verde água. — Qualquer diria que é arrumado. E, por certo, é um homem fascinante — sorriu contra sua vontade. — Penso que temos muitos defeitos comuns. Ele é reservado e desconfiado e, ao parecer, está resolvido a controlar cada aspecto de sua vida de modo que ninguém possa fazer o que seu pai lhe fez faz tantos anos — sacudiu a cabeça e lançou uma gargalhada. — Não me surpreende que nunca tenha querido me conhecer! Acredito que nunca pensa, sequer, na Julia Hargate, salvo com a esperança de que eu tenha desaparecido da face da terra, de algum jeito.
— Isso não é verdade, Julia replicou Eva e, suspirando, apartou a cara e adotou uma atitude tensa e incômoda ante o que estava a ponto de revelar. — Faz três anos, lorde Savage veio ao Hargate Hall exigindo saber onde estava. Nós, é obvio, não lhe dissemos nada exceto que estava fora do país e que não tínhamos contato contigo. Após, visitaram-nos cada tanto pessoas empregadas por ele que estavam fazendo novas investigações relacionadas contigo. Não te caiba dúvida de que lorde Savage esteve tratando de te encontrar.
Julia a olhou, confundida.
— Por que... Por que não me hão dito que ele estava me buscando?
— Não me pareceu que estivesse pronta para enfrentar a lorde Savage. Eu queria que você decidisse o momento. Se alguma vez tivesse desejado conhecê-lo, poderia te haver aproximado dele por sua própria vontade. E seu pai não queria que Savage te encontrasse por temor a que reagisse de maneira impetuosa e perdesse o título e a posição que ele tinha obtido para ti.
Julia lançou uma exclamação de frustração e se levantei de um salto.
— É que não ides cansar-lhes alguma vez de me manipular? Deveriam-me haver isso dito! Eu não sabia que Savage queria ver-me!
— Que diferença teria havido? — perguntou sua mãe em voz firme. Nesse caso, teria querido vê-lo?
— Não sei. Mas sei que teria que ter podido decidi-lo eu mesma!
— Sempre tiveste essa possibilidade — assinalou Eva. — Poderia havê-lo conhecido faz muito tempo, mas preferiu evitá-lo. A outra noite mesma teve a oportunidade de lhe dizer quem foi e optou por guardar silêncio. Como posso eu saber o que é o que você quer se você mesma não sabe?
Julia passeou, enlouquecida, pela sala.
— Quero ser livre dele! Meu matrimônio com o Savage teria que ter sido desfeito faz muito tempo. Estou segura de que ele deseja acabá-lo tanto como eu, sobretudo depois do que me há dito lady Ashton.
— Quem é lady Ashton? Por que a menciona?
— Ela é a querida dele — respondeu Julia com amargura. — E afirma estar grávida dele.
— Grávida — repetiu Eva, impactada, embora, pelo geral, evitava as palavras contundentes. — OH... que terrível complicação.
— Absolutamente. A situação é muito singela. Vou cortar todo laço com lorde Savage.
— Julia, rogo-te que não atue de maneira precipitada.
— Precipitada? Levou-me anos tomar esta decisão. Penso que ninguém poderia me acusar de que me precipitei em nada.
— Passaste muito tempo evitando as consequências de seu passado. Evitando a ele — disse Eva com ardor. — Tem que enfrentar a seu marido, ao fim, lhe dizer a verdade e resolver juntos a situação.
— Ele não é meu marido, posto que eu jamais o aceitei como tal. Este mal chamado matrimônio não foi outra coisa que uma farsa. Não me resultará difícil achar a um advogado que confirme inválida e o notifique a lorde Savage.
— Depois, o que? Assim será pelo resto de nossa vida? Terei que ver-te em segredo o tempo que fica? Alguma vez tentará fazer as pazes com seu pai nem te decidirá a perdoá-lo?
Para ouvir a menção de seu pai, a mandíbula da Julia ficou tensa. — Ele não deseja meu perdão.
— Mesmo que fosse assim, você tem que dar-lhe não pelo bem dele, mas sim pelo teu — repôs Eva, com seus olhos transbordantes de amor e de súplica, — já não é uma moça rebelde, Julia. É uma mulher independente, de forte ânimo, muito mais forte que o meu. E mesmo assim, não deve perder a parte amável de sua personalidade, essa parte terna e compassiva. Se alimentar essa amargura dentro de ti, não sei o que será de sua vida. Apesar de tudo, sigo tendo os mesmos sonhos com respeito a ti, iguais aos que tem qualquer mãe com respeito a sua filha: que tenha um marido, um lar e uma família...
— Não os terei com lorde Savage — teimou Julia.
— Falarás com ele, ao menos?
— Não posso... — começou a dizer Julia, e a interrompeu uma vacilante chamada à porta.
Era Polly, uma criada que tinha estado empregada no lar dos Hargate fazia vinte anos. Era uma mulher sem senso de humor, mas bondosa, de rosto pequeno que recordava ao de um mocho. A Julia sempre havia caído bem por sua inalterável devoção a sua mãe.
— Senhora — disse Polly em um murmúrio a Eva, — há um visitante que pede ver lorde Hargate. Hei dito que o senhor não está em casa... então, perguntou por você.
O semblante da Eva refletiu preocupação. Por causa de sua má saúde, estranha vez recebia uma visita inesperada.
— Não quero perder o pouco tempo que tenho para estar com minha filha — disse. — Por favor, lhe diga que venha mais tarde.
— Sim senhora, mas... é que se trata de lorde Savage.
— Lorde Savage está aqui? — perguntou Julia, atônita. Depois do assentimento da criada, lançou uma fileira de obscenidades de tal tamanho que as duas mulheres a olharam assombradas. — . Ele não deve saber que estou na casa — disse, indo para a habitação vizinha, outra sala que pertencia à suíte privada da Eva. — Mamãe, fá-lo passar e averigua o que quer... mas não lhe diga nada de mim.
— O que vais fazer? — perguntou Eva, evidentemente desconcertada.
— Vou esconder-me aqui perto. Por favor, mamãe, não lhe diga nada... agora não estou em condições de adotar nenhuma decisão.
Julia lhe soprou um beijo e desapareceu na sala contígua.
Damon só tinha estado em duas ocasiões em sua vida, antes desta, na propriedade dos Hargate. A primeira vez, o dia de suas bodas, quando ele tinha sete anos. A segunda, três anos atrás, quando tinha ido a eles para averiguar o paradeiro da Julia. Encontrou-se com que lady Hargate era uma mulher pálida e calada, de voz e aspecto apagados. Era de imaginar que lorde Hargate devia ser um indivíduo frio, dessa classe de homens que se consideram superiores a qualquer outra pessoa com a que se cruzam. Desde aquele dia, Damon se perguntava com frequência a quem puxaria Julia Hargate, a sua tímida mãe ou a seu autoritário pai. Nenhuma das duas possibilidades lhe atraía.
Damon aguardou com paciência no vestíbulo de entrada. O interior da casa tinha um aspecto luxuoso, que intimidava quase como uma igreja, com seus céus rasos abobados e seu aroma de madeira encerada. Como teria sido crescer em um ambiente assim para uma menina pequena? Teriam ressonado nesse recinto os gritos caprichosos da Julia Hargate, ricocheteando nos altos céus rasos? , possivelmente, teria jogado em silêncio, em algum lugar próprio, perdida em suas fantasias? A infância do mesmo Damon, com suas ausências e incertezas era, com muito, preferível a qualquer dessas possibilidades.
Onde estaria Julia, nesse momento? Aonde fugiria detrás ter sido criada em um lugar como este? Fugir... Cruzou por sua mente a lembrança da Jessica Wentworth, a noite que se conheceram na festa de fim de semana, e do que lhe havia dito: "Jamais conheci a uma pessoa que se sinta em paz com seu passado. Sempre existe algo que nós gostaríamos de trocar ou esquecer..."
A volta da criada interrompeu seus pensamentos.
— Lady Hargate o receberá, milord, mas não tem muito tempo. Por favor, senhor, tenha em conta que sua saúde é delicada.
— Entendo-o.
A criada o conduziu para a saída do vestíbulo, precedeu-o pela escada, andaram por corredores atapetados, ante intermináveis extensões de madeira esculpida. Damon não sabia bem o que iria dizer a lady Hargate. Tivesse preferido encontrar ao pai da Julia e fazer o que fosse para obrigá-lo a revelar o paradeiro de sua filha. Mas, por desgraça, não era possível ameaçar nem amedrontar a uma mulher doente.
Uma mãe doentia... Damon caiu na conta de que essa era outra semelhança que compartilhava com a Julia Hargate. Fazia anos, sua própria mãe tinha morrido de tísica, com seu corpo em um estado de lastimosa fragilidade e sua mente sempre arrasada pela constante preocupação que lhe causava a sorte de sua família. Que injusto que uma mulher que ansiava estabilidade se casou com um jogador compulsivo. Ah, se Damon tivesse sido capaz de protegê-la de seu pai, de lhe dar a paz e a segurança que ela merecia... A consciência de que tinha falhado a sua mãe o perseguiria toda a vida.
Não pensava abandonar a Julia Hargate e carregar com ela também sua consciência. Seu sentido da honra lhe exigia que a ajudasse em qualquer forma que fosse possível.
Também tinha uma dívida de responsabilidade para com Pauline, mas havia uma diferença entre ambas as situações. Julia era vítima de circunstâncias que não tivesse podido controlar. Pauline, pelo contrário, fazia todo o possível para manipulá-lo; estava seguro de que sua gravidez não tinha nada de acidental.
Entrou em uma sala de recibo decorada em tons rosados claros e salmão, e viu lady Hargate sentada em uma cadeira grande. Sua pose rígida, a forma em que se mantinha erguida, com suas costas retas, o modo em que lhe estendia a mão, sem levantar-se, tinha um pouco de estranhamente familiar. Tinha o mesmo aspecto que ele recordava, como o de um pássaro que preferia a proteção de sua luxuosa jaula que o mundo que a chamava desde fora. Sem dúvida, deve ter sido, em outro tempo, uma mulher encantadora.
Damon beijou com respeito sua mão magra.
— Pode sentar-se a meu lado — disse, e ele a obedeceu imediatamente.
— Lady Hargate peço-lhe que me desculpe pelo inoportuno de minha visita...
— É um grato prazer vê-lo - interrompeu ela com doçura, — além de que já tinha sido bastante adiado. Diga-me, como está sua família?
— Meu irmão William está bem. Infelizmente, meu pai sofreu várias hemorragias cerebrais e está muito debilitado.
— Lamento-o — disse ela, em tom carregado de simpatia.
Damon guardou silêncio um momento, pensando em como continuaria. Não tinha interesse em uma conversação corriqueira e, a julgar pelo modo em que ela o olhava, estava esperando que ele mencionasse a Julia.
— tiveram vocês notícias de sua filha? — perguntou, bruscamente. — Sem dúvida, terá tido alguma novidade dela, posto que passaram três anos.
A mulher respondeu em forma evasiva, mas amistosa.
— Seguiu procurando-a, lorde Savage?
Damon assentiu, olhando-a com expressão significativa.
— Sim, e não tive sorte. Ao parecer, Julia Hargate não existe em nenhum lugar do mundo civilizado.
Julia, na habitação vizinha, apertou o ouvido à porta, incômoda por estar escutando sem que ele soubesse, mas incapaz de conter-se. Sentia uma insuportável curiosidade por saber o que lhe diria Savage a sua mãe, que tática empregaria para tratar de descobrir a verdade.
— E, em caso de que você, em um momento dado, encontrasse a minha filha — quis saber Eva, — que intenções teria com ela, milord?
— A julgar por todos os sinais, ou Julia me tem medo ou não deseja ocupar seu lugar como minha esposa. Deus é testemunha de que não a culpo. Somos desconhecidos um para o outro. Quão único eu quero saber é se ela está bem, e se tem tudo o que necessita. Depois, penso resolver a questão do modo que Julia prefira, qualquer seja este.
— E se ela quiser seguir sendo sua esposa? Existe a probabilidade de que queira conver-ter-se em duquesa, algum dia.
— Nesse caso, que ela mesma me diga — repôs isso Damon com ar sombrio e, de repente, sua tensão se liberou de seu controle. — Que eu possa vê-lo em seus olhos e ouvi-lo em sua voz. Maldita seja eu gostaria de saber que deseja para deixar de procurá-la e terminar com isto de uma vez!
— Assim que soltou a exclamação, arrependeu-se, temendo ter ofendido a tão delicada criatura. — Perdão — murmurou.
Ela desprezou a desculpa e o olhou com desconcertante compreensão.
— Por sobre qualquer outra coisa — disse ela, — o que mais deseja minha filha é poder escolher por si mesma, sempre se rebelou contra o fato de que lhe tivesse sido arrebatada uma das escolhas mais importantes de sua vida. Estou segura de que você deve sentir o mesmo.
De súbito, as emoções do Damon se precipitaram em seu interior como um rio que empurrasse uma represa a ponto de derrubar. Não tinha a ninguém no mundo em quem confiar, nem sequer no William. Sempre tinha tido que carregar ele sozinho com seus problemas e seus sentimentos, e ele era o único responsável por eles. E, nesse momento, a necessidade de dizer a alguém se transformou em uma das compulsões mais poderosas que tivesse experiência jamais.
Damon flexionou suas mãos e as estirou sobre os joelhos.
— Sim, eu sinto o mesmo — disse, em voz áspera. Não pôde olhar à mulher. — Eu sei por que Julia se rebelou e por que não pode enfrentar as consequências do que tinham acordado lorde Hargate e meu pai. Por mais que sempre tenha sabido que não era culpa dela, mesmo assim culpei a Julia por coisas com as que ela não tinha nada que ver. Odiei-a durante anos, quase tanto como odiei a meu pai por ser um esbanjador e um jogador compulsivo. Até tentei esquecer sua existência mesma. A morte de minha mãe e a má saúde de meu pai me deram a possibilidade de me inundar em um mundo de novas responsabilidades. Mas Julia sempre seguia aí, no fundo de meus pensamentos. Nunca pude amar a ninguém, nunca senti que tivesse direito a amar, por causa de sua existência. Compreendi que só poderia ser livre dela enfrentando-a.
— Eu nunca compreendi de que modo poderia afetar o matrimônio a ambos — murmurei Eva. — Naquele tempo parecia ter certo sentido. Duas famílias de bom sangue que asseguravam a seus respectivos filhos um companheiro de vida apropriado... Senti alívio, acreditando que o futuro de minha filha estava assegurado e que, algum dia, ela poderia ter um título que todo mundo respeitaria. Talvez tivesse sido um acerto respeitável para qualquer outra classe de filho, mas não para a Julia. Por desgraça, eu não sabia que minha família se veria rasgada por uma decisão que eu aceitei. Não compreendia quão forte era a vontade dela... que é — se corrigiu, com sorriso amargo.
— Como é ela? — perguntou Damon em voz espessa, para seu próprio assombro.
— Julia não se assemelha para mim nem a seu pai... ao parecer já de menina sustentava suas próprias opiniões e julgamentos em lugar de aceitar os alheios. Oxalá não fosse tão independente; eu não considero que seja uma qualidade conveniente em uma mulher. E há outro aspecto dela que é fantasioso, apaixonado e vulnerável. Ela tem infinitos aspectos e interesses. Nunca vi que fizesse algo previsível, — nada disso...
Damon contemplava a lady Hargate e, de repente, atraiu sua atenção o brilho de uma jóia entre os babados de seu pescoço, Ela seguia falando mas, de repente, o significado de suas palavras começou a escapar e só pôde perceber o fragor amortecido do tamborilar de seu coração. Apartou seu olhar para ocultar uma expressão que pudesse trair seus pensamentos mas em sua mente ardeu uma imagem que explodiu dentro dele. Fez esforços por normalizar a respiração.
A mulher levava o broche de rubis que ele tinha dado a Jessica Wentworth.
Não existia outro como esse no mundo, e não havia possibilidades de que lady Hargate o tivesse recebido de ninguém que não fosse...
O tinha dado sua filha... Jessica Wentworth... Julia Hargate...
Damon não conseguia deixar de olhar fixamente o broche de rubis. O tinha comprado para a Jessica Wentworth e tinha tido o prazer de imaginar que ela usaria algo que lhe tinha dado. Muitas coisas começavam a cobrar sentido: sua atitude esquiva, seu ausente e misterioso marido, seu reconhecimento imediato das rosas estranhas que tinha dado sua mãe fazia muitos anos.
As perguntas queimavam em sua mente, e as conclusões subsequentes fizeram que sua boca se endurecesse amargamente. Por que não lhe havia dito quem era? Que jogo estava levando adiante? Ele tinha acreditado que ela tinha sentido por ele a mesma atração que ele por ela, mas possivelmente tudo tinha sido uma ilusão. Ela era atriz e talentosa. Podia ter planejado apaixoná-lo enquanto, para seus adentros, ria porque ele ignorava que ela era sua esposa.
Seu sangue se agitou a influxos da ira e o orgulho ferido. Ardia em desejos de lhe pôr as mãos em cima e estrangulá-la pelo que lhe tinha feito passar. Três anos de busca infrutífera, enquanto ela se ocultava no mais público dos lugares possíveis: o teatro. Tinha imaginado a Julia Hargate como uma frágil pomba que se refugiava para proteger-se das insuportáveis consequências de seu matrimônio; em troca, ela era uma atriz de êxito e possuía habilidade para enganar.
Não era de estranhar que sua família não queria admitir o que tinha sido dela. Era insólito que uma jovem de fortuna e boa família se dedicasse à cena. A maioria dos pares de lorde Hargate lançariam exclamações desdenhosas e afirmariam que Julia era uma desgraça. Mesmo assim, Damon tinha consciência de uma furtiva admiração pela audácia dela. Fazia falta valor para obter o que ela tinha obtido: sobreviver, não, prosperar sem apoiar-se em outra coisa que em seu próprio talento. Fazia tremendos sacrifícios e encarado graves riscos para alcançar seu objetivo. O despeito pelo matrimônio arrumado e o desejo de contrariar os intuitos de seu pai teriam sido muito potentes.
Ele tinha lutado contra os mesmos sentimentos durante todos esses anos, só que tinham reagido de maneira diferente às mesmas circunstâncias. Julia tinha deixado tudo de lado: sua reputação, sua segurança e até seu sobrenome. Ele, por sua parte, tinha ocupado a posição de seu pai como cabeça de família e havia resolvido controlar não só sua própria vida mas também as de todos os que o rodeavam.
Damon manteve os olhos fixos no rosto de lady Hargate, e sentiu um involuntário impulso de piedade por ela. Dava a impressão de ser uma mulher bondosa embora mal preparada para viver com um marido dominante e uma filha voluntariosa. Lady Hargate, por sua parte, olhava-o com expressão interrogante, pois tinha percebido uma mudança em sua expressão.
— Compreendo que Julia não queira ser achada — disse Damon com calma forçada, — mas isto já se prolongou muito. Eu tenho obrigações que você não conhece. Preciso tomar importantes decisões, e devo fazê-lo logo. Esperei durante anos a que Julia aparecesse. Já não posso esperar mais.
Seu olhar direto incomodou lady Hargate.
— Sim, lorde Savage, entendo-o. Se eu pudesse enviar uma mensagem a Julia, trataria de convencê-la de que se encontrasse com você.
Antes que Damon pudesse replicar, outra voz interveio na conversação:
— Não o fará!
Os dois elevaram a vista ao mesmo tempo, viram o homem que tinha entrado na sala... e Damon ficou de pé para enfrentar a seu sogro, lorde Hargate.
— Edward! — exclamou Eva, e seu rosto ficou branco de consternação. — Não esperava que retornasse tão logo.
— Foi uma sorte que o fizesse — repôs seu marido, com o rosto crispado em uma expressão altiva e indignada. — Teria que te haver negado a receber a lorde Savage até que eu estivesse presente para vê-lo, querida.
— Não podia rechaçar ao marido da Julia...
Edward Hargate não fez caso do débil protesto de sua esposa e cravou um largo olhar no Damon, que a retribuiu. Durante os últimos dois anos, tinha envelhecido muito, seu cabelo resistente havia convertido em uma juba estriada de prata. Uma rede de linhas finas não tinha contribuído a suavizar seu rosto a não ser, tinha lhe dado a aparência de uma talha de granito gasta pelo tempo. Seus olhos eram pequenos e negros como olivas e estavam sombreados por espessas e despenteadas sobrancelhas. Era um homem alto que não tinha um grama de gordura a mais e que parecia exigir tanto a si mesmo como a outros.
— A que devemos o prazer de sua inesperada visita? — perguntou ao Damon em tom carregado de sarcasmo.
— Você já sabe — respondeu este, cortante.
— Não deveria ter vindo. Acredito ter falado com claridade que, indo a nós, não averiguará nada a respeito de nossa filha.
O rosto do Damon se manteve inescrutável, face à fúria que crescia e se estendia através de seu ser. Quis equilibrar-se sobre o homem maior e varrer de sua cara esse ar de complacente superioridade. Era evidente que Hargate não sentia o menor remorso por nada do que tinha feito nem lhe importava ter ferido a alguém.
— Esta situação não a provoquei eu — disse Damon em voz baixa. — Tenho direito de saber que foi feito a Julia.
O pai pôs-se a rir com aspereza.
— Não quererá saber a vergonha que conduziu a todos nós... a si mesmo, a sua família e inclusive a você, seu marido. Faça o que queira com respeito a ela, mas não mencione seu nome em minha presença.
— Edward - disse Eva em tom de lástima, com a voz quebrada. — Não entendo por que as coisas têm que ser assim.
— Ela escolheu isto, não eu — repôs ele com vivacidade, sem comover-se ante a lágrima que escorregava pela bochecha magra de sua esposa.
No quarto vizinho, Julia estava imóvel, esmagada contra a parede junto à porta, escutando o encontro entre lorde Savage e seus pais. Seu instinto de sobrevivência a impulsionava a fugir, sentia-se em extremo vulnerável como se uma palavra dura dos lábios de seu pai fora a fazê-la migalhas. Aterrorizava-lhe enfrentá-lo. Entretanto, a necessidade de vê-lo, de obrigá-lo a reconhecer sua presença, arrastou-a à ação. Antes de poder tomar consciência do que estava fazendo, abriu a porta e entrou no saguão com passo seguro.
Ao ver sua filha, Eva exalou uma exclamação consternada. Lorde Savage não mostrou nenhuma reação, fora da súbita rigidez de sua mandíbula. Sua aparição, em troca, produziu no Edward o efeito de um raio.
Julia se aproximou de sua mãe e apoiou uma mão no ombro magro dela. Embora tivesse a aparência de um gesto de consolo, em realidade, estava destinado a lhe dar forças. A fragilidade de sua mãe que sua mão percebia e a noção de que seu pai tinha contribuído à desdita da Eva, aumentaram a cólera da Julia, lhe fazendo alcançar novas alturas.
— Como te atreve a te mostrar aqui? — exclamou seu pai.
— Me acredite que não o faria se houvesse outra forma de que eu pudesse ver mamãe.
— Estivestes conspirando contra mim!
Julia o observou, notando as mudanças que tinha deixado o tempo nele, as novas linhas que sulcavam seu rosto, a prata que estriava seu cabelo. Perguntou-se se ele também notaria as mudanças nela, se veria que ela tinha perdido sua suavidade de moça e se conver-teu em uma mulher. Por que ele alguma vez tinha sido capaz de lhe dar a ternura paternal que ela sempre tinha desejado? Umas palavras bondosas, uma manifestação de orgulho por suas vitórias, poderiam ter trocado o curso de sua vida. Ela tivesse querido livrar-se da necessidade de seu amor, tinha-o tentado desde que tinha abandonado o lar, mas algo em seu interior se negava tercamente a renunciar aos últimos vestígios de esperança.
Subiu a seus olhos a humilhante ardência das lágrimas e se esforçou por não as deixar cair.
— Alguma vez pude te agradar — disse, olhando à cara pétrea de seu pai. — Acaso sente saudades que ao fim tenha deixado de tentá-lo? Ninguém pôde encher nunca suas elevadas expectativas.
— Você afirma que eu esperava muito de ti — repôs seu pai, elevando as sobrancelhas. — E quão único eu te pedi era obediência. Não acredito que seja uma exigência desmedida. Em troca, eu te dava luxo, educação e um marido da nobreza... que Deus me perdoe.
— Sabe por que me converti em atriz? Porque acostumava passar todo o tempo imaginando como seria a vida se você me amasse, se te importasse um ápice o que eu pensava e sentia. Voltei-me tão hábil para fingir que já não pude viver de outra maneira.
— Eu não tenho a culpa de seus enguiços! — disse Edward, lançando um olhar mordaz ao Damon. — Há um fato carregado de ironia: parecem um para o outro, ambos são rebeldes e ingratos. Bom, já não voltarei a me entremeter em sua vida, e vós não interferirão na minha. Proíbo-lhes retornar aqui.
Damon se adiantou em um movimento instintivo para parar a discussão mas, quando se aproximou da Julia, ela se apartou lançando uma exclamação de sobressalto e o olhou com uma expressão tão suplicante e impotente que o deixou estupefato. Nesse momento, ela soube que ele a compreendia, que possivelmente a compreendia mais do que ninguém jamais o faria. Ela estava possuída pela mesma combinação de orgulho e saudade que tinha tingido toda sua vida. Ela ansiava ser amada, mas a aterrorizava entregar seu coração por completo a alguém.
A mão do Damon se crispou a seu flanco. Estava a ponto de estirar-se para ela, de tirá-la de meio de tão desagradável cena. As palavras estiveram por escapar dos lábios, essas que jamais lhe havia dito, até então, a nenhuma mulher: "Vêem comigo... eu cuidarei de tudo... Eu posso te ajudar". Mas antes de que pudesse mover-se, Julia havia se tornado e fugia da sala com as costas retas e os punhos apertados. Depois de sua saída, fez-se um incômodo silêncio na habitação. Ao voltar-se, Damon viu que a cena tinha deixado a lorde Hargate impretérito.
— Quaisquer tenham sido meus enganos — disse Hargate, — não merecia uma filha como ela.
Os lábios do Damon se estiraram em uma careta desdenhosa.
— Coincido com você: ela é muito boa para você.
Hargate soprou, depreciativo.
— Tenha a bondade de partir desta casa, Savage.
Dirigiu a sua esposa um olhar de advertência, um olhar que dizia que a questão estava longe de ter concluído, e saiu da sala com passos enérgicos.
Damon se aproximou de lady Hargate, que começava a adquirir aspecto doentio, e se agachou junto a sua cadeira.
— Quer que chame uma criada? — perguntou-lhe. — Quer que venha alguém em particular?
Ela respondeu balançando a cabeça.
— Por favor — disse, em voz hesitante, — tem que tratar de ajudar a Julia. Talvez ela pareça muito forte, mas, no fundo...
— Sim, sei — murmurou ele. — Julia estará bem, dou-lhe minha palavra.
— É muito triste que isto tenha terminado assim — sussurrou a mulher. — Sempre tive a esperança de que algum dia se encontrariam e que, então...
— E então? — perguntou ele, unindo as sobrancelhas.
Ela sorriu como desculpando sua própria tolice.
— E talvez descobrissem que, depois de tudo, foram feitos um para o outro.
Damon conteve um bufo irônico.
— Essa teria sido uma solução cômoda, mas temo que as coisas não são tão singelas.
— Não — admitiu ela, olhando-o com tristeza.
Julia entrou em sua pequena casa da Rua Somerset com uma mescla de pânico e alívio. Tinha vontade de esconder-se na cama, tampar-se com as mantas e encontrar o modo de apagar esse dia de sua memória. Quando se aproximou a donzela, Sarah, Julia lhe indicou que não deixasse passar a nenhum visitante no resto do dia.
— Não quero ver ninguém, por muito importante que pareça ser.
— Sim, senhora Wentworth — disse a donzela de cabelos escuros, já habituada à inclinação da Julia pela solidão. — A ajudo com suas coisas, senhora?
— Não, eu mesma me despirei.
Julia foi procurar uma garrafa de vinho à cozinha, e logo subiu o estreito lance de escada que conduzia a seu dormitório.
— Meu deus! O que tenho feito? — murmurou para si.
Nunca teria que ter enfrentado a seu pai, posto que nada obteria com isso e, além disso, agora lorde Savage sabia quem era ela.
Perguntou-se se este estaria zangado com ela. Sim, sem dúvida, devia pensar que ela tinha estado tomando-o por tolo. E se ele decidia tomar revanche? Julia bebeu às escondidas um pouco de vinho. Deixaria passar vários dias antes de enfrentar ao Savage. Para então, talvez sua ira se esfriasse e possivelmente pudessem ter uma conversação sensata.
Julia entrou na solidão de seu dormitório movendo-se como uma sonâmbula. As paredes estavam revestidas com um papel de delicado estampado de artemísias e rosas que harmonizava com seu ondulante dossel de verde pálido e fresco. Os outros móveis que havia na habitação eram um armário e um penteadeira de mogno e uma arca com marco dourado e estofo de veludo de cor champanha. Pendiam das paredes uns retratos de atores e de cenas teatrais, além da página original de uma das obras do Logan Scott, que lhe tinha agradado depois do primeiro êxito dela no Capital.
Ela passeou pela habitação, reconfortada pela presença de seus objetos familiares, as posses que ela mesma tinha conseguido. Não havia rastros de seu passado, nem lembranças desagradáveis; só a segurança e a intimidade da Jessica Wentworth. Se pudesse voltar a viver o dia passado! Que classe de impulso destrutivo a tinha levado a revelar sua identidade a lorde Savage?
Recordou como a tinha olhado o instante prévio a que ela partiu a propriedade dos Hargate. Seu olhar a tinha atravessado; ela acreditou sentir que ele via com claridade cada um de seus pensamentos e cada uma de suas emoções. Havia e sentido impotente como uma menina, todos seus segredos ao descoberto, suas defesas destruídas.
Julia se sentou ante a mesa da penteadeira e terminou o vinho em uns goles mais. Não se permitiria pensar mais no Savage... Precisava dormir e preparar-se para enfrentar o ensaio do dia seguinte, o da nova obra do Logan. Não podia permitir que sua vida profissional se visse alterada por seus problemas pessoais.
Tirou a roupa, deixou-a cair ao chão e colocou uma singela camisola de musselina que se atava na dianteira com cinco fitas de cetim. Suspirou aliviada, tirou as fivelas do cabelo e passou os dedos por entre as desordenadas mechas loiro cinza. Tomou uma cópia de Senhora Engano, e iniciou o movimento de subir à cama quando um ruído interrompeu o silêncio da casa. Julia ficou imóvel e escutou, atenta. Duas vozes apagadas encetadas em uma discussão lhe chegaram de baixo, filtrando-se em sua habitação, e então ouviu, de longe, o grito de alarme da donzela.
Julia deixou a cópia que tinha na mão e saiu depressa de sua habitação.
— Sarah — chamou, ansiosa, correndo para a escada. — Sarah, o que acontece?
Deteve-se na borda do degrau e viu a donzela de pé no centro do vestíbulo de entrada. A porta de rua estava totalmente aberta: lorde Savage acabava de irromper em sua casa.
Ao ver sua ameaçadora figura a mente da Julia ficou em branco pelo susto. O rosto dele estava tenso, seus olhos entreabertos, cravavam seu olhar nela.
— Senhora Wentworth — balbuciou a donzela, — ele... ele entrou a força... Não pude detê-lo...
— Vim falar com minha esposa — disse Savage, turvo, sem deixar de olhar a Julia.
— Seu... — disse a criada, confusa. — Então, você deve ser o senhor Wentworth, não?
No rosto do Savage se formou um cenho crispado.
— Não, não sou o senhor Wentworth — disse, com cortante precisão.
Sem saber como, Julia conseguiu adotar uma expressão serena.
— Deve partir — disse com firmeza. — Esta noite, não estou preparada para discutir nada.
— É uma lástima — replicou ele, iniciando a ascensão da escada. — Eu estou preparado há três anos.
Era evidente que não lhe deixaria alternativa. Julia se preparou para a batalha e disse à assustada donzela:
— Pode ir deitar-se, Sarah. Até manhã.
— Sim, senhora. Até manhã — respondeu Sarah, não muito segura, jogando um olhar ao resolvido indivíduo que subia a escada.
A moça se apressou a desaparecer rumo a sua habitação tendo chegado à óbvia conclusão que não era prudente interferir.
Quando Savage chegou junto a ela, Julia levantou o queixo e lhe devolveu o olhar.
— Como se atreve a irromper em meu lar? — perguntou, agasalhando-se melhor em sua camisola.
— Que objetivo tinha tantas mentiras? Por que não me há dito a verdade a primeira vez que nos vimos?
— Você mentiu tanto como eu; disse-me que era solteiro...
— Não tenho o costume de contar segredos íntimos a mulheres que acabo de conhecer.
— Já que estamos no tema dos segredos íntimos, sabe lady Ashton que não é o solteiro que afirmava ser?
— De fato, sim sabe.
— Suponho que quererá desembaraçar-se de sua esposa e casar-se contigo, pelo bem de seu filho — disse Julia, e teve a satisfação de ver que as facções dele expressavam atônita surpresa.
— Como sabe isso? — perguntou ele com suspeita.
— Lady Ashton me disse isso quando coincidimos na loja da costureira. Ela tentou me apartar de ti... e eu lhe houvesse dito que não era necessário. Você é o último homem com quem não escolheria me relacionar.
— A quem preferiria? — perguntou, em tom zombador. — Ao Logan Scott?
— A qualquer um menos a ti!
— Por quê? — perguntou ele, baixando a cabeça e lhe lançando o fôlego quente na bochecha. — Por que te dou medo? Porque não pode menos que desejar quão mesmo eu. Julia tratou de retroceder, mas as mãos dele se apoiaram em seus ombros. Agarrava-a com firmeza e, mesmo assim, se ela tivesse querido teria podido soltar-se. Era outra coisa que a retinha, uma força potente que lhe impedia de apartar-se.
— Não sei do que está falando — disse, em tom inseguro.
— Você o sentiu a primeira vez que nos encontramos. Ambos o sentimos.
— Só quero que me deixe em paz — replicou ela, lançando uma exclamação quando ele a apertou contra seu corpo duro.
Nos olhos dele ardeu um resplendor de fogo, conver-tendo o cinza em prata fundida.
— Segue mentindo, Julia.
Ela tremeu, confundida, e permaneceu apertada contra ele, com intensa percepção de seu aroma, do calor de suas mãos, da pressão de sua ereção crescente no ventre. A ascensão e descida do peito dele seguiam o mesmo ritmo da respiração trabalhosa da Julia. Não era a primeira vez que a abraçava um homem, mas sempre tinha sido no contexto de uma cena, sempre dentro do teatro. Nunca tinham sido próprios os movimentos nem as palavras, que estavam ensaiados à perfeição. Os sentimentos se fabricaram com total habilidade para benefício do público. Agora, em troca, pela primeira vez eram reais e ela não sabia bem o que fazer.
Savage deslizou suas mãos pelas finas mangas da camisola da Julia, e seu contato infundiu um golpe de tibieza dos ombros até os pulsos nus dela. Falou-lhe com sua boca colada à bochecha dela, seus lábios roçavam a pele dela a cada palavra, muito perto de sua boca.
— A noite que foi a meu quarto, na mansão dos Brandon, eu teria dado uma fortuna por te tocar assim, algo, com tal de estar perto de ti. Prometi-me que nada me impediria de te possuir.
— Nada, com exceção de uma esposa e uma amante grávida — disse Julia, sentindo o louco palpitar de seu pulso.
Ele jogou a cabeça atrás, dissimulando o brilho intenso de seus olhos depois das espessas pestanas.
— Não estou seguro de que Pauline esteja grávida. Não sei se está mentindo, nem sei o que farei se não estiver mentindo — e, depois de uma vacilação, adicionou em tom áspero: — Quão único sei é que você é minha.
— Eu não pertenço a ninguém — replicou ela, apartando-se, cambaleando-se um pouco. — Por favor, agora vá — disse, desesperada, iniciando o caminho para o amparo de seu dormitório.
— Espera — disse Damon, detendo-a logo que havia transposto a entrada e fazendo que se voltasse para ele. — Julia...
Todos os discursos convincentes que tinha ensaiado ficaram entupidos em sua garganta. O que ele queria era lhe fazer entender que não era a classe de homem que tinha dado a impressão de ser até esse momento. Como era que sua vida, tão bem organizada, conver-teu-se em semelhante embrulho?
Tomou uma mecha do cabelo solto da Julia e que, como uma bandeira dourada, descansava sobre seu ombro e baixava até sua cintura. Fê-lo escorregar delicadamente por entre os dedos. Ela aguardou sem mover-se nem emitir nenhum som, presa da mesma sensação de iminência que ele. Era incrível que ele tivesse abrigado um ressentimento contra ela e a tivesse negado durante toda sua vida e que ela tivesse terminado sendo o que ele mais desejava.
Damon passou a mão por debaixo da queda de seu cabelo, até chegar a sua nuca e curvou os dedos em volta de sua superfície. Sentiu que os músculos dela ficavam rígidos com seu contato. Escapou dos lábios da Julia um débil protesto quando ele a atraiu para si, pouco a pouco, até que o corpo feminino ficou detento contra o masculino.
— Isto não está bem — sussurrou ela.
— Não me importa.
Fora dessa habitação, nada lhe importava: nem a vida que tão cuidadosamente tinha diagramado, nem as coisas contra as qual tinha lutado durante anos. Sepultou-as a todas no fundo de sua mente. Pôs uma mão debaixo a cintura dela e apertou os corpos até fazê-los coincidir, e até que ela estremeceu e exalou um som inarticulado.
Esperou que ela fizesse o seguinte movimento. Com movimentos delicados, ela levou suas mãos à cabeça dele, entrelaçando os dedos em seu cabelo. Bastou essa leve insinuação do contato dela para que a boca dele caísse sobre a da Julia. O prazer alagou todo seu ser, banhando os nervos e os sentidos do Damon. Encontrou-a deliciosa, sentindo as curvas de seus peitos amaciados sobre a parede de seu próprio torso, seus quadris suaves e bem torneados, que encaixavam nos seus. O rio terno de seu cabelo caía sobre os braços e as mãos dele, que cedeu ao impulso de interromper o beijo para agarrar um punhado de fios reluzentes e os esfregar contra sua bochecha.
A Julia escapou um soluço e ele a sentiu tremer contra ele.
— Queria te odiar — disse, em voz afogada.
Damon cravou sua vista no rosto dela e posou seus polegares na borda de sua mandíbula aveludada.
— Não sou nenhum santo, Julia. Menti a todo mundo, incluindo a mim mesmo, mas isso é similar ao que tem feito você. Construiu sua própria vida o melhor que pôde. E eu fiz o mesmo.
Julia sentiu que de seus olhos emanavam lágrimas e que os polegares dele enxugavam imediatamente as mornas gotas. Era um alívio poder falar sinceramente com ele pela primeira vez.
— Eu não sabia que passou anos tratando de me achar.
— Por que não me disse quem era aquele fim de semana, na propriedade dos Brandon?
— Tentava me proteger.
— Agradava-te o fato de contar com uma vantagem sobre mim.
— Não — repôs ela, imediatamente, em que pese a que um rubor traiçoeiro esquentou suas bochechas.
Os lábios dele se curvaram em um sorriso amargo.
— Alguma vez quis me dizer a verdade com respeito a quem era em realidade, não? — quis confirmar, e adivinhou a resposta ao ver que o rubor dela se intensificava. Suas mãos desceram pelo corpo dela em uma carícia de proprietário. — Não te liberará de mim com tanta facilidade, Julia.
Ela tratou de apartar-se, mas uma mão dele, no centro das costas e outra na nuca, retinham-na. Esta vez, o beijo teve uma intenção claramente sexual, com a língua dele explorando a suavidade da boca dela. Julia não pôde reprimir sua resposta e um gemido de prazer subiu a sua garganta, até que apartou com brutalidade sua cara e apoiou sua bochecha no ombro dele. Ela tinha tanta consciência como ele do desastre que estavam a ponto de provocar.
— De tudo isto não pode resultar nada — disse, com a boca contra o tecido da jaqueta dele. — Eu nunca poderia ser a classe de mulher que você quer. E você tem suas responsabilidades...
— Sempre tive responsabilidades — interrompeu ele, com a frustração vibrando em sua voz. — Iniciei cada relação com a convicção de que jamais poderia durar, de que não podia oferecer a uma mulher um sobrenome nem um vínculo permanente. E agora que encontrei a ti, não me dirá que não é o que eu quero.
— O que está dizendo? — perguntou ela, com sorriso penoso. — Que não quer uma anulação? O que poderia resultar de uma relação entre nós? Eu já não sou Julia Hargate. Converti-me em uma pessoa que não é adequada para ti, absolutamente.
— Isso não importa.
— Importará — insistiu ela, tratando de apartar-se interpondo seus braços. — Você quereria que eu abandonasse tudo aquilo pelo qual trabalhei, tudo o que necessito para ser feliz. Você não pertence à classe de homem que poderia suportar ver sua esposa sobre o cenário, abraçada, cortejada e beijada por outros homens, embora soubesse que só estariam atuando.
— Maldita seja — disse ele em voz baixa. — Já agora não posso suportá-lo.
Esmagou com sua boca a dela, pedindo entrada, devorando-a, exigindo até deixá-la sem fôlego, sem vontade, sem pensamento, sem outra coisa que a ardente necessidade de recebê-lo dentro de si.
Com dedos bruscos, ele soltou as fitas de cetim da camisola até que a musselina escorregou por um dos ombros da Julia, deixando ao descoberto a proeminência pálida de um de seus peitos. Ele percorreu o contorno com a gema de seus dedos, deixando um rastro de fogo que provocou uma dor de ansiedade no mamilo da Julia. Ela se arqueou para ele, apertando seu peito contra a mão dele, ofegando quando seu polegar brincou com a endurecida ponta.
Julia se deixou levar pela temeridade. O que aconteceria se o deixasse lhe fazer o amor? Não devia nada a ninguém, exceto a si mesma. Estava convencida de que, a essas alturas, tinha ganhado o direito de escolher por si mesma, sobretudo neste caso. Sempre se tinha disfarçado aproveitando um ou outro papel, já fosse o da Julia Hargate, o da senhora Wentworth ou o de mil personagens diferentes criados sobre o papel. Mas, neste momento, essas identidades tinham sido esquecidas e ela estava ante ele sem disfarces.
— Nunca cedi à tentação — disse ela, e suas mãos trementes subiram até os flancos do rosto magro dele. — É algo que não posso me permitir. O trabalho, a disciplina, a confiança em mim mesma, são as únicas coisas nas que posso me apoiar. Não quero pertencer a ninguém. Mas, ao mesmo tempo...
— Sim? — apressou ele, no meio do silêncio.
— Não quero estar sozinha.
— Não tem por que estar sozinha esta noite.
— Aceitaria que te concedesse uma só noite? E depois te afastaria quando eu lhe pedisse isso?
— Não sei — murmurou ele, receoso a dizer a verdade.
Uma gargalhada desesperançada escapou dos lábios da Julia, e admitiu para si que não lhe importava. De súbito, nada era tão importante como a necessidade de estar com ele, de conhecer todos os segredos íntimos que lhe tinham sido negados durante tanto tempo.
Damon captou a expressão de seus olhos e tirou sua camisola, baixando-a pelos ombros. O objeto caiu ao chão com um sussurro. Julia não se moveu enquanto o olhar absorto dele a percorria. Ela jamais teria imaginado que a contemplação do corpo dela poderia afetá-lo de maneira tão potente, fazendo-o ruborizar-se e lhe tremer as mãos, que se estenderam para ela.
Acariciou com os nódulos a pele terna debaixo dos peitos femininos e as linhas delicadas das costelas e logo sua palma se posou sobre o ventre dela. Julia conteve o fôlego quando sentiu que ele tocava os cachos que ela tinha entre as pernas e seus dedos a exploravam até que ela se apartou, balbuciando algo e sacudindo a cabeça.
Ele a seguiu imediatamente, rodeou-lhe as costas com seus braços e ela ouviu o som de sua voz debaixo como um trovão que lhe enchia os ouvidos. Sua boca procurou a dela, e ela se abriu a ele, lhe entregando o controle que tanto lhe havia custado ganhar e que cedia pela primeira vez em sua vida. Ele a levou a cama, empurrou-a sobre a colcha de seda verde, e ela, por sua parte, tirou as capas de linho e de pano que o cobriam a ele.
— Julia — disse ele, em um fio de voz, — se for me deter, rogo-te, Por Deus, que o faça agora.
Como presa de febre, ela apertou seus lábios contra o queixo e o pescoço dele.
— Quero te sentir — sussurrei. — Quero sentir sua pele na minha. A resposta do Damon foi um suspiro esmigalhado e um torvelinho de atividade, tirando a jaqueta, a gravata e a camisa. Quando levou as mãos à abertura da calça, as mãos pequenas dela apartaram as dele. Com esforço, ele esperou pacientemente enquanto seu desejo estalava em chamas ao sentir os dedos dela arrancando, atirando de suas roupas. Ela estava séria, absorta em sua tarefa, fazendo passar os pesados botões do objeto pelas pulcras casas.
Uma vez que esteve solto o último botão, Damon se sentou sobre a borda da cama para tirar os sapatos, as calças e a cueca. Depois dele se fez silêncio, e então sentiu o roçar úmido da boca da Julia onde começava sua coluna. A sensação lhe fez ficar rígido, tenso cada um de seus músculos, enquanto recebia uma sucessão de beijos que seguiram ao primeiro, começando em sua nuca e baixando até o centro de suas costas.
Ela o rodeou com seus braços, estreitando-o desde atrás, e seus peitos nus se apertaram contra as costas, também nua, dele. Caiu sobre o ombro do Damon uma mecha dos sedosos cabelos da Julia. Parecia uma sereia curiosa que estivesse descobrindo a um homem pela primeira vez, movendo seu corpo contra o dele, suas mãos suaves deslizando-se sobre a pele masculina. Ela percorreu os contornos do peito dele e se deteve para sentir melhor o palpitar de seu coração sob a palma da mão. Atreveu-se a baixar e seus dedos roçaram os músculos escuros do ventre do Damon. Ele fechou os olhos sentindo o tímido roçar em seu membro, dolorosamente ereto. Levou seus dedos trêmulos aos dela, ajudando-a a apertar até que o prazer foi tão intenso que quase o afligiu.
Damon se voltou, fê-la estender-se sobre a cama e seu corpo desceu sobre o dela. Ela atraiu, com ânsias, a cabeça dele para ela, enredando seus dedos no cabelo dele e beijando-o. Damon encheu suas mãos com os peitos dela, cobriu seus mamilos com a boca e sua língua fez erguer-se, mais ainda, essas pontas rígidas.
Julia se elevou para ele, perdida na comunhão dos dois corpos. Nos últimos minutos, conver-teu-se em uma desconhecida para si mesma, em uma desavergonhada que entregava seu corpo e sua alma à vontade de outro. Quis mais, quis aproximar-se dele mais ainda, esquecer sua própria existência na maré arrasadora do êxtase.
As mãos e os lábios dele se moviam com destreza sobre o corpo dela, provocando correntes de sensações em qualquer lugar que a tocava. Empurrou com seu joelho entre as pernas dela e ela sentiu seus dedos entre as coxas, descobrindo um princípio de umidade entre os diminutos cachos. Tão audaz intimidade lhe fez abrir os olhos e encolher-se ao ver o resplendor do abajur que havia junto à cama. Teve vontade de ficar oculta pela escuridão.
— Por favor — disse, em voz insegura, — a luz...
— Não — murmurou ele, com a boca sobre seu estômago. — Quero ver-te.
Julia tratou de protestar mas as palavras ficaram na garganta quando a cabeça dele seguiu baixando. Sentiu que a boca dele se movia cada vez mais abaixo, através da suave mata de pêlo, e a lambia no profundo, procurando os segredos que ali se escondiam. A língua dele era cálida sobre sua carne, e a fazia retorcer-se e gemer como se lhe doesse, embora não era dor o que sentia; era um encantamento muito intenso para poder compreendê-lo. As mãos dela baixaram até o cabelo dele com a intenção de apartá-lo, mas logo se curvaram sobre sua cabeça como suplicando. Atendeu-a um interminável estremecimento de prazer, e seus sentidos se galvanizaram até ficar ao vermelho branco.
Damon elevou a cabeça e deslizou o corpo sobre o dela. Julia se arqueou e suspirou, disposta a deixá-lo fazer algo que ele desejasse. Já se tinha liberado de qualquer recato virginal, e estava flexível e aberta a qualquer desejo dele. Houve uma forte pressão entre suas coxas, uma advertência de dor. Mordeu o lábio ao receber a invasão e rodeou as costas dele com seus braços, desejando com primitiva urgência que ele a possuísse; essa urgência a assombraria mais tarde, quando pudesse refletir. Mas Damon se deteve e se retirou, olhando-a com crescente incredulidade.
— É virgem — sussurrou.
Julia o rodeou com seus braços, e suas mãos pequenas se moveram pela parte baixa das costas dele acariciando, massageando em inconscientes gestos de ânimo.
— Por o que? — foi o único que atinou a dizer ele. Os olhos dela brilharam quando o olhou.
— Nunca quis a nenhum, antes de ti.
Damon beijou sua garganta estirada, sua bochecha, seus lábios trêmulos. Teve a sensação de que todo seu ser estava repleto de um desejo cegador equivalente ao que tinha sentido durante toda sua vida adulta. Com um só movimento decidido, empurrou para diante com suficiente força para derrubar a barreira de sua inocência. Sentiu-a ficar tensa entre seus braços e fazer uma brusca e veloz inspiração. Damon odiava lhe causar dor e, ao mesmo tempo, experimentou uma feroz satisfação ao saber que a possuía como nenhum homem a havia possuído. Ela era muito apertada, e em seu tenso interior se sentiu retido e envolto em um intenso calor. Deixou cair uma chuva de beijos sobre o rosto dela, mesclando-os com palavras de elogio e de desejo, tratando de reconfortá-la.
Pouco a pouco, Julia começou a relaxar-se, a adaptar-se a inflexível invasão. Ele foi terno com ela, e suas mãos brincaram sobre o corpo dela em parcimoniosa exploração. Ela tremeu ao sentir que ele penetrava mais profundamente, iniciando um ritmo lento que enviava correntes de prazer por todo seu corpo. De algum modo, a dor do começo se dissipou e foi substituída pelo impulso de elevar-se mais para ele e de recebê-lo mais a fundo. Ele acessou à demanda sem palavras, afundando-se reto e seguro nela até deixá-la sumida em outra quebra de onda de deleite. Ela sentiu que ele a agarrava pelos quadris, que seus dedos se apertavam em sua carne e lhe ouviu emitir um som baixo e atormentado quando ejaculou dentro de seu corpo. Tremente, Damon pressionou com força até que tiveram a sensação de que seus corpos se fundiram em um só.
Julia ficou sumida em uma forte sonolência durante comprido momento, depois, e descansou apoiada no oco do braço dele. Damon tinha apagado o abajur; tinham ficado em uma aprazível escuridão. Ela estava sonhando, com a cabeça ocupada por vagos pensamentos e os sentidos absorvendo a tibieza e a textura do homem que estava a seu lado.
