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O Idiota - p4 / Dostoiévski
O Idiota - p4 / Dostoiévski

 

 

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O Idiota

 

Havia uma semana que se dera o encontro daquelas duas personagens da nossa história no banco verde. E agora, nessa clara manhã, aí pelas dez e meia, Varvára Ardaliónovna Ptítsina regressava de uma visita a certos amigos, imersa em sinistra reflexão.

Gente há cujo aspecto característico e típico é difícil descrever integralmente. É gente habitualmente chamada “comum” ou “maioria” e que efetivamente compõe a quase totalidade da humanidade. A maior parte dos autores tenta, em seus contos e novelas, selecionar e apresentar de modo artístico e vivo tipos raramente encontrados na inteireza de suas vidas imediatas, muito embora sejam, sem embargo, mais reais do que a vida real mesma. Podkolióssin, (Podkolióssin: herói da melhor peça de Gógol - O Casamento (1842). De caráter pouco enérgico, Podkolióssin tem, por vezes, assomos de independência. E, na hora do casamento, salta pela janela.) como um tipo, talvez seja exagerado, mas não éabsolutamente irreal. Quantas pessoas inteligentes, depois que se puseram em contato com Podkolióssin, através de Gógol, não passaram logo a descobrir que uma porção, dezenas e centenas, de amigos e conhecidos seus se pareciam extraordinariamente com ele? Já sabiam, sem ter ainda lido Gógol, que esses seus amigos eram como Podkolióssin; apenas ignoravam que nome dar-lhes de fato, na vida real, poucos são os noivos que escapolem pela janela antes do Casamento, visto como, abstraindo outras considerações, esse modo de fuga tem seus inconvenientes.

E no entanto, quantos homens, mesmo inteligentes e virtuosos como pessoas, não se deram conta, bem na véspera de seus casamentos, de que estavam prontos a reconhecer no fundo de seus corações que eram outros tantos Podkolióssin? Nem todos os maridos exclamam a todo passo: Tu l’as voulu, George Dandin! (Tu l’as voulu, George Dandin” (“Tu o quiseste, George Dandín”): A citação feita por Dostoiévski é da comédia George Dandin ou Le Mari Confondu, de Molière. George Dandin é um camponês que, graças ao seu dinheiro, casa com Angélique de Sotenville, a filha de um fidalgote arruinado e cioso da sua nobreza. Devido à inabilidade de um mensageiro, Dandin vem a saber que a mulher se corresponde com um galanteador chamado Clitandre, e disso faz queixa aos sogros. Angélique, entretanto, não tem dificuldade em fazer com que as aparências fiquem a seu favor. Clitandre exige explicações, e Dandin vê-se obrigado a pedir-lhe desculpas. “Tu o quiseste, George Dandin”, dizia a si mesmo George Dandin, que, eterno enganado, passa pelas piores adversidades, pondo em realce, como quis demonstrar Molière, a loucura que comete um homem ao casar com mulher de condição superior à sua.  N. do T.) Mas quantos milhões e bilhões de vezes este grito de coração não tem sido proferido por maridos, por este mundo fora, logo depois de suas luas de mel ou, quem sabe, no dia seguinte ao do casamento?

Sem entrar em considerações mais profundas, queremos singelamente mostrar que, na vida de todos os dias, certas características tidas como típicas estão a ponto de submergir e que os Georges Dandin e os Podkolióssin existem e se locomovem diante de nós, quotidianamente, apenas em forma menos concentrada. Com a asseveração de que Georges Dandin, em sua perfeição total, como Molière o retratou, também pode ser encontrado na vida real, embora não freqüentemente, terminaremos as nossas reflexões que já estão começando também a invadir a esfera da crítica jornalística. Todavia a pergunta fica de pé: que fará um autor com gente comum, absolutamente “comum”, e como há de colocá-la diante do leitor tornando-a interessante? É de todo impossível deixá-la fora da ficção, pois essa gente do lugar-comum é, a todo momento, o principal e indispensável anel da cadeia dos negócios humanos. Se os deixarmos de fora perdemos toda a verossimilhança com a realidade. Encher uma novela completamente só com tipos, ou melhor, querer torná-la interessante mediante apenas caracteres estranhos e incríveis será querer torná-la irreal e até mesmo desinteressante. A nosso ver, um escritor deve procurar a torto e a direito enredos interessantes e instrutivos mesmo entre gente vulgar; Quando, por exemplo, a natureza mesma de certas pessoas vulgares reside justamente em sua perpétua e invariável vulgaridade, ou melhor ainda, quando, apesar de todos os mais estrênuos esforços para fugir à órbita da mesmice e da rotina, essa gente acaba por se sentir invariavelmente ligada para sempre a essa mesma rotina, então tal gente adquire um caráter sui generis, todo seu, o caráter da vulgaridade, desejosa acima de tudo de ser independente e original sem a menor possibilidade de o conseguir.

A essa classe de gente “vulgar” ou “comum” pertencem certos personagens da minha narrativa que até aqui, devo confessar, foram insuficientemente explicados ao leitor. Tais são Varvára Ardaliónovna Ptítsina, seu marido o Sr. Ptítsin e seu irmão Gavríl Ardaliónovitch.

Não há, com efeito, nada mais aborrecido do que ser, por exemplo, rico, de boa família, ter boa aparência, ser bastante esperto e mesmo sagaz e todavia não ter talento, nenhuma faculdade especial, nenhuma personalidade mesmo, nenhuma idéia pessoal, não sendo propriamente mais do que “como todo mundo”. Ter fortuna, mas não ter a de Rothschild ; ser de uma família honrada mas que nunca se distinguiu por qualquer feito; ter uma boa aparência mas, mesmo com ela, não exprimindo nada de particular; ter inteligência, mas nenhuma idéia própria; ter bom coração, mas sem nenhuma grandeza de alma; ter uma boa educação mas nem saber o que fazer com ela etc. etc... Há uma extraordinária multidão de gente assim no mundo, muito mais até do que a muitos possa parecer. Essa multidão pode, como toda a outra gente, ser dividida em duas classes: os de inteligência limitada e os de alcance mais vasto, Os primeiros são os mais felizes. Nada é mais fácil para essa gente “comum”, de inteligência restrita, do que se imaginar original e mesmo exceção, e folgar com essa ilusão, nunca chegando a perceber o equívoco. Basta a muitas de nossas mocinhas cortarem o cabelo de certo modo e usarem óculos azuis e se cognominarem de niilistas, para ficarem de vez persuadidas de que, com isso só, obtiveram automaticamente “convicções” próprias. Basta a certos cavalheiros sentir o mais leve prurido de qualquer erupção bondosa e humanitária para que imediatamente fiquem persuadidos de que ninguém mais sente o que eles sentiram, e de que formam a vanguarda da cultura. Basta a certos indivíduos assimilar uma idéia expressa por outrem, ou ler qualquer página solta, para imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal espontaneamente brotada de seu cérebro. A imprudência da simplicidade é, se assim se pode dizer, espantosa, em tais casos. Por mais incrível que pareça, isso existe. Essa imprudência de simplicidade, essa confiança sem vacilações do homem estúpido em seus talentos, foi soberbamente pintada por Gógol no espantoso caráter do seu personagem, o Tenente Pirogóv. Pirogóv não possuía a menor dúvida de que era um gênio, superior mesmo a qualquer gênio. Tinha tal certeza disso que jamais consigo mesmo debateu isso. Aliás nunca, com efeito, debateu coisa alguma. O grande escritor foi obrigado até, no fim, a castigá-lo, como uma espécie de satisfação ao ultraje moral sentido pelo leitor. Vendo, porém, que o grande homem apenas titubeia um pouco, depois do castigo, logo se refazendo ao engolir um pastel, ele, Gógol, levanta as mãos para o céu, cheio de espanto, e deixa que o leitor dê cabo dele como quiser. Nunca me conformei que Gógol tomasse o seu grande Pirogóv de uma escala tão humilde; era tão senhor de si que nada lhe foi mais fácil, à medida que suas dragonas aumentavam de espessura e de torcidinhos, do que se imaginar um extraordinário gênio militar, ou melhor, não se imaginar, mas ter isso como certo e líquido. Pois se fora feito general, logicamente que era um gênio militar! E quantos como ele não fizeram terríveis fiascos, depois, nos campos de batalha? E quantos Pirogóv não tem havido entre os nossos escritores, sábios e propagandistas! Digo “tem havido”, mas naturalmente que ainda os há!

Gavríl Ardaliónovitch Ivólguin enquadrava-se na segunda categoria. Pertencia à classe dos “mais dotados”, embora o enfatuasse, da cabeça aos pés, o desejo da originalidade. Mas tal classe, como já observamos acima, é bem menos feliz do que a primeira: pois o homem vulgar “esperto”, mesmo se se considera ocasionalmente, ou sempre, homem de gênio ou de originalidade, conserva o verme da dúvida enquistado em seu coração, o que, em muitos casos, arrasta o nosso homem sagaz ao extremo desespero. Mesmo quando se submete, o faz completamente envenenado, visto seu Intimo ser dirigido por sua vaidade. Mas o exemplo que tomamos foi extremo. Para a grande maioria dessa gente hábil as coisas não terminam assim tão tragicamente. O mais que acontece a tais pessoas é ficarem com o fígado afetado na velhice. Mas antes de desistirem e se humilharem, esses homens não raro fazem papéis de malucos; e tudo só pelo desejo de originalidade. E realmente há estranhos exemplos desta asserção; um homem direito, às vezes, por querer ser original, é capaz de cometer uma baixeza. Acontece comumente que um desses desprotegidos da sorte não só é honesto como bom; é o anjo da guarda da família e mantém, por meio do seu trabalho, não apenas os seus, mas também os estranhos. Mesmo assim não consegue descanso em toda a sua vida! O pensamento de que preencheu tão bem a sua vida, em vez de lhe dar conforto e consolo, muito pelo contrário, o irrita. “Foi apenas nisto que consumi toda a minha vida?”, diz ele. “Foi nisto que me atolei dos pés àcabeça? Foi pois nisto que malbaratei minhas energias, o que me impediu de fazer algo de grande? Se não tivesse perdido tempo nisso eu teria, na certa, descoberto a pólvora ou a América, ou qualquer outra coisa, não sei precisamente qual, mas que teria descoberto, lá isso teria!” O que é mais característico nesses indivíduos é que nunca chegam a saber direito que coisa lhes foi destinada a descobrir e dentro de que são eles uns ases em descobertas. E todavia seus sofrimentos, suas ânsias pelo que deveriam ter descoberto, seriam bastantes para um Colombo ou um Galileu.

Gavril Ardaliónovitch tinha dado o primeiro passo nessa estrada, mas estava apenas em seu começo. Dispunha ainda, diante de si, de muito tempo para representar de maluco. Uma profunda e contínua consciência da sua falta de talento e, ao mesmo tempo, o obsedante desejo de mostrar a si mesmo que era um homem de grande independência, se lhe agarrara ao coração quase que desde a infância. Era um rapaz de apetites violentos e de zelosas sofreguidões mas que, positivamente, já nascera com os nervos extenuados.

Tornou a violência dos seus desejos como força. A sua sôfrega paixão em querer se distinguir o levou muitas vezes à beira das mais insensatas ações, mas o nosso herói sempre, no último momento, fraquejava, sem coragem para o arremesso.

Isso levava-o ao desespero. Para conseguir aquilo que sonhava era capaz de arquitetar fosse o que fosse de extremamente vil. Mas como quem dispõe é o destino, ele sempre acabava parecendo demasiado honesto para qualquer grande ruindade. (Mas para as ruindades pequeninas estava sempre mais do que preparado.) Considerava com repugnância e cólera a pobreza de sua família. Tratava até a própria mãe com altivez e desprezo, muito embora estivesse farto de saber que a reputação e o caráter dessa mulher eram o eixo sobre o qual o seu futuro repousava.

Ao entrar a serviço do General Epantchín dissera a si mesmo, imediatamente: “Já que tenho de ser ruim, hei de o ser totalmente, a ver se ganho ao menos a minha partida”. E, ainda assim, nem ruim completamente conseguiu ser. E por que imaginaria ele que precisaria de fato de ser ruim? Naquela ocasião, quanto a Agláia, simplesmente a temeu, mas se conservou de atalaia, à espreita de uma oportunidade, muito embora nunca tivesse acreditado, seriamente, que ela se valesse dele. E depois, ao tempo do seu caso com Nastássia Filíppovna, deu-lhe no bestunto imaginar que o dinheiro lhe seria o meio de conseguir tudo. “Se há de ser ruim, sejamo-lo com toda a perfeição”, incentivava-se continuamente. “Gente vulgar tem medo disso, mas eu não tenho.”

Havendo fracassado quanto a Agláia, e esmagado pelas circunstâncias, perdeu toda a coragem e imediatamente levou a Míchkin o dinheiro que uma louca lhe arremessara à cara depois de o receber, por sua vez, de um louco. Milhares de vezes, depois disso, se arrependera de ter devolvido aquele dinheiro, embora continuamente se estivesse jactando de o ter feito. E efetivamente derramara lágrimas, durante três dias, enquanto o príncipe fora a Moscou. E, naqueles três dias, o seu ódio para com o príncipe se multiplicara, só por este último o olhar com demasiada piedade embora “nem todo o mundo tivesse tido força” para um ato como esse de devolver o dinheiro. Mas a franca confissão que a si mesmo fazia, de que a sua miséria não era devida senão à contínua mortificação sofrida pela sua vaidade, o afligia horrivelmente.

Foi só muito depois que viu e compreendeu que fim bem diferente poderia ter tido o seu caso com uma criatura tão estranha e inocente como Agláia. Os remorsos quase deram cabo dele. Largara o emprego e caíra em desespero e desânimo. Fora obrigado a viver com o pai e a mãe em casa de Ptítsin, a expensas deste último, a quem abertamente desprezava, apesar de lhe seguir os conselhos e mesmo lhos pedir. Gavríl Ardaliónovitch estava aborrecido, por exemplo, com Ptítsin, por este não aspirar a tornar-se um Rothschild. Já que você enveredou pela agiotagem adentro, faça-o de modo absoluto: procure extorquir todo o mundo, amoede o dinheiro dos outros, mostre resolução, torne-se um rei entre os judeus.”

Mas Ptítsin era modesto e sem ambições, e apenas sorriu a isto. Mas, certa vez, viu ser necessário ter uma explicação a sério com o cunhado, desincumbindo-se dela com dignidade. Provou a Gánia que não agia desonestamente e que não admitia que o tratasse de judeu usurário; que não era sua a culpa do dinheiro ser considerado de tamanho valor; que agia estritamente com decência, não passando, na realidade, de mero intermediário em tais negócios, e que devia justamente à inteireza de sua atitude, nos negócios, ser considerado favoravelmente entre gente de bem, e estar obtendo lucros. “Nunca serei um Rothschilt e nem me passa pela cabeça tal ambição” - dissera, já a sorrir.

- “Mas terei a minha casa, embora pequena, na Litéinaia, talvez mesmo duas, e então farei ponto final”. “E, quem sabe, talvez mesmo três”, pensara mais de uma vez, sem porém pronunciar isso alto, sonhando escondido esse sonho de “meio-dia”.

A natureza gosta de gente assim e se compraz com ela. E recompensaria logo Ptítsin não com três, mas com quatro casas! E justamente porque ele resolvera desde a infância não ser nunca um Rothschild. Sem embargo, para além de quatro casas não avançará a natureza e o triunfo de Ptítsin terá fim aí.

Já a irmã de Gavríl Ardaliónovitch era pessoa bem diferente. Também ela afagava fortes aspirações; mas tais desejos apenas indicavam persistência e jamais impulso. Todas as emergências a encontravam alicerçada em bom senso e a todo o momento se servia disso na vida quotidiana. Não que não pertencesse, também ela, a essa gente “comum” que sonha ser original; cedo, porém, descobriu que não possuía nenhuma originalidade muito particular, mas se importou muito pouco com essa decepção que soube transformar em uma espécie de orgulho.

O seu primeiro passo prático, dado com eficiente decisão, foi o de se casar com Ptítsin. Mas, ao se casar, não dissera: “Já que tenho de ser ruim, que o seja então até conseguir o meu fim”, como com certeza a aconselhara seu irmão Gánia, e possivelmente falando alto, ao dar o seu consentimento de irmão mais velho a esse casamento. Muito pelo contrário, até: Varvára Ardaliónovna só se casou depois de se convencer que o seu futuro marido era um homem simples, sem ambição, medianamente educado, e que coisa alguma jamais o induziria a cometer qualquer ato que o desonrasse muito. Quanto a atos de ruindade pequenina, Varvára Ardaliónovna não se molestaria com tais insignificâncias, sabido como é que eles se encontram por toda parte. Que adianta procurar um ser ideal? E além do mais sabia que se casando providenciaria um refúgio para sua mãe, seu pai e seus irmãos. Ao ver o irmão em apuros tratou logo de ajudá-lo, esquecendo-se de todas as anteriores incompreensões mútuas.

Às vezes, e sempre de maneira amistosa, Ptítsin instigava o cunhado a arranjar um outro lugar. “Você tem birra dos generais e não passa todavia de um general”, costumava dizer-lhe, por brincadeira; “mas repare só, todos ‘eles’ acabarão sendo generais! Se você viver bastante se fartará de ver isso”. “Mas quem lhe meteu na cabeça que desprezo generais, sendo eu próprio um deles?” - pensava Gánia, ironicamente, lá consigo.

Por causa só do irmão, resolveu Varvára Ardaliónovna alargar o seu círculo de relações. Habilmente se houve até conseguir ir àcasa dos Epantchín, onde as recordações de infância a deixaram estar à vontade, visto ela e Gánia terem brincado, em crianças, com as meninas Epantchín. Temos de acentuar aqui que, se Varvára Ardaliónovna visitasse os Epantchín à cata de qualquer sonho fantástico, só por isso automaticamente se excluiria da classe de gente em que mentalmente se enfileirara. Mais não ia lá em perseguição de nenhum sonho. Achava-se mais era trabalhando em uma base muito firme; estava apenas calculando bem as peculiaridades da família Epantchín; não se cansando, nunca, de estudar o caráter de Agláia. A tarefa que se propusera era a de juntar esses dois, Agláia e o irmão, outra vez. Possivelmente atingiu eficazmente, mas só em dada extensão, esse objetivo; talvez tivesse feito alguns disparates, edificando demais sobre o irmão, esperando dele o que ele nunca, em circunstância alguma, poderia dar. Em todo o caso se comportou em casa dos Epantchín com uma arte considerável; durante semanas e semanas não fizera a menor alusão ao irmão; sempre fora muito sincera e natural, comportando-se com suficiente dignidade. Quanto às profundidades da sua consciência não tinha medo de perscrutá-las, não tendo sequer de que se censurar. Estava nisso a sua força. Só havia uma coisa que percebera em si mesma: também ser vingativa e ter uma boa dose de amor-próprio e até mesmo de vaidade mortificada. Dava-se conta disso principalmente em certos momentos, quase sempre quando voltava para casa vindo de uma dessas visitas aos Epantchín.

