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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GUARANI 3 / José de Alencar
O GUARANI 3 / José de Alencar

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GUARANI

 

TERCEIRA PARTE - OS AIMORÉS

 

I PARTIDA

 Na segunda-feira, eram seis horas da manhã, quando D. Antônio de Mariz chamou seu filho.

 

O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família.

 

Peri lhe havia contado todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e o espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado.

 

Por isso, de acordo com Álvaro, D. Diogo e seu escudeiro Aires Gomes, tinha tomado todas as medidas de precaução que as circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam.

 

Quando seu filho entrou, o velho fidalgo acabava de selar duas cartas que escrevera na véspera.

 

— Meu filho, disse ele com uma ligeira emoção, refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer, e assentei que deveis partir hoje mesmo para São Sebastião.

 

— Não é possível, senhor!... Afastais-me de vós justamente quando correis um perigo?

 

— Sim! É justamente quando um grande perigo nos ameaça, que eu, chefe da casa, entendo ser do meu dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo, o protetor de minha família órfã.

 

— Confio em Deus, meu pai, que vossos receios serão infundados; mas se ele nos quiser submeter a tal provança, o único lagar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada, ao vosso lado, para defender-vos e partilhar a vossa sorte, qualquer que ela seja.

 

D. Antônio apertou seu filho ao peito.

 

— Eu te reconheço; tu és meu filho; é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias, e o meu coração de moço que fala pelos teus lábios. Deixa porém que os cinqüenta anos de experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família.

 

— Eu vos escuto, senhor; mas pelo amor que vos consagro poupai-me a dor e a vergonha de deixar-vos no momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado.

 

O fidalgo prosseguiu já calmo:

 

— Não é uma espada, D. Diogo, que nos dará a vitória, fosse ela valente e forte como a vossa: entre quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos, um de mais ou de menos não importa ao resultado.

 

— Que assim seja, respondeu o cavalheiro com energia; reclamo o meu posto de honra e a minha parte do perigo; não vos ajudarei a vencer, porém morrerei junto dos meus.

 

— E é por esse nobre mas estéril orgulho que quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos reste, se, como temo, as minhas previsões se realizarem?

 

— Que dizeis, senhor?

 

— Qualquer que seja a força e o número dos inimigos, conto que o valor português e a posição desta casa me ajudarão a resistir-lhe por algum tempo, por vinte dias, mesmo por um mês; mas por fim teremos de sucumbir.

 

— Então?... exclamou D. Diogo pálido.

 

— Então se meu filho D. Diogo, em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente, tiver ido ao Rio de Janeiro, e pedido o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão decerto, poderá voar em socorro de seu pai, e chegar com tempo para defender sua família. Então verá que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo inútil.

 

D. Diogo deitou o joelho em terra, e beijou com ternura a mão do fidalgo:

 

— Perdão, meu pai, por não vos ter compreendido. Eu devia adivinhar que D. Antônio de Mariz não pode querer para o filho senão o que é digno do pai.

 

— Vamos, D. Diogo, não há tempo a perder. Lembrai-vos que uma hora, um minuto de tardança talvez tenha de ser contado ansiosamente por aqueles que vão esperar-vos.

 

— Parto neste instante, disse o cavalheiro dirigindo-se à porta.

 

— Tomai; esta carta é para Martim de Sá, governador desta capitania; esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro, valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa família. Ide despedir-vos de vossa mãe, e vossas irmãs; eu farei tudo preparar para a partida.

 

O fidalgo, reprimindo a sua emoção, saiu do gabinete onde se passava esta cena, e foi ter com Álvaro que o procurava.

 

— Álvaro, escolhei quatro homens que acompanhem D. Diogo ao Rio de Janeiro.

 

— D. Diogo parte?... perguntou o moço admirado.

 

— Sim, depois vos direi as razões. Por agora dai-vos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma hora.

 

Álvaro dirigiu-se imediatamente ao fundo da casa onde habitavam os aventureiros.

 

Havia ai grande agitação; uns falavam em tom de queixa, outros murmuravam apenas palavras entrecortadas; e alguns finalmente riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros.

 

Aires Gomes com todo o seu arreganho militar passeava no meio do terreiro, a mão no punho da espada, a cabeça alta e o bigode retorcido. Quando o escudeiro passava, a voz dos aventureiros descia dois tons; mas à medida que ele se afastava, cada um dava livre desabafo ao seu mau humor.

 

Entre os mais inquietos e turbulentos distinguiam-se três grupos presididos por personagens de nosso conhecimento: Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.

 

A causa desse descontentamento quase geral era a seguinte:

 

Por volta de seis horas da manhã, Rui, em virtude do emprazamento da véspera, dirigiu-se o primeiro à escada para ganhar o mato.

 

Chegando ao fim da esplanada admirou-se de ver aí Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia, o que era extraordinário, pois só à noite se usava de uma tal precaução, e esta cessava apenas amanhecia.

 

Ainda mais admirado porém ficou quando os dois aventureiros cruzando as espadas, proferiram quase ao mesmo tempo estas palavras:

 

— Não se passa.

 

— E por que razão?

 

— É a ordem, respondeu Martim Vaz.

 

Rui empalideceu, e voltou apressadamente; a primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado, e cuidou em prevenir a Loredano.

 

Aires Gomes porém embargou-lhe o passo, e dirigiu-se com ele para o terreiro: ai o digno escudeiro desempenando o corpo, e levando a mão à boca em forma de buzina, gritou.

 

— Olá! À frente toda a banda!

 

Os aventureiros chegaram-se formando um círculo ao redor de Aires Gomes; Rui já tinha tido ocasião de lançar uma palavra ao ouvido do italiano; e ambos, um pouco pálidos mas resolutos, esperavam o desfecho daquela cena.

 

— O Sr. D. Antônio de Mariz, disse o escudeiro, por meu intermédio vos faz saber a sua vontade: e manda que ninguém se afaste um passo da casa sem sua ordem. Quem o contrário fizer, pereça morte natural.

 

Um silêncio morno acolheu a enunciação desta ordem. Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois cúmplices.

 

— Estais entendidos? disse Aires Gomes.

 

— O que nem eu, nem meus companheiros entendemos e a razão disto, retrucou o italiano avançando um passo.

 

— Sim; a razão? exclamou em coro a maioria dos aventureiros.

 

— As ordens cumprem-se, e não se discutem, respondeu o escudeiro com uma certa solenidade.

 

— Contudo nós... ia dizendo Loredano.

 

— Toca a debandar! gritou Aires Gomes. Aquele que não estiver contente, que o diga ao Sr. D. Antônio de Mariz.

 

E o escudeiro com uma fleuma imperturbável rompeu o circulo e começou a passear pelo terreiro olhando de traves os aventureiros e rindo à sorrelfa do seu desapontamento.

 

Quase todos estavam contrariados; sem falar dos conspiradores que se haviam emprazado para concertarem seu plano de campanha, os outros, cujo divertimento era caçar e bater os matos, não recebiam a ordem com prazer. Apenas alguns de gênio mais bonachão e jovial tinham tomado a coisa à boa parte, e zombavam da contrariedade que sofriam seus companheiros.

 

Quando Álvaro se aproximou todos os olhos se voltaram para ele, esperando a explicação do que se passava.

 

— Sr. cavalheiro, disse Aires Gomes, acabo de transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa.

 

— Bem, respondeu o moço, e continuou dirigindo-se aos aventureiros: assim é preciso, meus amigos, estamos ameaçados de um ataque dos selvagens, e toda a prudência é pouca nestas ocasiões. Não é só a nossa vida que temos a defender, e essa pouco vale para cada um de nós; é sim a pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem, e mais ainda o sossego de uma família honrada que todos prezamos.

 

As nobres palavras do cavalheiro, e a afabilidade do gesto que suavizava a firmeza de sua voz, serenaram completamente os ânimos; todos os descontentes mostraram-se satisfeitos.

 

Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano; pois era arriscado tentá-lo em casa, onde o menor gesto o podia trair.

 

Álvaro trocou poucas palavras com Aires Gomes, e voltou-se para os aventureiros:

 

— D. Antônio de Mariz precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D. Diogo à cidade de São Sebastião. É uma missão perigosa; quatro homens nestes desertos marcham de perigo em perigo. Quem de vós se oferece para desempenhá-la?

 

Vinte homens se adiantaram; o cavalheiro escolheu três entre eles.

 

— Vós sereis o quarto, Loredano.

 

O italiano que se tinha escondido entre os seus companheiros, ficou como fulminado por estas palavras; sair naquela ocasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança; durante a ausência tudo podia se descobrir.

 

— Pesa-me ser obrigado a negar-me ao serviço que exigis de mim; mas sinto-me doente, e sem forças para uma viagem.

 

O cavalheiro sorriu.

 

— Não há enfermidade que prive um homem de cumprir o seu dever; sobretudo quando é um homem valente e leal como vós, Loredano.

 

Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos outros aventureiros:

 

— Se não partis, sereis arcabuzado em uma hora. Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos faço esmola mandando-vos sair desta casa?

 

O italiano compreendeu que não tinha remédio senão partir; bastava que o moço o acusasse de ter atirado sobre ele, bastava a palavra de Álvaro para fazê-lo condenar pelo chefe e pelos seus próprios companheiros.

 

— Aviai-vos, disse o cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por ele; partis em meia hora.

 

Álvaro retirou-se.

 

Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade que pesava sobre ele; mas a pouco e pouco foi recobrando a calma, animando-se; por fim sorriu. Para que sorrisse era necessário que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a essa inteligência votada ao crime.

 

Fez um aceno a Rui Soeiro, e os dois encaminharam-se para um cubículo que o italiano ocupava no fim da esplanada. Aí conversaram algum tempo, rapidamente e em voz baixa.

 

Foram interrompidos por Aires Gomes, que bateu com a espada na porta:

 

— Eh! lá! Loredano. A cavalo, homem; e boa viagem.

 

O italiano abriu a porta, e ia sair; mas voltou-se para dizer a Rui Soeiro:

 

— Olhai os homens da guarda; é o principal.

 

— Ide tranqüilo.

 

Alguns minutos depois, D. Diogo com o coração cerrado e as lágrimas nos olhos, apertava nos braços sua mãe querida, Cecília que ele adorava, e Isabel que já amava também como irmã.

 

Depois desprendendo-se com um esforço, encaminhou-se apressadamente para a escada e desceu ao vale; ai recebeu a bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo, que Aires Gomes tinha pela rédea.

 

A pequena cavalgata partiu; com pouco sumia-se na volta do caminho.

 

II PREPARATIVOS

Ao tempo que D. Antônio de Mariz e seu filho conversaram no gabinete, Peri examinava as suas armas, carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado na véspera, e saia da cabana.

 

A fisionomia do selvagem tinha uma expressão de energia e ardimento, que revelava resolução violenta, talvez desesperada.

 

O que ia fazer, nem ele mesmo sabia. Certo de que o italiano e seus companheiros se reuniriam naquela manhã, contava, antes que a reunião se efetuasse, ter mudado inteiramente a face das coisas.

 

Só tinha uma vida, como dissera; mas essa com a sua agilidade e a sua força e coragem valia por muitas; tranqüilo sobre o futuro pela promessa de Álvaro, não lhe importava o número dos inimigos: podia morrer, mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer ao cavalheiro.

 

Saindo de sua cabana, Peri entrou no jardim: Cecília estava sentada num tapete de peles sobre a relva, e amimava ao seio a sua rolinha predileta, oferecendo os lábios de carmim às carícias que a ave lhe fazia com o bico delicado.

 

A menina estava pensativa; doce melancolia desvanecia a vivacidade natural de seu semblante.

 

— Tu estás agastada com Peri, senhora?

 

— Não, respondeu a menina fitando nele os grandes olhos azuis. Não quiseste fazer o que eu pedi; tua senhora ficou triste.

 

Ela dizia a verdade com a ingênua franqueza da inocência. Na véspera, quando se tinha recolhido enfadada pela recusa de Peri, ficara contrariada.

 

Educada no fervor religioso de sua mãe, embora sem os prejuízos que a razão de D. Antônio corrigira no espírito de sua filha, Cecília tinha a fé cristã em toda a pureza e santidade. Por isso se afligia com a idéia de que Peri, a quem votava uma amizade profunda, não salvasse a sua alma, e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia suas preces.

 

Conhecia que a razão, por que sua mãe e os outros desprezavam o índio, era o seu gentilismo; e a menina no seu reconhecimento queria elevar o amigo e torná-lo digno da estima de todos.

 

Eis a razão por que ficara triste; era a gratidão por Peri, que defendera sua vida de tantos perigos, e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma.

 

Nesta disposição de espírito, seus olhos caíram sobre a guitarra espanhola que estava em cima da cômoda e veio-lhe vontade de cantar. É coisa singular como a melancolia inspira! Seja por uma necessidade de expansão, seja porque a música e a poesia suavizem a dor, toda a criatura triste acha no canto um supremo consolo.

 

A menina tirou ligeiros prelúdios do instrumento enquanto repassava na memória as letras de alguns solaus e cantigas que sua mãe lhe havia ensinado. A que lhe acudiu mais naturalmente foi a xácara que ouvimos: havia nessa composição uns longes, um quer que seja que ela não sabia explicar, mas ia com seus pensamentos.

 

Quando acabou de cantar levantou-se, apanhou a flor de Peri que tinha atirado ao chão, deitou-a nos cabelos, e fazendo a sua oração da noite, adormeceu tranqüilamente. O último pensamento que rogou a sua fronte alva foi um voto de gratidão pelo amigo que lhe salvara a vida naquela manhã. Depois um sorriso adejou sobre seu rosto gracioso, como se a alma durante o sono dos olhos viesse brincar nos lábios entreabertos.

 

O índio, ouvindo as palavras que acabava de proferir Cecília, sentiu que pela primeira vez tinha causado uma mágoa real a sua senhora.

 

— Tu não entendeste Peri, senhora; Peri te pediu que o deixasses na vida em que nasceu, porque precisa desta vida para servir-te.

 

— Como?... Não te entendo!

 

— Peri, selvagem, é o primeiro dos seus; só tem uma lei, uma religião, é sua senhora; Peri, cristão, será o último dos teus; será um escravo, e não poderá defender-te.

 

— Um escravo!... Não! Serás um amigo. Eu te juro! exclamou a menina com vivacidade.

 

O índio sorriu:

 

— Se Peri fosse cristão, e um homem quisesse te ofender, ele não poderia matá-lo, porque o teu Deus manda que um homem não mate outro. Peri selvagem não respeita ninguém; quem ofende sua senhora é seu inimigo, e, morre!

 

Cecília, pálida de emoção, olhou o índio, admirada não tanto da sublime dedicação, como do raciocínio; ela ignorava a conversa que o índio tivera na véspera com o cavalheiro.

 

— Peri te desobedeceu por ti somente; quando já não correres perigo, ele virá ajoelhar a teus pés, e beijar a cruz que tu lhe deste. Não fica zangada!

 

— Meu Deus!... murmurou Cecília pondo os olhos no céu. É possível que uma dedicação tamanha não seja inspirada por vossa santa religião!...

 

A alegria serena e doce de sua alma irradiava na fisionomia encantadora:

 

— Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi; assim não exijo mais; espero. Lembra-te somente que no dia em que tu fores cristão, tua senhora te estimará ainda mais.

 

— Não ficas triste?

 

— Não; agora estou satisfeita, contente, muito contente!

 

— Peri quer pedir-te uma coisa.

 

— Dize, o que é?

 

— Peri quer que tu risques um papel para ele.

 

— Riscar um papel?...

 

— Como este que teu pai deu hoje a Peri.

 

— Ah! queres que eu escreva?

 

— Sim.

 

— O quê?

 

— Peri vai dizer.

 

— Espera.

 

Ligeira e graciosa, a menina correu à banquinha, e tomando uma folha de papel e uma pena fez sinal a Peri que se aproximasse.

 

Não devia ela satisfazer os desejos do índio, como este satisfazia às suas menores fantasias?

 

— Vamos: fala que eu escrevo.

 

— Peri a Álvaro, disse o índio.

 

— É uma carta ao Sr. Álvaro? perguntou a menina corando.

 

— Sim; é para ele.

 

— Que vais tu dizer-lhe?

 

— Escreve.

 

A menina traçou a primeira linha, e depois por pedido de Peri, o nome de Loredano e dos seus dois cúmplices.

 

— Agora, disse o índio, fecha.

 

Cecília selou a carta.

 

— Entrega à tarde; antes não.

 

— Mas que quer isto dizer? perguntou Cecília sem compreender.

 

— Ele te dirá.

 

— Não, que eu...

 

A menina balbuciou, corando, estas palavras; ia dizer que não falaria ao cavalheiro e arrependeu-se; não queria revelar a Peri o que se tinha passado. Sabia que se o índio suspeitasse a cena da véspera, odiaria Isabel e Álvaro, só por lhe terem causado um pesar involuntário.

 

Enquanto Cecília confusa procurava disfarçar o enleio, Peri fitava nela o seu olhar brilhante; mal pensava a menina que aquele olhar era o adeus extremo que o índio lhe dizia.

 

Mas para isto fora preciso que adivinhasse o plano desesperado que ele havia concebido de exterminar naquele dia todos os inimigos da casa.

 

D. Diogo entrou nesse momento no quarto de sua irmã: vinha despedir-se dela.

 

Quanto a Peri, deixando Cecília, dirigiu-se à escada e achou os mesmos vigias, que depois embargaram a passagem de Rui Soeiro.

 

— Não se passa, disseram os aventureiros cruzando as espadas.

 

O índio levantou os ombros desdenhosamente; e antes que as sentinelas voltassem a si da surpresa, tinha mergulhado sob as espadas e descido a escada. Então ganhou a mata, examinou de novo as suas armas e esperou; já estava cansado quando viu passar a pequena cavalgata.

 

Peri não compreendeu o que sucedia; mas conheceu que o seu plano tinha abortado.

 

Foi ter com Álvaro.

 

O cavalheiro explicou-lhe como se aproveitara da ida de D. Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o italiano sem rumor e sem escândalo. Então o índio por sua vez contou ao moço o que tinha ouvido na touça de cardos; o projeto que formara de matar os três aventureiros naquela manhã; e finalmente a carta que lhe escrevera por intermédio de Cecília, para, no caso de sucumbir ele, saber o cavalheiro quem eram os inimigos.

 

Álvaro duvidava ainda acreditar em tanta perfídia do italiano.

 

— Agora, concluiu Peri, é preciso que os dois também saiam; se ficarem, o outro pode voltar.

 

— Não se animará! disse o cavalheiro.

 

— Peri não se engana! Manda sair os dois.

 

— Fica descansado. Falarei com D. Antônio de Mariz.

 

O resto do dia passou tranqüilamente; mas a tristeza tinha entrado nessa casa ainda na véspera tão alegre e feliz; a partida de D. Diogo, o temor vago que produz o perigo quando se aproxima, e o receio de um ataque dos selvagens, preocupavam os moradores do Paquequer.

 

Os aventureiros dirigidos por D. Antônio, executavam trabalhos de defesa tornando ainda mais inacessível o rochedo em que estava situada a casa.