Ela já não era a personagem misteriosa que excitava a curiosidade do público, nem a atriz que pronunciava as linhas bem ensaiadas de uma obra... ela tinha sido arrancada do passado que a atava. Girou a cabeça e contemplou o nítido perfil do homem que estava a seu lado. Lorde Savage, seu marido. Se ela o permitisse, ele dominaria sua vida. Mantê-la-ia a salvo, coberta, e a alagaria de suficiente luxo como para que já não lhe importasse estar encerrada em uma jaula de ouro. Entretanto, ela não estava disposta a permitir que ninguém a possuísse. Tinha passado a maior parte de sua vida sob a planta de seu pai, e já estava cheia.
Não ficaria à sombra de um marido como tinha feito sua mãe. Reservaria com esmero essa parte dela que se esforçou por nutrir e proteger; isso significava que qualquer tipo de relação com o Damon era impossível.
Damon despertou lentamente e ao encontrar-se em uma cama estranha se sentiu confuso. Do travesseiro, a seu lado, emanava o esquivo perfume de uma mulher. Ainda meio dormido, apertou sua cara sobre o tecido de linho cor creme. Então, voltaram flutuando os lembranças da noite passada e abriu os olhos.
Estava sozinho na cama da Julia.
Julia... Nunca tinha sido mais que um nome para ele, uma sombra do passado e, de repente, tornou-se muito real. Viu uma mancha de sangue no lençol, e não pôde tirar sua vista dela. Seus dedos se moveram, incertos, sobre a vermelha mancha. Não tinha imaginado a possibilidade de que Julia fosse virgem. Nunca antes tinha conhecido a uma mulher virgem a não ser só mulheres amadurecidas, com plena experiência em todos os aspectos da paixão. O sexo tinha sido sempre um pulo, um prazer passageiro; não a transformadora experiência da noite anterior. Julia era a única mulher no mundo que só tinha pertencido a ele.
Por que lhe tinha cedido a ele esse privilégio que não tinha dado a nenhum outro? Por certo, ele não era o primeiro homem que a tinha desejado. Despertava o apetite carnal de todos os varões de Londres. Pensou em todas as razões lógicas possíveis mas, havendo entre eles tantas perguntas sem resposta, não lhe ocorreu nenhuma.
Queria tê-la de novo na cama, nesse preciso instante. Ela era incrivelmente bela, tão despojada de artifícios, tão confiada... Quis excitá-la e reconfortá-la e acariciá-la, quis lhe fazer sentir coisas que ela jamais tivesse acreditado possível. E, depois, a ter abraçada durante horas enquanto ela dormia, e custodiar seu sonho. De repente, esta obsessão se abateu sobre ele, esta necessidade de vê-la todos os dias, todas as noites e, ao mesmo tempo, com cada fibra de seu ser soube que era um sentimento permanente. Já não podia imaginar o futuro sem ela.
Damon apartou os lençóis e andou nu, daqui para lá, pelo quarto, recolhendo as roupas caídas. Vestiu-se depressa e correu as cortinas de um verde apagado para olhar pela janela. Fora ainda era cedo e o sol matinal começava a subir sobre as chaminés e os altos telhados da cidade.
A pequena casa estava em silêncio e o único ruído o constituía dos passos da donzela que cruzava o vestíbulo da entrada. Ao ver o Damon baixando a escada, a moça se ruborizou e o olhou com receio.
— Milord — disse, — se quiser um pouco de chá e algo para tomar o café da manhã...
— Onde está minha esposa? — a interrompeu com brutalidade.
A donzela retrocedeu um ou dois passos à medida que ele se aproximava, sem saber se o considerava um demente ou não.
— A senhora Wentworth foi ao teatro, senhor. Tem ensaio todas as manhãs.
O Capital. Ao Damon irritava que Julia não o tivesse despertado antes de partir. Pensou em segui-la e enfrentar-se com ela imediatamente. Tinham muito do que falar. Por outra parte, ele tinha que ocupar-se de certos assuntos, um dos quais, e não o menos importante, tinha a ver com o Pauline. Olhou, carrancudo, à nervosa criada.
— Diga à senhora Wentworth que me espere esta noite.
— Sim, milord — respondeu a moça, retrocedendo enquanto ele ia para a porta.
Tinha sido uma manhã endiabrada no Capital. Julia sabia que estava atuando mal no ensaio, e que Logan Scott estava exasperado a mais não poder. Custava-lhe recordar sua parte. Resultava-lhe impossível concentrar-se no personagem que devia representar ou dar entrada aos parlamentos dos outros atores. Além de uma dor de cabeça que a cegava, sentia inflamada cada uma das partes de seu corpo... e, sobretudo, sua mente estava cheia de imagens da noite passada e do que tinha feito.
Em um momento de irreflexão, tinha cometido um terrível engano. A sensação de estar com o Damon tinha sido tão boa... Ela se sentia sozinha, vulnerável; tinha saudades do prazer e do consolo que ele podia lhe brindar. E, entretanto, à crua luz do dia, tudo era diferente. Uma terrível opressão se instalou dentro dela, seus segredos escapavam, fugiam fora de seu alcance antes de que ela pudesse recuperá-los. Nem o ambiente familiar do teatro conseguiu serená-la. Talvez agora Damon acreditasse que tinha direitos sobre ela. Era preciso que lhe deixasse claro que ela só pertencia a si mesma.
— Não cometa o engano de pensar que não posso te substituir — advertiu-lhe Logan pelo baixo, enquanto ela tropeçava torpemente em outra cena mais. — Ainda não é muito tarde para que confie esta parte para o Arlyss. Se não começar a demonstrar certo interesse no que está fazendo...
— Dê a parte a ela, se quer — replicou Julia, lhe lançando um olhar corrosivo. — Neste momento, não me importa.
Logan não estava acostumado a este tipo de rebelião e tirou, distraído, de seu cabelo cor mogno até deixá-lo quase em ponta. Seus olhos azuis jogaram faíscas de ira.
— Faremos a cena outra vez — disse, entredentes. Fez um gesto imperioso aos outros atores que estavam sobre o cenário:
— Charles, Arlyss e o velho senhor Kerwin. — Enquanto isso, sugiro-lhes que vão à sala de espera e repassem suas linhas. A estas alturas, não qualificaria suas atuações mais que um ponto ou duas por cima da da senhora Wentworth.
Em meio de alguns protestos, o pequeno grupo fez o que lhe dizia, aliviado de poder escapar à tensão que se vivia esse dia em cena. Logan se voltou para a Julia.
— Fazemo-lo? — perguntou ele com frieza.
Sem dizer uma palavra, ela foi para a esquerda, de onde tinha que fazer sua entrada. Nessa cena, os dois personagens principais, Christine e James, achavam-se nas primeiras angústias do amor. Era de supor que Christine, que tinha vivido protegida, estava encantada com a liberdade que lhe brindava passar por uma criada. Por outra parte, afligia-a sentir-se atraída por um simples lacaio mas era incapaz de resistir o impulso de arrojar toda precaução ao vento.
Ela fez sua entrada esforçando-se por expressar algo da mescla entre ansiedade e incerteza de seu personagem... até que viu a alta e atrativa figura do James, que a esperava. Lançou uma gargalhada de excitação e correu para ele para jogar-se em seus braços.
— Não acreditei que viesse — disse ele, fazendo-a girar ao redor, e deixando que os pés dela tocassem o chão.
Apartou-lhe um cacho da cara como se não pudesse acreditar que ela fosse de verdade.
— Não queria vir — repôs ela, agitada. — Mas não pude evitá-lo.
Com aparente irreflexão, ele se inclinou para beijá-la. Julia, por sua parte, fechou os olhos sabendo o que lhe esperava. Tinham-na beijado muitas vezes sobre o cenário, cada vez que uma cena o marcava, tanto Logan como Charles e, inclusive, uma vez, o senhor Kerwin, que fazia o papel de um ancião monarca casado com uma noiva jovem e bela. Por muito arrumado que fosse Logan, seus beijos nunca tinham comovido a Julia. Os dois eram muito profissionais para que isso acontecesse. Não era necessário que sentissem algo para convencer ao público.
Sentiu que os lábios dele tocavam os seus, mas, de repente, a lembrança da noite anterior apareceu em sua mente como um relâmpago: o calor da boca do Damon, a pressão de seus braços que a apertavam contra seu corpo, a paixão que a tinha arrasado...
Julia se separou do Logan afogando uma exclamação e olhando-o, aturdida, enquanto se tocava os lábios com os dedos trementes.
O personagem do James desapareceu e em seu lugar se viu a conhecida expressão do Logan. Estava confundido e meneava lentamente a cabeça. Em sua voz vibrava uma nota de cólera:
— Que demônios te passa?
Julia lhe deu as costas e se esfregou os braços, agitada.
— Acaso não tenho direito a estar em um mau dia, como qualquer outra pessoa? Nunca é tão áspero com os outros quando têm inconvenientes com uma parte.
— Espero mais de ti.
— Talvez nisso consista seu engano — replicou ela imediatamente. O olhar do Logan perfurou as costas da Julia.
— É evidente que sim.
Ela inspirou uma profunda baforada de ar e se voltou para ele.
— Quer voltar a provar a mesma cena?
— Não — respondeu Logan com acidez. — Já me tem feito perder muito tempo hoje. Tome a tarde livre; eu trabalharei com os outros. E te advirto que se, para amanhã, não está em perfeitas condições, darei seu personagem a outra. Esta obra significa muitíssimo para mim. Que me condenem se permitir que alguém a danifique.
Julia baixou o olhar, sentindo o aguilhão da culpa.
— Não te decepcionarei de novo.
— Será melhor que não.
— Digo aos outros que voltem?
O assentiu e, com o rosto inescrutável, indicou-lhe por gestos que partisse.
Julia lançou um suspiro e saiu do cenário para a lateral. Massageou as têmporas e os olhos, tratando de dissipar sua dor de cabeça.
— Senhora Wentworth?
Irrompeu em seus pensamentos uma voz de homem jovem e vacilante.
Julia se deteve e olhou a quem lhe tinha falado: era Michael Fiske, um cenógrafo de talento excepcional. Armado de sua pintura e seus pincéis, tinha criado alguns dos mais belos bastidores, peças tridimensionais e cortinas de fundo que Julia tivesse visto nunca. Também outros teatros tinham reconhecido o talento do Fiske e tentado arrebatar-lhe ao Capital, obrigando ao Logan a lhe pagar um salário insolitamente alto para assegurar seus serviços exclusivos. Fiske tinha informado ao Logan e a todos outros trabalhadores do Capital, fazendo ornamento de sua habitual jactância, que ele bem valia o que ganhava. Quase todos eles estiveram de acordo, para seus adentros.
Entretanto, esse dia a expressão presunçosa do Fiske estava ausente e sua atitude era de insegurança. Estava na sombra, levava em suas mãos um pequeno pacote e seu olhar era suplicante.
— Senhora Wentworth — repetiu, e Julia se aproximou dele.
— Sim senhor Fiske? — perguntou-lhe ela com certa preocupação. — Acontece algo mau?
Ele elevou seus largos ombros e apertou com mais força o pacote.
— Não exatamente. Queria lhe pedir algo... Se não lhe incomodar... — interrompeu-se, lançou um explosivo suspiro e seu rosto agradável se crispou em uma expressão de dúvida. — Não teria que havê-la incomodado. Por favor, senhora Wentworth, esqueça-o...
— Me diga — insistiu ela. sorrindo para lhe dar ânimos. — Não acredito que seja tão terrível.
Com semblante de trágica resignação, Fiske lhe estendeu o pacote envolto em papel.
— Por favor, dê isto à senhorita Barry.
Ela aceitou o objeto que lhe estendia e o sustentou com cuidado.
— É um presente para o Arlyss? Se me desculpar por perguntar-lhe por que não o entrega você mesmo?
O rosto magro do jovem se cobriu de rubor
— Todos sabemos que você é a melhor amiga da senhorita Barry. Você lhe agrada e lhe tem confiança. Se você puder lhe dar isto e lhe falar em meu nome...
Julia começou a compreender.
— Senhor Fiske — perguntou com doçura, — acaso sente você um interesse romântico para o Arlyss?
O outro deixou cair a cabeça e lançou um grunhido afirmativo.
Sua evidente sinceridade comoveu a Julia.
— Bom, não me surpreende. Ela é uma mulher atrativa, verdade?
— É a moça mais adorável, mais encantada que vi jamais — resmungou ele. — É tão maravilhosa que não posso me armar de suficiente valor para lhe falar. Quando ela está perto, sinto meus joelhos como se fossem de gelatina e não posso respirar, quase. E ela, por sua parte, não sabe que existo, sequer.
Julia sorriu com simpatia.
— Se conhecer bem a Arlyss, estou segura de que preferiria que você a abordasse em pessoa...
— Não posso. É muito importante. Já pensei em lhe confessar o que sinto, mas... Ela poderia rir de mim ou me compadecer...
— Não, eu lhe asseguro que ela não é dessa classe — se apressou a lhe dizer Julia. — Arlyss se sentiria muito afortunada de que um homem como você se interessasse por ela.
Ele negou com a cabeça e cruzou e descruzou os braços.
— Eu não sou um cavalheiro elegante — disse ele, pesaroso. — Não tenho roupas finas e nenhuma grande mansão... E não tenho muitas expectativas. Ela não me quererá.
— Você é um bom homem e um pintor de maravilhoso talento — replicou Julia, para lhe dar confiança, embora por dentro suspeitou que talvez tivesse razão.
Arlyss sempre se deixou convencer por brilhantes promessas e obséquios tentadores. Nos últimos anos, tinham passado por sua vida uma sucessão de homens enfastiados que a usavam para satisfazer seus próprios prazeres egoístas e logo a abandonavam sem o menor remorso. Além disso, era preciso ter em conta o amor sem esperanças que Arlyss tinha pelo Logan Scott, quem, por certo, jamais pensaria, sequer, em uma relação com ela. Arlyss não tinha oculto o fato de que lhe atraíam os homens poderosos. Que bom seria que se apaixonasse por alguém como Fiske, um homem jovem e sincero que, embora não era rico, respeitava-a e a amava.
— Darei seu presente a ela — disse Julia, em tom firme. — E lhe falarei em seu nome, senhor Fiske.
De algum modo, o semblante dele refletiu alívio e desespero ao mesmo tempo.
— Obrigado... Embora, de todos os modos, é uma causa perdida.
— Não dê isso por seguro — disse Julia, lhe tocando o ombro a maneira de consolo. — Verei o que posso fazer.
— Que Deus a benza, senhora Wentworth — disse ele, e se afastou com as mãos nos bolsos.
Julia se encaminhou para a sala de espera, onde encontrou a outros atores ensaiando por sua conta. Dirigiu-lhes um sorriso envergonhado.
— O senhor Scott quer que voltem para cenário. Lamento-o, mas acredito que o pus de muito mau humor. Rogo-vos que me desculpem.
— Não é necessário que te desculpe — lhe assegurou o senhor Kerwin, e suas costeletas se moveram ao ritmo de sua risada. — Todos temos nossos dias difíceis de vez em quando, até uma grande atriz como você, querida.
Julia sorriu agradecida e fez um gesto a Arlyss enquanto outros saíam da sala.
— Vêem aqui, um momento... Tenho um presente para ti.
— Para mim? — perguntou Arlyss, franzindo a testa. — Não é meu aniversário.
— Não é de minha parte, mas sim de um admirador secreto.
— Sério? — assombrou-se Arlyss que, contente e adulada, brincou com seus cachos. — De quem é, Jessica?
Julia lhe estendeu o pacote.
— Abre-o e olhe se pode adivinhar.
Arlyss lhe arrebatou o pacote, rindo de excitação, e rasgou o papel com infantil regozijo. Depois de ter destruído várias capas de papéis protetores, as duas contemplaram com deleite o presente. Era um pequeno e delicioso retrato do Arlyss, vestida de Musa Cômica, com sua pele luminosa, suas bochechas rosadas e um doce sorriso em seus lábios. Era uma interpretação idealizada, pois tinha representado sua figura um pouco mais esbelta do que era em realidade, seus olhos um pouco maiores, mas não cabia dúvida de que era um retrato do Arlyss. A habilidade e o talento do artista eram notáveis, e a obra resultante era um trabalho de delicados matizes que captava a essência alegre do sujeito.
— É maravilhoso — murmurou Julia, pensando que Michael Fiske poderia ter um futuro na pintura, além da cenografia.
Arlyss observou o retrato com evidente prazer.
— É muito bela para tratar-se de mim! Bom, quase. Julia tocou com cuidado a borda do marco dourado.
— É óbvio que o pintou alguém que te ama.
Por completo perplexa Arlyss moveu a cabeça.
-Quem pode ser?
Julia lhe lançou um olhar significativo.
-Conhece algum cavalheiro capaz de pintar algo assim?
— A ninguém por aqui, embora... — Arlyss estalou em uma gargalhada incrédula. — Não me diga que se trata do senhor Fiske! OH, Por Deus, ele não se parece em nada ao tipo de homem em quem eu estou acostumada a me interessar.
— Isso é verdade. Ele é honesto, trabalhador e respeitoso: bem diferente dos homens dissipados de quem te queixa há tanto tempo.
— Ao menos, eles são capazes de me manter.
— O que lhe dão eles? — perguntou Julia com suavidade. — Algum presente? Uma ou duas noites de paixão? Depois, desaparecem.
— É que ainda não encontrei ao mais apropriado.
— Talvez, agora sim o tenha encontrado.
— Mas, Jessica, é um cenógrafo...
Julia olhou a sua amiga diretamente aos olhos verdes mar.
— Seja bondosa com o Fiske, Arlyss; estou convencida de que ele te quer de verdade.
A miúda atriz se sentiu incômoda e franziu o sobrecenho.
— Agradecer-lhe-ei o retrato.
— Sim, fala com ele — a animou Julia. — Possivelmente descubra que te agrada. A julgar por sua obra, é um homem de espírito profundo; além disso, é bastante arrumado.
— Pode ser que tenha razão — disse Arlyss, pensativa. Jogou um olhar mais prolongado ao retrato e o deu a Julia. — Não devo fazer esperar ao senhor Scott. Teria a bondade de deixar isto em meu camarim?
— Claro.
Enquanto Arlyss se afastava, Julia cruzou os dedos. Um sorriso irônico se estendeu por sua cara. Ela estava convencida de que era uma mulher mundana, cínica quase; entretanto havia uma parte dela que era incuravelmente romântica. Esperava que Arlyss encontrasse o amor em alguém que a apreciasse e não lhe importasse quais fossem seus defeitos nem que enganos tivesse cometido no passado. Julia reconheceu com amargura que se sentiria melhor sabendo que alguma outra pessoa era feliz no amor, por mais que sua própria situação fosse desventurada.
Pauline levantou sua vista da montanha de pacotes que havia sobre o atapetado de seu dormitório, onde preponderavam o malva e o dourado. Estava arrebatadora, rodeada de montanhas espumosas de fitas e tecidos, com seu cabelo escuro sensualmente revolto, caindo sobre seus ombros nus. Seus lábios se abriram em sorriso incitante quando Damon entrou na habitação.
— Chega bem a tempo para ver minhas novas aquisições, — lhe informou. — Esta manhã, fiz uma agradável saída de compras — disse e, ficando de pé, sustentou da altura de seus peitos uma espécie de capa que parecia uma fina teia de aranha dourada. — Olhe, querido: está feito para usar sobre outro vestido, como adorno, mas quando estivermos sozinhos o usarei assim, sobre a pele.
Passou-o por sua cabeça com movimentos graciosos e deixou que o tecido de resplandecente malha se deslizasse sobre seu corpo, ao mesmo tempo que deixava cair o vestido que levava debaixo. A trama dourada realçava a terminante beleza de seu corpo e não fazia nada por ocultar o triângulo escuro do púbis nem as pontas entre rosadas e marrons dos mamilos eretos. Em seus olhos aveludados brilhou a excitação e, lambendo os lábios, aproximou-se lentamente a ele.
— Me faça o amor — murmurou. — Tenho a impressão de que faz séculos que não me toca.
Damon olhou a Pauline sem expressão, assombrado de comprovar que não lhe causava a menor impressão a mesma mulher a que, em outro tempo, tinha achado tão excitante.
— Não vim para isso — disse, conservando seus braços aos lados mesmo que ela ronronava e se esfregava contra ele. — Quero falar.
— Sim... depois.
Tomou a mão e tratou de levá-la para seu peito.
Carrancudo, Damon retirou a mão.
— Quero saber o sobrenome de seu médico. que confirmou sua gravidez.
O interesse sexual desapareceu do semblante de Pauline e foi substituído por uma expressão preocupada e defensiva.
— Por o que?
Damon seguiu olhando-a, imperturbável.
— Como se chama?
Pauline foi até a cama e se envolveu na grossa colcha de brocado. Com felina frouxidão, riscou um desenho sobre o tecido com a gema de um dedo.
— É o doutor Chambers. É um médico muito velho e respeitado, que atendeu a minha família durante anos.
— Quero conhecê-lo.
— É muito doce de sua parte que te interesse, querido, mas não é necessário que...
— Farás você o acerto, ou devo fazê-lo eu?
A pele do Pauline se cobriu de rubor, embora Damon não pudesse discernir se era de culpa ou de ira.
— Di-lo de um modo tão acusador... Não crê que esteja te dizendo a verdade com respeito ao menino?
— O que acredito é que esta acidental gravidez foi oportuna para ti — disse ele, sem rodeios. — E penso que já é hora de que acabemos com os jogos.
— Eu nunca joguei contigo...
-Ah, não? -interrompeu-a ele com sorriso depreciativo. Pauline abandonou sua atitude felina e se sentou erguida. Não quero discutir nada contigo quando está tão contrariado!
Ele a olhou com frieza.
— Quero que arrume uma entrevista para mim com o doutor Chambers.
— A ele não pode lhe dar ordens como se fosse um criado, e a mim tampouco, já que estamos entendidos.
— Acredito que paguei por ter esse privilégio. Pauline lançou uma exclamação de raiva e lhe arrojou um almofadão dourado que aterrissou no chão, aos pés dele.
— Não tem por que te dar esses ares de superioridade. Eu não tenho a culpa de que me deixasse grávida, tampouco que tenha que carregar com uma esposa a que não pode localizar. Fez algum avanço nesse sentido?
— Isso não é teu assunto.
— Tenho direito, ou seja, se meu filho será bastardo!
— Já te hei dito que me ocuparei de ti e do menino. E tenho intenções de atener-me a essa promessa.
— Isso dista muito de te casar comigo!
— Meu pai me obrigou a contrair um matrimônio de conveniência. Seria capaz de ir ao inferno antes de permitir que você, ou qualquer outra pessoa, volte a me fazer o mesmo.
— De modo que agora se trata do que lhe têm feito a ti? — perguntou Pauline, elevando a voz. — E o que me diz do que me têm feito? Fui seduzida por ti, fecundaste-me, e agora, ao parecer, está pensando em me abandonar...
— Mal se poderia dizer que você fosse uma escolar inocente — disse ele, enquanto um sorriso irônico cruzava seu rosto ao recordar a escandalosa perseguição a que o tinha submetido Pauline, as mutretas que tinha empregado para atraí-lo a sua cama. E agora afirmava que ela tinha sido seduzida? — Foi uma viúva rica e arrastava uma história de aventuras que se remontava a antes da morte de seu ancião esposo. Eu não fui seu primeiro protetor, e Deus é testemunha de que não serei o último.
— É um canalha sem sentimentos — disse ela, e seu formoso rosto se crispou em uma expressão desdenhosa. — Vá. Saia daqui neste mesmo momento! Estou segura de que faria mal ao menino que eu me pusesse nervosa.
Damon a agradou com uma reverência zombadora e abandonou a explosiva e perfumada atmosfera do dormitório perguntando-se como tinha chegado a estar tão embrulhado com o Pauline.
Caiu na conta de que já quase era a hora de reunir-se com dois administradores para tratar assuntos concernentes a suas propriedades; subiu a sua carruagem e indicou ao chofer que o levasse a seu lar de Londres. Não queria chegar tarde, pois sempre se orgulhou de ser pontual e responsável, qualidades que seu pai, jogador compulsivo, jamais havia possuído. Por mais que tentasse concentrar sua mente nos negócios, surgiam nela pensamentos relacionados com o Pauline e sua gravidez.
Damon confiou em seus instintos, e estes lhe diziam que o "menino" era um simples invento para apanhá-lo, embora devia lhe dar certo crédito e admitir a possibilidade de que Pauline estivesse dizendo a verdade. Afligia-lhe o ressentimento. Outros homens aceitavam despreocupadamente o fato de conceber filhos com suas queridas; até faziam brincadeiras a respeito, mas para ele não era um tema que pudesse abordar-se à ligeira. Seu filho seria uma responsabilidade para toda a vida.
Fatigado, Damon gemeu e esfregou os olhos.
— Não há nenhum menino — murmurou, com uma mescla de esperança e irritação. — Ela está mentindo, estou seguro.
Quando chegou a sua casa e transpôs a porta principal, seu mordomo lhe informou que os administradores já estavam esperando-o na biblioteca.
— Bem — respondeu Damon com aspereza. — Faça levar chá e uma bandeja com sanduíches. Calculo que a reunião durará um tempo.
— Sim, milord, mas... — o mordomo tomou uma pequena bandeja de prata sobre a qual havia uma nota selada. — Talvez queira ler isto. Chegou recentemente; trouxe-a um mensageiro que parecia ter muita pressa.
Damon franziu o sobrecenho, rompeu o selo enviesado e reconheceu a escritura apressada de seu irmão William. Sua vista percorreu rapidamente a folha:
Damon:
Desta vez estou em verdadeiros problemas. Vi-me arrastado a um duelo que deverá realizar-se amanhã. Peço-te que seja meu padrinho e me dê os conselhos que muito necessito. Por favor, vêem o Warwickshire imediatamente e salva a pele de seu único irmão.
William
Damon sentiu que de repente seus nervos se esticavam de preocupação. Ele estava acostumado aos apuros e maldades de seu irmão, mas nunca tinha chegado tão longe.
— Por Deus, Will, o que tem feito agora? — seu rosto ficou carrancudo e sombrio. — Maldição, meu irmão deve ser o único homem na Inglaterra que não sabe que o duelo saiu de moda — ironizou e, ao elevar a vista, viu um brilho de simpatia nos olhos do mordomo, pelo geral implacáveis. — Parece que William voltou para as andanças. — resmungou. — Desta vez, foi desafiado a duelo.
O mordomo não manifestou a menor surpresa. Todos na casa conheciam a nervura temerária do menor dos Savage.
— Poderia ajudá-lo em algo, milord?
— Sim — respondeu Damon, indicando com a cabeça em direção à biblioteca. — Diga a esses dois que tive que atender um assunto urgente. Que passem a reunião para a próxima segunda-feira. Enquanto isso vou escrever uma nota que deverá ser entregue à senhora Jessica Wentworth, na Rua Somerset. Deverá recebê-la esta tarde, sem demora.
Uma fria e úmida brisa outonal varria o pequeno jardim que havia na parte de trás da casa da Julia. O vento agitava e desordenava seu cabelo solto e ela o passava sobre um ombro. Estava sentada sobre um pequeno banco branco, rodeada pelas fragrâncias embriagadoras do romeiro, a hortelã silvestre e outras ervas perfumadas; abriu a carta que tinha sobre o regaço.
Querida Julia:
Por desgraça, tive que alterar meu plano de ver-te esta noite. Devo partir imediatamente para minha casa do Warwickshire para me ocupar de um assunto urgente relacionado com meu irmão, lorde William. Irei visitar-te imediatamente, assim que retorne a Londres.
Teu,
Savage
Quase como se lhe tivesse ocorrido a último momento, adicionou ao pé da página uma última frase:
"Não me arrependo do acontecido entre nós. Espero que você sinta o mesmo."
Preocupada com a súbita nota, Julia a releu e franziu o sobrecenho. Sem dúvida, essa última frase tinha a intenção de resultar tranquilizadora, mas ela não sabia se o efeito que lhe causava era de alívio ou de consternação. Começou a espremer a carta, mas, de repente, surpreendeu-se a apertando contra sua cintura.
Lorde William Savage, esse cunhado ao que ela nunca tinha conhecido. Perguntou-se se, na verdade, o moço estaria em problemas ou teria servido ao Damon de desculpa para não vê-la. Face ao que ele mesmo dizia, era possível que se arrependesse de ter acontecido a noite com ela. Talvez fosse uma convenção dizer a uma mulher que um não se arrependia, embora na verdade fosse ao reverso.
Vermelha de vergonha e incerteza, Julia se perguntou se, de algum modo, o teria aborrecido, se lhe tinha parecido menos apaixonada ou excitante que lady Ashton. Ela não sabia o que fazer ou como satisfazê-lo. Possivelmente, para ele, a experiência tinha sido decepcionante ou, pior até, divertida. Talvez, Damon tinha esperado deitar-se com uma amante perita e não com uma torpe virgem.
Julia fez uma careta e se arreganhou a si mesma. Não devia esquecer que ela queria uma anulação, que nunca poderia abandonar sua carreira e sua independência, e viver atada a um homem de forte vontade. Seria bom que o tivesse decepcionado, pois, assim, ele acessaria a pôr fim ao matrimônio e não teria escrúpulos.
Os muros dourado pálido do castelo do Warwickshire se elevavam serenos, sobre a campina, sem revelar nada do torvelinho que o agitava por dentro. O sol estava fincando, e projetava largas sombras no chão, fazendo reluzir os cristais chumbados das janelas do edifício medieval.
Damon tinha vivido ali boa parte de sua vida, renunciando aos prazeres que poderia oferecer Londres a um jovem, para ficar, em troca com sua mãe durante seus últimos anos. Ela tinha sofrido a larga e dolorosa agonia dos que morriam de tísica e ele tinha sofrido junto com ela. Ainda recordava as numerosas ocasiões em que tinha levantado a vista da página de um livro ou periódico que tinha estado lhe lendo em voz alta e tinha surpreso o olhar ansioso dela fixa nele.
— Cuida de seu irmão e de seu pai — tinha rogado ela. — Eles necessitarão de seu guia e de seu amparo. Temo que você será quão único possa lhes impedir de chegar à ruína total.
Durante os cinco anos transcorridos da morte de sua mãe, ele tinha feito todo o possível por cumprir sua promessa, embora não tinha sido fácil.
Percorreu a grandes passados o grande salão e a sala do primeiro andar, e encontrou a seu irmão sentado desmazeladamente em um sofá estofado de damasco, com uma taça de conhaque na mão. A julgar por seus olhos injetados em sangue e seu aspecto desalinhado, William devia ter passado ali boa parte do dia, lambendo suas feridas com a ajuda de uma generosa dose de álcool.
— Meu deus, que alegria ver-te — disse William com ardor, levantando-se dificultosamente do sofá. — Já começava a pensar que te tinha ficado em Londres, deixando liberado a minha sorte.
Damon o contemplou com afeto e chateio, de uma vez.
— Não o faria depois de tudo o que investi em ti...
William se moveu para lhe fazer lugar e exalou um prolongado suspiro.
— Nunca bati a duelo. E não queria começar agora.
— Não tenho intenções de deixar que o faça — replicou seu irmão maior, carrancudo. — Como reagiu papai?
— Todos se puseram de acordo para que ele não saiba. Como sua saúde é tão frágil, sem dúvida o mataria se chegasse a inteirar-se.
Damon negou com a cabeça, indicando seu desacordo.
— Fora de seu pobre sentido dos negócios, papai não é nenhum idiota. Ele preferiria saber a verdade e não que todos andassem sigilosamente a seu redor, lhe ocultando coisas.
— Então, diga-lhe. Eu não tenho coragem para arrojar semelhante preocupação à cabeça de um moribundo.
Damon pôs seus olhos em branco e se sentou ao lado de seu irmão lhe tirando da mão o copo de conhaque.
— Não beba mais — lhe aconselhou. — Não te servirá para nada te embebedar.
Procurou com a vista uma mesa baixa onde deixar o copo. Como não encontrou nenhum lugar que lhe parecesse conveniente, bebeu ele mesmo os últimos goles e fechou os olhos ao sentir o suave e grato calor da bebida.
— Era meu — lhe fez notar William, indignado.
Damon lhe disparou um olhar de advertência.
— Eu precisava me repor depois da viagem. E agora, que tal se me diz como diabos te colocaste neste apuro? Tinha melhores coisas que fazer esta noite que vir a te tirar de uma nova confusão.
— Não sei bem como aconteceu — disse William, perplexo, desarrumando o já revolto cabelo negro. — Foi algo insignificante. Ontem à noite, fui a um baile que davam os Wyvill, um desses singelos bailes de campo... Dancei a valsa com a jovem Sybill e escapulimos ao jardim... e o único que lembro de depois é a seu irmão George me desafiando a duelo!
Ao Damon não custou trabalho ler entrelinhas. Os Wyvill, uma família de sólidos latifundiários com título de nobreza do Warwickshire, eram conhecidos por seu mau caráter. Por isso ele recordava Sybill não devia ter mais de dezesseis ou dezessete anos e, em consequência, qualquer ofensa cometida contra ela seria considerada uma afronta mortal para a honra da família.
— O que você fez William? — perguntou, em tom ameaçador.
— Só a beijei! Não foi nada... Não valia a pena arriscar o pescoço por ela, lhe posso assegurar isso. George e eu nunca nos levamos bem. Suspeito que ele estava nos espiando com o só propósito de ter um motivo para me desafiar... Esse canalha exaltado!
— Será melhor que deixemos os insultos para mais adiante — o interrompeu Damon com secura. — A única maneira de resolver isto será ir ao velho lorde Wyvill. Ele governa à família com punho de ferro; só ele poderia cortar de raiz todo o assunto, se o desejar.
Esperançado, William abriu seus grandes olhos azuis.
— Falará com ele, Damon? Se conseguisse convencê-lo de que George deve retirar o desafio...
— Primeiro, quero que me diga a verdade. Está seguro de que quão único fez foi beijar a Sybill?
William não pôde olhá-lo à cara.
— Em linhas gerais.
Damon franziu o sobrecenho.
— Maldição, Will, com tantas prostitutas e garçonetes que há entre aqui e Londres, tinha que incomodar precisamente a uma menina de boa criação?
— Eu não a incomodei! Ela não me tirava a vista de cima, e era tão suave, com esses olhos de cerva, como me convidando a que a beijasse e, quando o fiz, posso te assegurar que me retribuiu, e então saltou George de entre os arbustos como um louco.
— E Sybill, para evitar a recriminação de sua família, afirmou ser por completo inocente e que você a tinha atraído fora com enganos e tinha tentado seduzi-la.
William assentiu com veemência.
— Sim, isso foi exatamente o que aconteceu. E não me olhe como se nunca te tivesse tentado uma bonita jovem inocente! Diabos estou seguro de que, a minha idade, fez o mesmo.
— A sua idade, eu estava me rompendo a alma para impedir que a família se afundasse sob uma montanha de dívidas. Tinha pouco tempo para fazer-me de idiota com moças como Sybill Wyvill.
Seu irmão cruzou de braços em postura defensiva.
— Talvez eu não seja tão santo como alguns, mas não sou tão mau como outros.
Damon sorriu sem humor.
— Esse é um bom lema para a família Savage.
Damon se lavou, trocou de roupas e foi para a propriedade dos Wyvill, situada a poucos quilômetros do castelo. Apesar de sua sólida fortuna, os Wyvill viviam em um pitoresco imóvel rural, pela metade escondida em um bosque de álamos brancos e rododendros. Damon adotou um semblante de apropriada gravidade e pediu ao mordomo que desse suas saudações a lorde Wyvill, e lhe perguntasse se poderia vê-lo uns minutos. O mordomo desapareceu e, ao voltar pouco depois, conduziu-o à biblioteca.
Lorde Wyvill, que era um pouco maior que Frederick, o pai do Damon, estava sentado em uma grande cadeira estofada de couro, ante um pequeno fogo, com os pés estendidos para o calor crepitante. Damon tinha visto já muitas vezes ao Wyvill e sabia que era um homem ambicioso, imbuído de sua própria importância, e com um enorme orgulho por seus filhos. Sybill era sua única filha e ele não tinha oculto sua pretensão de obter uma esplêndida união para ela. Só se conformaria com um duque ou um conde e, não fazia falta dizê-lo, o indivíduo devia ter uma fortuna tão impecável como sua linhagem. Damon não acreditava que William fosse o candidato que Wyvill tinha em mente para futuro genro.
Wyvill levantou uma mão roliça indicando ao Damon que se sentasse na cadeira que estava junto à sua. A luz do fogo bailava em reluzentes ondas sobre sua cabeça calva.
— Savage — saudou em uma voz baixa que parecia não pertencer a um homem de tão alta estatura. — Já vejo que seu irmão, esse pilantra insolente! Foi a você para que o protegesse. Bom; esta é uma dessas ocasiões em que você não poderá tirá-lo do apuro. Atuou de maneira desonrosa e deverá responder por isso.
— Entendo seus sentimentos, senhor — replicou Damon com seriedade. — Ao parecer, é verdade que William foi muito longe. Contudo, em interesse do bem-estar de sua filha tanto como no de seu filho, vim a lhe pedir que pare o duelo. George retirará o desafio se você o exige.
— E por que teria que fazê-lo? — perguntou Wyvill, com sua boca redonda franzida pelo desgosto. — Minha preciosa Sybill, uma menina ingênua e inocente, foi arruinada, manchou-se sua reputação.!
— Por um beijo? — perguntou Damon, arqueando uma sobrancelha. — Não está exagerando um pouco? Uma moça bela, um jardim iluminado pela lua... Estou seguro de que qualquer poderia entender que William tenha perdido a cabeça.
— Jamais teria que ter estado a sós com minha filha no jardim, ofendendo-a em minha própria casa, nada menos!
— Sim, sei. Dou-lhe minha palavra de que William oferecerá reparações na forma que você escolha se convencer ao George de que retire o desafio. Estou seguro de que podemos chegar a outra classe de acordo. Não me cabe dúvida de que você sente tanta repugnância como eu de que haja pleitos de sangue entre nossas famílias. Sobretudo porque, se o duelo chegasse a ter lugar amanhã, a reputação do Sybill se veria danificada. O que foi um pequeno incidente, fácil de esquecer, conver-ter-se-ia em um grande escândalo. A qualquer lugar que ela vá seguiriam os rumores — disse Damon, e fez uma pausa para observar com atenção o semblante do outro, para comprovar com satisfação que tinha ganho um tanto.
— Se Sybill se convertia no foco do escândalo, seria muito mais difícil casá-la bem.
— Que classe de acordo tem em mente? — perguntou Wyvill, suspicaz.
Damon vacilou e logo olhou ao outro à cara.
— Isso depende daquilo o satisfaça a você. Resolveria o problema se William pedisse a mão de Sybill?
Não temia fazer semelhante proposta, sabendo que Wyvill tinha ambições maiores que casar a sua filha com um filho segundo.
— Não — disse Wyvill, fazendo oscilar sua dupla papada ao negar com a cabeça. — Seu irmão não tem os meios nem a personalidade que eu estou procurando para um possível genro — disse. Fez uma larga pausa e em seu rosto apareceu uma expressão matreira. — Entretanto, posso lhe propor uma alternativa.
— Qual? — perguntou Damon, olhando-o fixamente.
— No que a mim concerne, darei por lavada a honra se você se casar com o Sybill.
Damon sentiu que suas sobrancelhas se elevavam até a raiz de seus cabelos. Teve que pigarrear várias vezes antes de poder responder.
— Sinto-me adulado — respondeu, em voz rouca.
— Bom. Chamarei Sybill e você poderá lhe propor matrimônio imediatamente.
— Lorde Wyvill, eu... Tenho que lhe confessar algo — de repente, Damon percebeu toda a ironia da situação e sentiu que uma gargalhada traiçoeira pugnava por escapar. De algum modo, conseguiu evitar que explodisse. — Sybill é uma moça encantadora, por certo, e em qualquer outra circunstância...
— Mas? — apressou Wyvill, carrancudo como um bulldog.
— Não posso me casar com sua filha.
— Por que não?
— Porque estou casado.
Durante comprido momento, não se ouviu outra coisa que o crepitar do pequeno fogo. Os dois homens cravaram sua vista nas chamas enquanto Wyvill absorvia tão extraordinária afirmação. Depois de um momento, falou em um tom carregado de suspeita.
— Esta é a primeira vez que ouço algo a respeito.
— Foi um segredo bem guardado durante bastante tempo.
— Quem é ela?
— Julia, a filha de lorde Hargate.
— Hargate — repetiu Wyvill, arqueando suas curtas sobrancelhas como sinais de interrogação. — Ouvi dizer que foi enviada a um colégio na Europa ou a um convento. O que esteve acontecendo todo este tempo? Teve-a oculta no desvão ou no porão, né?
— Não exatamente.
— Então, por que...?
— Temo que não poderei lhe explicar os detalhes, senhor.
Wyvill adotou um ar de amarga decepção e aceitou os fatos com toda a elegância que pôde.
— Que pena. Você teria feito bem em casar-se com minha Sybill.
Damon fez todo o possível por mostrar uma expressão contrita.
— Estou seguro disso, lorde Wyvill. Quanto ao William... O outro desprezou o tema com um gesto desdenhoso.
— Direi ao George que não haverá duelo. Mas você saiba que me deve um favor; sua retribuição lhe será exigida em algum momento do seu turno.
Damon deixou escapar um suspiro de alívio apenas perceptível.
— Obrigado, senhor. Enquanto isso tirarei o William do Warwickshire para aliviar qualquer tensão que possa ter ficado. — Sim o agradecerei.
Intercambiaram uma cordial saudação, e Damon saiu da habitação com uma sensação de alívio. Quando cruzava a soleira, ouviu o Wyvill murmurar para si:
— Hargate... nenhuma filha dele poderia esperar equiparar-se a Sybill.
Depois de contar as boas novas ao William, Damon teve vontades de ir imediatamente a seu quarto e dormir. Tinha sido um dia comprido e necessitava um tempo a sós para descansar e refletir. Entretanto, ficava um dever por atender. Ergueu seus ombros e se encaminhou para as habitações de seu pai. Esperava que o duque já se retirasse a dormir mas, enquanto se aproximava da porta do dormitório, viu uma luz que saía de dentro e ouviu uma voz de mulher lendo uma novela.
Deu um leve golpe na porta entreaberta e entrou. Embora seu pai, Frederick, tinha sofrido vários derrames cerebrais que o tinham deixado parcialmente estropiado de seu lado direito, tinha conservado boa parte de seu vigor. Tinha o aspecto grosseiramente arrumado de um mulherengo, de um homem que tinha desfrutado de uma boa quantidade de prazeres mundanos e nunca tinha lamentado um só deles. Adorava relatar, uma e outra vez, histórias de suas passadas correrias aos numerosos amigos que ainda iam a visitá-lo com regularidade e perder-se em reminiscências de sua juventude.
Apoiado sobre um montão de travesseiros, com um copo de leite fumegante na mão, o duque parecia muito cômodo. Era difícil saber o que desfrutava mais: se a novela ou a atrativa e jovem enfermeira sentada junto a seu leito. A mulher interrompeu a leitura, e o duque elevou a vista, espectador.
— Estava lhe esperando — disse o pai do Damon com uma pronúncia um tanto dificultosa, por causa de seu estado físico. — Por que não veio antes?
— Tinha que resolver um assunto — respondeu Damon, e adicionou turvo: — Um pouco relacionado com o William.
— Outra vez? — ao duque adorava ouvir falar das escapadas de seu filho menor, e era evidente que estava convencido de que ele e William tinham muito em comum. — Me conte.
O duque indicou à enfermeira que deixasse livre a cadeira que ocupava.
Assim que a moça saiu da habitação, Damon se sentou junto a seu pai.
— Tem bom aspecto — comentou.
— Sim, estou bastante bem.
Frederick colocou a mão detrás do travesseiro, tirou um frasco de prata e jogou uma generosa quantidade de conhaque no copo de leite.
— Não muda nunca — disse Damon, em tom de recriminação, movendo a cabeça quando seu pai lhe ofereceu o frasco.
Por um momento, o duque pareceu desiludido pela negativa de seu filho, logo se encolheu de ombros, resignado.
— Você tampouco — replicou. Bebeu um comprido gole de leite com conhaque e estalou os lábios. — Diga-Me, o que aconteceu a William?
Damon lhe relatou, com a maior objetividade possível, os sucessos dos últimos dois dias. Como ele tinha esperado, o relato divertiu muito ao Frederick. Ao princípio, pareceu um tanto aborrecido, mas logo o desgosto foi substituído por um equivocado sentido de orgulho masculino.
— Moço tolo, desenfreado... — disse o duque, rindo entredentes. — William tem a moral de um gato de rede de esgoto.
Damon franziu o sobrecenho.
— Acaso lhe surpreende sua conduta, depois do exemplo que você lhe deu durante tantos anos?
— Ah, aí estamos, outra vez — disse Frederick, resignado, gesticulando com seu copo meio vazio. — Trata de me jogar a culpa não é certo?
Damon sempre se enfurecia ao ver que seu pai jamais se arrependia e que não estava disposto a aceitar nenhuma responsabilidade por suas ações.
— Preocupa-me que William siga seus passos — murmurou. — Dá a impressão de que tem a mesma inclinação que você pelas mulheres e os jogos.
— E se for assim? O que de pior poderia lhe acontecer?
— Poderia acabar morto em um duelo ou devendo uma fortuna.
Seu pai o olhou com enervante indiferença.
— Não deveria me preocupar com as dívidas. De um modo ou outro, o dinheiro sempre aparece.
— E bem que sei eu — disse Damon, em tom carregado de sarcasmo. — Você o encontrou muito facilmente faz dezoito anos, né? Empurrou à família ao limite da pobreza e deu a lorde Hargate a oportunidade perfeita para intervir, oferecendo um considerável dote. Quão único teve que fazer foi casar a seu filho de sete anos com sua filha que logo que tinha deixado os fraldas.
Frederick suspirou e deixou o copo vazio sobre a mesinha de noite.
— Bem pode você me jogar todas as culpas que queira, incluindo o apresso que sofre William neste momento e sua própria insatisfação com a vida. Não me cabe dúvida de que não fui o pai que deveria ter sido. Mas o fato é que fiz o que tinha que fazer. Por que deve pinçar no passado em lugar de olhar para o futuro?
— Porque emendei seus embrulhos durante anos e agora pareceria que tenho que fazer o mesmo pelo William... E estou bastante farto disto!
— Suspeito que, em certo modo, bem você gosta disso — disse o duque sem alterar. — Te faz se sentir superior o fato de levar adiante sua vida com toda a correção e a responsabilidade que nem eu nem William fomos capazes de ter — se interrompeu com um bocejo e se reclinou de novo sobre os travesseiros. — Que o Céu ampare a pobre Julia quando a encontrar. Temo que nenhuma esposa seria o bastante correta para te satisfazer, embora seja uma Hargate.
Damon abriu a boca, disposto a discutir, mas a fechou de repente quando ressonou em sua mente um eco da voz da Julia:
“O que poderia resultar de uma relação entre nós?... Transformei-me em uma pessoa completamente inadequada... Você quereria que eu deixasse tudo aquilo pelo que trabalhei tudo o que necessito para ser feliz...”
O duque esboçou um leve sorriso ao ver a expressão afligida de seu filho.
— Sabe que tenho razão, não é assim? Possivelmente, o que você precise seja seguir o exemplo do William. Um homem deve ter algumas debilidades... do contrário, conver-te-se em um chato mortal.
Ao ver que seu pai dava amostras de começar a fatigar-se, Damon ficou de pé e lhe lançou, de soslaio, um olhar exasperado. Poucas foram as ocasiões em que o duque se incomodou em lhe dar algum conselho, e nenhum deles tinha tido o menor sentido.
— Voltarei a ver-te amanhã pela manhã, antes que William e eu nos partamos.
Frederick assentiu.
— Envia à enfermeira para que me atenda — fez uma pausa e acrescentou, em tom pensativo: — Sabe? Recorda lorde Hargate quando era jovem. Exercia tanto controle sobre si mesmo e estava tão decidido a que todos se ajustassem a suas noções do que era correto como você o faz.
Por um momento, Damon se indignou repugnado ante a idéia de que houvesse alguma similitude entre ele e lorde Hargate. Mas, ao mesmo tempo, não pôde menos que perguntar-se se não seria verdade, em parte. E mais perturbadora era a possibilidade de que Julia pensasse algo semelhante. Seria ele tão rígido e dominante que ela pudesse temer que ele conver-tesse sua vida em uma repetição do que tinha sido sua infância?
De súbito, sentiu uma veemente impaciência por retornar a Londres e fazer entender a Julia que ele não trataria de trocá-la, nem de lhe tirar nada, mas, seria certo isso? Não podia assegurar que fosse aceitar sem inconvenientes sua carreira, o mundo do teatro no que ela habitava, nem sua teimada independência. Possivelmente, o melhor seria deixar livre a Julia... Mas essa lhe aparecia como a alternativa menos viável de todas.
A noite da estréia de Senhora Engano, a última obra do Logan Scott, a multidão empolgada pela novidade era de proporções assombrosas. Os aristocratas tinham enviado a seus criados a que conseguissem e conservassem os assentos para eles, desde horas antes da prevista para o começo da apresentação. O teatro estalava pelas costuras, repleto de um público numeroso e impaciente. Na galeria onde as localidades custavam um xelim as mais baratas, produziam-se discussões e até rixas a murros, pelo zelo com que cada um defendia seu território dos intrusos.
Damon e William, a salvo do pandemônio que se desenvolvia mais abaixo, contemplavam tudo desde um dos camarotes privados na fila do terceiro círculo. Um cantor a quem o teatro tinha contratado para entreter ao público se esforçava por fazer-se ouvir por cima do bulício.
— Que chusma — comentou William, olhando ao Damon com um sorriso entre irônica e assombrada. — Não é próprio de ti vir ao estréia de uma obra. Por que agora?
— Sou patrocinador do Capital — respondeu Damon, em atitude neutra. — E quero ver como utiliza meu investimento.
— Dizem que a obra é muito boa — assegurou William. — Lamento que não me tenha permitido trazer uma ou duas acompanhantes. É uma pena desperdiçar os dois assentos que ficam vazios em nosso camarote. Dá a casualidade de que conheço duas irmãs gêmeas, ambas ruivas, que são uma delícia...
— Acaso não brincaste de correr o suficiente detrás das saias para toda a semana? — interrompeu Damon, sacudindo a cabeça com chateio.
O rosto do William se iluminou com um sorriso pícaro.
— Pensei que me conhecia o suficiente para não ter que me fazer semelhante pergunta — e, ao ver que seu irmão maior não lhe retribuía o sorriso, a preocupação suavizou a expressão do William. Está pensando em Pauline? — perguntou. No transcurso da viagem a Londres, Damon lhe tinha contado tudo relacionado com a suposta gravidez de Pauline e com sua própria exigência de que o médico confirmasse a situação. — Eu, em seu lugar, não me preocuparia — havia dito William, em atitude pragmática. — É quase seguro que Pauline deve estar mentindo. Ela sabe que, se consegue te convencer de que está grávida você se sentirá obrigado, por seu sentido da honra, a te casar com ela.