Agora mesmo, por exemplo, estava de volta de uma dessas suas visitas e, conforme já dissemos, se sentia preocupada e desanimada. Uma sombra de amarga mordacidade era visível em seu malestar. Ptítsin ocupava em Pávlovsk uma espaçosa mas não muito atraente casa um tanto feia, em uma rua poeirenta, casa essa que dentrode pouco tempo viria a ser de propriedade sua. (Ele já estava pensando em vendê-la.) Ia Varvára Ardaliónovna a subir os degraus, quando ouviu um barulho fora do comum, lá dentro, chegando até ela as vozes do pai e do irmão, gritando um com o outro. Entrando na sala de visitas deparou com Gánia a andar de um lado para outro, lívido de fúria, todo descabelado. Ela só fez uma coisa: atirou-se para um sofá, sem tirar o chapéu e fechou a cara com ar contrafeito. Mas como sabia que, se deixasse passar um minuto que fosse sem perguntar ao irmão por que razão estava em tal estado, ele certamente se enfureceria com ela também, logo se apressou em comentar, em forma de pergunta:

- A história de sempre, não é?

- Que história de sempre! - exclamou Gánia. - A habitual história! Não! Só o diabo sabe o que se passa aqui dentro e que não é, desta vez, a mesma coisa de sempre. O velho está ficando perfeitamente caduco... Mamãe virou uma catadupa de lágrimas. Dou-te a minha palavra de honra, Vária, desta vez ou o ponho na rua, digam o que disserem, ou então me vou eu! - acrescentou imediatamente ao lhe vir à mente não lhe ser possível expulsar ninguém de uma casa que não era a sua.

- Mas não deves ser irredutível. Tens de fazer certas concessões... - murmurou Vária.

- Concessões? Quais? - exclamou Gánia, inflamando-se. - Concessões aos seus asquerosos hábitos? Não. Vai dizendo o que te vier à cabeça, mas isso é impossível! De que jeito, então, hei de tratá-lo? Ele sabe que errou tremendamente e isso é que o põe ainda mais fora de si! A porta não chega, quer arrombar a parede também para entrar. Por que estás sentada aí assim? Vira-te para mim!

- Estou como fico sempre! - respondeu Vária, meio desajeitada.

Gánía olhou-a com maior atenção.

- Estiveste lá?

- Estive.

- Está vendo? Lá está ele a berrar outra vez! Mas isso éinsuportável, e ainda por cima, a esta hora!

- A esta hora, por quê? Que tem agora de especial?

Gánia encarou a irmã de maneira ainda mais esquisita e depois perguntou:

- Descobriste mais alguma coisa?

- Nada que eu já não esperasse; descobri que tudo é verdade mesmo. Meu marido estava mais perto da realidade do que nós. Está acontecendo justamente o que ele predisse desde o começo. Por falar nisso, onde está ele?

- Não sei se está em casa, ou se não. Que foi que aconteceu?

- O príncipe está formalmente noivo dela. É coisa resolvida. As mais velhas contaram-me. Agláia consente. Decidiram não encobrir mais. (Houve tanto mistério até aqui!) O casamento de Adelaída será transferido de maneira que os dois casamentos se realizem no mesmo dia. Uma concepção de todo em todo romântica! Inteiramente poética! Farias melhor escrevendo um poema para tal ocasião em vez de estar zanzando pela sala sem propósito. A Princesa Bielokónskaia deve chegar esta noite. Vem mesmo a calhar; haverá recepção. Ele vai ser apresentado à Princesa Bielokónskaia que todavia já o conhece. Creio que a participação será dada a público. Só estão com receio que quebre qualquer coisa ao entrar na sala de visitas ou, pior ainda, que escorregue e caia, o que não é de todo improvável.

Gánia ouviu com a maior atenção; mas estas notícias, que o deviam ter arrasado, para grande surpresa de sua irmã não pareceram, de modo algum, ter tido qualquer efeito depressivo sobre ele.

- Ora, isso estava mais do que claro - disse, depois de pensar um momento.

- E, pois, o fim - acrescentou, com um sorriso estranho, olhando de soslaio para o rosto da irmã e continuando a dar passos pela sala mas não tão apressados.

- Ora, graças, tomas conhecimento disso como filósofo. Fico realmente satisfeita.

- Lógico. É um peso que me sai do espírito. E para ti, também.

- Penso que te ajudei quanto pude, sinceramente, sem comentários nem aborrecimentos. Nem sequer te perguntei que espécie de felicidade esperavas de Agláia.

- Ora essa, estava eu esperando... alguma felicidade de parte de Agláia?!

- Por favor, não metamos filosofia nisso! Naturalmente que estavas. Mas tudo se foi e não há mais nada a fazer. Fomos uns bobos. Devo confessar que nunca tomei o caso a sério. Encarei-o simplesmente como uma probabilidade. Toda a minha presunção se baseava no caráter ridículo dela e o meu único objetivo era te ser agradável. Havia dez probabilidades contra uma de que isso desse em nada. E até hoje não sei o que era que esperavas.

- Agora, já sei; tu e teu marido tentareis fazer-me arranjar um emprego; dar-me-eis a ler coisas sobre perseverança, força de vontade e de como não se devem desprezar pequenas vantagens e uma porção de coisas mais. Já sei de cor. - E Gánia riu.

Vária calculou: “Ele está me ocultando qualquer plano”. Nisto Gánia a interrogou:

- Como foi que eles receberam isso? Ficaram contentes, o pai e a mãe?

- N... ão. Penso que não. Podes julgar por ti. Iván Fiódorovitch está alegre. A mãe está preocupada. Como pretendente ela nunca o aceitou, sabemos disso muito bem.

- Não é a isso que me refiro. Que ele é um pretendente inexeqüível, impossível, é evidente. Estou me referindo à atitude deles agora, depois do fato. Qual é a atitude deles agora? Ela já disse que sim, categoricamente?

- Ela até agora ainda não disse que não, eis tudo. E que mais se poderia esperar dela? Sabes muito bem quanto é espinoteadamente esquiva e reservada. Quando criança entrava de gatinhas para dentro do armário e ficava sentada lá dentro para se livrar das vistas. Apesar de ter crescido e ser hoje um florido mastro de quermesse, nessas coisas ainda é a mesma. Não sei, mas creio que, pelo menos do lado dela, ainda pode haver coisa. Dizem que caçoa do príncipe de manhã até de noite só para ocultar os seus sentimentos; mas deve arranjar cada dia, fingidamente, qualquer gracinha para lhe dizer, pois o tolo parece estar no céu, todo radiante. Dizem que está que é uma maravilha vê-lo. Foram elas que me disseram. Mas também me pareceu que as mais velhas estavam mais era rindo de mim. E na minha cara!

Gánia acabou por franzir o cenho; decerto Vária prosseguia em suas impressões com o fim de lhe comunicar o seu verdadeiro ponto de vista. Mas ouviram, outra vez, lá em cima, nova balbúrdia.

- Tenho de pô-lo para fora! rugiu Gánia, violentamente. como que satisfeito de achar com que vingar a sua tribulação.

- Sim.., para ele ir então nos desgraçar por aí, como já fez ontem!...        - Ontem? A que te referes? Como? Ele então... - E Gánia pareceu ficar terrivelmente alarmado e curioso.

- Ora, meu caro, pois não soubeste? - E Vária se adiantou para ele.

- O quê! Mas teria ele tido a coragem de ter estado lá? Não pode ser! - exclamou todo vermelho de vergonha e de raiva. -Deus do Céu! Mas vieste de lá, ouviste alguma coisa? O velho esteve lá? Dize logo de uma vez, esteve, ou não?

E Gánia embarafustou na direção da porta. Vária precipitou-se atrás dele contendo-o com as duas mãos.

- Que é que vais fazer? Onde vais? - perguntou. - Se o expulsas, ele fará pior do que já andou fazendo. Procurará todo o mundo.

- Que foi ele fazer lá? Que foi que elas disseram?

- Ora, nem elas próprias puderam contar-me, pois não entenderam nada; apenas as deixou assustadas. Foi à procura de Iván Fíódorovitch, que não estava. Então pediu para ver Lizavéta Prokófievna. Primeiro lhe pediu um lugar; queria um emprego; depois começou a se queixar de nós. De mim, de meu marido, de ti, especialmente... Falou uma porção de asneiras.

- Não chegaste a saber o quê? - Gánia contraía-se histericamente.

- Como poderia eu? Se nem ele sabia o que estava a dizer. Ou quem sabe se acharam melhor não me contar tudo?

Gánia deu um soco na cabeça e foi para a janela. Vária sentou-se rente à outra janela.

- Aquela Agláia é uma criatura absurda - observou inopinadamente. - Imagina tu que me deteve só para me dizer: “Tenha a bondade de apresentar os meus especiais respeitos a seu pai. Certamente ainda terei, um dia destes, a oportunidade de revêlo”. E disse isso com ar tão sério. Que coisa terrivelmente extravagante!

- Mas não foi zombando? Não foi zombando?

- Foi como acabei de dizer. Não foi zombando, mas foi esquisito... entendes?

- Saberá ela alguma coisa a respeito do velho, ou não? Que achas?

- Não paira no meu espírito a menor dúvida de que eles, na família, nada saibam. Mas a tua pergunta me despertou um pressentimento: talvez Agláia saiba. Talvez seja a única a saber, mesmo porque notei quando ela mandou seus cumprimentos a papai, de maneira tão cerimoniosa, que as irmãs ficaram surpreendidas. Por que só para ele, em particular? Se ela sabe, só poderia ter sido o principe quem lhe contou.

- Não é difícil adivinhar quem lhe contou. Um ladrão! Era só o que nos faltava! Um ladrão na nossa família, “o chefe da casa”!

- Não digas asneiras. - Vária acabou perdendo a paciência.

- Coisa de bêbado, eis tudo. E quem arranjou a história? Liêbediev, o príncipe... só servem para a mesma canga! São uns sabidões. Não ligues!

- O velho é um gatuno e um bêbado - prosseguiu Gánia, amargamente. - Eu não passo de um pedinte, o marido de minha irmã é um agiota - que atraente perspectiva para Agláia! Um inefável estado de coisas, lá isso não há dúvida!

- Mas esse marido de tua irmã, mesmo sendo um agiota... está...

- ... me agüentando aqui? Não é o que quiseste dizer? Não adoces o caso, é favor.

- Não emburres - disse Vária, modificando-se. - Não passas de um colegial; não compreendes coisa alguma.

Pensas que tudo isso te deprime aos olhos de Agláia! Não a conheces. Queres saber qual é o sonho dela? Dar o contra no pretendente mais precioso e fugir, de bom grado, com não importa qual estudanteco para ir morrer de fome em uma água-furtada! Nunca chegaste a entender quanto ela se interessaria por ti, e o que virias a ser aos seus olhos, se tivesses tido a habilidade de suportar o nosso ambiente com orgulho e fortaleza. O príncipe fisgou-a, em primeiro lugar porque não a andou pescando; e em segundo lugar porque é considerado por todo o mundo como um idiota. Só o fato de estar se servindo dele para assombrar a própria família é uma alegria para ela. Ah! Não compreendes absolutamente nada!

- Bem, veremos se compreendo, ou não - murmurou Gánia de modo enigmático. - Seja como for, incomoda-me saber ela alguma coisa a respeito do velho... Acho que o príncipe seria capaz de dar com a língua nos dentes.

E também me parece que obrigou Liébediev a ficar calado, pois não lhe consegui arrancar nada quando insisti em saber.

- Conforme estás vendo, o fato se propalou. Alguém foi. Claro que não incluímos o príncipe em uma coisa dessas. Aliás, que importância tem isso? E que é que estás esperando? Mesmo que te restasse alguma esperança, qual podia ser senão uma: ela considerar-te como um mártir...?

- Apesar de toda a sua propensão romântica, ela se acobardaria com um escândalo. Está tudo resolvido, mas apenas até certo ponto e debaixo de cautela. As mulheres são todas iguais.

- Dizes que Agláia se acorbadaria? - inflamou-se Vária olhando para o irmão desdenhosamente. – Tens mesmo uma alminha insignificante. Tu e o teu bando sois gente à-toa. Ela pode ser excêntrica e ridícula, mas é mil vezes mais generosa do que qualquer de nós.

- Está certo, está certo. Não é preciso emburrares - retorquiu Gánia, de modo complacente.

- Tenho pena de mamãe; o resto não me importa - continuou Vária. - Temo que esse escândalo referente a papai chegue aos seus ouvidos. Ah! Receio muito.

Ao que o irmão ponderou:

- Não tenhas dúvida de que já chegou.

Vária, que se levantara para ir até lá em cima com Nina Aleksándrovna, estacou, encarando o irmão com muita curiosidade.

- Quem lhe poderia ter dito?

- Ippolít, muito provavelmente. A maior satisfação da sua vida seria poder comunicar o caso a mamãe logo que se mudasse para aqui. Garanto!

- Mas como teria ele sabido? Dize, anda, fala! O príncipe e Liébediev devem ter guardado segredo. Kólía, por sua vez, ignora tudo.

- Foi Ippolít! Descobriu sozinho. Não imaginas que besta manhosa ele é. Que alcoviteiro! Que língua! Que faro que tem para descobrir qualquer coisa ruim, seja a espécie que for de escândalo. E por mais incrível que te pareça, tenho a certeza de que tem a pretensão de querer se insinuar junto de Agláia. Se ainda não arranjou meios, arranjará. Rogójin também já o conhece, e demais. Nem sei como o príncipe ainda não notou isso. Esse Ippolít tem uma sede de me liquidar! Considera-me seu inimigo pessoal. Percebi isso há bastante tempo... Por que e com que fim, agora que está para morrer, não posso atinar. Mas eu ficarei com a melhor. Verás como quem se liquida é ele, e eu fico invulnerável...

- Por que o atraíste para cá, se o detestas? Liquidá-lo, valerá a pena?

- Tu mesma não me aconselhaste a atraí-lo para a nossa casa?

- Pensei que te conviesse. Já soubeste que se apaixonou por Agláia e que lhe tem escrito?... Consta até que escreveu a Lizavéta Prokófievna.

- Por esse lado ele não oferece perigo - respondeu Gánía, com um sorriso de pouco caso - e é muito provável até que isso não passe de uma invenção. Quanto a estar apaixonado pode muito bem ser, pois é rapaz.

Mas.., escrever cartas anônimas à velha, não chegaria a tanto. Ele não passa de uma mediocridade insignificante e desprezível, mas enfatuada. Estou convencido que, se falou com ela a meu respeito, me pintou como um aventureiro sórdido; deve, no mínimo, ter começado por aí. Confesso que fui leviano, no começo, abrindo-me demais com ele. É que cuidei que, para se vingar do príncipe, trabalhasse pelos meus interesses. Mas é muito manhoso, o bruto! Só agora é que o compreendo inteirinho por dentro. Só podia ter ouvido da própria mãe, a viúva do capitão, essa história de furto. E todavia o que levou o velho a isso foi ela própria. Sim, foi por causa dessa mulher. Uma vez, sem mais aquela, me disse que o general prometera quatrocentos rublos à mãe. E disse isso sem quê nem para quê, absolutamente sem a menor cerimônia. Então compreendi tudo. Lembro-me da cara com que me disse isso, fitando-me com uma espécie de júbilo. E com certeza foi contar à mamãe também pelo simples prazer de lhe machucar o coração. E como é que neste mundo, onde tanta coisa acontece, não acontece ele morrer, explica-me! Garantiu morrer em três semanas. E não é que o estupor está até engordando? Já tosse menos; ainda na noite passada me disse que já havia dois dias que não escarrava sangue.

- Bota-o pra fora.

- Não penses que o odeio, não! Eu o desprezo! - Gánia pronunciou isso com orgulho. - Ora! Odeio-o sim! Se odeio! -exclamou repentinamente, com extraordinário arrebatamento. - E lhe direi na cara, mesmo que esteja na cama a morrer! Ah! Se lesses a tal confissão dele!... Senhor Deus, a ingenuidade da sua insolência! É direitinho um Tenente Pirogóv, um Nozdrióv bancando o trágico, e acima de tudo é um cachorro! Oh! Como me faria bem malhá-lo até achatá-lo, apenas para ver com que cara ficava! Agora, como está liquidado, quer a todo custo se vingar nos outros... Mas que é isto? Que barulheira é essa, outra vez? Não tolero mais isso, Ptítsin! - gritou ele para o cunhado que entrava na sala. - Que significa isso? Onde vamos parar? Mas isto é... mas isto é...

E a algazarra se aproximava precipitadamente. A porta se escancarou de repente, surgindo o velho Ívolguin, colérico, fora de si a descompor Ptítsin, em uma extrema agitação. O velhote era seguido por Nina Aleksándrovna. Kólia e Ippolít. que apareceu por último.

 

Havia cinco dias que Ippolít se mudara para a casa de Ptítsin. E isso se dera naturalmente; sem ter sido preciso romper com Míchkin. Muito pelo contrário, pois se despediram como bons amigos.

Gavril Ardaliónovitch, que aquela noite se mostrara tão antagônico, viera vê-lo, porém, trazido decerto por alguma idéia repentina e que tratou de realizar; Rogójin também aparecera em visita especial.

O próprio príncipe acabou por se convencer que era melhor para o pobre rapaz” sair de sua casa. Mas, por ocasião da mudança, Ippolít manifestara bem claro que se mudava por instâncias de Ptítsin “que, por bondade, lhe arranjara um canto”, e parece que muito íntencionalmente não declarou uma só vez que ia ser hóspede de Gánia, embora tivesse sido este quem em casa de Vária insistira para que o recebessem. Gánia percebeu isso logo depois, e se mostrou magoadíssimo. E não mentiu quando disse à irmã que o doente melhorara.

Efetivamente Ippolít parecia um pouco melhor do que antes, e a diferença era visível ao primeiro relance.

Entrou na sala depois de todos os outros, mostrando na cara um sorriso sarcástico e maligno. Nina Aleksándrovna também entrou muito assustada. Tinha mudado muito nesses seis meses, estando bem mais magra. Desde que se mudara para a casa da filha, depois do casamento desta, pusera de lado, pelo menos aparentemente, qualquer interferência nos negócios dos filhos.

Kólia estava aborrecido e preocupado porque não conseguia entender muita coisa da “maluquice” do general. “Maluquice” era como ele dizia, não estando ciente dos motivos da última barafunda doméstica. Inquietava-o saber que o pai brigava em toda parte, o dia inteiro, inesperadamente tão mudado que sem dúvida nenhuma não era mais o mesmo homem; e ainda por cúmulo dera em beber sem interrupção antes destes três últimos dias. Viera a saber até que o pai brigara não somente com Liébediev mas mesmo com o principe, rompendo de vez. Então resolvera trazer-lhe meia garrafa de vodca, paga do seu bolso.

- Na minha opinião, mãe, é deixá-lo beber - foi dizendo a Nina Aleksándrovna, ao subir a escada.

- Há uns dias que não toca em uma só gota. Eu até lhe levava na cadeia.

O general escancarou a porta, empurrando-a, e apareceu no umbral, trêmulo de tanta indignação.

- Senhor - berrou ele, com voz de trovão, para o genro. - Se decidiu, de fato, sacrificar, por um fedelho e ateu,um venerável velho, seu pai, isto é, o progenitor da sua esposa, que serviu ao seu soberano, então fique sabendo que a contar desta hora nunca mais porei os meus pés portas adentro desta casa.