 

Uns construíam paliçadas em roda da esplanada: outros arrastavam para a frente da casa uma colubrina que o fidalgo por excesso de cautela mandara vir de São Sebastião havia dois anos. Toda a casa enfim apresentava um aspecto marcial, que indicava as vésperas de um combate; D. Antônio preparava-se para receber dignamente o inimigo.

 

Apenas em toda esta casa uma pessoa se conservava alheia ao que passava: era Isabel, que só pensava no seu amor.

 

Depois de sua confissão, arrancada violentamente ao seu coração por uma força irresistível, por um impulso que ela não sabia explicar, a pobre menina quando se vira só, no seu quarto, à noite, quase morreu de vergonha.

 

Lembrava-se de suas palavras, e perguntava a si mesma como tivera a coragem de dizer aquilo, que antes nem mesmo os seus olhos se animavam a exprimir silenciosamente. Parecia-lhe que era impossível tornar a ver Álvaro sem que cada um dos olhares do moço queimasse as suas faces e a obrigasse a esconder o rosto de pejo.

 

Entretanto nem por isso seu amor era menos ardente; ao contrário agora é que a paixão, por muito tempo reprimida, se exacerbava com as lutas e contrariedades.

 

As poucas palavras doces que o moço lhe dirigia, a pressão das mãos, e o aperto rápido sobre o coração de Álvaro num momento de alucinação, passavam e repassavam na sua memória a todo o momento.

 

Seu espírito, como uma borboleta em torno da flor, esvoaçava constantemente em torno das reminiscências ainda vivas, como para libar todo o mel que encerravam aquelas sensações, as primeiras de seu infeliz amor.

 

Nesse mesmo dia de segunda-feira, à tarde, Álvaro encontrou-se um momento com Isabel na esplanada. Ambos ficaram mudos, e coraram. Álvaro ia retirar-se.

 

— Sr. Álvaro... balbuciou a moça trêmula.

 

— Que quereis de mim, D. Isabel? perguntou o moço perturbado.

 

— Esqueci-me o restituir-vos ontem o que não me pertence.

 

— E ainda esse malfadado bracelete?

 

— Sim, respondeu a moça docemente, é este malfadado bracelete: Cecília teima que é ele vosso.

 

— Se meu é, vos peço que o aceiteis.

 

— Não, Sr. Álvaro, não tenho direito.

 

— Uma irmã não tem direito de aceitar a prenda que lhe oferece seu irmão?

 

— Tendes razão, respondeu a moça suspirando, eu o guardarei como lembrança vossa; não será adorno para mim, senão relíquia.

 

O moço não respondeu; retirou-se para cortar a conversa.

 

Desde a véspera Álvaro não podia eximir-se à impressão poderosa que causara nele a paixão de Isabel; era preciso que não fosse homem para não se sentir profundamente comovido pelo amor ardente de uma mulher bela, e pelas palavras de fogo que corriam dos lábios de Isabel impregnadas de perfume e sentimento.

 

Mas a razão direita do cavalheiro recalcava essa impressão no fundo do coração; ele não se pertencia; tinha aceitado o legado de D. Antônio de Mariz e jurado dar a sua mão a Cecília.

 

Embora não esperasse mais realizar o seu sonho dourado, entendia que estava vigorosamente obrigado a sujeitar-se a vontade do fidalgo, a proteger sua filha, a dedicar-lhe sua existência. Quando Cecília o repelisse abertamente, e D. Antônio o desobrigasse de sua promessa, então seu coração seria livre, se não estivesse morto pelo desengano.

 

O único fato notável que se deu nesse dia foi a chegada de seis aventureiros das vizinhanças, que prevenidos por D. Diogo vinham oferecer seus serviços a D. Antônio.

 

Chegaram ao lusco-fusco; à frente deles vinha o nosso conhecido mestre Nunes, que um ano antes dera hospitalidade no seu pouso a Frei Ângelo di Luca.

 

 III VERME E FLOR

 Eram onze horas da noite.

 

O silêncio reinava na habitação e seus arredores; tudo estava tranqüilo e sereno. Algumas estrelas brilhavam no céu; os sopros escassos da viração sussurravam na folhagem.

 

Os dois homens de vigia, apoiados ao arcabuz e reclinados sobre o alcantil, sondavam a sombra espessa que se estendia pela aba do rochedo.

 

O vulto majestoso de D. Antônio de Mariz passou lentamente pela esplanada, e desapareceu no canto da casa. O fidalgo fazia sua ronda noturna, como um general na véspera de uma batalha.

 

Passados alguns momentos ouviu-se cantar uma coruja no vale, junto da escada de pedra; um dos vigias abaixou-se, e tomando dois pequenos seixos deixou-os cair um depois do outro.

 

O som fraco que produziu a queda das pedras sobre o arvoredo da várzea foi quase imperceptível; seria difícil distingui-lo do rumor do vento nas folhas.

 

Um instante depois um vulto subiu ligeiramente a escada, e reuniu-se aos dois homens que faziam a guarda noturna::

 

— Tudo está pronto?

 

— Só esperamos por vós.

 

— Vamos! Não há tempo a perder.

 

Trocadas estas palavras rapidamente entre o que chegava e um dos vigias, os três encaminharam-se com todas as precauções para a alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros.

 

Aí, como no resto da casa, tudo estava calmo e tranqüilo; apenas via-se luzir na soleira da porta do aposento de Aires Gomes a claridade de uma luz.

 

Um dos três chegou-se à entrada do alpendre, e esgueirando-se pela parede perdeu-se na escuridão que havia no interior.

 

Os outros dois se dirigiam ao fim da casa, e ai ocultos pela sombra e pelo ângulo que formava um largo pilar do edifício, começaram um diálogo breve e rápido.

 

— Quantos são? perguntou o homem que chegara.

 

— Vinte ao todo.

 

— Restam-nos?

 

— Dezenove.

 

— Bem. A senha?.

 

— Prata.

 

— E o fogo?

 

— Pronto.

 

— Aonde?

 

— Nos quatro cantos.

 

— Quantos sobram?

 

— Dois apenas.

 

— Seremos nós.

 

— Precisais de mim?

 

— Sim.

 

Houve uma pequena pausa, em que um dos aventureiros parecia refletir profundamente enquanto o outro esperava; por fim o primeiro ergueu a cabeça:

 

— Rui, vós me sois dedicado?

 

— Dei-vos a prova.

 

— Preciso de um amigo fiel.

 

— Contai comigo.

 

— Obrigado.

 

O desconhecido apertou a mão de seu companheiro.

 

— Sabeis que amo uma mulher?

 

— Vós mo dissestes.

 

— Sabeis que é mais por essa mulher do que por este tesouro fabuloso que concebi esse plano horrível?

 

— Não; não o sabia.

 

— Pois é a verdade; pouco me importa a riqueza; sede meu amigo;

 

servi-me lealmente, e tereis a maior parte do meu tesouro.

 

— Falei; que quereis que eu faça?

 

— Um juramento; mas um juramento sagrado, terrível.

 

— Qual? Dizei!

 

— Hoje essa mulher me pertencerá; entretanto se por qualquer acaso

 

eu vier a morrer, quero que

 

O desconhecido hesitou.

 

— Quero que nenhum homem possa amá-la, que nenhum homem

 

possa gozar a felicidade suprema que ela pode dar.

 

— Mas como?

 

— Matando-a!

 

Rui sentiu um calafrio.

 

— Matando-a, para que a mesma cova receba nossos dois corpos; não sei por quê, mas parece-me que ainda cadáver, o contato dessa mulher deve ser para mim um gozo imenso.

 

— Loredano!... exclamou seu companheiro horrorizado.

 

— Sois meu amigo e sereis meu herdeiro! disse o italiano agarrando-lhe convulsivamente no braço. É a minha condição; se recusais, outro aceitará o tesouro que rejeitais!

 

O aventureiro estava em lata com dois sentimentos opostos; mas a ambição violenta, cega, esvairada, abafou o grito fraco da consciência.

 

— Jurais? perguntou Loredano.

 

— Juro!... respondeu Rui com a voz estrangulada.

 

— Avante então!

 

Loredano abriu a porta do seu cubículo, e voltou algum tempo depois trazendo uma tábua longa e estreita que colocou sobre o despenhadeiro como uma espécie de ponte suspensa.

 

— Ides segurar esta tábua, Rui. Entrego em vossas mãos a minha vida, e nisto dou-vos a maior prova de confiança. Basta que deixeis esta prancha mover-se para que eu me precipite sobre os rochedos.

 

O italiano achava-se então no mesmo lugar que na noite da chegada, algumas braças distante da janela de Cecília, onde não podia chegar por causa do ângulo que formavam o rochedo e o edifício.

 

A tábua foi colocada na direção da janela; a primeira vez tinha-lhe bastado o seu punhal; agora também necessitava de um apoio seguro, e do livre movimento de seus braços. Rui colocou-se sobre a ponta da tábua, e segurando-se a um frechal do alpendre manteve imóvel sobre o precipício essa ponte pênsil em que o italiano ia arriscar-se.

 

Quanto a este, sem hesitar, tirou as suas armas para ficar mais leve, descalçou-se, segurou a longa faca entre os dentes, e pôs o pé sobre a prancha.

 

— Esperar-me-eis do outro lado, disse o italiano.

 

— Sim, respondeu Rui com voz trêmula.

 

A razão por que a voz de Rui tremia, era um pensamento diabólico que começava a fermentar no seu espírito. Lembrou-lhe que tinha na mão Loredano e o seu segredo; que para ver-se livre de um e senhor do outro, bastava afastar o pé e deixar a tábua inclinar sobre o abismo.

 

Entretanto hesitava; não que o remorso antecipado lhe exprobrasse o crime que ia cometer; já tinha-se afundado muito no vício e na depravação para recuar. Mas o italiano exercia sobre os seus cúmplices tal prestigio e influência tão poderosa, que Rui não podia mesmo nesse momento esquivar-se a ela.

 

Loredano estava suspenso sobre o abismo pela sua mão; podia salvá-lo ou precipitá-lo no despenhadeiro; e contudo dessa posição ainda ele impunha respeito ao aventureiro.

 

Rui tinha medo: não compreendia o motivo desse terror irresistível; mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo.

 

No entanto a imagem da riqueza esplêndida, brilhante, radiando galas e luzimentos, passava diante de seus olhos e o deslumbrada; um pouco de coragem, e seria o único senhor do tesouro fabuloso, cujo era o italiano depositário do segredo.

 

Mas coragem é o que lhe faltava; por duas ou três vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspender-se ao frechal, e deixar a tábua rolar no abismo; não passou de um desejo.

 

Venceu afinal a tentação.

 

Teve um momento de desvario: os joelhos acurvaram-se; a tábua sofreu uma oscilação tão forte, que Rui admirou-se de como o italiano se tinha podia suster.

 

Então o medo desapareceu; foi substituído por uma espécie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro; o primeiro esforço lhe dera a ousadia, como a vista do sangue excita a fera.

 

Um segundo abalo mais forte agitou a tábua, que oscilou à borda do rochedo; porém não se ouviu o baque de um corpo; não se ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra. Rui, desesperado, ia soltar a prancha, quando chegou-lhe ao ouvido, abafada e sumida, a voz do italiano, que apenas se percebia no silêncio profundo da noite.

 

— Estais cansado, Rui?... Podeis tirar a tábua; não preciso mais dela.

 

O aventureiro ficou espavorido; decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo, e escarnecia do perigo; um ente superior a quem a morte não podia tocar.

 

Ele ignorava que Loredano, com a sua previdência ordinária, quando entrara no seu cubículo para tirar a prancha, tivera o cuidado de passar por um caibro do alpendre, que era de telha-vã, a ponta de uma longa corda, que caiu sobre a parte de fora da parede uma braça distante da janela de Cecília.

 

Assim, apenas deu o primeiro passo sobre a ponte improvisada, o italiano não se descuidou de estender o braço e agarrar a ponta da corda, que logo atou à cintura; então se o apoio lhe faltasse, ficaria suspenso no ar, e, embora com mais dificuldade, realizaria o seu intento.

 

Foi por isso que os dois abalos produzidos pelo seu cúmplice não tiveram o resultado que ele esperava; logo do primeiro, Loredano adivinhou o que se passava na alma de Rui; mas não querendo dar-lhe a perceber que conhecia a sua traição, serviu-se de um meio indireto para dizer-lhe que estava em segurança, e que era inútil a tentativa de precipitá-lo.

 

A tábua não fez mais um só movimento; conservou-se imóvel como se estivera solidamente pregada ao rochedo.

 

Loredano adiantou-se, tocou a janela da moça, e com a ponta da faca conseguiu levantar a aldraba; as gelosias abrindo-se afastaram as cortinas de cassa que vendavam o asilo do pudor e da inocência.

 

Cecília dormia envolta nas alvas roupas do seu leito; sua cabecinha loura aparecia entre as rendas finíssimas sobre as quais se desenrolavam os lindos anéis dourados de seus cabelos. O doce amortecimento de um sono calmo e sereno vendava seu rosto gracioso, como a sombra esvaecida que desmaia o semblante das virgens de Murilo; seu sorriso era apenas enlevo.

 

O talho de sua anágua abrindo-se deixava entrever um colo de linhas puras, mais alvo do que a cambraia; e com a ondulação que a respiração branda imprimia ao seu peito, desenhavam-se sob a lençaria diáfana os seios mimosos.

 

Tudo isto ressaltava como um quadro dentre as ondas de uma colcha de damasco azul que nas suas largas dobras moldava sobre a alvura transparente do linho os contornos harmoniosos e puros.

 

Havia porém nessa beleza adormecida uma expressão indefinível, um quer que seja de tão casto e inocente, que envolvia essa menina no seu sono tranqüilo e parecia afugentar dela um pensamento profano.

 

Chegando-se à beira daquele leito, um homem ajoelharia antes como ao pé de uma santa, do que se animaria a tocar na ponta dessas roupagens brancas que protegiam a inocência.

 

Loredano aproximou-se, tremendo, pálido e ofegante; toda a força de sua vigorosa organização, toda a sua vontade poderosa e irresistível, estava ai vencida, subjugada, diante de uma menina adormecida. O que sentiu quando seu olhar ardente caiu sobre o leito, é difícil dizer, é talvez mesmo difícil de compreender. Foi a um tempo suprema ventura e horrível suplício.

 

A paixão brutal o devorava escaldando-lhe o sangue nas veias e fazendo saltar-lhe o coração; entretanto o aspecto dessa menina que não tinha para sua defesa senão a sua castidade, o encadeava.

 

Sentia que o fogo queimava-lhe o seio; sentia que seus lábios tinham sede de prazer; e a mão gelada e inerte, não se podia erguer, e o corpo estava paralisado; apenas o olhar cintilava e as narinas dilatadas aspiravam as emanações voluptuosas de que estava impregnada a sua atmosfera.

 

E a menina sorria no seu plácido sono enleando-se talvez nalgum sonho gracioso, nalgum dos sonhos azuis que Deus esparge como folhas de rosas sobre o leito das virgens.

 

Era o anjo em face do demônio; era a mulher em face da serpente; a virtude em face do vício.

 

O italiano fez um esforço supremo, e passando a mão pelos olhos como para arrancar uma visão importuna, encaminhou-se a um bufete e acendeu uma vela de cera cor-de-rosa.

 

O aposento, até então esclarecido apenas por uma lamparina colocada sobre uma cantoneira, iluminou-se; e a imagem graciosa de Cecília apareceu cercada de uma auréola.

 

Sentindo a impressão da luz sobre os olhos, a menina fez um movimento, e voltando um pouco o rosto para o lado oposto continuou o sono, que nem fora interrompido.

 

Loredano passou entre o leito e a parede, e pôde então admirá-la em toda a sua beleza; não se lembrava de nada mais, esquecera o mundo e seu tesouro: nem pensava no rapto que ia praticar.

 

A rolinha que dormia sobre a cômoda no seu ninho de algodão ergueu-se e agitou as asas; o italiano, despertado por este rumor, conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a perder.

 

 IV NA TREVA

 Alguns esclarecimentos são necessários aos acontecimentos que acabavam de passar.

 

Quando Loredano viu-se obrigado pela ameaça de Álvaro a partir para o Rio de Janeiro, ficou sucumbido; mas, depois de alguns momentos, um sorriso diabólico tinha enrugado os seus lábios.

 

Este sorriso era uma idéia infame que luzira no seu espírito como a flama desses fogos perdidos que brilham no seio das trevas em noites de grande calma.

 

O italiano lembrou-se que no momento em que todos o supunham em viagem, podia preparar a execução do seu plano que ele realizaria naquela mesma noite.

 

Na conversa que tivera com Rui Soeiro transmitiu-lhe as suas instruções, breves, simples e concisas; consistiam em livrarem-se dos homens que podiam pôr embaraços à sua empresa.

 

Para isso os seus cúmplices receberam ordem de quando se recolhessem para dormir, colocarem-se ao lado de cada um dos homens da banda fiéis a D. Antônio de Mariz.

 

Naquele tempo e naqueles lugares não era possível que os aventureiros tivessem cada um o seu cubículo; poucos gozavam desse privilégio, e assim mesmo eram obrigados a partilhar o seu aposento com um companheiro: os outros dormiam na vasta alpendrada que ocupava quase toda essa parte do edifício.

 

Rui Soeiro tinha, conforme as instruções de Loredano, arranjado as coisas de tal modo que naquele momento cada um dos aventureiros dedicados a D. Antônio de Mariz tinha a seu lado um homem que parecia adormecido, e que só esperava ouvir pronunciar a senha convencionada para enterrar o seu punhal na garganta do seu companheiro.

 

Ao mesmo tempo havia pelos cantos da casa grandes molhos de palha seca colocados junto das portas ou metidos pela beirada do telhado, e que só esperavam uma faisca para atear o incêndio em todo o edifício.

 

Rui Soeiro, com uma sagacidade e uma prudência dignas de seu chefe, dispusera tudo isto; parte durante o dia, e parte nas horas mortas da noite em que tudo estava recolhido.

 

Não se esqueceu da recomendação especial de Loredano, e ofereceu-se voluntariamente a Aires Gomes para fazer a guarda noturna com um dos seus companheiros, visto recear-se ataque do inimigo; o digno escudeiro que o conhecia como um dos mais valentes da banda, caiu no laço e aceitou o oferecimento.

 

Senhor do campo, o aventureiro pôde então acabar livremente seus preparativos, e para mais segurança arranjou traça de ver-se livre do escudeiro, que podia de um momento para outro vir incomodá-lo.

 

Aires Gomes em companhia de seu velho amigo mestre Nunes esvaziava uma botelha de vinho de Valverde, que eles bebiam lentamente, trago a trago, para assim disfarçarem a módica porção do liquido destinado a umedecer as goelas de dois formidáveis bebedores.

 

Mestre Nunes aplicou voluptuosamente os lábios à borda do canjirão, tomou uma vez de vinho, e dando um ligeiro estalinho com a língua no céu da boca, repimpou-se na tripeça em que estava sentado, cruzando as mãos sobre o seu ventre proeminente com uma beatitude celeste.

 

— Ora estou desde que cheguei para perguntar-vos uma coisa, amigo Aires; e sempre a passar.