Os lábios do Damon se torceram em um sorriso irônico.
— Eu não sou tão honorável como crê.
— Nunca em sua vida adotaste uma atitude egoísta. Fez sacrifícios pelo bem-estar da família que eu jamais...
— Seja como for, fi-lo por motivos inteiramente egoístas. Só pensava em meus próprios lucros, em meu próprio amparo, em não ver-me obrigado, outra vez, a fazer algo que não queira.
William suspirou e assentiu.
— Sempre voltamos para esse malfadado matrimônio com a Julia Hargate, não é certo? Irmão, por que não tratamos de nos esquecer dela uma noite e desfrutamos com a obra?
— Temo que isso não é possível. O motivo pelo que insisti em vir aqui esta noite é que quero vê-la.
— Ver quem? — assombrou-se William, movendo a cabeça como se não estivesse seguro de ter ouvido bem.
Damon não se incomodou em esclarecer-lhe e se limitou a olhá-lo com a sombra de um sorriso nos lábios.
— Quer dizer que... Julia está aqui... Esta noite? — perguntou o menor, rindo incrédulo. — Não, está tratando de debochar de mim...
— Encontrei-a — repôs Damon, sereno, desfrutando com a perplexidade que via no semblante de seu irmão. — Já sei onde se ocultava e o que esteve fazendo durante os dois últimos anos.
William mexeu em seus cabelos negros deixando-os desordenados.
— Meu deus não posso acreditar... Como fez para achá-la? Já falaste com ela? Por que não?
Damon elevou uma mão lhe pedindo silencio.
— Espera. Logo o compreenderá.
William sacudiu a cabeça, balbuciou e fixou seu olhar na multidão que os rodeava e que estava debaixo deles, como se esperasse que Julia Hargate fosse saltar de um assento para anunciar-se.
O cantor concluiu sua atuação e fez uma reverência para agradecer os escassos aplausos recebidos. Ele saiu do cenário e, continuando, a orquestra se manteve em silencio durante um minuto, enquanto os músicos se preparavam para tocar a seguinte peça. Arrancaram com uma animada melodia que anunciava o começo da obra. As luzes que havia aos lados do teatro foram amortecidas. Pelo fosso e pelas galerias se estenderam quebras de onda de agitação, enquanto os aplausos e os gritos espectadores se difundiam pelos camarotes e os assentos das primeiras filas.
Damon imaginou a Julia aguardando em algum lugar atrás do cenário, ouvindo o rugido da multidão, sabendo o que desejava e esperava o povo dela. Essa intuição o enchia de uma estranha mescla de orgulho e ciúmes, ao compreender que esse público de quase duas mil almas, constituído tanto por pobres como por ricos, clamava por ver sua esposa. A senhora Jessica Wentworth tinha sido tema de canções, poemas, retratos e gravuras. Todos adoravam seu talento, seu rosto e seu corpo. Os homens a desejavam e as mulheres se esforçavam por imaginar como seria estar em seu lugar, ser uma atriz bela e aclamada, que tinha Londres a seus pés.
Perguntou-se se Julia estaria disposta a renunciar a tão geral adoração em troca das compensações mais tranquilas do matrimônio e da família. O que tinha ele para lhe oferecer que ela pudesse preferir a isto? A riqueza não tinha importância para Julia, como tinha demonstrado ao fazer a um lado a fortuna de sua família em troca de sua liberdade. O amor de um só homem não podia comparar-se com o de milhares de pessoas ao mesmo tempo. Atormentado por estes pensamentos, carrancudo, Damon fixou seu olhar no pano de fundo que se abria, deixando ao descoberto uma espetacular cena que representava uma paisagem de costa marítima. Sobre a cortina de fundo tinham pintado um faiscante mar azul e outros panos de fundo planos fingiam uma elegante moradia na costa.
Apareceu no cenário uma figura solitária, uma esbelta mulher que balançava seu chapéu agarrando-o pelas fitas e contemplava, com olhar sonhador, o mar frisado. Era Julia... Jessica, que se aferrava a seu personagem apesar dos tumultuosos aplausos com que a receberam. Outra atriz tivesse reconhecido a enlouquecida reação da sala por meio de uma graciosa saudação de reverência ou um gesto, mas Julia seguia mantendo a ilusão, enquanto aguardava pacientemente que o ruído se desvanecesse. Sua beleza parecia etérea, realçada por um vestido azul claro, com seu loiro cabelo caindo em compridos cachos pelas costas.
— Que criatura arrebatadora — disse William, entusiasmado Que não daria eu por provar seus encantos!
— Não o fará enquanto eu esteja com vida — murmurou Damon, lhe jogando um significativo olhar de esguelha. — Ela é minha.
O comentário deixou estupefato ao William.
— Com isso quer dizer que a convertes-te em sua amante? Não crê que teria sido mais prudente te desfazer, primeiro, de Pauline?
— Não, ela não é minha amante. Tem direitos mais sólidos sobre mim.
— Não entendo. Damon, ela não será... — William olhou a seu irmão com expressão atônita e uma gargalhada incrédula escapou de seus lábios. — Meu Deus, não quererá dizer que ela, não... — reforçou a negativa com sua cabeça. — Não — repetiu perplexo, passando o olhar do rosto do Damon ao da mulher que estava sobre o cenário. — Não posso acreditar que ela seja Julia Hargate... Como é possível?
— Seu pai a deserdou quando ela partiu da casa para dedicar-se ao teatro. Ela construiu uma nova identidade sob o nome da Jessica Wentworth
William falou em tom baixo e nervoso, com a vista fixa no cenário.
— Por Deus, acredito que é o descarado mais afortunado que tenha existido jamais. Mais ainda: teria que beijar os pés a nosso pai por ter arrumado um matrimônio com ela...
— As coisas não são tão singelas — repôs Damon, com ar turvo. — Acaso crê que estou em condições de reclamá-la como esposa, arrastá-la fora do teatro e levá-la ao castelo do Warwickshire?
— Bom, deve ter em conta o tema de Pauline...
— Pauline é o de menos. Julia não deseja abandonar a vida que construiu para ela.
William estava completamente atônito.
— Quer dizer que Julia não deseja ser sua esposa? Qualquer mulher em seu são julgamento ambicionaria casar-se com um homem como você, com título e fortuna...
— A julgar por todas as aparências, ela já tem tudo o que deseja.
— Uma vida no teatro? — perguntou William, sem poder convencer-se.
— É uma mulher independente e tem êxito em sua carreira.
— Uma mulher que prefira uma carreira em vez do matrimônio? — disse William, como se a só idéia o indignasse. — Não é natural.
— Julia quer tomar suas próprias decisões e não sente saudades, quando penso que já foi dirigida e manipulada por lorde Hargate durante toda sua vida.
— Poderia entendê-lo se ela fosse uma mulher intelectual ou uma puta... Mas uma mulher com esse aspecto e essa educação...
Confuso, William se concentrou na cena que estava representando ante eles no cenário.
Fizeram sua aparição outros personagens: um homem maior, de corpo robusto, que arrancou muitas gargalhadas em seu papel do pai da Julia, com ambições de ascensão social, e uma mulher miúda, de cabelo encaracolado, que fazia de sua donzela pessoal. Logo apareceu, também, um pretendente alto, relativamente arrumado. Este estava empenhado em cortejar à aristocrática senhorita e, além disso, em conquistar a aprovação do pai dela. Continuando, desenvolveu-se uma conversação superficial, embora cheia de encanto e carregada de sátira social.
Julia, no papel do Christine, emanava uma mescla de doçura e solidão fazendo ver que desejava algo mais do que lhe permitiam os estreitos limites de sua vida. Na seguinte cena, ela procurava uma aventura e tinha tido a audácia de fazer-se passar por uma criada doméstica, aventurando-se pela cidade sem acompanhante. Outro pano de fundo, pintado com a mesma habilidade, com a contribuição de algumas peças de mobiliário, ficou ao descoberto representando a uma buliçosa cidade ao lado do mar.
Christine, aparentemente perdida em meio dos atarefados marreteiros guias de ruas e os transeuntes, andava pelo cenário até que se chocava com um homem alto, de cabelos cor mogno. Antes que Logan Scott revelasse seu rosto, o público o reconheceu e estalou em clamorosos aplausos. Foi recebido de maneira tão fervente como o tinha sido Julia; os gritos de aprovação e os aplausos duraram mais de um minuto. Ao igual a aquela, ele preferiu conservar a atitude do personagem, esperando a que a gritaria se apagasse.
Entre os dois personagens que dialogavam se percebia uma evidente atração. Julia expressava a tensão do receio e da curiosidade com cada linha de seu corpo. Logan Scott se apresentou como servente de um lorde da localidade; entretanto, o público estalou em gargalhadas, pois suspeitava que essa identidade respondia a uma estratagema. Os dois, irresistivelmente atraídos um para o outro, tentaram fazer planos para voltar a encontrar-se em segredo. Desde esse momento, a história adquiriu um ritmo ágil que era, de uma vez, romântico e alegre.
Ao jogar uma olhada a seu irmão, Damon viu que William olhava a obra com encantada atenção. A habilidade dos atores impedia de pensar em nenhuma outra coisa. Os atores secundários eram sólidos e Logan Scott, tão talentoso como sempre, mas era indiscutível que Julia constituía a alma da representação. Era como uma chama que bailasse sobre o cenário, misteriosa e vibrante. Cada um de seus gestos parecia natural, cada ascensão e descida de sua voz estavam carregadas de agudo significado. Era a mulher de quem todo homem imaginaria apaixonar-se alguma vez, desejável e inacessível, ao mesmo tempo. Se Julia não tivesse sido famosa antes dessa noite, sua atuação teria a tornado célebre, sem dúvida.
Damon sentia que os ciúmes lhe arrepiam os cabelos da nuca vendo atuar a Julia e ao Logan como dois amantes. Chiava os dentes cada vez que eles se tocavam. No momento em que se beijaram no teatro ressonaram nostálgicos e invejosos suspiros enquanto que Damon, por sua parte, ansiava saltar sobre o cenário e separá-los a trancos.
Quando se produziu a pausa de uma mudança de cena, William girou para o Damon e o olhou com expressão especulativo.
— Você crê que Julia e o senhor Scott...?
— Não replicou Damon imediatamente, sabendo bem a que se referia.
— Pois, asseguro-te que o parecem.
— São atores, Will. Eles têm que comportarem-se como dois amantes: disso se trata a obra.
— São muito convincentes — repôs William, em tom duvidoso.
Esse comentário atiçou as chamas dos ciúmes do Damon; teve que esforçar-se para controlá-los. Essa seria a vida, ao estar casado com uma atriz. Sempre haveria dúvidas, ressentimentos e constantes pretextos para discutir. Só um santo poderia tolerá-lo e Deus era testemunha que ele estava muito longe de sê-lo.
Julia se sentia tomada de excitação e, de uma vez, de uma calma, produto da certeza de seus propósitos, enquanto aguardava entre decorações a que chegasse o momento de sua próxima entrada. Secou com a manga o suor da testa, cuidando de não danificar a maquiagem. A obra estava saindo estupendamente bem; ela tinha a certeza de que estava obtendo tudo o que esperava no papel de Christine.
As risadas e o gozo do público eram estimulantes e davam um renovado brilho às atuações dos atores. Aproximava-se uma de suas cenas preferidas, aquela que tinham representado, junto com o Logan, na casa dos Brandon, durante a festa do fim de semana. Ela e "James" descobririam suas verdadeiras identidades, em uma mescla de comédia e saudade que faria rir e comoveria a todos, se acontecia como ela esperava.
Sentiu uma presença atrás dela e, ao dar a volta, encontrou-se ali com o Logan, seu rosto atravessado pelas sombras, nesse lugar mal iluminado do cenário. Sorriu-lhe e arqueou as sobrancelhas em muda pergunta, e lhe fez uma piscada. Era algo que ele fazia muito poucas vezes.
— Deve estar satisfeito — disse Julia em tom seco. — Ou será que te entrou algo no olho.
— Estou contente de que não tenha deixado que seus problemas pessoais interferissem em sua atuação — murmurou ele. — Esta noite, sua atuação é bastante decente.
— Nunca disse que tinha problemas pessoais.
— Não era necessário que o dissesse — disse Logan, fazendo-a voltar-se para a seção do cenário que se estendia além dos laterais. — Mas isso é quão único importa. A cena jamais te falhará contanto você se entregue a ela por completo.
— Você alguma vez se cansa da cena? — perguntou Julia em voz firme, contemplando as largas pranchas de madeira gastas por milhares de marcas de pés e rastros deixados ao arrastar a cenografia. — Alguma vez deseja algo que não pode achar aqui?
— Não — respondeu Logan imediatamente. — Isso é para as pessoas convencionais... e nem você nem eu o somos.
Ouviu que diziam a seus pés e, passando junto a ela, entrou no cenário, já imbuído do personagem. Julia franziu o sobrecenho e, sujeitando uma dobra do suave veludo da cortina, acariciou o tecido gasto. Avançou para ver melhor o desenvolvimento da cena e viu Arlyss que também esperava, no lateral oposta ao dela. Sorriram-se e se saudaram com as mãos, compartilhando entre as duas o prazer do êxito da obra.
Percebia-se no ar um aroma intenso e picante, conhecidas fragrâncias da pintura, o suor e os focos de cálcio que se usava para iluminar o cenário. Mas nessa mescla havia algo mais. Intrigada, Julia franziu o sobrecenho e estendeu o olhar além de Arlyss, até as cortinas de fundo e os planos. Não se via nada fora do comum, mas um sexto sentido lhe avisou que acontecia algo mau. Preocupada, olhou ao redor e viu uns integrantes do pessoal, um grupo de maquinistas e carpinteiros que se dispunham a realizar a seguinte mudança de cenografia. Perguntou-se se eles também teriam notado que havia algo fora do normal, mas lhe pareceu que não se alteraram.
De súbito, Julia sentiu o aroma de fumaça. Percorreu seu corpo um estremecimento de pânico. Pensou que, talvez, fosse sua imaginação e aspirou mais fundo. Desta vez, o aroma era mais forte. Seu coração martelou no peito e seus pensamentos se voltaram caóticos. Fazia dezoito anos, o fogo tinha destruído os teatros, tanto no Drury Lane como no Covent Garden. Em situações como essa, o tributo da morte costumava ser elevado, não só por causa do fogo e da fumaça a não ser, também, pelo pânico que provocava em um edifício lotado de gente. Mesmo que dominassem rapidamente o fogo, haveria pessoas esmagadas e apanhadas. Logo chegaria a hora da Julia entrar em cena, e ela tinha que dizer a alguém o que acontecia, mas, onde estaria o fogo que não podia vê-lo?
Como em resposta a sua pergunta muda, o plano que havia à direita da cena estalou em chamas. Um abajur colocado ao descuido devia havê-lo superaquecido ou aceso, e a chama se difundia faminta, pela superfície grafite. Os atores, tomando súbita consciência do desastre, paralisaram-se no cenário, e entre o público estalaram os gritos.
— Meu deus — sussurrou Julia, enquanto os membros do pessoal passavam correndo junto a ela, empurrando-a, em meio de uma catarata de maldições.
— Doce Jesus! — exclamou William, sem poder separar sua vista do fogo que tinha começado em um lado do cenário. — Damon temos que sair daqui!
Nos camarotes acima, abaixo e ao redor deles, desatou-se uma loucura porque o público tinha percebido o que estava acontecendo. As pessoas lutavam desesperadas, empurrando-se e correndo em uma selvagem luta para escapar dessa armadilha mortal. As mulheres lançavam gritos de horror, enquanto que os homens bramavam e davam golpes tratando de abrir caminho através do tumulto.
Damon viu o fogo no cenário e compreendeu que seria um milagre se conseguiam detê-lo. Os recipientes com água que havia acima não pareciam ser de muita utilidade, apesar dos esforços desesperados que faziam os membros do pessoal para apagar o fogo. Vermelhas chamas avançavam arrastando-se pelos painéis pintados e devoravam a cortina de fundo, arrojando fragmentos de cenografia enroscados e ardendo sobre o cenário. No meio da fumaça e a chuva de fogo, Damon pôde ver a silhueta esbelta da Julia que se arqueava e se dobrava com um pano empapado na mão tratando de manter a raia as chamas. Ele sentiu que o terror e a fúria o alagavam ao ver que ela ficou junto com os homens do elenco e do pessoal de manutenção para combater o fogo.
— Maldita seja, Julia! — gritou, embora seu grito se perdesse no meio do rugido assustado da multidão.
A urgência por chegar a ela varreu qualquer outro pensamento consciente.
Saiu correndo do camarote e abriu passo para uma das duas escadas gêmeas que levavam a vestíbulo principal do teatro, na planta baixa. As escadas estavam abarrotadas de pessoas que se retorciam e gritavam. William ia lhe pisando os calcanhares, seguindo ao irmão maior que se precipitava ao meio da confusão.
— Provemos de sair pela entrada lateral — ofegou William. — Há ali menos gente que adiante.
— Você vai por ali — lhe disse Damon por cima do ombro. — Eu volto para dentro.
— Para que? Pela Julia? Ela está rodeada de uma quantidade de pessoas que estão em perfeitas condições de cuidar dela. Quando chegar ao cenário, ela já estará fora... E é muito provável que você fique apanhado!
— Ela não se irá — repôs Damon, mantendo-se perto do corrimão e empurrando para poder avançar uns passos mais.
O esforço de segui-lo fez resfolegar a William.
— Qualquer que seja bastante idiota para ficar dentro deste forno merece o que possa lhe acontecer! — lançou um taco ao comprovar que seu irmão não lhe prestava atenção. Que me condenem se for contigo! Eu não sou como você: não há em mim um ápice de heróico!
— Eu quero que vá.
— Não — replicou William, indignado. — Com a má sorte que tenho você morrerá no fogo e então... Serei eu quem deve cumprir o papel de filho maior, responsável! Diabos prefiro correr o risco aqui.
Sem fazer caso das queixas de seu irmão, Damon seguiu baixando a escada e saltou por cima do corrimão quando ficavam poucos metros para chegar. William o seguiu para o meio da multidão, em direção às portas que davam ao fosso da orquestra. Era quase impossível abrir-se passo no meio do violento impulso da turma, mas eles as engenharam, avançando metro a metro, até que ficaram no centro do inferno. No ar vibrava o pânico descontrolado.
Ao saltar sobre as filas de assentos em seu afã por chegar ao cenário, Damon pôde ver a Julia. Viu que golpeava as chamas com vigor, tratando de evitar que se estendessem aos panos de fundo. Os homens de manutenção trabalhavam perto, retirando as peças inflamáveis que formavam parte da cenografia e enrolavam os painéis para evitar que o fogo alcançasse a peça da frente e os andaimes de cima. Damon sentiu desejos de estrangular a sua esposa por haver-se exposto a semelhante risco e, depois de avançar com dificuldade pelo contorno do fosso da orquestra, subiu ao cenário.
Meio enegrecida pela fumaça e os vapores, Julia golpeava as chamas amarelas que corriam pelo cenário, enquanto fragmentos de brasas lhe disparavam flechas os braços. Ardia-lhe o ar na garganta inflamada, que saía de sua boca em irados soluços articulando uma negação. Não devia permitir que se destruísse o teatro, que significava mais para ela do que tinha imaginado. Tinha vaga consciência da presença do Logan perto dela, debatendo-se como enlouquecido para salvar a única coisa que lhe importava. Ele não poderia sobreviver se perdesse o Capital, ele ficaria ali, embora o teatro ardesse até os alicerces.
A fadiga fazia tremer os braços da Julia; sentia que seu corpo se balançava, sugado pelas rajadas de calor. Ouviu que alguém, de perto, gritava-lhe uma advertência, mas ela não interrompeu sua batalha por sufocar as chamas, que tinham começado a devorar um dos panos de fundo laterais. De súbito, algo a golpeou com força no centro do corpo, lhe apertando a cintura e os flancos até lhe fazer perder o fôlego. Encolheu-se de dor e de susto e não pôde mover-se para defender-se, pois alguém a arrastou vários metros. Sentiu um ruído rangente e sibilante em seus ouvidos, que se mesclou com o pesado pulsar de seu pulso.
Separou de seus olhos uma mecha de cabelo empapado de suor e, então, viu que o pessoal de manutenção tinha enrolado o painel da direita do cenário. Julia viu que tinha estado no caminho de sua queda, e que uma pessoa a tinha tirado de um puxão desse lugar, a mesma pessoa que, nesse momento, estava lhe sacudindo as saias e cuja mão ia descendo com golpes demolidores em coxas e panturrilhas. Tratou de livrar-se desse alguém, tossindo e respirando com dificuldade, até que viu, com um estremecimento de horror, que alguns fragmentos da cortina de fundo ardendo tinham acendido fogo a seu traje.
Uma vez que teve extinguido o fogo no tecido de sua saia, seu salvador se endireitou e seu semblante se ergueu sobre ela, sombrio e enfurecido. Recortado contra um fundo de fogo e fumaça parecia um demônio. O suor fazia brilhar seu rosto bronzeado, seu peito amplo se elevava a impulsos de inalações profundas e ávidas.
— Damon — disse ela, sentindo seus lábios rígidos ao pronunciar o nome dele.
Dava a impressão de que ele tivesse vontade de matá-la. Suas mãos se fecharam como prensas, rodeando-a, e começou a arrastá-la fora do cenário, sem fazer caso de seus protestos.
— Jessica? — ouviu ela que a chamava Logan Scott, desde muito perto. Ele fez uma pausa em seus esforços por conter o fogo e entrecerrou seus olhos até convertê-los em duas ranhuras, ao passar o olhar dela ao Damon. — Pelo amor de Deus, tire-a daqui!
— Para mim será um prazer — murmurou o aludido.
Julia fez uma careta pela dor produzida pelo modo em que a sujeitava seu marido, mas se deixou tirar do cenário em direção à sala verde.
— Por aqui — pôde dizer Julia, até que a atacou um acesso de tosse. Guiou-o pela parte de trás do teatro, e só se deteve quando notou que havia alguém mais com eles. Ao voltar-se para ver, fugazmente, quem era, encontrou-se com um jovem que guardava uma assombrosa semelhança com o Damon. Não podia ser outro que seu irmão. — O... Lorde William? — gaguejou.
— Sim, é William — confirmou Damon, impaciente. — Mais tarde, teremos tempo para as apresentações. Saiamos.
Julia, demonstrando, com uma expressão carrancuda, seu desgosto para a atitude autoritária dele, encaminhou-se para a porta que dava à rua. Esteve a ponto de se chocar com uma pessoa miúda que se precipitava dentro. Era Arlyss, que bulia de alívio, pânico e excitação, ao mesmo tempo.
— Jessica! — exclamou, agradecida. — Quando percebi que não estava fora, soube que devia voltar a te buscar... — interrompeu-se ao ver os dois homens altos, de cabelo escuro, que estavam detrás da Julia, e um sorriso leve e gracioso iluminou seu semblante. — Ao parecer, já foste resgatada. Já vejo que eu deveria haver ficado dentro do teatro, esperando a que me resgatassem também!
William se adiantou galante e lhe ofereceu um braço para escoltá-la.
— Admiro-a, por ter tido a sensatez de sair imediatamente, senhorita...
— Barry — respondeu ela, e seu olhar intenso não perdeu detalhe da elegância do traje e de quão arrumado era esse jovem moreno. — Arlyss Barry.
— Lorde William Savage — disse ele, apresentando-se com gesto pomposo: — A seu serviço, senhorita Barry.
Damon pôs os olhos em branco e deu um tranco a Julia para fazê-la sair fora, onde o ar era fresco e puro. Irritada pelo brusco trato, ela se separou dele assim que seus pés se posaram no pavimento.
— Não é necessário andar me carregando como se fosse um saco de cevada — lhe reprovou ela, entredentes, sem emprestar atenção às outras pessoas que rondavam pela pequena ruela, na parte de trás.
— Terá sorte se não fazer algo pior contigo. Olhe que te pôr em perigo sem nenhum motivo!
— Eu queria ficar! — replicou ela, veemente. — Tinha que prestar toda a ajuda que pudesse. Se esse teatro se queimasse, não ficaria nada!
— Ficaria a vida — assinalou-o, em um tom que queimava.
Outro acesso de tosse lhe impediu de replicar, embora Julia conseguisse lhe lançar um olhar furioso, com seus olhos aquosos e irritados.
Ao contemplar o rosto avermelhado da Julia, suas bochechas manchadas de suor e fuligem, Damon sentiu que parte de seu aborrecimento se desvanecia. Jamais tinha visto ninguém tão valente e vulnerável ao mesmo tempo. Tratou de encontrar um lenço dentro de sua jaqueta e, aproximando-se dela, começou a lhe limpar a sujeira e a maquiagem do rosto.
— Fica quieta — murmurou ele, rodeando-a com um braço quando ela tentou apartá-lo.
Um momento depois, sentiu que as rígidas costas dela começava a afrouxar-se. Ela elevou um pouco o rosto para facilitar a tarefa. Ele empregou uma ponta limpa de seu lenço para lhe secar os olhos.
— William — murmurou ele, captando os intentos de seu irmão por paquerar com a atriz dos cachos que estava perto deles, — trata de encontrar a nosso chofer na parte do frente do teatro e lhe diga que traga o carro aqui.
— Seria mais prático conseguir um carro de aluguel — disse William, indubitavelmente sem vontade de afastar-se da companhia de Arlyss. — Apostaria que a rua do frente está lotada de pessoas, cavalos, carros... Seria um milagre se eu encontrasse...
— Você vai e fá-lo — interrompeu Damon, cortante.
— Está bem, está bem — disse William, e olhou a Arlyss com sorriso esperançado. — Não te parta. Não te mova daqui: logo voltarei.
Arlyss lhe respondeu com risadas afetadas, fingiu que o saudava e ficou admirando-o enquanto ele se afastava.
Julia olhou a seu marido com expressão inescrutável.
— Não sabia que estaria aqui esta noite.
Depois da dura prova pela que tinha passado dentro, seus nervos estavam a ponto de estalar; entretanto, pese ao perigo que tinha deslocado e à angústia pelo que ainda estava acontecendo dentro, sentiu-se estranhamente reconfortada. Teve a impressão de que no mundo não existia lugar mais seguro que os braços do Damon.
O suave lenço seguiu movendo-se sobre seu rosto em cuidadosas passadas.
— Não tive tempo de te enviar uma mensagem — repôs ele. — Fui procurar ao William ao Warwickshire e voltei para Londres logo que pude.
Ela se encolheu de ombros, como se lhe resultasse indiferente.
— Poderia haver ficado no campo. Não me importava que retornasse.
— Me importava: eu queria ver-te, sobre tudo em sua noite de estréia.
Os lábios da Julia desenharam uma careta amarga. A obra estava em ruínas; o fogo tinha impedido o que poderia ter sido um passo significativo em sua carreira. E o pior de tudo era que o teatro e os sonhos que nele se albergavam poderiam ficar reduzidos a cinzas antes que acabasse a noite.
— Todo um espetáculo, verdade? — disse ela, desalentada.
— Mais do que tivesse esperado — admitiu-o, com ligeiro sorriso.
Ele parecia entender o que ela sentia: o medo e a dolorosa consciência de que a vida nos tinha reservados esta classe de giros. Depois do duro trabalho e do sacrifício que tinha posto Julia, não era justo que tudo pudesse ficar destruído com tanta facilidade.
Julia contemplou esses olhos cinza com brilhos chapeados, impressionada pela calma e a fortaleza dele e pela intuição de que ele não temia a nada. Essa noite lhe tinha salvado a vida ou, ao menos, tinha impedido que sofresse danos. Por que se tinha arriscado por ela? Talvez sentisse que lhe devia seu amparo porque, do ponto de vista formal, ela era sua esposa.
— Obrigado — pôde dizer Julia. — Obrigado... Por isso que fez.
Ele percorreu a trêmula curva da mandíbula dela com seu polegar e com a gema de seu dedo indicador.
— Não deixarei que nada mau te aconteça, nunca.
Julia sentiu como se os dedos dele queimassem a pele. Tratou de baixar o rosto, mas ele não o permitiu. Dentro dela, a emoção e as sensações se desdobraram e seu corpo reagiu ao contato dele de maneira instantânea. Ele ia beijá-la. Julia se sentiu impressionada pelo muito que o desejava, pelo intenso da tentação de afrouxar-se, de entregar-se a ele. Ela sempre tinha receado dos homens de forte vontade, mas, nesse momento, representava para ela um bendito alívio que ele se fizesse cargo dela.
— Tem um sólido sentido do dever — sussurrou a jovem. — Mas não é necessário que...
— Isto não tem nada que ver com o dever.
Pela porta do teatro apareceu outro rosto.
— Senhorita Barry! Graças a Deus! Estive procurando-a por todos os lados. Está você bem? Machucou-se?
Ao voltar-se, Julia viu o Michael Fiske, o cenógrafo, que corria para Arlyss e a aferrava pelos ombros, levado por um impulso. Estava sujo, manchado, um rasgão no ombro da camisa. Em conjunto, tinha a aparência de um herói.
— Estou perfeitamente bem — lhe disse Arlyss, surpreendida e agradada ao ver-se objeto de tão fervente admiração. — Não tinha por que preocupar-se, senhor Fiske...
— Não podia suportar a idéia de que você tivesse sofrido algum dano!
— Senhor Fiske — disse Julia, interrompendo sem poder conter-se, — como está o teatro? O que está acontecendo dentro?
Fiske respondeu sem tirar o braço com que rodeava Arlyss; esta, por sua parte, não parecia descontente com a atitude dele.
— Acredito que agora, o fogo está sob controle. Tenho entendido que algumas pessoas resultaram feridas na disparada que se produziu para sair do edifício, mas, até o momento, não ouvi falar de nenhuma morte.
— Graças a Deus — disse Julia, afligida por isso. — Significa que, depois de algumas reparações, o Capital poderá abrir de novo?
— Mais que umas reparações — respondeu o cenógrafo, pesaroso. — O mais provável é que façam falta meses de trabalho... E só o diabo sabe de onde sairá o dinheiro. Eu diria que, pelo resto da temporada, estamos acabados.
— OH — exclamou Julia, presa de uma estranha desorientação. Sentia-se despojada de toda sensação de segurança. O que ocorreria logo? Logan decidiria suspender o pagamento dos atores pelo resto da temporada? Embora ela tivesse algumas economias, possivelmente não fosse suficiente para aguentar todo o tempo que fosse necessário.
A voz alegre do William interrompeu seus pensamentos quando o moço reapareceu em cena e disse a seu irmão:
— O chofer trará o carro, irmão. Quanto a mim, prefiro não esperar. Tenho vontade de beber algo forte e de ter a uma empregada entre meus braços.
Jogou um olhar especulativo a Arlyss, captando a indecisão em seu semblante e a expressão de desafio e receio do jovem que a tinha abraçada.
— A senhorita Barry não pertence a essa classe de mulheres — disse Michael Fiske, tenso, prolongando o abraço com gesto protetor.
No rosto do Arlyss se liam com claridade os pensamentos, enquanto olhava, ora a um dos homens, ora ao outro... Fiske, tão sincero e esperançado, e lorde William Savage, endiabradamente arrumado e irresponsável. Com movimentos lentos, desfez-se do braço com que Fiske a tinha agarrada.
Quando Julia viu o que Arlyss estava por fazer, sentiu um fundo abatimento. A miúda atriz nunca tinha sido capaz de resistir a um arrumado lorde, mesmo que fosse evidente que quão único este pretendia era uma noite de entretenimento em companhia feminina. Julia desejou para si que sua amiga não fizesse a eleição equivocada.
William arqueou uma sobrancelha enquanto observava a Arlyss, e em seus olhos azuis brilhava uma pícara incitação.
— Gostaria de me acompanhar a uma noite de diversão, bonita moça?
Arlyss não necessitava mais convite. Jogou um olhar de pesar ao Michael Fiske e se aproximou do William. Um sorriso atrevido curvou seus lábios e pôs sua mão sobre o braço dele.
— Aonde iremos primeiro? — perguntou, fazendo rir ao William.
Ele se despediu de seu irmão com um murmúrio e tomou a mão rígida da Julia na sua inclinando-se sobre ela em demonstração de galanteria.
— Minhas mais respeitosas saudações, senhora... Wentworth — saudou, demonstrando, com sua atitude, que conhecia bem a verdadeira identidade da Julia.
Ela molesta por sua desfaçatez, não respondeu a seu sorriso.
O rosto do Michael Fiske permaneceu inexpressivo, com sua vista cravada em Arlyss, que se afastava com o William a procurar um carro de aluguel.
— Lamento-o — disse Julia em voz baixa.
Fiske assentiu e compôs um breve sorriso desesperançado. Com a testa crispada, Julia o viu voltar para interior do edifício. Jogou ao Damon um olhar acusador.
— Poderia haver dito algo a seu irmão. Ele deveria ter deixado a Arlyss em companhia desse homem decente que sem dúvida a quer!
— A moça teve liberdade para escolher.
— Bom, pois tem feito a escolha equivocada. Tenho grandes dúvidas de que seu irmão albergue intenções honoráveis com respeito a ela!
— Eu tendo a coincidir com essa hipótese — disse Damon com secura. — Na mente do William há só uma coisa, e sua amiguinha deixou bem claro que estava muito disposta a agradá-lo — e, ao ver que se aproximava seu carro, assinalou-o com a cabeça em um gesto decidido. — Aqui está o chofer. Vem.
Ela negou, automaticamente, com a cabeça.
— Devo voltar a entrar para ver...
— Esta noite, já não pode fazer nada aqui. Vem: não irei sem ti.
— Se está pensando em repetir a atuação da outra noite... — cruzou-se esse pensamento por minha cabeça — interrompeu Damon, com os olhos faiscantes de malícia. — Mas não pensava insistir nisso. Se preferir, não faremos mais que beber uma taça e conversar. Abrirei uma garrafa de um Armagnac francês de vinte e cinco anos... é o melhor conhaque que tenha provado jamais.
O oferecimento tinha seu atrativo, por dizê-lo com leveza. Não era o conhaque o que a tentava a não ser, mas bem, a alarmante necessidade de contar com a companhia dele, com o consolo que isso lhe brindaria. Não estava segura de poder confiar em si mesma estando perto dele, e menos em seu presente estado de ânimo.
— Não deveria.
— Tem medo de ficar a sós comigo? — perguntou ele em voz baixa.
Isto já não era só um oferecimento: era um desafio. Julia sustentou o olhar direto dele e sentiu que a temeridade se agitava em seu interior. A noite tinha caído e ela teria que enfrentar o manhã quando chegasse. No momento, um gole revigorante e a companhia de lorde Savage eram o que ela mais queria.
Foi para ele com passos lentos.
— Estou segura de que depois o lamentarei.
Sorriu-lhe e a levou para o carro, ajudando-a a subir. Deu uma breve ordem ao chofer e subiu ao veículo, ocupando o lugar que havia junto a ela. O carro se afastou com suave balanço, e Julia se relaxou, recostando-se nas almofadas do assento com um suspiro.
Fechou os olhos um momento, mas suas pestanas se elevaram quando percebeu o olhar intenso do Damon. Ele estava observando os restos enrugados e chamuscados de seu vestido de cor verde pálido cuja dianteira se adornava com cordãozinho dourado. Ao notar o modo em que o olhar dele se atrasava em seu apertado sutiã, ela franziu o sobrecenho com ar reprovador.
— É preciso que me olhe desse modo?
A inapetência, o olhar do Damon passou ao rosto dela.
— De que modo?
— Como se acabasse de se sentar para jantar e eu fosse o prato principal — respondeu Julia e, enquanto ele punha-se a rir, ela cruzou os braços sobre os peitos em gesto defensivo. — Qualquer um diria que teria ficado satisfeito depois da outra noite!
— Isso não fez mais que abrir meu apetite e me dar vontade de mais — replicou ele, observando-a, e ao notar o desconforto em sua expressão, abandonou a atitude brincalhona. Relaxou, reclinando-se no assento com enganoso descuido. — Sei que, aquela noite fiz-te mal — disse ele com calma. — Sempre é assim a primeira vez.
Sobre o rosto da Julia se estendeu um intenso rubor. Recordou, como em um relâmpago, os corpos nus, juntos, retorcendo-se, a dor da união, o fogo agradável de ser possuída por ele. Ela sabia, mais ou menos, o que esperar, mas nunca tinha imaginado o muito que os aproximaria essa classe de intimidade. Era incompreensível que algumas pessoas pudessem considerar como passageira uma experiência assim... Uma experiência que tinha a modificado em centenas de aspectos indefiníveis.
— Agora, é tua. Faz com ela o que queira — disse ele, estendendo sua mão, com a palma para cima, para receber o anel. — Atiras você ou a atiro eu?
Assustada, ela fechou os dedos sobre a jóia.
Não permitirei que atire um objeto tão belo!
Agradado, ele baixou a mão.
— Nesse caso, conserva essa maldita coisa. Só te peço que não a dê a sua mãe.
Ao ver a expressão culpada dela, ele se pôs a rir e viu como ela voltava a pôr o anel em seu dedo.
A Julia irritava a suspeita de que seu recém achado marido estava voltando-se destro na arte de manipulá-la.
— Você irá querer algo em troca — disse ela com altivez. — Já te conheço bastante para estar segura disso.
— Eu só irei querer o que você esteja disposta a dar — replicou ele, deslizando seu olhar sobre ela. — E agora, me diga que classe de relação imagina para nós, senhora Wentworth.
Julia amaldiçoou o súbito despertar de seus sentidos, a maneira em que seu corpo, de repente, reagia em aguda percepção desse homem. Ele era resolvido e tinha confiança em si mesmo, qualidades que ela sempre tinha admirado em um homem. E o fato de que não pertencesse ao mundo do teatro o fazia mais interessante ainda. A Vida do pessoal de teatro não tinha nada de permanente. Compartilhavam uma existência superficial como os ciganos; sempre havia alguma produção que terminava e outra que começava. Até esse momento, ela não teria tido nada que ver com um homem como Damon.
— Suponho que... poderíamos tentar uma sorte de... amizade — disse Julia, dúbia. — Não é necessário que estejamos inimizados. Depois de tudo, nós dois queremos o mesmo.
— E o que seria isso?
— Ser livres. Assim, eu poderei continuar com minha vida no teatro e você poderá cumprir suas obrigações com lady Ashton.
— Segue mencionando-a... por que o faz?
— Porque estou preocupada, claro...
— Eu não acredito. Mas bem, penso que faz todo o possível por levantar um muro entre nós.
— E se fosse assim? — desafiou-o Julia, em voz trêmula.
Ele estava muito perto, sua dura coxa apertada contra o dela, seu antebraço passado sobre a cabeça da Julia. Seria muito fácil subir ao regaço dele e aproximar sua cabeça a dela, render-se ao prazer que lhe brindavam suas mãos e sua boca. Julia fez uma inspiração profunda e tratou de aquietar o tremor nervoso que sentia em seu interior.
— Está mal que queira me proteger?
— Não tem por que te proteger de mim. Acaso te obriguei, alguma vez, a fazer algo que você não quisesse?
Ela lançou uma risada tremente.
— Desde que nos encontramos, fui obrigada a jantar contigo, entreguei-te minha virgindade, inclusive aceitei esta jóia contra meus desejos de não...
— Eu não posso impedir que você sinta debilidade pelas jóias — repôs ele, sorriu ao ver a expressão frustrada dela e baixou sua voz. — No que se refere a dar procuração de sua inocência, esse foi um presente que eu jamais teria esperado. E o valorizo mais do que imagina.
Julia fechou os olhos e sentiu que os lábios dele percorriam sua testa e se atrasavam na frágil ponte de seu nariz. Sentiu roçar suave como pluma em suas pálpebras e bochechas e o contato de sua boca em seus lábios. Fez-lhe cócegas a boca e teve que fazer uso de toda sua força para não voltar-se de cheio para o lugar de onde chegava essa leve pressão, convidando-a ao beijo profundo e intenso que desejava.
— Foi tão doce essa noite — sussurrou Damon. — E tão bela. Jamais tinha vivido antes nada parecido. Não posso deixar de recordar e de te desejar de novo.
Julia umedeceu os lábios ressecados e logo replicou:
— Não porque você o deseje estará bem.
— Segundo as últimas notícias que eu tive não era pecado que um homem se deitasse com sua esposa.
Ele levou as gemas de seus dedos à parte do peito dela que ficava ao descoberto fazendo arrepiar essa tensa superfície. A respiração da Julia se fez rápida e superficial. Quão único podia fazer era aguardar em suspense, em silêncio, com seu corpo tenso, antecipando-se ao que ele poderia fazer.
— Bom — comentou Damon com suavidade, — de modo que quer tentar ter uma amizade comigo. Não tenho objeções que opor a isso — disse, atirando do cordão dourado que mantinha fechado o sutiã até que este se abriu. — De fato, penso que poderíamos nos fazer amigos muito... íntimos.
Sua boca morna foi descendo pelo pescoço dela enquanto que sua mão se deslizava dentro do sutiã, debaixo da fina camisa branca que cobria a carne nua da Julia.
Julia fechou os olhos e ofegou ao sentir que os largos dedos dele se curvavam sobre seu peito acariciando-o, excitando-o até que o mamilo lhe doeu e se endureceu. Sentiu seu corpo alagado de calor, lasso e frouxo de desejo. Murmurou um protesto quando sentiu que ele a levantava e a sentava sobre suas pernas, mas os protestos foram rapidamente silenciadas pela boca dele. Ávida, abriu-se a seu beijo, deixando de lado todo pudor, desejando mais agradar com o que ele podia lhe brindar.
O balanço do carro apartou as bocas dos dois e Julia procurou que o beijo se repetisse, mas ele resistiu. Sua boca iniciou uma nova exploração ao longo da terna superfície do pescoço, até o oco da garganta, onde o pulso pulsava enlouquecido. Ele achou o vale entre os peitos dela e se afundou em suas profundidades, enquanto seus dedos os liberavam do tecido que os cobria. Dos lábios da Julia escapou um grito apagado ao sentir que lhe mordia com suavidade um mamilo. Levou suas mãos à cabeça dele retendo-o nessa posição, enredando seus dedos no cabelo negro e grosso do Damon. A língua dele roçava e se enroscava sobre essa ponta sensível uma e outra vez, até fazer que ela se arqueasse para ele, dando um gemido. Deslocou-se para o outro peito e brincou com ela sem dar-se pressa, desfrutando dos breves gemidos de indefesa dela.
A respiração dos dois se tornou rápida e dificultosa e o desejo pulsava em seus corpos; então Damon a apartou um palmo e lhe disse:
— Me diga que não quer isto. Diga-me que pode ver-me, conversar comigo sem pensar nisto... sem me necessitar tanto como eu necessito a ti. E agora, me diga que só quer minha amizade.
Julia se apertou contra ele, tremendo, seus peitos nus roçando os finos linhos e panos de lã da roupa dele. Era estranha a lentidão com que sua mente dava forma aos pensamentos.
— Desejo-te — disse ela, com um breve gemido, temerosa de suas necessidades e da dor que a aguardava se cedia a elas.
Não devia permitir-se amá-lo nem depender dele, posto que isso lhe daria o poder de despojá-la de toda sua força e sua confiança em si mesmo. Seria pior que o vivido todos aqueles anos junto a seu autoritário pai. Esse homem seria capaz de apoderar-se de sua alma.
Damon apartou os largos cabelos dela, beijou-lhe o ombro nu e a abraçou com força suficiente para que ela pudesse sentir sua ereção. Julia tremeu e se apertou contra essa forma dura, fazendo coincidir suas carnes suaves com as dele até lhe arrancar um gemido que lançou com a boca apoiada em seu cabelo.
— Não siga... ou te possuirei aqui mesmo.
Ele a beijou com certa brutalidade, explorando a boca da mulher em uma tormenta de paixão, e ela respondeu a suas exigências com as próprias.
O carro se deteve e Julia soube que tinham chegado à propriedade dele. Apartou-se com esforço, retrocedeu até o assento de frente e tratou de acomodar seu sutiã com dedos torpes. Não acertava a unir ambas as partes do tecido e atirar do cordão dourado para ajustar os laços. Quando conseguiu recuperar certa aparência de decoro, elevou a vista e se encontrou com o olhar fixo do Damon.
— Vem dentro comigo — disse ele.
Seu rosto mostrava certa tensão e um resplendor contido em seus olhos, que não deixava lugar a dúvidas sobre o que ocorreria se ela o acompanhasse.
"Não", gritou ela para seus adentros, mas, sem saber por que, a palavra não saiu. Queria estar com ele, queria que ele aliviasse a dor física de seu corpo e lhe desse a mesma paz e a mesma plenitude que tinha experimentado a vez anterior. Uma noite mais com ele... acaso faria mais dano que o que já estava jogo? Envergonhada de sua debilidade, superada pela tentação, debateu-se com seus sentimentos.
Damon decidiu por ela, abrindo a porta do carro e estirando sua mão para a Julia. Tomou a mão e ela permitiu que ele a tirasse do veículo. O chofer se apressou para adiantar-se a eles e abrir a porta principal da mansão, e os dois cruzaram a soleira para entrar no silencioso vestíbulo. Devia ser a noite livre dos criados posto que não se via nenhum por ali; o lugar estava insuficientemente iluminado.
Assim que fechou a porta, Damon a fez voltar-se em seus braços e a beijou com sua boca premente que se abateu sobre a dela. O prazer fez tremer a Julia, que ficou nas pontas dos pés para acomodar-se a ele, rodeando seus largos ombros com os braços. Damon moveu seus lábios para lhe sussurrar no ouvido algumas palavras ternas e eróticas, mas Julia ficou rígida ao perceber um movimento detrás dele. Sobressaltada, apartou-o empurrando-o pelo peito e ficou olhando ao intruso com olhos aumentados. Damon também olhou.
Uma mulher baixava a escada com um lento e deliberado rebolado, balançando com graça seus quadris. As dobras de seu fino vestido, feito de capas transparentes de cor damasco, moviam-se em volta de suas coxas e tornozelos como se fossem líquidos. Era um objeto sedutor, pensada para atrair a atenção de um homem. Estava descalça como se acabasse de levantar-se da cama e saísse a receber a visitantes inesperados.
— Pauline — murmurou Damon, atônito.
Julia se separou dele, alisando sua saia com movimentos inconscientes. Apesar da expressão dura de seus olhos, Pauline era extraordinariamente bela, com seu cabelo escuro e sedoso derrubando-se por suas costas, seus olhos enviesados como os de um gato.
— Me ocorreu te fazer uma surpresa, querido — disse Pauline em voz baixa, como se estivesse em pleno domínio da situação. — Nunca imaginei que a surpreendida seria eu. Não esperava que, havendo entre nós tantos assuntos sem resolver, esta noite recebesse a outra mulher — chegou ao final das escadas e cruzou os braços, fazendo mais marcada a separação entre seus peitos. Seu olhar, frio e divertido, posou-se sobre a Julia. — O que te passou, querida? Tem um aspecto terrivelmente desarrumado... e ambos cheiram a fumaça.
— Houve um acidente no teatro — respondeu Julia.
— Ah — disse Pauline, olhando outra vez ao Damon com suas finas sobrancelhas arqueadas. — Ultimamente te tem feito muito devoto do teatro, não é assim?
— Que diabos está fazendo aqui? — perguntou ele, com voz dura.
O tom dele pareceu feri-la. Uma de suas mãos magras se posou sobre seu ventre para lhe recordar a gravidez.
— Pensei que tínhamos que falar e, como você não vinha a mim, esta era minha única alternativa — disse Pauline, e olhando outra vez a Julia: — Você, segue viagem, certo? Damon e eu necessitamos um pouco de intimidade. Estou segura de que poderá encontrar a outro homem que satisfaça suas necessidades esta noite.
Julia sentiu que lhe gelava o sangue de fúria e de humilhação, mas manteve uma expressão imutável.
— Por certo que sim — replicou, em tom controlado. — Queria me afastar de vós o mais rápido possível.
— Espera — disse Damon, tomando o braço, mas ela se soltou com brutalidade.
Um sorriso satisfeito se abriu no semblante de Pauline. E não pôde resistir a tentação de lançar um último sarcasmo.
— Senhora Wentworth, talvez creia você que está muito perto de lorde Savage, mas há muitas coisas que você não sabe dele. Suspeito que, entre as coisas que não lhe há dito há uma muito relevante: que ele já está casado.
Julia se deteve junto à porta:
— Sim, já sei — repôs ela com calma.
Pauline adotou uma expressão de surpresa e logo, seu rosto se crispou de desdém.
— Meu deus, tem a mesma moral que uma gata no cio. Olhe que se entregar a um homem que está casado com outra mulher e que deixou prenhe a uma terceira, é a criatura mais desavergonhada que tenha conhecido jamais.
— Pauline... — disse Damon, em tom ameaçador, mas Julia o interrompeu.
— Desavergonhada? Você é a que passeia quase nua pela casa de um homem casado.
Ardia em desejos de lhe dizer a verdade a essa mulher, de lhe dizer que ela era a esposa em questão e que quem não tinha direito a julgar a ninguém, por certo, que era Pauline.
Julia conseguiu, sem saber bem como, conter sua língua e, indo para a porta, abriu-a de um puxão. Deteve-se para jogar no Damon um olhar atravessado, mas ele deu a impressão de ignorá-la, pois toda sua atenção estava enfocada em Pauline. Os ciúmes a atenderam. Não pôde discernir com quem estava mais zangada: se com ele ou consigo mesma.
Julia saiu depressa e chamou o lacaio.
— Diga ao chofer que traga o carro imediatamente. Quero partir agora.
Enquanto o criado se apressava a obedecê-la, ela esfregava os braços nus; a brisa fresca a fazia tremer. Pensou em ir a sua casa, mas rechaçou a idéia imediatamente. Nesse mesmo momento, havia uma pessoa a que precisava ver a única pessoa no mundo que podia ajudá-la a recuperar sua prudência e a devolvê-la a realidade.
Damon guardou comprido silêncio, sua vista fixa em Pauline até que o sorriso de vitória se apagou e ela começou a sentir-se incômoda. Falou com suavidade, esforçando-se por parecer tranquila.
— Suponho que não devo te culpar por paquerar com ela, querido. Ela é bastante atrativa, embora seu estilo seja um tanto tosco, óbvio...
— Não deveria ter vindo aqui.
Até esse momento, ao Damon nunca tinha desagradado Pauline. Mas, até então, embora tivesse sentido impaciência, exasperação, zangado contra ela, nunca havia sentido algo que se assemelhasse muito ao ódio. Era como uma pedra de moinho que tivesse pendurada do pescoço, aferrando-se a ele com inflexível decisão, arrastando-o para um lugar muito escuro, frio. Ela fazia surgir quão pior havia nele. Ficou tenso quando ela se aproximou dele, apertando contra o seu corpo perfumado.
— Não podia seguir longe de ti — murmurou Pauline. — Te joguei muito de menos.
— Falaste com o doutor Chambers?
O olhar dela evitou rapidamente a dele.
— Não, mas pensava fazê-lo muito em breve — repôs, e seus braços sedosos começaram a rodear os ombros dele. — Enquanto isso...
— Então, eu o arrumarei.