Escolha, senhor, escolha imediatamente: ou eu, ou este... parafuso! Sim, um parafuso! Saiu-me sem eu pensar, mas é um parafuso, pois vara a minha alma, sem o menor respeito... Sim, um parafuso!

- Não quereria o senhor dizer um saca-rolhas? - atiçou Ippolít.

- Não, um saca-rolhas, não! Sou eu que estou diante do senhor, eu, um general, e não uma garrafa! Eu tenho condecorações, está ouvindo? - méritos honoríficos... e o senhor não tem nada, ora aí está! Tem de ser ele, ou eu! Resolva, senhor, imediatamente. Imediatamente! - continuava a berrar, furiosamente, para Ptítsin.

Nesse momento Kólia aproximou do general uma cadeira, sobre a qual ele se deixou cair, exausto.

A constrangida resposta de Ptítsin foi esta:

- O senhor faria melhor em se ir deitar a ver se dormia um pouco...

- Finja que o ameaça... - disse Gánia à irmã, em voz baixa.

- Ir deitar? - berrou o general. - Não estou bêbado, senhor. E não admito que me insulte, está ouvindo? Verifico - prosseguiu, levantando-se - que tudo aqui é contra mim. Tudo e todos! Não agüento mais! Vou embora! Mas o senhor pode ficar certo que...

Não lhe permitiram acabar. Obrigaram-no a sentar outra vez, pedindo-lhe que se acalmasse. Gánia, furioso, se retirou para um canto. Nina Aleksándrovna tremia e chorava.

Foi então que, de dentes arreganhados, muito cinicamente, Ippolít exclamou:

- Mas que foi que eu fiz a este senhor? De que se queixa ele?

- Não se faça de inocente! - observou-lhe Nina Aleksándrovna, sem lhe dar tempo.

- Isso até é vergonhoso para o senhor, em uma situação dessas, meter-se a atormentar um velho. Isso é desumano!

- Para começar, minha senhora, a que situação se refere? A senhora, pessoalmente, respeito muito... mas...

- Não passa de um parafuso... Pois não estão vendo? - vociferou o general.

- Reparem como ele vara o meu coração e a minha alma! Pois querem saber, esse tratante pretendeu que eu acredite no ateísmo! Deixe-me dizer-lhe, seu reles gaiato, que, antes do senhor ter nascido, já eu era cumulado de honras! O senhor não passa de uma minhoca invejosa, cortada em dois pedaços, tossindo e morrendo de despeito e ruindade! Para que Gavril foi meter o senhor aqui? São todos contra mim! Até o meu próprio filho.

- Ora! Deixe de armar tragédias! - interveio Gánia. - Faria melhor não nos andar envergonhando a todos, aí pela cidade.

- O quê? Eu te envergonho, seu desaforado? Eu só te dignifico, embora o não mereças! Eu não posso te envergonhar. - Danou-se a vociferar e não houve meios de contê-lo. Isso levou Gavril também a se desmandar:

- Não fale em honra! - berrou, zangado.

- Que é que você está dizendo? - trovejou o general, ficando lívido e dando um passo na direção do filho.

-Estou dizendo que o melhor é eu não abrir a boca... - rugiu Gânia, resolvendo calar-se.

Ficaram assim, de pé, um diante do outro. O mais furioso era o filho.

- Gánia, olhe o que está fazendo! - E Nina Aleksándrovna avançou para dominar o filho. Vária interrompeu-os, indignada:

- Que espetáculo, hein?! Mamãe, fique quieta! - disse, segurando-a.

- Se não fosse mamãe, o senhor ia ver!... - explicou Gánia, de modo trágico.

- Vamos, abra a boca! Fale! Não engula! Fale - rugia o general, em absoluto delírio.

- Ou falas, ou te amaldiçôo!

- Hei de me incomodar muito com a sua maldição! De quem éa culpa, se o senhor virou possesso estes últimos oito dias? Oito dias! Está vendo como contei direito? Veja lá, não me faça ir mais longe! Se me dano, conto tudo! Para que foi o senhor daqui fazer discursos na casa dos Epantchín? Que adianta vir depois dizer que é um velho de cabelos brancos, um pai de família? Belo pai, não há dúvida!

- Gánia!? Cala a boca, maluco! - dizia alto Kólia. - Cala a boca, maluco!

Ippolít resolveu insistir, voltando com aquela voz de motejo:

- Mas insultei como? Em quê? Quero saber: por que é que sou parafuso? Não o ouviram me chamar de parafuso? Eu estava bem sossegado e foi ele quem veio, ainda agora, me falar a respeito de um tal Capitão Ieropiégov. Eu não desejo absolutamente a sua companhia, general. Tenho me fartado de evitar o senhor. De mais a mais, que diabo, convenhamos que não me interessa esse Capitão Ieropiégov. O mais que fiz foi expressar a minha sincera opinião de que esse Capitão Ieropiégov muito possivelmente nunca existiu. Ele então armou um escarcéu.

- E certamente que nunca existiu mesmo! - reforçou Gánia. A expressão estupefata do general, rodando os olhos em volta, demonstrava o pasmo que as palavras do filho, ditas com tão extraordinária franqueza, lhe causavam. No primeiro instante, nem pôde achar palavras. E foi somente quando Ippolít desandou a rir do aparte de Gánia, gritando: “Escutou, aqui o seu filho também éda opinião que nunca existiu tal pessoa chamada Capitão Ieropiégov”, que o general, completamente desarvorado gaguejou:

- Kapitón Ieropiégov, e não capitão!... Kapitón... Tenente-Coronel reformado Ieropiégov Kapitón.

- Kapitón? Também nunca existiu nenhum Kapitón! - berrou Gánia, no auge da exasperação.

- Não houve por quê? - investiu o general, com o sangue a subir-lhe pelo rosto.

Ptítsin e Vária tentaram abrandá-lo:

- Vamos acabar com isso!

Kólia tornou a zangar:

- Cale a boca! Você aí, Gánia, cale a boca!

Mas essa intervenção só conseguiu dar tempo ao velho, que se refez.

- Baseado em que diz você que ele nunca existiu? Por que não existiu?

- Ai! Ai! Ai! Não existiu porque não existiu, aí está! E não podia ter existido! E quer saber de uma coisa?

Largue-me, estou lhe dizendo! Não adianta me ameaçar.

- E é meu filho.., o meu próprio filho... quem... ó Deus do Céu! Não existir uma pessoa como Ieropiégov! Ieróchka Ieropiégov!

- Mau! Mau! Agora já é Ieróchka, antes era Kapitóchka! - atiçou Ippolít.

- Kapitóchka, senhor! E não Ieróchka. Kapitón, Kapitón Aleksiéievitch, quero dizer, Kapitón... tenente-coronel a meio soldo, casado com Maria... Maria... Petróvna Su... su... su... Um amigo e camarada... Sutugóva... dos meus tempos de cadete. Por causa dele derramei sangue, protegi-o com meu corpo... mas ele foi morto! Não ter existido uma pessoa como Kapitóchka Ieropiégov! E que pessoa! Ah!... - rugiu o general, como um bárbaro, apesar de saber que aquilo que estava a dizer aos berros não era o que tinha importância naquele momento. Em outra ocasião não haveria de ser isso que o danaria. Talvez até qualquer outra coisa mais insultante, conforme a ocasião, não o pusesse em fúria, assim. Mas, desta vez, tal é o mistério do coração humano, acontecera que uma simples desconsideração, como essa dúvida de ter ou não existido Ieropiégov, exercera o efeito da última gota que derrama o cálice.., O velho ficou vermelho, levantou os braços ao céu e bradou:

- Basta! Maldição! Maldição! Nikolái, traz minha maleta! Vou embora! Vou embora!

Apressadamente se foi, indignadíssimo. Nina Aleksándrovna, Kólia e Ptítsin embarafustaram atrás dele.

- Viu o que você fez? - disse Vária ao irmão. - Vai rodar por aí, outra vez, na certa! Isto é uma desgraça!

- Não furtasse! - vociferou Gánia, salivando de raiva, nisto os seus olhos encontraram os de Ippolít. Então, virando-se para ele, com firmeza, mas na realidade encobrindo o sobressalto que sentira, proferiu:

- Quanto ao senhor, devia lembrar-se, afinal de contas, que está em casa alheia, usufruindo uma hospitalidade e não para irritar um velho que positivamente está fora do seu juízo.

Ippolít também ficou um pouco confuso; mas se refez instantaneamente.

- Não concordo muito com isso. Não creio que seu pai não esteja em seu juízo perfeito.

- Falava com absoluta calma. - Muito pelo contrário. Parece-me até que, ultimamente, ele vem tendo mais senso. O senhor não pensa assim? Tornou-se tão desconfiado, tão precavido! Espreita, acautela-se, pesa as palavras... E quando começou a me seringar com essa história de Ieropiégov ou Kapitóchka, logo percebi que tinha um intuito. Mera concepção pra ajeitar uma entrada...

- Escute lá! Vá para o diabo! Pouco se me dá que ele tenha querido ou não ajeitar fosse o que fosse!... Peço-lhe que não tente suas evasivas em mim - guinchou Gánia. - Se o senhor também está a par do que lançou o velho neste estado (e reparei que o senhor andou estes cinco dias aqui, espionando, e, a tal ponto, que nem mesmo disfarçou), se, pois, também está ciente, mais uma razão para não irritar esse pobre infeliz e nem aborrecer minha mãe, exagerando o caso! Está farto de ter entendido que foi tudo burrada da bebedeira, apenas, e não mais; coisa enfim que não prova nada, que nem merece atenção! Mas preferiu espionar e atormentar porque o senhor é...

- Um parafuso! - E Ippolít riu.

- Porque o senhor é uma criatura abjeta; teve o desplante de atormentar durante meia hora uma porção de gente, intimidando-a com a afirmação de que se ia matar com uma pistola que afinal nem carregada estava, e se deu ao papel de se sujeitar a uma exibição dessa ordem, seu saco ambulante de fel, que não é capaz nem mesmo de se suicidar sem fazer o próprio panegírico, para afinal até na morte falhar como já falhou no resto! E eu lhe dei hospitalidade, mediante a qual começou a engordar, a parar de tossir! E, em paga...

- Peço permissão somente para duas palavras: estou na casa de Varvára Ardaliónovna, e não na sua! Se não incido em equívoco, o senhor também está usufruindo a hospitalidade do Senhor Ptítsin. Mas, há quatro dias, encarreguei minha mãe de me procurar cômodos aqui em Pávlovsk e de se mudar também ela para aqui, visto o clima me convir, o que não quer dizer que eu tenha engordado e não tussa mais. Comunicou-me minha mãe, ontem à noite, que um aposento está à minha espera. Assim, pois, me apresso em lhe participar que, por minha parte, agradecendo a bondade que sua mãe e sua irmã me dispensaram, me mudarei ainda hoje, conforme já resolvi desde a noite passada. E desculpe tê-lo interrompido, visto me parecer que o senhor ainda tem muito que dizer.

- Oh! Se é assim! - disse Gánía, contraindo-se.

- Se é assim, permita que me sente - acrescentou Ippolít, sentando-se com perfeito ademã na cadeira onde antes estivera o general. - Além do mais, estou doente, o senhor bem sabe. Bem. Agora estou à sua disposição para escutar o que provavelmente vai ser a nossa última conversa, ou, usando de um maneirismo mais lato, o nosso último encontro.

Gánia subitamente se sentiu envergonhado,

- Não pense que estou aqui para me diminuir, entretendo-me em palestra com o senhor. E caso...

- Não é preciso ficar exaltado - interrompeu Ippolít. - No dia exato em que vim para aqui, a mim mesmo fiz o voto, ou promessa, de não me negar o prazer de saldar antigas contas com o senhor, e da maneira mais cabal e eficaz, na hora da nossa despedida. Minha intenção é fazer isso agora, mas depois do senhor, naturalmente.

- Peço-lhe que saia desta sala!

- Eu achava melhor o senhor falar! O senhor sabe que se arrependerá se não desembuchar!

- Contenha-se, Ippolít. Isso tudo é tão degradante! Faça o favor de ficar quieto - disse Vária.

- Tão só para obedecer a uma dama - riu Ippolít, levantando-se. - Com a maior boa vontade, Varvára Ardalióvna. Pela senhora estaria pronto a acabar definitivamente, mas tenha paciência, pois umas certas explicações entre mim e seu irmão são absolutamente essenciais e, por nada deste mundo, eu me iria, deixando um mal-entendido.

- Em letras redondas, o senhor não passa de um traficante de escândalos - gritou Gánia - e só por isso quer se despedir com um escândalo.

- Ora aí está, vê o senhor? - observou Ippolít, friamente. - Volta ao assunto. Aliás eu já lhe tinha feito ver que o senhor lastimaria se não desembuchasse. Mais uma vez lhe abrirei o caminho. e agora estou à espera de suas palavras.

Gavríl Ardaliónovitch encarou-o com o maior desdém.

- E o senhor a não querer falar. Quer me dar a entender, com isso, que prefere guardar a parte que lhe compete! Faça como lhe aprou ver. Por minha vez, serei tão breve quanto possível. Hoje, já por duas ou três vezes, fui censurado por ter aceito a sua hospitalidade. Isso não é bonito! Ao convidar-me para vir ficar aqui com o senhor. o senhor ensaiou engodar-me, contando que eu pagaria as culpas do príncipe. O senhor veio a saber, além disso, que Agláia Ivánovna, demonstrando simpatia por mim, lera a minha confissão. Supondo, não sei por que, que eu estava pronto a me devotar completamente aos seus interesses, o senhor cuidou que eu o ajudasse a seu modo. Não quero nem tenho tempo para amiudar esta explicação. Tampouco peço confissões, ou termos fixos, da sua parte. Basta que eu deixe isso para a sua consciência, entendendo-os agora, cabalmente, um ao outro.

- Só Deus sabe que complicações o senhor faz com as coisas mais comuns! - refletiu Vária.

- Eujá expliquei: esse indivíduo é um traficante de escândalos, um imundo colegial! - reafirmou Gánia.

- Com licença, Varvára Ardaliónovna. preciso continuar. Ao príncipe, naturalmente, não posso respeitar nem amar, embora sabendo que seja um homem bom conquanto bem ridículo. Mas não posso, por isso, dizer que tenha motivos para detestá-lo. Não impedi que seu irmão tentasse fazer de mim uma escora contra o príncipe.

Eu fingia estar a olhar para a frente, para depois dar uma boa gargalhada. Eu sabia que seu irmão cometeria um erro de palmatória, inutilizando-se, lastimavelmente. E assim foi... Estou pronto a poupá-lo, agora, simplesmente em consideração à senhora, Varvára Ardaliónovna. Mas já que esclareci não ser fácil apanhar-me, explicar-lhe-ei, também, por que fiquei tão ansioso por enfurecer seu irmão. Devo dizer-lhe que agi assim porque o detesto e aqui o confesso francamente. Quando eu morrer (porque acabo morrendo, mesmo que tenha engordado como disseram), quando eu morrer, desconfio que irei para o paraíso com o coração incomparavelmente mais aliviado, caso, em vida ainda, tenha conseguido enfurecer ao menos um espécime da classe de gente que me andou perseguindo a vida inteira, e a quem eu toda a vida tenho odiado, classe essa da qual seu irmão é um excelente e notável exemplar. Gavríl Ardaliónovitch, eu detesto você simplesmente porque - e há de este “simplesmente porque” lhe parecer maravilhoso -, simplesmente porque você é o tipo, a encarnação, o supra-sumo da mais insolente, da mais vulgar, da mais repugnante e da mais pomposa mediocridade. A sua mediocridade é feita de pompa, de vaidade, de contentamento olímpico. Você é mais ordinário do que o que de mais ordinário possa haver. Jamais a menor idéia de vontade própria se esboçou no seu coração, quanto mais em seu espírito! Acresce a isso que a sua vaidade não tem limites; você se persuadiu de que éum grande gênio; como, porém, a dúvida às vezes lhe tira o sono em certos momentos opacos, então, por isso, a sua inveja e o seu rancor se desmandam. Mas esses trechos opacos, sim, negros, ainda lhe toldam o horizonte. Quando, porém, você acabar de ficar estúpido, o que não falta muito, eles se clarearão. Mesmo assim, jaz diante de você uma longa e tortuosa estrada. Como me alegro em não poder chamá-la uma estrada prazenteira! Em primeiro lugar, desde já lhe vaticino que não obterá uma certa jovem...

- Oh! Isso é insuportável! - exclamou Vária. - Cale-se, criatura malvada e horripilante.

Gánia estava branco. Contraído e calado. Ippolít parou, encaroudemoradamente, com prazer e com desdém; depois se virou para Varvára, fez-lhe uma saudação, curvando-se, e saiu sem acrescentar nenhuma palavra mais.

Por algum tempo Vária não ousou dirigir-se ao irmão, nem sequer olhá-lo enquanto ele dava grandes passadas pela sala, de um lado para o outro, decerto com muita justiça se queixando intimamente do quinhão recebido e do vexame que não evitou. Acabou indo para a janela, onde ficou, de costas para a irmã que pensava no provérbio russo: “Faca que corta com os dois gumes...” Nisto começou, outra vez, uma barulheira lá em cima.

- Onde é que vais? - perguntou Gánia, virando-se logo que reparou que ela se estava levantando para subir.

- Espera um pouco. Olha isto aqui.

Aproximando-se dela, lhe atirou sobre a cadeira um pedaço de papel dobrado em dois, como um cartão.

- Céus divinos! - sussurrou Vária, juntando as mãos. O bilhete continha sete linhas apenas:

 

“Gavril Ardaliónovitch.

Convencida como estou dos seus amistosos sentimentos para comigo, tomo a liberdade de lhe pedir conselho em assunto da máxima importância para mim. Ficar-lhe-ia muito reconhecida se fosse encontrar-se comigo, amanhã, às sete horas, no banco verde. Fica perto da nossa vila.

Varvára Ardaliónovna, que o deve acompanhar, sabe onde é.

A. E.”

 

- Céus divinos! Que irá fazer ela, desta vez? - E Varvára Ardaliónovna estirou os braços para o céu, em súplica. Depois do que tinha sofrido, e ainda sob o eco da profecia de Ippolít, Gánia não pôde logo demonstrar o seu triunfo, mas pouco a pouco lhe veio disposição para fanfarronadas. Vendo Vária também radiante de satisfação, não reprimiu o sorriso de íntima alegria que lhe percorreu o rosto.

- E justamente logo no dia em que o noivado vai ser anunciado! Efetivamente ninguém é capaz de saber o que ela fará desta vez!

- Que é que pensas? Que será que ela me quer falar amanhã?

- Não te importes com isso. O que tens de reparar é que é a primeira vez que te quer ver, depois de seis meses. Ouve bem. Gánia. Aconteça o que acontecer, dê no que der, garanto-te que é importante.

É tremendamente significativo. Não te pavoneies, não faças nenhum disparate e nem te acovardes, tampouco. Presta atenção. Ela agora deve ter adivinhado com que fim eu andei batendo pernas daqui pra lá, estes seis meses todos! E calcula só, não me disse uma palavra, hoje, um indício sequer! Estive lá, às escondidas, já te contei. A velha nem percebeu, do contrário me mandava agarrar. Arrisquei-me a isso, por tua causa, e com que custo!