 

— Não a deixeis passar agora, Nunes. Aqui me tendes para responder-vos

 

— Dizei-me cá, quem é um tal que acompanhava D. Diogo, e a quem dais um diabo de nome que não é português?

 

— Ah! quereis falar de Loredano? Um tunante?

 

— Conheceis esse homem, Aires?

 

— Por Deus! se ele é dos nossos!

 

— Quando pergunto se o conheceis, quero dizer se sabeis donde veio, quem era e o que fazia?

 

— À fé que não! Apareceu-nos aqui um dia a pedir hospitalidade; e depois como saísse um homem, ficou em lagar dele.

 

— E quando isso, se vos lembra?

 

— Esperai! Estou com os meus cinqüenta e nove...

 

O escudeiro contou pelos dedos consultando o seu calendário, que era a sua idade.

 

— Foi por este tempo, há um ano; princípios de março.

 

— Estais bem certo? exclamou mestre Nunes.

 

— Certíssimo; é conta que não engana. Mas que tendes?

 

Com efeito mestre Nunes se erguera espantado.

 

— Nada! Não é possível!

 

— Não acreditais?

 

— É outra coisa, Aires! É um sacrilégio! uma obra de Satã! uma simonia horrenda!

 

— Que dizeis, homem, explicai-vos lá de uma vez.

 

Mestre Nunes conseguiu restabelecer-se da sua perturbação e contou ao escudeiro as suas desconfianças a respeito de Frei Ângelo di Luca e da sua morte, que nunca fora possível explicar: notou-lhe a coincidência do desaparecimento do carmelita com o aparecimento do aventureiro, e o fato de serem da mesma nação.

 

— Depois, concluiu Nunes, aquela voz, aquele olhar!... quando o vi hoje, estremeci, e recuei espavorido julgando que o frade tinha saído de baixo da terra.

 

Aires Gomes levantou-se furioso, e saltando sobre o seu catre, agarrou o espadão que tinha à cabeceira.

 

— Que ides fazer? gritou mestre Nunes.

 

— Matá-lo e desta vez às direitas; que não torne.

 

— Esqueceis que vai longe?

 

— É verdade, murmurou o escudeiro rangendo os dentes de raiva.

 

Ouviu-se um ligeiro rumor na porta; os dois amigos o atribuíram ao vento e não se voltaram; sentados em face um do outro, continuaram em voz baixa a sua conversa interrompida pela brusca revelação de Nunes.

 

Entretanto fora passavam-se coisas que deviam excitar a atenção do digno escudeiro. O rumor que ouvira fora produzido pela volta que Rui dera à chave, fechando a porta.

 

O aventureiro tinha ouvido toda a conversa; a princípio aterrado, cobrou animo, e lembrou-se que em todo o caso era bom estar senhor do segredo do italiano para qualquer emergência futura. Confiado nessa excelente idéia, Rui meteu a chave no peito do gibão e foi reunir-se a seu companheiro que estava de vigia junto da escada.

 

Esperava por Loredano, que devia entrar na casa alta noite, para dirigir toda essa trama que havia urdido com uma inteligência superior.

 

O italiano tinha facilmente iludido a D. Diogo de Mariz; sabia que o ardente cavalheiro ia de rota batida, e que não se demoraria em caminho por motivo algum.

 

As três léguas do Paquequer, inventou um pretexto de ter-se quebrado a cilha de sua cavalgadura e parou para arranjá-la; enquanto D. Diogo e seus companheiros pensavam que os seguia de perto, ele tinha voltado sobre os passos, e escondido nas vizinhanças, esperava que a noite se adiantasse.

 

Quando percebeu que tudo estava em silêncio, aproximou-se; trocou o sinal convencionado, que era o canto de coruja; e introduziu-se furtivamente na habitação.

 

O mais já vimos. Sabendo que tudo estava preparado e pronto ao primeiro sinal, Loredano deu começo à execução de seu projeto e conseguiu penetrar no quarto de Cecília.

 

Tomar a menina nos braços, raptá-la, atravessar a esplanada, chegar à porta da alpendrada, e pronunciar a senha convencionada, era coisa que ele contava realizar num momento.

 

Quando Cecília arrancada do seu leito lançasse um grito que ele não pudesse abafar, isto pouco lhe importava; antes que alguém despertasse, teria chegado ao outro lado, e então a uma palavra sua o fogo e o ferro viriam em seu socorro.

 

Rui lançaria a chama à palha preparada para esse fim; e a faca de cada um dos seus cúmplices se enterraria na gorja dos homens adormecidos.

 

Depois, no meio desse horror e confusão, os vinte demônios acabariam a sua obra, e fugiriam como os maus espíritos das lendas antigas, quando a primeira luz da alvorada terminava o sabbat infernal.

 

Iam ao Rio de Janeiro; ai, ligados todos por um mesmo laço do crime, por um mesmo perigo e uma só ambição, Loredano contava ter neles agentes fiéis e dedicados para levar a cabo a sua empresa.

 

Enquanto a traição solapava assim o sossego, a felicidade, a vida e a honra dessa família, todos dormiam tranqüilos e descuidados; nem um pressentimento os vinha advertir da desgraça que os ameaçava.

 

Loredano, graças à sua agilidade e à sua força, tinha conseguido chegar até ao leito da menina, sem que o menor rumor traísse a sua presença, sem que na habitação alguém tivesse podido perceber o que se passava.

 

Certo pois do resultado, o italiano advertido pela inocente avezinha, que não sabia o mal que fazia, cuidou em consumar a sua obra. Abriu a cômoda de Cecília, tirou roupas de seda e linho e fez de tudo isso um embrulho tão pequeno quanto era possível; depois envolveu-o em uma das peles que serviam de tapete, e colocou numa cadeira, a jeito de o poder apanhar com facilidade.

 

Era coisa original o pensamento deste homem. Ao passo que cometia um crime, tinha a lembrança delicada de querer suavizar a desgraça da menina fazendo que nada lhe faltasse na viagem incômoda que tinha de fazer.

 

Quando tudo estava preparado, abriu a portinha que dava para o jardim, e estudou o caminho que tinha de seguir. Era preciso; porque apenas tomasse Cecília nos braços devia partir e chegar de uma só corrida, direita, rápida e cega.

 

A porta ficava num canto do aposento, defronte do vão que havia entre o leito e a parede; colocado nesse lagar não tinha senão um movimento a fazer, agarrar a menina e lançar-se fora do aposento.

 

Na ocasião em que ele se aproximava, ouviu-se um gemido, quase um suspiro,- abafado e cheio de angústia.

 

Os cabelos eriçaram-se sobre a fronte do italiano; gotas de suor frio e gelado sulcaram as suas faces pálidas e contraídas.

 

A pouco e pouco foi saindo do estupor que o paralisara, e volvendo lentamente ao redor de si uns esgares de olhos alucinados.

 

Nada! Nem um inseto parecia acordado na solidão profunda da noite em que tudo dormia exceto o crime, o verdadeiro duende da terra, o mau gênio das crenças de nossos pais.

 

Tudo estava em sossego; até o vento parecia se ter abrigado no cálice das flores e adormecido nesse berço perfumado, como num regaço de amante.

 

O italiano restabeleceu-se do violento abalo que sofrera, deu um passo, e inclinou-se sobre o leito.

 

Cecília sonhava nesse momento.

 

Seu rosto esclareceu-se com uma expressão de alegria angélica; sua mãozinha, que repousava aninhada entre os seios, moveu-se com a indolência e a moleza do sono e recaiu sobre a face.

 

A pequena cruz de esmalte que tinha ao colo e que estava agora presa entre os dedos da mão, roçou-lhe os lábios; e uma música celeste escapou-se, como se Deus tivesse vibrado uma das cordas de sua harpa eólia.

 

Foi a princípio um sorriso que adejou-lhe nos lábios; depois o sorriso colheu as asas e formou um beijo, por fim o beijo entreabriu-se como uma flor e exalou um suspiro perfumado.

 

— Peri!

 

O colo arfou docemente, e a mão descaindo foi de novo aninhar-se entre o talho da sua anágua de cambraia.

 

O italiano ergueu-se pálido.

 

Não se animava a tocar naquele corpo tão casto, tão puro; não podia fitar aquela fisionomia radiante de inocência e de candura.

 

Mas o tempo urgia.

 

Fez um esforço supremo sobre si mesmo; firmou o joelho à borda do leito, fechou os olhos e estendeu as mãos.

 

 V DEUS DISPÕE

 O braço de Loredano estendeu-se sobre o leito; porém a mão que se adiantava e ia tocar o corpo de Cecília estacou no meio do movimento, e subitamente impelida foi bater de encontro à parede.

 

Uma seta, que não se podia saber de onde vinha, atravessara o espaço com a rapidez de um raio, e antes que se ouvisse o sibilo forte e agudo pregara a mão do italiano ao muro do aposento.

 

O aventureiro vacilou e abateu-se por detrás da cama; era tempo, porque uma segunda seta, despedida com a mesma força e a mesma rapidez, cravava-se no lugar onde há pouco se projetava a sombra de sua cabeça.

 

Passou se então, ao redor da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura, uma cena horrível, porem silenciosa.

 

Loredano nos transes da dor por que passava, compreendera o que sucedia; tinha adivinhado naquela seta que o ferira a mão de Peri; e sem ver, sentia o índio aproximar se terrível de ódio, de vingança, de cólera e desespero pela ofensa que acabava de sofrer sua senhora.

 

Então o réprobo teve medo; erguendo-se sobre os joelhos arrancou convulsivamente com os dentes a seta que pregava sua mão à parede, e precipitou-se para o jardim, cego, louco e delirante.

 

Nesse mesmo instante, dois segundos talvez depois que a última flecha caíra no aposento, a folhagem do óleo que ficava fronteiro à janela de Cecília agitou-se e um vulto embalançando-se sobre o abismo, suspenso por um frágil galho da árvore, veio cair sobre o peitoril.

 

Aí agarrando-se à ombreira saltou dentro do aposento com uma agilidade extraordinária; a luz dando em cheio sobre ele desenhou o seu corpo flexível e as suas formas esbeltas.

 

Era Peri.

 

O índio avançou-se para o leito, e vendo sua senhora salva respirou; com efeito a menina, a meio despertada pelo rumor da fugida de Loredano, voltara-se do outro lado e continuara o sono forte e reparador como é sempre o sono da juventude e da inocência.

 

Peri quis seguir o italiano e matá-lo, como já tinha feito aos seus dois cúmplices; mas resolveu não deixar a menina exposta a um novo insulto, como o que acabava de sofrer, e tratou antes de velar sobre sua segurança e sossego.

 

O primeiro cuidado do índio foi apagar a vela, depois fechando os olhos aproximou-se do leito e com uma delicadeza extrema puxou a colcha de damasco azul até ao colo da menina.

 

Parecia-lhe uma profanação que seus olhos admirassem as graças e os encantos que o pudor de Cecília trazia sempre vendados; pensava que o homem que uma vez tivesse visto tanta beleza, nunca mais devia ver a luz do dia.

 

Depois desse primeiro desvelo, o índio restabeleceu a ordem no aposento; deitou a roupa na cômoda, fechou a gelosia e as abas da janela, lavou as nódoas de sangue que ficaram impressas na parede e no soalho; e tudo isto com tanta solicitude, tão sutilmente, que não perturbou o sono da menina.

 

Quando acabou o seu trabalho, aproximou-se de novo do leito, e à luz frouxa da lamparina contemplou as feições mimosas e encantadoras de Cecília.

 

Estava tão alegre, tão satisfeito de ter chegado a tempo de salvá-la de uma ofensa e talvez de um crime; era tão feliz de vê-la tranqüila e risonha sem ter sofrido o menor susto, o mais leve abalo, que sentiu a necessidade de exprimir-lhe por algum modo a sua ventura.

 

Nisto seus olhos abaixando-se descobriram sobre o tapete da cama dois pantufos mimosos forrados de cetim e tão pequeninos que pareciam feitos para os pés de uma criança; ajoelhou e beijou-os com respeito, como se foram relíquia sagrada.

 

Eram então perto de quatro horas; pouco tardava para amanhecer; as estrelas já iam se apagando a uma e uma; e a noite começava a perder o silêncio profundo da natureza quando dorme.

 

O índio fechou por fora a porta do quarto que dava para o jardim, e metendo a chave na cintura, sentou-se na soleira como cão fiel que guarda a casa de seu senhor, resolvido a não deixar ninguém aproximar-se.

 

Aí refletiu sobre o que acabava de passar; e acusava-se a si mesmo de ter deixado o italiano penetrar no aposento de sua senhora: Peri porem caluniava-se, porque só a Providência podia ter feito nessa noite mais do que ele; porque tudo quanto era possível à inteligência, à coragem, à sagacidade e à força do homem, o índio havia realizado.

 

Depois da partida de Loredano e da conversa que teve com Álvaro, certo de que sua senhora já não corria perigo, e de que os dois cúmplices do italiano iam ser expulsos como ele, o índio não pensando mais senão no ataque dos Aimorés, partiu imediatamente.

 

O seu pensamento era ver se descobria pelas vizinhanças do Paquequer indícios da passagem de alguma tribo da grande raça Guarani a que ele pertencia; seria um amigo e um aliado para D. Antônio de Mariz.

 

O ódio inveterado que havia entre as tribos da grande raça e a nação degenerada dos Aimorés, justificava a esperança de Peri; mas infelizmente, tendo percorrido todo o dia a floresta, não encontrou o menor vestígio do que procurava.

 

O fidalgo estava pois reduzido às suas próprias forças: mas embora fossem estas pequenas, o índio não desanimou; tinha consciência de si; e sabia que na última extremidade a sua dedicação por Cecília lhe inspiraria meios de salvar a ela e a tudo que ela amava.

 

Voltou à casa já noite fechada; foi ter com Álvaro; perguntou-lhe o que era feito dos dois aventureiros; o cavalheiro disse-lhe que D. Antônio de Mariz recusara crer na acusação.

 

De fato, o fidalgo leal, habituado ao respeito e à fidelidade de seus homens, não admitia que se concebesse uma suspeita sem provas; entretanto como a palavra de Peri tinha para ele toda a valia, ficara de ouvir de sua boca a narração do que presenciara, para conhecer o peso que devia dar a semelhante acusação.

 

Peri retirou-se inquieto e arrependido de não ter persistido no seu primeiro projeto; enquanto esses dois homens que ele supunha já expulsos estivessem ali, sabia que um perigo pairava sobre a casa.

 

Assim resolveu não dormir; tomou o seu arco e sentou-se na porta de sua cabana; apesar de possuir a clavina que lhe dera D. Antônio, o arco era a arma favorita de Peri; não demandava tempo para carregar; não fazia o menor estrépito; lançava quase instantaneamente dois, três tiros: e a sua flecha era tão terrível e tão certeira como a bala.

 

Passado muito tempo o índio ouviu cantar uma coruja do lado da escada; esse canto causou-lhe estranheza por duas razões: a primeira, porque era mais sonoro do que é o cacarejar daquela ave agoureira; a segunda porque em vez de partir do cimo de uma árvore saia do chão.

 

Esta reflexão o fez levantar; desconfiou da coruja que tinha hábitos diferentes de suas companheiras; quis conhecer a razão desta singularidade.

 

Viu do outro lado da esplanada três vultos que atravessavam ligeiramente; isto aumentou a sua desconfiança; os homens de vigia eram ordinariamente dois e não três.

 

Seguiu-os de longe; mas quando chegou ao pátio, não viu senão um dos homens que entrava na alpendrada; os outros tinham desaparecido.

 

Peri procurou-os por toda a parte e não os viu; estavam ocultos pelo pilar que se elevava na ponta do rochedo, e não lhe era possível descobri-los.

 

Supondo que tivessem também entrado no alpendre, o índio agachou-se e penetrou no interior; de repente a sua mão tocou uma lamina fria que conheceu imediatamente ser a folha de um punhal.

 

— És tu, Rui? perguntou uma voz sumida.

 

Peri emudeceu; mas de chofre aquele nome de Rui lembrou-lhe Loredano e o seu projeto; percebeu que se tramava alguma coisa: e tomou um partido.

 

— Sim! respondeu com a voz quase imperceptível.

 

— Já é hora?

 

— Não.

 

— Todos dormem.

 

Enquanto trocavam estas duas perguntas, a mão de Peri correndo pela lâmina de aço tinha conhecido que outra mão segurava o cabo do punhal.

 

O índio saiu do alpendre e dirigiu-se ao quarto de Aires Gomes; a porta estava fechada, e junto dela tinham colocado um grande montão de palha.

 

Tudo isto denunciava um plano prestes a realizar-se; Peri compreendia, e tinha medo de já não ser tempo para destruir a obra dos inimigos.

 

Que fazia aquele homem deitado que fingia dormir, e que tinha o punhal desembainhado na mão como se estivesse pronto a ferir? Que significava aquela pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam? Que queria dizer a palha encostada à porta do escudeiro?

 

Não restava dúvida; havia ali homens que esperavam um sinal para matarem seus companheiros adormecidos, e deitarem fogo à casa; tudo estava perdido se o plano não fosse imediatamente destruído.

 

Cumpria acordar os que dormiam, preveni-los do perigo que corriam, ou ao menos prepará-los para se defenderem e escaparem de uma morte certa e inevitável.

 

O índio agarrou convulsivamente a cabeça com as duas mãos como se quisesse arrancar à força de seu espírito agitado e em desordem um pensamento salvador. Seu largo peito dilatou-se; uma idéia feliz luzira de repente na confusão de tantos pensamentos desencontrados que fermentavam no cérebro, e reanimara sua coragem e força.

 

Era uma idéia original.

 

Peri lembrara-se que o alpendre estava cheio de grandes talhas e vasos enormes contendo água potável, vinhos fermentados, licores selvagens, de que os aventureiros faziam sempre uma ampla provisão.

 

Correu de novo ao saguão, e encontrando a primeira talha tirou a torneira; o liquido começou a derramar-se pelo chão; ia passar à segunda quando a voz, que já lhe tinha falado, soou de novo, baixa mas ameaçadora.

 

— Quem vai lá?

 

Peri compreendeu que a sua idéia ia ficar sem efeito, e talvez não servisse senão de apressar o que ele queria evitar.

 

Não hesitou pois; e quando o aventureiro que falava erguia-se, sentiu duas tenazes vivas que caiam sobre o seu pescoço e o estrangulavam como uma golilha de ferro, antes que pudesse soltar um grito.

 

O índio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer o menor rumor, e consumou a sua obra; todas as talhas do alpendre esvaziaram se a pouco e pouco e inundavam o chão.

 

Dentro de um segundo a frialdade acordaria todos os homens adormecidos, e os obrigaria a sair do alpendre; era o que Peri esperava.

 

Livre do maior perigo, o índio rodeou a casa para ver se tudo estava em sossego; e teve então ocasião de notar que por todo o edifício tinham disposto feixes de palha para atear um incêndio.

 

Peri inutilizando estes preparativos, chegou ao canto da casa que ficava defronte de sua cabana; parecia procurar alguém. Aí ouviu a respiração ofegante de um homem cosido com a parede junto do jardim de Cecília.

 

O índio tirou a sua faca; a noite estava tão escura que era impossível descobrir a menor sombra, o menor vulto entre as trevas.

 

Mas ele conheceu Rui Soeiro.