Empurrou-a, fazendo-a retroceder uns passos, obrigando-a a soltá-lo. Embora não a tratasse com brutalidade, tampouco foi amável.
Pauline pareceu zangada e alarmada, de uma vez.
— Não pode fazer isso!
— Por que não?
— O doutor Chambers é um homem muito ocupado... não pode lhe dar ordens como se fosse um criado. E ele não falará contigo a respeito de meu estado a menos que eu lhe dê meu consentimento.
— Está jogando comigo disse ele, com perigosa suavidade. — Não o tolerarei.
Ela se tornou atrás com ar ofendido.
— Não tem por que te pôr tão ameaçador. Até agora, não tinha conhecido esse teu aspecto; resulta-me bastante desagradável.
— Desagradável? — repetiu ele, com voz densa. — Não há palavras para descrever o aspecto de minha pessoa que você verá se descobrir que estiveste me mentindo.
Ela o olhou aos olhos.
— Hei te dito a verdade.
— Então, busca logo um médico para mim, Pauline... um que aposte sua reputação para respaldar a afirmação de que está grávida. Essa é a única possibilidade que tem de impedir que te torça o pescoço.
— Está de mau humor porque danifiquei seus planos de te deitar com essa pequena prostituta do teatro...
— Não diga uma só palavra mais sobre ela. Um ataque de fúria lhe fez tremer a voz.
Embora raivosa Pauline reconheceu a sinceridade da ameaça velavam as palavras dele. Durante uns instantes, lutei por controlar suas emoções.
— Entendo que a deseje disse ela, ao fim. — Possivelmente a deseje tanto como em outro tempo me desejou. Mas não farei a um lado para te facilitar as coisas. Eu terei o que quero, o que me deve — afirmou e, contemplando o semblante de pedra dele, suavizou sua voz; sua expressão passou de zangada a sedutora. — Não poderia dizer que é um tortura estar comigo, não? No passado, você desfrutava com minha companhia; isso não tem por que trocar. Se nossos jogos na cama lhe aborreceram, posso inventar outros. Dar-te-ei prazeres que poucas mulheres se atreveriam jamais...
— Terminou — disse ele com frieza.
Os olhos escuros da mulher se dilataram.
— O que é, exatamente, o que terminou?
— Nossa relação... ao menos, do modo como veio sendo.
— E o que me diz do menino?
— Se você der a luz a um menino nos próximos nove meses, eu decidirei qual é minha responsabilidade. Se não, não ficarão dúvidas de que eu não sou o pai... porque não me deitarei contigo, não penso te tocar e, se Deus me ajudar, nem sequer te verei.
— Há um menino — disse ela, fustigando-o com cada palavra. — Terá que comer suas palavras, Damon. Lamentará me haver tratado assim.
— Pode ser — disse ele. Tirou-a do braço com tanta força que lhe fez mal e começou a empurrá-la escada acima. — Enquanto isso, vestir-te-á e deixará minha casa imediatamente.
— Diga ao mordomo que quero ver o senhor Scott — disse Julia ao lacaio quando desembarcou da carruagem. — Diga que lamento o tardio da hora, mas que se trata de um assunto urgente.
— Sim, senhora Wentworth.
O lacaio transpôs sem demora a porta principal e informou ao mordomo da presença da recém chegada.
Julia o seguiu vacilante, sentindo que seu valor ia esfumando-se a cada passo que dava para o interior da luxuosa casa do Logan Scott, nesse tranquilo bairro suburbano do St. James Square. A casa tinha um largo de três painéis e sua fachada estava adornada com maciças colunas usadas que pareciam postas ali para intimidar aos visitantes curiosos como ela, por exemplo. Ela nunca tinha estado antes ali, pois Logan tinha proibido a todos os atores e ao pessoal do Capital que pusessem um pé em sua propriedade.
Até onde Julia sabia, estranha vez Logan recebia em sua casa. As poucas pessoas que tinham tido o privilégio de visitá-lo não haviam dito uma só palavra com respeito à casa ou a seus moradores, por respeito ao desejo de intimidade do dono de casa. Esse era seu domínio exclusivo, sua pequena propriedade; dava a impressão de estar coberto por um véu invisível de mistério. Mas ela queria vê-lo e não se sentia capaz de esperar até a manhã seguinte.
Para a Julia, Logan era o mais próximo a um conselheiro, e o problema que ela tinha era muito entristecedor para enfrentá-lo sozinha. Não havia nenhuma outra pessoa em quem pudesse confiar para lhe pedir um conselho sensato. Perguntou-se se Logan a jogaria de sua casa imediatamente em caso de que o surpreendesse sua inesperada aparição, ou o zangasse, ou ambas as coisas. Também existia a possibilidade de que o conflito da Julia o divertisse e se burlasse dela. Essa idéia a fez encolher-se, mas se obrigou a seguir caminhando.
O alto lacaio que a tinha precedido estava falando com o mordomo, que desapareceu para reaparecer pouco depois. Era evidente o perfeito treinamento do mordomo na falta de expressão de seu semblante, mesmo que tivesse ante si a uma jovem tremente, coberta com um vestuário teatral chamuscado.
— O senhor Scott a receberá, senhora Wentworth murmurou o criado.
O mordomo se despediu do lacaio e precedeu a Julia para o interior. Ela pensou que oxalá Logan não se retirou ainda e que não tivessem tido que despertá-lo. O mais provável era que não, posto que não podia imaginar ao Logan dormindo depois de todo o acontecido essa noite. Julia se distraiu enquanto percorria a casa, sem poder acreditar do todo que, por fim, estava vendo o mundo privado do Logan.
A decoração das habitações era de estilo italiano, com móveis de profuso esculpido, afrescos pintados nos céus rasos e brancos bustos de mármore. De tudo emanava um ar de luxo, tudo estava lustrado, aveludado e serenamente atenuado. A tapeçaria e as cortinas das janelas estavam feitas em intensos tons de azul, ouro e vinho.
Chegaram a uma sala íntima onde se empilhavam almofadas de seda e veludo sobre os sofás e poltronas e onde se viam pequenas mesas de marchetaria, cheias de novelas e livros de imagens. Logan Scott se levantou de uma poltrona no mesmo momento em que Julia transpôs a soleira.
— Senhora Wentworth disse, em voz um tanto rouca. Como está você? Espero que o fogo não lhe tenha feito nenhum dano.
— Estou muito bem assegurou Julia.
Atraiu seu olhar a outra pessoa presente na sala, uma das mulheres de beleza mais exótica que ela tivesse visto jamais. Sua pele era como de creme dourada, o cabelo negro e liso, e seus olhos impressionantes de cor verde clara. Levava uma pesada bata de seda rodeada à esbelta cintura, que destacava a forma de um corpo flexível e comprido. A Julia a fascinou. De modo que esta era a misteriosa mulher que vivia com o Logan. Seria mais que uma amante para ele ou só uma comodidade?
A mulher sorriu a Julia e se aproximou do Logan.
— Deixar-lhes-ei sozinhos para que possam conversar — disse, com tato, e passou uma mão sobre o cabelo do Logan em um gesto de proprietária, para depois partir.
Logan posou sobre Julia um olhar especulativo. Ele tinha os olhos avermelhados pela fumaça; em contraste, as íris pareciam mais azuis que nunca.
— Toma assento — lhe disse, assinalando uma cadeira acolchoada perto dele. — Quer uma bebida?
— Sim, algo — disse Julia, agradecida, acomodando-se na confortável cadeira.
Alcançou-lhe um copo com um líquido de cor âmbar claro, que ela identificou como uísque rebaixado com água, de sabor tenso e apenas adocicado. Logan se serviu um copo de licor puro, sentou-se perto dela e estirou as pernas. Igual a Julia, não se tinha trocado e seguia levando a roupa da obra. Estava em estado desastroso: manchado de suor e de fumaça, a camisa rasgada em várias partes, as calças quebradas no joelho.
— Como está o teatro? — perguntou Julia, hesitante, bebendo um pouco de uísque.
Não era uma bebida que lhe gostasse, em particular, mas lhe fez bem seu efeito reconfortante.
Um cenho crispado escureceu o semblante do Logan.
— Não ficou destruído, mas terá que fazer reparações que consumirão muito dinheiro. Teremos que reduzir na metade as representações que tinha planejado para esta temporada e reservar o resto para fazer uma excursão pelo interior. Enquanto isso, eu irei e voltarei para fiscalizar as obras que se façam no Capital.
— OH — exclamou Julia.
Ela detestava as excursões, os horários tardios, a má comida e os quartos sujos. No passado, tinham sido poucos os espetáculos que levaram em excursões limitadas, por lugares como Bristol, Leicester e Chester. Era cansativo enfrentar as multidões que estavam acostumados a esperá-la à saída de seu alojamento e aguentar a ciumenta observação de que era objeto, fora aonde fosse.
Em que pese a sua evidente fadiga, Logan sorriu ao ver a falta de entusiasmo dela.
— Nada de queixa — murmurou. — Esta noite, não estou em condições de brigar.
Julia arrumou para retribuir o sorriso.
— Eu tampouco o estou — repôs, baixando a vista para seu vestido e brincando com uma dobra da saia. — Esta noite, a obra partia esplendidamente antes do incêndio. Estou segura de que teria recebido boas críticas.
— A semana que vem a levaremos ao Bath.
— Tão logo? — perguntou Julia, arqueando as sobrancelhas em sinal de perplexidade. — É que a cortina de fundo e as peças da cenografia ficaram destruídas...
— Farei que Fiske e os outros improvisem algo. Podem modificar os painéis do mar e a costa do mercado de Inéscia e alguns panos de fundo que usamos em outras produções — disse ele, esfregando a ponte do nariz com o polegar e o índice. — A questão é que não podemos nos permitir demorar a excursão.
— Talvez pudéssemos reunir mais recursos dando espetáculos beneficentes para reparar o teatro — propôs Julia.
— Eu me preocuparei com o dinheiro. Enquanto isso... — olhou-a de frente. — Por que vieste Jessica?
Ela bebeu um gole de uísque com dissimulação.
— Eu... necessito de seu conselho.
Logan esperou a que ela continuasse, fazendo uso de uma paciência pouco habitual nele.
Julia inalou e soltou um comprido suspiro.
— Tenho problemas pessoais — resmungou.
— Já o tinha imaginado. Prossegue.
— Não estou me comportando como estava acostumada a fazê-lo, estou adotando decisões que sei que são errôneas; entretanto, não posso evitá-lo. Tenho medo de que meu trabalho se ressinta, mas, sobretudo, tenho medo do que poderia fazer depois...
— Espera — disse Logan, tratando de interpretar essa catarata de frases confusas. — Deduzo que isto tem certa relação com um homem. Por acaso, esse homem é lorde Savage?
— Sim.
— Certamente — disse ele, e um brilho irônico e divertido apareceu em seus olhos. Ele deu volta sua vida como se fora uma média... e agora você está começando a pensar que te apaixonou por ele.
A Julia desgostou o modo em que ele o expressava, como se seus sentimentos fossem apenas um lugar comum e seu desgosto estivesse desconjurado. Logan não percebia o grande nó frio que ela sentia em seu peito, a desolação que estava empurrando-a para o desastre. Entretanto, ela tomou muito a sério as palavras dele. O que ela sentia por Damon, a potente atração física, o desejo de contar com sua companhia, a sensação de que se entendiam mutuamente... Percorreu-a um forte estremecimento e se fez o propósito de enfrentar a verdade. Sim, estava apaixonada pelo Damon. Em seus olhos lhe arderam as lágrimas; apressou-se a beber um pouco mais de uísque até sentir que lhe ardia a garganta.
— Não se trata de algo que eu deseje sentir — disse, tossindo um pouco.
— Claro que não — disse Logan, mexendo em seu cabelo de cor mogno e ajeitando, distraído, uma reluzente mecha. — Te deitaste com ele?
— Isso não é teu assunto!
— Tem-no feito — confirmou ele sem alterar-se, adivinhando a resposta na expressão ofendida dela. — Isso explica muitas coisas. Você não é uma mulher que entregue seus favores de qualquer jeito. Não me cabe dúvida de que não sabe distinguir o amor da paixão... e isso é perigoso. Nunca te permita ter uma aventura a menos que possa exercer o controle por inteiro. Se tiver a impressão de que Savage te supera e não pode dirigi-lo, rompe com ele. Não importa o doloroso que te pareça no momento: é a única decisão prudente.
— Não é tão fácil — disse Julia.
— Por quê?
— Porque... casualmente estou casada com ele.
Se não se houvesse sentido tão desventurada, Julia teria desfrutado ao ver a estupefação que apareceu no semblante de seu patrão. Não tinha imaginado que sua revelação impressionasse desse modo ao Logan, tão mundano e tão sofisticado.
Logan se afogou com a bebida e demorou uns momentos em recuperar-se.
Desde quando? Perguntou, confundido.
— Há dezoito anos.
Uma nova quebra de onda de perplexidade afogou qualquer intento de segurança em si mesma.
— Jessica, o que diz não tem sentido...
— Casaram-nos quando éramos meninos.
Logan, com expressão fascinada e curvada de uma vez, deixou a um lado sua bebida.
— Continua — disse, em voz baixa.
Com palavras que saíam a fervuras, ela relatou seu passado e esse matrimônio que tinha pesado sobre ela durante tanto tempo. Sentia o peso do olhar fixo dele, enquanto falava, mas ela não teve coragem de olhá-lo. Dava-lhe uma sensação estranha estar lhe confessando a verdade depois de ter guardado seu segredo durante dois anos. E ao mesmo tempo, o alívio alagava seu interior à medida que o confessava tudo, reservando-se somente a parte referida a gravidez de lady Ashton. Não sabia bem por que, mas lhe parecia que era algo muito pessoal para contá-lo; isso os expor, tanto ao Damon como a ela, à brincadeira.
Ao final do monólogo da Julia, Logan dava a impressão de haver-se recomposto um pouco.
— E agora que me revelou tudo isto, que espera de mim?
— Talvez necessite que alguém me diga o que devo fazer. E não diga que devo tomar eu mesma esta decisão, porque, ao parecer, não estou em condições de...
— Savage tem intenções de seguir adiante com o matrimônio?
— Não estou segura — respondeu Julia, cautelosa. Acredito que... talvez o queira.
— Dir-te-ei minha opinião. Não é bom, Jessica... Julia. Se ficar com ele, terá que fazer todos os sacrifícios que ele te peça.
— Sei — sussurrou ela, pesarosa.
— Mas há algo mais; eu não acredito no amor. Ao menos, não acredito nessa emoção grandiosa, apaixonada que nós sentimos ao representar para o público sobre o cenário. É só uma ilusão; nunca perdura. As pessoas são intrinsecamente egoístas. Quando se apaixonam, intercambiam mútuas promessas só para conseguir o que desejam. Quando o amor desaparece ou se destrói, quão único ficam são mentiras e desilusão... e lembranças que não lhe deixam dormir de noite.
A profundidade do cinismo dele surpreendeu um pouco a Julia.
— Tenho a impressão de que falas de sua própria experiência.
Logan sorriu sem humor.
— Sim; tive alguma experiência. A suficiente para compreender quais são os riscos de confiar seu coração a outra pessoa. Nunca é aconselhável fazê-lo, Jessica; menos no caso de uma mulher.
— Por que diz isso?
— Por um motivo evidente. Em essência, o matrimônio não é outra coisa que uma transação econômica. A lei, a religião e a sociedade, em conjunto, opinam que você é propriedade de seu marido. A poesia e o romance são uma maneira de fazê-lo digerível, mas essas coisas só podem enganar a quem é jovem e tolo. Talvez você chegue à conclusão de que amas o bastante ao Savage para entregar seu corpo e sua alma a seus cuidados... mas eu não lhe aconselharia.
— O que faria você se estivesse em meu lugar?
— Eu pensaria em procurar um juiz que invalidasse o matrimônio. Isso, sempre e quando fosse legal, para começar. Eu estou seguro de que está apoiado em uma licença obtida por meio de perjúrio — disse ele e, de repente, um sorriso cruzou seu rosto. — Que pais notáveis que tivestes... são de uma cobiça quase shakespeariana.
— Não pode imaginá-lo disse Julia com secura.
Refletiu sobre o conselho do Logan, tão inflexível e realista. Ela tinha abrigado a esperança de que depois de falar com ele tudo seria claro; pelo contrário, tinha tantas dúvidas como antes. Ele advogava por uma vida de completa independência e auto-suficiência, mas isso tinha um preço que teria que pagar. Ela não queria ficar só para sempre.
— Tudo isto é muito confuso — disse Julia, mais para si mesmo que para ele. — Não quero deixar a cena e minha liberdade. E, entretanto, uma parte de mim deseja ter um marido, filhos e um lar como é devido...
— Não pode ter tudo.
Julia suspirou.
— Já de menina queria o que não era bom para mim. Na sala de nossa casa estava acostumada haver uma caixa de prata cheia de guloseimas; eu podia tomar só uma, em ocasiões especiais. Apesar de tudo, os doces desapareciam de maneira misteriosa, até que a meu pai lhe ocorreu começar a acusar aos criados de roubá-los.
— E não eram os criados — adivinhou Logan.
— Não, era eu. De noite, escorria-me à planta baixa e me abarrotava de doces até que me decompunha.
Logan pôs-se a rir.
— Com os prazeres mundanos sempre passa o mesmo: a gente nunca tem o bastante.
Julia tentou sorrir em resposta, mas a aflição a curvava. Nunca havia sentido tal incerteza com respeito a seu próprio raciocínio, pois temia que os prazeres da vida e as facilidades que Damon poderia lhe brindar seriam muito tentadores para resisti-los. E logo, quando descobrisse seu engano, já seria muito tarde. Estaria ligada a ele para sempre. Começaria a culpá-lo, e a si mesma, por seu permanente descontentamento.
— Possivelmente não seja tão mau para mim ir de excursão — disse Julia. — Preciso me afastar daqui, dele, para poder pensar com claridade.
— Te adiante e nos espere no Bath — sugeriu Logan. — Se quiser, pode partir amanhã. Eu não direi a ninguém onde está. Poderá ter uns dias para estar a sós, ir aos banhos, visitar as lojas da Rua Bond... o que você queira. Tome um tempo para refletir a respeito de sua decisão.
Julia cedeu a um impulso e se estirou para tocar o dorso da mão ossuda do Logan, cujo pêlo avermelhado dava a sensação de ser um pouco áspera ao tato.
— Obrigado. Foste muito bondoso.
A mão dele não se moveu sob os dedos dela.
— Tenho meu próprio motivo de interesse: seria difícil te substituir no Capital.
Julia se tornou atrás e sorriu.
— Senhor Scott, amaste, alguma vez, a uma pessoa do modo que amas esse maldito velho teatro?
— Só uma vez... e me bastei.
Os efeitos combinados do fogo, a fumaça e a água tinham causado danos no interior do teatro Capital, mas não eram tão graves como Damon tinha imaginado. Abriu passo entre alguns assentos quebrados que bloqueavam seu caminho, e avançou do fundo do pátio de poltronas para o cenário. Havia ao menos uma meia dúzia de homens trabalhando debaixo do painel frontal quebrado, e alguns deles, encarapitados em escadas de obra, tiravam os farrapos queimados da cenografia, enquanto que outros varriam e se levavam o lixo.
Em meio da ação, Logan Scott se dedicava a desenrolar uma cortina de fundo que teria sido usado em uma produção anterior.
— Sustente isto para que possa lhe jogar uma olhada — ordenou ao pintor de cena e a um ajudante que estava por aí.
Ergueu-se e observou a peça com olhar crítico, os braços cruzados e sacudindo a cabeça.
Um dos tramoistas advertiu a presença do Damon e, aproximando-se do Logan, informou-lhe com um murmúrio. Scott elevou bruscamente a cabeça e lançou ao Damon um olhar penetrante. Sua expressão era, a um tempo, precavida e amável.
— Lorde Savage — saudou afável. — No que posso lhe servir?
— Estou procurando à senhora Wentworth.
Quando os criados da Julia lhe informaram que ela tinha deixado Londres e que não voltaria por um tempo, Damon se viu impulsionado a ir ao teatro. Os serventes não tinham querido lhe revelar nada mais, face aos subornos e as francas ameaças que ele tinha empregado.
— Não a encontrará aqui — disse Scott.
— Onde está?
Scott desceu do cenário de um salto e se aproximou dele com um sorriso frio e cortês. Falou em voz baixa:
— Neste momento, a senhora Wentworth não quer ver ninguém, milord.
— É uma grande pena — disse Damon, sem alterar-se. — Eu a encontrarei, com sua ajuda ou sem ela.
As facções do Scott adquiriram o aspecto de terem sido esculpidas em pedra. Fez uma profunda inspiração.
— Eu tenho uma idéia bastante aproximada do que está acontecendo, Savage. Não tenho direito a expressar minha desaprovação. Entretanto, investi muito na Jessica, e agora, mais que nunca, a companhia necessita de seu talento. Espero que você respeite sua necessidade de estar sozinha.
Damon se deixaria condenar antes que falar de sua vida privada com o patrão da Julia. Mesmo assim, devia ter em conta uma incômoda verdade: que conhecia a Julia muito mais tempo que ele. Ao parecer, ela confiava no Scott e lhe estava agradecida porque lhe tinha brindado a oportunidade de trabalhar no Capital. Embora lhe tivesse esclarecido que a relação entre eles não ia, além disso, Damon não podia deixar de abrigar suspeitas. Como era possível que Scott não se sentisse atraído por uma mulher como Julia?
— Existe acaso a possibilidade de que você tenha algum outro interesse para mantê-la longe de mim? — perguntou Damon com sorriso irônico. — Ou será que todos os administradores de teatro sempre manifestam uma preocupação tão pessoal por suas atrizes?
Scott se manteve imperturbável.
— A senhora Wentworth é amiga minha milord. E lhe brindarei meu amparo toda vez que o considere necessário.
— Amparo contra o que? Contra um homem que pode lhe oferecer algo mais que uma vida de vertiginosas fantasias ante o público? — replicou Damon, lançando um olhar depreciativo às paredes calcinadas e às cortinas chamuscadas do teatro. — Ela necessita algo mais que isto, você admita ou não.
— Pode lhe dar você tudo o que ela quer? — perguntou Scott em um murmúrio.
— Isso ainda está por ver-se.
Scott meneou a cabeça.
— Ao parecer, você crê ter direitos sobre a Jessica; apesar disso, não a conhece. Talvez tenha a intenção de apartá-la do mundo do teatro e lhe oferecer substitutos, mas, nesse caso, ela murcharia como uma flor cortada.
— Fala como um amigo aflito? — perguntou Damon, com enganosa indiferença. — Ou como um empresário preocupado por seus lucros?
Scott reagiu à provocação de maneira discreta, mas houve uma súbita rigidez em sua postura; isso bastou para que Damon soubesse que tinha dado no branco.
— Ela significa para mim muito mais que os lucros.
— Quanto mais? — insistiu Damon e, ao achar como resposta o silêncio, rompeu a rir. — Economize sua hipócrita preocupação com respeito à senhora Wentworth. Só lhe peço que não interfira em minha relação com ela pois do contrário lhe juro por Deus que farei que se lamente de ter posto os olhos em mim.
— Já o lamento — murmurou Scott, erguendo-se como uma estátua, enquanto via partir ao Damon.
Ao princípio, Bath tinha sido construída pelos romanos em torno de várias fontes de águas termais. No começo do século XVII, a região foi convertida pelos gregorianos em um elegante lugar de recreio, com aprazíveis passeios e altos e elegantes terraços palatinos. Agora, já em sua maturidade, Bath não só era acessível ao reino, a aristocracia, mas também às pessoas de classe média. As pessoas iam para melhorar sua saúde bebendo as águas medicinais e tomando banhos, e para renovar estimados contatos sociais. A cidade, levantada com o passar do rio Avon, em meio de colinas de pedra calcária, brindava diversões e comércios; ali havia alojamento que ia do simplesmente cômodo ao luxuoso.
Enquanto ia caminhando para a casa de banhos com a fonte de águas termais que ficava perto da estalagem em que se alojava, Julia contemplava os últimos raios do sol, rosados e malva, que desapareciam atrás do Novo Teatro. Este era um elegante edifício que albergava em seu interior um estupendo cenário e três fileiras de camarotes; em sua magnífica decoração preponderavam a púrpura e o ouro. Fazia uma semana que Julia estava no Bath, e nos últimos dias, tinha visto descarregar caixas cheias de equipe cenográfica que tinham chegado para a estréia de Senhora Engano. Também tinham chegado à cidade os tramoistas e parte do elenco. Logan tinha enviado uma mensagem dizendo que todos deviam estar prontos para o ensaio do dia seguinte, para preparar a primeira apresentação, que seria na quinta-feira.
No transcurso de suas saídas às compras, e quando foi visitar a sala de bombeamento, uma magnífica construção com colunas coríntias, tanto por fora como por dentro, Julia tinha ouvido os comentários locais relacionados com a obra. Alguns afirmavam que dava mal de olho e que, por nada do mundo, iriam vê-la. Outros manifestavam um vivo interesse pela produção. Tecia-se uma quantidade de especulações a respeito da senhora Wentworth, coisa que divertiu a Julia quando se sentou perto dos fofoqueiros com um véu que lhe ocultava o rosto.
Era necessário que mantivesse sua identidade em segredo. Anos atrás, Julia tinha chegado à conclusão de que jamais satisfaria as expectativas que o público depositava nela. Era inevitável que quisessem que se assemelhasse a uma das heroínas que ela interpretava, incluindo o diálogo engenhoso e os gestos veementes. O próprio Logan Scott se queixou de que as mulheres pretendiam, e inclusive às vezes o exigiam que ele interpretasse ao romântico que viam no cenário.
— É um problema frequente para os atores — lhe havia dito. — As pessoas sempre se decepcionam quando descobre que somos seres humanos como todos.
Quando chegou à casa de banhos, Julia entrou nesse pequeno edifício de singelo desenho grego, e saudou com um movimento de cabeça à criada que a esperava no interior. Julia fazia previamente acertos com essa mulher, de modo que não se permitisse o ingresso de nenhuma outra pessoa nos banheiros enquanto ela acudia cada noite. Era a única forma em que ela poderia ter uma hora de paz sem enfrentar os comentários, as perguntas e as olhadas curiosas das mulheres. O horário era conveniente, posto que fossem poucas as pessoas que desejavam visitar a casa de banhos ao anoitecer, quando estava menos concorrida. Existia o convencimento de que era mais saudável e, além disso, mas desejável do ponto de vista social, tomar os banhos pela manhã.
Julia saiu do hall e transpôs uma porta de madeira curvada para entrar na sala de banhos. A superfície da água era terna como um cristal e refletia a luz de um único abajur que estava fixado à parede. Da piscina se elevava um vapor de aroma ácido e mineral que enchia todo o ambiente. A água quente fazia um maravilhoso contraste com o ar fresco do exterior. Julia lançou um suspiro de gozo antecipado, tirou a roupa e a amontoou sobre uma cadeira de madeira. Sujeitou o cabelo com duas fivelas, formando um coque no cocuruto.
Desceu com cuidado pelos gastos degraus que conduziam à água. A água morna lhe lambeu as panturrilhas e foi subindo até os quadris, a cintura e, logo, até os ombros, quando seus pés tocaram o fundo da piscina. O penetrante calor a fez estremecer-se de prazer; ela deixou que seus braços flutuassem na água e lhe vigorizassem, salpicando-se languidamente o pescoço.
À medida que seu corpo se relaxava, sua mente passava de um pensamento a outro. Perguntou-se como teria reagido Damon ao conhecer seu súbito desaparecimento, se teria tentado encontrá-la... ou se tinha estado muito ocupado com lady Ashton para lembrar-se dela. Sua imaginação evocou o quadro que fariam ele e Pauline, com seus corpos abraçados no ato de amor. Sacudiu a cabeça para liberá-la dessas imagens. Era para ela fonte de profunda preocupação pensar que teria acontecido aquela noite do incêndio no teatro, depois de que ela partiu da casa do Damon. Teria permitido ele que sua amante ficasse? Teriam discutido? Fariam o amor?
— Não me importa, não me importa — murmurou Julia, molhando a cara com as mãos.
Sabia que essa era uma mentira. Apesar de suas negativas, seus temores e sua teima, ela não podia menos que sentir que Damon era dela.
Depois de tudo o que tinha sofrido a causa do matrimônio entre ambos, tinha conquistado o direito de amá-lo. Mas, por outra parte, se era certo que havia um menino em gestação... não sabia se poderia viver sabendo que ela tinha contribuído a que Damon deixasse de lado suas responsabilidades.
No preciso momento em que se salpicava de novo a cara, ouviu a voz da empregada da casa de banhos, que se parecia com um gorjeio, lhe dizendo:
— Senhora Wentworth.
Julia enxugou os olhos e olhou para a entrada, onde estava a anciã.
Os cachos cinza da velha, sujeitos no cocuruto, balançaram-se alegremente acompanhando o ritmo de suas palavras.
— Senhora Wentworth, há uma visita para você. Estou segura que você se alegrará muito quando vir a esta pessoa.
Julia sacudiu a cabeça em gesto enfático.
— Já lhe hei dito que ninguém deve entrar no banheiro enquanto eu esteja aqui...
— Sim, mas, você não rechaçaria a seu próprio marido, não é verdade?
— Meu marido? — perguntou Julia com vivacidade.
A criada assentiu com tal veemência que seus cachos correram o risco de soltar-se.
— Sim; certamente que é um homem elegante e arrumado.
Julia ficou boquiaberta de surpresa, ao tempo que lorde Savage entrava, fazendo a um lado à criada.
— Aqui está — disse ele, em tom agradável, posando o olhar na Julia, que se afundava mais na água fumegante.
— Me sentiste falta, querida?
Julia se recuperou rapidamente e olhou de esguelha ao Savage.
— Absolutamente.
Ela teve grandes desejos de arrojar um pouco de água sobre as imaculadas calças e a branca camisa de linho dele.
A empregada do banho riu com dissimulo ante o que confundiu com um jogo entre os dois. Damon se voltou e lhe dedicou um encantador sorriso.
— Agradeço-lhe muito por permitir me reunir minha esposa, senhora. E agora, se tivesse a amabilidade de nos permitir uns minutos de intimidade, e de manter afastados a outros visitantes...
— Nem uma alma cruzará esta soleira — prometeu a mulher, fazendo uma piscada enquanto partia. — Boa noite, senhor Wentworth!
Esse sobrenome fez que Damon franzisse o sobrecenho.
— Não sou o senhor Wentworth — murmurou, mas a mulher já partiu.
Quando se voltou para a Julia, viu que esta ainda o olhava com hostilidade.
— Como me encontraste?
Damon tirou a jaqueta com movimentos descuidados e a pendurou do respaldo de uma cadeira.
— Sua amiga Arlyss me disse que a companhia estava preparando-se para viajar ao Bath. Depois de ter averiguado em uns poucos hotéis e estalagens, tenho descoberto onde te alojava. O proprietário da estalagem me informou que tinha o costume de vir aqui cada tarde.
— Ele não tinha direito a...
— É que eu fui muito convincente.
Quando disse isso, seu olhar se posou sobre a parte superior dos brancos peitos dela, que a luz vacilante do abajur fazia brilharem.
— OH, estou segura disso — repôs Julia em tom sarcástico.
Aproximou-se da parede da piscina ocultando assim seu corpo à vista dele. Talvez fosse a causa do calor da água que sentiu acelerar o ritmo dos batimentos de seu coração. Nenhum outro a tinha olhado do modo que a olhava ele, com seus olhos cinzas quentes e apreciativos, transbordantes de posessividade.
Damon se agachou perto dela, e se equilibrou apoiando os braços sobre os joelhos flexionados.
— Você segue fugindo de mim e eu sigo te encontrando — disse em tom suave.
— Não passará uma só noite comigo, na estalagem. E tenho a suspeita de que todos os alojamentos do Bath estão cheios, por completo. Se não te agrada dormir na rua esta noite, será melhor que volte para Londres sem demora.
—Tenho uma casa com jardim na Laura Agrada.
— Por quê? - replicou ela, tratando de dissimular seu chateio. Não é um homem que lhe interesse a vida social no Bath.
— Comprei a casa para meu pai. Gosta-lhe vir aqui quando sua saúde lhe permite viajar. Agradar-te-ia vê-la?
— Não acredito. Se por acaso não o tinha notado, estive tratando de te evitar — disse, e jogou bruscamente a cabeça para trás quando Damon estirou a mão para lhe enxugar umas gotas de água no queixo. Não me toque!
— Se estiver zangada pelo que aconteceu com o Pauline a outra noite...
— Não me importa absolutamente. Dá-me no mesmo que tenha convencionado com ela que estivesse ali ou não. E estou mais zangada comigo mesma que com qualquer pessoa.
— Porque teria querido estar comigo? — murmurou ele. Fez-se um silêncio quase absoluto só quebrado pelo suave chapinho da água na piscina. Julia tinha perdido por completo a sensação de paz que lhe tinha dado o banho; tinha sido substituída por uma tensão que agitava cada parte de seu ser. Cravou a vista nas afiadas facções do Damon, no brilho de seus olhos, e então compreendeu a vastidão do desejo dele. Ele estava aí porque a desejava, e não a deixaria livre com tanta facilidade.
— Não deveria me haver seguido até o Bath — disse ela. — Não conseguirá nada de mim; menos ainda o tipo de bem-vinda que ao parecer você espera.
Em lugar de discutir, ele a submeteu a um meticuloso escrutínio visual. Posou o olhar sobre a magra mão dela, com seus dedos rígidos, apoiados na pedra escorregadia que bordeava o banho.
— Leva o anel que te dei de presente — observou ele.
Julia apertou as mãos e as inundou na água, ocultando o diamante reluzente.
— Não significa nada, salvo que, casualmente, agrada-me. E se der por certo que pode comprar meus favores...
— Não dou nada por certo — interrompeu ele, e um sorriso apareceu em seus lábios. A parecer, imagina que vou saltar sobre ti em qualquer momento. Quase diria que se não o fizer se sentirá decepcionada.
— Deixemos de jogos — disse Julia com altivez. Você veio porque quer voltar a se deitar comigo.
— É obvio que quero — respondeu ele, sem alterar-se. — E você também quer o mesmo. Segundo eu recordo, foi uma experiência em que ambos desfrutamos... ou acaso seria capaz de afirmar que só estava fingindo?
Irritada, Julia avermelhou e jogou um braço atrás a modo de advertência.
— Se não partir, arrojar-te-ei tanta água que arruinarei essas roupas tuas tão elegantes.
O sorriso do Damon perdurou:
— Nesse caso, não teria desculpas para não me reunir contigo.
O braço da Julia se afrouxou lentamente.
— Por favor, vá — lhe disse entredentes. — Já levo muito tempo no banheiro e começa a enrugar-me a pele.
Solícito, lhe tendeu a mão.
— Eu te ajudarei a sair.
— Não, obrigado.
— Tem pudor? — perguntou ele, arqueando as sobrancelhas com expressão zombadora. — Eu já te vi nua. Que diferença haveria em que voltasse a ver-te assim?
— Não sairei até que não tenha partido!
Um sorriso provocador curvou os lábios do Damon:
— Não partirei.
Sem poder suportar mais sua irritação, Julia compôs uma expressão impávida e estendeu uma mão para ele.
— Está bem — disse com frieza. — Pode me ajudar a sair.
Obediente, Damon se estirou para ela, que se agarrou ao pulso dele com ambas as mãos. Antes que ele pudesse firmar-se para poder atirar dela, Julia aplicou toda sua força para fazê-lo cair à água. Com uma afogada maldição, Damon perdeu o equilíbrio e caiu na piscina.
Julia lançou um grito de triunfo e retrocedeu para o flanco oposto do banho. Não pôde conter a risada ao ver que Damon emergia, com seus cabelos negros presos ao crânio. Por detrás de suas pestanas molhadas, seus olhos cinza prometiam vingança.
— Pequena diaba — murmurou ele, e se equilibrou para ela.
Julia seguiu rindo, com uma mescla de humor e alarme, e tratou de escapar dele. Mas Damon a aferrou pela cintura e, ao aproximá-la a seu corpo, várias capas de roupa empapada ficaram esmagadas entre os dois.
— É que necessitava uma imersão medicinal — explicou ela, ainda sacudida pela risada. — A água curará todos seus males.
— Há um mal que não curará — disse ele, em tom carregado de intenção e cravando as mãos sobre as nádegas nuas da Julia, apertou-a com força contra seu corpo.
A risada de Julia se desvaneceu ao sentir a ereção dele insinuando-se, íntima, entre suas coxas. O corpo da Julia flutuou na água quente bastou que se aferrasse a ele, sujeitando-se dos ombros do Damon, lhe rodeando os quadris com suas pernas. O fôlego dos dois se mesclava, escapando em baforadas irregulares, eles se olharam aos olhos. Estavam imóveis entretanto, Julia teve a sensação de que se derrubavam juntos ante a investida de uma marca crescente, impotentes, apanhados na sucção da água agitada.
Julia apartou com suavidade as mechas de cabelo molhado que se pegavam à frente dele, e seus dedos passaram da têmpora à orelha do Damon. Foi roçando sua mandíbula com o polegar e logo tocou o lugar brando que havia debaixo de seu queixo. Estava fascinada pela sensação de aspereza que lhe transmitia a pele dele, pelo movimento do músculo quando tragava.
De repente, Damon a elevou em alto, apertando-a contra si, sem ter que fazer força na água. Com suas mãos grandes, sujeitou-a por debaixo das axilas, sustentando-a com firmeza enquanto inclinava sua cabeça para o peito dela. Julia se debateu, protestando, até que sentiu a boca dele que se deslizava pela curva de seu peito e agarrava um de seus eretos mamilos. O toque rápido e leve de sua língua provocou uma aguda e doce reação, seu pico se contraiu na boca dele. Damon puxou e a acariciou com sua boca, fazendo-a ofegar e arquear-se, nos braços dele. As ávidas mãos da Julia se cravaram na camisa linho dele, convertida em um fino filme, quando ela, em realidade, ansiava tocar sua pele.
Damon a inundou outra vez na água deslizando sua mão pelo quadril da Julia, levou-a a pele tensa do ventre. Seus dedos escorregaram para a união das coxas dela, chegando ao arbusto de pêlo, até que encontrou sua parte mais sensível. Ela se estremeceu, sentindo um desejo cada vez maior, querendo cada vez mais desse prazer que lhe brindava. Entretanto, não podia abandonar-se por completo, consciente do lugar em que se achavam.
— Não podemos ofegou ela, com sua boca pega a dele. — Aqui, não.
— Deseja-me? Sussurrou ele, e lhe deu um profundo beijo, saboreando a doce tibieza de sua boca.
Julia se estremeceu, pega a ele, sentindo seu corpo escorregadio e grávido apertado ao dele. Rabiscado pelas pestanas molhadas, viu o rosto dele próximo ao dele, o leve brilho bronzeado de sua pele, seu olhar que prometia a concretização de eróticas fantasias.
Ao ver que ela guardava silêncio, Damon posou sua boca no pescoço dela e foi mordiscando uma linha que levou até a orelha.
— Bastará com que me diga murmurou isso ele. Será suficiente uma palavra, Julia: sim ou não.
Da boca da Julia escapou um leve gemido. Sumia-se nas sensações, desejava o que proibiu a si mesma, até sabendo quão errôneo era... mas isso não importou. Pareceu-lhe que, fora desse pequeno recinto, não existia nada nem ninguém. Levou sua mão ao cabelo molhado da nuca dele e se aferrou febril.
— Sim sussurrou.
Damon desabotoou sua camisa, sorrindo ao ver que Julia tratava de ajudá-lo, e os dedos de ambos se escorregavam e se enredavam sob a água. Uma vez que ficou nu o peito dele, Julia deslizou suas mãos por essa tensa extensão, dura como se fosse de mármore molhado. Seus mamilos roçaram a pele dele, e a excitação acelerou sua respiração.
— Rápido urgiu ela, derramando beijos sobre o torso e o pescoço dele.
A tarefa de desabotoar suas calças molhadas era difícil e, arqueando uma sobrancelha com expressão irônica, interrompeu-a para dizer:
— Até agora, nunca me tinha despido debaixo da água. Não é tão fácil como você poderia pensar.
— Segue tentando-o — sussurrou Julia, beijando-o.
Sua língua entrou na boca dele, tentando-o, provocando-o, até fazê-lo emitir uma mescla de risada e gemido e impulsioná-lo a atirar com mais força de suas calças. Por fim, os broches cederam e sua ereção se liberou de repente. A mão da Julia encerrou o membro duro e sedoso, sujeitando-o com suavidade e deslizando-se sobre ele.
Ele pronunciou seu nome no ouvido dela, com voz entrecortada, afundando seus dedos nos quadris, guiando o corpo dela para ele. Sujeitou-a com firmeza e a penetrou lentamente. Ela gemeu e se aferrou a ele, tremendo de deleite. Damon penetrou mais, desejoso de investi-la com rapidez, mas a água o obstaculizava, dando a seus movimentos um ritmo tão lento que era uma tortura.
Julia tremeu e, lhe rodeando os ombros com seus braços, afundou sua cara no pescoço molhado dele. Sentiu a força potente do fôlego que expandia o peito dele. Dava a sensação de que se converteram em um só ser, que tinha os mesmos ritmos em seu pulso e em seus nervos. O prazer aumentou vertiginosamente, sacudindo-a com sua intensidade.
Damon amorteceu o grito dela com sua boca, sentindo os estremecimentos convulsivos do corpo dela, que chegava ao orgasmo. Os músculos internos da Julia ondularam, apertando-se em volta dele, impulsionando-o para sua veemente liberação. Damon fechou os olhos, com os sentidos revolucionados e o sangue em chamas.
— Julia... — ofegou, com a boca pega ao pescoço arqueado dela. — Nunca te deixarei ir... nunca...
De algum modo, Julia o ouviu, por cima do caótico tumulto de seu próprio sangue. Uma parte dela se rebelou contra o tom de proprietário que vibrava na voz dele, e outra parte se regozijava com ele. Ele também pertencia a ela; na união dos dois, ela também achou um fundo prazer e, em que pese a sua inexperiência, soube que jamais o encontraria em nenhum outro. Lassa, plena e se desesperada, de uma vez, ela se deixou cair contra ele, na água. As mãos dele percorreram todo seu corpo, movendo-se com suavidade da nuca até os quadris.
— Me deixe passar a noite contigo — murmurou ele.
Julia compreendeu que não tinha sentido opor-se que, depois do que acabava de acontecer, seria uma hipocrisia negar-se. Fez um breve sinal de assentimento e lutou para apartar-se, sentindo que o corpo dele se separava do dela.
Olhou para trás para ver o Damon, uma gargalhada súbita a afogou quando o descobriu mergulhando no fundo da piscina, em busca de seus sapatos. Quando emergiu à superfície e elevou o arruinado sapato de couro com gesto triunfal, Julia meneou a cabeça lentamente.
— Pensa caminhar até a estalagem vestido com sua roupa molhada? Pegar-te-á um resfriado, ou algo pior. Damon a tirou do banho, acariciando-a com seus olhos cinza que percorriam o corpo nu dela.
— Você poderá me esquentar quando chegarmos a seu quarto.
Julia, cheia de vitalidade e de uma sensação de leveza, estava sobre o cenário do Novo Teatro do Bath e observava com satisfação a atividade que se desenvolvia a seu redor. Ao parecer, o incêndio de Londres não tinha abatido o ânimo do elenco nem dos tramoistas. Armavam com entusiasmo, a nova cenografia, ensaiavam fragmentos do diálogo e as partes em que surgiam bloqueios, e intercambiavam brincadeiras relacionadas com os aspectos árduos da excursão.
— Maldita cidade, pequena e aborrecida — murmurou Arlyss, pondo os braços em jarras. Olhou a Julia com expressão cômica. — Não se vá a um só homem jovem e saudável. Só velhas solteironas desesperadas e inválidos.
Julia sorriu com amargura.
— Eu pensei que tínhamos vindo aqui a representar uma obra, não a procurar homens.
— O dia que eu deixe de buscar - começou a dizer Arlyss, de repente, interrompeu em sua cara apareceu uma expressão estranha. Julia seguiu o olhar de sua amiga e viu que Mary Woods, uma das atrizes secundárias do elenco, paquerava abertamente com o Michael Fiske. O cenógrafo estava vivamente interessado na bonita jovem de exuberante sorriso.
— O que tem que fazer ela, ocupando o tempo do Fiske, quando deveria estar ensaiando sua parte? Perguntou Arlyss, indignada, franzindo o sobrecenho.
Julia conteve um sorriso ao perceber a evidente nota de ciúmes na voz do Arlyss.
— Mary tem só umas poucas linhas. Sem dúvida, a estas alturas já as sabe à perfeição.
Arlyss seguiu carrancuda.
— O senhor Fiske tem muito que fazer, e nenhuma necessidade de estar distraindo-se com fulanas como ela.
— Você poderia ter tido ao Fiske se tivesse querido — disse Julia em tom prático. — Mas, por isso eu recordo, estava mais entusiasmada com lorde William Savage.
— Bom, pois ele não era melhor que nenhum dos outros — replicou Arlyss. — Admito que se comporte muito bem na cama, mas me dá a impressão de que não quer saber nada comigo fora dela. Terminei com ele. Com todos os homens, no momento.
Cruzou os braços sobre o peito e se voltou de costas, procurando que se notasse que não queria ver o Michael Fiske e a Mary Wood. Nesse preciso momento, Julia surpreendeu ao Fiske jogando um olhar furtivo a Arlyss. Chegou à conclusão de que Fiske estava tratando de provocar ciúmes em Arlyss, e lhe tremeram os lábios de risada contida e simpatia.
— Falemos, melhor, de seu apaixonado — sugeriu Arlyss, adotando uma atitude pícara. — Em Londres, lorde Savage foi ver-me, pois estava tratando de te encontrar. Quão único eu lhe disse foi que a companhia ia começar uma excursão no Bath. Veio aqui? Viu-o?
Julia assentiu, depois de uma hesitação e um intenso rubor tingiu suas bochechas.
— E bem? — animou-a Arlyss. — O que aconteceu?
Julia sacudiu a cabeça e pôs-se a rir, incômoda. Mesmo que tivesse tido vontades de contar-lhe não ia descrever a noite passada. Ao sair da casa de banhos, tinham ido caminhando à estalagem. A brisa vivaz da noite tinha resultado refrescante para a Julia e, ao mesmo tempo, tinha percebido os calafrios que percorriam em todos os sentidos o corpo do Damon, com esses objetos molhados pegados a ele. Chegaram à habitação da Julia e ali ela tinha avivado o fogo da chaminé e tinham posto a roupa dele a secar.
Colocaram-se na cama, pequena, mas acolhedora, apertando os corpos nus um contra o outro, até que a pele do Damon esteve tão morna como a dela. Sem falar, lhe tinha feito o amor, laborioso por lhe expressar seus sentimentos com o roce suave das gemas de seus dedos, o calor de sua boca e os movimentos de seu corpo. Ao evocar o êxtase que tinha sentido naquela escuridão salpicada de fogo, o rubor da Julia se intensificou. Aquela manhã, Damon tinha demorado em despertar e, quando o fez, bocejou, se espreguiçou e resmungou, atraindo-a para ele quando viu que ela pretendia deixar a cama. Havia-a possuído uma vez mais, penetrando em seu corpo com lentas investidas que tinham arrebatado os sentidos da Julia.
Julia conseguiu, de algum modo, apartar sua mente dessas turbulentas lembranças.
— É algo que me resultaria muito incômodo comentar — murmurou.
Com contente ar conspirativo, Arlyss se inclinou para ficar mais perto dela.
— Sinto-me muito feliz por ti, Jessica! Até agora, nunca te tinha visto assim. Deve estar apaixonada. Demorou muito em te chegar, não é certo?
— Não o diga a ninguém, por favor.
— OH, não o farei, embora, de todos os modos, adivinharão. Já sabe como são os rumores. Além disso, quando se está apaixonada não pode dissimulá-lo posto que se dê a conhecer de mil maneiras diferentes
A chegada do Logan Scott, que tinha se atrasado por um bando de políticos, clérigos e habitantes da localidade ansiosos por travar relação com ele e dar a bem-vinda ao Bath, evitou que Julia tivesse que responder. Os vivazes olhos azuis do Logan não perderam detalhe da atividade que se desenvolvia sobre o cenário e a aprovou com um movimento da cabeça. Várias pessoas se amontoaram a seu redor, mas ele os conteve com um murmúrio e se aproximou da Julia.
— Senhora Wentworth — disse ele com animação, — como está você?
Julia lhe sustentou o olhar e disse, com leve sorriso:
— Depois de uma semana de descanso, estou perfeitamente bem, senhor Scott.
— Bem.
Arlyss percebeu que sua presença estava demais e se encaminhou depressa para o Michael Fiske, que ainda estava ocupado com a Mary Woods.
Logan não apartou seu olhar penetrante do rosto da Julia
— Ouvi dizer que Savage está no Bath — comentou.
Embora o dissesse em um tom neutro, Julia teve a impressão de que estava acusando-a de algo.
— Sim disse ela, de um modo que tanto podia interpretar-se como confirmação ou como pergunta.
— Já o viu?
Julia não teve suficiente coragem para responder, mas ele não teve dificuldade em adivinhá-lo, pela expressão dela.
— Outra vez estiveste te abarrotando de doces? — perguntou ele.
A referência à conversação que tinham sustentado em Londres fez ruborizar a Julia. Elevou os ombros em gesto defensivo.
— Eu não tenho a culpa de que ele queira me seguir.
Uma das sobrancelhas acobreadas do Logan se arqueou, irônica.
— Não a tem?
— Se o que insinuas for que eu o provoquei...
— Importa-me um cominho que você o tenha provocado ou não. Só te peço que tome cuidado de que seu trabalho não resulte afetado. A primeira manhã que chegue tarde ao ensaio por ter estado pulando com...
— Não cheguei tarde esta manhã — o interrompeu Julia, com certo matiz gelado na voz. — Você sim, senhor Scott.
Logan lhe dirigiu um olhar frio, voltou e se afastou, disparando ordens a direita e esquerda.
Julia se sentiu perturbada e um tanto intrigada. Era a primeira vez que chegavam a algo que se assemelhava a uma discussão, e ela não entendia bem o motivo. Se eles tivessem sido pessoas diferentes do que eram, ela teria suposto que Logan Scott atuava movido pelo ciúme. Mas isso era absurdo. Ele, por certo, não abrigava sentimentos românticos para ela e, embora assim tivesse sido ele teria preferido morrer antes que romper sua estrita regra, segundo a qual nunca devia cercar uma relação com nenhuma atriz da companhia.
Acaso Logan estaria preocupado pela possibilidade de que ela abandonasse sua carreira para dedicar-se a seu matrimônio? "Seria difícil te substituir no Capital", havia-lhe dito ele, na semana anterior. Era possível que fosse certo, mas não impossível. Sempre surgiam novas atrizes jovens e talentosas; Julia não se enganava, não se considerava imprescindível.