Lá em cima, novamente, começou a gritaria; e pouco depois, várias pessoas, descendo, faziam barulho.

- Isto, ainda mais agora, não convém de modo algum - exclamou Vária contrariada, persuadindo o irmão de que não convinha uma sombra sequer de escândalo. - Sobe, vai ao encontro dele. Pede-lhe perdão!

Mas o chefe da família passou por eles e saiu pela rua afora. Kólia esbofava-se, com a sacola atrás do pai.

Nina Aleksándrovna ficou a chorar, parada no patamar; depois tentou precipitar-se atrás dele; mas Ptítsin a puxou degraus acima, dizendo-lhe:

- Não piore as coisas. Ele não tem para onde ir. Será trazido de volta em menos de meia hora; já dei ordem a Kólia. Deixá-lo fazer-se de louco.

Gánia gritou-lhe da janela:

- Não se faça de herói. Para onde quer ir o senhor? Não tem para onde ir!

Vária chamou-o:

- Volte, papai. Os vizinhos acabam escutando...

O general virou-se bem, ergueu a mão esticada para o céu e bradou:

- Que a maldição do Todo-Poderoso caia sobre esta casa!

- Ouçam... parece canastrão teatral... - murmurou Gánia fechando a janela com uma pancada súbita.

Os vizinhos decerto estavam ouvindo. Vária saiu da sala para os seus cômodos, correndo. Vendo-se então sozinho, Gánia pegou no bilhete de cima da mesa e o beijou; depois estalou os dedos com satisfação e piruetou sobre si mesmo.

 

A cena havida com o general em outras circunstâncias teria dado em nada. Ele tivera, antes, muitas vezes, explosões de mau gênio, desta mesma qualidade, embora muito espaçadas umas das outras. E, falando de um modo geral, era um homem de boa índole e até de disposição bondosa. Lutara, mais de cem vezes, com os maus hábitos que se vinham assenhoreando dele nos últimos anos. Caía sempre em si, recordando-se que era um chefe de família, queria reconciliar-se com a esposa, e não era raro derramar lágrimas sinceras de arrependimento.

Respeitava e venerava mesmo Nina Aleksándrovna por lhe haver perdoado muito e por amá-lo sabendo embora que ele se tornara uma figüra grotesca e degradada. Pena era que os bem intencionados esforços do seu coração para dominar as suas falhas durassem tão pouco. E o pior era que o general tinha um caráter demasiadamente “impulsivo”. Não conseguindo suportar durante muito tempo o vazio da sua vida, relegado em casa como mero penitente, acabava sempre por se revoltar. Era presa de paroxismos e de excitação dos quais ele próprio não cansava de se repreender intimamente, conquanto isso pouco adiantasse. Brigava, punha-se a discutir, empregando uma exótica eloqüência e uma retórica exagerada, insistindo em querer ser tratado com o maior respeito e consideração, acabando, quase sempre, por abandonar a casa, às vezes até por dias e dias seguidos. Nesses dois últimos anos tinha apenas uma vaga idéia das coisas domésticas, só sabendo delas “por ouvir dizer”. Desistira de aprofundar a curiosidade em tais casos, não sentindo mais o menor impulso para tal.

Desta vez, porém, a explosão do general assumira excepcional desespero porque, no fundo, a causa e a razão eram graves. Todos pareciam estar cientes de certa coisa, mas se sentiam temerosos de aludir a ela. O general apresentara-se de um modo formal perante a família, ou, mais propriamente, perante Nina Aleksándrovna, havia três dias. Mas não se apresentara, como das outras vezes, humilde e arrependido. A reaparição, desta vez, estava marcada, ao contrário, por uma irritabilidade que se evidenciava na sua loquacidade, nos seus movimentos, no modo de defrontar os demais, de cabeça erguida e ademã violento, fosse quem fosse que encontrasse, muito embora, como sempre, descambando, nas disputas, para assuntos inadequados e impróprios, não sendo possível a ninguém atingir o fundo daquilo que o atormentava. Não que, lá uma vez ou outra, não se mostrasse prazenteiro. A maior parte do tempo, porém, vivia taciturno, parecendo, todavia, nem ele mesmo saber sobre que fato meditava tanto. Se, por exemplo, se metia em uma conversa onde se falasse de Míchkin, dos Epantchín, de Liébediev, não era raro, sem mais aquela, interromper as perguntas ou as respostas, permanecendo com um sorriso vago, sem se dar conta que estava a sorrir ou que jaziam à espera da sua resposta. Levara a noite anterior gemendo e se lastimando, cansando assim Nina Aleksándrovna que passara toda a noite acordada a preparar-lhe fomentações. Mas, ao amanhecer, caíra em um sono profundo, a ponto de dormir quatro horas seguidas. Mas acordara com um ataque violentíssimo e desordenado de hipocondria cujo remate lógico fora uma briga com Ippolít e “uma maldição sobre esta casa” (como dera, ultimamente, em dizer à toa). Também haviam reparado que, durante esses três últimos dias, dera em ter acessos de amor-próprio, o que o tornou, de um modo mórbido, suscetível a ofender-se por nonadas, levando Kólia a reiteradamente explicar àmãe que isso era falta de bebida, ou talvez, até, uma “espécie de saudade” de Liébediev, de quem o general se tinha tornado excessivamente amigo, de tempos para cá. Mas que fazer, se justamente três dias antes brigara sem mais aquela com Liébediev, separando-se dele como uma fúria?

Pois se até com Míchkin houvera uma cena, a ponto de Kólia ter ido pedir esclarecimentos! Disso resultara Kólia suspeitar que o príncipe sabia de alguma coisa que não queria dizer, tendo Gánia feito a mesma suposição, com muita possibilidade de acerto. Chegara a haver uma conversa entre Ippolít e Nina Aleksándrovna e era de estranhar que esse vingativo rapaz chamado tão francamente por Gánia de “traficante de escândalos”, tivesse tido a prudência de não iniciar KóLia em segredos funestos. Era muito provável que Ippolít não fosse o malicioso e sórdido “cachorro” que Gánia descrevera à irmã. Ou a sua malícia era de outra maneira, não tão acessível à primeira vista? Mas era provável que tivesse informado Nina Aleksándrovna dos seus reparos e averiguações, só para lhe “quebrar o coração”... Não nos esqueçamos que as causas das ações humanas são, de hábito, incomensuravelmente mais complexas e variadas do que as subseqüentes explicações que delas damos.

Estas últimas podem ser definidas de maneira mais singela. O melhor caminho, para um contador de histórias, é restringir-se ele à simples narrativa dos fatos. E esta será a linha que adotaremos no resto da narrativa da atual catástrofe da vida do general. Fazemos isso, porque inevitavelmente devemos conceder mais espaço e atenção do que originariamente tínhamos deliberado para este personagem de importância aparentemente secundária em nossa história.

Esses acontecimentos se tinham sucedido uns aos outros, na ordem seguinte:

Quando Liébediev voltou, naquele dia mesmo, com o general, de Petersburgo, onde fora procurar Ferdichtchénko, nada dissera de particular a Míchkin. Não estivesse o príncipe preocupado e com o tempo absorvido em outras impressões de grande importância, teria percebido logo que, durante dois dias, Liébediev, em vez de lhe vir dar qualquer explicação, pelo contrário, e por qualquer motivo, evitava encontrar-se com ele. Quando o príncipe pôde, afinal, volver a sua atenção para o assunto, se surpreendeu de se haver esquecido que nesses três dias tinha encontrado Liébediev naqueles seus habituais e antigos estados de bem-aventurança de espírito sempre em companhia do general. Não podiam passar nunca um sem o outro, um só momento que fosse. Muitas vezes ouvira o príncipe os sons da ruidosa e precipitada conversa, seguidos de alegres disputas, no andar de cima. Certa vez, mesmo, as apojaturas de uma canção marcial báquica romperam repentina e inopinadamente em seus ouvidos, logo reconhecendo o basso profondo do general. Mas a canção parara antes do final. Depois, em uma outra hora, se seguira uma palestra extremamente animada e por sinal que tipicamente de bêbados. Seria até fácil conjeturar que os amigos se estavam a abraçar, acabando, porém, um deles, por chorar. Arrematara tudo uma briga violenta, a que sucedera súbito silêncio, logo depois.

Agora, por causa disso, parecia preocupado, e como o príncipe geralmente precisava ausentar-se de casa, só voltando tarde, sempre lhe comunicavam, depois, que Kólia andara à sua procura. Mas quando sucedia encontrarem-se, Kólia parecia não ter nada de particular para lhe contar, a não ser que “não estava satisfeito” com o general, nem com os seus modos, “atualmente”. “Eles andam sempre juntos, embebedam-se em uma taverna, saem abraçados, brigam em plena rua. Pregam partidas um ao outro e não se podem separar”. Quando o príncipe lhe fez ver que antes era a mesma coisa, todos os dias, Kólia ficou como se quisesse dar uma outra explicação recente, mas acabou por não poder explicar a causa de uma presente intranqüilidade.

Na manhã que seguira à noite da cantiga e da briga, ia o príncipe saindo de casa, cerca das onze horas, quando esbarrou com o general que entrava e que lhe pareceu muito excitado e lastimavelmente esbodegado.

- Desde muito tenho buscado a honra de encontrá-lo, honradíssimo Liév Nikoláíevitch. Desde muito!

- Apertou a mão do príncipe com tanta firmeza que quase o machucou. – Desde muito, muito tempo.

O príncipe convidou-o a sentar-se um pouco.

- Não, não me sentarei. Não quero retê-lo. Virei uma outra vez. Terei, então, o ensejo de congratular-me com o senhor, a proposito do estado de graça do seu coração boníssimo.

- Qual estado de graça do meu coração?

O príncipe ficou desconcertado, pois, como quase toda gente em situação especial igual à sua, supunha que a ninguém era dado adivinhar ou compreender nada do seu íntimo.

- Não se incomode! Não se incomode! Não ferirei os seus mais delicados sentimentos. Já conheço isso e sei o que isso é, quando uma outra pessoa intromete o nariz, como se costuma dizer... onde não é chamado. Sinto isso cada manhã. Vim, por causa de um outro negócio muito importante. Um negócio muito importante, príncipe.

O príncipe tornou a pedir-lhe que se sentasse e deu o exemplo, sentando-se primeiro.

- Por um segundo, vá lá. Vim, para me aconselhar. Eu já não tenho, naturalmente, nenhum alvo na vida; mas como me respeito a mim mesmo, e como admiro o espírito prático no que aliás o russo só dá provas de deficiência... Desejo recolocar-me, bem como a minha esposa e meus filhos, em uma situação... Príncipe, preciso de seus conselhos!

O príncipe aplaudiu calorosamente tais intenções.

- Bem, tudo isto não foi mais do que uma série de disparates que me pus a dizer-lhe, príncipe... - interrompeu o general, subitamente, mudando para outro assunto. - O que eu desejava dizer, era outra coisa, e essa, importante. Simplesmente lhe desejo explicar, Liév Nikoláievitch, como a um homem em cuja sinceridade de coração e nobreza de sentimentos tenho a mais completa confiança, que... que... As minhas palavras surpreendem-no, príncipe?

O príncipe observava o seu visitante, se não com surpresa, ao menos com extrema atenção e curiosidade.

O velho estava um tanto pálido; de instante em instante os seus lábios se repuxavam e as suas mãos não podiam ficar quietas. Tendo ficado sentado menos do que dez minutos, ainda assim por duas vezes se levantou, por qualquer motivo, e outras tantas se tornou a sentar, obviamente não prestando a menor atenção no que estava dizendo e fazendo. Havia alguns livros sobre a mesa: tomou um deles, e, sempre a falar, abriu-o, deu uma olhadela a uma página, fechou-o imediatamente e o repôs sobre a mesa, alcançou um outro livro, que nem abriu, ficando a segurá-lo todo o tempo, com a mão direita, agitando-o no ar, conforme a gesticulação.

- E basta! - gritou, subitamente. - Vejo que estive a incomodá-lo tremendamente.

- Oh, de maneira nenhuma! Faça o favor de prosseguir. Muito pelo contrário. Estou escutando e procurando adivinhar em que lhe possa ser útil.

- Príncipe, anseio ganhar por mim próprio, uma situação de respeito... Estou ansioso... quero... respeitar-me... a mim, e... aos meus direitos!

- Um homem animado por tal desejo já é digno de respeito, só por essa razão.

Como pudera o príncipe usar, ali, de uma expressão de almanaque, dizendo aquela frase que aparece nos guias de bom-tom? Naturalmente porque lhe veio a firme convicção de que isso produziria um excelente efeito.

Adivinhara, instintivamente, que qualquer frase redonda, mas agradável, pronunciada no momento exato, teria imediatamente uma influência não só irresistível como também calmante no espírito desse homem, especialmente na situação em que desconfiava achar-se o general. Fosse como fosse, só poderia mandar embora uma tal visita depois de lhe iluminar o coração! E esse era o problema.

A frase envaideceu e comoveu o General Ívolguin, agradando-o muito. E imediatamente ficou derretido, mudando para o tom de outrora; e começou a desembuchar toda uma explicação entusiástica. Mas, conquanto se esforçasse por ouvir com a maior atenção, Míchkin não logrou entender absolutamente nada. Nesses dez minutos o general falou veementemente, aos atropelos, como se lhe fosse impossível despejar como queria a aluvião de pensamentos com a necessária pressa. Positivamente lhe apareceram lágrimas nos olhos, lá para o fim, muito embora não dissesse nada, a não ser orações e sentenças sem começo nem fim, que se atropelavam umas sobre as outras! - Agora, chega. Já me compreendeu. Estou satisfeito - concluiu, levantando-se logo.

- Um oração como o seu não pode deixar de compreender um homem que sofre. Príncipe, o senhor é idealmente generoso. Que valem os demais homens, diante do senhor? Mas é moço, e eu o abençôo. O simples e o complexo, em tudo isto, é que vim pedir-lhe uma entrevista, um encontro, uma hora certa, para uma conversa importante comigo, e na qual repousa toda a minha esperança. Não solicito mais do que amizade e simpatia, príncipe. E esta sofreguidão de amizade e simpatia que há no meu coração nunca a pude governar, príncipe.

E por que não imediatamente? Estou pronto a ouvi-lo.

- Não, príncipe, não! - interrompeu ardorosamente o general.

- Agora, não! Agora seria um sonho vão! É muito, muito importante! A hora dessa conversação será a hora de um irrevogável destino. Será a minha hora! E eu não desejaria que nos fosse dado termos de interromper um momento tão sagrado por causa de qualquer eventual arrivista, qualquer sujeito impudente! E que abundância não há, caro príncipe, de tais indivíduos! - Abaixou-se para o príncipe, de súbito, e disse com estranho, misterioso e quase assustador sussurro: - Um desses indivíduos impudentes que não valem a biqueira do seu sapato, príncipe adorado! E não éao meu sapato que os comparo! Tome nota, muito especialmente, que não estou tomando como termo de comparação o meu sapato, a este aqui, pois tenho muito respeito de mim mesmo para dizer diretamente que... Mas só o senhor é capaz de compreender que não me referindo em tal caso à biqueira do meu sapato, mostro, talvez, o mais alto orgulho de mérito - e de consideração! Salvo o senhor, mais ninguém compreenderá isso... E ele, ainda menos do que os demais. Ele não compreende nada, príncipe, ele é absolutamente, totalmente incapaz de compreender. Para entender, urge ter coração!

Alarmando-se, o príncipe marcou para o dia seguinte, àquela mesma hora, um encontro com o general que, reanimado ante tal conforto, saiu todo confiante. E, à noite, entre seis e sete horas, o príncipe mandou pedir a Liébediev que viesse vê-lo, por um instante.

- Muito orgulhoso por tamanha honra! - foi logo dizendo Liébediev, cuja aparição foi feita com alacridade, decerto para desvanecer a suspeita de que se estivera, nesses três dias, a esconder, evitando encontrar o príncipe.

Sentou-se na beira da cadeira, com sorrisos e tiques, os olhinhos cautelosos e risonhos, friccionando as mãos, assumindo um ar bem-aventurado ante a perspectiva de ir Ouvir certa comunicação de importância primacial desde muito esperada e adivinhada por todo o mundo. O príncipe retraiu-se. (Desde tempos notara que, gratuitamente, toda gente esperava uma novidade, esperando só que ela fosse participada para se congratularem, adiantando-se, porém, em prognósticos, sorrisos e olhares. Keller, por exemplo, uma ou duas vezes, viera visitá-lo, muito pressuroso, não se demorando mais do que um minuto, mas o desejo de Lhe dar parabéns era notório nele; ambas as vezes, porém, não ousara sequer começar, tendo-se retirado imediatamente, para um salão de bilhar onde, ultimamente, fazia sensação, bebendo “pesadamente”. Até mesmo Kólía, apesar de sua tristeza, tentara iniciar um assunto indireto...)

Sem preâmbulos, Míchkín perguntou a Liébediev - havia irritação na sua voz - que pensava do estado de espírito do General Ívolguin, que parecia andar tão inquieto. (Complementarmente, pôs Liébediev a par da cena de ainda há pouco.)

- Cada qual tem motivos para inquietações, príncipe... e, de modo especial, nesta hora estranha e difícil, conforme o senhor sabe. - Foi uma resposta dada com secura a que se seguiu o silêncio ofendido que caracteriza o ar de uma pessoa que acaba de se decepcionar profundamente por causa de uma perspectiva falhada.

Que filosofia! - sorriu o príncipe.

- Em nossa idade, bem proveitosa que é uma filosofiazinha, por causa da sua lição prática. Mas até ela é menoscabada! Da minha parte, excelentíssimo príncipe, lhe sou muito grato pela confiança que se dignou testemunhar-me a respeito de certo e determinado porto, embora até um grau muito relativo, apenas... Compreendo que assim devesse ser e não me queixo...

- Liébediev, parece que você está ressentido por alguma coisa!

- Absolutamente, de modo algum, distinto e resplendente príncipe! De modo algum.

- Liébediev apaixonou-se, levando as mãos ao coração. - Pelo contrário. Sei que, nem pela posição que desfruto neste mundo, nem pelas qualidades sejam de espírito ou de coração, e tampouco pela soma de minha fortuna, sei que, de modo algum, mereço a confiança com que o senhor me honra, e que está muito acima de minhas esperanças; se, de algum modo, o nosso servir, só será como escravo e mercenário. Nem poderia ser de outra forma. Ressentido.., não estou. Estou, mais é... triste.

- Vamos, vamos, Lukián Timoféietch!

Nem poderia ser de outra forma. E assim, verifico, também,o  presente caso. Vindo ao seu encontro, levando o senhor no coração e no pensamento, disse comigo: “Sei que, como amigo, não mereço a vossa confiança, mas como locatário da casa em que morais, talvez venha, em tempo oportuno, e um pouco antes do acontecimento que se vai dar, a receber um aviso, ou... no mínimo, uma notificação, ligadas as coisas e a certas transformações esperadas para um futuro próximo.”