 

Peri tinha o ouvido sutil e delicado, e o faro do selvagem que dispensa a vista; o som da respiração servia-lhe de alvo; escutou um momento, ergueu o braço, e a faca enterrando-se na boca da vitima cortou-lhe a garganta.

 

Nem um gemido escapou da massa inerte que se estorceu um momento e quedou de encontro ao muro.

 

Peri apanhou o arco que encostara à parede, e voltando-se para lançar um olhar sobre o quarto de Cecília, estremeceu.

 

Acabava de ver pela soleira da porta o reflexo vivo de uma luz; e logo depois sobre a folhagem do óleo um clarão que indicava estar a janela aberta.

 

Ergueu os braços com um desespero e uma angústia inexprimível; estava a dois passos de sua senhora e entretanto um muro e uma porta o separavam dela, que talvez àquela hora corria um perigo iminente.

 

Que ia fazer? Precipitar-se de encontro a essa porta, quebrá-la, espedaçá-la? Mas podia aquela luz não significar coisa alguma, e a janela ter sido aberta por Cecília.

 

Este último pensamento tranqüilizou-o, tanto mais quando nada revelava a existência de um perigo, quando tudo estava em sossego no jardim e no quarto da menina.

 

Lançou-se para a cabana, e segurando-se às folhas da palmeira galgou o ramo do óleo, e aproximou-se para ver por que sua senhora estava acordada àquela hora.

 

O espetáculo que se apresentou diante de seus olhos fez correr-lhe um calafrio pelo corpo; a gelosia aberta deixou-lhe ver a menina adormecida, e o italiano que tendo aberto a porta do jardim dirigia-se ao leito.

 

Um grito de desespero e de agonia ia romper-lhe do seio; mas o índio mordendo os lábios com força, reprimiu a voz, que se escapou apenas num som rouco e plangente. Então prendendo-se à árvore com as pernas, o índio estendeu-se ao longo do galho e esticou a corda do arco.

 

O coração batia-lhe violentamente; e por um momento o seu braço tremeu só com a idéia de que a sua flecha tinha de passar perto de Cecília.

 

Quando porém a mão do italiano se adiantou e ia tocar o corpo da menina, não pensou, não viu mais nada senão esses dedos prestes a mancharem com o seu contato o corpo de sua senhora, não se lembrou senão dessa horrível profanação.

 

A flecha partiu rápida, pronta e veloz como o seu pensamento; a mão do italiano estava pregada ao muro.

 

Foi só então que Peri refletiu que teria sido mais acertado ferir essa mão na fonte da vida que a animava; fulminar o corpo a que pertencia esse braço; a segunda seta partiu sobre a primeira, e o italiano teria deixado de existir se a dor não o obrigara a curvar-se.

 

 VI REVOLTA

 Quando Peri acabou de refletir sobre o que passara, ergueu-se, abriu de novo a porta, fechou-a por dentro e seguiu pelo corredor que ia do quarto de Cecília ao interior da casa.

 

Estava tranqüilo sobre o futuro; sabia que Bento Simões e Rui Soeiro não o incomodariam mais, que o italiano não lhe podia escapar, e que àquela hora todos os aventureiros deviam estar acordados; mas julgou prudente prevenir D. Antônio de Mariz do que ocorria.

 

A esse tempo Loredano já tinha chegado à alpendrada, onde o esperava uma nova e terrível surpresa, uma última decepção.

 

Lançando-se do quarto de Cecília, sua intenção era ganhar o fundo da casa, pronunciar a senha convencionada, e senhor do campo voltar com seus cúmplices, raptar a menina, e vingar-se de Peri.

 

Mal sabia porém que o índio tinha destruído toda a sua maquinação; chegando ao pátio viu o alpendre iluminado por fachos, e todos os aventureiros de pé cercando um objeto que não pôde distinguir.

 

Aproximou-se e descobriu o corpo de seu cúmplice Bento Simões, que jazia no chão alagado do pavimento: o aventureiro tinha os olhos saltados das órbitas, a língua saída da boca, o pescoço cheio de contusões; todos os sinais enfim de uma estrangulação violenta.

 

De lívido que estava o italiano tornou-se verde; procurou com os olhos a Rui Soeiro e não o viu; decididamente o castigo da Providência caia sobre as suas cabeças; conheceu que estava irremediavelmente perdido, e que só a audácia e o desespero o podiam salvar.

 

A extremidade em que se achava inspirou-lhe uma idéia digna dele: ia tirar partido para seus fins daquele mesmo fato que parecia destruí-los; ia fazer do castigo uma arma de vingança.

 

Os aventureiros espantados sem compreenderem o que viam, olhavam-se e murmuravam em voz baixa fazendo suposições sobre a morte do seu companheiro. Uns, despertados de sobressalto pela água que corria das talhas, outros que não dormiam, apenas admirados, se haviam erguido, e no meio de um coro de imprecações e blasfêmias acenderam fachos para ver a causa daquela inundação.

 

Foi então que descobriram o corpo de Bento Simões e ficaram ainda mais surpreendidos: os cúmplices, temendo que aquilo não fosse um começo de punição, os outros indignados pelo assassinato de seu companheiro.

 

Loredano percebeu o que passava no espírito dos aventureiros:

 

— Não sabeis o que significa isto? disse ele.

 

— Oh! não! explicai-nos! exclamaram os aventureiros.

 

— Isto significa, continuou o italiano, que há nesta casa uma víbora, uma serpente que nós alimentamos no nosso seio, e que nos morderá a todos com o seu dente envenenado.

 

— Como?... Que quereis dizer?... Falai!...

 

— Olhai, disse o frade apontando para o cadáver e mostrando a sua mão ferida; eis a primeira vítima, e a segunda que escapou por um milagre; a terceira... Quem sabe o que é feito de Rui Soeiro?

 

— É verdade!... onde está Rui? disse Martim Vaz.

 

— Talvez morto também?

 

— Depois dele virá outro e outro até que sejamos exterminados um por um; até que todos os cristãos tenham sido sacrificados.

 

— Mas por quem?... Dizei o nome do vil assassino. É preciso um exemplo! O nome!...

 

— E não adivinhais? respondeu o italiano. Não adivinhais? quem nesta casa pode desejar a morte dos brancos, e a destruição da nossa religião? Quem senão o herege, o gentio, o selvagem traidor e infame?

 

— Peri?... exclamaram os aventureiros.

 

— Sim, esse índio que conta assassinar-nos a todos para saciar a sua vingança!

 

— Não há de ser assim como dizeis, eu vos juro, Loredano! exclamou Vasco Afonso.

 

— Bofé! gritou outro, deixai isto por minha conta. Não vos dê cuidado!

 

— E não passa desta noite. O corpo de Bento Simões pede justiça.

 

— E justiça será feita.

 

— Neste mesmo instante.

 

— Sim, agora mesmo. Eia! Segui-me.

 

Loredano ouvia estas exclamações rápidas que denunciavam como a exacerbação ia lavrando com intensidade; quando porém os aventureiros quiseram lançar-se em procura do índio, ele os conteve com um gesto.

 

Não lhe convinha isto; a morte de Peri era coisa acidental para ele; o seu fim principal era outro, e esperava consegui-lo facilmente.

 

— O que ides fazer? perguntou imperativamente aos seus companheiros.

 

Os aventureiros ficaram pasmados com semelhante pergunta.

 

— Ides matá-lo?...

 

— Mas decerto!

 

— E não sabeis que não podereis fazê-lo? Que ele é protegido, amado, estimado por aqueles que pouco se importam se morremos ou vivemos?

 

— Seja embora protegido, quando é criminoso...

 

— Como vos iludis! Quem o julgará criminoso? Vós? Pois bem; outros julgarão inocente e o defenderão; e não tereis remédio senão curvar a cabeça e calar-vos.

 

— Oh! isso é demais!

 

— Julgais que somos alimárias que se podem matar impunemente? retrucou Martim Vaz.

 

— Sois piores que alimárias; sois escravos!

 

— Por São Brás, tendes razão, Loredano.

 

— Vereis morrer vossos companheiros assassinados infamemente, e não podereis vingá-los; e sereis obrigado a tragar até as vossas queixas, porque o assassino é sagrado! Sim, não o podereis tocar, repito.

 

— Pois bem; eu vo-lo mostrarei!

 

— E eu! gritou toda a banda.

 

— Qual é vossa tenção? perguntou o italiano.

 

— A nossa tenção é pedirmos a D. Antônio de Mariz que nos entregue o assassino de Bento.

 

— Justo! E se ele recusar, estamos desligados do nosso juramento e faremos justiça pelas nossas mãos.

 

— Procedeis como homens de brio e pundonor; liguemo-nos todos e vereis que obteremos reparação; mas para isto é preciso firmeza e vontade. Não percamos tempo. Quem de vós se incumbe de ir como parlamentário a D. Antônio?

 

Um aventureiro dos mais audazes e turbulentos da banda ofereceu-se; chamava-se João Feio.

 

— Serei eu!

 

— Sabeis o que lhe deveis dizer?

 

— Oh! ficai descansado. Ouvirá boas.

 

— Ides já?

 

— Neste instante.

 

Uma voz calma, sonora e de grave entonação, uma voz que fez estremecer todos os aventureiros, soou na entrada do alpendre:

 

— Não é preciso irdes, pois que vim Aqui me tendes.

 

D. Antônio de Mariz, calmo e impassível, adiantou-se até o meio do grupo, e cruzando os braços sobre o peito, volveu lentamente pelos aventureiros o seu olhar severo.

 

O fidalgo não tinha uma só arma; e entretanto o aspecto de sua fisionomia venerável, a firmeza de sua voz e altivez de seu gesto nobre bastaram para fazer curvar a cabeça de todos esses homens que ameaçavam.

 

Advertido por Peri dos acontecimentos que tinham tido lagar naquela noite, D. Antônio de Mariz ia sair, quando apareceram Álvaro e Aires Gomes.

 

O escudeiro, que depois de sua conversa com mestre Nunes tinha adormecido, fora despertado de repente pelas imprecações e gritos que soltavam os aventureiros quando a água começou a invadir as esteiras em que estavam deitados.

 

Admirado desse rumor extraordinário, Aires bateu o fuzil, acendeu a vela, e dirigiu-se para a porta para conhecer o que perturbava o seu sono: a porta, como sabemos, estava fechada e sem chave.

 

O escudeiro esfregou os olhos para certificar-se do que via, e acordando Nunes, perguntou-lhe quem tomara aquela medida de precaução; seu amigo ignorava como ele.

 

Nesse momento ouvia-se a voz do italiano que excitava os aventureiros à revolta; Aires Gomes percebeu então do que se tratava.

 

Agarrou mestre Nunes, encostou-o à parede como se fosse uma escada, e sem dizer palavra trepou do catre sobre seus ombros, e levantando as telhas com a cabeça enfiou por entre as ripas dos caibros.

 

Apenas ganhou o telhado, o escudeiro pensou no que devia fazer; e assentou que o verdadeiro era dar parte a Álvaro e ao fidalgo, a quem cabia tomar as providências que o acaso pedia.

 

D. Antônio de Mariz sem se perturbar ouviu a narração do escudeiro, como tinha ouvido a do índio.

 

— Bem, meus amigos! sei o que me cumpre fazer. Nada de rumor; não perturbemos o sossego da casa; estou certo que isto passará. Esperai-me aqui.

 

— Não posso deixar que vos arrisqueis só, disse Álvaro dando um passo para segui-lo.

 

— Ficai: vós e estes dois amigos dedicados velareis sobre minha mulher, Cecília e Isabel. Nas circunstâncias em que nos achamos, assim é preciso.

 

— Consenti ao menos que um de nós vos acompanhe.

 

— Não, basta a minha presença; enquanto que aqui todo o vosso valor e fidelidade não bastam para o tesouro que confio à vossa guarda.

 

O fidalgo tomou o seu chapéu, e poucos momentos depois aparecia imprevistamente no meio dos aventureiros, que trêmulos, cabisbaixos, corridos de vergonha, não ousavam proferir uma palavra.

 

— Aqui me tendes! repetiu o cavalheiro. Dizei o que quereis de D. Antônio de Mariz, e dizei-o claro e breve. Se for de justiça, sereis satisfeitos; se for uma falta, tereis a punição que merecerdes.

 

Nem um dos aventureiros ousou levantar os olhos; todos emudeceram.

 

— Calai-vos?... Passa-se então aqui alguma coisa que não vos atreveis a revelar? Acaso ver-me-ei obrigado a castigar severamente um primeiro exemplo de revolta e desobediência? Falai! Quero saber o nome dos culpados!

 

O mesmo silêncio respondeu às palavras firmes e graves do velho fidalgo.

 

Loredano hesitava desde o princípio desta cena; não tinha a coragem necessária para apresentar-se em face de D. Antônio; mas também sentia que se ele deixasse as coisas marcharem pela maneira por que iam, estava infalivelmente perdido.

 

Adiantou-se:

 

— Não há aqui culpados, Sr. D. Antônio de Mariz, disse o italiano animando-se progressivamente; há homens que são tratados como cães; que são sacrificados a um capricho vosso, e que estão resolvidos a reivindicarem os seus foros de homens e de cristãos!

 

— Sim! gritaram os aventureiros reanimando-se. Queremos que se respeite a nossa vida!

 

— Não somos escravos!

 

— Obedecemos, mas não nos cativamos!

 

— Valemos mais que um herege!

 

— Temos arriscado a nossa existência para defender-vos!

 

D. Antônio ouviu impassível todas estas exclamações que iam subindo gradualmente ao tom da ameaça.

 

— Silêncio, vilões! Esqueceis que D. Antônio de Mariz ainda tem bastante força para arrancar a língua que o pretendesse insultar? Miseráveis, que lembrais o dever como um beneficio! Arriscastes a vossa vida para defender-me?... E qual era a vossa obrigação, homens que vendeis o vosso braço e sangue ao que melhor paga? Sim! Sois menos que escravos, menos que cães, menos que feras! Sois traidores infames e refeces!... Mereceis mais do que a morte; mereceis o desprezo.

 

Os aventureiros, cuja raiva fermentava surdamente, não se contiveram mais; das palavras de ameaça passaram ao gesto.

 

— Amigos! gritou Loredano aproveitando habilmente o ensejo. Deixareis que vos insultem atrozmente, que vos cuspam o desprezo na cara? E por que motivo!...

 

— Não! Nunca! vociferaram os aventureiros furiosos.

 

Desembainhando as adagas estreitaram o círculo ao redor de D. Antônio de Mariz; era uma confusão de gritos, injúrias, ameaças, que corriam por todas as bocas, enquanto os braços suspensos hesitavam ainda em lançar o golpe.

 

D. Antônio de Mariz, sereno, majestoso, calmo, olhava todas essas fisionomias decompostas com um sorriso de escárnio; e sempre altivo e sobranceiro, parecia sob os punhais que o ameaçavam, não a vítima que ia ser imolada, mas o senhor que mandava.

 

 VII OS SELVAGENS

 Os aventureiros com o punhal erguido ameaçavam; mas não se animavam a romper o estreito círculo que os separava de D. Antônio de Mariz.

 

O respeito, essa força moral tão poderosa, dominava ainda a alma daqueles homens cegos pela cólera e pela exaltação; todos esperavam que o primeiro ferisse; e nenhum tinha a coragem de ser o primeiro.

 

Loredano conheceu que era necessário um exemplo; o desespero de sua posição, as paixões ardentes que tumultuavam em seu coração, deram-lhe o delírio que supre o valor nas circunstâncias extremas.

 

O aventureiro apertou convulsivamente o cabo de sua faca, e fechando os olhos e dando um passo às cegas, ergueu a mão para desfechar o golpe.

 

O fidalgo com um gesto nobre afastou o seio do gibão, e descobriu o peito; nem um tremor imperceptível agitou os músculos de seu rosto; sua fronte alta conservou a mesma serenidade; o seu olhar límpido e brilhante não se turvou.

 

Tal era a influência magnética que exercia essa coragem nobre e altiva, que o braço do italiano tremeu, e a ponta do ferro tocando a véstia do fidalgo paralisou os dedos hirtos do assassino.

 

D. Antônio sorriu com desdém; e abaixando a sua mão fechada sobre o alto da cabeça de Loredano, abateu-o a suas plantas como uma massa bruta e inerte: então erguendo a ponta do pé à fronte do italiano, o estendeu de costas sobre o pavimento.

 

O baque do corpo no chão ecoou no meio de um silêncio profundo; todos os aventureiros, mudos e estáticos, pareciam querer sumir-se pelo seio da terra.

 

— Abaixai as armas, miseráveis! O ferro que há de ferir o peito de D. Antônio de Mariz não será manchado pela mão cobarde e traiçoeira de vis assassinos! Deus reserva uma morte justa e gloriosa àqueles que viveram uma vida honrada!

 

Os aventureiros artudidos embainharam maquinalmente os punhais; aquela palavra sonora, calma e firme, tinha um acento tão imperativo, uma tal força de vontade, que era impossível resistir.

 

— O castigo que vos espera há de ser rigoroso; não deveis contar com a clemência nem com o perdão: quatro dentre vós à sorte, sofrerão a pena de homizio; os outros farão o oficio dos executores da alta justiça. Bem vedes que tanto a pena como o ofício são dignos de vós!

 

O fidalgo pronunciou estas palavras com um soberano desprezo, e encarou os aventureiros como para ver se dentre eles partia alguma reclamação, algum murmúrio de desobediência; mas todos esses homens, há pouco furiosos, estavam agora humildes e cabisbaixos.

 

— Dentro de uma hora, continuou o cavalheiro apontando para o corpo de Loredano, este homem será justiçado à frente da banda; para ele não há julgamento; eu o condeno como pai, como chefe, como um homem que mata o cão ingrato que o morde. É ignóbil demais para que o toque com as minhas armas; entrego-o ao baraço e ao cutelo.

 

Com a mesma impassibilidade e o mesmo sossego que conservava desde o momento em que aparecera imprevistamente, o velho fidalgo atravessou por entre os aventureiros imóveis e respeitosos, e caminhou para a saída.

 

Aí voltou-se; e levando a mão ao chapéu descobriu a sua bela cabeça encanecida, que destacava sobre o fundo negro da noite e no meio do clarão avermelhado das tochas com um vigor de colorido admirável.

 

— Se algum de vós der o menor sinal de desobediência; se uma das minhas ordens não for cumprida pronta e fielmente; eu, D. Antônio de Mariz, vos juro por Deus e pela minha honra que desta casa não sairá um homem vivo. Sois trinta; mas a vossa vida, de todos vós, tenho-a na minha mão; basta-me um movimento para exterminar-vos, e livrar a terra de trinta assassinos.

 

No momento em que o fidalgo ia retirar-se apareceu Álvaro pálido de emoção, mas brilhante de coragem e indignação.

 

— Quem se animou aqui a erguer a voz para D. Antônio de Mariz? exclamou o moço.

 

O velho fidalgo sorrindo com orgulho pôs a mão no braço do cavalheiro.

 

— Não vos ocupeis disto, Álvaro; sois bastante nobre para vingar uma afronta desta natureza, e eu, bastante superior para não ser ofendido por ela.

 

— Mas, senhor, cumpre que se dê um exemplo!