Enquanto realizavam um ensaio geral da obra, a companhia teve o alívio de comprovar que a produção quase não tinha defeitos, salvo alguns problemas de menor importância no ritmo. Mesmo assim, Logan não parecia nada satisfeito e interrompeu várias vezes o ensaio para fustigar ao elenco e aos tramoistas com verborrágicos sermões. A tarde se alargava, e Julia se perguntou até que ponto pensaria ele pressionar aos atores. Percorreram o grupo murmúrios de rebeldia até que por fim se deu por terminado o ensaio nas primeiras horas do anoitecer.
— Amanhã, quero lhes ver todos aqui às nove em ponto da manhã — disse Logan.
Os atores, resmungando pelo baixo, dispersaram-se rapidamente.
— Deveria estar muito agradado por quão bem saiu — se atreveu a dizer Julia ao Logan, que estava de pé no meio do cenário. As facções deste se endureceram. — Em troca, comportou-te como se o ensaio tivesse sido um desastre.
Lançou-lhe um olhar ameaçador.
— Quando alguém te nomear diretora da companhia, poderá decidir como dirigir as coisas. Em tanto, rogo-te que deixe essa responsabilidade em minhas mãos.
Esse arrebatamento surpreendeu e machucou a Julia.
— Oxalá todos pudessem ser tão perfeitos como você, senhor Scott — repôs em tom sarcástico e partiu.
Com movimentos bruscos, tomou sua capa e seu chapéu, que tinha deixado em um dos assentos do teatro e se encaminhou para a entrada. A pressa lhe fez esquecer que devia haver uma multidão fora. Como os habitantes do Bath estavam inteirados da presença da companhia teatral, sem dúvida se amontoariam para poder jogar uma olhada ao Logan Scott e a outros atores do Capital.
Assim que ela abriu a porta e deu um passo para fora, uma horda de pessoas a empurrou de novo para dentro em seus intentos por entrar no teatro fechado.
— É ela! — gritou alguém. — Senhora Wentworth!
Ouviram-se gritos impacientes, tanto de parte dos homens como das mulheres, e mãos ávidas trataram de aferrá-la. Assustada, Julia apoiou todo seu peso contra a porta e consegui fechá-la, não sem que antes dois homens tivessem entrado pela força.
Julia retrocedeu, ofegando pelo esforço, e olhou a esses dois. Um era corpulento, de meia idade, e o outro, alto, fraco e muito mais jovem. O robusto tirou o chapéu e a contemplou com visível luxúria. Entre seus lábios inchados apareceu a ponta vermelha de sua língua. Quando falou, exalou um fôlego pesado, que fedia a tabaco e a licor.
Apresentou-se como se estivesse convencido de que ela se impressionaria com seu título:
— Lorde Langate querida, e este é meu companheiro, lorde Strathearn — disse, tirando o chapéu e deixando ao descoberto uma escassa cabeleira, lubrificada com fixador e que cheirava a colônia. — Permita lhe dizer que você é ainda mais apetecível de perto que de longe.
— Obrigada — disse Julia, assustada. Encasquetei-se o pequeno chapéu na cabeça e o sujeitou sobre seu pulcro penteado de coque. — Desculpem, cavalheiros...
Os dois sujeitos se aproximaram mais a ela, lhe fazendo retroceder contra a porta. Os olhos do Langate, como dois calhaus, despediam um brilho ávido enquanto percorriam a esbelta figura da Julia.
— Como Strathearn e eu conhecemos a cidade e todos seus prazeres, decidimos lhe oferecer nossos serviços para esta noite.
— Não é necessário — repôs Julia em tom cortante.
— Levaríamo-la a jantar num lugar excelente, logo daríamos um passeio em meu carro, senhora. Asseguro-lhe que o desfrutará de muito.
— Tenho outros planos para esta noite.
— Sem dúvida — replicou Langate, lambendo os grossos lábios, e sorriu deixando ao descoberto uns dentes manchados de tabaco. — Mas estou seguro de que poderemos convencê-la de trocar esses planos para acompanhar a um par de cavalheiros que a admiram tanto.
— Temo-me que não — respondeu Julia, tratando de empurrá-los e passar, mas foi abandonada outra vez contra a porta.
Para seu horror, sentiu que o sujeito lhe manuseava o sutiã e que seus dedos curtos e gordinhos lhe colocavam um pequeno maço de bilhetes entre os peitos. Julia se tornou atrás, com um estremecimento de asco e extraiu o dinheiro de seu vestido. Com o rosto tingido de rubor abriu a boca para pedir auxílio.
Mas, antes que pudesse emitir o menor som, uma espécie de torvelinho escuro se abateu sobre os sujeitos. Julia piscou e se paralisou enquanto a seu redor aconteciam movimentos vertiginosos. Os dois homens que a tinham esmagado contra a porta desapareceram de repente, como se os tivesse arrancado dali a mão gigante de um deus Olimpo. O maço de bilhetes caiu dos dedos da Julia e se esparramou no chão. Aturdida, olhou a seu salvador: era Damon, com seu rosto convertido em uma fria máscara, seus olhos acesos de uma fúria mortífera. Tinha estampado contra a parede aos dois desventurados lordes, como se fossem um par de temerosos cachorrinhos. Damon não dava sinais de escutar as balbuciantes desculpas e explicações dos dois homens. Ao fim, os dois guardaram silêncio e ele falou entredentes.
— Se voltarem a se aproximar dela, far-lhes-ei pedaços... e não me deterei até ter espalhado seus restos por todo Bath.
O rosto arroxeado do Langate se tornou purpúreo.
— Nós não sabíamos que ela estava comprometida — consegui dizer.
Damon soltou ao Strathearn e concentrou toda sua atenção no Langate. Seus dedos apertaram o pescoço do homem.
— Toque-a, lhe fale, olhe-a, sequer... e o matarei.
— Não é necessário... — ofegou o homem, resfolegando. — Por favor... me deixe ir.
Damon o soltou de repente e Langate se derrubou junto à porta. Strathearn se aproximou dele apressadamente, pálido, acovardado e ofereceu a seu companheiro o braço para que se apoiasse. Os dois se encaminharam juntos para a porta para somar-se à ansiosa multidão que esperava fora.
Damon se voltou para a Julia, com seus olhos ainda reluzindo de raiva.
— Como...? — perguntou ela, agitada.
— Entrei pela porta traseira. Ali também há uma multidão te esperando.
— A mim e aos outros atores — disse ela, recuperando um fragmento de seu ânimo.
— Sobretudo, a ti — corrigiu ele, com sorriso duro. — Senhora Wentworth, parece que é você uma propriedade pública.
— Não sou propriedade de ninguém.
— Eu posso exibir um certificado de matrimônio que afirma o contrário.
— Isto é o que vale seu certificado — repôs ela, estalando os dedos. — A legalidade de nosso matrimônio é duvidosa, como você bem sabe. Qualquer tribunal o desprezaria, tendo em conta que nenhum de nós tinha a idade legal.
Passou um comprido momento, Julia baixou a vista e se perguntou por que, de repente, os dois estavam tão zangados o um com o outro. Suavizou em boa medida o tom de sua voz.
— Obrigada por me haver liberado desses palhaços.
Damon não respondeu, mas suas facções seguiam estando tensas.
— Terei que aguardar aqui até que a gente comece a dispersar-se — comentou Julia.
— Isso não será necessário — disse ele, com ar turvo. — Eu te escoltarei até meu carro.
Ela negou com a cabeça e retrocedeu.
— Não, obrigado. Não me parece prudente passar outra velada contigo.
— Nenhuma jantar, sequer? Porque sei, ainda não comeste.
— Não tenho inconvenientes em jantar contigo, o que acontece é que... depois...
Ao ver até que ponto ela se acalorava, Damon adotou uma atitude estranhamente doce. Estendeu a mão para o chapéu dela e o acomodou uns milímetros, alisando umas suaves mechas de cabelo loiro para trás.
— Não vim ao Bath só para te perseguir pelo dormitório... embora essa idéia tem seu encanto.
— Então, por que está aqui?
— Quero passar um pouco de tempo contigo. Quero conhecer melhor a vida que leva e por que essa vida é tão atrativa para ti. De fato, ainda somos uns desconhecidos. Não estaria mal que, antes de falar de como pôr fim a nosso matrimônio, conhecêssemo-nos melhor.
— Penso que não — coincidiu Julia, cautelosa, elevando o olhar para ele.
Fez o gesto de desenrolar o véu negro que pendia da parte alta de seu chapéu, mas ele lhe adiantou, arrumando com cuidado a rede para cabelo sobre a cara dela.
— Nesse caso, janta esta noite comigo, em minha casa. Depois, eu te levarei até a estalagem sem te tocar. Dou-te minha palavra.
Julia refletiu sobre a proposição. Nesse momento, a perspectiva de comer sozinha na estalagem ou acompanhada por outros integrantes da companhia não lhe resultava muito grata.
— Estou segura de que algo que prepare sua cozinheira será melhor que a comida da estalagem — disse ela.
Essa aceitação tão relutante fez sorrir ao Damon.
— Nesse sentido, também tem minha palavra.
Julia sempre tinha tido que defender-se só de pretendentes e admiradores muito entusiastas. Por isso, era uma mudança agradável ir do braço de um homem forte e permitir que ele assumisse o controle da situação. Não protestou quando Damon passou uma mão por suas costas em gesto protetor e a guiou por entre a turma de desconhecidos curiosos que havia fora. Imediatamente, recebeu o assalto de ansiosas perguntas e mãos que tironeavam de seu chapéu, seu véu e sua capa.
Sobressaltada, Julia sentiu que lhe arrebatavam o chapéu da cabeça. Seus olhos se encheram de lágrimas quando o alfinete que o sujeitava lhe provocou um forte puxão. Deu as costas a essa avalanche de gritos excitados e se pegou ao Damon até que chegaram à carruagem. Fez um esforço e sorriu à multidão antes de entrar no veículo. Damon, em troca, não foi tão indulgente e apartou a trancos às pessoas que estava na primeira fila da turba para afastá-la, sem fazer caso de seus protestos.
Uma vez instalada e a salvo dentro da carruagem, Julia suspirou aliviada e esfregou o couro cabeludo dolorido.
— Pensei que fossem arrancar-me o cabelo de raiz — exclamou, enquanto o carro empreendia a marcha.
O olhar do Damon era imperturbável.
— Desfrutar-se na adoração do público, que todos lhe persigam... é o que qualquer atriz poderia desejar. Julia refletiu sobre o comentário e respondeu com cautela:
— Não nego que me agrada saber que às pessoas gosta do que faço... e a aprovação deles significa que meu posto no Capital e meu pagamento estarão seguros.
— A aprovação do público significa mais que isso para ti.
O tom desdenhoso da voz dele irritou a Julia, que abriu a boca para replicar. Reconhecia que ele estava no certo, mas a exasperava a perspicácia dele porque não queria que ninguém adivinhasse com tanta facilidade seus sentimentos. Era certo que gostava da sensação de ser admirada pelo público, um público que estava mais que disposto a lhe consagrar toda a atenção e o afeto que seu pai sempre lhe tinha negado.
— Em comparação, qualquer vida ordinária deve empalidecer — comentou Damon.
— Não sei — disse ela, com certo sarcasmo, alisando seu cabelo revolto. — Conte como é uma vida ordinária, mas esquecia que você tampouco sabe.
— Eu levei a classe de vida para a qual me prepararam.
— Eu também — disse ela, à defensiva.
Apareceu um torcido irônico na comissura da boca dele, mas preferiu não discutir. Contemplou-a atentamente enquanto ela utilizava um pente de prender cabelo de tartaruga marinha para ordenar seus cabelos, arrumar o coque e sujeitá-lo.
A casa era tão elegante como podia sê-lo qualquer moradia de um bairro tão elegante como Laura Agrada. Os reluzentes chãos de carvalho estavam forrados com tapetes ingleses feitos à mão; sobre eles estavam distribuídos os móveis de pau-rosa lustrado e vasos de viçosas ervas. Das altas janelas penduravam cortinas amarelo pálido e verde, e uns espelhos com ornamentados marcos davam às habitações um aspecto arejado e aberto.
Julia se relaxou no ambiente luxuoso do pequeno salão iluminado com velas e se concentrou faminta, na comida. Dentro da variedade de pratos franceses havia frango com trufas em molho de champanha, escalopes de vitela às ervas e verduras que reluziam, porque tinham sido pinceladas com manteiga. Como sobremesas serviram-lhes uma fonte de frutas ao vinho e umas diminutas tortas de amêndoas coroadas com framboesas e merengue.
— Depois de um jantar tão copioso, não vou caber em meus vestidos — disse Julia, mordiscando uma torta e lançando uma exclamação de prazer.
— Já não cabe, quase.
O matiz de ciúmes que havia em sua voz fez sorrir a Julia.
— Comparados com os de outras atrizes, meus vestidos são muito recatados.
Recolheu uma framboesa que tinha em seu prato e a comeu com gestos delicados.
A expressão de desgosto perdurou no rosto do Damon.
— Não me agrada que outros homens possam ver tantas partes do corpo de minha esposa. Eu sei muito bem o que pensam quando lhe olham.
Sua atitude possessiva divertiu a Julia, que apoiou o queixo na mão e o contemplou.
— O que pensam? — perguntou.
Com o pretexto de lhe servir mais vinho, Damon ficou de pé e se aproximou da Julia. Encheu a taça dela e a olhou. Julia não se moveu, nem sequer quando a cálido olhar dele se posou em seus peitos e logo voltou para seu rosto. Ele tomou entre seus dedos, levemente, o contorno frágil de sua mandíbula e lhe fez jogar a cabeça para trás.
— Imaginam como é a textura de sua pele e se, na verdade, é possível que seja tão suave como aparenta sê-lo — disse, percorrendo com o dedo indicador a curva da bochecha feminina e seus lábios. — Se perguntam como será seu sabor... pensam que soltariam seu cabelo e o deixariam cair sobre seu corpo... acomodar-no-iam sobre seus peitos...
Em uma lenta carícia, sua mão desceu pela garganta dela e, logo, o dorso de seus nódulos passou uma, duas vezes sobre as cúspides desses peitos.
A respiração da Julia se acelerou e seus dedos se aferraram ao bordo da cadeira, enquanto tratava de recuperar a compostura. Sentiu o impulso de ficar de pé, de apertar-se entre suas pernas, de receber, gozosa, a tibieza de suas mãos sobre a pele. Damon seguiu brincando com ela, sem apartar um instante o olhar de seus olhos cinza, de reflexos chapeados de cada mínima troca na expressão da mulher.
— Queria te fazer o amor — murmurou, e te encerrar em algum lugar, para te gozar em privado.
Seus dedos se deslizaram pelo bordo do sutiã e se mergulharam perto do sensibilizado casulo do mamilo.
Tremendo, Julia lhe reteve a mão.
— Havia dito que não me tocaria antes de me levar de retorno à estalagem.
— Isso é verdade — confirmou ele, retirando pouco a pouco seus dedos do vestido dela. Seus lábios se abateram sobre os dela, lhe fazendo sentir seu fôlego quente e doce sobre a pele. — Tem um pingo de merengue nos lábios.
Com gesto automático, Julia tirou a língua, encontrou uma pequena quantidade de matéria pegajosa e a deixou dissolver em sua boca. O olhar do Damon não perdeu o fugaz movimento. Suas mãos, retidas nas dela, eram duras como o aço.
Julia foi soltando-o lentamente e olhou, como ao passar, o diamante que brilhava em seu dedo. À luz das velas, a beleza da pedra era notável, despedindo resplendor que trocavam todo o tempo. Sentiu-se culpado por havê-la aceito de mãos dele, por usar uma jóia que não tinha direito a conservar.
— Teria que aceitar que lhe devolva — disse isso ela, tirando a jóia e tendendo-lhe. Julia franziu o sobrecenho, sustentando o anel na mão.
— Não me serve para nada.
— Não me pertence.
— Sim, pertence-te — corrigiu ele. — Você é minha esposa.
Julia franziu o sobrecenho, sustentando o anel na mão.
— Este é o símbolo de um matrimônio que nunca existiu para mim... e que nunca existirá.
— Quero que o conserve. Aconteça o que acontecer no futuro, cada vez que olhe esse anel saberá que, uma vez, foste minha.
Julia não tinha cansado na conta de que, para ele, a jóia era um símbolo de posse. Deixou-a sobre a mesa e, com esforço, desprendeu-se do belo diamante. A jóia tinha um preço que ela não estava segura de querer pagar.
— Sinto-o — disse, sem poder olhar ao Damon.
Por mais que não pudesse ver o semblante do Damon, ela percebeu a mudança no ambiente... a feroz vontade de um guerreiro em batalha, o forte impulso de conquistar e dominar. Julia teve consciência da violência que Damon com muita dificuldade continha e permaneceu imóvel. Manteve seu rosto voltado emprestando ouvidos a respiração dele, até que os movimentos do peito do Damon que acompanhavam a sua respiração voltaram a ser calmos.
— Algum dia, pedir-me-á isso.
Surpreendida, Julia cometeu o deslize de olhá-lo. O rosto dele estava muito perto, seus olhos reluziam como a lâmina afiada de uma faca. Ela teve que jogar mão de toda sua capacidade de controle para que o susto não lhe fizesse tremer. Nesse momento, foi fácil compreender como tinha feito ele para tirar sozinho a sua família da pobreza e enche-la de riqueza com a única ajuda de sua força de vontade.
— Não — disse ela com suavidade. — Mesmo que me apaixonasse por ti, não aceitaria o anel nem me converteria em tua propriedade.
— Propriedade — repetiu ele, em um tom que fustigava como um chicote. — Assim é como você crê que eu te trataria?
Julia ficou de pé e o olhou cara a cara, enquanto ele seguia sentado no bordo da mesa.
— Se eu fosse sua esposa, permitir-me-ia que eu fosse aonde quisesse, que fizesse o que me desejasse muito, sem perguntas nem recriminações? Não protestaria se eu continuasse com minha profissão, se fosse aos ensaios pelas manhãs e voltasse das funções a meia-noite ou até mais tarde? E o que passaria com seus amigos e com seus pares? Com os comentários lascivos e mal intencionados que fariam de minha pessoa, em sua hipótese de que eu seria quase uma prostituta. Encontraria a forma de aceitar todo isso?
O semblante do Damon obscureceu vários tons, e Julia confirmou o que suspeitava.
— Por que o teatro significa tanto para ti? — perguntou ele com acento áspero. — Acaso é um sacrifício tão grande abandonar uma vida de cigana?
— Nunca pude depender de nenhuma outra coisa. É o único no que me sinto segura. Não quero um título e uma ronda interminável de acontecimentos sociais e uma propriedade tranquila no campo: essa é o tipo de vida que meu pai teria elegido para mim.
Damon sujeitou os quadris da Julia com as mãos e a aprisionou entre suas coxas.
— Uma parte de ti deseja essa classe de vida.
Julia se retorceu, empurrou-o no peito tratando de soltar-se, mas ele a sujeitou com mais força. Atraiu-a mais para ele até que as resistências dela se converteram em uma fricção entre os dois. Ela se paralisou subitamente, ao compreender o efeito que estavam exercendo seus movimentos nele. A prova era sua rígida ereção junto ao ventre dela, provocando, a sua vez, uma reação imediata em seu corpo.
— Quero partir agora mesmo — disse agitada.
Damon a soltou, mas seu olhar cravado no dela não lhe permitiu mover-se.
— Não te facilitarei as coisas. Não vais poder me evitar nem te liberar de mim sem lutar.
Julia o olhou com uma mescla de fúria e desejo. Já era bastante difícil negar-se a si mesma algo que desejava com tanta intensidade. Ainda persistia o sonho que ela albergava em seu interior, o sonho de ter sua própria família, seu lar, dormir todas as noites em braços de seu marido e passar largas horas jogando com seus filhos. E agora essas imagens sem rosto tinham definido sua forma na mente dela: queria ser a esposa do Damon e conceber com ele filhos de cabelos escuros. Agora, os sonhos tinham a possibilidade de concretizar-se e desistir deles seria o mais duro que lhe haveria fazer na vida.
De repente, recordou a voz fria e zombadora do Logan, lhe dizendo:
"Talvez chegue à conclusão de que ama bastante ao Savage para entregar seu corpo e sua alma a seus cuidados, mas eu não lhe aconselharia isso".
Julia retrocedeu com passos vacilantes, voltou-se e apertou as mãos sobre o peito agitado. Fez várias inspirações profundas, procurando que não se desatassem as emoções que se escondiam dentro dela. Damon lhe aproximou por detrás, próximo, mas sem tocá-la e, quando falou, fê-lo com voz inexpressiva, por cima da cabeça dela.
— Eu te acompanharei até a estalagem.
— Não tem por que fazê-lo... — começou a dizer ela.
Mas não lhe fez caso e foi tocar a campainha para pedir a carruagem.
Mantiveram-se em silencio durante o trajeto até a estalagem; o ambiente entre eles era tenso. As coxas de ambos se tocavam ajudados pelos tombos do veículo nos buracos da rua. Julia tratou de apartar-se, mas seguia escorregando para o Damon. Preferia morrer antes que trocar-se ao assento em frente sob o fixo, frio e sarcástico olhar dele. Por fim, a desventurada viagem terminou e ele a ajudou a desembarcar do carro.
— Subirei sozinha até meu quarto — disse Julia, intuindo que ele tinha intenções de acompanhá-la.
Damon negou com a cabeça.
— É perigoso. Acompanhar-te-ei até a porta.
— Estive aqui só mais de uma semana e me arrumei perfeitamente bem sem seu amparo — destacou Julia.
— Pelo amor de Deus, não vou tocar-te. Se esta noite tivesse tido intenções de te seduzir, você estaria em minha cama. Só quero comprovar que entra em seu quarto sã e salva.
— Não necessito...
— Me dê o gosto — disse ele entredentes, como se tivesse vontade de estrangulá-la.
Exasperada, Julia elevou os braços e entrou antes que ele no edifício, passando ante a mesa do proprietário e pelo salão vazio, em direção à escada que levava a planta alta. Damon a seguiu, andando a passo mais lento, suas sobrancelhas negras unidas em um cenho de desgosto. Avançaram por um comprido corredor mal iluminado até que chegaram à habitação dela. Julia tirou uma chave da bolsa e concentrou sua atenção na fechadura. A chave girou com muita facilidade.
Supôs que possivelmente tinha se esquecido de fechar o quarto com chave essa manhã ao partir e fingiu dar muitas voltas com a chave na fechadura. Essa noite, já tinha bastante sem necessidade de que a acusasse de descuido e incompetência. Enquanto fazia girar o atirador, deteve-se e olhou ao Damon.
— Já cumpriste com seu dever de cavalheiro — lhe informou. — Me deixaste sã e salva ante minha porta. Boa noite.
Depois de um indício tão pouco sutil, Damon a olhou com expressão zangada em seus olhos cinza, logo lhe deu as costas e se afastou a pernadas.
Julia lançou um suspiro, entrou em sua habitação e olhou em busca da caixa de fósforos. Acendeu um, com cuidado, e aproximou a pequena chama amarela ao abajur que havia sobre a penteadeira. Voltou a colocar o globo de cristal e ajustou a mecha até que a habitação se encheu de um suave resplendor. Os pensamentos que transbordavam sua mente lhe provocavam dor de cabeça. Não captava o que a rodeava, perdida como estava em suas preocupações, mas, quando olhou o espelho de corpo inteiro viu, com a extremidade do olho, um movimento no quarto. Ao mesmo tempo, deixou-se ouvir um estranho ruído como de algo que arranhava o chão.
Não estava sozinha. Um estremecimento de medo a percorreu. Julia girou sobre si mesma e lançou um grito que foi sufocado pela mão de um homem esmagando-se sobre sua boca. Alguém a levantou e a apertou contra um corpo que, embora fraco, possuía uma força considerável. Com suas fossas nasais dilatadas, seus olhos aumentados, cravou o olhar no corpo robusto de lorde Langate, que se aproximava dela. Quem a sujeitava era seu companheiro, Strathearn. Eram os dois sujeitos que a tinham acossado no Teatro Novo, esse mesmo dia. Era evidente que tinham acrescentado sua coragem por meio de uma grande quantidade de álcool; ambos despediam um pestilento fôlego azedo e tinham uma atitude insuportavelmente petulante.
— Não esperava voltar a nos ver, verdade? — ronronou Langate, alisando com sua mão gordinha os gordurentos fios de seu escasso cabelo que atravessavam sua calva. Percorreu com olhar agradado o corpo da Julia que se retorcia. — É uma fêmea de primeira, a melhor mercadoria que tenhamos visto jamais! Não é assim, Strathearn?
O homem mais alto assentiu e cacarejou entusiasmado.
A boca pequena do Langate se abriu em um sorriso jactancioso enquanto se dirigia a Julia:
— Não tem por que te assustar. Divertiremos-nos contigo e, depois, pagar-lhe-emos generosamente. Assim, você poderá comprar quaisquer quinquilharias que deseje. Não te indigne desse modo, querida. Arrumado a que recebeste a muitos cavalheiros ansiosos como nós, entre suas bonitas coxas — disse, aproximando-se e, depois de apanhar uma das mãos da Julia, que se debatia, levou-a pela força até sua torcida ereção. Uma careta lasciva crispou sua cara redonda.
— Isso — arrulhou. — Isto não está tão mal, verdade? Acredito que vais desfrutar com...
Mas jamais pôde completar sua frase. Julia ouviu o estampido da porta que se abria de repente e sentiu que a soltavam. Não conseguiu conservar o equilíbrio e caiu para diante, dando de mãos e joelhos contra o duro chão. Foi arrastando-se até um rincão e apoiou as costas contra a parede. Uma mecha de cabelo caiu sobre sua cara lhe obstruindo a visão da ação que se desenvolvia diante dela. Ouviu o ruído surdo, carnudo, dos punhos que se incrustavam na carne em golpes repetidos e os uivos de dor que enchiam o ambiente.
Julia apartou seu cabelo cansado e comprovou que Damon tinha retornado e que tinha toda a intenção de matar aos sujeitos a tinham atacado. Uma vez que deixou ao Strathearn atirado no chão feito um montão, concentrou sua atenção no Langate, golpeando-o até que o sujeito gemeu pedindo piedade. Em que pese a seu susto e seu medo, Julia cobrou consciência de que realmente Damon estava disposto a matar.
— Por favor, detenha! — ofegou ela. — Eu estou bem. Se não te detiver, vais matar o... Damon!
Ao ouvir seu nome ele parou e a olhou com olhos escuros como o carvão. Fosse o que fosse o que viu em seu rosto, bastou para tirá-lo do transe de raiva mortal em que tinha caído. Baixou a vista para o homem tremente que tinha debaixo dele e sacudiu a cabeça para limpar a vermelha névoa de sangue. Limpou os punhos ensanguentados na jaqueta do Langate, incorporou-se e atravessou a habitação aproximando-se da Julia. Langate e Strathearn aproveitaram a oportunidade para escapar imediatamente, gemendo e amaldiçoando enquanto partiam.
Julia soube que não poderia ficar em pé por seus próprios meios e tendeu, para as de seu marido, suas mãos, que tremiam de maneira evidente. Damon se inclinou e a elevou como se ela fosse uma menina, apertando-a contra seu peito. Ela se aferrou com força a ele, esforçando-se por compreender o que tinha acontecido.
— Obrigada — ofegou ela, tragando com dificuldade. — Obrigada...
Damon se sentou sobre a cama com ela sobre seu regaço, lhe alisando o cabelo revolto. Ela sentiu que ele enxugava as lágrimas de suas bochechas com os dedos. Apesar do retumbar que vibrava em seus ouvidos pôde ouvir o som da voz dele que a tranquilizava com palavras serenas, lhe repetindo que estava a salvo, que ninguém lhe faria mal. Julia manteve os olhos fechados, concentrando toda sua vontade dentro de si, esforçando-se por não voltar a estalar em lágrimas Se Damon não tivesse retornado, Langate e seu companheiro a teriam violado. A idéia de ser submetida a semelhante brutalidade era aterradora.
—Por que tornaste? — conseguiu perguntar ela, ao fim
A carícia da mão dele sobre seu pescoço era de uma deliciosa ternura
— Ao chegar ao extremo do corredor, tive a impressão de que te tinha ouvido gritar. Correndo o risco de ficar como um idiota, decidi voltar a ver como estava.
Ela levou sua mão a dele e a oprimiu com força os dedos.
— Ao parecer, sempre está me resgatando.
Damon a obrigou a levantar o queixo, lhe impedindo de voltar o rosto para poder olhá-la aos olhos.
— Me escute, Julia... nem sempre estarei em condições de chegar a seu lado bem a tempo. O fato de que eu estivesse aqui esta noite foi um golpe de sorte...
— Já terminou — interrompeu ela, ao perceber que a ternura se esfumou e agora havia na voz dele uma nova nota de recriminação.
— Não terminou — replicou ele com aspereza. — De agora em diante não fará mais que piorar. Haverá mais tipos como Langate que queiram levar algo de ti, e que farão algo por estar perto de ti. Se quiser continuar com sua carreira como atriz, necessitarás amparo dia e noite; essa não é uma apresentação que eu tenha intenções de ocupar.
Sem nenhuma cerimônia, ele a deixou cair sobre a cama e se ergueu, olhando-a com ar implacável.
— Se esta for a vida que você quer, pois bem; assim seja. Detestaria te privar de um prazer como esse. Mas segue meu conselho e contrata a alguém que te proteja de sua legião de admiradores. E fecha com chave essa maldita porta quando eu me parta.
Julia ficou sobre a cama e observou em silêncio como ele deixava a habitação. Sentiu desejos de lhe pedir que ficasse. "Não me deixe... necessito-te..." Mas as palavras permaneceram presas dentro dela, e manteve sua boca fortemente fechada. A porta se fechou com estrépito marcando a saída dele. Julia tomou o travesseiro e a jogou com todas suas forças, mas não obteve nem pingo de satisfação quando golpeou sem ruído o marco da porta.
Como se atrevia ele a lhe lançar acusações como se ela se houvesse procurado o que lhe tinha acontecido! Acaso o fato de que ela ganhasse a vida sobre um cenário dava a alguém o direito de atacá-la? Por que era obrigatório que uma mulher vivesse sob o amparo de um homem? Levantou-se de um salto, foi até a porta e a fechou com chave, para que não pudessem entrar nem Damon nem o resto do mundo, encerrando-se na pequena habitação. Esfregou vigorosamente a cara com as palmas das mãos e descobriu que suas bochechas ainda estavam úmidas de lágrimas.
Por alguma razão desconhecida, até esse momento ela não tinha compreendido até que ponto Damon desaprovava sua carreira. Os dois se encontravam em um impasse. Ele a obrigaria a escolher: jamais toleraria um acordo entre os dois. A profissão de atriz expor a uma mulher à censura e ao perigo e não deixava espaço para as necessidades de um marido e de uma família.
Julia passeou pela habitação sentindo-se desventurada, rodeando sua cintura com os braços. Possivelmente, uns anos depois, conheceria algum outro, a um homem que não tivesse nem indício da exigente arrogância de lorde Savage. Seria um homem de caráter mais suave, que aceitaria melhor a independência dela e não teria nada que ver com o estranho, absurdo passado que ela tinha compartilhado com o Damon.
Entretanto, esse passado sempre os ligaria, por muito que tratassem de ignorá-lo. Ela e Damon tinham sido moldados pelas mesmas forças, temperados, durante anos, pela secreta consciência da existência do outro. Tinha sido um engano evitar a seu marido na esperança de que, contra toda lógica, ele desaparecesse em forma milagrosa e acreditar que ao trocar de sobrenome e de vida teria a segurança de que eles nunca se encontrariam. Ela não devia ter fugido, mas sim, ao contrário, devia havê-lo enfrentado fazia muito tempo.
Por desgraça, já era muito tarde para isso. Ela sabia que o parentesco entre eles, o resplendor da paixão entre os dois, o ardente deleite que encontravam na mútua companhia não o teria nunca com nenhum outro. Se o preferia por cima de todas as outras coisas que ela valorava gozaria de amplas compensações. Mas, lhe sacrificar sua profissão seria como amputar uma parte de si mesma; chegaria o momento em que apareceria o ressentimento contra ele por não ter sido capaz de encher o espaço vazio que ela deixaria atrás.
Recostou-se na janela e apertou sua testa no pequeno e frio painel, sua visão rabiscada pelas sutis ondas e distorções do cristal. Pensou que lady Ashton seria melhor para o Damon. Pauline nem queria ser outra coisa que sua esposa e a mãe de seus filhos; não lhe pediria que aceitasse acordos que ele não estava em condições de cumprir.
Fatigada depois de uma noite de insônia, Julia se vestiu e caminhou até o Teatro Novo cobrindo a cara com um véu. A hora tão cedo da manhã não havia curiosos à vista. Entrou no teatro e viu o Logan Scott só sobre o cenário. Tinha o rosto voltado por volta da cortina de fundo recém pintada e estava observando-o. Havia algo em sua postura que revelava sua preocupação por outros assuntos, que em sua mente persistiam pensamentos que ninguém teria o privilégio de conhecer.
Ao ouvir a Julia que se aproximava do cenário, Logan voltou seu olhar por volta dela e não demonstrou surpresa ao vê-la chegar tão cedo. Ajudou-a, com mão firme, a subir às pranchas e logo a soltou.
— Tem um aspecto horrível — lhe disse.
— Não pude dormir — explicou Julia, obrigando-se a esboçar um sorriso cansado. Atormentou-me a consciência
— Faria bem em te liberar de sua consciência para sempre — aconselhou Logan. Eu o tenho feito faz anos; após, durmo cada noite como um recém-nascido.
— Deve me dizer como o tem feito — disse ela, brincando pela metade.
— Em outra ocasião. Tenho algumas novidades — disse ele, com expressão inescrutável. Chegou uma mensagem para ti ao Capital; faz uns minutos o trouxeram aqui. Ao parecer, alguém de sua família está doente.
— Minha mãe — disse Julia, em forma automática, percebendo que a preocupação imprimia a seu coração um tamborilar acelerado.
— Acredito que se trata de seu pai. Não conheço os detalhes.
— Meu pai... — repetiu Julia, movendo a cabeça, confundida. Não pode ser. Ele nunca adoeceu, ele...
Guardou silêncio, com o olhar à frente sem ver, sentindo que todas as palavras que pugnavam por sair eram inúteis. Devia estar acontecendo algo muito mau, pois, do contrário, Eva jamais teria mandado procurá-la. Resultava-lhe impossível imaginar a seu pai doente, deitado em sua cama. Durante sua infância, Julia jamais o tinha visto sofrer nem um simples resfriado.
Está pensando em ir vê-lo? — perguntou-lhe Logan, sem inflexões em sua voz.
— Não posso... não há tempo... amanhã de noite estreamos a obra.
— Cancelarei a apresentação de amanhã de noite. Estrearemos na terça-feira que vem, de noite.
Desassossegada, Julia contemplou os intensos olhos azuis dele. Logan jamais cancelava uma apresentação, pois essa regra formava parte de seus estritos códigos.
— Por quê? — perguntou ela, em voz baixa.
Ele ignorou a pergunta.
Poderá retornar na terça-feira?
— Sim, acredito que sim — respondeu ela, comovida pela inesperada bondade dele. — Em seu lugar, nenhum outro diretor teria permitido que me partisse. Jamais teria esperado algo assim.
Logan se encolheu de ombros, lhe subtraindo importância.
— Se eu te obrigasse a ficar, não estaria em condições de realizar uma boa atuação.
— Poderia dar minha parte a Arlyss — sugeriu Julia. — Ela a conhece toda. Não há necessidade de que suspenda a apresentação de amanhã de noite.
— O papel é teu. Ninguém poderia fazê-lo como você.
— Obrigado, mas...
Vá junto a seu pai. Trata de fazer as pazes com ele. E volta logo ou te reduzirei o pagamento.
— Sim, senhor — disse Julia, obediente, embora o esforço do Logan por parecer endurecido não a enganava. Sorriu-lhe, agradecida. Acabo de compreender que, no fundo, é um homem bom. Mas não se preocupe: não o contarei a ninguém, pois isso danificaria sua reputação.
Julia empreendeu a viagem de meio-dia à propriedade Hargate na carruagem do Logan Scott, pintado de vermelho escuro; enquanto isso refletia se deveria ter informado ao Damon que partia do Bath. Preocupava-lhe a inquietante sensação que deveria have-lo feito. Estaria mal que ela desejasse o consolo que lhe brindava? Damon poderia compreender melhor que ninguém os complexos sentimentos que ela abrigava para seu pai.
A lembrança do tom amargo que tinha reinado na despedida entre ambos lhe fez encolher-se e logo apertar as mandíbulas em gesto teimoso. Damon não lhe teria devotado seu consolo; o mais provável era que tivesse feito algum comentário desdenhoso, lhe dizendo que bem poderia arrumar-se só com suas dificuldades. Ela seria uma hipócrita se estivesse repetindo sempre o mesmo em relação a sua liberdade e sua independência e, depois, recorrer a ele em busca de ajuda ao primeiro problema.
À medida que o carro e os cavaleiros que o acompanhavam avançavam por essa zona de colinas e se aproximavam da propriedade dos Hargate, a apreensão da Julia se convertia em apreensão. Caiu na conta de que tinha medo do que poderia encontrar em sua casa familiar, de ver doente a seu pai; estava convencida de que ele a ia jogar da propriedade assim que a visse. A alta casa se encarapitava nas colinas como uma águia escura e esplêndida, com suas torres que se elevavam para o céu.
O veículo se deteve frente à entrada principal. Um par de lacaios ajudou a Julia a descer da carruagem, enquanto outros serventes se ocupavam dos cavalos e de mostrar ao chofer onde estavam os estábulos e a garagem. Antes de que Julia tivesse chegado ao primeiro degrau, a maciça porta se abriu e apareceu nela o mordomo para recebê-la.
Em poucos instantes, apareceu Eva que, sem falar, estreitou a Julia entre seus braços.
— Mamãe — exclamou Julia, surpreendida, com sua bochecha esmagada contra o linho azul vincado do vestido de sua mãe.
A saúde da Eva sempre tinha sido muito instável; entretanto, Julia nunca a tinha visto tão bem como nesse momento. De algum modo, sua mãe tinha feito provisão de uma fortaleza e de um propósito que não manifestava fazia anos. Ainda estava muito magra, mas os ossos já não se sobressaíam em sua cara e em seus olhos castanhos se via um brilho tranquilo. Ao parecer, a Eva sentava bem esta insólita situação em que seu marido necessitava a ela. Por uma vez, ele era o inválido e ela estava a cargo da direção da casa.
— Alegra-me que tenha vindo — murmurou Eva. — Tinha medo de que seus compromissos não lhe permitissem vir a nos visitar.
— Como está meu pai? — perguntou Julia, enquanto atravessavam juntas o vestíbulo de entrada para a escada.
Dava a impressão de que a casa estava amortalhada; tudo estava silencioso e quieto até um ponto que resultava antinatural.
Eva respondeu com calma, embora a ansiedade esticasse seu rosto.
— Faz já vários dias seu pai teve que guardar cama por causa de uma febre. Foi bastante grave, e o doutor disse que debilitou todos seus órgãos. Não temos sabor de ciência certa se for viver embora agora parecesse que aconteceu o pior.
— Recuperar-se-á por completo?
— Segundo o médico, ele nunca voltará a ser o mesmo. A febre teria matado a um homem menos forte que ele. Edward necessitará certo tempo para recuperar suas forças.
— Ele não quererá ver-me — disse Julia, sentindo-se por dentro tão tensa como as cordas de um violino.
— Isso não é verdade. Esteve perguntando por ti.
— Por quê? — perguntou receosa. — Se ele quer repetir sua opinião de que eu arruinei minha vida e atraído a desgraça sobre a família, eu já sou consciente de...
— Lhe dê uma oportunidade — murmurou Eva. — Julia; seu pai passou por uma dura prova e quer ver sua única filha. Não sei o que quer te dizer, mas eu te peço que te aproxime dele com ânimo de perdoar.
Depois de uma hesitação, Julia respondeu:
— Tentá-lo-ei.
Pesarosa, Eva sacudiu a cabeça.
— Se soubesse até que ponto assemelha a ele. Eu estou segura de que, apesar de tudo, você o quer, mas não pode fazer a um lado seu orgulho o tempo suficiente para admiti-lo.
— É obvio que o amo — admitiu Julia, em atitude de desafio, — mas isso não apaga as coisas que ele me há dito e me tem feito. O amor não impede que as pessoas se façam mal.
As duas guardaram silêncio enquanto subiam a escada.
— Quer te refrescar em seu quarto? — perguntou-lhe Eva.
— Não, preferiria ver meu pai imediatamente — respondeu Julia.
Ela estava muito nervosa para esperar; sua tensão crescia por momentos.
— Sempre e quando meu pai esteja o bastante forte.
Eva a acompanhou até a habitação do Edward.
— Julia... — disse ela com suavidade, — tem que admitir o fato de que as pessoas são capazes de trocar. Inclusive seu pai. Aproximar-se tanto à morte produz pavor. E eu acredito que, no caso do Edward, obrigou-o a enfrentar certos sucessos de seu passado que ele tratou que ignorar durante anos. Por favor, seja boa com ele e escuta o que tenha para te dizer.
— É obvio. Mamãe, não pode pensar que vou precipitar-me dentro de seu quarto de doente e começar a lhe lançar acusações.
Julia se deteve na entrada e esperou a que entrasse Eva. A figura esbelta de sua mãe se recortava contra a banda de sol que tinha conseguido penetrar entre as cortinas de cor limão. Sua mãe se inclinou sobre o corpo magro que estava tendido sobre a cama, tocou o cabelo do Edward e lhe falou com um murmúrio.
Julia observava a cena, afligida pela ausência de emoções em si mesma. Seu coração estava vazio e transido, sem que o agitassem a pena nem a ira. Não podia convocar nenhum sentimento para seu pai e isso a desassossegava até o mais fundo.
Eva levantou o olhar e fez gestos a Julia para que entrasse. Ela cruzou lentamente a soleira e se aproximou da cama onde seu pai jazia, escurecido pelo baldaquino de cretone. De repente, assaltou-a uma cascata de sentimentos, tal maré de remorsos e simpatia, que ficou afligida. Edward sempre tinha tido uma figura imponente; agora, em troca, estava pequeno e solitário sobre a cama, com as mantas até os ombros. Sua grande robustez tinha desaparecido, deixando-o enormemente envelhecido. Sua pele tinha um aspecto de cera, como consequência da sangria que lhe tinha praticado o médico.
Julia se sentou com cuidado na borda do colchão. Tomou a mão e sentiu que a pele se movia com excessiva facilidade sobre os largos ossos. Tinha descido de peso. Oprimiu-lhe a mão com toda a força que se atreveu a exercer, com o desejo de transmitir a seu pai uma parte de sua vitalidade.
— Pai — disse em voz suave. — Sou Julia.
Passou um comprido momento e as claras pestanas do homem se elevaram. Os olhos dele, que a observavam, eram tão brilhantes e perspicazes como sempre. Julia nunca tinha tido notícia de que seu pai tivesse tido um só instante de estupidez, ao contrário, ele sempre estava ao mando de qualquer situação. E, entretanto, por estranho que parecesse, ele parecia compartilhar a mesma incerteza dela e procurar em vão as palavras.
— Obrigado — disse o pai, com um fio de voz que alarmou a sua filha.
A mão dele estremeceu e, por uma fração de segundo, Julia pensou que a retiraria. Mas, ao contrário, seus dedos se aferraram com mais força aos dela. Era o maior gesto de afeto que lhe tivesse dispensado desde anos.
— Eu pensei que talvez fosse fazer me jogar da casa — disse Julia, com um sorriso envergonhado.
— E eu pensei que talvez você não viesse — repôs Edward exalando um suspiro; seu peito fez um pequeno movimento de ascensão e descida. — E eu te teria compreendido.
— Mamãe me contou que estiveste muito doente — murmuro Julia, sem soltar a mão de seu pai. — Eu lhes haveria dito, a ela e ao médico, que você é muito obstinado para permitir que uma simples febre te pudesse superar.
Seu pai fez um esforço por incorporar-se na cama e Eva fez gesto de ir ajudá-lo, mas Julia já estava aproximando um travesseiro e colocando-o detrás dele. Edward dirigiu a sua esposa um olhar enigmático.
— Querida, queria falar com a Julia a sós.
Eva esboçou um sorriso débil.
— Entendo-o.
Saiu da habitação com a leveza de um espírito deixando sozinhos a pai e filha.
Julia se sentou em uma cadeira próxima e cravou no Edward um olhar perplexo. Não podia imaginar o que quereria lhe dizer, depois de tantas discussões que tinham tido e tantos sentimentos amargos que havia entre eles.
— Do que se trata? — perguntou em voz baixa. — Quer falar de minha vida profissional ou da pessoal?
— De nenhuma das duas — respondeu seu pai com esforço. — quero falar de mim — disse, estirando a mão para um copo, que Julia encheu com água fresca de uma pequena jarra de porcelana que havia junto ao copo. Ele bebeu com cuidado. — Nunca te falei que meu passado. Há detalhes dos Hargate que nunca te mencionei.
— Detalhes — repetiu Julia, arqueando suas finas sobrancelhas.
— A história dos Hargate era simples e sem complicações. Tratava-se de uma família de moderado prestígio e de considerável riqueza, ávida por conquistar um elevado nível social que só podia obter-se por meio do matrimônio com pessoas de sangue mais nobre que a deles.
— Disse-me que isso era necessário para te proteger da verdade — disse Edward, — mas não foi mais que pura covardia de minha parte.
— Não. Eu te adjudicaria numerosas características, pai, mas a covardia nunca seria uma delas.
Decidido, Edward seguiu falando.
— Há coisas das que nunca pude falar porque me resultavam dolorosas e te castiguei por causa delas.
Em sua voz branda se notava um pesar tão agudo que Julia ficou atônita. Foi uma revelação inquietante ver que seu pai era capaz de semelhante emoção.
— Que coisas? — perguntou ela com suavidade. — O que quer me dizer?
— Nunca soubeste nada com respeito à Anna.
O nome deixou um sabor agridoce em seus lábios.
— Quem é ela, pai?
— Ela era sua tia... minha irmã.
Julia ficou estupefata. Jamais soube que existisse ninguém da família de seu pai, com exceção de um par de tios que se casaram ambos, e que levavam uma vida tranquila no campo.
— Por que nunca vez me tinha mencionado isso? Onde está ela agora e o que faz?
Edward levantou sua mão para deter o fluxo de perguntas e, lentamente, começou a lhe explicar:
— Anna era minha irmã maior. Era a criatura mais bela sobre a terra. Se não fosse pela Anna, eu teria tido a infância mais desolada que se possa imaginar. Ela inventava jogos e contos para me entreter... ela foi uma mãe, uma irmã, uma amiga... ela foi...
Não pôde encontrar a palavra apropriada e se interrompeu impotente.
Julia escutava com suma atenção. Até então, seu pai jamais lhe tinha falado desse modo, com o semblante suavizado por suas reflexões, seus olhos acerados velados pelas lembranças.
— A nossos progenitores não agradavam os meninos — disse ele. — Nem sequer os seus. Pouco tiveram que ver conosco até que chegamos à maturidade, e inclusive então, pouco interesse tínhamos para eles. Sua única preocupação era nos transmitir o sentido da disciplina e do dever. Eu não poderia dizer que sentisse carinho algum para eles, tampouco. Em troca, amava a Anna... e eu sabia que ela era a única pessoa no mundo que me amava de verdade.
— Como era ela? — perguntou Julia, depois do silêncio que seguiu.
Ao parecer ao Edward resultava difícil continuar o relato, pois as lembranças o enredavam entre seus frágeis fios.
Ele tinha o olhar desfocado como se estivesse concentrado a uma grande distancia.
— Era selvagem e caprichosa, muito diferente de meus outros irmãos e de mim. A Anna não importava as regras nem as responsabilidades. Ela era um ser de emoções, por completo imprevisível. Nossos pais jamais a compreenderam e, em ocasiões, voltava-os loucos.
— O que foi dela?
— Quando Anna tinha dezoito anos, conheceu um diplomático estrangeiro que tinha um posto em uma embaixada em Londres. Sem dúvida, para a Anna terá sido a encarnação de todos seus sonhos. Meu pai não aprovava a esse indivíduo e proibiu a Anna que o visse. Como era natural, ela se rebelou e aproveitou qualquer oportunidade para escapulir-se e encontrar-se com ele. Apaixonou-se por ele como o fazia tudo; até o fundo do coração, e se comprometeu em corpo e alma. Mas não tinha elegido bem. Ela...
Uma sombra obscureceu o rosto do Edward e pareceu que queria deter-se. De todos os modos, já havia dito muito. Já tinha chegado até um ponto em que se veria obrigado a continuar a narração até seu doloroso final.
— Anna concebeu um menino — disse, em voz um tanto estrangulada. — Seu amante a abandonou, depois de lhe informar que já estava casado e que não tinha nada que lhe oferecer. Minha família aborrecia qualquer classe de escândalo e a jogou da casa. Foi como se de repente ela tivesse deixado de existir. Meu pai deserdou a Anna, deixando-a quase na miséria. Ela decidiu partir para a Europa para aguentar sozinha as consequências de sua vergonha.
Antes de partir, ela foi para mim. Não me pediu dinheiro nem ajuda de nenhuma classe só me pediu que lhe confirmasse que ainda a amava. E eu não pude fazê-lo. Dava-lhe as costas. Nem sequer lhe dirigi a palavra. E quando ela seguiu me chamando por meu nome e tratou de me rodear com seus braços, eu... disse-lhe que era uma rameira e parti.
Edward rompeu a chorar abertamente; as lágrimas o despojaram da pouca energia que lhe tinha ficado.
— Essa foi a última vez que a vi. Anna foi a França, a alojar-se na casa de um primo longínquo. Depois, soubemos que ela tinha morrido ao dar a luz. Durante vários anos, eu consegui tirar-me a da cabeça, pois, do contrário, teria me tornado louco pensando nela. E no preciso momento em que acreditei que tinha conseguido esquecer que ela tivesse existido alguma vez, nasceu você.
Ele secou a cara com um lenço, mas as lágrimas não paravam.
— Você se parecia tanto a ela que me impressionava cada vez que te olhava. Ocorreu-me que o destino me tinha feito uma cruel sacanagem ao vê-la em seu rosto, seus olhos... Você me recordava constantemente a maldade que tinha feito com a Anna. E, o pior foi que você tinha seu mesmo caráter, seu modo de ver a vida. Era como se minha irmã tivesse renascido. E eu não queria te perder como me passou com ela. Pensei que se pudesse te converter em uma pessoa mais semelhante a mim... sensata, séria, carente por completo de imaginação, nunca me deixaria. Mas, quanto mais tratava de modelar-te, mais resistia você, mais assemelhava a ela. Tudo o que eu acreditava estar fazendo por seu bem era um engano.
Julia enxugou as lágrimas que corriam por suas bochechas.
— Inclusive, o casamento com lorde Savage.
— Isso, sobretudo — admitiu Edward em voz afogada. — Eu supunha que não teria mais alternativa que te converter em quem eu queria que fosse. Mas você te rebelou do mesmo modo que o tinha feito Anna. Renegou de seu sobrenome e te dedicou à cena e, o que é pior, teve êxito. Tentei te castigar te deserdando, mas isso não te importou.