Dizendo isto, Liébediev não tirava do príncipe os olhinhos agudos, a tal ponto que o príncipe, estupefato, quase se decidiu a lhe satisfazer a curiosidade, acabando, porém, por se enraivecer.

- Não compreendo uma só palavra! E você não passa de um terrível intrigante! - Disse e rompeu em uma gargalhada. Instantaniamente Liébediev também riu, confirmando e redobrando as suas esperanças.

- E sabe você, Lukián Timoféietch, o que tenho a, dizer-lhe? Não fique zangado, mas a sua simplicidade me espanta. E não só a sua. Você está esperando uma coisa de mim, e com tamanha simplicidade que eu me sinto verdadeiramente envergonhado e com a consciência doendo, por não ter nada, absolutamente nada, para satisfazê-lo. Juro, é a verdade. Nada! Viria você a supor isso? - E o príncipe tornou a rir.

Liébediev arranjou um arde dignidade, habilmente ficando calado, por astúcia e velhacaria, talvez para não continuar a ser acoimado de ingenuamente indiscreto e Curioso. Desde muito o príncipe se arriscava a tê-lo como inimigo por causa do modo com que habitualmente o mandava embora. Mas o príncipe sempre fizera isso não porque ele o desgostasse, mas por causa dessa Curiosidade insuportável, Ainda um dia desses, por exemplo, Míchkin diante dele se refreara, só porque considerava os seus sonhos e esperanças como crime; e, todavia, Liébediev imediatamente tomou tal reserva como prova de uma desconfiança pessoal, ou mesmo como aversão; melindrara-se, com o coração cheio de ciúme não só de Kólia e de Keller, como da própria filha Vera. Todavia, agora mesmo, estava apto a contar uma porção de novidades; e sinceramente desejava contá-las, apesar de estar assim sinistramente calado.

Depois de breve Silêncio, perguntou:

- Em que lhe posso ser útil, excelentíssimo príncipe, já que, afinal, me mandou chamar ainda agora?

- Ora! Queria perguntar-lhe a respeito do general - respondeu o príncipe, saindo do seu estado de meditação. - É a respeito daquele roubo de que você me falou.

- A respeito de quê?

- Ora!... Não se faça de desentendido! Oh! Por que há de você zrstar sempre representando Lukián Timoféietch? O dinheiro, o dinheiro, os quatrocentos rublos que deixou cair no outro dia do bolso, e de que me veio falar, aquela manhã, quando ia a Petersburgo. Compreendeu, afinal?

- Há... O senhor está falando daqueles quatrocentos rublos? - balbuciou Liébediev como se ainda estivesse adivinhando. - Muito obrigado, príncipe, por sua simpatia, que me envaidece muito. Mas.., eu os encontrei algum tempo depois.

- Encontrou? Ah! Louvado seja Deus!

- Esta sua exclamação ainda é mais uma generosidade da sua parte, pois quatrocentos rublos não são uma ninharia desprezível para um pobre homem que vive do seu árduo trabalho, com uma récua de crianças sem mãe!...

- Mas não é a isso que me refiro! Naturalmente que me alegra saber que você encontrou o dinheiro.

- O príncipe procurou apressadamente corrigir-se. - Mas como foi que o encontrou?

- Muito simplesmente. Estava debaixo da cadeira sobre a qual eu dependurara o meu casaco. Com certeza a carteira escorregou do bolso para o assoalho.

- Debaixo da cadeira? Mas como? Você me disse que tinha estado a revirar todos os cantos! Como foi que lhe passou despercebido um lugar tão à vista?

- Tenho a convicção de que olhei. Lembro-me muito bem de ter olhado. Agachei-me, fiquei de quatro, apalpei todos os lugares com a mão, mudei as cadeiras dos seus lugares; não confiava apenas em meus olhos! E lá, debaixo da cadeira, não havia coisa nenhuma; o lugar estava vazio e liso como as minhas mãos; mas, ainda assim, continuei a tatear uma porção de tempo. É sabida a atrapalhação em que fica uma pessoa quando quer achar logo qualquer coisa perdida, mesmo que seja sem importância. Embora vendo que não tem nada ali, a pessoa, apesar do lugar estar vazio, torna a espiar uma dúzia de vezes.

- Bem o suponho! Mas como foi que você acabou vendo? Ainda não compreendi - murmurou o príncipe desconcertado. - Você me contou, naquela ocasião, que tinha procurado, que não achou nada lá, e como é que, de repente, isso foi aparecer?

- E de repente isso foi aparecer! - E Liébedíev suportou o olhar esquisito do príncipe que lhe fez esta outra pergunta: E o general?

- Que é que tem o general?... - Liébediev tornou a ficar perplexo.

- Ó, meu caro! Estou perguntando o que foi que disse o general, quando você olhou a carteira. Pois não sabe muito bem que vocês dois estiveram procurando juntos?

- Antes, tínhamos estado a procurar juntos. Mas quando achei, confesso, sofreei a minha língua e preferi não contar a ele que eu tinha encontrado sozinho a carteira.

- Mas... por quê? E o dinheiro? Estava todo lá?

- Abri a carteira. O dinheiro estava intato. Nota por nota.

- Devia ter vindo dizer-me - observou-lhe o príncipe, pensativo.

- Temi incomodá-lo, príncipe, em seus interesses pessoais e, de certo modo, absorventes; e, além disso, fizcomo se não tivesse encontrado nada. Abri a carteira, revistei-a, tornei a fechá-la e a recoloquei no mesmo lugar debaixo da cadeira.

- Mas, para quê?

- Oh! Por nada. Por curiosidade - cacarejou Liébediev, esfregando as mãos.

- Então, está caída lá, desde anteontem?

- Oh! Não. Só ficou lá um dia e uma noite. O senhor há de compreender que, em parte, eu queria que o general a encontrasse. Pois, se eu a encontrei, por que não haveria o general de dar com ela assim tão à mostra, debaixo da cadeira, e como que hipnotizando os olhos? Mudei a cadeira uma porção de vezes, de lugar, ajeitando-a de maneira que a carteira ficasse completamente à mostra. Mas o general candidamente não a viu, de modo que ela ficou lá vinte e quatro horas. Ele me parece extraordinariamente distraído, agora! E não há meios de avisá-lo. Conversa, conta histórias, dá risadinhas, e de repente fica de gênio ruim comigo! Não sei por quê. Já a última vez, quando saímos da sala, deixei a porta escancarada, de propósito. Tive a imprêssão de que ele hesitou e quis falar qualquer coisa. Naturalmente estava preocupado a respeito da carteira, com uma tal soma de dinheiro dentro; acabou saindo, mostrando uma raiva terrível, mas não disse nada. Já na rua, nem dois passos tínhamos dado juntos, ele me largou, tomando direção oposta. Éverdade, porém, que nos encontramos à noite, na taverna.

- Mas você, afinal, pegou a carteira de debaixo da cadeira?

- Não; desapareceu de lá, naquela mesma noite.

- E onde está agora?

- Oh... Aqui - e Liébediev riu inclinando-se, com todo o seu peso, para trás, e encarando Míchkin, prazenteiramente. - Ela apareceu aqui, de repente, na aba do meu casaco. Aqui! Não quer ver? Apalpe.

A aba esquerda do casaco formava, com efeito, do lado de dentro, uma espécie de teta, no lugar mais visível, mostrando perfeitamente, ao tato, que ali havia uma carteira de couro que tinha caído de um bolso furado.

- Extraí-a e espiei. O dinheiro estava lá, inteirínho. Enfiei-a outra vez no mesmo lugar. E com ela tenho andado, para cá e para lá, desde ontem de manhã. Assim a danada me acompanha, batendo contra as minhas pernas quando ando.

- E você não notara isso?

- Se eu não notei isso? Ah! Ah! E acreditaria o senhor, nobilíssimo príncipe, embora o fato não mereça ser notado pelo senhor, que os meus bolsos sempre estiveram novinhos, bons, só agora, de repente, em uma só noite, aparecendo um deles com um buraco deste tamanho!? Repare só, não parece que foi cortado com um canivete? Não chega a ser inacreditável?

- E... o general?

- Esteve zangado o dia todo. Tanto ontem, como hoje. Pavorosamente mal-humorado. Antes andava contente, risonho; depois passou apenas a responder aos meus cumprimentos. Lá uma vez ou outra, fica sentimental, até às lágrimas, mas desta vez está zangado comigo deveras. E, até fiquei receoso, pois ele é um militar e eu não o sou. Ontem estávamos sentados juntos na taverna. Como por acaso, a aba do meu casaco se abriu e de modo, se não exagerado, espalhafatoso. E aquilo ficou à mostra, como uma montanha! Ele olhou, disfarçou, depois se danou. Não costuma me encarar. Só me encara quando está sentimental, ou então embriagado. Mas ontem me cravou um olhar tal que me correu um calafrio pela espinha. Por causa das dúvidas, acho que amanhã vou contar a ele que achei a carteira... Mas ainda quero ter, antes, uma noite de farra e de provocação, com ele.

- Por que você o atormenta tanto assim?

- Eu não o estou atormentando, príncipe, eu não o estou atormentando - replicou calorosamente Liébediev.

- Eu amo o general sinceramente. E o respeito mesmo; de agora por diante, quer o senhor acredite ou não, ele me é mais caro do que antes. Acabei por apreciá-lo ainda mais.

Liébediev dizendo isso, impetuosamente, parecia tão sincero, que o príncipe ainda ficou mais indignado.

- Se você gosta dele como diz, por que o atormenta desta forma? Por quê? Pelo fato, tão-só, de ter colocado a carteira em lugar que você pudesse ver, debaixo da cadeira, e, a seguir, no forro do seu casaco, mostrando com isso que não quer decepcionar você, a respeito dele; mas até com a simplicidade do seu coração franco ne pedindo, por este modo, perdão?!... Ele prova, com isso, que conta com a delicadeza dos seus sentimentos e, por conseguinte, que acredita na sua amizade, para com ele, em qualquer circunstância! E, todavia, você reduz um homem como esse, um homem honrado, a uma tal humilhação!

- Honradíssimo, príncipe, um homem honradíssimo! - concordou Liébediev, com os olhos em chispas.

- E o senhor, nobilíssimo príncipe, é a única pessoa capaz de pronunciar palavras  assim, a respeito dele! Aí está por que lhe sou devoto, por que estou pronto a venerar o senhor, apesar de eu, com os meus vícios inumeráveis, estar podre até a medula! Mas está decidido! Faço que achei a carteira agora mesmo, já, e não amanhã. Vou tirá-la aqui, diante do senhor. Ei-la. Espie o dinheiro! Intato! Vê? Tome-o, príncipe, guarde-o até amanhã. Até amanhã, ou até quando u senhor quiser. Depois o receberei. E quer saber de uma coisa príncipe, vou fazer correr que a carteira foi encontrada por aí, num jardim, por exemplo, atrás de uma pedra! Na noite mesmo em que foi perdida. Que acha?

- É preferível não lhe dizer pessoalmente que encontrou a carteira. Deixe-o verificar, sozinho, que não há mais nada enchendo a aba do seu casaco, e ele compreenderá.

- O senhor pensa assim? Não seria melhor dizer que a achei, e fazer uns ares de tanta naturalidade que ele não desconfie de nada, agora?

- N... ão! - argumentou o príncipe. - N... ão! É muito tarde para isso. Ainda fica mais arriscado. O melhor, realmente, é não dizer nada. Seja amável com ele, mas não demais... e... Enfim, você bem que sabe!

- Que sei, sei, príncipe! E sei até que me vai ser difícil fazer isso com toda a distinção precisa. Pois só um coração como o seu sabe como é que deve agir. De mais a mais o general é propenso a irritações, ultimamente me tratando, até, de cenho fechado. Se, num minuto, choraminga e chega ao cúmulo de me abraçar, logo a seguir, inesperadamente, se abespinha comigo, escarnecendo, desprezando-me... Foi até por isso que aquela hora lhe mostrei, assim como quem não queria, a aba do casaco. Ah! Ah! E já vou indo, pois está mais do que claro que estou tomando seu tempo e interrompendo os seus mais urgentes sentimentos, se bem explico...

- Pelo amor de Deus! Lá vem você outra vez com seus mistérios...

- Pisando de mansinho, pisando de mansinho...

O caso. conquanto liquidado, lançou o príncipe em uma confusão ainda maior. Começou a aguardar, com impaciência, a entrevista do general, marcada para o dia seguinte.

 

A hora marcada tinha sido “ao meio-dia”, mas o príncipe se atrasou sem querer e, ao regressar a casa, já encontrou o general. Notou, ao primeiro relance, que o velho estava ofendido, evidentemente, pelo fato de ter estado a esperar. Desculpando-se, o príncipe se apressou em sentar-se, mas se sentiu de tal maneira tímido que foi como se o seu interlocutor fosse de porcelana e temesse quebrálo. Antes, nunca se sentira intimidado na presença do general, nem a idéia de que isso pudesse acontecer lhe passara jamais pela cabeça. Além disso, era fácil verificar que se achava diante de um homem completamente diverso do da véspera. Em vez de uma agitada incoerência, deparou com uma indisfarçável e marcada reserva. Via que ali estava um homem que havia tomado uma resolução irrevogável. (Essa atitude era mais aparente, do que real.) Mas, mesmo através dessa reservada dignidade, o visitante manteve uma tranqüilidade cavalheiresca, nas maneiras. Passou, mesmo, a tratar o príncipe com ar de condescendência, como certas pessoas orgulhosas que se comportam de maneira fidalga, desculpando um insulto gratuito. Falou afavelmente; só a entonação estava ligeiramente modificada.

- Aí está o livro que me emprestou, no outro dia - disse, mostrando, significativamente, um volume que trouxera, e que jazia sobre a mesa. - Muito obrigado.

- Ah! Sim. Leu aquele artigo, general? Gostou? Não achou interessante?

- O príncipe comprazia-se com a oportunidade de iniciar conversa através de um assunto qualquer, mesmo que fosse, como aquele o era, inadequado.

Interessante, talvez, mas indigesto; e portanto, absurdo. Para cada sentença uma mentira provável.

- O general falava com aprumo, e até contornava as palavras, um pouco.

- Ah! Trata-se de uma história despretensiosa; recordações de um veterano que foi testemunha ocular da chegada dos franceses a Moscou. Mas há alguns trechos bem interessantes. E não há dúvida de que uma informação dada por uma testemunha é sempre preciosa, seja ela qual for.

- Pois fosse eu o editor, não a imprimia. E, de um modo geral, no que concerne a qualquer descrição dessas chamadas testemunhas oculares, há sempre gente mais inclinada a acreditar em mentirosos grosseiros do que em um homem de valor que tenha estado a servir. Quanto a mim, posso gabar-me de saber mais do que as descrições contam a respeito do ano de 1812... Príncipe, cheguei à seguinte resolução: vou abandonar definitivamente a casa de Liébediev. - o general olhou Míchkin de modo significativo.

- O senhor tem os seus cômodos próprios, em casa de sua filha aqui em Pávlovsk... - disse o príncipe, porque não achou outra coisa a dizer. (Lembrou-se de que o general ficara de vir pedir-lhe conselho sobre assunto importante, do qual dependeria o seu destino.)

- Em casa de minha mulher! Ou, em outras palavras, na casa de minha filha.

- Desculpe-me, eu...

- E abandono a casa de Liébediev, meu caro príncipe, porque rompi com esse indivíduo. Rompi ontem, à noite, e lastimo não o haver feito muito antes. Insisto a tal respeito, príncipe, e desejo ser compreendido por aqueles a quem galardôo o meu coração. Príncipe, acabo sempre galardoando o meu coração e sempre tenho de me arrepender, decepcionadíssimo. Esse homem não é merecedor do -que lhe doei.

- Há muita coisa nele que é extravagante - observou o príncipe, discretamente - em linhas gerais; mas entre elas se pode perceber um coração que não é mau e, através de muitas simulações, uma inteligência que diverte.

A beleza das expressões e a respeitabilidade do tom desvaneceram o general que, apesar disso, continuou a olhar para o príncipe com certa desconfiança. Mas os modos do príncipe eram tão sinceros que o general acabou por não suspeitar mais dele.

- Lá que ele tenha boas qualidades - concordou o general - fui o primeiro a declarar, quando galardoei a minha amizade a esse cavalheiro. Todavia não preciso da casa dele e nem da sua hospitalidade, tendo, como tenho, uma família própria. E repare que não estou aqui tentando justificar as minhas falhas. Fui fraco; bebi com ele, e agora só posso lamentar-me disso. (Releve, príncipe, a rudeza de um homem que foi destratado.)

- Mas não foi somente por causa da bebida que me tornei amigo dele. O que me permitiu isso foi, justamente, ter-lhe verificado qualidades. Mas apenas até certo ponto, mesmo no que se refere às qualidades. Mas já que ele, subitamente, teve a impudência de declarar na cara de quem quer que fosse - e todavia foi na minha! - que, em 1812, quando devia ser simplesmente uma criança, perdeu a perna esquerda e que a enterrou no cemitério de Vagánskovskíi em Moscou, então ultrapassa os limites e se mostra desrespeitoso e impertinente...

- Deve ter dito por brincadeira, para despertar risada!

- Compreendo. Uma brincadeira inocente, mesmo que seja grosseira, pode, de fato, ser dita apenas para despertar gargalhada, e não fere, concordo, um coração humano. Um homem pode mentir, ninguém lhe proíbe, simplesmente por camaradagem íntima, para agradar a um outro homem com que esteja falando. Mas se houver indícios que sejam, indícios de desrespeito, se ele pretende, justamente, com tal desrespeito, mostrar que está farto dessa camaradagem, nada mais resta a esse outro homem, se tiver honra, senão ir embora e romper todas as ligações, repondo o ofensor em seu conveniente lugar.

O general positivamente enrubescia, enquanto estava falando nisso.

- Ora, Liébediev não podia ter estado em Moscou, em 1812! Não tem idade para isso; trata-se de um despautério.

- Primeiramente, isso. Mas, supondo que pudesse, então, já ter nascido, como pode ele declarar na cara de quem quer que seja que o chasseur francês fez pontaria com um canhão e atirou na perna dele, apenas por gracejo? E como ousa declarar que apanhou a perna e a carregou para casa, e que, depois, a foi enterrar no cemitério de Vagánskovskii? E acrescentar que mandou erigir, por cima, um monumento, tendo em um lado a inscrição: “Aqui jaz a perna do assessor colegial Liébediev” e no outro lado: “Descansai. cinzas amadas, até ao dilúculo da ressurreição”? E sustentar que assiste, cada ano, a um serviço oral, sacro (o que não está longe de ser blasfêmia), e que cada ano timbra em ir a Moscou, para assistir essa cerimônia? E que desaforo é esse de, para provar isso, me convidar a ir até Moscou, para me mostrar, não só a tumba, como até mesmo o tal canhão tomado aos franceses e que jaz, presentemente, no Kremlin? E ter a imaginação acesa a tal ponto que me declara, a mim, senhor, que se trata do décimo sétimo canhão depois dos portões. e que por sinal que é um falconete francês de marca antiquada?!

- Além do que ele tem as pernas intatas, segundo creio eu - riu o príncipe.

- Asseguro-lhe que foi um inofensivo gracejo. Não fique zangado.