 

— O exemplo vai ser dado, e como cumpre. Aqui não há senão culpados e executores da pena. O lugar não vos compete. Vinde!

 

O moço não resistiu e acompanhou D. Antônio de Mariz, que se dirigiu lentamente a sala, onde achou Aires Comes.

 

Quanto a Peri, voltara ao jardim de Cecília, decidido a defender sua senhora contra o mundo inteiro.

 

O dia vinha rompendo.

 

O fidalgo chamou Aires Gomes e entrou com ele no seu gabinete de armas, onde tiveram uma longa conferência de meia hora.

 

O que aí se passou ficou em segredo entre Deus e estes dois homens; apenas Álvaro notou, quando a porta do gabinete se abriu, que D. Antônio estava pensativo, e o escudeiro lívido como um morto.

 

Neste momento ouviu-se um pequeno rumor na entrada da sala; quatro aventureiros parados, imóveis, esperavam uma ordem do fidalgo para se aproximarem.

 

D. Antônio fez-lhes um sinal; e eles vieram ajoelhar-se a seus pés; -as lágrimas rolavam por essas faces queimadas pelo sol; e a palavra tremia balbuciante nesses lábios pálidos que há instantes vomitavam ameaças:

 

— Que significa isto? perguntou o cavalheiro com severidade.

 

Um dos aventureiros respondeu:

 

— Viemo-nos entregar em vossas mãos; preferimos apelar para o vosso coração do que recorrer às armas para escaparmos à punição de nossa falta.

 

— E vossos companheiros? replicou o fidalgo.

 

— Deus lhes perdoe, senhor, a enormidade do crime que vão cometer. Depois que vos retirastes tudo mudou; preparam-se para atacar-vos!

 

— Que venham, disse D. Antônio, eu os receberei. Mas vós por que não os acompanhais? Não sabeis que D. Antônio de Mariz perdoa uma falta, mas nunca uma desobediência?

 

— Embora, disse o aventureiro que falava em nome de seus camaradas; aceitaremos de bom grado o castigo que nos impuserdes. Mandai, que obedeceremos. Somos quatro contra vinte e tantos; dai-nos essa punição de morrer defendendo-vos, de reparar pela nossa morte um momento de alucinação!... É a graça que vos pedimos!

 

D. Antônio olhou admirado os homens que estavam ajoelhados a seus pés; e reconheceu neles os restos dos seus antigos companheiros de armas do tempo em que o velho fidalgo combatia os inimigos de Portugal.

 

Sentiu-se comovido; sua alma grande, e inabalável no meio do perigo, orgulhosa em face da ameaça, deixava-se facilmente dominar pelos sentimentos nobres e generosos.

 

Essa prova de fidelidade que davam aqueles quatro homens na ocasião da revolta geral dos seus companheiros; a ação que acabavam de praticar, e o sacrifício com que desejavam expiar a sua falta, elevou-os no espírito do fidalgo.

 

— Erguei-vos. Reconheço-vos!... Já não sois os traidores que há pouco repreendi; sois os bravos companheiros que pelejastes a meu lado; o que fazeis agora, esquece o que fizestes há uma hora. Sim!... Mereceis que morramos juntos, combatendo ainda uma vez na mesma fileira. D. Antônio de Mariz vos perdoa. Podeis levantar a cabeça e trazê-la alta!

 

Os aventureiros ergueram-se radiantes do perdão que o nobre fidalgo tinha lançado sobre suas cabeças; todos eles estavam prontos a dar sua vida para salvarem o seu chefe.

 

O que tinha ocorrido depois da saída de D. Antônio do alpendre, seria longo de escrever.

 

Loredano tornando a si da vertigem que lhe causara o atordoamento e a violência da queda, soube da ordem que havia a seu respeito. Não era preciso tanto para que o audaz aventureiro recorresse à sua eloqüência a fim de excitar de novo à revolta.

 

Pintou a posição de todos como desesperada, atribuiu o seu castigo e as desgraças que iam suceder ao fanatismo que havia por Peri; esgotou enfim os recursos da sua inteligência.

 

D. Antônio não estava mais ai para conter com a sua presença a cólera que ia fermentando, a excitação que começava a lavrar, a princípio surdamente, as queixas e os murmúrios que afinal fizeram coro.

 

Um incidente veio atear a chama que lastrava; Peri, apenas começou a romper o dia, viu a alguma distancia do jardim o cadáver de Rui Soeiro; e temendo que sua senhora acordando presenciasse esse triste espetáculo tomou o corpo, e atravessando a esplanada, veio atirá-lo no meio do pátio.

 

Os aventureiros empalideceram e ficaram estupefatos; depois rompeu a indignação feroz, raivosa, delirante; estavam como possessos de furor e vingança. Não houve mais hesitação; a revolta pronunciou-se; apenas o pequeno grupo de quatro homens que desde a saída de D. Antônio se conservava em distancia, não tomou parte na insubordinação.

 

Ao contrário, quando viram que seus companheiros, com Loredano à frente se preparavam para atacar o fidalgo, foram, como vimos, oferecer-se voluntariamente ao castigo, e reunir-se ao seu chefe para partilharem a sua sorte.

 

Pouco tardou para que João Feio não se apresentasse como parlamentário da parte dos revoltosos; o fidalgo não o deixou falar.

 

— Dize a teus companheiros, rebelde, que D. Antônio de Mariz manda e não discute condições: que eles estão condenados; e verão se sei ou não cumprir o meu juramento.

 

O fidalgo tratou então de dispor os seus meios de defesa; apenas podia contar com quatorze combatentes: ele, Álvaro, Peri, Aires Comes, mestre Nunes com os seus companheiros, e os quatro homens que se haviam conservado fiéis; os inimigos eram em número de vinte e tantos.

 

Toda a sua família já então despertada recebeu a triste noticia de tantos acontecimentos passados durante aquela noite fatal; D. Lauriana, Cecília e Isabel recolheram-se ao oratório, e rezavam enquanto se preparava tudo para uma resistência desesperada.

 

Os aventureiros comandados por Loredano arregimentaram-se e marcharam para a casa dispostos a dar um assalto terrível; o seu furor redobrava tanto mais, quanto o remorso no fundo da consciência começava a mostrar-lhes toda a hediondez de sua ação.

 

No momento em que dobravam o canto, ouviu-se um som rouco que se prolongou pelo espaço, como o eco surdo de um trovão em distancia.

 

Peri estremeceu, e lançando-se para a beira da esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta. Quase ao mesmo tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano caiu traspassado por uma flecha.

 

— Os Aimorés!...

 

Apenas soltou Peri esta exclamação, uma linha movediça, longo arco de cores vivas e brilhantes, agitou-se ao longe da planície irradiando à luz do sol nascente.

 

Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos.

 

A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras.

 

— Os Aimorés!... repetiram os aventureiros empalidecendo.

 

 VIII DESÂNIMO

 Dois dias passaram depois da chegada dos Aimorés; a posição de D. Antônio de Mariz e de sua família era desesperada.

 

Os selvagens tinham atacado a casa com uma força extraordinária; diante deles a índia, terrível de ódio, os excitava à vingança

 

As setas escurecendo o ar abatiam-se como uma nuvem sobre a esplanada, e crivavam as portas e as paredes do edifício.

 

À vista do perigo iminente que corriam todos, os aventureiros revoltados retiraram-se e trataram de defender-se do ataque dos selvagens.

 

Houve como que um armistício entre os rebeldes e o fidalgo; sem se reunirem, os aventureiros conheceram que deviam combater o inimigo comum, embora depois levassem ao cabo a sua revolta.

 

D. Antônio de Mariz, encastelado na parte da casa que habitavam, rodeado de sua família e de seus amigos fiéis, resolvera defender até à última extremidade esses penhores confiados ao seu amor de esposo e de pai.

 

Se a Providência não permitisse que um milagre os viesse salvar, morreriam todos; mas ele contava ser o último, a fim de velar que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto.

 

Era o seu dever de pai, e o seu dever de chefe; como o capitão, que é o último a abandonar o seu navio, ele seria o último a abandonar a vida, depois de ter assegurado às cinzas dos seus o respeito que se deve aos mortos.

 

Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e tão animada! Parte do edifício que tocava com o fundo onde habitavam os aventureiros tinha sido abandonada por prudência; D. Antônio concentrara sua família no interior da habitação para evitar algum acidente.

 

Cecília deixara o seu quartinho tão lindo e tão mimoso, e nele estabelecera Peri o seu quartel-general e o seu centro de operações; porque, é preciso dizer, o índio não partilhava o desanimo geral, e tinha uma confiança inabalável nos seus recursos.

 

Seriam dez horas da noite: a lâmpada de prata suspensa no teto da grande sala iluminava uma cena triste e silenciosa.

 

Todas as janelas e portas estavam fechadas; de vez em quando ouvia-se o estrépito que fazia uma seta cravando-se na madeira, ou enfiando-se por entre as telhas.

 

Nas duas extremidades da sala e na frente tinham-se praticado no alto da parede algumas seteiras, junto das quais os aventureiros faziam à noite uma sentinela constante, a fim de prevenir uma surpresa.

 

D. Antônio de Mariz, sentado numa cadeira de espaldar, sob o dossel, repousava um instante; o dia fora rude; os índios tinham investido por diferentes vezes a escada de pedra da esplanada; e o fidalgo com o pequeno número de combatentes de que dispunha e com o auxilio da colubrina conseguira repeli-los.

 

A sua clavina carregada descansava de encontro ao espaldar da cadeira; e as suas pistolas estavam colocadas em cima de um bufete ao alcance do braço.

 

Sua bela cabeça encanecida, pendida ao seio, ressaltava sobre o veludo preto de seu gibão, coberto por uma rede finíssima de malhas de aço que lhe guarnecia o peito.

 

Parecia adormecido; mas de vez em quando erguia os olhos e corria o vasto aposento, contemplando com uma melancolia extrema a cena que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala.

 

Depois voltava à mesma posição, e continuava suas dolorosas reflexões; o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem, mas interiormente tinha perdido a esperança.

 

Do lado oposto Cecília recostada em um sofá parecia desfalecida; seu rosto perdera a habitual vivacidade: seu corpo ligeiro e gracioso, alquebrado por tantas emoções prostrava-se com indolência sobre uma colcha de damasco. A mãozinha caia imóvel como uma flor a que tivessem quebrado a haste delicada; e os lábios descorados agitavam-se às vezes murmurando uma prece.

 

De joelhos à beira do sofá, Peri não tirava os olhos de sua senhora; dir-se-ia que aquela respiração branda que fazia ondular os seios da menina, e que se exalava de sua boca entreaberta, era o sopro que alimentava a vida do índio.

 

Desde o momento da revolta não deixou mais Cecília; seguia-a como uma sombra; sua dedicação, já tão admirável, tinha tocado o sublime com a iminência do perigo. Durante estes dois dias ele havia feito coisas incríveis, verdadeiras loucuras do heroísmo e abnegação.

 

Sucedia que um selvagem aproximando-se da casa soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto à menina?

 

Peri lançava-se como um raio, e antes que tivesse tempo de contê-lo, passava entre uma nuvem de flechas, chegava à beira da esplanada, e com um tiro de sua clavina abatia o Aimoré que assustara sua senhora, antes que ele tivesse tempo de soltar um segundo grito.

 

Cecília, aflita e doente, recusava tomar o alimento que sua mãe ou sua prima lhe traziam?

 

Peri correndo mil perigos, arriscando-se a despedaçar-se nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagens, ganhava a floresta, e daí a uma hora voltava trazendo um fruto delicado, um favo de mel envolto de flores, uma caça esquisita, que sua senhora tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação.

 

As loucuras do índio chegaram a ponto que Cecília foi obrigada a proibir-lhe que saísse de junto dela, e a guardá-lo à vista com receio de que não se fizesse matar a todo o momento.

 

Além da amizade que lhe tinha, um quer que seja, uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavam, se alguma salvação podia haver para sua família seria à coragem, à inteligência, e à sublime abnegação de Peri que a deveriam.

 

Se ele morresse quem velaria sobre ela com a solicitude e o ardente zelo que tinha ao mesmo tempo o carinho de uma mãe, a proteção de um pai, a meiguice de um irmão? Quem seria seu anjo da guarda para livrá-la de um pesar, e ao mesmo tempo seu escravo para satisfazer o seu menor desejo?

 

Não; Cecília não podia de modo algum admitir nem a possibilidade de que seu amigo viesse a morrer; por isso mandou, pediu, e até suplicou-lhe que não saísse de junto dela; queria por sua vez ser para Peri o bom anjo de Deus, o seu gênio protetor.

 

Do mesmo lado em que estava Cecília, mas num outro canto da sala, via-se Isabel sentada de encontro à ombreira da janela; enfiava um olhar ardente, cheio de ansiedade e de susto, por uma pequena fresta, que ela entreabrira a furto.

 

O raio de luz que filtrava por esta aberta da janela servia de mira aos índios, que faziam chover setas sobre setas naquela direção; mas Isabel, alheia de si, nem se importava com o perigo que corria.

 

Ela olhava Álvaro, que no alto da escada com a maior parte dos aventureiros fiéis, fazia a guarda noturna; o moço passeava pela esplanada ao abrigo de uma ligeira paliçada. Cada seta que passava por sua cabeça, cada movimento que fazia, causava em Isabel uma aflição imensa; sentia não poder estar junto dele para ampará-lo, e receber a morte que lhe fosse destinada.

 

D. Lauriana, sentada em um dos degraus do oratório, rezava; a boa senhora era uma das pessoas que mais coragem e mais calma mostravam no transe horrível em que se achava a família animada pela sua fé religiosa e pelo sangue nobre que girava nas suas veias, ela se tinha conservado digna de seu marido.

 

Fazia tudo quanto era possível; pensava os feridos, encorajava as meninas, auxiliava os preparativos de defesa, e ainda em cima dirigia sua casa como se nada se passasse.

 

Aires Gomes encostado à porta do gabinete, com os braços cruzados e imóvel, dormia; o escudeiro guardava o posto que lhe fora confiado pelo fidalgo. Desde a conferência que os dois tinham tido, Aires se postara naquele lagar, donde não saia senão quando D. Antônio vinha sentar-se na cadeira que havia junto da porta.

 

Dormia de pé; porém mal um passo, por mais sutil que fosse, soava no pavimento, acordava sobressaltado com a pistola em punho e a mão sobre o fecho da porta.

 

D. Antônio de Mariz levantou-se, e passando à cinta as suas pistolas e tomando a sua clavina, dirigiu-se ao sofá onde repousava sua filha, e beijou-a na fronte; fez o mesmo a Isabel, abraçou sua mulher e saiu. O fidalgo ia render a Álvaro, que fazia o seu quarto desde o anoitecer; poucos momentos depois de sua saída, a porta abriu-se de novo, e o cavalheiro entrou.

 

Álvaro trajava um gibão de lã forrado de escarlate; quando ele apareceu no vão da porta, Isabel soltou um grito fraco e correu para ele.

 

— Estais ferido? perguntou a moça com ansiedade, e tomando-lhe as mãos.

 

— Não; respondeu o moço admirado.

 

— Ah!... exclamou Isabel respirando.

 

Tinha-se iludido; o rasgão que uma flecha fizera sobre o ombro mostrando o forro escarlate do gibão, tinha de repente lhe parecido uma ferida.

 

Álvaro procurou desprender suas mãos das mãos de Isabel, mas a moca suplicando-o com o olhar e arrastando-o docemente, levou-o até o lugar onde estava há pouco, e obrigou o cavalheiro a sentar-se junto dela.

 

Muitos acontecimentos se tinham passado entre eles nestes dois dias; há circunstâncias em que os sentimentos marcham com uma rapidez extraordinária, e devoram meses e anos num só minuto.

 

Reunidos nesta sala pela necessidade extrema do perigo, vendo-se a cada momento, trocando ora uma palavra, ora um olhar, sentindo-se enfim perto um do outro, esses dois corações, se não se amavam, compreendiam-se ao menos.

 

Álvaro fugia e evitava Isabel; tinha medo desse amor ardente que o envolvia num olhar, dessa paixão profunda e resignada que se curvava a seus pés sorrindo melancolicamente. Sentia-se fraco para resistir, e entretanto o seu dever mandava que resistisse.

 

Ele amava, ou cuidava amar ainda Cecília; prometera a seu pai ser seu marido; e na situação em que se achavam, aquela promessa era mais do que um juramento, era uma necessidade imperiosa, uma fatalidade que se devia cumprir.

 

Como podia ele pois alimentar uma esperança de Isabel? Não seria infame, indigno, aceitar o amor que ela lhe oferecera suplicando? Não era seu dever destruir naquele coração esse sentimento impossível?

 

Álvaro pensava assim, e evitava todas as ocasiões de estar só com a moça, porque conhecia a impressão veemente, a atração poderosa que exercia essa beleza fascinadora quando a paixão, animando-a, cercava-a de um brilho deslumbrante.

 

Dizia a si mesmo que não amava, que nunca amaria Isabel! Entretanto, sabia que se ele a visse outra vez como no momento em que lhe confessara seu amor, cairia de joelhos a seus pés, e esqueceria o dever, a honra, tudo por ela.

 

A luta era terrível; mas a alma nobre do cavalheiro não cedia e combatia heroicamente: podia ser vencida, mas depois de ter feito o que fosse possível ao homem para conservar-se fiel à sua promessa.

 

O que tornava a lata ainda mais violenta era que Isabel não o perseguia com o seu amor; depois daquela primeira alucinação concentrava-se, e resignada amava sem esperança de nunca ser amada.

 

 IX ESPERANÇA

 Sentando-se junto da moça, Álvaro sentiu a sua coragem vacilar.

 

— Que me quereis, Isabel? perguntou ele com a voz um pouco trêmula.

 

A menina não respondeu; estava embebida a contemplar o moço; saciava-se de olhá-lo, de senti-lo junto de si, depois de ter sofrido a angústia de ver a morte rogando a sua cabeça e ameaçando a sua vida.

 

É preciso amar para compreender essa voluptuosidade do olhar que se repousa sobre o objeto amado, que não se cansa de ver aquilo que está impresso na imaginação, mas que tem sempre um novo encanto.

 

— Deixai-me olhar-vos! respondeu Isabel suplicando. Quem sabe! Talvez seja pela última vez!

 

— Por que essas idéias tristes? disse Álvaro com brandura. A esperança ainda não está de todo perdida.

 

— Que importa?... exclamou a moça. Ainda há pouco vos vi de longe que passeáveis sobre a esplanada, e a cada momento me parecia que uma seta vos tocava, vos feria e...

 

— Como?... Tivestes a imprudência de abrir a janela?

 

O moço voltou-se; e estremeceu vendo a janela entreaberta, crivada da parte exterior pelas setas dos selvagens.

 

— Meu Deus!... exclamou ele; por que expondes assim a vossa vida, Isabel?...

 

— Que vale a minha vida, para que a conserve? disse a moça animando-se. Tem ela algum prazer, alguma ventura, que me prenda? De que serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso de nossa alma? A minha felicidade é acompanhar-vos com os olhos e com o pensamento. Se esta felicidade me deve custar a vida, embora!...

 

— Não faleis assim, Isabel, que me partis a alma.