— Tem razão: o dinheiro não me importa — disse Julia em voz insegura. — Quão único queria de ti era que me amasse.
Seu pai sacudiu a cabeça e o movimento parecia o de um brinquedo quebrado.
— Eu não queria te amar se não podia te modificar. Não podia suportar esse risco.
"E agora?", quis perguntar Julia, e mais perguntas pugnavam por escapar de seus lábios. Seria muito tarde para eles? Por que se tinha decidido a lhe dizer todas estas coisas? Ela tinha medo de entregar-se à esperança de que ele queria reincorporá-la a sua vida, de que ele fizesse um esforço por aceitá-la, como não tinha podido fazê-lo antes. Era muito cedo para perguntas. No momento, era suficiente entender.
Olhou fixamente a seu pai e viu refletida a fadiga em cada uma das linhas de seu rosto. Suas pálpebras baixaram, seu queixo se abateu sobre seu peito.
— Obrigada por dizer-me sussurrou ela, e se inclinou sobre ele para lhe acomodar os travesseiros. — Agora, dorme, está cansado.
— Ficará? — alcançou a dizer ele.
Ela assentiu e lhe sorriu com ternura.
— Ficarei até que esteja melhor pai.
Embora as confidências de seu pai tivessem deixado a Julia muito estupefata para ter fome, Julia acabou, de maneira automática, uma pequena ração de frango com verduras fervidas, que levaram a sua habitação em uma bandeja. Tinha contado a Eva toda a conversa, e sua mãe não tinha manifestado muita surpresa.
— Eu sabia tudo relativo a pobre Anna — admitiu Eva, — mas nenhum Hargate queria falar dela. Seu pai jamais me havia dito que você lhe recordasse tanto a sua irmã. Suponho que deveria havê-lo adivinhado. Isso explica muitas coisas.
— Por que me há isso dito agora? — perguntou-se Julia em voz alta. — O que pretende?
— Trata de te dizer que o lamenta — respondeu sua mãe com suavidade.
Era estranho dormir outra vez sob o teto de seus pais, ouvir os remotos rangidos da casa, o ruído do vento que fustigava as janelas, os sons noturnos do campo que estava além da casa. Tudo lhe resultava intensamente familiar. Julia quase podia imaginar que de novo era uma menina pequena e que despertaria pela manhã e passaria o dia estudando suas lições e procurando lugares reservados para ler montanhas de livros.
Com os olhos abertos na escuridão, Julia viu imagens de sua infância que passavam ante ela em lento desfile: a maneira de seu pai de governar a casa com mão de ferro, a tímida presença de sua mãe, a complexa trama de suas próprias fantasias e, como sempre, a sombra do Damon. Ao longo de toda sua adolescência, ele tinha sido o foco de sua curiosidade, seu temor e seu ressentimento. Ele tinha sido uma carga invisível da que ela desejava livrar-se. E, quando o conheceu, tinha descoberto que não era uma tortura a não ser, uma tentação que a atraía perigosamente, empurrando-a a trair sua liberdade, que tanto lhe havia flanco ganhar.
Damon lhe tinha demonstrado o que podia perder se dedicava sua vida só a interpretar papéis no cenário e, quando voltava para seu lar, a casa estava vazia e a cama, solitária. Agora, ela o amava apesar de sua vontade de resistir; quanto mais chegaria ela a amá-lo se o permitia! Queria-o apesar de seu enredo com lady Ashton. Por debaixo de seu aspecto controlado, Damon era um homem apaixonado, de carne e osso, que se debatia com as questões relativas ao desejo, a honra e a responsabilidade. Ela admirava o denodo com que ele perseguia seus objetivos, seus esforços para submeter ao mundo a sua vontade. Se ela o tivesse conhecido antes de converter-se em atriz, como teria modificado sua vida?
Quando por fim dormiu, seus sonhos não lhe deram trégua. Sua mente se encheu com imagens do Damon, e o som de sua voz lhe provocava uma doce tortura. Despertou várias vezes durante a noite, acomodando seu travesseiro, trocando todo o tempo de posição, em um esforço por obter comodidade.
— Mandará buscá-lo? — tinha-lhe perguntado sua mãe essa noite.
A pergunta seguia perseguindo a Julia, que desejava sentir seus braços rodeando-a. Mesmo assim, não chamaria por ele. Não queria depender de ninguém mais que de si mesma.
Durante os três dias que seguiram, Julia passou horas intermináveis junto ao leito de seu pai, ajudando a cuidá-lo, entretendo-o com a leitura de novelas em voz alta. Edward a escutava com encantada atenção, seu olhar cravado no rosto de sua filha.
— Estou seguro de que deve ser uma atriz de méritos — lhe disse ele em um momento dado, surpreendendo-a no meio do silêncio. Por ser um homem que se opunha com tanta veemência a sua carreira, deve lhe haver sido muito difícil admitir semelhante coisa. — Quando lê, faz que o mundo das páginas impressas pareça vivo.
— Algum dia, poderia ir a ver-me ao Capital — disse Julia, com um acento no que havia mais saudade da que queria pôr. — Isso, se pode suportar a idéia de ver sua filha sobre um cenário.
— Possivelmente — foi a duvidosa resposta do Edward.
Julia sorriu. O simples feito de admitir a possibilidade era muito mais do que ela tivesse esperado jamais de seu pai.
— É possível que o desfrute — disse ela. — Tenho fama de ser uma atriz de bastante talento.
— Tem fama de ser uma grande atriz — corrigiu ele. — Ao parecer, jamais posso me saltear a menção que fazem os periódicos de nenhuma de suas atuações. É a vítima preferida das falações; quase todos esses falatórios são inquietantes para um pai, poderia dizer.
— OH, as falações — replicou Julia com altivez, gozando com a experiência de conversar, realmente, com seu pai. — A maior parte delas é falsa, asseguro-lhe isso. Em Londres, levo uma vida muito tranquila; não posso me gabar de aventuras nem escândalos.
— Te menciona frequentemente, ao mesmo tempo que a seu diretor teatral.
— O senhor Scott é um amigo e nada mais — esclareceu Julia, olhando-o diretamente aos olhos. — O teatro é seu único amor genuíno e não há nenhuma outra paixão que possa aproximar-se.
— E o que me diz de lorde Savage? Sua mãe pensa que sente algo por ele.
Julia apartou a vista, carrancuda.
— É certo — admitiu, a inapetência— . Mas nada poderá sair de tudo isso. Ele é muito... rígido.
Edward deu amostras de entender toda a carga de significados que encerrava essa palavra; olhou-a em silêncio, com expressão meditativa.
— Sem dúvida, você deve seguir querendo que eu ocupe meu lugar como esposa dele e que, algum dia, converta-me em duquesa — disse Julia.
O pai deixou escapar uma gargalhada seca.
— Como o demonstraste com total claridade durante anos, a eleição não está em minhas mãos.
— O que aconteceria se eu fizesse anular o matrimônio? — perguntou ela. — Voltaria a me deserdar?
— Não — respondeu ele depois de uma breve pausa. — Apoiaria sua decisão, qualquer que fosse.
Julia sentiu que a gratidão a alagava e, para sua própria surpresa, aproximou-se de seu pai e fechou com força sua mão a sobre a dele.
— Obrigado — disse, com a garganta feita um nó. — Nunca saberá o muito que isto significa para mi.
Para alívio da Julia e da Eva, Edward foi recuperando sua saúde de maneira lenta, mas firme e sua cor e suas forças aumentavam um pouco cada dia. Enquanto Julia se preparava para retornar ao Bath, desfrutava do novo começo que tinha obtido com seu pai. A atitude do Edward para com ela se suavizou, e suas maneiras autoritárias se foram abrandado por meio da tolerância e até por ocasionais mostra de afino. Também era mais considerado com a Eva. Como se tivesse compreendido o grande esforço que exigia a sua esposa ao dar por descontada sua devoção com o passar do matrimônio.
Na segunda-feira pela manhã, depois de ter fechado a última mala. Julia foi à habitação de seu pai a despedir-se. Era importante que chegasse ao Bath com o tempo suficiente de preparar-se para o ensaio e a atuação do dia seguinte. Para sua surpresa, Edward não estava sozinho. Tinha chamado ao advogado que estava ao servido dos Hargate desde fazia décadas.
— Entra Julia — disse Edward. — Acabo de concluir alguns assuntos com o senhor Bridgeman.
Julia e o advogado intercambiaram corteses saudações, e ela esperou até que este tivesse saído da habitação para logo olhar a seu pai com expressão interrogante.
O semblante do Edward era solene, embora o brilho de seus olhos revelasse sua satisfação. Indicou a Julia com um gesto que se sentasse junto a ele.
— Tenho um presente para ti.
— Sim? - disse Julia, empregando de propósito um tom ligeiro e despreocupado. Instalou-se na cadeira, junto à cama. — Posso me atrever a albergar a esperança de estar outra vez no testamento?
— Sim, recuperaste seu lugar nele. Mas, além disso, incluí outra coisa.
Tendeu-lhe um pacote, um maço de papéis envoltos em pergaminho.
— O que é? — perguntou ela, titubeando.
— Sua liberdade.
Com cautela, Julia aceitou o pacote e o apoiou em seu regaço.
— Aí dentro está seu contrato de matrimônio — disse Edward. — Enquanto isso, eu me ocuparei de fazer que o sacerdote que levou a cabo a cerimônia apague a inscrição do registro. Não ficarão rastros de que a cerimônia se realizou alguma vez.
Julia ficou calada. Edward franziu o sobrecenho, esperando ao parecer uma demonstração de gratidão.
— E bem? Deveria estar contente. Agora tem o que sempre quiseste.
— Para começar, eu sempre quis que não me casassem — murmurou Julia, tratando de sair de seu desassossego.
Não sabia bem como se sentia... possivelmente, como uma prisioneira a quem o carcereiro lhe tivesse arrojado as chaves sem nenhum olhar. Tinha chegado sem aviso prévio, sem lhe dar oportunidade de preparar-se.
— Isso não posso trocá-lo — replicou seu pai. — Mas posso tentar repará-lo.
Ele, a seu modo, admitia que tivesse cometido um engano e estava fazendo o máximo esforço possível para lhe devolver o que lhe tinha arrebatado. Ele dizia algo certo: o passado não podia trocar-se. Pelo contrário, tinham controle sobre o futuro e eram livres de lhe dar a forma que quisessem. Julia levantou o pacote, olhou a seu pai por cima do bordo e lhe sorriu.
Ao ver que os olhos de sua filha lhe sorriam, lhe retribuiu o sorriso.
— Então, a seu julgamento eu tenho feito o correto.
Ela baixou o pacote e passou os dedos sobre sua superfície tensa e seca.
— Deste-me a possibilidade de fixar o rumo de minha própria vida. Não há nada que pudesse me agradar mais.
Seu pai moveu lentamente a cabeça e cravou a vista em sua filha.
— É uma mulher pouco comum, Julia. Suponho que teria sido mais fácil para todos que fosses mais parecida com sua mãe.
— Mas não o sou — repôs Julia, com o resto de um sorriso perdurando em seus lábios. — Me pareço com ti, pai.
As diversões no Bath tinham começado a aborrecer ao Damon. Não lhe interessava muito fazer compras nem os entretenimentos sociais, e Deus era testemunha de que ele não necessitava das águas minerais nem de seus efeitos vigorantes sobre os órgãos digestivos. Não tinha nada por fazer, salvo esperar a volta da Julia, coisa que o aborrecia e irritava de uma maneira notável. Em Londres o esperava uma vida cheia de movimento, havia assuntos tanto pessoais como de negócios que requeriam sua imediata atenção, e aí estava ele, adoecendo no Bath.
Depois de uma cuidadosa meditação tinha tomado a decisão de ficar na cidade em lugar de seguir a Julia. Tinha obtido que Arlyss e alguns faladores, entre os membros do pessoal da companhia, dessem-lhe detalhes; assim Damon sabia que Julia se partiu do Bath porque havia um doente em sua família e que provavelmente retornaria na terça-feira. Deduziu que Eva devia ter piorado, e que isso tinha movido ao Edward a mandar a procurar a sua filha, contra seus próprios desejos.
Julia tinha preferido ir sozinha ao encontro de sua família, sem o apoio de nenhum estranho. Ela tinha esse direito, e Damon não queria impor-se em uma reunião íntima da família Hargate. Por outra parte, teria se deixado condenar antes de tornar-se a trotar detrás da Julia como um cão mulherengo.
O segundo dia depois da partida da Julia, quando voltou de uma caminhada até a vizinha aldeia do Winston, Damon teve a surpresa de comprovar que seu irmão tinha chegado à casa da Laura. William estava, como sempre, em excelente forma, estendido sobre um sofá de estilo grego, na biblioteca, com um conhaque na mão. Quando Damon entrou, ele levantou a vista e lhe dedicou um sorriso de recebimento.
— Estava fazendo exercício? — disse William, ao notar a cor corada nas bochechas de seu irmão e a picante fragrância das folhas outonais que ainda se aderia a ele. — Não diga que esgotaste todas as demais possibilidades de passar uma tarde agradável no Bath. A falta de algo melhor poderia encontrar a alguma solteirona atrativa com quem pular: a cidade está cheia delas. Como se as estima pouco, tenho descoberto que compensam sua falta de beleza com uma abundância de gratidão e boa disposição...
— Me economize suas teorias a respeito das mulheres — disse Damon com acidez, servindo uma taça e sentando-se em uma pesada poltrona de couro.
William se incorporou e olhou a seu irmão com ar cordial.
— Como está sua esposa, irmão querido?
— Até onde eu sei, Julia está bem — disse Damon e, depois de uma pausa, adicionou: — Não está no Bath.
— Ah, sim? — exclamou William, inclinando a cabeça como um papagaio intrigado. — Quando retornará?
— O mais provável é que retorne na terça-feira. Ela não me há isso dito.
William observou a expressão turva de seu irmão e, de repente, estalou em incontíveis gargalhadas.
— Meu deus — ofegou. —. Que ironia que, havendo quantidades de mulheres tratando de te pescar e apesar da perseguição de lady Ashton, Julia só deseje escapar de ti.
— Bom, ri se quer — disse Damon sorrindo, embora ainda carrancudo. — Algum dia, ela verá meus encantos sob uma luz diferente.
William seguiu rindo com dissimulação, como um escolar em férias.
— Como te conheço, imagino qual deve ser o problema. Permita-me que te dê um conselho, irmão...
— Preferiria que não — disse Damon, mas William prosseguiu.
— As mulheres não procuram a honestidade em um homem. Querem ser conquistadas, enganadas, seduzidas e, sobretudo, não lhes interessa estar seguras de um homem. Às mulheres gosta de jogar. E antes que siga me olhando com esse ar de superioridade, pensa no fato de que eu consegui a toda mulher que tentei conquistar.
Damon esboçou um sorriso irônico.
— É fácil conquistar a garçonetes de bar e atrizes, Will.
Do rosto do William se apagou a expressão jactanciosa e foi suplantada por outra de ofendido.
- Bom não deveria te resultar difícil conquistar a Julia. O fato de estar casado com ela deveria te dar certa vantagem sobre a competência!
Damon olhou a seu irmão sem piscar. Por muito que William tratasse de fingir que a conversação lhe entretinha, havia um matiz apenas discernível de tensão em sua expressão. Conhecia o bastante a seu irmão para saber que devia ter algo em mente. Trocou de tema de maneira repentina.
Para que vieste ao Bath, William?
— Para ver Senhora Engano, claro. Não posso estar mais tempo sem conhecer o final da história — repôs William, com um sorriso inclinado que não demorou para esfumar-se. Cruzou por seu semblante uma crispação de desconforto. — E há outra razão.
— Me imaginei — disse Damon com secura. — Está em dificuldades outra vez?
— Não. Em realidade, você está em dificuldades, e eu fiquei apanhado nelas.
— Te explique.
William se encolheu e bebeu um bom gole de sua bebida.
— Pauline foi visitar-me em Londres, em meus aposentos privados — disse, sem rodeios. — Disse que queria me conhecer melhor, pois logo estaríamos aparentados. Disse que não havia motivos para que não nos fizéssemos "amigos" e nos apoiássemos mutuamente, como fazem os irmãos.
— A que classe de "apoio" se referia ela?
— Não o disse com precisão, mas, tendo em conta o vestido que tinha posto e o modo insistente em que me tocava, penso que estava tratando de me seduzir! Juro-te que não disse nada para animá-la, Damon, jamais me misturaria em seus assuntos. Pelo amor de Deus, somos irmãos...
— Está bem — o interrompeu Damon com calma. — Conte que mais te disse Pauline.
— Adulou-me muito; disse que ela e eu tínhamos muito em comum e que possivelmente eu tivesse interesse em descobrir até que ponto era assim. É obvio, eu fingi que não entendia e fiz todo o possível para que partisse quanto antes.., mas ela disse que se sentia sozinha quando você não estava em Londres e que esperava poder ir para mim em procura de ajuda se alguma vez lhe resultava necessário.
Damon refletiu a respeito da situação e exalou um prolongado suspiro para expressar o alívio que o transbordava.
— Muito interessante — murmurou ele.
A informação que William lhe trazia confirmava suas maiores esperanças. Já não tinha dúvidas em sua mente: Pauline não estava grávida. Quão único o surpreendia era que tivesse caído tão baixo e tentasse seduzir a seu próprio irmão. Contudo, tinha lógica. Se Pauline conseguia ser prenhe pelo William, a semelhança com a família seria incontrovertível e, como era uma das partes culpadas, William jamais revelaria um segredo tão desagradável como esse: que o herdeiro de seu irmão era, em realidade, seu próprio filho bastardo.
— Não está zangado? — perguntou William, expressando um imenso alívio.
— Justamente o contrário — respondeu Damon, levantando a taça para fazer um brinde com seu irmão; um sorriso lhe iluminava a cara. — Obrigado, Will.
— Por quê?
— Por ter vindo a me contar isso tão logo. E pelo controle que tiveste sobre ti mesmo. Estou seguro de que muitos homens teriam encontrado muito tentador o oferecimento do Pauline para rechaçá-lo.
— Por favor — disse William, indignado. — Até eu tenho meus limites.
— Às vezes — refletiu Damon em voz alta, — realmente acredito que há esperanças para ti.
— Isso significaria que paguei pelo assunto do Sybill Wyvill?
— Quase — disse Damon. — Se encontrar o modo de me ajudar em uma última questão relacionada com Pauline...
William se inclinou para diante, e seus olhos azuis bailaram, espectadores.
— No que está pensando?
Quando Julia retornou a manhã da terça-feira, o elenco e o pessoal de Senhora Engano se reuniram no Teatro Novo. Todos se sentiram gratificados ao ver que o ensaio resultava animado e fluido. Nem mesmo Logan, o eterno perfeccionista, pôde ocultar sua satisfação. Dedicou umas frases de elogio ao conjunto e os despediu cedo, de modo que tivessem tempo demasiado para descansar e preparar-se para a apresentação de estréia dessa noite.
Julia não pôde menos que notar que algo tinha acontecido a Arlyss durante sua ausência. A miúda atriz parecia despedir faíscas e emanava dela um ar de juvenil impaciência. Enquanto aguardava receber o pé que lhe indicaria sua entrada, Arlyss olhava com picardia ao Michael Fiske e paquerava descaradamente com ele. Fiske, por sua parte dava amostras de ter perdido por completo o interesse na Mary Wood e concentrava toda sua atenção em Arlyss. Cada vez que os dois estavam perto, o ar que os rodeava crepitava de tensão amorosa.
Assim que terminou o ensaio, Julia abandonou a Arlyss e a olhou com espectador sorriso.
— E bem? — quis saber. — Entre você e o senhor Fiske ocorreu algo durante minha ausência, e eu tenho que me inteirar.
Um sorriso de satisfação iluminou o rosto do Arlyss.
— Cheguei à conclusão de que estava certa. Mereço estar com um homem que me aprecie. Uma noite, já tarde, depois de que a companhia tinha jantado no hotel, aproximei-me do Michael, sussurrei-lhe umas palavras doces ao ouvido e se derreteu como manteiga. Ele me ama, Jessica! Ao Michael não importa quem sou eu nem o que tenha feito e quando lhe perguntei como era possível que sentisse isso, ele me há dito que me amou do primeiro momento que me viu. Pode acreditar que um homem me diga coisas como essas?
— Claro que posso — repôs Julia, realmente encantada. — Estou contente de que, por fim, tenha tido a prudência de escolher a alguém que não se aproveite de ti — fez uma pausa e contemplou atentamente a Arlyss. — Mas, o que ficou de seu amor do senhor Scott?
— Desapareceu por completo — respondeu Arlyss, inclinando-se mais para ela e lhe dizendo, com ar conspirativo: — Já que me pergunta isso, dir-te-ei que o senhor Scott é como um pescado frio. Nunca entregará seu coração a ninguém — seu olhar acertou a cair sobre o Michael Fiske, que estava ajustando uma parte da cenografia e sua expressão se iluminou. — Esta tarde Michael e eu iremos ver o que há nos postos de livros, e logo faremos uma parada em uma confeitaria para comprar pão de gengibre. Vem conosco, Jessica: por isso vejo, parece-me que necessita um pouco de diversão.
A idéia de passear entre pilhas de livros era muito tentadora.
— Obrigada — disse Julia, com um sorriso que ia crescendo. — Talvez vá com vocês.
— Senhora Wentworth, queria conversar umas palavras com você.
Logan interrompia a conversação com sua habitual brutalidade, levando-se à parte a Julia para falar em privado. Arlyss sorriu e foi para o Fiske, pondo os braços em jarras e meneando os quadris com atrevimento.
Julia olhou ao Logan com ar inquisitivo. Aquele dia, horas antes, o direto de sua saudação e o fato de que não lhe tivesse perguntado pela saúde de seu pai a tinham assombrado. Colocaram-se totalmente na questão do ensaio e ela tinha dado é obvio que Logan estava muito atarefado ou que não lhe interessava ter notícias da vida pessoal dela.
A brilhante iluminação do teatro projetava reflexos de fogo no cabelo do Logan e fazia que suas facções parecessem mais angulosas que de costume.
— Como está seu pai? — perguntou sem preâmbulos.
— Muito melhor, obrigada.
— E que tem que as diferenças entre vós? Resolveu alguma?
Por alguma razão, ela vacilou antes de responder, presa da sensação de que era um tema muito íntimo para comentá-lo abertamente. Mas já lhe tinha confessado antes seus segredos e sabia que podia confiar em sua discrição.
— Sim, na verdade foi assim. Meu pai lamenta o que tem feito e expressou seu desejo de repará-lo. Até me proporcionou o meio de conseguir uma anulação, se assim o desejasse.
Nos olhos dele apareceu uma faísca de interesse.
— Que decidirá?
Julia imaginou voltar a enfrentar-se ao Damon e uma tensão estranha, quase agradável, oprimiu seu estômago.
— Não sei — respondeu, e se formou um profundo cenho em sua frente. — Uma parte de mim não quer outra coisa que reunir-se com ele, lhe dizer quanto o amo, e que ele é digno de qualquer sacrifício, e a outra parte quer aferrar-se ao teatro de tal modo que todo o resto se perca. Jamais imaginei que seria tão difícil fazer uma eleição.
— Há outras possibilidades — disse Logan, com expressão enigmática.
— Quais?
— Possivelmente falemos disso outro dia.
Perplexa, Julia ficou olhando ao Logan que se afastava e uma breve gargalhada apareceu em seus lábios. Era muito característico disso Logan de lançar uma afirmação misteriosa e logo partir. Era um consumado homem do espetáculo; sabia exatamente como captar a atenção de qualquer público e como retê-la.
Julia se deslocava lentamente entre os postos de livros ao ar livre, gozando com a fragrância picante do ar mesclada com o aroma do couro e o pó dos livros. Alguns textos eram novos, outros usados, mas todos encerravam a tentadora promessa de mundos novos nos que era possível internar-se e fugir da realidade. Suas compras aumentaram até converter-se em uma desajeitada torre de livros que se balançava perigosamente em seus braços. Arlyss e Michael tinham menos interesse no material de leitura que neles mesmos. Riam e sussurravam intercambiando olhadas significativas e carícias ocasionais que, a julgamento disso, ninguém podia ver.
Julia já tinha decidido que tinha suficientes livros quando um mais, de coberta vermelha e dourada apanhou sua vista; ela abriu o grosso volume. Enquanto folheava as primeiras páginas, ouviu perto dela uma voz vagamente familiar. Emprestou atenção e observou depois da tela de seu véu até que viu o que falava.
O coração da Julia deu um tombo quando uma figura alta e escura apareceu ante seus olhos a poucos metros dela; era um homem de cabelos negros e impactante perfil de nítido contorno. "Damon" pensou imediatamente, mas não era seu marido a não ser o irmão menor deste, lorde William. Não parecia muito entusiasmado com os livros que o rodeavam; dizia a um acompanhante que ela não podia ver que já era hora de partir.
— Tinha a intenção de fazer coisas muito mais interessantes que olhar livros — disse, irritado. — Irmão, ainda não viu suficiente destes malditos objetos?
De modo que Damon estava ali. O olhar da Julia voou por seu redor e localizou imediatamente a inconfundível figura de largos ombros. De algum jeito, a intensidade de seu olhar deve havê-la traído, pois ele se voltou com um súbito movimento e a olhou diretamente. Imediatamente, um brilho de reconhecimento reluziu em seus olhos. Às cegas, Julia se voltou outra vez para a mesa de livros sentindo que seu coração golpeava, desordenado, dentro do peito. Sustentou a pesada pilha de livros junto a seu corpo e aguardou, com os olhos semicerrados, perguntando-se se ele se aproximaria dela.
Pouco a pouco, percebeu sua presença detrás dela, muito perto embora sem tocá-la, e sentiu que seu fôlego agitava o véu que caía da aba estreita de seu chapéu. Falou-lhe em um sussurro que conseguiu dominar o bulício da feira de livros, e sua voz lhe recordou a íntima conversação da última noite passada juntos.
— Como resultou sua visita ao Buckinghamshire?
Julia queria olhá-lo de frente mas seus pés pareciam ter jogado raízes no chão. Esteve a ponto de deixar escapar um nervoso fluxo de palavras. De algum modo conseguiu se conter e respondeu com calma.
— Meu pai tinha contraído uma febre. Assim que soube, fui vê-lo.
— Seu pai — repetiu ele, em tom de assombro. — Eu supus que se tratava de lady Hargate...
— Não, em realidade, ela está muito bem. Está cuidando de meu pai, que agora está muito melhor. Ele e eu chegamos a uma espécie de trégua.
Julia sentiu que a mão dele em seu braço o fazia girar de cara a ele. Ela cedeu, sem soltar o montão de livros. O cinza luminoso dos olhos dele era discernível até através do véu; sua expressão era remota.
— Me alegro por ti- disse Damon em voz baixa. — A tempos que devia ter acontecido. Sem dúvida, terá sido um alívio para ele, igual para ti.
— Sim — disse Julia, sentindo que lhe faltava a respiração enquanto o olhava.
Por que tinha que ser tão devastadoramente atrativo? Por que tinha que parecer tão sério e melancólico? Por que era tão difícil resistir à profana tentação de obter que essa boca firme adquirisse essa apaixonada suavidade que ela conhecia tão bem? Quis soltar os livros, aferrar suas grandes mãos cálidas e as atrair para seu corpo. Desejava-o, tinha fome dele... e não lhe proporcionava nenhum indício de sentir o mesmo.
— Eu... lamento não te haver dito que ia, mas houve muito pouco tempo...
— Não importa — disse ele como ao descuido, tendendo suas mãos para os livros que ela levava em seus braços. — Me permite que os leve?
— Não, obrigado.
Ela retrocedeu um passo, aferrando com força sua carga.
Damon aceitou com uma breve sacudida de cabeça, como se tivesse estado esperando sua negativa.
— Tenho algo que te dizer — disse, em tom prático. — Esta noite parto a Londres. Há assuntos que deixei muito tempo sem atender.
— Ah — exalou Julia, com sorriso que aparentava indiferença, agradecida de ter o véu posto. Não lhe serviria descobrir nela sinais de sua súbita decepção, da sensação de vazio que se filtrou em cada um de seus nervos e de suas fibras. — Verás lady Ashton? — perguntou, impulsionada por algum demônio interior.
— Isso espero.
A brusca resposta não deixava lugar a posteriores comentários. As perguntas buliam dentro dela, e Julia se sentiu presa de uma corrosiva ansiedade. O que ocorreria entre o Damon e lady Ashton? Talvez, ele tentasse alguma classe de reconciliação e, certamente, Pauline a aceitaria. Ela o receberia de novo de boa vontade, e começariam a riscar planos para a vida que compartilhariam com o filho que esperavam.
Julia se esforçou por se separar de sua mente as flamígeras imagens e perguntou em voz ficada:
— Regressarás ao Bath?
Ele titubeou, enquanto lhe sustentava o olhar.
— Tu queres?
"Sim!", gritou seu coração, mas a indecisão a paralisou. Só atinou a olhá-lo, muda.
— Maldita seja — murmurou ele. — O que quer de mim, Julia?
Antes que ela pudesse responder, ouviu a voz animada do Arlyss que, em um tom metade acusadora, metade brincalhão dizia, perto dali:
— Surpreende-me que ainda recorde meu nome, milord... Havia dito com muita claridade que eu só seria um capricho passageiro.
Para consternação da Julia, William tinha descoberto a Arlyss entre os postos de livros e não tinha demorado em aproximar-se dela. Ao voltar-se, Julia observou a cena que se desenvolvia ante seus olhos: William contemplando à miúda atriz com maliciosa admiração, a postura de audaz desafio de Arlyss, e a crispada virilidade do Michael Fiske, que caminhava para eles a pernadas. Era iminente que se desatasse uma rixa. Julia odiava a possibilidade de que semelhante cena pudesse causar dano ao incipiente romance entre Arlyss e Fiske.
— Por favor — disse Julia, voltando o olhar em forma instintiva para o Damon, em procura de ajuda, — não permita que seu irmão provoque problemas.
Damon não demonstrou simpatia alguma.
— Não haverá, a menos que sua pequena amiga, com seu cérebro de mosquito, anime ao William.
Julia amaldiçoou pelo baixo. William, com seus infelizes impulsos, ia arruinar as perspectivas de Arlyss. Ele apaziguaria o orgulho ferido de sua amiga por meio de audazes avanços e a deixaria de novo quando a sedução tivesse acabado. E, então, Michael Fiske não queria saber nada mais dela.
William sorriu a Arlyss e seus olhos azuis jogaram faíscas de irresistível encanto.
— É obvio que lembro seu nome, meu doce. Isso lembrança e muito mais. Vim ao Bath porque sentia falta de você e a seus numerosos encantos.
Era evidente que Arlyss não poderia resistir umas adulações tão francas.
— Veio ao Bath só para ver-me? — perguntou ela, dúbia.
— É obvio que sim. Aqui não há nenhuma outra atração.
Michael atravessou na conversação, jogando a seu rival ferozes olhadas; foi como se um bonito cão mestiço desafiasse a um puro cão de raça.
— Agora, Arlyss está comigo. Vá, e não volte a incomodá-la. Com ar divertido, William dirigiu sua réplica à própria Arlyss.
— Estou incomodando-a, tesouro?
Ali, entre os dois homens, a massa de cachos de Arlyss se balançava enquanto ela olhava, ora a um, ora ao outro. Como se provasse, aproximou-se um pouco para o Michael Fiske.
— Agora estou com o senhor Fiske — murmurou, em um tom que distava muito de ser seguro.
Era um pequeno passo, mas Fiske não necessitou mais.
Aproveitou essa magra vantagem e, atraindo com brutalidade a Arlyss para ele, estampou-lhe um terminante beijo nos lábios. Ela pôs-se a rir ante a ousada demonstração, e Fiske a levantou no ar e a jogou ao ombro. Provocou com isso femininos chiados e incontroláveis risadas e fez que todos que estavam no mercado se dessem volta para contemplar a esses dois, enquanto Fiske levava Arlyss nas costas.
— Vamos, espere... — protestou William, começando a segui-los.
Mas logo Damon tomou pelo braço lhe impedindo de fazê-lo.
— Will, encontra a outra pomba com quem te divertir.
William vacilou, com a vista fixa no casal que se afastava.
— Você sabe que me atrai o desafio — disse pesaroso.
— Deixa-a em paz — disse Damon. — Já causaste suficientes problemas. Além disso, esta noite viaja a Londres comigo, recorda?
William resmungou e assentiu. Recuperou rapidamente seu prévio bom humor e lançou um olhar malicioso a Julia, e logo ao Damon.
— E você recorda o conselho que eu dei a ti — disse, fazendo uma piscada, antes de partir ele também.
Julia se voltou para o Damon.
— Que conselho?
— Ele me disse que às mulheres agrada serem conquistadas e seduzidas.
Julia fez uma careta.
— Seu irmão tem muito que aprender com respeito às mulheres.
— Parece que seus amigos lhe abandonaram. Quer que acompanhe a algum lugar?
Julia negou com a cabeça e murmurou um rechaço.
— Daqui à estalagem há apenas uns passos.
— Você me afasta com uma mão e me chama com a outra. Alguém poderia dizer que está te burlando de mim, senhora Wentworth.
— É isso pensa de mim?
— Penso que é a mulher mais enlouquecedora que conheci — repôs ele, acariciando-a com o olhar mesmo que seu acento brincalhão ferisse os ouvidos da Julia. — Decide logo o que quer Julia. Logo. Minha paciência tem limites.
Deixou-a aí, entre os postos de livros, seu rosto delicado, carrancudo sob o véu.
Apesar das notícias que se referiam à má sorte que Senhora Engano tinha tido em Londres, todos os assentos do Teatro Novo estavam ocupados, e o edifício dava a impressão de estar a ponto de transbordar. Parecia que todo Bath tinha vindo e o público ardia de entusiasmo enquanto aguardava o começo a obra. Julia foi a uma das laterais a esperar que chegasse o momento de sua primeira entrada, sorrindo ao passar junto ao pessoal que lhe dava ânimos na penumbra.
Ela fez um esforço para concentrar-se no trabalho que tinha por diante para converter à obra no êxito que merecia ser. Entretanto, resultava-lhe difícil separar de sua mente os fatos dos últimos dias. Seguia refletindo a respeito da proposta de paz que lhe tinha formulado seu pai, da cena com o Damon desse dia, da noção de que poderia ser livre dele no momento que quisesse. Damon tinha razão: logo, ela teria que adotar uma decisão, embora mais não fosse conservar sua paz mental.
Face às asperezas de sua profissão, ela amava seu trabalho de atriz, amava a excitação e a plenitude que lhe brindava. A perspectiva de deixar para sempre o cenário era inconcebível. Mas não voltar a ver o Damon ou, pior até, vê-lo casado com outra enquanto sua própria vida ficava privada de companheirismo, resultava-lhe igualmente repugnante.
— Você não está pensando na obra — disse uma voz a suas costas e, ao olhar por cima do ombro, Julia viu que se tratava do Logan Scott.
— Em mil coisas diversas — confessou. — Como te deu conta?
— Está tão tensa que os ombros chegam às orelhas.
Julia lhe fez uma careta e afrouxou os ombros. Aspirou profundamente, reteve o ar uns instantes e logo o exalou com lentidão. Voltou a olhar ao Logan e lhe pareceu que se tranquilizou.
— Assim está melhor.
Pensativa, Julia contemplou o cenário onde quase não se distinguiam os contornos das peças de cenografia e das escoras, depois do pano de fundo baixo. Sempre lhe tinha encantado esse momento, o instante prévio ao começo da obra, sentindo que a expectativa corria por todo seu corpo. Entretanto, nesse momento esse sentimento estava tingido de tristeza. Sentia-se como se fosse uma menina pequena que tinha aberto um pacote envolto em papel de brilhantes cores e o tinha encontrado vazio.
— Quanto tempo durará minha vida no teatro? — perguntou, falando para si mesma. — Contarei com outros dez anos? Vinte talvez?
Logan se aproximou dela e a examinou com olhar crítica.
— Eu diria que tem uma larga carreira por diante. À medida que mature, terá o talento de desempenhar outra classe de papéis, inclusive os melhores personagens característicos.
Um sorriso lúgubre apareceu nos lábios dela.
— Pergunto-me se isso será suficiente para mim.
— Você é quão única pode responder a essa pergunta.
Aguardaram juntos, em silêncio, a que se levantasse o pano de fundo e a vida real se esfumasse para dar passo ao começo da ilusão.
A apresentação se desenvolveu com vertiginosa velocidade. Durante duas horas, uma cena aconteceu à outra e se fundiram em um tudo sem fissuras. Quando Julia não estava em cena ou trocando de roupa, esperava impaciente, nas laterais, sua atenção cativa da ação que tinha fascinado ao público. Quando estava sobre as pranchas dizendo sua parte, se sentia como se estivesse extraindo magia do ar mesmo. Recebia a multidão pendente de cada uma de suas palavras, seus olhares seguindo cada gesto dela, cada movimento de sua cabeça.
Julia soube que nunca tinha atuado tão bem com o Logan; as cenas de ambos vibravam de emoção, transbordavam de um humor faiscante e nostálgico, de uma vez. Durante um lapso, deixou de existir como ela mesma. Não havia em sua cabeça nenhum outro pensamento que aqueles que pronunciava para entreter ao público. Quando caiu o pano de fundo final compreendeu que havia vestido as expectativas que outros tinham sobre ela, que tinha desempenhado seu papel o melhor que era capaz de fazê-lo. Deixou-se levar pelo Logan ante o pano de fundo para receber uma clamorosa ovação de aplausos e gritos.
Seu rosto resplandecia e fez uma reverência para agradecer o clamor do público. Os aplausos persistiram durante compridos minutos até que ela se deslocou para uma lateral, tratando de escapulir. Logan não a deixou partir e a tirou da mão levando-a para diante enquanto as exclamações de aprovação aumentavam. Começaram a chover sobre o cenário flores e pequenos obséquios, que foram formando montões. Logan se agachou para recolher uma rosa branca e a entregou a Julia. Ela agarrou entre seus dedos o comprido esculpo e voltou a fazer uma reverência e a encaminhar-se para a lateral, apesar da multidão de vozes que insistiam em que ficassem.
O elenco e o pessoal de tramóia a encheram de felicitações, fazendo-a rir, um pouco envergonhada. Betsy, sua donzela, acompanhou-a a seu camarim privado.
— Há uma jarra de limonada para você — lhe informou Betsy, assinalando a porta, sabendo que Julia queria contar com uns minutos a sós, depois da apresentação. — Voltarei logo para recolher seus vestidos.
— Obrigada — disse Julia, lançando um suspiro de alívio ante a paz e o silêncio que reinavam no pequeno ambiente.
Deteve-se ante o espelho, e começou a desatar os laços da dianteira de seu vestido. Agora que começava a esfumar a euforia da apresentação, sentia-se exausta. Tinha manchas de suor nas axilas, e a maquiagem de rubor em suas bochechas começava a rachar-se e a empalidecer.
Enquanto se contemplava, viu que uma silhueta escura se deslizava no camarim. Sobressaltada, girou em redondo e uma débil exalação escapou de seus lábios ao ver Damon em frente a ela. Não esperava que ele estivesse ali essa noite. Não sabia o que opinava ele da apresentação, embora sem dúvida não sentia deleite nem orgulho. Havia um forte rubor na parte alta das bochechas do Damon e sobre a ponte do nariz e em seus olhos cinza ardia um brilho intenso. Ele estava irritado com ela, e não lhe economizaria nenhum pingo de sua fúria candente.
Intrigada, silenciosa, Julia não resistiu quando seu marido se aproximou dela com grande rapidez e a esmagou contra o espelho. Com uma de suas grandes mãos lhe aferrou o braço e levou a outra ao rosto dela, lhe rodeando a mandíbula com seus dedos.
— Acreditei que partia a Londres esta noite — conseguiu dizer ela.
— Antes de partir, tinha que ver-te.
— Viu a obra...
— Sim, vi-a. Vi o prazer que te proporciona a atuação. Vi o muito que significa para ti e para todos os presentes nesse condenado lugar.
Confundida por sua cólera, Julia meneou a cabeça.
Damon apertou os dedos na mandíbula dela machucando-a, quase.
— Você escolherá isto, não é assim? — disse ele entredentes. — Não será capaz de abandoná-lo. Diga-me a verdade, Julia.
— Agora não...
— Sim, agora. Preciso ouvir as palavras de seus lábios antes de partir.
— Como reagiria você se eu te pedisse que o sacrificasse tudo por mim?
— Essa é sua resposta?
— Nem sequer estou segura de qual seria a pergunta — exclamou ela, tratando de soltar-se.
— Quero-te — murmurou ele.
— Sim, sob minhas condições. Quero que leve meu sobrenome, que viva em minha casa, durma em minha cama todas as noites. Quero que seja minha sem limite... que cada parte de ti o seja, cada pensamento, cada palavra que pronuncie.
De súbito, quando Julia sentiu a boca dele sobre a sua, o calor de seus lábios e sua língua que lhe arrebatava o fôlego, suas resistências cessaram. Era como se ele quisesse marcá-la a fogo com seu beijo, gravar nela sua alma mesmo com a força de sua ardorosa paixão. Seus braços, que a encerravam, eram duros. Com mãos bruscas, aferrou as curvas de seu corpo e inclinou sua cabeça sobre a dela, obrigando-a a arquear-se contra ele. Ela não queria reagir, mas a loucura surgiu nela fazendo-a submeter-se com um soluço de desespero.
Ela levou as mãos à nuca dele, entrelaçou seus dedos em seu cabelo escuro para aproximá-lo mais. Da garganta do Damon escapou um som premente e suas mãos se cavaram nas nádegas dela, levantando-a e apertando-a contra seu corpo.
— Você é minha — disse ele, com a boca apoiada no oco de sua garganta, raspando com dentes e barba crescente a pele suave da Julia. — Nunca estará livre de mim, faça o que faça.
Ela só ouviu pela metade suas palavras, enquanto seu corpo pugnava desesperado por apertar-se ao dele, procurando esse prazer que só ele podia lhe brindar. As palmas do Damon subiram até seu sutiã, sujeitaram as bordas do tecido e a separaram de modo que os laços se soltaram. Baixou-lhe a camisa e procurou os peitos dela. Seus dedos quentes se curvaram sob o terno peso desses peitos e seus polegares passaram sobre os mamilos. Julia ofegou e se ofereceu a ele, abrindo a boca baixo a dele, elevando seus peitos para as mãos do Damon.
Ele a empurrou até a mesa da penteadeira e, baixando a cabeça para o peito dela, atraiu o turgente mamilo com os lábios até apoiá-lo contra sua língua. Julia se aferrou a ele para conservar o equilíbrio e reteve o corpo tenso dele entre suas coxas, rodeando a cintura do Damon com seus braços. Ele passou sua atenção ao outro peito, lambendo e tironeando do rosado pico. Julia ficou apanhada entre o desejo e a negativa, até sabendo que essa intimidade que ela ansiava com tanto desespero seria sua perdição final.
— Por favor, detenha — disse, entre ásperas baforadas de ar que pareciam sair à força de sua garganta. — Por favor, não quero isto.
Ao princípio, Damon não deu sinais de ouvi-la, pois sua atenção estava cravada na amadurecida promessa de seu corpo, e sua boca se deslocava ávida, sobre a pele dela. Ela o empurrou uma vez pelo peito e pela cabeça e, logo, outra vez com maior força até que o abraço se quebrou. Ele a brocou com seu olhar e sustentou a cabeça dela com suas mãos.
— Parto a Londres — disse ele em voz turva; — depois voltarei a te buscar.
— Não...
— Nunca te deixarei ir. Não te deixarei, até que possa me olhar aos olhos e me dizer que não me ama que pode acontecer o resto de sua vida sem necessitar isto, sem me desejar.
Tremeram-lhe os lábios, mas não emitiu nenhum som.
Ouviu-se o estalo da porta ao abrir-se; embora leve, sobressaltou a ambos. Na porta estava a donzela, Betsy, com uma cesta de roupa.
— OH — exclamou a moça, e seus olhos se aumentaram ao ver a pessoa que visitava a Julia.
Damon se colocou diante da Julia para oculta-la da vista, enquanto ela arrumava, com dedos torpes, os laços do sutiã.
— Desculpe-me, senhora Wentworth — murmurou a donzela, e desapareceu imediatamente, fechando firmemente a porta detrás de si.
Julia avermelhou e prosseguiu acomodando suas roupas sob o intenso olhar do Damon.
— Por favor, não volte a me buscar — disse Julia, evitando o olhar dele. — Não posso ver-te durante um tempo. Necessito tempo para pensar.
— Você quer dizer que necessita tempo para te convencer de que tudo poderia voltar a ser como era antes que nos conhecêssemos. Não dará resultado, Julia. Você nunca será a mesma... e eu tampouco.
— Você me fará impossível atuar. Não poderei me concentrar em nada.
— Eu retornarei logo — insistiu ele, — e então solucionaremos as coisas de uma vez e para sempre.
Quando Damon partiu, Julia não se moveu. Ficou apoiada na mesa da penteadeira e exalou um suspiro trêmulo. Parecia que tinha perdido o robusto controle que havia exercido sobre sua vida desde que abandonou seu lar. Pensou nos documentos que lhe tinha dado seu pai: a chave de sua liberdade. Ela teria o valor de usá-los? Detestava essa sensação de paralisia que a dominava, pois o medo de perder ao Damon era quase tão grande como o de entregar-se a ele.
Despiu-se lentamente, deixando cair ao chão a roupa, que ficou amontoada.
— Senhora Wentworth? — ouviu a voz do Betsy acompanhada por um tímido golpe na porta.
— Sim, passa.
O rosto da donzela tinha manchas de rubor.
— Lamento havê-la interrompido antes, senhora; eu não sabia...
— Não há nenhum problema — disse Julia, em voz calma. — Ajude a me vestir.
A donzela ajudou a Julia a vestir-se, abotoando a fila de botões que havia nas costas do vestido de seda verde. Sujeitou o cabelo com firmeza no cocuruto da Julia, e logo esta lavou a cara e observou seu reflexo no espelho. Tinha os lábios suaves e inchados, as bochechas rosadas, e reveladoras marcas deixadas pela barba dele no pescoço. Julia acomodou com cuidado o alto pescoço franzido de seu vestido de modo que cobrisse as marcas. Interrompeu-se para ouvir o murmúrio da voz de Logan Scott fora do camarim.
— Senhora Wentworth, queria falar umas palavras com você.
Julia indicou à donzela que o fizesse entrar. Logan também trocou de roupa e se lavou; a umidade que ainda perdurava em seu reluzente cabelo lhe dava um tom de madeira de cerejeira.
Betsy recolheu a roupa, deu boa noite e os deixou sozinhos.
— Se sentiu firme com a apresentação desta noite — perguntou Julia, — ou vieste a me criticar?
Logan sorriu.
— Ultrapassaste todas as esperanças que tinha cifradas em ti. Obteve que todos os integrantes do elenco se iluminassem com o reflexo de sua glória, inclusive eu mesmo.
O generoso elogio era tão inesperado que Julia ficou desconcertada. Dirigiu-lhe um sorriso inseguro e se voltou para arrumar os objetos que havia sobre sua penteadeira.
— Vi lorde Savage quando vinha ver-te comentou Logan. — A julgar por sua expressão, não tinha intenções de te felicitar.
— Não, não me felicitou.
As mãos da Julia seguiam sobre a mesa da penteadeira e as veias de seus dedos se apertavam sobre a lisa superfície até ficarem brancas. Procurou não dar indícios do que tinha acontecido.
Logan a contemplou, pensativo, e cabeceou com vigor, como se tivesse chegado a uma decisão.
— Vem comigo, Julia. Quero te falar de uma idéia em que estive pensando ultimamente.
Ela girou para ele sem poder ocultar sua surpresa.
— É tarde.
— Eu te levarei a estalagem a meia-noite — disse ele, e sua larga boca se curvou em um sorriso . Quero te fazer uma proposição que está relacionada com seu futuro.
Julia estava intrigada.
— Diga-me isso. Picada sua curiosidade, Julia o acompanhou sem fazer mais perguntas. Não acertava a compreender por que motivo ele permitiria que ela visse outra de suas residências, como se a convidasse a internar-se um pouco mais nesse mundo privado que ele ocultava com tanto zelo.
— Quando estivermos a sós.
Logan a sujeitou brandamente pelo braço e a tirou fora do camarim.
— Aonde iremos? Perguntou ela, tomando sua capa ao tempo que saíam.
— Eu tenho uma casa perto do rio.
Depois de ter afastado à multidão que aguardava ante o teatro, fizeram uma viajem de carro até chegar a uma vila pequena e elegante levantada em um terreno densamente boscoso. Ao igual à casa de Logan no Londres, estava decorada em estilo italiano e seu ambiente era luxuoso, mas sereno.
Sentada na sala, com uma taça de vinho na mão, Julia se relaxou reclinando-se em um respaldo estofo de um sofá de estilo Império. Espectadora olhou ao Logan e viu que ele brincava, distraído, com objetos dispostos com bom gosto sobre uma mesa com tampa de mármore: um jarro chinês, uma caixa de malaquita, um relógio de mesa Luis XIV, de ébano. Ele dirigiu um olhar de soslaio, como tratando de adivinhar seu estado de ânimo.
— Tenho a impressão de que te dispõe a me convencer de algo — comentou Julia.
— É certo — confirmou ele com uma franqueza que desarmava. — Mas antes me diga como estão as coisas entre você e lorde Savage.
Julia fingiu estar muito atarefada tirando uma minúscula partícula de cortiça do interior de sua taça. Por último, elevou a vista para ele e lhe dirigiu um sorriso que revelava desconforto.
— Posso saber por que o perguntas?
— Porque não quero interferir na relação entre vós..., em seu matrimônio.
— Não pode haver um verdadeiro matrimônio — replicou ela, em tom opaco e plano. — Para mim, é claro que nós dois estaríamos melhor se pedíssemos uma anulação. Por desgraça, lorde Savage não está de acordo, e ele tende a ser um tanto prepotente quando se trata de obter o que quer.
— E te quer — disse Logan, tranquilo.
— Quer uma esposa tradicional — replicou Julia, bebendo um gole de vinho. — Quer que me converta em lady Savage e que deixe no passado até o último rastro de Jessica Wentworth.
— Isso não seria possível. E menos em uma pessoa de seu talento.
— Ah, se eu fosse um homem..., disse ela com amargura. — Desse modo, poderia o ter tudo: trabalho, família e a liberdade de decidir as coisas sem dar contas a ninguém. Mas sou uma mulher e faça o que faça, serei desventurada.
— Possivelmente sim, por um tempo. A dor de perder algo ou a alguém se desvanece com o tempo.
Logan se mostrava tão pragmático, tão direto de si mesmo como se seu coração estivesse revestido de aço. Julia não sabia bem se sentia inveja ou consternação ao perceber sua frieza.
— Você havia dito que tinha algo que me propor.
Ele se aproximou do sofá e se sentou no outro extremo. Falou em tom animado, como se referisse a um negócio.
— Nos próximos anos, penso fazer algumas mudanças em Capital.