- Mas permita, ao menos, que eu tenha a minha opinião! Quanto a ter ele as duas pernas, lá isso não é absolutamente improvável; declarou-me que arranjou uma perna com Tchernosvítov.

- Ah! Sim. Dizem que até se pode dançar, com as pernas desse fabricante.

- Estou perfeitamente ciente disso. Quando Tchernosvítov inventou a sua perna; lá dele, a primeira coisa que fez foi vir, correndo, mostrar-ma. Mas tais pernas foram inventadas muitíssimo mais tarde, são quase que recentes, de hoje! Mas, ouça mais esta, príncipe: ele afirma que a sua defunta mulher não chegou a saber nunca que ele, seu marido (e quanto tempo não estiveram eles casados!), tinha uma perna de pau. Quando me permiti fazer-lhe sentir quanto tudo isso era estapafúrdio, disse-me (e eu sei por que foi que ele disse): “Pois mesmo o senhor que foi pajem ou camareiro de Napoleão, em 1812, me teria permitido enterrar a minha perna em Vagánskovskii.”

- Mas o senhor, realmente...? - E o príncipe logo se interrompeu, embaraçado.

O general também mostrou laivos de perturbação, mas instantaneamente fitou Míchkin com distinta condescendência, e -até mesmo com ironia.

- Continue, príncipe, continue! - interferiu, com proposital suavidade.

- Posso fazer concessões. Fale!

Confesse que se diverte ante o pensamento de estar vendo diante de si um homem em seu presente estado de degradação... e imprestabilidade, e ouvir que esse homem já foi, todavia, testemunha ocular de grandes acontecimentos. Ele já não lhe tagarelou isso também?

- Não, nunca ouvi nada de Liébediev, se é que o senhor se está referindo a ele.

- Hum! Supus o contrário. A conversa particular teve lugar ontem, entre nós, a propósito desse estranho artigo dos Arquivos. Fiz um reparo relativamente a absurdos contidos ali, já que eu fora uma testemunha ocular... Mas o senhor está sorrindo, príncipe, na minha cara?

- Já várias vezes, ao espelho, reparei que pareço ainda mocetão! - o general destacava bem as sílabas. - Mas sou, efetivamente, mais velho do que aparento. Em 1812 eu estava no meu décimo, ou undécimo ano. Não posso dizer, exatamente, a minha idade. Na lista de serviço, ela está bem diminuída; foi sempre o meu fraco, toda a minha vida, dar-me por mais moço do que sou.

- Asseguro-lhe, general, que não acho estranho que o senhor tenha estado em Moscou, em 1812... e naturalmente que o senhor poderia narrar acontecimentos como qualquer outro que lá também tenha estado. Um dos nossos escritores começa a sua autobiografia dizendo que, quando era criança de colo, em 1812, foi alimentado com papinhas de pão fornecidas pelos soldados franceses.

- Ora aí está. Vê o senhor? - aprovou condescendentemente o general. - O que me aconteceu a mim foi, e era lógico, fora do comum, mas que pode haver nisso, de incrível? Muitas verdades, amiudadamente, parecem impossíveis. Pajem... Camareiro!... Hum... Realmente, soa estranho. Mas as aventuras de uma criança poderão, talvez, ser explicadas justamente pela sua idade. O que se deu comigo, não se daria se eu já tivesse quinze anos, pois, com esta idade eu não correria, como corri, no dia da entrada de Napoleão, em Moscou, para fora da casa de madeira, da Rua Stáraia Basmánnaia, onde eu vivia com minha mãe que, não podendo ter deixado a cidade a tempo, estava petrificada pelo pânico. Aos quinze anos, também eu teria tido medo; mas, aos dez, não temia nada, e abri passagem através da turbamulta, até aos degraus do palácio, justamente na hora em que Napoleão estava desapeando do seu cavalo.

- Certamente. A observação, de que aos dez anos não se tem medo. é verdadeira - concordou o príncipe, envergonhado, esforçando-se para não corar.

- Mais do que certo. E tudo aconteceu de um modo tão simples natural quanto era mais do que possível na realidade. Meta-se um novelista a trabalhar neste artigo e vê-lo-emos a bracejar em um mar de incríveis e improváveis redundâncias.

- Nem há dúvida - fez o príncipe. - Veio-me a mesma idéia, ainda há pouco. Conheço o caso verdadeiro de um assassínio, por causa de um relógio. Os jornais estão dando. Se qualquer autor o inventasse, os críticos e aqueles que sabem a vida do povo gritariam imediatamente que era falso e inverossímil; lendo-o nos jornais. Como coisa que acontece mesmo, a gente só tem de, através desses fatos, ir estudando a vida russa, em sua múltipla realidade. A sua observação foi excelente, general - concluiu o príncipe, afogueado.

Sentindo alívio por ter descoberto um refúgio para o seu rubor.

- Pois não é? Pois não é? - gritou o general, com os olhos fulgurando de prazer.

- Um garoto, uma criança, que ignora o que seja medo, cava uma passagem na multidão, para ver a parada, os uniformes, o séquito e o grande homem de quem ouvia falar tanto. Pois, naquele tempo, não se falou em outra coisa, durante anos e anos. O mundo regurgitava com esse nome. Posso dizer que o bebi com o meu leite. Napoleão estava a dois passos, quando notou o meu olhar. Eu parecia um nobrezinho. Vestiam-me sempre com muito capricho. Não havia ninguém com o apuro com que eu estava em toda a multidão, pode crer.

- Não há dúvida que isso o deve ter impressionado, além de que patenteava que nem todo o mundo tinha deixado Moscou e que até nobres havia ainda, por lá, com seus filhos.

- Nem mais, nem menos! Justamente! Ele quis ganhar a simpatia dos boyards! Pois bem, quando lançou o seu olhar de águia para mim, os meus olhinhos devem ter fulgurado, em resposta aos dele.

“Voilà un garçon bien éveillé! Qui est ton père?” Respondi-lhe, prontamente, quase sem ar, de tamanha excitação: “Um general que morreu no campo de batalha, por sua pátria!” “Le fils d’un boyard et d’un brave par dessus le marché! J’aime les boyards. M’aimes tu, petit?” A esta rápida pergunta, respondi ainda mais apressadamente: “Um coração russo pode discernir um grande homem, mesmo no inimigo da sua pátria”. Isto é, não me lembro bem se usei, literalmente, estas palavras... Eu era uma criança... Mas deve ter sido este o fluxo de minhas palavras.

Napoleão ficou estarrecido. Pensou um pouco e disse ao seu séquito: “Gosto da altivez desta criança. Se todos os russos pensassem o mesmo, então...,, Não disse mais nada. Encaminhou-se para o palácio. Imediatamente, misturei-me ao cortejo, sempre no seu encalço. Abriram-se alas e era como se já me considerassem um favorito. Mas tudo isso se deu em um momento... Só me recordo que o imperador chegou ao primeiro salão e parou diante do quadro que representava a Imperatriz Catarina; ficou a olhar, muito tempo, profundamente; e por fim proferiu: “Foi uma grande mulher!” Dito o quê, prosseguiu. Dentro de dois dias eu era conhecido de todo o mundo no palácio e no Kremlin; chamavam-me: “Le petit boyard”. Eu só voltava para casa, para dormir.

É claro que em casa estavam todos nervosíssimos com isso. Dois dias depois, um dos pajens de Napoleão, o Barão de Basencour, morria, exausto pela campanha. Napoleão lembrou-se logo de mim. Vieram buscar-me; levaram-me sem nenhuma explicação.

Experimentaram em mim o uniforme do pajem falecido - um garoto de doze anos. E quando me conduziram, envergando o uniforme, diante do Imperador, e ele fez, com a cabeça, que estava muito bem, então foi que me participaram (mas eu já havia adivinhado) que eu fora considerado merecedor da graça, e designado pajem à disposição de Sua Majestade. Fiquei contente. Eu me sentia extraordinariamente atraído para ele.., e, além disso, como éfácil de compreender, um uniforme brilhante é muita coisa, para uma criança. Eu usava uma espécie de casaca verde-musgo, de longas abas estreitas, com botões dourados, alamares amarelos, trabalhados a ouro, nas folhas, e tinha um colarinho grande, ereto, trabalhado também em ouro e com bordados até as pontas.

Uns calções de espesso pêlo de camurça, um colete de seda branca, meias de seda até aos joelhos, e sapatos com fivelas... E quando o Imperador saía a cavalo eu fazia parte do cortejo, com minhas botas de cano alto.

Conquanto a situação não fosse nada promissora, e houvesse uma sensação de terrível catástrofe no ar, a etiqueta era conservada o mais possível; e, com efeito, quanto maior a previsão da catástrofe, maior e mais rigorosa a pragmática da corte.

- Sim, naturalmente - murmurou o príncipe, com ar quase desesperado.

- As suas memórias devem.., ser extremamente interessantes.

O general, logicamente, estava a repetir a história que tinha contado a Liébediev, na véspera, e por isso é que se achava assim tão fluente. Mas, a esta altura, deitou uma olhadela para Míchkin, desconfiado, de novo.

- As minhas memórias! - ia ele conduzindo com redobrada dignidade.

- Escrever as minhas memórias?! Ora aí está uma coisa que não me tenta muito, príncipe! Mas já que estamos neste pé, as minhas memórias já estão escritas.., e permanecem, todavia, fechadas na minha escrivaninha. Quando os meus olhos estiverem fechados para sempre na tumba, elas poderão ser publicadas! E não tenho dúvidas de que serão traduzidas em vários idiomas estrangeiros, não tanto por seu valor literário, mas, principalmente, pela importância dos tremendos acontecimentos mundiais de que fui testemunha eventual, embora como mera criança. Mais por isto, com efeito. Por ser criança, eu tinha ingresso, por assim dizer, até no quarto de dormir do “Grande Homem”. A noite eu ouvia as lamentações deste “Titã em agonia”. Por que haveria ele de ter pejo de se lamentar e mesmo chorar, diante de uma criança que, no entanto, já tinha entendido que a causa da sua angústia era o silêncio do Imperador Alexandre?

- Parece até que ele escreveu cartas, como preliminares de paz... - insinuou o príncipe.

- Não estamos aptos a informar sobre quais preliminares teria ele escrito; mas escrevia o dia todo, horas inteiras, carta após carta. Estava tremendamente agitado! Certa noite, estando nós sozinhos, precipitei-me para ele, a chorar. (Oh! Eu o amava!) “Pede, pede perdão ao Imperador Alexandre!” - exclamei eu. Naturalmente que, em vez dessa expressão, eu devera ter dito “Faze as pazes com o Imperador Alexandre!” Mas, como criança ingênua, naturalmente eu me expressava conforme sentia. “Oh! Meu filho!” - exclamou ele, dando passadas largas, para cima e para baixo, no imenso salão. - “Oh! Meu filho!” Deixara de ver em mim um garoto de apenas dez anos e gostava de conversar comigo. “Oh! Meu filho! Estou pronto a beijar os pés do Imperador Alexandre! Mas... esse Rei da Prússia, e esse Imperador da Áustria! Ah! Para estes, o meu ódio é perpétuo... e afinal, naturalmente que não podes, ainda, saber nada de política!” Parece que, nisto, se deu conta de com quem estava a se externar, e parou. Mas, muito tempo depois, ainda havia raios de fogo em seus olhos. Ora, dirão, já que fui testemunha ocular de tão grandes acontecimentos, e que tão bem os descrevo, dirão que publique as minhas memórias... E então, todos os críticos, todas as vaidades literárias, toda a inveja, toda a camarilha... Não! Não cai nisso este seu humilde servidor!...

- Lá quanto à camarilha, não resta dúvida de que a sua observação é verdadeira, e eu concordo com o senhor - observou o príncipe, serenamente, depois de momentâneo silêncio.

- Li, não há muito tempo, um livro de Charras, sobre a batalha de Waterloo. Trata-se, evidentemente, de um livro sério, e dizem os entendidos que foi escrito com conhecimento integral do fato. Realmente, nele, a cada passo, se verifica o achincalhamento de Napoleão; e se lhe tivesse sido possível anular o gênio de Napoleão, em cada uma das outras batalhas e campanhas, Charras teria ficado muito contente e o faria. Aliás não dou razão a esta obra, conquanto séria, pois há nela espírito de partido. O senhor tinha muito o que fazer, na qualidade de pajem de Napoleão?

O general ficou radiante. A espontaneidade e a simplicidade da pergunta do príncipe dissiparam logo os últimos traços de desconfiança.

- Charras? Eu próprio fiquei indignado. Cheguei a escrever-lhe, a esta altura, mas não me lembro se... Pergunta-me o amigo se eu tinha muito que fazer, no serviço de Sua Majestade, o Imperador. Ora, nem por isso.  Chamavam-me um pajem à disposição, mas não levei aquilo muito a sério. De mais a mais, Napoleão logo perdeu toda a esperança de vencer os russos, e não resta a menor dúvida de que acabaria por me esquecer, se não tivesse tomado uma afeição especialíssima por mim. Já o fato de me ter como que adotado, fora um golpe político magistral. Digo isso, hoje, galhardamente. O meu coração sentira-se atraído para ele. Os meus deveres não eram definidos; tinha, apenas, que estar presente, em palácio e... acompanhá-lo quando saía. Eis tudo. Eu cavalgava bem. Ele costumava dar passeios antes do jantar. Davout, eu e um mameluco, Roustan, fazíamos parte, geralmente, do seu cortejo.

- Constant - o príncipe pronunciou este nome quase sem querer, emendando o general.

- N... ão! Constant não estava lá. Tinha ido levar uma carta à Imperatriz Josefina. O seu lugar foi preenchido por dois assistentes e por alguns fulanos polacos... Este era habitualmente o seu séquito, exceto quando Napoleão também levava consigo generais e marechais para explorarem as cercanias, ou consultá-los a respeito das posições das tropas. Quem estava, o mais das vezes, de serviço, era Davout, conforme, agora, me estou recordando. Era um homem corpulento, entroncado, de óculos, de sangue-frio, com uma estranha expressão nos olhos. Era mais consultado do que qualquer outro pelo Imperador que preferia o seu modo de opinar. Lembro-me de que estiveram em conferência, durante vários dias; Napoleão costumava receber Davout de manhã e de tarde. Houve entre eles freqüentes discussões; enfim Napoleão pareceu no ponto de ceder.

Estavam sozinhos no gabinete do Imperador e não repararam na minha presença. Repentinamente o olhar do Imperador caiu sobre mim, e um estranho pensamento brilhou em seus olhos. “Criança”, disse-me ele, “que achas? Se eu adotar a fé ortodoxa e libertar os escravos. ficariam os russos do meu lado, ou não?”

- “Nunca!” - exclamei, indignado. Como isso impressionou o Imperador! “No patriotismo que está brilhando nos olhos desta criança”, disse ele. “leio o veredicto de todo o povo russo. Basta, Davout. Tudo isso não passa de uma fantasia. Explique-me o plano seguinte!”

- Mas naquele primeiro plano havia também uma grande idéia - disse o príncipe evidentemente se interessando. - O senhor atribui tal projeto a Davout?

- De qualquer forma, eles se consultavam entre si. Mas não há dúvida de que a idéia fora de Napoleão, idéia de uma águia. Mas também não era mau o segundo plano. Era o famoso “conseil du lion”, como o próprio Napoleão chamou ao projeto de Davout. Tal projeto consistia em fecharem-se no Kremlin, com todas as tropas; - construírem barracas, cavarem trabalhos de engenharia, montarem canhões, matarem o maior número possível de cavalos, salgarem-lhes as carnes, arranjarem, requisitando ou pilhando, todo o trigo possível, e passarem lá o inverno até a primavera. E, na primavera, então, abrir, aos golpes, caminho através dos russos. Esse plano fascinou Napoleão. Costumávamos andar a cavalo em volta das muralhas do Kremlin, todos os dias. E ele, em pessoa, mostrava onde demolir, onde construir mirantes e revelins, onde devia ser a fila dos blocausses. Tinha olho vivo, julgamento pronto e visão certa. Afinal, isso ficara mais ou menos combinado. Mas Davout insistia por uma decisão definitiva. Ei-los, de novo, incomunicáveis, em conferência. E eu lá!... Como sempre, Napoleão passeava pelo salão, com os braços cruzados. Eu não podia retirar os olhos dele. E -o meu coração estava aos pinotes. - “Já vou indo...” - disse Davout. - “Onde?” - perguntou Napoleão.

- “Salgar carne de cavalo” - respondeu Davout. Napoleão empertigou-se todo, aquele era o ponto de desacordo.

- “Criança, que pensas da nossa idéia?”

- Era evidente que, na maioria das vezes que me interrogava, o fazia como um homem que, apesar de sua grande inteligência, deseja se livrar de uma responsabilidade. Virei-me para Davout, em vez de me virar para Napoleão e disse, assombrosamente inspirado: - “General, melhor, enquanto é tempo, ainda seria voltar, correndo, para trás!” E... o plano foi abandonado. Davout, encolhendo os ombros, saiu, resmungando:

“- Bah! Il devient superstitieux!”

- E, no dia seguinte, a retirada foi ordenada.

- Tudo isso é muito interessante - murmurou o príncipe, em voz baixa, se é que realmente assim foi... quero dizer... - e tentou corrigir-se.

- Ah, Príncipe - exclamou o general, embalado pela sua história, não a interrompendo nem mesmo à vista da indiscreta observação do príncipe. - Diz o senhor, “se realmente assim foi...” Mas houve mais, garanto-lhe, muitíssimo mais. Estes são apenas insignificantes fatos políticos. Mas não se esqueça, por exemplo, e lhe repito, que fui testemunha ocular e, por assim dizer, íntima, das lágrimas e das lamentações desse grande homem, ànoite. E essas, ninguém mais viu, senão eu! É verdade que lá para o fim ele deixara de chorar, não tinha mais lágrimas; mas ainda se lamentava, de quando em quando, e a sua face estava enevoada por uma como que... treva. Como se a eternidade já tivesse aberto as suas asas negras sobre ele. As últimas noites, nós as passávamos juntos, só nós dois, e em silêncio. O mameluco Roustan roncava no salão contíguo; o sono desse camarada era medonhamente barulhento. “Sim, mas é devotado a mim e à dinastia!” - costumava dizer ele, Napoleão. Certa noite também me comovi, ficando muito aflito. Não sei como, ele viu as lágrimas nos meus olhos. Olhou-me ternamente. “Sentes por mim!” - exclamou. - “E provavelmente, uma outra criança há que, a esta hora, também sente por mim, meu filho, le roi de Rome; todos os mais me odeiam, e meus irmãos ainda hão de ser os primeiros a me lançarem na desgraça”. - Comecei a soluçar, precipitei-me para ele. Curvando-se para mim, abraçou-me; ficamos assim algum tempo. E nossas lágrimas correram juntas. “Escreva, escreva uma carta à Imperatriz Josefina!” - disse-lhe eu, entre soluços. Napoleão conteve-se, ponderou e disse: “Agora me trouxeste à lembrança esse outro coração que me ama. Obrigado, querido”. - Imediatamente se assentou e escreveu à Imperatriz Josefina, uma carta que foi levada, no dia seguinte, por Constant.