 

— E como quereis que fale? Mentir-vos é impossível; depois daquele dia, em que trai o meu segredo, de escravo que ele era tornou-se senhor, senhor despótico e absoluto. Sei que vos faço sofrer...

 

— Nunca disse semelhante coisa!

 

— Sois bastante generoso para dizê-lo, mas sentis. Eu conheço, eu leio nos vossos menores movimentos. Vós me estimais talvez como irmão, mas fugis de mim, e tendes receio que Cecília pense que me amais; não é verdade?

 

— Não, exclamou Álvaro insensivelmente; tenho receio, tenho medo... mas é de amar-vos!

 

Isabel sentiu uma comoção tão violenta ouvindo as palavras rápidas do moço, que ficou como estática sem fazer um movimento; as palpitações fortes do seu coração a sufocavam.

 

Álvaro não estava menos comovido; subjugado por aquele amor ardente, impressionado pela abnegação da menina que expunha sua vida só para acompanhá-lo de longe com um olhar e protegê-lo com a sua solicitude, tinha deixado escapar o segredo da luta que se passava em sua alma.

 

Mas apenas pronunciara aquelas palavras imprudentes, conseguiu dominar-se, e tornando-se frio e reservado, falou a Isabel em um tom grave.

 

— Sabeis que amo Cecília; mas ignorais que prometi a seu pai ser seu marido. Enquanto ele por sua livre vontade não me desligar de minha promessa, estou obrigado a cumpri-la. Quanto ao meu amor, este me pertence, e só a morte me pode desligar dele. No dia em que eu amasse outra mulher que não ela, me condenaria a mim mesmo como um homem desleal.

 

O moço voltou-se para Isabel com um triste sorriso:

 

— E compreendeis o que faz um homem desleal que tem ainda a consciência precisa para se julgar a si?

 

Os olhos da moça brilharam com um fogo sinistro:

 

— Oh! compreendo!... É o mesmo que faz a mulher que ama sem esperança, e cujo amor é um insulto ou um sofrimento para aquele a quem ama!

 

— Isabel!... exclamou Álvaro estremecendo.

 

— Tendes razão! Só a morte pode desligar de um primeiro e santo amor aos corações como os nossos!

 

— Deixai-vos dessas idéias, Isabel! Crede-me; uma única razão pode justificar semelhante loucura.

 

— Qual? perguntou Isabel.

 

— A desonra.

 

— Há ainda outra, respondeu a moça com exaltação: outra menos egoísta, mas tão nobre como esta; a felicidade daqueles que se amam.

 

— Não vos compreendo.

 

— Quando se sabe que se pode ser uma causa de desgraça para aqueles que se estima, melhor é desatar o único laço que nos prende à vida do que vê-lo despedaçar-se. Não dizíeis que tendes medo de amar-me? Pois bem, agora sou eu que tenho medo de ser amada.

 

Álvaro não soube o que responder: estava numa terrível agitação: conhecia Isabel, e sabia que força tinham aquelas palavras ardentes que soltavam os lábios da moça.

 

— Isabel! disse ele tomando-lhe as mãos. Se me tendes alguma afeição, não me recuseis a graça que vou pedir-vos. Repeli esses pensamentos! Eu vos suplico!

 

A moça sorriu-se melancolicamente:

 

— Vós me suplicais?... Me pedis que conserve esta vida que recusastes!... Não é ela vossa? Aceitai-a; e já não tereis que suplicar!

 

O olhar ardente de Isabel fascinava; Álvaro não se pôde mais conter; ergueu-se, e reclinando-se ao ouvido da moça balbuciou:

 

— Aceito!

 

Enquanto Isabel, pálida de emoção e felicidade, duvidava ainda da voz que ressoava no seu ouvido, o moço tinha saído da sala.

 

Durante que Álvaro e Isabel conversavam a meia voz, Peri continuava a contemplar a sua senhora.

 

O índio estava pensativo: e via-se que uma idéia o preocupava, e absorvia toda a sua atenção.

 

Por fim levantou-se, e lançando um último olhar repassado de tristeza a Cecília, encaminhou-se lentamente para a porta da sala.

 

A menina fez um ligeiro movimento e levantou a cabeça:

 

— Peri!...

 

Ele estremeceu, e voltando foi de novo ajoelhar-se junto do sofá.

 

— Tu me prometeste não deixar tua senhora! disse Cecília com uma doce exprobração.

 

— Peri quer te salvar.

 

— Como?

 

— Tu saberás. Deixa Peri fazer o que tem no pensamento.

 

— Mas não correrás nem um perigo?

 

— Por que perguntas isso, senhora? disse o índio timidamente.

 

— Por quê?... exclamou Cecília levantando-se com vivacidade. Porque se para nos salvar é preciso que tu morras, eu rejeito o teu sacrifício, rejeito-o em meu nome e no de meu pai.

 

— Sossega, senhora; Peri não teme o inimigo; sabe o modo de vencê-lo.

 

A menina abanou a cabeça com ar incrédulo.

 

— Eles são tantos!...

 

O índio sorriu com orgulho.

 

— Sejam mil; Peri vencerá a todos, aos índios e aos brancos.

 

Ele pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do poder.

 

Contudo Cecília não podia acreditar o que ouvia; parecia-lhe inconcebível que um homem só, embora tivesse a dedicação e o heroísmo do índio, pudesse vencer não só os aventureiros revoltados, como os duzentos guerreiros Aimorés que assaltavam a casa.

 

Mas ela não contava com os recursos imensos de que dispunha essa inteligência vigorosa, que tinha ao seu serviço um braço forte, um corpo ágil, e uma destreza admirável; não sabia que o pensamento é a arma mais poderosa que Deus deu ao homem, e que com ela se abatem os inimigos, se quebra o ferro, se doma o fogo, e se vence por essa força irresistível e providencial que manda ao espírito dominar a matéria.

 

— Não te iludas; vais fazer um sacrifício inútil. Não é possível que um homem só vença tantos inimigos, ainda mesmo que esse homem seja Peri.

 

— Tu verás! respondeu o índio com segurança.

 

— E quem te dará força para lutar contra um poder tão grande?...

 

— Quem?... Tu, senhora, tu só, respondeu o índio fitando nela o seu olhar brilhante.

 

Cecília sorriu como devem sorrir os anjos.

 

— Vai, disse ela, vai salvar-nos. Mas lembra-te que se tu morreres, Cecília não aceitará a vida que lhe deres.

 

Peri ergueu-se.

 

— O sol que se levantar amanhã será o último para todos os teus inimigos; Ceci poderá sorrir como dantes, e ficar alegre e contente.

 

A voz do índio tornou-se trêmula; sentindo que não podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e saiu.

 

Chegando à esplanada Peri olhou as estrelas que começavam a apagar-se, e viu que o dia pouco tardaria a raiar: não tinha tempo a perder.

 

Qual era o projeto que havia concebido, e que lhe dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado? Que meio ousado tinha ele para contar com a destruição dos inimigos e a salvação de sua senhora?

 

Fora difícil adivinhar; Peri guardava no fundo do coração esse segredo impenetrável, e nem a si mesmo o dizia com receio de trair-se, e de anular efeito, que esperava com uma confiança inabalável.

 

Tinha todos os inimigos na sua mão; e bastava-lhe um pouco de prudência para fulminá-los a todos como a cólera celeste, como o fogo de raio.

 

Peri dirigiu-se ao jardim e entrou no quarto de Cecília então abandonado por sua senhora, por causa da proximidade em que ficava do fundo da casa ocupada pelos aventureiros revoltados.

 

O quarto estava às escuras: mas a tênue claridade que entrava pela janela bastava ao índio para distinguir os objetos perfeitamente; a perfeição dos sentidos era um dom que os selvagens possuíam no mais alto grau.

 

Ele tomou suas armas uma a uma, beijou as pistolas que Cecília lhe havia dado e deitou-as no chão no meio do aposento, tirou os seus ornatos de penas, sua faixa de guerreiro, a pluma brilhante do seu cocar e lançou-os como um troféu sobre as suas armas.

 

Depois agarrou o seu grande arco de guerra, apertou-o ao seio e curvando-o de encontro ao joelho quebrou-o em duas metades, que foram juntar-se às armas e aos ornatos.

 

Por algum tempo Peri contemplou com um sentimento de dor profunda esses despojos de sua vida selvagem; esses emblemas de sua dedicação sublime por Cecília, e de seu heroísmo admirável.

 

Em luta com essa emoção poderosa, insensivelmente murmurou na sua língua algumas dessas palavras que a alma manda aos lábios nos momentos supremos:

 

— Arma de Peri, companheira e amiga, adeus! Teu senhor te abandona e te deixa: contigo ele venceria; contigo ninguém poderia vencê-lo. E ele quer ser vencido...

 

O índio levou a mão ao coração:

 

— Sim!... Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo, forte entre os fortes, guerreiro goitacá, nunca vencido, vai sucumbir na guerra. A arma de Peri não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo; o arco de Ararê, já quebrado, não salvará o filho.

 

Sua cabeça altiva e sobranceira enquanto pronunciava estas palavras caiu-lhe sobre o seio; por fim venceu a sua emoção, e cingindo nos seus braços esses troféus de suas armas e de suas insígnias de guerra, estreitou-as ao peito em um último abraço de despedida.

 

Um aroma agreste das plantas que começavam a se abrir com a aproximação do dia, avisou-lhe que a noite estava a acabar.

 

Quebrou a axorca de frutos que trazia na perna sobre o artelho, como todos os selvagens: este ornato era feito de pequenos cocos ligados por um fio e tingidos de amarelo.

 

Peri tomou dois destes frutos e partiu-os com a faca, sem contudo separar as cascas; fechando-os então na sua mão, levantou o braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrível e lançou-se fora do aposento.

 

 X NA BRECHA

 Quando Peri entrou no quarto de Cecília, Loredano passeava do outro lado da esplanada, em frente do alpendre.

 

O italiano refletia sobre os acontecimentos que haviam passado nos últimos dias, sobre as vicissitudes que correra a sua vida e a sua fortuna.

 

Por diferentes vezes tinha posto o pé sobre o túmulo; tinha tocado a sua última hora; e a morte fugira dele, e o respeitara. Também por diferentes vezes havia encarado a felicidade, o poder, a fortuna; e tudo se esvaecera como um sonho.

 

Quando à frente dos aventureiros revoltados ia atacar a D. Antônio de Mariz que não lhe podia resistir, os Aimorés tinham aparecido de repente e mudado a face das coisas.

 

A necessidade da defesa contra o inimigo comum trouxe uma suspensão de hostilidades; acima da ambição estava o instinto da vida e da conservação. A luta de interesses e de ódios cedeu à grande luta das raças inimigas.

 

Por isso no primeiro ataque dos selvagens, todos por um movimento espontâneo trataram de repelir o inimigo, e de salvar a casa da ruína que a ameaçava. Depois separaram-se de novo, e sempre observando-se, sempre prontos a defenderem-se um do outro, os dois grupos continuaram a repelir os índios com a maior coragem.

 

No meio disto porém Loredano que se constituíra o chefe da revolta, não abandonava o seu projeto de apoderar-se de Cecília e vingar-se de D. Antônio de Mariz e de Álvaro.

 

Seu espírito tenaz trabalhava incessantemente procurando o meio de chegar àquele resultado; atacar abertamente o fidalgo era uma loucura que não podia cometer. A menor luta que houvesse entre eles, entregava-os todos aos selvagens, que excitados pela vingança e pelos seus instintos sanguinários e ferozes, atacavam o edifício sem repouso e sem descanso.

 

A única barreira que continha os Aimorés era a posição inexpugnável da casa, assentada sobre um rochedo, apenas acessível por um ponto, pela escada de pedra que descrevemos no primeiro capitulo desta história.

 

Esta escada era defendida por D. Antônio de Mariz e pelos seus homens; a ponte de madeira tinha sido destruída; mas apesar disso os selvagens a substituiriam facilmente se não fosse a resistência desesperada que o fidalgo opunha aos seus ataques.

 

Desde o momento pois, que impelido pelo seu amor, D. Antônio corresse em defesa de sua família e abandonasse a escada, os duzentos guerreiros Aimorés se precipitariam sobre a casa, e não havia coragem que lhes pudesse resistir.

 

O italiano que compreendia isto, estava bem longe de tentar o menor ataque a peito descoberto; a prudência o aconselhava então como o tinha aconselhado no dia do primeiro assalto.

 

O que ele procurava era um meio de, sem estrépito, sem luta, imprevistamente, fazer morrer D. Antônio de Mariz, Peri, Álvaro e Aires Gomes; feito isto os outros se reuniriam a ele pela necessidade da defesa e pelo instinto da conservação.

 

Tornar-se-ia então senhor da casa; ou repelia os índios, salvava Cecília e realizava todos os seus sonhos de amor e de felicidade; ou morria tendo ao menos esgotado até ao meio a taça do prazer que seus lábios nem sequer haviam tocado.

 

Era impossível que esse espírito satânico, fixando-se em uma idéia durante três dias, não tivesse conseguido achar um meio para a consumação desse novo crime que planejara.

 

Não só o tinha achado, mas já havia começado a pô-lo em prática; tudo o protegia, até mesmo o inimigo que o deixava em repouso, atacando unicamente o lado da casa protegido por D. Antônio de Mariz.

 

Passeava pois embalando-se de novo nas suas esperanças, quando Martim Vaz, saindo do alpendre, chegou-se a ele.

 

— Uma com que não contávamos!... disse o aventureiro.

 

— O quê? perguntou o italiano com vivacidade.

 

— Uma porta fechada.

 

— Abre-se!

 

— Não com essa facilidade.

 

— Veremos.

 

— Está pregada por dentro.

 

— Terão pressentido?...

 

— Foi a idéia que já tive.

 

Loredano fez um gesto de desespero.

 

— Vem!

 

Os dois encaminharam-se para o alpendre, onde dormiam os aventureiros armados, prontos ao menor sinal de ataque.

 

O italiano acordou João Feio, e por precaução mandou-o fazer a guarda na esplanada, apesar de não haver receio que os selvagens atacassem do seu lado. O aventureiro, ainda tonto de sono, ergueu-se e saiu.

 

Loredano e seu companheiro caminharam para uma sala interior que servia de cozinha e despensa a esta parte da casa. Quando iam entrar, a luz que o aventureiro levava na mão para esclarecer o caminho, apagou-se de repente.

 

— Sois um desazado! disse Loredano contrariado.

 

— E tenho eu culpa! Queixai-vos do vento.

 

— Bom! não gasteis o tempo em palavras! Tirai fogo.

 

O aventureiro voltou a procurar o seu fuzil.

 

Loredano ficou em pé na porta à espera que o seu companheiro voltasse; e pareceu-lhe ouvir perto dele a respiração de um homem. Aplicou o ouvido para certificar-se; e por segurança tirou o seu punhal e colocou-se no centro da porta, para impedir a saída de quem quer que fosse.

 

Não ouviu mais nada; porém sentiu de repente um corpo frio e gelado que tocou-lhe a fronte; o italiano recuou, e brandindo a sua faca deu um golpe às escuras.

 

Pareceu-lhe que tinha tocado alguma coisa; entretanto tudo conservou-se no mais profundo silêncio.

 

O aventureiro voltou trazendo a luz.

 

— É singular, disse ele; o vento pode apagar uma candeia, mas não lhe tira o pavio.

 

— O vento, dizeis. Acaso o vento tem sangue?

 

— Que quereis dizer?

 

— Que o vento que apagou a vela é o mesmo que deixou o seu sinal neste ferro.

 

E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca, cuja ponta estava tinta de sangue ainda liquido.

 

— Há aqui então um inimigo?...

 

— Decerto; os amigos não precisam ocultar-se.

 

Nisto ouviram um rumor no telhado, e um morcego passou agitando lentamente as grandes asas: estava ferido.

 

— Eis o inimigo!... exclamou Martim rindo-se.

 

— É verdade, respondeu Loredano no mesmo tom; confesso que já tive medo de um morcego.

 

Tranqüilos a respeito do incidente que os havia demorado, os dois entraram na cozinha, e daí por uma brecha estreita praticada na parede penetraram no interior da casa há pouco habitada por D. Antônio de Mariz e sua família.

 

Atravessaram parte do edifício e chegaram a uma varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecília e do outro com o oratório e o gabinete de armas do fidalgo.

 

Aí o aventureiro parou; e mostrando a Loredano a porta adufada de jacarandá, que dava entrada para o gabinete, disse-lhe:

 

— Não é com duas razões que a deitaremos dentro!

 

Loredano aproximou-se e reconheceu que a solidez e fortaleza da porta não lhe permitia a menor violência: todo o seu plano estava destruído.

 

Contava durante a noite se introduzir furtivamente na sala, e assassinar a D. Antônio de Mariz, Aires Gomes e Álvaro antes que eles pudessem ser socorridos por seus companheiros, consumado o crime, estava senhor da casa.

 

Como remover o obstáculo que lhe aparecia? A menor violência contra a porta despertaria a atenção de D. Antônio de Mariz e inutilizaria todo o seu projeto.

 

Enquanto refletia nisso, os seus olhos caíram sobre uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratório, e que servia mais para dar ar do que luz.

 

Por esta abertura o italiano conheceu que aquela parte da parede era singela, e feita de um só tijolo; com efeito o oratório tinha sido outrora um corredor largo que ia da varanda à sala, e que fora separado por uma ligeira divisão.

 

Loredano mediu a parede de alto a baixo, e acenou ao seu companheiro.

 

— É por aqui que havemos de entrar, disse ele apontando para a parede.

 

— Como? A menos de não ser um mosquito para passar por aquela fresta!

 

— Esta parede assenta sobre uma viga; tirada ela, está aberto o caminho!

 

— Entendo.

 

— Antes que possam tomar a si do susto, teremos acabado.

 

O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco da parede e descobriu a viga que lhe servia de alicerce.

 

— Então?

 

— Não há dúvida. Daqui a duas horas dou-vos isto pronto.

 

Martim Vaz, depois da morte de Rui Soeiro e Bento Simões, tinha-se tornado o braço direito de Loredano; era o único a quem o italiano confiara o seu segredo, oculto para os outros em quem receava ainda a influência de D. Antônio de Mariz.

 

O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho e voltou pelo mesmo caminho; chegando à cozinha, sentiu-se sufocado por uma fumaça espessa que enchia todo o alpendre. Os aventureiros acordados de repente blasfemavam conta o autor de semelhante lembrança.

 

Quando Loredano no meio deles procurava indagar a causa do que sucedia, João Feio apareceu na entrada do alpendre.

 

Havia na sua fisionomia uma expressão terrível de cólera e ao mesmo tempo de espanto; de um salto aproximou-se do italiano e chegando-lhe a boca ao ouvido disse:

 

— Renegado e sacrílego, dou-te uma hora para ires entregar-te a D. Antônio de Mariz, e obter dele o nosso perdão e o teu castigo. Se o não fizeres dentro desse tempo, é comigo que te hás de avir.

 

O italiano fez um movimento de raiva; mas conteve-se:

 

— Amigo, o sereno transtornou-vos o juízo; ide deitar-vos. Boa noite, ou antes bom dia!

 

A alvorada despontava no horizonte.

 

 XI O FRADE

 Saindo do quarto de Cecília Peri tomara pelo corredor que comunicava com o interior do edifício.