— Ah, sim?
— Penso transformar a companhia no grupo de atores mais famoso do mundo. E necessito que você forme parte dele.
— Adula-me que tenha a meu trabalho em tão alto conceito.
— Eu nunca enrolo a ninguém, Julia; menos ainda a uma pessoa a quem respeito. A estas alturas, deveria entender que você é um bem importante para a companhia. Tenho a intenção de que te converta na pedra angular de seu êxito. Estou disposto a te oferecer uma participação nos lucros do Capital para garantir sua presença.
A estupefação emudeceu a Julia. Jamais tinha sabido que Logan fizesse uma oferta semelhante a ninguém.
— Farei o que seja necessário para proteger o investimento que tenho feito em ti — seguiu dizendo ele, — e para facilitar a uma amiga uma eleição difícil.
Ela sacudiu sua cabeça enquanto pensava no que ele havia dito, com o sobrecenho crispado de perplexidade.
— Por isso entendo, está me oferecendo certo tipo de... sociedade comercial?
— Poderia descrever desse modo, embora a sociedade abranja outras coisas, além disso, do negócio.
— Além disso, do negócio? Julia o olhou com atenção. Não achou em sua expressão nada de depredador, nada que desse a suas palavras uma intenção sexual. O que quereria dizer? Não podia acreditar que estivesse tendo este tipo de conversação com o Logan, e por isso lhe lançou um olhar interrogante.
Logan puxou, distraído, uma mecha de seus cabelos avermelhados.
— Já te hei dito, em outra ocasião, que eu não acredito no amor. Pelo contrário, acredito na amizade, nessa classe de amizade que significa, entre outras coisas, respeito e honestidade. Jamais me casarei por amor embora poderia me casar por motivos práticos.
— Casar-te? — repetiu ela, soltando uma gargalhada atônita. — Não estará sugerindo que você e eu...? É que eu jamais poderia me casar com um homem ao que não amo!
— Por que não? — perguntou ele, sem alterar-se. — Teria todos os benefícios do matrimônio: amparo, companheirismo, interesses compartilhados, e não estaria atada a nenhuma de suas responsabilidades.
— Nada de falsas promessas, de vínculos emocionais, nada mais que a segurança que dois amigos podem brindar-se um ao outro. Pensa-o, Julia. Entre os dois poderíamos erigir uma companhia de teatro diferente a tudo o que se viu no mundo até agora. Nós somos mais similares do que você crê, pois nós dois vivemos a margem da sociedade, que nos olhe de acima enquanto que, ao mesmo tempo, necessita o que nós temos para dar.
— E para isso é necessário que nos casemos?
— Se ocupar o lugar de minha esposa, poderia me acompanhar aos sucessos sociais de Londres, Paris e Roma. Poderia dedicar à atuação todo o tempo que te desse vontade, escolher você mesma os papéis, adaptar obras para o teatro... Não conheço nenhuma mulher que tenha tido semelhante influencia nesta profissão.
— Quão último tivesse esperado é receber outra proposta de matrimônio — disse Julia, aturdida.
— Há uma diferença fundamental. Savage quer casar-se contigo para te ter em exclusividade. Eu te ofereço matrimônio para que nós dois tenhamos êxito, tanto no econômico como no artístico.
Agitada, Julia acabou seu vinho e deixou a taça. Ficou de pé e pôs-se a andar pela habitação alisando uma e outra vez as largas mangas de seu vestido verde.
— E como seria o tema de... dormir juntos? — perguntou, sem olhá-lo. — Isso formaria parte do acordo?
— Se a idéia chegasse a ser agradável para ambos, não vejo por que não. De todos os modos, até essa instância, cada um atenderia a seus próprios interesses. Eu não quero me apropriar de ti, Julia. Não quero ter direitos sobre ti. Nem que você tenha nenhum sobre mim.
Julia tratou de sair de seu assombro e, voltando-se, olhou ao Logan de frente. Ele estava no sofá, com o ar de quem se encontra por inteiro a suas largas, como se a tivesse convidado a tomar o chá e não lhe tivesse feito uma proposta de matrimônio.
— Por que eu? — perguntou Julia, diretamente. — Há muitas mulheres com quem poderia te casar, por exemplo, a filha de uma família nobre que receberia com beneplácito a um homem de seus recursos.
— Não quero a uma senhorita que se pegue para mim como um marisco ou que tenha aspirações sociais. Quero a alguém com quem possa compartilhar minhas metas. Como atriz, você tem o potencial maior que eu tenha visto. Como pessoa, dá a casualidade de que me agracia. Estou convencido de que poderíamos nos levar bem — disse, enfocando seus intensos olhos azuis no rosto pálido dela. — Assim - adicionou ele com suavidade, isto resolveria seu conflito, não o crê? Se te convertesse em minha esposa, Savage não voltaria a te incomodar mais.
Julia lhe devolveu o olhar e, ao fazê-lo, não viu tinos olhos azuis a não ser outros cinza com reflexos de prata. Encheu sua mente a voz do Damon:
"Você é minha. Nunca estará livre de mim, faça o que faça".
Este era o único modo seguro de terminar com a ameaça que Savage tinha exposto a sua independência e a sua carreira. Se ela não aceitava o amparo do Logan sabia, com absoluta convicção, que não seria capaz de resistir a insistente paixão do Damon. Ela se deixaria seduzir, persuadir, convencer e logo teria uma vida inteira para arrepender-se. Embora amasse ao Damon, não podia transformar-se na mulher que ele queria.
Estava cheia de dúvidas e, no meio do pântano de contradições em que se debatia, não via nenhuma outra alternativa. Quando falou, sua voz soava débil e longínqua.
— Eu... eu terei que me ocupar de certas coisas, primeiro.
— É obvio — respondeu ele, com um brilho de satisfação em seus olhos. — Quando quer que sejam as bodas?
— O mais breve possível — disse Julia, enrijecida. — Eu gostaria de terminar com isto agora mesmo.
Logan se aproximou dela com a preocupação marcada em suas feições de tosco atrativo, as suavizando
— Julia, se quer trocar de idéia...
— Não — o interrompeu ela, ajustando os ombros. Esta é a decisão correta.
— Estou de acordo — disse ele, tomando-a pelos antebraços e oprimindo-a com suavidade. — Comprovará que sou um bom amigo, Julia. Conservo-me bem com o tempo.
Ela assentiu e sorriu, embora tivesse uma pesada sensação interna, como se tivesse agasalhado no peito um bloco de granito.
À manhã seguinte, na estalagem do Bath, Julia recebeu uma nota de sua antiga amiga e professora, a senhora Florence. A anciã atriz tinha chegado à cidade por motivos de saúde e em busca de entretenimento social; transbordava elogios pela atuação da Julia em Senhora Engano. A senhora Florence a convidava a encontrar-se com ela nos banhos a essa hora da manhã em que se deixava ver a gente elegante; Julia não titubeou em aceitar. Tinham transcorrido vários meses da última vez que ela visitou a anciã em Londres apesar de que viviam na mesma rua. O tempo passava com excessiva rapidez e a Julia remoia a culpa por não haver-se empenhado em ir ver sua amiga.
Quando Julia chegou aos banhos, alegrou-lhe ver que a senhora Florence estava tão animada como sempre e que levava seu descolorido cabelo avermelhado penteado em um elegante coque no cocuruto e que seu rosto refletia uma aguda inteligência. Exibia elegantemente sua idade, como uma estátua de mármore a que o passado do tempo houvesse desgastado e suavizado com delicadeza. Sentada ante uma pequena mesa, com um copo de água mineral junto a ela, a senhora Florence escutava a música de um quarteto de cordas. Assim que viu a Julia, seus olhos se iluminaram.
— Senhora Florence — exclamou Julia, demonstrando a sincera alegria que sentia ao vê-la.
Parecia obra da Providência que sua professora tivesse ido ao Bath no preciso momento em que ela a necessitava. Sentou-se na cadeira que estava junto a ela e tomou entre as suas as mãos da anciã, sulcadas de finas rugas. Os dedos da senhora Florence estavam adornados com uma variedade de jóias importantes; um fino fio de pérolas e granadas lhe rodeava o pulso.
— Tem você um aspecto maravilhoso, como sempre.
— Passou muito tempo da última vez que foste visitar-me — disse a senhora Florence, arreganhando-a amigavelmente. — Então, cheguei à conclusão de que teria que vir ao Bath se queria ver-te.
Julia começou a derramar desculpas e explicações e lhe dirigiu um sorriso envergonhado.
— Estive muito atarefada. Não pode você imaginar...
— OH, sim; acredito que posso — a interrompeu com secura a senhora Florence. — Não sou tão velha como para não poder recordar as exigências que enfrenta uma atriz popular — replicou, olhando a Julia com carinho. — Poderia te tirar o véu, menina. Eu sou capaz de manter a raia aos admiradores e aos curiosos.
Julia a obedeceu, levantando o véu que pendia de seu pequeno chapéu, percebendo a repentina quebra de onda de interesse que percorria o salão e as olhadas que se fixavam nela. Um par de mulheres gordinhas, de expressões excitadas, levantaram-se imediatamente para aproximar-se da mesa. A senhora Florence, com ar perito, levantou a bengala que tinha estado enganchada no respaldo de sua cadeira e o brandiu como se fosse golpear com ele a essas mulheres, para afastá-las.
— Em outra ocasião — lhes disse com firmeza. — Minha jovem amiga e eu queremos conversar sobre privado.
Acovardadas, as mulheres retrocederam e se queixaram pelo baixo, enquanto Julia admirada continha a risada.
— É você uma tigresa, senhora Florence.
A anciã fez um gesto como desprezando o elogio.
— Eu benzi o dia em que por fim pude ser grosseira com a gente e me perdoassem por causa de minha idade — disse, devolvendo o sorriso a Julia. À medida que amadurecidas, vai te convertendo em uma esplêndida atriz, Jessica. Senti-me muito agradada e orgulhosa ontem à noite, quando te vi no cenário e pensei que talvez eu tenha contribuído um pouco a seu êxito.
— Eu devo tudo a você, a seu conselho e a sua orientação, e ao modo em que me ajudou para que unisse aos atores do Capital.
— Pareceria que obtiveste tudo o que sonhava — comentou a senhora Florence com uma expressão um tanto dúbia. — Por que, então, não parece feliz querida?
Julia compreendeu com amargura que sua amiga a conhecia muito bem para deixar-se enganar por uma ficção. Reclinou-se no respaldo de sua cadeira e suspirou.
— Recorda aquela conversação que tivemos faz anos, quando você me disse que não se casou com o homem que amava porque ele queria que você abandonasse o teatro? Você me disse que possivelmente eu enfrentasse algum dia o mesmo dilema, e eu não lhe acreditava.
— E esse dia chegou — disse a senhora Florence, e em seus olhos brilhou, imediatamente, a compreensão. — Não me produz a menor satisfação comprovar que tinha razão, Jessica. Eu não queria que isto te acontecesse; trata-se de uma dor muito peculiar, não é verdade?
Julia assentiu; de repente, sentiu que não podia falar. Uma insuportável opressão lhe pesava no peito e lhe fechava a garganta.
— Suponho que ele te tem proposto matrimônio — disse a senhora Florence. — O que lhe respondeu?
— Eu... tenho quebrado nossa relação. E, então, ontem à noite, recebi uma proposta de outro homem: do senhor Scott.
No rosto da anciã apareceu uma expressão intrigada.
— Está ele apaixonado por ti?
— Não, nada disso. Ele o há descrito como um matrimônio de conveniência.
— Ah, já compreendo — disse a senhora Florence rindo brandamente. — A ambição de seu senhor Scott não conhece limites, não é verdade? Se você abandonasse o Capital, deixaria um vazio muito difícil de encher. Em troca, se te convertesse em sua esposa, ele poderia transformar a sua companhia teatral em algo extraordinário, e está disposto a casar-se contigo para poder obtê-lo. A pergunta seria se você está disposta a sacrificar ao outro homem, que você ama, pelo bem de sua profissão.
— Você o tem feito — particularizou Julia.
A senhora Florence apertou o nariz e bebeu um gole da amarga água mineral.
— Também te hei dito que tinha lamentado essa decisão — lhe disse, secando os lábios com um lenço de encaixe.
— Se você pudesse fazer de novo essa eleição...
— Não — interrompeu com delicadeza a senhora Florence. — Uma vez que a decisão foi feita, é inútil olhar para trás. Segue avançando na direção que tenha elegido, qualquer seja, e te convença de que é a melhor eleição de sua vida.
Julia lhe dirigiu um olhar suplicante.
— Se você pudesse me aconselhar como o tem feito com tanta frequência...
— Dar-te-ei todos os conselhos sobre atuação que possa necessitar, mas nenhum sobre sua vida pessoal. Não posso tomar essa decisão por ti. E não me agrada pensar no que eu poderia ter feito de forma diferente. O passado não pode modificar-se.
Julia fez uma careta; nesse instante compreendeu até que ponto tinha abrigado a esperança de que a senhora Florence lhe dissesse o que devia fazer.
— Há uma só coisa da que estou segura — disse, zangada. — Estaria mais segura se seguisse o que me indica a cabeça que o que me diz o coração.
— Certamente — disse a anciã, observando-a com uma mescla de humor e simpatia. — E temos que nos sentir seguras custe o que custar, não é assim?
William entrou na sala de seu apartamento do St. James pouco depois de que seu mordomo tivesse feito entrar em lady Ashton. Não lhe surpreendeu que Pauline tivesse ido visitar o uma hora tão avançada da noite. Assim que teve retornado a Londres, William fez saber nos círculos sociais apropriados, que permaneceria em sua residência da cidade durante certo tempo. Além disso, tinha deixado cair poucas sutis insinuações de que tinha urgente necessidade de companhia feminina. Pauline, como uma mosca atraída pelo mel, não tinha perdido tempo em cair sobre ele.
Pauline estava de pé ante a janela, exibindo sua silhueta com pose de perita. Com um movimento que tinha bem ensaiado, girou para ele com um sorriso em seus lábios vermelhos. Estava arrebatadoramente bela, com um vestido de veludo borgonha que se fundia, criando uma suntuosa harmonia, com as masculinas cores dessa sala. O sutiã tinha um decote muito profundo e deixava ver seus brancos e tensos peitos um par de centímetros mais do que indicava o bom gosto. O efeito era estimulante, por dizê-lo com discrição.
— Lady Ashton, que surpresa — murmurou William, cruzando a habitação em direção a ela, que lhe tendia suas mãos.
— Lorde William — ronronou ela, rodeando os dedos dele com os seus. — Tinha que vê-lo imediatamente. Espero que não lhe incomode. Sinto-me muito desassossegada.
Ele a olhou à cara, com expressão preocupada.
— O que acontece, lady Ashton?
Da maneira mais súbita, apareceu um brilho úmido nos olhos escuros da mulher.
— Me chame Pauline. Estou segura de que pode fazê-lo; faz muito que nos conhecemos.
— Pauline — repetiu ele, obediente. — Quer sentar-se, por favor?
Soltou-lhe as mãos a inapetência e foi até o sofá, estendendo sua saia sobre o estofo de damasco.
— Quer beber algo? — ofereceu-lhe William.
Ela afirmou com a cabeça, e ele foi servir um pouco de vinho para os dois e se sentou no outro extremo do sofá. Pauline sustentava a taça entre seus largos dedos, brincando com ela, percorrendo com delicadeza o pé e o bordo.
— Espero não ter interferido em seus planos para a noite — disse ela, olhando-o fixa e intensamente.
— Não interferiu em nada — assegurou ele.
— Parece solitário, pobre moço — disse ela, baixando a voz até convertê-la em um sussurro gutural. — Dá a casualidade de que eu também me encontro sozinha.
Apoiou sua cabeça no ombro dele, fazendo-o remover-se, incômodo.
— Lady Ashton... Pauline... por favor, não creia que me cai mal. Mas acontece que, para uma pessoa suspicaz, esta situação poderia parecer comprometedora. Eu devo certo grau de lealdade a meu irmão...
— Precisamente, seu irmão é a causa de meu desassossego — interrompeu ela, alisando o tecido da jaqueta do William, para logo apoiar sua bochecha no ombro dele. — Não suporto ouvir falar do que deve a ele enquanto que ele, por sua parte, está convencido de que não me deve. Não tenho a quem confiar meus sentimentos mais profundos, como não seja você. Não será tão desalmado para me rechaçar, não é assim?
Incômodo, William se retorceu.
— Eu não posso me misturar na relação entre você e Damon...
Eu não quero que te misture — replicou ela, enquanto com sua mão iniciava uma lenta carícia pelo peito do moço. — Quão único quero é que seja meu amigo. Isso é muito pedir, William?
— Nos últimos tempos, seu irmão não foi muito bondoso comigo. Pode imaginar o que significa isso para uma mulher em minha situação? Eu necessito companhia.
— Não duvido de que poderia obtê-la de algum outro que não fosse eu.
— Ninguém pode me oferecer senão mesmo você, William.
— Mas, meu irmão...
— De momento, Damon não está. Não lhe importa o que eu faça em sua ausência, enquanto esteja disponível quando ele me requeira. E ele não me reclamou, você sabe. Vamos, William, você é um homem de mundo. Não há nada de mau em que dois amigos passem um tempo juntos a sós.
Antes de que ele pudesse responder, ela se inclinou sobre ele e esmagou seus vermelhos lábios nos dele. Suas mãos pequenas subiram, ávidas, pelo corpo dele e seu exótico perfume o rodeou em uma espécie de nuvem invisível.
— Pauline! — gritou ele, encolhendo-se quando ela explorou entre suas coxas, apertando-o com seus dedos.
— Está bem — murmurou ela, apoiando seu corpo sobre o dele. — Não o diremos a ninguém. Alguma vez imaginaste como seria estar comigo, William? Eu te brindarei um prazer que vai além do que possa sonhar. Não te aflija por seu irmão. Deve estar ciumento dele, pois qualquer, em sua situação, está-lo-ia. Ele é o primogênito e tem todo o dinheiro e a influência. Você merece provar um pouco do que ele tem, e eu vou dar-lhe - disse isso e, enquanto o dizia, aferrou a mão dele com movimento agressivo e a levou a seu peito. — Sim, me toque — ronronou. — Me toque por toda parte, me leve a seu dormitório.., OH, William.
Enquanto ela se retorcia ao redor do jovem, uma sombra cruzou o rosto de Pauline e lhe fez levantar apenas suas espessas pestanas. De repente, abriu completamente os olhos e empalideceu de assombro ao ver o Damon de pé ante eles. O olhar dele era fria e sua expressão dura como o mármore.
Houve um momento de explosiva tensão, até que Pauline empurrou ao William, afastando-o com gesto decidido. Atirou de seu sutiã em um inútil esforço por cobrir seus generosos peitos. Voltou seu olhar para o Damon e falou com voz tremente.
— Lamento que tenha tido que presenciar isto, querido. Deve ser doloroso para ti ver que seu irmão estava tratando de aproveitar-se de mim.
Nos lábios do Damon apareceu um sorriso cínico.
— Ouvi tudo, Pauline.
William se levantou do sofá de um salto e acomodou a gravata e a jaqueta, exibindo ante o mundo um ar de virgem ofendida.
— Estava me perguntando quanto tempo te ias demorar — disse o menor, olhando a seu irmão com turvo cenho.
— Você planejou isto? — perguntou Pauline, com fúria crescente, olhando ora a um irmão, ora ao outro. — Conspirastes para me tender uma armadilha? — disse, enfrentando ao Damon com os punhos apertados. Sua cara se cobriu de um rubor de ira. — Não têm decência! Não permitirei que me manipule nem me engane canalha!
Ante isso, Damon estalou em estrondosas gargalhadas.
— Tu não permitirás que te manipule?
— Assim é. Deve-me isso, por todos os meses que passamos juntos, pelo uso que tem feito de meu corpo e pelo modo em que induziste a engano...
— Paguei-te pelo uso de seu corpo; devo-te dizer que estava supervalorizado — disse Damon, e em seus olhos ainda perdurava um brilho de hilaridade. — Quanto a que tenha sido induzida a engano, terá que me explicar isso posto que não ficasse claro.
— Me tem feito acreditar que te faria responsável por este bebe!
— Não há tal menino, e não porque não o tenha tentado.
— O fazia por nós — repôs ela com veemência. — Você sabe que faríamos um bom matrimônio, Damon. Você sabe que eu sou a melhor mulher que teria jamais e que somos um para o outro...
— E eu sei que você planejou me impor o bastardo de meu irmão — replicou Damon sem elevar sua voz. — Esse teria sido um golpe de mestre, Pauline, embora não é adulador para o William nem para mim.
— Tivesse podido ter êxito. Mas não calculei que ele estivesse tão sujeito a ti — disse ela, jogando ao William um olhar depreciativo. — Não tem vontade própria, né? — disse-lhe com ódio. — Passará toda a vida à sombra de seu irmão maior...
— Já está bem — disse William, adiantando-se para tomá-la pelo braço. — Que me condenem se permitir que me insultem em minha própria casa.
Conduziu-a fora da habitação, enquanto ela cuspia e vaiava como uma gata enfurecida.
Quando William retornou, tinha o aspecto exausto de quem foi acossado, e se via a nítida marca de uma bofetada em sua bochecha direita.
— Ela partiu?
— Sim, mas antes me deixou um presente de despedida — respondeu William, esfregando a bochecha com expressão reflexiva. — Meu Deus, deve ser uma tigresa na cama. É um milagre que não te tenha comido vivo. Você é um homem superior a mim, irmão: eu prefiro às mulheres um pouco mais complacentes que esta.
— Graças a Deus, por fim me livrei dela — disse Damon, deixando cair em uma cadeira e estirando as pernas.
William sorriu ao descobrir a fadiga e o alívio no semblante de seu irmão. Foi até o aparador e serviu dois conhaques.
— Suponho que irás dizer a Julia imediatamente.
— Sim, embora isso não vá resolver o problema que há entre nós.
— Que outro problema poderia haver agora?
Carrancudo, Damon aceitou a bebida que William lhe oferecia.
— A última vez que vi nosso pai, ele me disse que não existia nenhuma mulher o suficientemente reta para me agradar: tinha razão. Hei dito a Julia, com toda claridade, que quero que desempenhe outro papel: o de esposa correta, dependente e devota, que só viva para agradar minhas necessidades.
— Não vejo o que tem que mau nisso.
Damon sacudiu a cabeça e gemeu pelo baixo.
— Julia não se parece com nenhuma outra mulher que eu tenha conhecido. Infelizmente, quão mesmo a faz única constitui um obstáculo para um matrimônio aprazível entre nós.
— Você quer que deixe o teatro para sempre — afirmou William, mas que perguntar.
— Não me ocorre que possa ser de outro modo. Deus é testemunha de que não poderia viver sabendo que minha esposa se exibe sobre um cenário ante milhares de pessoas. Tratei que imaginar e a porta se entreabriu apenas.
Damon se interrompeu e se esfregou as têmporas. — Mas não posso — disse, em tom queixoso. — E tampouco posso deixar de desejá-la.
— Possivelmente esse desejo se desvaneça ao seu devido tempo — disse William, esforçando-se por ser diplomático. — Há outras mulheres no mundo, e algumas delas são tão belas e talentosas como Julia, e se equilibrariam sobre a oportunidade de sacrificar algo que fosse necessário com tal de casar-se com o futuro duque do Leeds.
— Não quero a nenhuma outra.
— Você e suas mulheres — disse William, meneando a cabeça e sorrindo. — Sempre escolhe às mais complicadas. Graças a Deus, eu sou um homem de gostos simples. Asseguro-te que minhas garçonetes de bar e minhas mulheres ligeiras de cascos nunca me provocarão problemas como os que você está sofrendo.
Damon foi a sua casa de Londres com a intenção de viajar ao Bath à manhã seguinte depois de uma boa noite de descanso. Mas despertaram, antes da alvorada, os insistentes golpes de seu mordomo que seguiu esmurrando a porta do dormitório até que ele se incorporou na cama.
— Que acontece? — resmungou.
A porta se entreabriu apenas.
— Rogo-lhe me desculpe milord, mas veio um dos lacaios do Warwickshire com uma carta para você. É um assunto de certa urgência; eu supus que você queria sabê-lo imediatamente.
Damon sacudiu a cabeça para limpar a névoa que velava seu cérebro.
— Saber que coisa?
O mordomo entrou na habitação levando consigo um abajur de azeite que apoiou sobre a mesinha de noite e entregou ao Damon um sobre selado.
A luz amarelada fez piscar ao Damon, que rompeu o selo de lacre e leu rapidamente a carta. Tinha-a escrito o médico que atendia a seu pai.
— Maldição — disse pelo baixo e, para sua surpresa, viu que o pergaminho lhe tremia nas mãos.
O mordomo apartou o olhar, mas seu rosto seguiu expressando uma serena compreensão.
— Quer que relate a seu irmão, Sua Graça?
Depois de uma semana de funções de Senhora Engano, recebidas com fervoroso entusiasmo, o êxito da obra foi divulgado por toda a Inglaterra. Desde o Bristol até a York, os teatros reclamavam que os incluísse na lista dos destinos que tocaria a companhia teatral do Capital em sua excursão. Os críticos tinham começado a qualificar ao personagem de Christine como um dos papéis aos que Jessica Wentworth lhe tinha posto sua marca, e que só ela poderia interpretar com tal perfeição.
A Julia parecia irônica que esse êxito com o que tinha sonhado não lhe desse nem um pouco dessa plenitude que ela tinha esperado. Só se sentia viva no resplendor das lamparinas; em troca, todos os momentos longe das pranchas lhe caíam muito chatos e carentes de vida. Agora compreendia o que era o que sentia Logan com respeito ao teatro. Como ela tinha sacrificado tudo o que tinha valor em sua vida, o único que ficava eram as ilusões vividas no cenário.
Logan lhe tinha devotado dar uma grande festa de bodas, mas essa possibilidade incomodava a Julia. Pediu-lhe que em troca organizasse uma cerimônia íntima e que mantivesse em segredo as intenções de ambos. Ela ainda não estava preparada para dar explicações nem para enfrentar a surpresa de amigos e familiares quando se inteirassem de que tinha decidido casar-se com o Logan. Como ele não era nenhum sentimental, não tinha tido inconvenientes em acessar. Enquanto isso, Julia tinha consultado a um advogado quem lhe confirmou o que seu pai lhe havia dito. Em qualquer momento a partir de então, Damon receberia uma carta em que lhe solicitaria a devolução do dote da Julia.
Depois de ter terminado uma das últimas funções da obra no Bath, Julia estava sentada em seu camarim, tirando a maquiagem e o suor da cara. Contemplava-se, sem entusiasmo, no espelho pensando como fazer para dissipar o intumescimento que sentia por dentro.
- Jessica! — disse Arlyss, irrompendo no camarim sem anúncio prévio, com o rosto resplandecente de excitação. — Tinha que ver-te em seguida. Será a primeira em sabê-lo.
Com desinteressado sorriso, Julia girou para ela.
— A primeira em saber que coisa?
O sorriso de Arlyss se tornou tímido; estendeu a mão:
— Michael acaba de me dar isto.
Todavia sentada, Julia se inclinou para ela e olhou o dedo médio de Arlyss, onde brilhava um pequeno diamante engastado em um fino anel de ouro.
— OH, caramba exalou, e levantou a vista para o semblante de sua amiga. —Acaso isto significa que...?
— Sim! Respondeu Arlyss, radiante.
— É muito apressado, não crê?
— Possivelmente pareça assim a outros, para mim não. Michael é o único homem que me amará assim alguma vez, e eu também o amo do mesmo modo — afirmou Arlyss, contemplando orgulhosa o anel e movendo a mão para fazê-lo brilhar . Não é bonito?
— É formoso — confirmou Julia.
— Também me deu de presente isto — disse Arlyss, lhe mostrando a metade de uma moeda de prata. — Na família Fiske existe a tradição de romper uma moeda quando se compromete um casal. Michael tem a outra metade. Não te parece romântico?
Julia recebeu a moeda de mãos de sua amiga e a observou de perto com a boca curvada em um sorriso agridoce.
— É muito afortunada, Arlyss. É pouco comum poder casar-se com alguém que ama.
Ao ver a nostalgia no semblante da Julia, Arlyss apoiou um quadril na mesa da penteadeira e jogou a sua amiga um olhar perspicaz.
— Que acontece, Jessica? Algum problema com seu amante? Trata-se de lorde Savage?
— Ele não é meu amante. Já não o é mais. Eu hei... — Julia vacilou e prosseguiu, escolhendo com cuidado as palavras. — Me ocupei que a relação se acabe.
— Não entendo por que. Ele é arrumado, rico, e tenho a impressão de que é um cavalheiro...
— Cheguei à conclusão de que não tenho futuro com ele.
— Mesmo que isso fosse pouco, por que não poderia desfrutar com a aventura enquanto dure?
— Porque vou... — Julia se interrompeu de repente, consciente de que seria sobremaneira imprudente lhe confiar algo a Arlyss, se queria guardar o segredo.
Entretanto, sentia o impulso de dizê-lo a alguém. As palavras não pronunciadas lhe queimavam os lábios.
— Do que se trata? — perguntou Arlyss, franzindo o sobrecenho, preocupada. — Pode dizer Jessica.
Julia baixou a cabeça e fixou a vista no regaço.
— vou casar-me com o senhor Scott.
Os olhos do Arlyss se aumentaram de surpresa.
— Não posso acreditá-lo. Por que diabos foste fazer algo como isso?
A modo de resposta, Julia não pôde fazer outra coisa que elevar-se de ombros, contrita.
— Você não o ama — seguiu dizendo Arlyss. — Qualquer pode dar-se conta disso. Fá-lo em bem de sua carreira?
— Não, é que... simplesmente parece-me a melhor alternativa.
— Está cometendo um engano — disse Arlyss, convencida. — Você não é para o senhor Scott. Quando pensa te casar com ele?
— Depois de amanhã.
— Graças a Deus, ainda está a tempo de cancelá-lo.
Por alguma razão, Julia tinha acreditado que quando contasse a sua amiga a decisão já seria adotada. Talvez aliviá-la da depressão que quão pesada sentia em seu interior. Mas suas esperanças se desvaneceram rapidamente ao comprovar que nem toda a simpatia nem todas as bem intencionadas objeções do mundo bastariam para trocar a situação.
— Não posso fazer isso — disse em voz firme e devolveu a Arlyss a meia moeda de prata.
Tomou um pano molhado e limpou com ele as bochechas, apagando os últimos restos de maquiagem.
Arlyss contemplava a Julia e, enquanto isso, sua mente ágil passava de uma especulação a outra.
— OH, Jessica, não estará grávida, verdade?
Julia negou com a cabeça, sentindo que lhe estreitava a garganta para impedir o passo de uma quebra de onda de emoção.
— Não, nada disso. Acontece que não posso ter ao homem que quero e as razões são muito numerosas para explicá-las. E, se minha vida com ele é impossível, bem posso me casar com o senhor Scott.
— Pe... mas... — resmungou Arlyss, — você é a que sempre está me dizendo que escolha a um homem por amor e não por outro motivo! Você me há dito...!
— Falava muito a sério — disse Julia em voz um pouco rouca. — Mas, por desgraça, há certos sonhos que não são possíveis para todos.
— Possivelmente haja algo que eu possa fazer para te ajudar.
Julia se estirou para tocar a mão de sua amiga, sorriu-lhe com carinho e seus olhos despediram um súbito brilho.
— Não — murmurou. — De todos modos, obrigada, Arlyss. É uma amiga de verdade e me sinto ditosa por ti.
Arlyss não respondeu, mas a expressão preocupada perdurou em seu rosto.
O funeral do duque do Leeds tinha um ar irreal; só tinham assistido alguns escassos parentes e amigos íntimos. Ao Damon custava compreender que, por fim, seu pai tinha entrado no repouso eterno, de que não haveria mais discussões intermináveis nem, tampouco, as frustrações e a diversão que seu pai lhe tinha proporcionado durante anos. Ao jogar um olhar ao rosto tenso de seu irmão, ele soube que William sentia a mesma mescla de tristeza e perplexidade.
O ataúde foi baixado ao frio chão outonal, as pazadas de terra caíram sobre a polida superfície de madeira e os que tinham acompanhado o féretro empreenderam a volta ao castelo para ter um refrigério. Damon e William fechavam a marcha a passo lento, e suas largas pernas mantinham o mesmo ritmo lânguido.
Uma rajada de vento agitou os cabelos do Damon e refrescou seu rosto, enquanto ele contemplava a paisagem cinza esverdeada que havia a seu redor. O aspecto familiar do castelo, sereno e resistente como sempre, reconfortou-o, e sentiu um arrebatamento de orgulho ao pensar que, graças a seus esforços a família tinha conservado a propriedade. Frederick tinha estado a ponto de perder todas as posses dos Savage. Mesmo assim, apesar das atitudes egoístas e caprichosas do duque, seu falecimento não produzia a menor satisfação. Damon sabia que ia sentir falta do seu pai; mais ainda, já a sentia.
— Nosso pai passou por maravilhas, não? — murmurou William. — Fez o que lhe desejou muito sem parar para pensar nas consequências. Se não conseguir ir ao Céu, arrumado a que as engenhará para tentar ao velho Lúcifer e convencê-lo de jogar uma grande partida de naipes.
Damon sorriu quase ao evocar a imagem.
— Eu sou muito semelhante a ele — seguiu dizendo William, sombrio. — Eu acabarei exatamente igual a ele, sozinho, relatando minhas farras e tratando de beliscar as quantas criadas passem perto.
— Não será assim — lhe assegurou Damon. — Eu não permitirei que aconteça isso.
William exalou um profundo suspiro.
— Até o momento, é bastante pouco o que pudeste fazer para me impedir isso Eu tenho que assumir meu destino na vida, Damon. Devo fazer algo, além de perseguir saias e esbanjar minha atribuição em bebidas, roupa e cavalos.
— Você não é o único que deve trocar.
Ao perceber o tom lúgubre do Damon, William, surpreso, voltou para ele.
— Não estará referindo-se a si mesmo, verdade? — disse. — Você é consciencioso, responsável. Não tem maus hábitos...
— Sou dominante como o demônio. Sempre obrigo a todos a que se ajustem aos moldes que eu destinei a cada um.
— Eu sempre tinha considerado como certo que isso formava parte do papel de filho maior. Para algumas pessoas, é uma virtude.
— Julia não é uma dessas pessoas.
— Bom, mas acontece que ela não é uma mulher comum, não é certo? — disse William, jogando uma olhada ao castelo que se erguia ante eles, seus dignos contornos e os grandes arcos de pedra sobre os quais o lago projetava reflexos chapeados. — Pode imaginá-la vivendo longe das diversões de Londres?
Para falar a verdade, Damon sim podia. Não era difícil imaginar a Julia cavalgando junto a ele entre as colinas e os bosques que rodeavam a propriedade, com seu cabelo loiro revolto pelo vento ou desempenhando-se como anfitriã em uma festa no grande salão, com sua esbelta figura iluminada pelas luzes dos grandes candelabros, ou abraçada a ele no enorme leito que havia na habitação que ficava ao este ou despertando juntos ao sair o sol.
Quando entraram no castelo, a mente do Damon ainda estava cheia de imagens da Julia. Passaram junto ao grupo de serventes que pululava pela sala, atravessaram o salão e enfiaram para a biblioteca, onde os aguardava o senhor Archibald Lane. Lane era o advogado a quem Damon tinha empregado fazia anos já, para que o ajudasse a revisar seus assuntos. Embora Lane tivesse umas maneiras e uma aparência um tanto reservados, tinha uma aguda inteligência. Era um pouco maior que Damon, embora seu cabelo fosse escasso e seus óculos lhe davam um ar de tranquila maturidade.
— Milord..., quero dizer, Sua Graça... — murmurou Lane ao tempo que estreitava a mão do Damon. — Espero que você esteja bem, quer dizer, o melhor possível, dadas as circunstâncias.
Damon fez um gesto afirmativo e ofereceu uma taça ao letrado, mas este a rechaçou.
— Devo supor que não há surpresas no testamento de meu pai — comentou Damon, indicando com a cabeça o pulcro maço de papéis que havia sobre o escritório perto deles.
— Nada que pareça estar fora do corrente, Sua Graça. Entretanto, antes que aboquemos a isso, há um assunto que... — interrompeu-se, e uma expressão de inquietação apareceu no rosto magro do Lane. — Recentemente recebi cópia de uma carta que se refere às questões relacionadas com a senhora Wentworth e com as circunstâncias de seu... bom, matrimônio.
Damon o olhou em atitude alerta.
— Ao parecer, essa união não teve nunca valor legal — prosseguiu dizendo o advogado. — Deverá considerar-se como um compromisso conjugal que jamais foi consumado. Em tal sentido, lorde Hargate solicitou a devolução do dote que receberam os Savage.
Damon sacudiu a cabeça tratando de compreender o que dizia Lane.
— Segundo Hargate, sua filha Julia considera que tanto ela como você estão livres de qualquer obrigação, de agora em diante.
— Tenho que falar com ela — se ouviu murmurar o próprio Damon. Julia queria acabar com toda esperança de qualquer relação possível entre eles, e ele tinha que convencê-la do contrário. — Maldição; ela é minha esposa.
Embora ele soubesse que isso, em realidade, não era certo, não podia vê-la sob nenhuma outra luz. Ele a amava necessitava-a.
— Sua Graça — disse o advogado, — você não tem esposa. De acordo com a definição legal, nunca a teve.
"Você não tem esposa." Damon sentiu que as palavras ressonavam em seus ouvidos baixas e, ao mesmo tempo, com atordoante intensidade. "Você não tem esposa."
Nesse momento, ao William lhe ocorreu intervir.
— Damon, talvez este seja o modo em que o destino te diz que comece de novo. Pai já não está; agora, é um homem livre. Não existe nenhum motivo para que não comece a desfrutar de certas coisas da vida que sempre te tinha negado a ti mesmo.
— Depois de tanto tempo... — disse Damon. — Depois de tantos anos que passei tratando de achá-la, ela corre a procurar o primeiro advogado que encontre e envia uma carta como esta. Meu deus, quando a alcance...
— Deveria dar as graças a Julia — interrompeu William. — Em minha opinião, ela tem feito a única coisa sensata que podia fazer. É evidente que não são um para o outro; ela é bastante prudente para sabê-lo...
Sua voz foi se apagando até silenciar de tudo quando se encontrou atravessado por um olhar gélido.
— Você não tem idéia do que está dizendo — lhe espetou Damon.
— É verdade, não a tenho — se apressou a confirmar William. — Em ocasiões, parece que minha boca funciona em forma independente de meu cérebro... e isso é muito pouco conveniente. Acredito que será melhor que vá acima.
Sem perder tempo, saiu da habitação depois de ter dirigido um olhar de advertência ao advogado, fazendo que Lane se removesse inquieto.
— Sua Graça, se o preferir, eu posso voltar a vir mais tarde, quando você considere conveniente que falemos a respeito dos assuntos de seu pai...
— Pode partir- disse-lhe Damon
— Sim, Sua Graça.
O advogado desapareceu mais rápido ainda que William.
Damon necessitou bastante tempo para poder pensar, pois teve que deixar acontecer o arrebatamento de ira. Encontrou-se sentado ante seu escritório, com uma taça em uma mão e uma garrafa de conhaque na outra. O fogo tenso do álcool começou a derreter a pedra de gelo que tinha no estômago.
Ou Julia não queria a ele ou não desejava a vida que ele podia lhe brindar. Desejou que ela estivesse ali, nesse momento, com o branco fácil das palavras desdenhosas que ele queria lhe arrojar. Era uma idiota por preferir a vida no teatro a de uma duquesa. Não cabia dúvida de que qualquer o haveria dito, inclusive ela devia sabê-lo, em que pese a sua teimosia em seguir adiante com sua condenada carreira.
Bailavam ante ele a idéia de vingança. Desejou estrangulá-la, forçá-la a aceitar o que ele queria, embora soubesse que ela nunca se dobraria ante ele. Era muito teimosa para fazê-lo. Possivelmente, ele deveria escolher como esposa à filha núbil de algum par e levá-la a todos os lugares onde Julia a veria, com toda segurança. Ele despertaria seus ciúmes exibindo a uma jovem esposa até que a inveja e o arrependimento carcomessem a Julia. Convencê-la-ia de que esse matrimônio falso não tinha significado nada para ele e que se alegrava de haver-se liberado dela.
Damon se serviu de outra taça e bebeu, procurando um esquecimento que não conseguia alcançar. A amargura diminuiu um pouco e cravou sua vista nos papéis que tinha ante si até que as palavras e as letras foram convertendo-se em um embrulho de hieróglifos. A voz da Julia invadiu sua mente.
"Você queria que eu abandonasse todo aquilo pelo qual trabalhei tudo o que necessito para ser feliz..."
"Se eu fosse sua esposa, permitir-me-ia ir aonde me desejasse muito, fazer o que quisesse, sem perguntas nem recriminações?"
"Não volte a me buscar."
E a lembrança da irônica pergunta do Logan Scott, que ainda o ferroava: " Você pode lhe dar tudo o que ela quer?".
Evocou a Julia em todos seus diferentes trajes. Nunca tinha conhecido a uma mulher tão fascinante. Começou a entender, pela primeira vez, que aprisionar a Julia em uma jaula de ouro, como ele pensava fazê-lo, seria intolerável para ela.
— Damon? — a voz brusca do William precedeu sua entrada. Entrou na biblioteca sem ser convidado e agitou uma nota selada ante os olhos de seu irmão. — Isto acaba de chegar do Bath.
Damon cravou sua vista na carta, sem tomá-la.
— É da Julia?
— Por estranho que pareça, a carta foi enviada pela Arlyss Barry, a amiga dela. Pensei que era preferível que lhe trouxesse isso antes que ficasse inconsciente de tanto beber.
— Já estou bêbado — murmurou Damon, voltando a beber de sua taça. — Leia isso você.
— Está bem — respondeu William, em tom alegre, — mas tenha em conta que eu odeio me intrometer nos assuntos de outras pessoas.
Rompeu o selo de lacre e leu para si. A expressão divertida se esfumou de seus olhos e jogou ao Damon um olhar receoso.
— Que diz nossa senhorita Barry? — perguntou Damon, em tom azedo.
William arranhou a nuca e sacudiu a cabeça, vacilante.
— Se tivermos em conta seu atual estado de ânimo, talvez seja melhor que falemos disto mais tarde.
— Leia-me, maldito seja!
— Está bem. A senhorita Barry diz que sabe que não tem direito a meter-se em seus assuntos, mas que se sente obrigada a te informar que Jessica Wentworth tem pensado casar-se com o Logan Scott... amanhã.
William se encolheu ao ver que a taça do Damon, cheia pela metade, se fazia migalhas contra a parede que estava a suas costas, lançando uma chuva de gotas ambarinas e de fragmentos de cristal para todas partes. Damon se levantou com brutalidade, respirando pesadamente.
— Que vais fazer? — perguntei William.
— Ir ao Bath.
— Acredito que devo ir contigo.
— Você fica.
— Damon, nunca te tinha visto assim; assusta-me muito. Deveria me permitir que...
Mas antes que a última palavra saísse dos lábios do William, seu irmão maior já tinha deixado a estadia a grandes pernadas.
Era frequente que durante a última representação de uma obra houvesse um pouco mais de magia no ambiente. Os atores apareciam nimbados de um resplendor especial enquanto atuavam. O público do Bath se mostrou generoso em risadas e aplausos, e se envolveu intensamente na história de Senhora Engano desde a primeira até a última cena.
Essa noite, Julia não pôde impedir um sentimento de lonjura com a obra. Era consciente de que sua atuação era boa, mas não podia inundar-se em sua parte como de costume. Possivelmente se devesse a que ia casar-se com Logan Scott ao dia seguinte, unindo seu futuro ao dele em forma permanente, embora impessoal. Sua mente estava concentrada nesse fato, embora ao mesmo tempo falasse, risse e atuasse sobre o cenário.
A essa hora, Damon devia ter recebido a carta. O que haveria dito? Como se sentiria? Perguntou-se como seria a seguinte ocasião em que o visse, quando se apresentasse como a esposa do Logan Scott. Pensou que era o melhor para os dois; de todas as maneiras, as razões práticas não aliviavam absolutamente a dor e a angústia que sentia por dentro. Ah, se as coisas fossem diferentes, se...
Quando acabou a obra, estalaram grandes aplausos, e os atores agradeceram tanto entusiasmo fazendo reverências. Julia se sentiu aliviada quando ao fim Logan a conduziu fora do cenário, e ela tirou seu sutiã úmido de transpiração.
Logan lhe dirigiu um olhar observador.
— Parece um pouco irritada. Trata de descansar esta noite — lhe aconselhou, sabendo que o elenco trataria de convencê-la de que essa noite compartilhasse com eles um festejo consistente em copiosas quantidades de bebida e de comida. — Nos ocuparemos da cerimônia amanhã pela manhã, antes de partir para o Bristol.
Julia logrou esboçar um desinteressado sorriso.
— Mais viagens, mais atuações. Não será uma lua de mel corrente verdade?
Ele a olhou como se essa idéia não lhe tivesse passado pela cabeça até esse momento.
— Você gostaria de ter uma lua de mel?
Por uma fração de segundo, ela teve a tentação de dizer que sim. Teria gostado de ir a algum lugar exótico, um lugar onde pudesse relaxar e permitir-se esquecer tudo, embora não fosse por um breve lapso. Mas a perspectiva de ir a qualquer lugar só com Logan a punha nervosa. Além disso, ele se sentiria contrariado se tivesse que interromper seu programa de excursões por qualquer motivo que fosse mais até tendo em conta que desejava fiscalizar a reconstrução do teatro Capital.
— Não — murmurou Julia. — Agora não é o momento oportuno. Possivelmente em outra ocasião, talvez.
— Roma — prometeu ele. — Ou Grécia. Iremos ao festival que há em Atenas e veremos obras em teatro ao ar livre.
Julia sorriu, deu-lhe a boa noite com um murmúrio e se encaminhou para seu camarim, alisando o cabelo. Ao passar, viu uma quantidade de pessoas que circulavam pela zona escura de atrás do cenário, de repente, viu-se apertada para um flanco onde ficou esperando que terminasse de passar a gente.
— Senhora Wentworth — ouviu que dizia uma voz baixa de alguém que estava a seu lado.
Reconheceu a um dos trabalhadores do teatro. Ele e outro companheiro se colocaram um a cada lado dela, empurrados pela gente que circulava por aí.
— Sim — disse Julia, incômoda. — Isto está abarrotado, verdade?
Aguardou até que tivesse ocasião de partir e se afastou do tramoista e de seu companheiro. Para sua surpresa, eles puseram-se a andar na mesma direção, seguindo-a de perto. Julia sentiu uma vaga inquietação e apertou o passo quase até ter chegado a seu camarim.
Antes que ela houvesse transposto a soleira, sentiu que a sujeitavam por detrás, amorteciam seu grito com uma mordaça de algodão e lhe atavam com eficiência os braços à costas. Dentro dela houve uma explosão de terror. Em vão se retorceu enquanto eles lhe jogavam uma capa em cima, baixando o capuz para ocultar seu rosto. Os dois sujeitos a conduziram fora com rápidos passos, lhe aferrando os braços de modo de sustentá-la erguida.
— Sinto muito, senhora Wentworth murmurou um deles, — é que fora há um cavalheiro esperando-a, e nos pagou para que a levássemos até ele. Disse que só quer falar com você uns minutos. Isso não é muito pedir, verdade?
Rígida de medo, Julia foi levada, meio ao rastro, para a parte de trás do teatro e ascensão a uma carruagem que aguardava. O capuz lhe obstruía a visão por completo. Aguardou às cegas com os braços atados e apertados entre o assento e as costas. Deixava escapar o fôlego em ásperas baforadas. Nesse veículo só reinava o silencio. O carro arrancou com uma sacudida e começou a se mover afastando do teatro.
Geladas gotas de suor escorregavam pelo pescoço da Julia e entre seus peitos. Ela supunha que estava sozinha no carro, mas alguém se moveu e ocupou o lugar que havia a seu lado. Encolheu-se e baixou a cabeça quando uma mão aferrou a borda do capuz e a jogou para trás deixando seu rosto ao descoberto. Ela levantou a vista lentamente e, com os olhos dilatados, viu o rosto de seu ex-marido, lorde Savage.
Sua primeira reação foi um arranque de fúria, mas, depois de havê-lo observado, a fúria se esfumou rapidamente. Sentiu que seu rosto empalidecia sob as capas de maquiagem. Esse era um Damon que ela ainda não tinha visto nunca, desalinhado e cheirando a conhaque.
Falou com um acento miserável, quase irreconhecível.
— Boa noite, senhora Wentworth. Muito amável de sua parte me conceder uma hora de seu valioso tempo. Eu teria que ter ido procurá-la em pessoa mas me pareceu que seria mais fácil deste modo.
Seus dedos ardentes se posaram no flanco de sua mandíbula e acariciaram sua pele suave. Julia jogou bruscamente a cabeça para trás e lhe lançou um olhar colérico, lhe exigindo sem palavras que tirasse a mordaça de sua boca.
— Não — murmurou ele, lhe adivinhando o pensamento. — Não preciso ouvir o que puder me dizer. Deixaste-o bem em claro ao cortar o laço que te unia a mim e ao ter aceitado te casar com o Scott. Sim, sei. Deveria ter sabido que não podia confiar seus segredos a Arlyss.
Tirou-lhe a capa dos ombros e contemplou abertamente seu corpo, a redondez de seus peitos que se projetavam para diante pela posição dos braços que estavam detrás das costas. Julia fez uma forte inalação, com as costas rígidas como se fosse de aço.
— Ele já te tomou como amante? — perguntou Damon. — Não tem o aspecto de uma mulher satisfeita, que tinha depois de que eu te fiz o amor. Gozaste suas mãos sobre sua pele, sua boca sobre a tua? O que sente ao te deitar com um homem a quem não ama?
Julia pensou em sacudir a cabeça para negar, mas se obstinou, e permaneceu imóvel, com os olhos fixos no semblante sombrio dele.
“Maldito seja por me fazer isto, canalha egoísta!", pensou. Ele queria vingar-se, queria lhe dar um susto mortal. Essa noite, viu algo diferente nele, uma aspereza que fazia desaparecer sua atitude e lhe dava o ar de um sátiro. Essa noite, dava a impressão de ser capaz de algo, como se fosse uma besta ferida a quem lhe proporcionasse prazer machucar a qualquer que estivesse a seu alcance, a todos.
— Ele não te ama — disse Damon. — Eu tampouco te amaria se pudesse evitá-lo. Faria algo por te tirar de minha cabeça, por não recordar sua cara, seu doce corpo — disse, lhe tocando o peito, ao princípio com delicadeza e logo, apertando-o com seus dedos e aferrando-o até que Julia soltou uma exclamação de dor. — Isto é meu — disse, e ela sentiu o fôlego dele na cara e o pescoço. — Ainda é minha esposa. Isso nunca trocará. Nenhuma lei de Deus nem dos homens te separará de mim.