- O senhor agiu esplendidamente - arriscou o príncipe. - Tirou-o dos maus pensamentos e o levou aos bons sentimentos.

- Justamente, príncipe. E como o senhor disse isso bem! Tal e qual como o seu bom coração - exclamou o general, em transe; e por mais estranho que isso pareça, lágrimas verdadeiras correram dos seus olhos.

- Sim, príncipe, foi um espetáculo magnífico. E saiba que não o abandonei, estive sempre perto dele, estive a ponto de acompanhá-lo até Paris. E não resta dúvida que teria compartilhado com ele o degredo naquela “sufocante ilha-presídio”. Mas, ai de nós! Os fatos violentamente nos separaram. Ele, para a sufocante ilha-presídio” onde, quem sabe, nas horas da sua mais trágica tribulação, se deve ter lembrado das lágrimas do garoto que o abraçou e perdoou em Moscou! E eu, para o corpo dos cadetes, onde só encontrei ríspida disciplina, rudeza de camaradagem!... Ai de mim! Tudo se transformou em pó e cinzas.

“Não quero separar-te de tua mãe, levando-te comigo”, dissera no dia da retirada, “mas terei ensejo, e breve, de fazer alguma coisa por ti”. Já havia montado a cavalo. “Escreva uma coisa qualquer para o álbum de minha irmã, como souvenir”, disse eu, timidamente, porque notei que ele estava perturbado e soturno. “Que idade tem ela?” perguntou. “Três anos só”, respondi. “Une petite fille, alors!” E escreveu no álbum:

 

“Ne mentez jamais.

Napoléon, votre ami sincère.”

 

- Um tal conselho, em um momento como aquele, príncipe, imagine o senhor!

- Sim, foi notável.

- Esta frase foi guarnecida e bordada a ouro, montada sob vidro, ficou anos e anos dependurada na parede da sala de visitas de minha irmã, no lugar de maior importância. Ela acabou morrendo de parto. Por onde andará aquilo, agora? Não sei... Mas Céus! Pois não é que já são duas horas!? Como foi que o prendi até agora, príncipe? Mas é imperdoável!

O general levantou-se da sua cadeira.

- Oh! Muito pelo contrário - ciciou o príncipe. - O senhor me entreteve tanto, e de fato estava tão interessante! Sou-lhe tão grato!

- Príncipe - o general tornou a falar, apertando-lhe a mão até doer, fixando-o com olhos que despediam centelhas, como que repentinamente fulminado por um pensamento que lhe veio à mente.

- Príncipe, o senhor é tão bondoso, tem um coração tão bom! Quantas vezes não entristeço por sua causa!? Fico comovido quando o olho. Oh! Que Deus o abençoe! Possa uma vida florescente recomeçar para o senhor... Uma vida com muito amor. Quanto à minha, está acabada! Perdoe-me. Adeus!

E saiu, atropeladamente, cobrindo o rosto com as mãos. O príncipe não pôde duvidar da sinceridade da emoção do general. Percebeu também que o velho se deixara arrebatar pelo êxito da sua palestra. Mas, sendo da classe dos mentirosos, para os quais mentir se torna uma paixão. ainda assim, como todos eles, o general, mesmo no ápice da intoxicação, secretamente suspeitou que não estava sendo acreditado, e que não podia ser acreditado. E provavelmente, na atual situação, o velho se sentiu oprimido pela vergonha, quando voltou à realidade das coisas. Se suspeitasse que Míchkin sentia compaixão, se consideraria insultado. E todavia o príncipe, por sua vez, ponderou: - “Não fiz pior, conduzindo-o a tal exaltação?” Mas não se pôde conter, e riu desabaladamente, durante uns dez minutos.

Depois se repreendeu dessas gargalhadas; mas mesmo essa repreensão era inútil, pois sabia que tinha uma infinita piedade para com o general. A sua apreensão, no entanto, não fora senão um pressentimento, pois à noite recebeu uma carta resoluta do general. Informava-o que se separava dele, também, e para sempre. Que, conquanto o respeitasse e lhe fosse muito grato, ‘nem mesmo dele, todavia, podia aceitar provas de compaixão que eram incompatíveis com a dignidade de um homem já bastante infeliz sem isso”. Sabendo, porém, o príncipe, que o velho se refugiara em casa de Nina Aleksándrovna, ficou mais tranqüilo a respeito dele. Mas já vimos que o velho tinha acabado por provocar, também, aborrecimentos em Lizavéta Prokófievna, visto, diante dela, ter feito amargas insinuações contra Gánia. Resultara disso, ter sido despedido, depois de causar indignação à generala. Quanto a isso só fazemos menção aqui, não podendo entrar em minúcias. O resultado foi ter ele passado toda a manhã e toda a noite inteiramente desengonçado, pelas ruas, em um estado quase de delírio.

Kólia não teve forças para sobrepujar a situação. E não houve energia que conseguisse fazer o pai voltar para casa.

- Ora, bem. Mas, afinal, para onde nos atiramos nós agora, general, resolva logo - dizia Kólia. - Para a casa do príncipe. não há de querer ir. Com Liébediev, o senhor está brigado. Dinheiro, o senhor não tem. E eu, muito menos! Belo espetáculo damos nós dois aqui, rua abaixo, rua acima, não há dúvida. rolando feito massa!

- É melhor estar na massa popular do que na do pão! Ah! Ah! É a segunda vez que faço este trocadilho. A primeira vez foi para causar admiração em uma sala de jantar de oficiais em quarenta e quatro... Espera, foi em mil oitocentos... quarenta e quatro, sim. Não me lembro... Não corrija, espere a ver se me lembro. Onde está a minha mocidade? Que foi feito do meu verdor?, conforme exclamou... quem foi que exclamou assim, Kólia?

- Gógol, papai, nas Almas Mortas - respondeu Kólia, arriscando uma olhadela ao estado paterno.

- Almas Mortas! Sim, morto... Quando vocês me sepultarem. escrevam na lápide sepulcral: Aqui jaz uma alma morta. Sim, a desgraça me persegue. Quem foi que disse isto, Kólia?

- Não sei, papai.

- Não teria sido uma pessoa assim como Ieropiégov? ierochka Ieropiégov... - gritou no seu delírio, estacando no meio da rua. - E foi meu filho, o outro meu filho quem disse essa coisa...

- Ieropiégov que, por onze meses, foi uma espécie de irmão para mim, e por causa de quem me bati em duelo! - Disse-lhe o Príncipe Vigoriétskii, nosso capitão, à mesa: - “Grísha, onde foi que tu ganhaste a tua condecoração, essa cruz de Sant’Ana, vamos, dize-me!” - “No campo de batalha; pela minha pátria, eis onde a conquistei!”

- E eu bradei imediatamente: - “Isso, assim, bravos, Grísha!” - Depois... duelo! Depois... ele se casou com Maria Petróvna Su... Sutúguina, e foi morto em batalha. Uma bala, resvalando por meu peito, atingiu-o na fronte.

- “Nunca me esquecerei!” - disse e caiu ali mesmo. Eu... eu servi no exército, com honra, Kólia; e servi nobremente. Mas a desgraça, “a desgraça me persegue”. Tu e Nina vireis àminha sepultura. “Minha pobre Nina”. Costumava chamá-la assim, nos antigos tempos, Kólia, há muitos, muitos anos, e como ela gostava, Kólia... Nina, Nina, que fiz eu da nossa vida? Por que havias tu de me amar, alma que tanto sofreste? Tua mãe tem a alma de um anjo, Kólia; estás ouvindo bem? De um anjo!

- Então eu não sei disso, papai? Voltemos, querido papai, para casa, para perto de mamãe. Ela nos está procurando. Venha, por que teima em ficar aqui? Parece que o senhor não está compreendendo... Por que é que o senhor está chorando?

Kólia limpou-lhe as lágrimas, e lhe beijou as mãos.

- Estás beijando as minhas mãos? Estas, as minhas?

- Sim, as suas, as suas! Que é que tem isso de espantoso? Venha, por que há de o senhor se pôr a chorar, no meio da rua? E o senhor se chama a si mesmo de general, de figura do exército!... Então, venha, vamos!...

- Que o Senhor te abençoe, criança adorada, por estares sendo respeitosa para com um desditoso e desgraçado velho. Sim, com um desditoso e desgraçado velho, teu pai. Que também venhas tu a ter um filho assim... Le roi de Rome. Maldição, maldição para aquela casa!...

- Mas por que, arre, também, há de o senhor caminhar desse jeito? - exclamou Kólia. Afogueando-se repentinamente. - Que foi que aconteceu? Por que não irmos agora para casa? Onde é que o senhor está com a cabeça?

- Vou te explicar, vou te explicar. Dir-te-ei tudo. Não grites assim. Ouvirão por aí... Le roi de Rome. Ah! Como me sinto doente! Como me sinto triste! “Velha ama, onde é a tua tumba?” De quem é esta poesia, Kólia?

- Não sei. Não sei de quem é essa poesia. Vamos já pra casa. Imediatamente! Se for preciso, dou uma surra em Gánia. Mas.., pra onde é que vai indo o senhor, outra vez?

O general arrastava-o para os degraus de uma casa fechada.

- Mas pra onde vai o senhor? Esta casa é de um desconhecido. O general sentou-se em um dos degraus, segurando sempre a mão de Kólia, puxando-o.

- Inclina-te! Mais baixo, um pouco mais baixo - sussurrava.

- Vou te contar tudo... “a desgraça me...” Inclina-te mais. Quero dizer no teu ouvido, no teu ouvido...

- Mas que é, papai? - E, terrivelmente alarmado, Kólia se abaixava para escutar.

- Le roi de Rome... - ciciou o general com uns estremecimentos incontidos e paroxísticos.

- O quê? Por que continua o senhor a seringar com le roi de Rome? O quê?

- Eu... eu... - sussurrou o general de novo, puxando cada vez mais o ombro do “seu rapaz”.

- Eu quero contar tudo... Maria. Maria... Petróvna Su-su-su... - Kólia desvencilhou-se, segurou o general que tentava levantar-se e o encarou perplexo. O ancião estava vermelho, vermelho, mas os lábios tinham ficado azuis nesse rosto que os espasmos começavam a deformar.

E, de repente, o general tropeçou para diante e começou, vagarosamente, a escorregar pelos braços do filho abaixo.

Compreendendo, afinal, o que se estava passando, o rapaz começou a gritar em plena rua:

Um ataque! Um ataque! Ele está com ataque apoplético

 

A bem dizer, Varvára Ardaliónovna, em sua conversa com o irmão, exagerara um pouco a veracidade das notícias relativas ao compromisso do príncipe para com Agláia.

Talvez, como mulher de visão aguda, tivesse adivinhado o que estava para acontecer em um futuro imediato; talvez, desapontada pelo fato do seu sonho (no qual, contudo, nunca tinha acreditado, realmente), se ter esfumado, fosse ela demasiado humana para se pagar essa decepção, destilando amargo veneno no coração do irmão, exagerando a calamidade, apesar de o amar sinceramente e se sentir triste por causa dele. Em todo o caso não obtivera tais informações com suas amigas, as moças Epantchín; havia apenas conjeturas, meias palavras, silêncios significativos e insinuações. Talvez até as irmãs de Agláia tagarelassem um pouco com o fim de virem a saber qualquer coisa da própria Varvára Ardaliónovna. Bem podia ser o caso que nem elas mesmas se pudessem privar do prazer muito feminino de martirizar uma amiga, um pouco, mormente a tendo conhecido desde a infância; não podiam deixar de ter pressentido, ao menos por alto, o que essa amiga alvejava.

Por outro lado o príncipe, também, embora houvesse dito a verdade ao assegurar a Liébediev que não tinha nada para lhe dizer e que nada de importante lhe acontecera, podia se ter enganado. Algo de muito estranho certamente estava acontecendo a todos eles; nada tinha acontecido e, todavia, ao mesmo tempo, muita coisa estava acontecendo. Varvára Ardaliónovna, com o seu infalível instinto feminino, adivinhara este último fato.

É muito difícil, ainda assim, explicar de maneira categórica como foi que todo o mundo na casa dos Epantchín foi ferido ao mesmo tempo pela mesma idéia de que alguma coisa vital acontecia a Agláia e que o seu destino estava sendo decidido. Mas assim que tal idéia relampejou sobre todos eles, logo se puseram a insistir que tinham sentido desconfianças e previsto isso havia muito, tudo se tendo clareado desde o episódio do “pobre cavaleiro” e até mesmo antes, apenas se tendo dado o seguinte: que não tinham, àquela altura, querido acreditar em coisa assim tão absurda. Foi o que as irmãs declararam; Lizavéta Prokófievna, naturalmente, previra e soubera de tudo muito antes de qualquer outra pessoa; e até, por isso, por muito tempo o seu coração tinha doído. Mas tivesse sabido cedo ou tarde, o fato foi que só pensar no príncipe se lhe tornou insuportável porque a arremessou muito longe para fora daquilo com que estava contando. Havia nisso uma pergunta que requeria uma imediata resposta; mas não só era impossível respondê-la como também a pobre Lizavéta Prokófievna, por mais que lutasse, não conseguia sequer ver claramente a pergunta. O caso era mesmo difícil. “Era o príncipe um bom partido, ou não? Era tudo isso bom, ou não? Se não era uma coisa assim tão boa (e indubitavelmente não era), por que modo não o era? E se, talvez, fosse uma boa coisa (o que também era possível), por que modo o era, então?” O próprio chefe da família, Iván Fiódorovitch, ficou naturalmente mais surpreendido do que todos, mas, imediatamente depois, confessou: “em verdade, sempre tive uma vaga suspeita de tudo isso, agora como antes me parecia imaginar algo deste jaez”. E recaiu em silêncio ante os ameaçadores olhares da mulher; ficava calado, de manhã, mas, à noite, a sós com ela, e compelido a explicar-se, repentinamente, com desacostumado arrojo, saía-se com opiniões destas: “afinal de contas, pergunto eu, que importância tem isso?” (Silêncio.) “Tudo isso seria muito estranho, logicamente, se fosse verdadeiro, mas se ele nem toca nisso! (Silêncio, outra vez.) “E por outro lado, se encararmos a coisa sem preconceitos, o príncipe é um camarada encantador, palavra de honra, e... e, e - bem, o nome, o nome de nossa família, tudo isso tem assim o ar de que quisemos levantar o nome de nossa família que tinha decaído aos olhos do mundo, isto é, encarando sob este ponto de vista, já que sabemos muito bem o que o mundo é. O mundo é o mundo! E, além disso, o príncipe não deixa de ter fortuna, conquanto de segunda ordem: ter, lá isso tem, e... e...” (prolongado silêncio e completo colapso). Ao ouvir tais palavras do marido, a cólera de Lizavéta Prokófievna ultrapassava todos os limites.

Na opinião dela tudo quanto tinha acontecido era “uma loucura imperdoável e criminosa, uma espécie de alucinação fantástica, estúpida e absurda!” Em primeiro lugar “este príncipe é um doente, um idiota e, em segundo lugar - um louco. Nem sabe nada do mundo nem nele tem sequer um lugar. A quem se poderia apresentá-lo, onde colocá-lo? Era uma espécie de democrata incrível; não tinha arranjado sequer um emprego... e... que haveria de dizer a princesa Bielokónskaia? E era esse, era esse, afinal, a espécie de marido que haviam imaginado e planejado para Agláia?” Este ltimo argumento, naturalmente, era o principal. Ante tal reflexão o coração materno estremecia, sangrando e chorando, muito embora, ao mesmo tempo, qualquer coisa palpitasse dentro dele, sussurrando:

Mas por que não é o príncipe o que desejavas?” E esse protesto do seu próprio coração atormentava Lizavéta Prokófievna muito mais do que todo o resto.

As irmãs de Agláia, por qualquer razão, ante o pensamento do príncipe, ficavam contentes. Nem achavam estranho isso. E, resumindo, podiam a qualquer momento ficar do lado dele, completanente. Mas ambas, lá consigo mesmas; tinham decidido ficar quietas. Já fora notado na família, como uma regra invariável, que quanto mais obstinadas e enfáticas fossem as oposições e as objeções de Lizavéta Prokófievna em qualquer caso em discussão, mais certo sinal seria isso de que ela já estava quase a concordar com todos. Mas Aleksándra não conseguiu ficar perfeitamente calada. A mãe, que desde muito a tinha escolhido como conselheira, chamava-a a todo instante, servindo-se não só de suas opiniões como de suas reminiscências; isto é, não se fartava com coisas assim:. “Como foi que tudo isso se passou? Como foi que ninguém viu? Por que foi que não me vieram dizer? Que negócio foi esse do tal horrendo pobre cavaleiro’? Por que havia de ser ela só, Lizavéta Prokófievna, a se incomodar com tudo, a reparar e prever tudo, enquanto os outros não faziam mais do que contar quantas vezes o galo cantava?” E assim por diante. Aleksándra, no começo, se encolheu, acabando por dar razão à idéia do pai de que, aos olhos do mundo, a escolha do Príncipe Míchkin como marido para uma das Epantchín parecia muito satisfatória. E, pouco a pouco se inflamando, acabou por acrescentar que o príncipe, de maneira alguma era um doido e nem nunca o tinha sido; quanto a ter ou não importância - era impossível vir a saber-se de que dependeria a importância de um homem decente, havia alguns anos para cá, entre nós, na Rússia; se dos seus triunfos no serviço, o que era essencial, ou se de alguma coisa mais. A tudo isso a mãe prontamente retorquia que ela, Aleksándra, era uma “niilista” e que esse seu parecer era típico da sua noção quanto à questão “feminista”. Meia hora depois despachou-se para a cidade e de lá para a ilha Kámennii para se encontrar com a Princesa Bielokónskaia que, afortunadamente, aconteceu estar realmente, então, em Petersburgo, embora já pronta para deixar a cidade. A Princesa Bielokónskaia era a madrinha de Agláia.

A velha princesa escutou os jatos verbais febris e desesperados de Lizavéta Prokófievna e absolutamente não se comoveu com as lágrimas dessa mãe estonteada, chegando até a encará-la sarcasticamente. A velha dama era uma déspota terrível; não consentiria nem às suas mais antigas amigas porem-se em pé de igualdade com ela.

Considerava Lizavéta Prokófievna apenas como sua “protegida”, como o fora havia já trinta e cinco anos antes, nunca se tendo podido reconciliar com a precipitação e independência do seu caráter. Entre outras coisas observou que, “como sempre, estavam eles precipitados e querendo transformar uma colina em uma cadeia de montanhas; que, tanto quanto tinha ouvido, em nada ficava convencida de que tivesse havido algo de sério, a bem dizer; e não seria, em tal caso, melhor esperar até que sobreviesse alguma coisa de fato? Que o príncipe, na sua opinião, era um jovem decente apesar de doentio, excêntrico e quase sem importância. O único ponto mau, em tudo isso, é que ele mantinha uma amante”. A Sra. Epantchiná logo se deu conta de que a princesa estava ressentida com eles porque Evguénii Pávlovitch, que por ela lhes fora apresentado, tinha fracassado. Voltou a Pávlovsk em um estado de irritação ainda maior do que aquele em que safra, e descompôs todo o mundo, de uma vez, baseando-se em que “todos tinham ficado malucos” e que as coisas não eram feitas assim por ninguém, exceto eles. “Por que estavam com essa precipitação? Que é que tinha acontecido? Tanto quanto eu possa ver, não aconteceu nada ainda! Esperem até que sobrevenha algo ponderável! Afinal, Iván Fiódorovitch está sempre a imaginar coisas e a transformar outeiros em cordílheiras!”