 

O índio, a cuja perspicácia nada escapava do que se passava no interior da casa, por mais insignificante que fosse, havia percebido o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha.

 

Na véspera o som do ferro na parede tinha ido despertar a sua atenção na sala onde ele repousava um momento, deitado aos pés do leito de sua senhora; seu ouvido fino e delicado auscultara o seio da terra. Levantou-se de salto, e atravessando todo o edifício chegou, guiado pelas pancadas, ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavam a abrir uma fenda no muro.

 

Em vez de atemorizar-se com esta nova audácia do italiano, o índio sorriu-se; a brecha que praticava seria a sua perdição, por que ia dar fácil passagem a ele, Peri.

 

Contentou-se pois em examinar todas as portas que comunicavam com a sala e pregá-las por dentro; seria um novo obstáculo que demoraria os aventureiros, e lhe daria tempo de sobra para exterminá-los.

 

Foi por isso que do quarto de Cecília cuja porta fechou sobre, caminhou direito à brecha e por ela penetrou na despensa dos aventureiros.

 

Era uma sala bastante espaçosa, onde havia uma mesa, algumas talhas e uma grande quartola de vinho; o índio mesmo às escuras chegou-se a cada um desses vasos; e por alguns instantes ouviu-se o fraco vascolejar do liquido que eles continham.

 

Então Peri viu uma luz que se aproximava; era Loredano e o seu companheiro.

 

A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração. Tal ódio votava a esse homem abjeto e vil, que teve medo de si, medo de o matar. Isso fora agora uma imprudência; pois inutilizaria todo o seu plano.

 

Muita vez depois da noite em que Loredano penetrara na alcova de Cecília, Peri tivera ímpetos de ir vingar a injúria feita a sua senhora no sangue do italiano, para quem pensava que uma morte não era bastante punição.

 

Mas lembrava-se que não se pertencia; que precisava da vida para consumar sua obra salvando Cecília de tantos inimigos que a cercavam. E recalcava a vingança no fundo do coração.

 

Fez o mesmo então: cosido com a parede conseguiu apagar a vela. Ia sair, quando sentiu que o italiano tomava a porta.

 

Hesitou.

 

Podia lançar-se sobre Loredano e subjugá-lo; mas isso produziria uma luta e denunciaria a sua presença; era preciso que fugisse sem que restasse um só vestígio de sua passagem; a mais leve suspeita faria abortar o seu plano.

 

Teve uma idéia feliz: ergueu a mão molhada e tocou o rosto do italiano; enquanto este recuava para atirar a punhalada às escuras, o índio resvalou entre ele e a porta.

 

A faca de Loredano tinha-lhe ferido o braço esquerdo; não soltou porém nem um gemido, não fez um movimento que o traísse; ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz.

 

Mas Peri não estava contente; o seu sangue ia denunciá-lo; não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que ele ali tinha estado.

 

Os morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do alpendre lembraram-lhe um excelente expediente; agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance do braço, e abrindo-lhe uma cesura com a faca, soltou-o.

 

Ele sabia que o vampiro procuraria a luz, e iria esvoaçar em torno dos dois aventureiros; contava que as gotas de sangue que caiam de sua asa ferida os enganaria; a realidade correspondeu às suas previsões.

 

Apenas Loredano desapareceu, Peri continuou a execução do seu plano; chegou-se a um canto do alpendre onde havia um resto de fogo encoberto pela cinza, e atirou sobre ele alguma roupa dos aventureiros que ai estava a enxugar.

 

Este incidente, por insignificante que pareça, entrava nos planos de Peri; a roupa queimando-se devia encher a casa de fumaça, acordar os aventureiros e excitar-lhes a sede. Era justamente o que desejava o índio.

 

Satisfeito do resultado que obtivera, Peri atravessou a esplanada; ai porém foi obrigado a recuar, surpreendido do que via.

 

Um homem do lado de D. Antônio de Mariz e um aventureiro revoltado conversavam através da estacada que dividia esses dois campos inimigos; havia realmente motivo para que o índio se admirasse.

 

Não só isso era contra a ordem expressa de D. Antônio de Mariz, que proibira qualquer relação entre os seus homens e os revoltados, como contrariava o plano de Loredano, que temia ainda o respeito e o hábito de obediência que os aventureiros tinham para com o fidalgo.

 

O que se tinha passado antes, explicava esse acontecimento extraordinário.

 

O aventureiro a quem Loredano mandara rondar a esplanada, enquanto ele entrava, tinha começado o seu giro de uma ponta à outra do pátio.

 

Sempre que chegava junto da estacada, notava que do outro lado um homem se aproximava como ele, voltava, e se alongava pela beira da esplanada; adivinhou facilmente que era também uma sentinela.

 

João Feio era um franco e jovial companheiro, e não podia suportar o tédio de um passeio alta noite, no meio de um sono interrompido, sem uma pinga para beber, sem um camarada para conversar, sem uma distração enfim.

 

Para maior desprazer, uma das vezes que se aproximava da estacada, sentiu uma baforada de tabaco, e viu que o seu companheiro de guarda fumava.

 

Levou a mão ao bolso das bragas, e achou algumas folhas de fumo, mas não trazia o seu cachimbo; ficou desesperado, e decidiu dirigir-se ao outro.

 

— Olá, amigo! também fazeis a vossa guarda?

 

O homem voltou-se, e continuou o seu caminho sem dar resposta.

 

No segundo giro o aventureiro atirou segunda isca.

 

— Felizmente o dia não tarda a raiar; não vos parece?

 

O mesmo silêncio que a primeira vez; o aventureiro contudo não desanimou, e na terceira volta retrucou:

 

— Somos inimigos, camarada; mas isso não impede a um homem cortês de responder quando outro lhe fala.

 

Desta vez o silencioso sentinela voltou-se de todo:

 

— Antes da cortesia está a nossa santa religião, que manda a todo cristão não falar a um herege, a um réprobo, a um fariseu.

 

— Que é lá isso? Falais sério, ou quereis fazer-me enraivar por nonadas?

 

— Falo-vos sério, como se estivesse diante do nosso Santo Redentor confessando as minhas culpas.

 

— Pois então, digo-vos que mentis! Porque tão bom podeis ser, porém melhor crente que eu não o é outrem.

 

— Tendes a língua um pouco longa, amigo. Mas Belzebu vos fará as contas, que não eu: perderia a minha alma se tocasse o corpo de endemoninhados!

 

— Por São João Batista, meu patrão, não me façais saltar esta estacada para perguntar-vos a razão por que tratais em ar de mofa a devoção dos mais. Chamai-nos rebeldes, mas hereges não.

 

— E como quereis então que chame os companheiros de um frade sacrílego, maldito, que abjurou dos seus votos, e atirou o seu hábito as urtigas?

 

— Um frade! Dissestes vós?

 

— Sim, um frade. Não o sabíeis?

 

— O quê? De que frade falais vós?

 

— Do italiano, bofé!

 

— Ele!...

 

O homem, que não era outro senão o nosso antigo conhecido mestre Nunes, contou então, exagerando com o fervor de seus sentimentos religiosos, aquilo que sabia da história de Loredano.

 

O aventureiro horrorizado, tremendo de raiva, não deixou mestre Nunes acabar a sua história e lançou-se para o alpendre, onde viu-se a ameaça que fez ao italiano.

 

Quando eles se separaram, Peri saltou por cima da estacada, e dirigiu-se para o quarto que há pouco tinha deixado.

 

O dia vinha então rompendo; os primeiros raios do sol iluminavam já o campo dos Aimorés, assentado sobre a várzea à margem do rio. Os selvagens irritados olhavam de longe a casa, fazendo gestos de raiva por não poderem vencer a barreira de pedra que defendia o inimigo.

 

Peri olhou um momento aqueles homens de estatura gigantesca, de aspecto horrível, aqueles duzentos guerreiros de força prodigiosa, ferozes como tigres.

 

O índio murmurou:

 

— Hoje cairão todos como a árvore da floresta, para não se erguerem mais.

 

Sentou-se no vão da janela, e encostando a cabeça sobre a curva do braço, começou a refletir.

 

A obra gigantesca que empreendera, obra que parecia exceder todo o poder do homem, estava prestes a realizar-se; já tinha levado ao cabo metade dela, faltava a conclusão, a parte a mais difícil e a mais delicada.

 

Antes de lançar-se, Peri queria prever tudo; fixar bem no seu espírito as menores circunstâncias; traçar a sua linha invariável a fim de marchar firme, direito, infalível ao alvo a que visava; a fim de que a menor hesitação não pusesse em risco o efeito do seu plano.

 

Seu espírito percorreu em alguns segundos um mundo de pensamentos; guiado pelo seu instinto maravilhoso e pelo seu nobre coração, formulou num rápido instante um grande e terrível drama, do qual devia ser o herói; drama sublime de heroísmo e dedicação, que para ele era apenas o cumprimento de um dever e a satisfação de um desejo.

 

As almas grandes têm esse privilégio; suas ações, que nos outros inspiram a admiração, se aniquilam em face dessa nobreza inata do coração superior, para o qual tudo é natural e possível

 

Quando Peri ergueu a cabeça, estava radiante de felicidade e orgulho; felicidade por salvar sua senhora; orgulho pela consciência de que ele só bastava para fazer o que cinqüenta homens não fariam; o que o próprio pai, o amante, não conseguiriam nunca.

 

Não duvidava mais do resultado: via nos acontecimentos futuros como no espaço que se estendia diante dele, e no qual nem um objeto escapava ao seu olhar límpido; tanto quanto é possível ao homem, ele tinha a certeza e a convicção de que Cecília estava salva.

 

Cobriu o peito e as costas com uma pele de cobra que ligou estreitamente ao corpo; vestiu por cima o seu saiote de algodão; experimentou os músculos dos braços e das pernas; e sentindo-se forte, ágil e flexível, saiu inerme.

 

 XII DESOBEDIÊNCIA

 Álvaro, recostado da parte de fora a uma das janelas da casa, pensava em Isabel.

 

Sua alma lutava ainda, mas já sem força, contra o amor ardente e profundo que o dominava; procurava iludir-se, mas a sua razão não o permitia.

 

Conhecia que amava Isabel, e que a amava como nunca tinha amado Cecília; a afeição calma e serena de outrora fora substituída pela paixão abrasadora.

 

Seu nobre coração revoltava-se contra essa verdade; mas a vontade era impotente contra o amor; não podia mais arrancá-lo do seu seio; não o desejava mesmo.

 

Álvaro sofria; o que dissera na véspera a Isabel era realmente o que sentia; não se exagerara; no dia em que deixasse de amar Cecília e fosse infiel à promessa feita a D. Antônio, se condenaria como um homem sem honra e sem lealdade.

 

Consolava-o a idéia de que a situação em que se achavam não podia durar muito; pouco tardava que exaustos, enfraquecidos, sucumbissem à força dos inimigos que os atacavam.

 

Então nos momentos extremos, à borda do túmulo, quando a morte o tivesse já desligado da terra, poderia com o último suspiro balbuciar a primeira palavra do seu amor: poderia confessar a Isabel que a amava.

 

Até então lutaria.

 

Nisto Peri chegou-se e tocou-lhe no ombro:

 

— Peri parte.

 

— Para onde?

 

— Para longe.

 

— Que vais fazer?

 

O índio hesitou:

 

— Procurar socorro.

 

Álvaro sorriu-se com incredulidade.

 

— Tu duvidas?

 

— De ti não, mas do socorro.

 

— Escuta; se Peri não voltar, tu farás enterrar as suas armas.

 

— Podes ir tranqüilo: eu te prometo.

 

— Outra coisa.

 

— O que é?

 

O índio hesitou de novo:

 

— Se tu vires a cabeça de Peri desligada do corpo, enterra-a com as suas armas.

 

— Por que este pedido? A que vem semelhante lembrança?

 

— Peri vai passar pelo meio dos selvagens, e pode morrer. Tu és guerreiro; e sabes que a vida é como a palmeira: murcha quando tudo reverdece.

 

— Tens razão. Farei tudo quanto pedes; mas espero ver-te ainda.

 

O índio sorriu.

 

— Ama a senhora, disse ele estendendo a mão ao moço.

 

O seu adeus era uma última prece pela felicidade de Cecília.

 

Peri entrou na sala onde se achava reunida a família.

 

Todos dormiam; só D. Antônio de Mariz velava sempre apesar da velhice; sua vontade poderosa cobrava novas forças e reanimava o corpo gasto pelos anos. Não lhe restava senão uma esperança; a de morrer rodeado dos entes que amava, cercado de sua família, como um fidalgo português devia morrer; com honra e coragem.

 

O índio atravessou a sala e colocando-se junto do sofá em que Cecília adormecida repousava, contemplou-a um instante com um sentimento de profunda melancolia.

 

Dir-se-ia que nesse olhar ardente fazia uma última e solene despedida; que partindo-se, o escravo fiel e dedicado queria deixar a sua alma enleada naquela imagem, que representava a sua divindade na terra.

 

Que sublime linguagem não falavam aqueles olhos inteligentes, animados por um brilhante reflexo de amor e de fidelidade? Que epopéia de sentimento e de abnegação não havia naquela muda e respeitosa contemplação?

 

Por fim Peri fez um esforço supremo, e a custo conseguiu quebrar o encanto que o prendia, e o conservava imóvel, como uma estátua, diante da linda menina adormecida. Reclinou sobre o sofá e beijou respeitosamente a fimbria do vestido de Cecília; quando ergueu-se, uma lágrima triste e silenciosa que deslizava pela sua face, caiu sobre a mão da menina.

 

Cecília, sentindo aquela gota ardente, entreabriu os olhos; mas Peri não viu esse movimento, porque já se tinha voltado e aproximava-se de D. Antônio de Mariz.

 

O fidalgo sentado na sua poltrona recebeu-o com um sorriso pungente.

 

— Tu sofres? perguntou o índio.

 

— Por eles, por ela especialmente, por minha Cecília.

 

— Por ti não? disse Peri com intenção.

 

— Por mim? Daria a minha vida para salvá-la; e morreria feliz!

 

— Ainda que ela te pedisse que vivesses?

 

— Embora me suplicasse de joelhos.

 

O índio sentiu-se aliviado como de um remorso.

 

— Peri te pede uma coisa.

 

— Fala!

 

— Peri quer beijar a tua mão.

 

D. Antônio de Mariz tirou o seu guante, e sem compreender a razão do pedido do índio, estendeu-lhe a mão.

 

— Tu dirás a Cecília que Peri partiu; que foi longe; não deves contar-lhe a verdade: ela sofrerá. Adeus; Peri sente te deixar; mas é preciso.

 

Enquanto o índio proferia estas palavras em voz baixa e inclinado ao ouvido do fidalgo, este surpreendido procurava ligar-lhes um sentido que lhe parecia vago e confuso:

 

— Que pretendes tu fazer, Peri? perguntou D. Antônio.

 

— O mesmo que tu querias fazer para salvar a senhora.

 

— Morrer!... exclamou o fidalgo.

 

Peri levou o dedo aos lábios recomendando silêncio; mas era tarde; um grito partido do canto da sala fê-lo estremecer.

 

Voltando-se viu Cecília, que ao ouvir a última palavra de seu pai quisera correr para ele, e caíra de joelhos, sem força para dar um passo. A menina com as mãos estendidas e suplicantes parecia pedir a seu pai que evitasse aquele sacrifício heróico, e salvasse a Peri de uma morte voluntária.

 

O fidalgo a compreendeu:

 

— Não, Peri; eu, D. Antônio de Mariz, não consentirei nunca em semelhante coisa. Se a morte de alguém pudesse trazer a salvação de minha Cecília e de minha família, era a mim que competia o sacrifício. E por Deus e pela minha honra o juro, que a ninguém o cederia; quem quisesse roubar-me esse direito me faria um insulto cruel.

 

Peri volvia os olhos de sua senhora aflita e suplicante para o fidalgo severo e rígido no cumprimento de seu dever; temia aquelas duas oposições diferentes, mas que tinham ambas um grande poder sobre a sua alma.

 

Podia o escravo resistir a uma súplica de sua senhora e causar-lhe uma mágoa, quando toda a sua vida fora destinada a fazê-la alegre e feliz? Podia o amigo ofender a D. Antônio de Mariz, a quem respeitava, praticando uma ação que o fidalgo considerava como uma injúria feita à sua honra?

 

Peri teve um momento de alucinação, em que pareceu-lhe que o coração lhe estacava no peito, e a vida lhe fugia, e a cabeça se despedaçava com a pressão violenta das idéias que tumultuavam no cérebro.

 

No rápido instante que durou a vertigem, ele viu girarem rapidamente em torno de si as figuras sinistras dos Aimorés que ameaçavam a vida preciosa daqueles a quem mais amava no mundo. Viu Cecília suplicando, não a ele, mas ao inimigo feroz e sanguinário, prestes a manchá-la com as mãos impuras; viu a bela e nobre cabeça do velho fidalgo rojar mutilada com os alvos cabelos tintos de sangue.

 

O índio horrorizado com estas imagens lúgubres que lhe desenhava a sua imaginação em delírio, apertou a cabeça entre as mãos, como para arrancá-la daquela febre.

 

— Peri!... balbuciava Cecília; tua senhora te pede!...

 

— Morreremos todos juntos, amigo, quando chegar o momento, dizia D. Antônio de Mariz.

 

Peri levantou a cabeça, e lançou sobre a menina e o fidalgo um olhar alucinado:

 

— Não!... exclamou ele.

 

Cecília ergueu-se com um movimento instantâneo; de pé e pálida; soberba de cólera e indignação, a gentil e graciosa menina de outrora se tinha de repente transformado numa rainha imperiosa.

 

Sua bela fronte alva resplandecia com um assomo de orgulho; seus olhos azuis tinham desses reflexos fulvos que iluminam as nuvens no meio da tormenta; seus lábios trêmulos e ligeiramente arqueados pareciam reter a palavra para deixá-la cair com toda a sua força. Atirando a cabecinha loura sobre o ombro esquerdo com um gesto de energia, ela estendeu a mão para Peri:

 

— Proíbo-te que saias desta casa!...

 

O índio julgou que ia enlouquecer; quis lançar-se aos pés de sua senhora, mas recuou anelante, opresso e sufocado. Um canto, ou antes uma celeuma dos selvagens soava ao longe.

 

Peri deu um passo para a porta; D. Antônio o reteve:

 

— Tua senhora, disse o fidalgo friamente, acaba de te dar uma ordem; tu a cumprirás. Tranqüiliza-te, minha filha; Peri é meu prisioneiro.

 

Ouvindo esta palavra que destruía todas as suas esperanças, que o impossibilitava de salvar sua senhora, o índio retraindo-se deu um salto, e caiu no meio da sala.

 

— Peri é livre!... gritou ele fora de si; Peri não obedece a ninguém mais; fará o que lhe manda o coração.

 

Enquanto D. Antônio de Mariz e Cecília, admirados desse primeiro ato de desobediência, olhavam espantados o índio de pé no meio do vasto aposento, ele lançou-se a um cabide de armas, e empunhando um pesado montante como se fora uma ligeira espada, correu à janela e saltou.

 

— Perdoa a Peri, senhora!

 

Cecília soltou um grito e precipitou-se para a janela. Não viu mais Peri.