Indignada. Julia tentou apartar-se dele, mas ele a reteve apertada sobre o assento. A Julia deu voltas a cabeça quando ele se inclinou sobre seu corpo murmurando algo incompreensível, procurando com seus lábios o pescoço dela, e suas mãos a acariciaram em intentos torpes embora apaixonados. Ela fechou os olhos e lutou por conter sua própria reação, mas nada podia reprimir a súbita vibração de seus nervos, a ereção de seus mamilos nas mãos dele, o arrepiar que percorria toda sua pele. Seu corpo gozava com o aroma familiar do Damon, o roce áspero de seu cabelo na bochecha dela, enquanto sua boca se deslocava da garganta dela para o oco entre seus peitos.
Damon lambeu o rastro de sal na pele da Julia, e seu fôlego ia queimando-a como vapor sobre o trajeto úmido que tinha deixado sua boca. Para ouvir o fraco gemido dela, ele levantou a cabeça e a olhou com expressão triunfante. Julia sabia que sua cara estava acalorada e seu pulso acelerado, que os sinais de sua excitação eram evidentes. Arrancou-lhe com brutalidade a mordaça da boca e esmagou seus lábios sobre os dela, penetrando-a com sua língua em ardente exploração.
Assim que ele levantou a cabeça, Julia o olhou com severidade e se esforçou por serenar seus nervos.
— Me desate as mãos — disse, com a respiração agitada.
— Não o farei até que não tenhamos deixado em claro alguns pontos.
— Não discutirei nada contigo até que não esteja sóbrio.
— Não estou bêbado, embora tenha estado bebendo. É o único que podia fazer para não enlouquecer durante minha viagem a Londres.
— Que pensa fazer? — perguntou ela. — Raptar-me? Impedir as bodas de algum jeito? Isso não importa: só conseguirá atrasar algo que é inevitável.
— Vou arruinar-te, de modo que não possa estar com nenhum outro homem — disse, e roçou com suas mãos o frágil pescoço dela, baixando até seus peitos. — Talvez escolha a ele, mas nunca terá o que eu posso te dar.
— Agora pensa recorrer à violação? — perguntou ela com frieza, sem fazer caso da ardente resposta que dava seu corpo às carícias dele.
— Não será uma violação.
Seu egoísmo e sua arrogância enfureceram a Julia.
— Vai fazer que lamente tudo o que passou, alguma vez, entre nós.
— Você o lamentará. Lamentará ter sabido o que é ser amada quando estiver deitada junto a um homem a quem não lhe importa nada além de sua profissão.
— Isso é o que eu quero. E não me deitei com o Logan: só será um matrimônio de conveniência.
Essa afirmação fez soprar pelo nariz ao Damon.
— Cedo ou tarde, acabará em sua cama. É muito bela para que ele não te deseje. Você, em troca, despertará me desejando.
— Acaso crê que não sei? — perguntou ela, com a voz repentinamente quebrada. — Acaso crê que foi fácil para eu aceitar a proposta de um matrimônio sem amor em lugar de ficar junto ao homem que eu...
A frase foi extinguindo-se, mas Damon quis ouvi-la completa.
— O homem que o que? Diga-o, Julia. Ao menos, deve-me isso.
Ela apertou com força seus lábios trementes e cravou nele o olhar de seus olhos reluzentes.
Ao olhá-la, a ele lhe cortou o fôlego.
— Por Deus, vou obrigar-te a admiti-lo antes que acabe esta noite.
— Para que serviria isso? — perguntou ela, e uma lágrima caiu de seus olhos e escorregou pela bochecha.
Damon percorreu o rastro molhado com o polegar.
— Tenho que ouvir as palavras. Preciso me convencer de que você sabe o que está fazendo.
Seu rosto estava muito próximo ao dela, seu revolto cabelo negro lhe caía sobre a testa, seus olhos estavam injetados em sangue. Rodeou-a com seus braços e ela sentiu que seus dedos desatavam as ligaduras que lhe sujeitavam os pulsos. Quando teve os braços livres, ela o empurrou com força no peito, mas ele seguiu tendo-a rodeada, com sua boca no ouvido dela.
— Eu sei o que quer você — disse ele com aspereza. — Quer aquilo que mais teme: amar a um homem, te entregar a ele sem reservar nada. E está muito assustada para confiar em mim. Você crê que utilizarei seus sentimentos contra ti, como tem feito seu pai com sua mãe.
— E o que me diz de ti? — perguntou ela, retorcendo-se. — Tudo tem que ser a sua maneira, segundo sua conveniência, sem que importe o que eu deva sacrificar para poder te agradar!
— Não tem por que ser desse modo.
Os dois permaneceram imóveis, ligados, como dois guerreiros em batalha. O carro se deteve e Damon tirou a Julia do veículo ao rastro, apesar de seus protestos. Estavam na casa do Savage, na Laura Palace. Dois lacaios perplexos se esforçaram por desempenhar seus deveres enquanto seu patrão carregava a uma mulher contra sua vontade, e a levava para o interior da residência. A Julia lhe ocorreu gritar pedindo ajuda aos serventes da casa, mas Damon o impediu com uma breve afirmação:
— Não se incomode. Não lhe ajudarão.
Julia seguiu lutando enquanto ele a levava em braços para a escada, até que se deteve e a carregou sobre um ombro. Ela lançou um grito de surpresa e se sentiu enjoada ao ver os degraus que foram passando sob os pés do Damon. Por fim, chegaram ao dormitório dele, mobiliado com uma sólida cama coberta por um baldaquino de cor azul cobalto. Damon depositou a Julia sobre o colchão e, logo, foi para a porta e a fechou com chave. Girou para ela e atirou a chave sobre o piso atapetado.
Julia saiu engatinhando da cama, com os músculos endurecidos pela indignação.
— Isto dá resultado com lady Ashton? Asseguro-te que comigo não funcionará.
— Já tenho quebrado a relação com o Pauline. Ela não está grávida. Não tem nenhum direito sobre mim.
Julia não quis mostrar nenhuma reação ante a novidade, por mais que seu coração desse um inesperado salto de alegria.
— Que ironia. Ficaste sem esposa e sem amante ao mesmo tempo.
— Alegra-me que não estejamos casados.
— Isso a que se deve? — perguntou ela, tratando de sustentar sua posição ao tempo que ele se aproximava dela.
Damon se deteve menos do meio metro da Julia e tirou a jaqueta. Deixou-a cair ao chão e começou a desabotoar os botões da camisa.
— Agora, só se trata de ti e de mim; tudo o que tinham feito nossos pais terminou.
— Falaste com seu pai sobre a carta? – perguntou Julia, embora ela ainda não tenha resolvido dizer a sua própria família o que tinha feito.
Uma estranha e tensa expressão atravessou o semblante do Damon.
— Não — disse ele, cortante. — Ele morreu antes que eu soubesse.
— Que? — perguntou Julia, desconcertada, olhando-o com expressão atônita até que captou o sentido do que lhe havia dito. — OH — disse, com voz débil. — Foi por isso que não retornou ao Bath. Eu... sinto muito.
Damon cortou a condolência com um gesto impaciente dos ombros, mostrando às claras que não tinha desejos de falar disso.
— Ele estava doente fazia muito tempo.
A pena e o arrependimento se abriram passo entre o tumulto de emoções que buliam dentro dela. Se ela tivesse conhecido a situação, por certo não teria enviado a carta.
— Parece que meu sentido da oportunidade não foi muito considerado... — começou a dizer ela, contrita.
— Eu não quero sua consideração.
Ele tirou as abas da camisa de dentro das calças. Ao abrir-se, o linho branco deixou ao descoberto a ondulação dos músculos do ventre.
— Quero que te dispa e te meta na cama.
A Julia ressecou a boca e sentiu a precipitação frenética do sangue em suas veias.
— Não é possível que fale a sério.
— Preferes que eu te ajude?
— Tornaste-te louco? — perguntou ela em voz que tivesse divulgado controlada, de não ter sido pelo ofego que sublinhou a pergunta.
— Acredito que não falta muito — repôs ele. Embora sua boca tivesse uma expressão irônica, Julia percebeu, com um calafrio de temor, que ele estava sendo sincero. — O estou do momento em que te conheci — continuou. — Me perguntei por que não pude me apaixonar por alguma outra, de uma mulher que quisesse a vida que eu podia lhe oferecer. Mas eu nunca tive possibilidade de escolher.
— Amei-te desde muito antes de saber que era minha esposa. Para mim, descobrir que você era Julia Hargate foi um golpe de sorte que jamais tinha esperado. Tinha a esperança de que isso te atasse para mim, mas, tal como você o assinalaste uma vez, o matrimônio nunca tenha sido real. Eu não podia te sujeitar aos votos que lhe tinham obrigado a fazer quando era menina. Além disso, estava teimada em sair-te com a tua tanto como o estava eu. Temo que nenhum dos dois é muito habilidoso na arte do acordo. E nenhum dos dois pode obrigar ao outro a trocar. Portanto, só fica um desejo. Por uma vez em minha vida, quero te fazer o amor e escutar sua admissão de que me ama.
Olharam-se um ao outro, conscientes do aumento da tensão no ar, do chiado de uma esperança sem fundamentos. No meio do tenso silêncio, chegou uma voz de homem da escada, proferindo ameaça e perguntas enquanto os criados tratavam de dissuadi-lo.
— Savage! Quero saber onde diabos está Jessica! Maldito covarde... quero vê-la agora mesmo!
Julia estava muito assustada. Não cabia dúvida de que se tratava da voz do Logan; ela nunca o tinha ouvido gritar desse modo, exceto no cenário. Era óbvio que tinha tido um ataque de ira ao descobrir o repentino desaparecimento da Julia. Sem apartar sua vista do Damon, ela gritou em voz tensa embora firme:
— Estou bem, Logan.
A voz dele se elevou mais ainda, enquanto seguia ascendendo a escada.
— Onde está?
Julia lançou um olhar cauteloso ao Damon, e este não se moveu. Era evidente que a perspectiva de encontrar-se cara a cara com o Logan não lhe incomodava absolutamente.
— Estou na suíte à direita da escada — respondeu ela.
Fez a prova de avançar para o lugar onde estava a chave, sobre o tapete, perguntando-se se Damon lhe impediria de abrir a porta. Mas, antes que ela chegasse à chave, a porta se sacudiu com um golpe surdo e explosivo, logo outro, e suas dobradiças chiaram. Depois de outros dois golpes devastadores, a porta se abriu violentamente.
Aí estava Logan, com expressão turva, com seu cabelo acobreado muito revolto. Seu olhar se passeou rapidamente pela cena: viu o estado de desarrumação da Julia, a jaqueta abandonada e a chave no chão, a camisa aberta do Damon. Uma careta depreciativa crispou a larga boca do Logan.
— Quando terminar com você terá aprendido a manter-se longe dela.
No rosto do Damon se estendeu uma sombra de escuro prazer.
— Ela, todavia não é sua.
— Estou perfeitamente bem — disse Julia ao Logan, agitada ao perceber de ódio que reinava na habitação. — Por favor, me tire daqui; depois, arrumaremos isto como adultos...
— O único lugar ao que vai é a minha cama — disse Damon, em voz densa, — E isso vai ser assim que jogue a seu prometido de minha casa.
Sem dúvida, para Logan foi a gota que transbordou a taça. Equilibrou-se para diante com vertiginosa rapidez, balançando seu punho em um amplo arco, que se estrelou com golpe surdo na cara do Damon.
— Não — resfolegou Julia, precipitando-se para eles.
Mas, então, Damon se jogou sobre seu rival e ela teve que deter-se em seco. Os dois homens lutaram violentamente socando com os punhos, sem fazer caso dos chiados da Julia que lhes pedia que parassem. Damon empurrou ao Logan, grunhindo pelo esforço e fazendo-o retroceder vários passos, enquanto ambos se lançavam olhadas assassinas.
Julia não perdeu tempo e aproveitou a oportunidade para interpor-se entre eles. Bastou-lhe uma só olhada ao semblante do Damon, que manifestava uma fúria irracional, para optar por voltar-se para o Logan e lhe pôr uma mão no centro do peito para contê-lo. Ele a olhou com candentes olhos azuis; as aletas de seu nariz se moviam ao compasso de sua respiração.
— Por favor -disse ela em voz fraca, — isto não é necessário.
— Vem comigo, agora — murmurou Logan.
Pela cabeça da Julia cruzou a idéia de acessar, mas algo em seu interior resistiu a essa perspectiva. Só atinou a gaguejar.
— Eu... não posso.
— Apesar do que ele tem feito? — perguntou Logan com veemência. — Um dos tramoistas viu como lhe sequestravam e lhe levavam da parte de trás do cenário. Imediatamente, soube que era coisa do Savage. Deus é testemunha de que sua conduta não me surpreendeu — disse, aferrando a Julia pelos ombros e lhe cravando os dedos na carne. — Acredita que você o pertence, Julia. Te afaste agora mesmo dele e acaba com este condenado embrulho.
Ela baixou a vista. Já não podia olhá-lo à cara.
— Ainda não — disse, por baixo. As coisas não estão esclarecidas. Por favor, trata de entender.
— OH, sim entendo — repôs Logan com frieza. Julia sentiu que ele afrouxava os dedos e deixava cair às mãos. — Devo te esperar abaixo?
— Não, mas... agradeço por ter vindo. Para mim é muito importante que tenha querido me proteger.
— Ah, se pudesse te proteger de ti mesma — disse ele, com um matiz irônico em sua voz.
Ele e Damon intercambiaram um olhar de ódio, logo Logan se voltou e saiu da habitação, fechando a porta rota ao sair, em uma exibição zombadora.
Julia se voltou para o Damon e descobriu que, ao parecer, ele tinha perdido todo desejo por estar com ela.
— Vá — disse, empregando a manga da camisa para estancar o sangue que emanava de seu nariz, arruinando o delicado tecido branco.
Julia apertou os lábios em uma careta de exasperação. Foi até o canto, encontrou uma toalha e a umedeceu com água de uma jarra de porcelana. Damon se sentou na borda da cama e, quando ela tratou de lhe limpar a cara, jogou a cabeça para trás.
— Tens o nariz quebrado? — perguntou Julia, insistindo em seu encargo até lhe haver tirado o sangue do lábio superior.
— Não respondeu ele, lhe tirando o pano. — Já pode deixar de jogar anjo curador. Não te necessito.
Julia moveu lentamente a cabeça e sentiu uma quebra de onda entristecedora de amor por ele, por esse homem obstinado, arrogante, de péssimo caráter. Jogou para trás as mechas de cabelo que lhe tinham caído sobre a cara e se sentou junto a ele. Deslizou com suavidade sua mão pela bochecha barbeada e o convidou a olhá-la. O rosto dele estava pétreo.
— Eu necessito a ti — disse ela em voz baixa.
Damon não se moveu, mas ela sentiu que sua bochecha se endurecia sob a mão dela.
— Tinha razão — continuou dizendo Julia. — Tenho medo de confiar em ti. Mas, se não o fizer, jamais poderei confiar em ninguém. Assusta-me terrivelmente a idéia de que você possa querer mais do que eu posso te dar. Mesmo assim, se você estiver disposto a aceitar o que sou capaz de te oferecer...
Damon se debateu em silencio com o que ficava de seu arrebatamento de ciúmes. A loucura que tinha feito presa dele desde que tinha descoberto que Julia pensava converter-se na esposa do Logan começou a diminuir um pouco. Olhou a Julia e viu os sinais da tensão em sua cara.
Sentiu a mão suave dela na bochecha e viu que seus olhos azuis esverdeado estavam cheios de uma emoção que lhe provocou uma dolorosa opressão no peito. Desejava-a com tal intensidade que se sufocava, queria tê-la de qualquer modo que pudesse. Ainda ficavam muitas palavras por dizer, explicações que era urgente dar, tema por resolver, mas ele ignorou todos e se estirou para a Julia com um movimento que tomou por surpresa.
Ela não protestou quando ele cobriu sua boca com a dele, em um beijo voraz. Seus lábios se abriram e deslizou seus braços por debaixo da camisa aberta, apoiando suas mãos nas costas dele. Quantas noites tinha sonhado ele tendo a Julia assim, suave e desejosa em seus braços, apertando-se com força contra ele.
Girou para ela e a tendeu sobre a cama, fazendo que seus cabelos se pulverizassem detrás de sua cabeça como uma corrente de ouro. Inclinou-se sobre ela e lhe beijou no pescoço e o decote, baixando até os peitos. Os mamilos se endureceram e levantaram o tecido do vestido, e em sua garganta vibrou uma suave exclamação quando Damon a mordeu meigamente através do sutiã.
A ausência de resistência da Julia, o modo em que ela aceitava suas carícias parecia um milagre; ele compreendeu que essa noite lhe permitiria o que quisesse, e seu coração começou a martelar em um furioso ritmo de desejo. Desatou os laços de seu sutiã com dedos inseguros e, lhe tirando o vestido pelos ombros, baixou-o até a cintura. Ela elevou seus quadris para ajudá-lo a lhe tirar do todo o vestido, ficando só com a roupa interior de linho. Com movimento flexível, ela se elevou sobre seus joelhos e tirou a camisa pela cabeça, deixando ao descoberto as tentadoras curvas e ocos de seu corpo. Damon tocou a redondez de um peito, roçando com seus nódulos o tenso pico. Levantou seu olhar para o rosto iluminado da Julia e viu nele uma ternura que o devastou.
— Faz o prometido — disse ela, em voz fraca. — Faça-me amor esta noite, e me deixe que te diga quanto te amo.
—E pela manhã? — perguntou ele, sem poder conter-se.
Ela sorriu como se a pergunta fosse tola e se inclinou para diante para beijá-lo na boca.
— Apaga as luzes — sussurrou ela.
Damon foi apagar os abajures, deixando só uma pequena chama em uma delas, e voltou para a cama. O corpo da Julia, tendido sobre a cama, brunido e prateado, resplandecia na penumbra. O brilho sedoso de suas meias e suas ligas eram quão únicos ainda a cobria. Damon tirou a roupa e se tendeu sobre o colchão, com seus sentidos feitos um redemoinho quando atraiu o corpo nu dela, sentindo que se acendia o fogo em cada ponto onde a pele de ambos se tocava.
As mãos provocadoras da Julia se deslocaram por suas costas e seus quadris, descendo até suas duras nádegas. Ela se conduzia de um modo mais audaz do que tinha feito até então, fazendo com sua boca e seus dedos algo que o enlouqueciam por sua criatividade, enquanto o explorava como uma ninfa brincalhona, disposta a torturá-lo.
Damon se esforçou por conter o impulso de possuí-la imediatamente, pois queria fazer durar o prazer. Tirou-lhe uma liga e foi enrolando a meia, beijando cada centímetro de pele que ia deixando ao descoberto, até ter percorrido o trajeto completo entre a parte interior da coxa e o arco do pé. Julia ronronava e lhe oferecia a outra perna, riscando caprichosos desenhos com o pé, embainhado em seda, sobre a cintura dele. Damon lhe tirou também essa meia, fazendo-a retorcer-se com as cócegas que lhe provocava sua boca no oco do joelho. Uma vez completada a tarefa, fê-la rodar até que ficou debaixo dele.
— Diga-me isso lhe ordenou, roçando com o nariz a curva de sua mandíbula.
Julia abriu os olhos e ele viu o brilho de paquera que revelava quanto estava gozando-o.
— O que quer que te diga?
— O que tinha prometido me dizer.
— Mais tarde — disse ela, aferrando a dura ereção dele na mão, e guiando-a para suas coxas.
Damon se retesou, olhando-a com o sobrecenho crispado, desejando escutar as palavras que lhe negava. Julia realizou ardilosos esforços por enrolá-lo, por obter que se aproximasse mais, lhe murmurando eróticas promessas, rodeando-o com suas esbeltas coxas. A seu pesar, uma gargalhada escapou da garganta do Damon. Acariciou-a e a beijou, desfrutando com a resposta dela, com a aceleração de sua respiração, com o tremor que a percorreu.
— Me possua agora — disse ela, agitada. — Agora, agora...
— Ama-me? — perguntou ele, acariciando o ventre dela com a mão, afundando um dedo no umbigo.
— Sim — confessou Julia, abrindo as coxas. — Não me faça esperar mais.
Ele sentiu que lhe queimava os ouvidos com uma litania de palavras de amor, súplicas e ameaças até que, ao fim, ele cedeu e colocou dois dedos dentro dela, deslizando-os em rítmico movimento que a arrastou a um rápido orgasmo. Ela se arqueou para cima, apertando o arbusto de suaves cachos contra a mão dele e se abandonou ao prazer lançando um gemido e sacudindo-se com um interminável estremecimento.
Muito tempo depois, as pestanas da Julia se agitaram e ela respondeu ao beijo do Damon, entrelaçando sua língua com a dele. Ele aproximou seus quadris aos dela e uniu os corpos dos dois em uma investida que a fez gemer de prazer. Penetrou-a com movimentos demorados, sem pressa, e ela se aferrou a suas costas e a seus quadris para atraí-lo mais ainda. Ele lhe sujeitou os pulsos com uma mão, estirou-as por cima da cabeça dela e a incrustou pesadamente no colchão.
Julia sentiu a boca dele no pescoço, sentiu que seus lábios se moviam pronunciando palavras mudas. Suas mãos se deslizaram dos peitos até o ponto onde seus corpos se uniam, atormentando-a brandamente até que ela não pôde respirar mais. No preciso momento em que acreditava que iria desmaiar, as sensações a alagaram, banhando cada um de seus nervos. Tornou a tremer violentamente e seus quadris se elevaram para recebê-lo, ao tempo que ele deixava escapar um fluxo de luxúria e desejo para o interior do corpo dela.
Quando ambos puderam mover-se, voltaram-se de flanco. Julia sorriu, dormitada, sentindo que as largas pernas dele se metiam entre as suas, que seu peito se apertava contra as costas dela.
— Eu gosto de ser raptada — murmurou, atraindo a mão dele pela cintura até o peito.
— Eu não sabia o que outra coisa podia fazer. Estive enlouquecido desde esta manhã — disse ele, enquanto seus dedos percorriam o mamilo em suaves círculos. — Julia, vais casar-te com o Scott, amanhã?
— Acaso você me oferece outra alternativa?
A mão do Damon envolveu o peito dela até que pôde sentir o acelerado pulsado de seu coração. Ele guardou silêncio durante comprido momento, e ela acreditou que não ia responder lhe.
— Te case comigo — disse ele com tom resmungão. — Esta vez, de verdade.
Julia fechou os olhos e exalou uma trêmula baforada de ar.
— E quais são suas condições?
— Não há condições. Não te pedirei que deixe o teatro.
— E se as pessoas burlam de ti por te haver casado com uma atriz famosa? — perguntou ela em voz fraca.
— Ao diabo com eles.
De modo que, ao fim, a isso tinham chegado. Ele a amava o suficiente para realizar a maior das concessões. Ela jamais teria imaginado que o orgulhoso Damon, o homem mais exigente que ela tinha conhecido, faria a um lado seus próprios desejos por respeito aos dela. Ela compreendeu que lhe devia a mesma generosidade e consideração.
— Eu poderia pôr limites a minha participação no teatro — disse, titubeando. — Só escolheria os papéis que mais me interessassem e não faria excursões.
— Scott permitirá isso?
— Não tem mais remédio se quiser que eu siga no Capital.
— Sua carreira não será a mesma.
— Isso não me importará contanto tenha a ti.
Com cautela, ele girou para ela. O semblante da Julia resplandecia de esperança e de felicidade, mas o do Damon não respondeu com outra risada.
— Eu quero filhos, Julia.
Disse-o em voz baixa, rouca; Julia pôde imaginar as emoções que o sacudiam.
— Sim, eu também — disse ela, encolhendo-se de ombros. — Não sei como nos arrumaremos, mas encontraremos a maneira. Não será fácil.
— Mais fácil que viver separados.
Julia assentiu e ou beijou com ternura.
— Quais são seus sentimentos para Scott - perguntou Damon, quando os lábios de ambos se separaram.
— Não há amor entre ele e eu. Já compreenderá por que não posso me casar com ele. Ademais, eu não estava destinada a ser a esposa de outro que não fosse você.
— Bom. Porque eu levo tanto tempo sendo seu marido que já não posso imaginar outra coisa.
Ela sorriu e lhe acariciou o peito.
— Que estranho é que os dois tenhamos querido nos liberar do outro durante tanto tempo e no preciso momento em que o obtemos quão único queremos é estar juntos outra vez.
— Então, aceitará de novo o anel.
— O anel e tudo o que venha com ele.
Damon se apoderou de sua mão e a apertou com tanta força que lhe fez fazer uma careta. Levou a palma da mão da Julia à boca e depositou um beijo no suave oco. A emoção o deixou sem palavras... o amor e a sorte se mesclavam dentro dele... medo de que isso fosse um sonho e que a mulher que estava a seu lado fosse uma fantasia urdida em meio da solidão e o desejo que ele tinha sentido durante toda sua vida.
Julia pôs uma mão na nuca do Damon e o atraiu para ela outra vez, convidando-o a beijá-la e retribuindo-o sem reservas.
Quando Logan recebeu a Julia em sua vila do Bath, cedo à manhã seguinte, em seu rosto não havia expressão e só um leve cenho entre as sobrancelhas acobreadas. Esquadrinhou o rosto dela e notou o rubor de suas bochechas e o brilho de felicidade em seus olhos.
— Bom dia — disse ela, sem fôlego.
Ele cabeceou em resposta, compreendendo imediatamente que esse dia não haveria bodas. Nunca mais voltariam a mencionar os planos que tinham forjado.
Logan, sentado junto à Julia na sala, parecia depravado enquanto um criado os servia café em douradas taças de porcelana. Logan fez ao criado um sinal que partisse e dirigiu a Julia um olhar resignado.
— Estás cometendo um engano — disse, sem rodeios.
Um sorriso curvou os lábios dela.
— Talvez tenha razão. Pode acontecer que me casar com o Damon resulte um desastre. Mas eu nunca me perdoaria se não o tentasse.
— Desejo-lhe sorte.
Não vais advertir-me que não o faça? Não vais particularizar todas as razões prudentes pelas quais o matrimônio não funcionária, nem a me dizer que...
— Você já conhece minha opinião com respeito ao matrimônio por amor. Minha única preocupação é o modo em que seus atos afetarão a minha companhia teatral. É óbvio que as coisas terão que trocar.
— Sim — disse Julia, tentando copiar o tom prático dele. — Eu gostaria de seguir sendo uma das atrizes do Capital. Mas não poderia sair de excursão, além disso, terei que limitar a quantidade de obras nas que poderei atuar.
— Pode permanecer no elenco todo o tempo que queira. Teria que ser um idiota para rechaçar a presença de uma atriz como você na companhia, embora ponha limites a sua participação.
— Grata.
— Eu queria para ti algo mais que isto — disse ele, de repente. — Nem sequer começaste a te aproximar dos limites de seu talento. Poderia ter sido a atriz mais aclamada da cena inglesa...
— Em lugar de ser feliz — — interrompeu Julia. — Nem todas as aclamações nem todo o dinheiro do mundo impediriam que me sentisse sozinha. Eu quero ser amada, quero risadas e companheirismo. Quero mais que o que me brinda a vida fictícia do teatro.
— Estás segura de que Savage te permitirá seguir estando no Capital?
— OH, sim — afirmou ela. Um sorriso pícaro iluminou sua cara. — É provável que não lhe agrade, mas está disposto a suportar minha carreira contanto que me tenha a seu lado.
Ela bebeu seu café, olhou ao Logan por cima do bordo da taça e seu sorriso se tornou triste.
— Considera-me uma idiota, não é assim? Não é capaz de imaginar um compromisso que te afaste do teatro.
— Não, não posso — disse Logan, tranquilo e, pela primeira vez, em seus olhos azuis apareceu um indício de amizade. — Mas não acredito que seja uma idiota. Em certo sentido, invejo-te. E não me pergunte por que. Deus sabe que não me posso explicar isso nem a mim mesmo.
Julia e Damon celebraram umas pequenas e discretas bodas na capela do castelo do Warwick, a que assistiu a família e uns poucos amigos íntimos. A mãe da Julia, Eva, evidenciou sua alegria ao ver que sua filha se casava com o Damon. Pela expressão de lorde Hargate, era óbvio que ele tinha uma visão mais cínica dos fatos embora, de todos os modos, expressou sua alegria pela união.
Durante os meses que seguiram, Julia assumiu seu papel de esposa do Damon com uma facilidade que surpreendeu a ambos. Se tinha ocupado a mente da Julia alguma idéia de que ser a duquesa do Leeds resultaria aborrecido e pomposo, essa idéia não demorou para evaporar-se. Damon a consentia como ninguém o tinha feito, enchendo-a de extravagantes presentes e procurando apropriar-se de todos os momentos possíveis que ela passava longe do teatro.
A diferença dela, Damon era um entusiasta da vida ao ar livre; ela se encontrou acompanhando-o em prolongadas caminhadas e passeios a cavalo pelo campo. De vez em quando, ela participava das partidas de tiro e de pesca que lhe gostavam, e embora ela não professasse muito amor por tais esportes, admirava a destreza dele.
Enquanto Damon pescava trutas em um arroio, em uma de suas propriedades, Julia vadiava sobre uma pontezinha que cruzava sobre a água. Para desfrutar melhor do sol, elevou a saia e deixou as pernas nuas balançando-se sobre o bordo. Observava em silencio a seu marido enquanto arrojava a linha onde uma truta castanha nadava a flor de água. De pé sobre a borda oposta, Damon operava com a graça parcimoniosa de um perito pescador. Cada anzol se estendia com ritmo regular, enquanto que a linha flutuava, ora para diante, ora para trás.
— Não te mova — disse Damon em voz baixa, ao notar o resplendor das brancas pernas da Julia, mas já era muito tarde.
Assustada por esse resplendor desconhecido, a ardilosa truta desapareceu, muito desconfiada para alimentar-se perto da superfície da água. Damon franziu o sobrecenho:
— Maldição.
— Eu a espantei? — perguntou Julia, tratando de desculpar. — Me assombra que um simples peixe possa ser tão sensível. Já sabe que nunca posso permanecer quieta muito tempo — disse, levantando as mãos em gesto de resignação. Tornando-se de costas sobre a ponte, suspirou. — Está bem, a próxima vez, não virei contigo.
Não havia transcorrido um minuto quando sentiu que Damon estava de pé detrás dela.
— Não te escapará com tanta facilidade.
Julia sorriu, sem abrir os olhos.
— Você poderá pescar melhor sem distrações.
Damon se agachou junto a ela, passando sua mão sobre o joelho nu.
— Mas acontece que me agradam as distrações — murmurou, e apoiou seus lábios no pescoço dela, enfraquecido pelo sol.
Para agradar a Julia, Damon a acompanhava de boa vontade a intermináveis bailes, soirrees e noitadas musicais. Para ela foi uma alegria descobrir que seu marido era um excelente bailarino e que tinha uma inesgotável energia para permanecer levantado toda a noite, se ela o desejava. O melhor de tudo eram as horas da noite, depois dos acontecimentos sociais, quando ele despedia a donzela e a despia com suas próprias mãos, lhe fazendo o amor até que ela ficava dormida, exausta e plena.
Damon era o companheiro com o que Julia não se atreveu a sonhar nunca, que escutava suas opiniões com interesse e discutia os pontos com os que não estava de acordo, quem se orgulhava de sua inteligência, a diferença da maioria dos homens, a quem tal característica fazia sentir-se ameaçados. Julia logo soube que podia ir a ele com qualquer problema, por insignificante que fosse, segura de que ele o abordaria com seriedade. Quando ela precisava ser reconfortada, sentava-se sobre as pernas dele e apoiava a cabeça em um ombro do Damon, até que suas preocupações adotavam uma perspectiva mais moderada. Às vezes, o assustava comprovar até que ponto tinha chegado a depender dele.
— Nunca esperei me sentir assim com alguém — disse ao Damon uma noite, quando estavam juntos na cama e contemplavam o fogo em silêncio. — E menos ainda, com um homem como você.
— Um homem como eu? Repetiu Damon, divertido.
— Sim, com todas suas especulações de negócios, seus investimentos e suas conversações a respeito de arrendatários e trabalhos de grande a...
— Deve te parecer aborrecido, em comparação com o teatro.
— Deve admitir que temos interesses muito diferentes.
Damon rompeu a rir e apartou as mantas dos ombros dela até que o ar fresco provocou a ereção de seus mamilos. O fogo salpicava a pele da Julia de luzes e sombras, e ele deslizou lentamente sua mão por essa sedosa superfície.
— Em certo modo, sim — disse ele, inclinando a cabeça sobre o pescoço de sua esposa. — Mas por outra parte, temos algumas coisas importantes em comum — sorriu ao sentir como ela se estremecia em reação a seu contato. — Quer que lhe esclareça isso? — perguntou, mordiscando a zona sensível do flanco do pescoço.
Julia o rodeou com seus braços e se arqueou para cima, tão ansiosa como sempre de receber o prazer que lhe oferecia.
Damon era um amante generoso que em ocasiões se demorava no corpo dela durante largas, doces horas, possuindo-a em outras com um brusco ardor que a enchia de excitação. Julia adquiriu a confiança necessária para seduzi-lo quando sentia desejos de fazê-lo, colocava vestidos provocadores e o tentava até que ele a atraía a seus braços e lhe dava aquilo que ela tinha pedido com seus atos. Quando estavam juntos, ela podia deixar a um lado as preocupações de sua profissão e se convertia em uma pessoa por completo diferente, cheia de alegria e de serenidade.
À medida que se aproximava setembro e, com ele aumentavam os ensaios para a iminente temporada, eles iam e voltavam da residência londrina dos Savage ao Capital. Ao princípio, os membros da companhia se sentiam incômodos ante ela, em sua nova hierarquia de duquesa do Leeds, mas logo o esqueceram mercê ao trabalho entre eles. Arlyss era feliz em seu matrimônio com o Michael Fiske e estava satisfeita com a persistência como atriz cômica em favor do público.
Logan Scott, por sua parte, era o mesmo de sempre: exigente, arrogante e obcecado por converter a seu teatro na atração mais espetacular de Londres. Cada vez que terminava uma renovação no Capital, seu ânimo crescia.
— Teu único grande amor - comentava Julia, rendi, ao vê-lo inspecionar o palco recém pintado de dourado, um dia, depois do ensaio. — Quantas mulheres dariam algo para que você as olhasse dessa forma! Mas tenha em conta que um simples edifício nunca retribuirá seu amor.
— Está equivocada — informou Logan, lhe dirigindo um sorriso inclinado. Sua mão grande passou sobre os complexos esculpidos do palco. O teatro dá-me muito mais do que poderia me dar qualquer mulher de carne e osso.
— Acaso o teatro poderia ser ela?
— O que outra coisa poderia ser?
Julia cruzou os braços sobre o peito e o observou de um modo especulativo, contente até o mais fundo de não haver-se casado com ele. Logan era e sem dúvida sempre seria muito limitado nas questões do coração. Havia algo nele que impedia a confiança e a intimidade necessárias para amar a uma pessoa real, para correr o risco que toda relação implica.
Quando começou a temporada teatral, Julia se viu assaltada por hordas de admiradores, alguns respeitosos, outros invasores. Para garantir a segurança da Julia, Damon se assegurou de que a acompanhassem, tanto de ida como de volta, cavaleiros que partiam junto ao carro e lacaios armados, e de que contasse com uma escolta de confiança cada vez que ia às compras ou de visita. Ao princípio, Julia considerava que as medidas de segurança eram exageradas, mas logo compreendeu que eram necessárias. Quando saía do Capital, depois de uma apresentação, enchiam seus ouvidos os gritos clamando: “Senhora Wentworth” ou “Duquesa!", e se tornavam em cima dela pessoas que tratavam de arrancar uma parte de encaixe de seu vestido ou, embora fosse alguns cabelos de sua cabeça.
Logan estava francamente contente com a popularidade da Julia, sabendo que era uma das razões das rendas espetaculares que obtinha o Capital.
— Talvez não tenha sido uma decisão tão errônea a de te casar com o Savage — disse pensativo, depois de presenciar as multidões que se reuniam para aguardar as saídas e entradas da Julia no Capital
Ao público lhe agrada a idéia de que uma duquesa atue para entretê-los. Faz-me pensar que teria sido bom nascer com um título: pensa nas alturas às que teria chegado.
— Alegra-me muito que meu matrimônio traga algum benefício a seu teatro repôs Julia com azedume. — Desse modo, o mau gole valeu a pena.
Seu sarcasmo fez rir ao Logan.
— Você é a que preferiu casar-se com um duque em lugar de fazê-lo com um simples ator dramático — assinalou ele. — Não é minha culpa que o Capital se beneficiou com seus atos.
— Sim, mas, tem que te gabar disso? — perguntou-lhe Julia, e sua expressão reprovadora se converteu em uma gargalhada desinteressada.
Fazia pouco se produziu certa tensão entre eles. Em uma reunião social, na semana anterior, Logan tinha tentado demonstrar a Julia que, além de ser a duquesa do Leeds, era sua empregada e que, ao menos parte do tempo, devia fazer o que ele dizia. Quando chegou o momento de entreter aos convidados, Logan fazia um sinal a Julia, que estava junto a seu marido.
— Quer Sua Graça atuar comigo? Propôs.
Julia lhe lançou um discreto olhar de advertência, pois já antes lhe havia dito que essa noite não colaboraria com ele em nenhuma cena. Estava ali como esposa do Damon e não como atriz a quem Logan podia fazer desfilar para pedir doações para o teatro. Os convidados à festa a animaram, mas ela ficou junto ao Damon.
— Estou segura de que o senhor Scott pode representar algo sem necessidade de contar com minha ajuda — disse, com um sorriso fixo nos lábios.
O olhar do Logan se encontrou com o dela e se trancaram em uma batalha de vontades.
— Venha, Sua Graça. Não negue a todos o prazer que nos brinda seu talento.
Nesse momento, interrompeu-o Damon com seu rosto convertido em uma máscara sem expressão.
— Minha esposa sabe que esta noite eu quero contar com sua exclusiva companhia. Possivelmente você possa impor-se a ela em outra ocasião.
Logan dirigiu seu seguinte comentário à sala em geral.
— É evidente que o duque não está informado de que pouco elegante é uma demonstração de ciúmes.
Damon rodeou com seu braço a cintura esbelta da Julia.
— Mas, com uma esposa como a minha, é muito compreensível, — disse olhando o semblante perturbado da Julia e sorrindo-lhe, tranquilizador, — vá representar a cena, se você quiser.
Ela assentiu e lhe devolveu o sorriso.
— Por ti, fá-lo-ei.
Mais tarde essa noite, Julia se aninhou junto ao Damon na cama e lhe deu um beijo de agradecimento.
— O comportamento do Logan foi terrível — disse. — Nunca pensa em outra coisa que não seja o ganho que obterá o teatro. Você se mostrou pormenorizado. Graças a Deus, não é um desses maridos possessivos que tivesse armado um escândalo!
Com movimentos cautelosos, Damon se voltou para ela.
— Eu te quero toda para mim— disse, com olhar sério. — Sempre irei querer isso. Estou condenadamente ciumento de cada minuto que Scott passa contigo nesse maldito teatro. E só porque te amo não me interponho entre ti e o que desejas. Não cometa nunca o engano de pensar que não sou possessivo.
Julia assentiu contrita. Inclinou-se sobre ele e o beijou, para lhe demonstrar o que pouca necessidade tinha de estar ciumento.
Jane Patrick foi uma das obras com as que se iniciou a nova temporada no Capital. A história se apoiava na vida de uma extravagante escritora, e nos numerosos fracassos, triunfos e desastrosas aventuras amorosas que a tinham convertido em uma das figuras mais complexas do mundo literário. Logan tinha expresso suas dúvidas com respeito a que a aparência da Julia talvez fosse muito delicada para fazer o papel de uma mulher que tinha fama de ter sido robusta e de aspecto masculino.
Julia assumiu com valor o papel do Jane Patrick, compensando sua falta de estatura física com uma personalidade exagerada; Logan ficou satisfeito com o resultado. Ele tomou o papel de um dos amigos mais íntimos de Jane, um homem que tinha estado apaixonado em segredo dela durante três décadas mas nunca tinha chegado a uma relação. Encontraram um harmonioso equilíbrio sobre o cenário, ao enfatizar Julia a audaz arrogância de seu personagem e conter Logan sua atuação.
A obra foi um êxito, tanto de público como de crítica; quando começou a segunda semana, Julia teve a alegria de ver que a sala estava cheia a transbordar. Estaria contente quando terminasse o programa de um mês de representações da obra. Era exaustivo atuar em um papel de mulher tão diferente dela mesma. Todas as noites retornava a sua casa muito fatigada para comer ou para conversar, e caía dormida assim que se metia na cama.
A noite que Damon assistiu à apresentação do Jane Patrick, Julia se esforçou por fazer sua melhor atuação. Sabia que seu marido ia estar no camarote privado da segunda fila com seu irmão William e alguns amigos. Cheia de determinação, Julia pôs em sua parte tudo o que esta requeria, recitando apaixonadas diatribes e acuidades de grande engenho e caminhava pelo cenário com um jactancioso rebolado, como se lhe pertencesse. O público respondeu com risadas, exclamações de surpresa e silêncios absortos quase até o final do primeiro ato. Chegaram a uma cena em que Julia e Logan cercavam uma violenta discussão, quando o amigo do Jane tentava lhe reprovar sua vida irresponsável e ela reagia com uma furiosa explosão.
Quando Julia começava um de seus parlamentos, o rosto se cobriu de suor a consequência do esforço. Percebeu uma sensação de frio debaixo do vestido, sentiu que uns finos fios de suor lhe escorregavam pelo pescoço e o peito. Julia se concentrou na cara do Logan e continuou a cena apesar de sentir enjôos. Compreendeu que algo mau lhe acontecia e desejou, com desespero, que a cena acabasse logo. Se pudessem terminar o primeiro ato, ela poderia sentar-se em algum lugar, beber um copo de água e assim acalmaria o palpitar que sentia em sua cabeça.
Para seu horror, sentiu que as pranchas oscilavam sob seus pés como se o cenário fosse um navio que o fluxo balançava. A voz do Logan lhe chegava desde muito longe, embora soubesse que ele estava a seu lado. O rosto dele se rabiscou, seus olhos azuis se converteram em remotos pontos de cor na névoa cinza que se abatia sobre ela. Nunca lhe tinha acontecido algo semelhante. "vou desmaiar", pensou, presa de pânico; ao mesmo tempo, sentiu que lhe afrouxavam as pernas.
Em um instante, Logan a sujeitou e a sustentou com força. Julia teve a vaga noção de que ele estava improvisando umas linhas, dizendo algo com respeito a que seu personagem se intoxicou, e logo a elevava nos braços e a tirava do cenário. O público, sem saber que o desmaio não formava parte da obra, estalou em aplausos enquanto caía o pano de fundo.
Empapada de suor, silenciosa nos braços do Logan, Julia não podia responder às perguntas dele, que a levava a seu camarim. Logan a sentou com cuidado em uma cadeira e começou a disparar ordens aos membros da companhia que rondavam ao redor deles.
— Traz um pouco de água — grunhiu a um deles, — e outros, não lhes amontoem.
Os curiosos obedeceram e saíram do quarto. Logan, de pé ante ela, apertava entre as suas as mãos frias da Julia.
— Me diga o que te passa — lhe disse, obrigando-a a olhá-lo. — Está branca como um papel. Comeste hoje? Quer beber um pouco de chá? Um conhaque?
— Nada — murmurou ela, fincando uma mão na boca, pois as sugestões de lhe tinham provocado náuseas.
O gesto fez que Logan entreabrisse os olhos, embora mantivesse silêncio e seu olhar se fez perspicaz e especulativo.
Alguém entrou na habitação e Logan se apartou.
— Ela está bem — disse.
Julia elevou a vista e viu o semblante implacável e sombrio de seu marido; sua boca se abriu em um sorriso vacilante. Damon não lhe retribuiu o sorriso e se agachou ante ela. Sua mão cálida se deslizou debaixo do queixo de sua mulher e ele observou a cara dela.
— Que aconteceu? — perguntou-lhe.
— Desmaiei — respondeu Julia, surpreendida e envergonhada de uma vez. — Estava enjoada. Mas agora me sinto muito melhor — aventurou um olhar para o Logan. — Já estou bem; acredito que poderei terminar a obra.
Antes que Logan pudesse replicar, Damon interrompeu sem elevar a voz.
— Você vem a casa comigo.
— Não é essa uma decisão que deve tomar Julia? — perguntou Logan.
Os olhares dos maridos se encontraram, e ele retirou a mão do queixo da Julia.
— Que a termine a atriz suplente. Ou acaso quer arriscar-se a que desmaie outra vez?
— Jamais deixei uma apresentação sem acabar — murmurou ela, assustada ante essa idéia.
— O mais provável é que nunca te tenha desacordado em meio de uma cena — disse Damon; embora ele se controlasse, Julia percebeu a mescla de aborrecimento e preocupação que se ocultava atrás dessa fachada. — Vem comigo, Julia. Não tem bom aspecto.
Julia se levantou lentamente para olhar-se no espelho e, ao fazê-lo, descobriu que não podia erguer-se com firmeza. Damon estava certo: tinha um aspecto doentio e macilento. O feito de pensar em terminar a obra, com o esforço físico e emocional que exigia, parecia-lhe impossível.
Logan compreendeu que ela não estava em condições de continuar. Alisou os cabelos com ambas as mãos.
— Vá — murmurou. — Eu me ocuparei das coisas, aqui — fez uma pausa e adicionou, dirigindo-se ao Damon: — Amanhã pela manhã me faça saber como se encontra ela.
Apesar dos protestos da Julia, Damon a tirou nos braços do teatro pela parte de trás, onde tinha indicado ao chofer que levava o veículo. Ela se apoiou nele enquanto foram para seu lar, reconfortada ao sentir que o braço dele a rodeava.
— Não sei o que me passa — murmurou. — Me sinto esgotada... Deve ser isso, suponho. É um papel muito exaustivo.
Damon não respondeu; em troca, acariciou-lhe o cabelo e lhe secou a cara com seu lenço.
O médico saiu da habitação e se deteve para falar uns instantes com o Damon, que estava esperando fora, junto à porta. Sentada na cama, Julia observava como aconteciam no semblante de seu marido uma cômica variedade de expressões, entre as quais distinguiu a preocupação e a alegria. Conseguiu esboçar um sorriso quando ele entrou no dormitório e se sentou a seu lado, sobre o colchão. Tomou a mão como se fosse muito frágil para suportar uma pressão que não fosse muito leve.
— Não suspeitou de nada? — perguntou-lhe, em voz rouca.
— Não estava segura — admitiu ela, com sorriso vacilante. — Pensei que devia esperar umas semanas mais antes de te dizer algo. Está contente com o bebe?
— Por Deus, Julia... Pergunta-me isso!
Damon se tornou para diante e depositou em sua boca um beijo reverente. Julia respondeu com ânsias, entrelaçando seus dedos no cabelo negro dele.
Damon se apartou e a olhou aos olhos, Julia percebeu as perguntas que pugnavam por escapar de seus lábios, sabendo que ele necessitaria de todo seu controle para não as formular.
— Ultimamente estive pensando em algumas coisas — disse ela, pondo as mãos no peito dele.
Damon esperou em silêncio a que ela continuasse. Era importante que ela pudesse escolher as palavras apropriadas, para lhe fazer compreender as revelações que lhe tinham sobrevindo.
Ela nunca tinha conhecido a segurança própria do carinho e a aprovação de um pai; por isso, nunca tinha podido confiar por inteiro em ninguém nem sentir-se segura sabendo que seu amor não se esfumaria nem lhe seria arrebatado. Mas Damon tinha conseguido trocar a situação. O a tinha convencido de que seus sentimentos por ela eram perduráveis, e isso lhe dava valor para deixar de aferrar-se com tanta força a sua carreira de atriz. Ela queria explorar outros aspectos de sua pessoa. Queria entregar-se ao amor com tanta liberdade como se entregou a sua ambição.
Sempre se tinha protegido a si mesma, evitando todo aquilo que representasse uma ameaça a sua independência. Em certo sentido, ela tinha erigido uma prisão a seu redor; nesse momento os muros dessa prisão se derrubavam lhe mostrando uma parte de si mesma que ela nunca tinha tido em conta até então.
Pensar no que poderia lhe aguardar se por fim se atrevia a deixar atrás o passado, enchia a Julia de uma sensação de aventura. Levou a mão do Damon para seu ventre e a apertou sobre a pequena vida que começava dentro dela. Imaginou ao Damon como pai e essa imagem lhe fez sorrir. Era estranho: as mesmas coisas que ela acreditou que lhe roubariam sua apreciada liberdade, por exemplo, um marido e um filho, tinham-lhe dado, em troca, mais liberdade da que jamais tivesse sonhado. Eles dariam forças a ela; Julia lhes devolveria essas forças.
— Decidi que eu gostaria de deixar a atuação por um tempo — disse. — Me ocorreu uma alternativa que acredito será melhor para mim, ao menos por agora. Eu gostaria de fazer um investimento financeiro no teatro Capital, um investimento importante, de modo que meu nome figure na carta constitucional da companhia. Isso me converteria em sócia do senhor Scott e, embora fosse uma sócia menor, de qualquer maneira teria certa influência.
— Para o que serviria isso?
— Poderia ajudar a administrar o Capital, chamar escritores que estivessem criando obras; fiscalizar aos cenógrafos, músicos e carpinteiros; trabalhar no escritório e colaborar na programação, a seleção do elenco, o vestuário. OH, há milhares de coisas das que eu poderia me ocupar, para as que Scott nunca tem tempo! Desse modo, eu poderia trabalhar tanto ou tão pouco como quisesse e, mesmo assim, não suportaria a carga de estar sob o olhar do público. Não vê que isso seria um acerto perfeito? Eu seguiria estando no teatro, mas também teria mais tempo para estar contigo e com o pequeno. Estaria toda a noite aqui, em lugar de retornar a casa tarde depois da apresentação.
— Você irá querer voltar a atuar — disse Damon, contemplando a mão dela, que brincava com o diamante em seu dedo.
— Possivelmente queira fazê-lo de vez em quando, se aparecer um papel irresistível.
— Em sua opinião, como reagirá Scott ante semelhante idéia? Poderia suportar que uma mulher fosse sua sócia na empresa?
— Se houvesse bastante dinheiro, ele toleraria algo — assegurou Julia com súbito sorriso.
Olharam-se durante comprido momento, até que um sorriso relutante apareceu no rosto do Damon. Com delicadeza, fê-la estender-se sobre a cama e se deitou a seu lado. Sua mão brincou sobre o corpo dela e posou sobre seu ventre.
— Eu quero que seja feliz — disse, roçando a bochecha da Julia com seus lábios.
Julia entrelaçou suas pernas com as dele.
— Como poderia não sê-lo? Deste-me todas as coisas que eu jamais tinha imaginado que teria: amor, um lar, uma família.
—Me diga que mais quer — disse Damon, rodeando sua cara com as mãos e lhe dando um veemente beijo nos lábios. — Diga e eu dar-lhe-ei isso.
— Só quero a ti — disse ela, com seus olhos resplandecentes, — para sempre.
— Isso o tem desde o começo — sussurrou ele, aproximando-a e beijando-a outra vez.
Lisa Kleypas
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