 

Álvaro e os aventureiros, de pé sobre a esplanada, tinham os olhos fitos sobre a árvore que se elevava a um lado da casa, na encosta oposta, e cuja folhagem ainda se agitava.

 

Longe descortinava-se o campo dos Aimorés; a brisa que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos selvagens.

 

 XIII COMBATE

 Eram seis horas da manhã.

 

O sol elevando-se no horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas.

 

O tempo estava soberbo; o céu azul, esmaltado de pequenas nuvens brancas que se achamalotavam como as dobras de uma lençaria.

 

Os Aimorés, grupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza, faziam preparativos para dar um ataque decisivo.

 

O instinto selvagem supria a indústria do homem civilizado; a primeira das artes foi incontestavelmente a arte da guerra, — a arte da defesa e da vingança, os dois mais fortes estímulos do coração humano.

 

Nesse momento os Aimorés preparavam setas inflamáveis para incendiar a casa de D. Antônio de Mariz; não podendo vencer o inimigo pelas armas, contavam destruí-lo pelo fogo.

 

A maneira por que arranjavam esses terríveis projéteis, que lembravam os pelouros e bombardas dos povos civilizados, era muito simples: envolviam a ponta da flecha com flocos de algodão embebidos na resina da almécega.

 

Essas setas assim inflamadas, despedidas dos seus arcos voavam pelos ares e iam cravar-se nas vigas e portas das casas; o fogo que o vento incitava, lambia a madeira, estendia a sua língua vermelha, e lastrava pelo edifício.

 

Enquanto se ocupavam com esse trabalho, um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras, nas quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana.

 

Os cabelos arruivados caiam-lhe sobre a fronte e ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto, criada por Deus para a sede da inteligência, e para o trono donde o pensamento deve reinar sobre a matéria.

 

Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos músculos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido.

 

Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros.

 

As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a pele áspera e calosa, faziam de suas mãos, antes garras temíveis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto.

 

Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo.

 

Alguns se ornavam de penas, e colares de ossos; outros completamente nus tinham o corpo untado de óleo por causa dos insetos.

 

Entre todos distinguia-se um velho que parecia ser o chefe da tribo. Sua alta estatura, direita apesar da idade avançada, dominava a cabeça dos seus companheiros sentados ou agrupados em torno do fogo.

 

Não trabalhava; presidia apenas aos trabalhos dos selvagens, e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a casa que se elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnável.

 

Ao lado dele, uma bela índia, na flor da idade, queimava sobre uma pedra cova algumas folhas de tabaco, cuja fumaça se elevava em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma espécie de brama ou névoa.

 

Ele aspirava esse aroma embriagador que fazia dilatar o seu vasto peito, e dava a sua fisionomia terrível um quer que seja de sensual, que se poderia chamar a voluptuosidade dos seus instintos de canibal. Envolta pelo fumo espesso que se enovelava em torno dela, aquela figura fantástica parecia algum ídolo selvagem, divindade criada pelo fanatismo desses povos ignorantes e bárbaros.

 

De repente a pequena índia que soprava o brasido queimando as folhas de pitima estremeceu, levantou a cabeça, e fitou os olhos no velho, como para interrogar a sua fisionomia.

 

Vendo-o calmo e impassível, a menina debruçou-se sobre o ombro do selvagem, e tocando-lhe de leve na cabeça, disse-lhe uma palavra ao ouvido. Ele voltou-se tranqüilamente, um riso sardônico mostrou os seus dentes; sem responder obrigou a índia a sentar-se de novo, e a voltar à sua ocupação.

 

Pouco tempo havia passado depois deste pequeno incidente, quando a menina tornou a estremecer; tinha ouvido perto o mesmo rumor que já ouvira ao longe. Ao passo que ela espantada procurava confirmar-se, um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar fez o mesmo movimento que a índia, e levantou a cabeça.

 

Como se um fio elétrico se comunicasse entre esses homens e imprimisse a todos sucessivamente o mesmo movimento, um após outro interrompeu o seu trabalho de chofre, e inclinando o ouvido pôs-se à escuta.

 

A menina não escutava só; colocando-se longe do fumo e de encontro à brisa que soprava, de vez em quando aspirava o ar com a finura de olfato com que os cães farejam a caça.

 

Tudo isto passou rapidamente, sem que os atores desta cena tivessem nem sequer o tempo de trocar uma observação e dizer o seu pensamento.

 

De repente a índia soltou um grito; todos voltaram-se para ela e a viram trêmula, ofegante, apoiando-se com uma mão sobre o ombro do velho cacique, e a outra estendida na direção da floresta que passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro.

 

O velho ergueu-se então sempre com a mesma calma feroz e sinistra; e empunhando a sua pesada tangapema, que parecia uma clava de ciclope, fê-la girar sobre a sua cabeça como um junco; depois fincando-a no chão, e apoiando-se sobre ela, esperou.

 

Os outros selvagens armados de arcos e tacapes, espécie de longas espadas de pau que cortavam como ferro, colocaram-se a par do velho, e prontos para o ataque, esperavam como ele. As mulheres misturaram-se com os guerreiros; as crianças e meninos, defendidos pela barreira que opunham os combatentes, conservaram-se no centro do campo.

 

Todos com os olhos fitos, os sentidos aplicados, contavam ver o inimigo aparecer a cada momento e se preparavam para cair sobre ele com a audácia e ímpeto de ataque que distinguia a raça dos Aimorés.

 

Um segundo se passou nesta expectativa inquieta.

 

O estalido que a princípio tinham ouvido cessou completamente; e os selvagens cobrando-se do susto, voltaram aos seus trabalhos, convencidos de que tinham sido iludidos por algum vago rumor na floresta.

 

Mas o inimigo caiu no meio deles, subitamente, sem que pudessem saber se tinha surgido do seio da terra, ou se tinha descido das nuvens.

 

Era Peri.

 

Altivo, nobre, radiante da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos, o índio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança.

 

Caindo do alto de uma árvore sobre eles, tinha abatido dois; e volvendo o seu montante como um raio em torno de sua cabeça abriu um círculo no meio dos selvagens.

 

Então encostou-se a uma lasca de pedra que descansava sobre uma ondulação do terreno, e preparou-se para o combate monstruoso de um só homem contra duzentos.

 

A posição em que se achava o favorecia, se isso é possível à vista de uma tal disparidade de número: apenas dois inimigos podiam atacá-lo de frente.

 

Passado o primeiro espanto, os selvagens bramindo atiraram-se todos como uma só mole, como uma tromba do oceano, contra o índio que ousava atacá-los a peito descoberto.

 

Houve uma confusão, um turbilhão horrível de homens que se repeliam, tombavam e se estorciam; de cabeças que se levantavam e outras que desapareciam; de braços e dorsos que se agitavam e se contraiam, como se tudo isto fosse partes de um só corpo, membros de algum monstro desconhecido debatendo-se em convulsões.

 

No meio desse caos via-se brilhar aos raios do sol com reflexos rápidos e luzentes a lamina do montante de Peri, que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e atravessa o espaço.

 

Um coro de gritos, imprecações e gemidos roucos e abafados, confundindo-se com o choque das armas, se elevava desse pandemônio, e ia perder-se ao longe nos rumores da cascata.

 

Houve uma calma aterradora; os selvagens imóveis de espanto e de raiva suspenderam o ataque; os corpos dos mortos faziam uma barreira entre eles e o inimigo.

 

Peri abaixou o seu montante e esperou; seu braço direito fatigado desse enorme esforço não podia mais servir-lhe e caía inerte; passou a arma para a mão esquerda.

 

Era tempo.

 

O velho cacique dos Aimorés se avançava para ele sopesando a sua imensa clava crivada de escamas de peixe e dentes de fera; alavanca terrível que o seu braço possante fazia jogar com a ligeireza da flecha.

 

Os olhos de Peri brilharam; endireitando o seu talhe, fitou no selvagem esse olhar seguro e certeiro, que não o enganava nunca.

 

O velho aproximando-se levantou a sua clava e imprimindo-lhe o movimento de rotação, ia descarregá-la sobre Peri e abatê-lo; não havia espada nem montante que pudesse resistir àquele choque.

 

O que passou-se então foi tão rápido, que não é possível descrevê-lo; quando o braço do velho volvendo a clava ia atirá-la, o montante de Peri lampejou no ar e decepou o punho do selvagem; mão e clava foram rojar pelo chão.

 

O velho selvagem soltou um bramido, que repercutiu ao longe pelos ecos da floresta, e levantando ao céu o seu punho decepado atirou as gotas de sangue que vertiam, sobre os Aimorés, como conjurando-os à vingança.

 

Os guerreiros lançaram-se para vingar o seu chefe; mas um novo espetáculo se apresentava aos seus olhos.

 

Peri, vencedor do cacique, volveu um olhar em torno dele, e vendo O estrago que tinha feito, os cadáveres dos Aimóres amontoados uns sobre os outros, fincou a ponta do montante no chão e quebrou a lamina. Tomou depois os dois fragmentos e atirou-os ao rio.

 

Então passou-se nele uma luta silenciosa, mas terrível para quem pudesse compreendê-la. Tinha quebrado a sua espada, porque não queria mais combater; e decidira que era tempo de suplicar a vida ao inimigo.

 

Mas quando chegou o momento de realizar essa súplica, conheceu que exigia de si mesmo uma coisa sobre-humana, uma coisa superior às suas forças.

 

Ele, Peri, o guerreiro invencível, ele, o selvagem livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra virgem, o chefe da mais valente nação dos Guaranis, suplicar a vida ao inimigo! Era impossível.

 

Três vezes quis ajoelhar, e três vezes as curvas de suas pernas distendendo-se como duas molas de aço o obrigaram a erguer-se.

 

Finalmente a lembrança de Cecília foi mais forte do que a sua vontade.

 

Ajoelhou.

 

 XIV O PRISIONEIRO

 Quando os selvagens se precipitavam sobre o inimigo, que já não se defendia e se confessava vencido, o velho cacique adiantou-se; e deixando cair a mão sobre o ombro de Peri, fez um movimento enérgico com o braço direito decepado.

 

Esse movimento exprimia que Peri era seu prisioneiro, que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto a mão sobre ele, como seu vencedor; e que todos deviam respeitar o seu direito de propriedade, o seu direito de guerra.

 

Os selvagens abaixaram as armas e não deram um passo; esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis; e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de guerra, essa conquista do fraco pelo forte.

 

Tinham em tanta conta a glória de trazerem um cativo do combate e sacrificá-lo no meio das festas e cerimônias que costumavam celebrar, que nenhum selvagem matava o inimigo que se rendia; fazia-o prisioneiro.

 

Quanto a Peri, vendo o gesto do cacique e o efeito que produzia, a sua fisionomia expandiu-se; a humildade fingida, a posição suplicante que por um esforço supremo conseguira tomar, desapareceu imediatamente.

 

Ergueu-se, e com um soberbo desdém estendeu os punhos aos selvagens que por mandado do velho se dispunham a ligar-lhe os braços; parecia antes um rei que dava uma ordem aos seus vassalos, do que um cativo que se sujeitava aos vencedores; tal era a altivez do seu porte e o desprezo com que encarava o inimigo.

 

Os Aimorés, depois de ligarem os punhos do prisioneiro, o conduziram a alguma distancia à sombra de uma árvore, e ai o prenderam com uma corda de algodão matizada de várias cores a que os Guaranis chamavam muçurana.

 

Depois, ao passo que as mulheres enterravam os mortos, reuniram-se em conselho, presididos pelo velho cacique, a quem todos ouviam com respeito e respondiam cada um por sua vez.

 

Durante o tempo que os guerreiros falavam, a pequena índia escolhia os melhores frutos, as bebidas mais bem preparadas, e oferecia ao prisioneiro, a quem estava encarregada de servir.

 

Peri, sentado sobre a raiz da árvore e apoiado contra o tronco, não percebia o que se passava em torno dele; tinha os olhos fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma distancia.

 

Via o vulto de D. Antônio de Mariz que assomava por cima da paliçada; e suspensa ao seu braço, reclinada sobre o abismo, Cecília, sua linda senhora, que lhe fazia de longe um gesto de desespero; ao lado Álvaro e a família.

 

Tudo o que ele havia amado neste mundo ali estava diante de seus olhos; sentia um prazer intenso por ver ainda uma vez esses objetos de sua dedicação extrema, de seu amor profundo.

 

Adivinhava e compreendia o que sentia então o coração de seus bons amigos; sabia que sofriam vendo-o prisioneiro, próximo a morrer, sem terem o poder e a força para salvá-lo das mãos do inimigo.

 

Consolava-o porém essa esperança que estava prestes a realizar-se; esse gozo inefável de salvar sua senhora, e de deixá-la feliz no seio de sua família, protegida pelo amor de Álvaro.

 

Enquanto Peri, preocupado por essas idéias, enlevava-se ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a figura de Cecília, a índia de pé, defronte dele, olhava-o com um sentimento de prazer misturado de surpresa e curiosidade.

 

Comparava suas formas esbeltas e delicadas com o corpo selvagem de seus companheiros; a expressão inteligente de sua fisionomia com o aspecto embrutecido dos Aimorés; para ela, Peri era um homem superior e excitava-lhe profunda admiração.

 

Foi só quando Cecília e D. Antônio de Mariz desapareceram da esplanada, que Peri, lançando ao redor um olhar para ver se a sua morte ainda se demoraria muito, descobriu a índia perto dele.

 

Voltou o rosto e continuou a pensar em sua senhora e a rever a sua imagem; debalde a menina selvagem lhe apresentava um lindo fruto, um alimento, um vinho saboroso; ele não lhe dava atenção.

 

A índia tornou-se triste por causa dessa obstinação com que o prisioneiro recusava o que lhe oferecia e achegando-se levantou a cabeça pensativa de Peri.

 

Havia nos olhos da menina tanto fogo, tanta lubricidade no seu sorriso; as ondulações mórbidas do seu corpo traiam tantos desejos e tanta voluptuosidade, que o prisioneiro compreendeu imediatamente qual era a missão dessa enviada da morte, dessa esposa do túmulo, destinada a embelezar os últimos momentos da vida!

 

O índio voltou o rosto com desdém; recusava as flores como tinha recusado os frutos; repelia a embriaguez do prazer como havia repelido a embriaguez do vinho.

 

A menina enlaçou-o com os braços, murmurando palavras entrecortadas de uma língua desconhecida, da língua dos Aimorés, que Peri não entendia; era talvez uma súplica, ou um consolo com que procurava mitigar a dor do vencido.

 

Mal sabia que o índio ia morrer feliz e esperava o suplício como a realização de um sonho doce, como a satisfação de um desejo querido e por muito tempo afagado com amor.

 

Mas podia ela, pobre selvagem, pressentir e mesmo compreender semelhante coisa? O que sabia era que Peri ia ser morto; que ela devia suavizar-lhe a última hora; e cumpria esse dever com um certo contentamento.

 

Peri sentindo os braços da menina cingirem seu colo, repeliu-a vivamente para longe de si; e voltando procurou ver por entre as folhas se descobria os preparativos que os Aimorés faziam para o sacrifício.

 

Tardava-lhe o momento supremo em que devia ser imolado à cólera e à vingança dos inimigos; sua altivez revoltava-se contra essa humilhação do cativeiro.

 

A índia continuava a olhá-lo tristemente, e sem compreender por que a repelia; ela era linda e desejada por todos os jovens guerreiros de sua tribo; seu pai, o velho cacique, tinha-a destinado para o mais valente prisioneiro, ou para o mais forte dos vencedores.

 

Depois de conservar-se muito tempo nesta posição, a menina adiantou-se de novo, tomou um vaso cheio de cauim, e apresentou-o a Peri sorrindo e quase suplicante.

 

Ao gesto de recusa que fez o índio, ela deitou o vaso no rio, e escolhendo sobre as folhas um cardo vermelho e doce como um favo de mel, estendeu a mão e tocou com o fruto a boca do prisioneiro.

 

Peri enjeitou o fruto como tinha enjeitado o vinho, e a virgem selvagem atirando-o por sua vez ao rio, aproximou-se e ofereceu ao prisioneiro seus lábios encarnados, ligeiramente distendidos como para receberem o beijo que pediam.

 

O índio fechou os olhos e pensou em sua senhora. Elevando-se até Cecília, seu pensamento desprendia-se do invólucro terrestre e adejava numa atmosfera pura e isenta da fascinação dos sentidos que escraviza o homem.

 

Contudo Peri sentia o hálito ardente da menina que lhe requeimava as faces: entreabriu os olhos, e viu-a na mesma posição, esperando uma carícia, um afago daquele a quem a sua tribo mandara que amasse, e a quem ela já amava espontaneamente.

 

Na vida selvagem, tão próxima da natureza, onde a conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do coração, o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo, e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol.

 

Nos tempos de civilização, ao contrário, o sentimento torna-se planta exótica; que só vinga e floresce nas estufas, isto é, nos corações onde o sangue é vigoroso, e o fogo da paixão ardente e intenso.

 

Vendo Peri no meio do combate, só contra toda a sua tribo, a índia o admirara: contemplando-o depois quando prisioneiro, o achara mais belo do que todos os guerreiros.

 

Seu pai a destinara para esposa do inimigo que ia ser sacrificado; e portanto ela que começara por admirá-lo, acabava por desejá-lo, por amá-lo, algumas horas apenas depois que o tinha visto.

 

Mas Peri, frio e indiferente, não se comovia, nem aceitava essa afeição passageira e efêmera que tinha começado com o dia e devia acabar com ele; sua idéia fixa, a lembrança de seus amigos, o protegia contra a tentação.

 

Voltando as costas, levantou os olhos ao céu para evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua vista, como certas flores acompanham a rotação aparente do sol.

 

Entre a folhagem das árvores passava-se uma das cenas graciosas e singelas, que a cada momento no campo se oferecem à atenção daqueles que estudam a natureza nas suas pequenas criaturas.

 

Um casal de corrixos, que tinha feito o seu ninho num ramo, sentindo a habitação do homem e o fogo embaixo da árvore, mudava a sua pequena casa de palha e algodão.

 

Um desfazia com o bico o ninho, e o outro conduzia a palha para longe, para o lugar onde iam novamente fabricá-lo; quando acabaram este trabalho, acariciaram-se, e batendo as asas foram esconder o seu amor nalgum lindo retiro.

 

Peri se divertia em ver esse inocente idílio, quando a índia levantando-se de repente soltou um pequeno grito de alegria e de prazer, e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dois passarinhos que voavam um a par do outro sobre a cúpula da floresta.

 

Enquanto ele procurava compreender o que queria dizer este aceno, a virgem desapareceu, e voltou quase imediatamente trazendo um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco de guerra.

 

Aproximou-se do índio, soltou-lhe os laços que lhe ligavam os punhos, e partiu a muçurana que o prendia à árvore. Executou isto com uma extrema rapidez; e entregando a Peri o arco e as flechas, estendeu a mão na direção da floresta, mostrando-lhe o espaço que se abria diante deles.

 

Seus olhos e seu gesto falavam melhor do que a sua linguagem inculta, e exprimiam claramente o seu pensamento:

 

— Tu és livre. Partamos!

 

                                                                                            

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Carlos Cunha       Arte & Produção Visual

 

 

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