A conclusão disso era que deviam ficar calmos, esperar, e olhar tudo friamente. Mas, ai dela! A calma não durou nem dez minutos. O primeiro golpe no seu rosto foram as notícias do que tinha acontecido durante a sua ausência, quando fora à Ilha Kámennii. (A visita da Sra. Epantchiná se dera no dia seguinte ao em que o príncipe fora pagar a visita deles, cerca da meia-noite em vez das nove horas.) Em resposta às impacientes perguntas maternas, responderam as irmãs minuciosamente, começando por declararem que nada de mais tinha acontecido durante a ausência dela”; que o príncipe tinha vindo e demorado; que, por mais de meia hora, Agláia ficara sem descer para vê-lo mas que acabara por descer e logo convidara o príncipe para jogar xadrez; mas que o príncipe não sabia como se jogava aquilo, tendo Agláia logo se aborrecido dele; mas que, como estava muito animada, zombara de tal ignorância, ao que ele ficou muito envergonhado; riu-se ela pavorosamente, a tal ponto que até dava pena olhar-se para ele, tendo ela então sugerido jogarem cartas. E que jogaram duraki, tendo então acontecido o oposto, pois o príncipe jogava aquilo de maneira prodigiosa, como um professor; que, mesmo Agláia trapaceando e mudando de baralho e furtando no nariz dele, ainda assim ele ganhara todas as cinco vezes que ela dera cartas. Que Agláia “subiu a serra”, quase perdendo a compostura, tendo dito tais coisas mordazes e horrendas ao príncipe que ele deixou de rir e ficou inteiramente pálido, principalmente quando ela lhe disse, por fim, “que não poria o pé na sala enquanto ele estivesse lá” e que positivamente era sem propósito vir ele visitá-las de noite, depois da meia-noite, depois de tudo quanto tinha acontecido. E que batera com a porta e saíra. Que o príncipe se fora como de um funeral, apesar de todos os esforços das duas para o consolarem. E que então, inesperadamente, um quarto de hora depois que o príncipe saíra, Agláia desceu às carreiras para a varanda, sem mesmo ter tido o cuidado de enxugar os olhos ainda molhados de lágrimas. Descera porque Kólia tinha chegado, trazendo um ouriço. E todas começaram logo a espiar o ouriço. Kólia explicou que o ouriço não era dele; que saíra a passear com um colega de escola, Kóstia Liébediev; que esse tinha ficado lá fora e estava com vergonha de entrar porque carregava uma machadinha; que haviam comprado o ouriço e a machadinha de um camponês que encontraram. O camponês vendera o ouriço por cinqüenta copeques, tendo eles tentado persuadi-lo a vender também a machadinha porque “não precisava dela”, e que era uma boa machadinha. E logo Agláia começou a instar com Kólia para que lhe vendesse o ouriço, ficando muito animada e chegando até a chamá-lo de “querido”. Por muito tempo Kólia não quis atendê-la até que por fim correu até Kóstia Liébediev e o intimou a vir; de fato aquele viera, com machadinha e tudo, mas muito encabulado. E eis que então ficou esclarecido que o ouriço não era deles, absolutamente; pertencia a um outro, a um terceiro garoto, chamado Petróv, que entregara dinheiro aos dois para comprarem a História de Schlosser, para ele, de um quarto garoto que, precisando de dinheiro, vendia barato. Que tinham ido pois comprar a História de Schlosser, mas haviam acabado por não resistir e comprado o ouriço! De maneira que o ouriço e a machadinha pertenciam ao terceiro garoto a quem os iam levar em vez da História de Schlosser. Mas tanto Agláía insistiu que acabaram decidindo vender-lhe o ouriço. Logo que Agláía comprou o ouriço, o colocou, com a ajuda de Kólia, em um cesto de vime, cobrindo-o com um guardanapo; e então começou ela a instar com Kólia para levar aquilo para o príncipe, da parte dela, pedindo que aceitasse como um sinal do seu  profundo respeito”. Kólia anuiu, radiante, e prometeu fazê-lo sem falta, mas logo começou a amolá-la para saber “que é que o ouriço representava a ponto de fazer dele um presente”.

Agláia respondeu que ele não tinha nada com isso. Retrucou ele que estava convencido que havia naquilo alguma alegoria. Agláia, zangando-se, correra atrás dele, chamando-o de “confiado”. Kólia respondeu logo que se não fosse o respeito que tinha pelo sexo feminino e, mais ainda, pelo que chamou de “convicções próprias”, lhe mostraria ali mesmo, imediatamente, como sabia responder a tais insultos. Contudo acabou Kólia indo levar o ouriço, muito satisfeito, com Kóstia Liébediev a correr atrás dele. Vendo Agláia que Kólia sacudia demais o cesto, o chamou lá na varanda, advertindo-o: “Por favor, não vá derrubar, Kólia querido!”, como se um minuto antes não tivesse estado a brigar com ele. Kólia parara. E também ele, como se não tivesse estado a xingá-la antes, exclamou com a maior justeza: “Não derrubo não, Agláia Ivánovna, fique descansada”, retornando a correr com a maior velocidade. Depois do que, Agláia se pusera a rir tremendamente. E subira muito contente para o seu quarto, tendo o resto do tempo ficado na melhor índole.

Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna completamente confusa. Perguntar-se-á: por quê? É que ela estava evidentemente em um estado de espírito mórbido. Sua apreensão subiu ao ponto extremo com a história do ouriço. Que significaria esse ouriço? Que convenção estaria nisso subentendida? Que representaria ele? Qual seria a mensagem cifrada? E ainda por cúmulo, Iván Fiódorovitch que aconteceu estar presente durante a conversa, estragou todo o negócio com a sua resposta. Na sua opinião não havia hieróglifo nem mensagem de qualquer espécie, o ouriço “era simplesmente um ouriço e nada mais do que um ouriço - no máximo significando um amistoso desejo de esquecer o amuo recente e recomeçar; em uma palavra, tudo era travessura, mas inocente e perdoável”.

Devemos notar, entre parênteses, que ele conjeturara direito. O príncipe tinha voltado para casa depois de ter sido ridicularizado e despedido por Agláia, tendo ficado sentado a um canto, mais de neia hora, no mais negro dos desesperos quando, inesperadamente, surgiu Kólia com o ouriço. E o céu logo clareou. Foi como se o principe tivesse ressuscitado. Deu em perguntar uma porção de coisas a Kólia, suspenso em cada palavra dita por ele, repetindo as perguntas mais de dez vezes, rindo como uma criança e continuamente apertando as mãos dos dois garotos engraçados que o examinavam com tanta franqueza. A conclusão de tudo era que agláia o perdoara e que poderia ir vê-la outra vez. Iria à noite, e isso para ele não era o fato principal, mas o único.

- Que crianças que vocês são, Kólia! E... e... que belo é que vocês sejam assim crianças! - exclamara, por fim, jubiloso.

- O fato puro é que ela está apaixonada pelo senhor, príncipe, isso é que é tudo! - respondera Kólia com autoridade, categoricamente.

O príncipe enrubesceu, mas desta vez não respondeu nada, tendo Kólia simplesmente rido e batido palmas.

Um minuto depois ria o príncipe também; e desde então começou a olhar para o relógio cada cinco minutos, para ver como o tempo custava a passar, achando que demorava para chegar a noite.

Mas o temperamento da Sra. Epantchíná sobrepujou qualquer senso de conveniência; por fim, não pôde deixar de desafogar a sua excitação paroxística. A despeito dos protestos do marido e das filhas, imediatamente mandou chamar Agláia, com o fim de lhe fazer a fatal pergunta e arrancar-lhe uma resposta perfeitamente clara e decisiva. “Para pôr um fim nisso tudo, de uma vez para sempre, para ficar livre e não ter de voltar ao assunto de novo! Se esperar até amanhã, morro sem vir a saber!” E foi então que eles se deram conta do absurdo ponto a que tinham levado as coisas. Não puderam extrair de Agláia senão fingida admiração, cólera, risadas e gracejos para com o príncipe e para quantos a interrogavam.

Lizavéta Prokófievna permaneceu nos seus aposentos até ao anoitecer, só descendo para o chá na hora em que o príncipe era esperado. Aguardava a vinda dele em pânico e quase caiu com um ataque quando ele apareceu.

O príncipe, por sua parte, entrou timidamente, como que procurando um lugar conveniente, olhando para os olhos de todo o mundo, e com o ar de querer indagar de todos eles por que era que Agláia não estava já na sala, fato que logo o deixou preocupado. Essa noite não estava presente nenhuma outra visita. A família estava só. O Príncipe Chtch... ainda se achava em Petersburgo, ocupado com os negócios do tio de Evguénii Pávlovitch. “Se esse, ao menos, estivesse aqui, para dizer qualquer coisa, fosse o que fosse” - disse Lizavéta Prokófievna a si própria, deplorando aquela ausência. Iván Fiódorovitch mostrava-se com um ar espantado; as irmãs permaneciam sérias e, de propósito, ou não, caladas. Lizavéta Prokófievna ficou sem saber como iniciar a conversa.

Finalmente, vigorosamente criou ânimo e descompôs a estrada de ferro, encarando o príncipe como em um resoluto desafio.

Pobre Míchkin! Agláia não descia e ele estava em palpos de aranha. Perdendo a cabeça e mal podendo pronunciar as palavras, exprimiu a opinião de que melhorar a linha seria excessivamente prático; mas Adelaída riu de repente, e ele ficou outra vez esmagado. Foi nesse instante que Agláia Surgiu. Calmamente e com dignidade, fez uma cerimoniosa curvatura para o príncipe e solenemente se foi sentar no lugar mais à vista, junto à mesa redonda.

De lá olhava para o príncipe, indagadoramente. E todo o mundo percebeu  que era chegado o momento em que todas as dúvidas seriam dissipadas. Foi então que ela lhe perguntou firmemente e com ar quase de reprimenda:

- Recebeu o meu ouriço?

- Recebi - respondeu o príncipe, com o coração sucumbido; e ficou escarlate.

- Então explique logo o que pensa a respeito. Isso é essencial para a paz de espirito de mamãe e de toda a família.

- Agláia, minha filha, Agláia... - começou o general subitamente alvoroçado. - Mas que despropósito, menina! - disse Lizavéta Prokófievna,

alarmada, sem saber direito por quê.

- Não vejo em que seja isso um despropósito, mamãe! - respondeu logo a filha, desabridamente - Eu hoje mandei ao príncipe um ouriço, e quero saber a opinião dele. Então, príncipe?

- Mas que espécie de opinião, Agláia Ivánovna?

- Sobre o ouriço.

- Quereis dizer, suponho eu, Agláia Ivánovna, que desejais saber como eu recebi.., o ouriço... ou, melhor, como encarei o fato de.. me mandardes.., o ouriço, isto é... Em tal caso, a meu ver, creio que, de fato...

Faltou-lhe o ar e emudeceu.

- Bem, não disse lá grande coisa - sentenciou Agláia, depois de esperar cinco segundos. - Muito bem. Concordo em que ponhamos de lado o ouriço. Mas ficarei muito contente se puder pôr um fim a uma série de mal-entendidos que se vêem acumulando entre nós. Quero saber pessoalmente se pretende me pedir em casamento, ou não?

- Deus do Céu! - rompeu do peito de Lizavéta Prokófievna. O príncipe sobressaltou-se e recuou; Iván Fiódorovitch ficou petrificado, as irmãs fecharam os semblantes.

- Não minta, príncipe. Diga a verdade. Por sua causa venho sendo perseguida por estranhas perguntas. Há qualquer fundamento para que tais perguntas se dêem? Então?!...

- Eu não vos fiz o meu pedido, Agláia Ivánovna - o príncipe subitamente reanimado. - Mas sabeis quanto vos amo e quanto creio em vós.., mesmo agora.

- O que eu estou perguntando é.. se está pedindo, ou não está pedindo a minha mão!

- Estou - respondeu Míchkin com o coração opresso.

Seguiu-se um movimento geral de pasmo.

- A coisa não é absolutamente assim, meu caro amigo atalhou Iván Fiódorovitch, violentamente agitado.

- Isto... isto é quase impossível, se é que é assim, Agláia. Perdoe, príncipe, perdoe,. meu caro amigo!... Lizavéta Prokófievna! - e se voltou pedindo o auxílio da esposa. - Tu deves tomar parte nisto...

- Eu não! Recuso-me! - exclamou Lizavéta Prokófievna sacudindo as mãos.

- Deixe que eu fale, mamãe. Neste caso eu valho alguma coisa; o momento capital da minha sorte está sendo decidido (esta foi a expressão usada por Agláia). Eu quero decidir por mim mesma e fico contente de o fazer perante todos aqui. Permita que lhe pergunte, príncipe: se “acaricia tal intenção”, de que modo se propõe a assegurar a minha felicidade?

- Para falar a verdade, não sei, Agláia Ivánovna; como responder-vos a esta pergunta... Responder o quê?

E, além do mais, é isso necessário?

- Parece-me que está embaraçado e com falta de ar. Descanse um pouco e refaça o seu espírito. Beba um copo de água, embora daqui a pouco lhe tragam um pouco de chá.

- Eu vos amo, Agláia Ivánovna, eu vos amo muitíssimo, não amo senão a vós e... Não gracejeis, imploro-vos.., eu vos amo muitíssimo.

- Trata-se de um assunto importante, aliás, e não somos crianças; devemos encará-lo praticamente... Tenha a bondade de explicar qual é a sua fortuna!

- Agláia, que é isso? Que é que você está fazendo? Não se trata disso, absolutamente não se trata disso - murmurou Iván Fiódorovitch, desapontado.

- Que vergonha! - disse Lizavéta Prokófievna em um balbuciO audível, ao que Aleksándra, também em um balbucio, rematou.

- Ela está fora do seu juízo.

- A minha fortuna?... Isto é, quanto tenho em dinheiro? - disse o príncipe, aparvalhado.

- Justamente!

- Atualmente... eu tenho cento e trinta e cinco mil rublos - afirmou o príncipe, corando.

- E é tudo? - disse Agláia, alto, com franca admiração, sem nenhum fingido rubor.

- Não tem importância, todavia, principalmente vivendo com economia. Pensa entrar para algum cargo?

- Eu estava pensando em me preparar para os exames, a ver se me torno um preceptor...

- Muito apropriado; e nem há dúvida que isso aumentará a sua renda. Pretende então vir a ser um gentil-homem da câmara?

- Gentil-homem da câmara? Nunca pensei nisso, mas...

Mas a essa altura as duas irmãs não puderam resistir e caíram na gargalhada. Adelaída já havia desde antes reparado pelos traços contraídos do rosto de Agláia sintomas de iminente e irreprimível risada que ela estava a prender com quanta força tinha. Olhou Agláia ameaçadoramente para as irmãs que ainda riam, mas um segundo depois também ela desandou em um acesso de gargalhada frenética e quase histérica. Por fim se levantou e saiu correndo da sala.

- Eu já estava vendo que tudo era brincadeira e nada mais! - exclamou Adelaída.

- Desde o começo, desde a história do ouriço.

- Não, isso não permitirei. De modo algum - e exasperada, fervendo de raiva, Lizavéta Prokófievna se precipitou atrás de Agláia. As irmãs correram lá para dentro, imediatamente, atrás dela. O príncipe ficou sozinho na sala, com o chefe da família.

- Isso agora... Poderia você imaginar uma coisa destas, Liév Nikoláievitch? - exclamou abruptamente o General Epantchín. mal sabendo o que deveria dizer. - Sim, seriamente, diga-me!

- Vejo que Agláia Ivánovna está se rindo de mim - disse Míchkin, tristemente.

- Espere um pouco, meu rapaz. Vou até lá e você espere aí um pouco, porque... afinal de contas, você, no mínimo, Liév Nikoláievitch, deve me explicar já agora como foi que tudo isso aconteceu, e que significa isto encarado em conjunto, por assim dizer?! Você há de concordar, meu rapaz - eu sou o pai dela! Seja como for, sou pai... E todavia não compreendo nada; que você ao menos me ponha a par.

- Eu amo Agláia Ivánovna, ela sabe disso... e eu acho que o sabe há muito tempo.

O general encolheu os ombros.

- Estranho, estranho!... E você gosta mesmo muito dela?

- Muito.

- Pois tudo isso me parece muito estranho. Isto é uma surpresa e um tal golpe que eu... Quer saber de uma coisa, meu rapaz, não se trata de fortuna (embora eu esperasse que você tivesse um pouco mais), mas é a felicidade de minha filha... De fato... está você em condições de assegurar... a felicidade dela? E... e... que significa isso? É brincadeira ou é verdade, da parte dela? Não quanto a você, mas quanto a ela, me refiro eu agora.

Nisto se ouviu a voz de Aleksándra, lá da porta, chamando o pai.

- Espere um pouco, meu rapaz, espere um pouco! Espere um pouco e fique aí a cogitar. Voltarei já – disse apressadamente, quase que em alarma, avançou lá para dentro em resposta ao chamado.

Encontrou a mulher e a filha, uma nos braços da outra, misturando as lágrimas. Eram lágrimas de felicidade, de ternura e reconciliação. Agláia estava beijando as mãos da mãe, as faces e os lábios. Permaneciam apertadas em um grande amplexo.

- Olhe para isto, Iván Fiódorovitch. Aqui está ela, como realmente é - dizia Lizavéta Prokófievna.

Agláia escorregou aquele seu rosto feliz, banhado de lágrimas, até ao seio materno, e depois olhou para o pai; riu alto, atirou-se sobre ele, abraçou-o calorosamente, beijando-o várias vezes.

Depois se atirou de novo sobre sua mãe, e escondeu o rosto completamente no seio dela, sem que ninguém o pudesse ver. E logo desatou a chorar outra vez. Lizavéta Prokófievna cobria-a com a ponta da sua manta.

- Que é que nos estás fazendo, tu, cruel menina, é só o que eu quero saber! - dizia, mas jubilosamente, como se já agora pudesse respirar mais livremente.

- Como sou cruel! Como sou cruel! - concordava ela. - E ruim! Não valho nada. Dize isso a papai. Oh! Sim, ele está aqui. Papai, estás aqui? Estás ouvindo? - E riu por entre as lágrimas.

- Minha querida! Meu ídolo! - O general beijava-lhe as mãos, todo resplandecente de felicidade. Agláia não retirou a mão.

- Assim, pois, tu então amas esse jovem?

- Não! Não posso suportar o teu jovem. Não o tolero! - exclamou Agláia, se inflamando repentinamente, e erguendo a cabeça. - E se tu, papai, ousas outra vez... Eu já disse, papai, eu quero dizer, papai, estás ouvindo, eu quero significar que...

E certamente que seus modos eram veementes. Ficou vermelha e os seus olhos cintilaram. O pai quedou estático e sem jeito. Mas Lizavéta Prokófievna lhe fez um sinal por detrás da filha e ele tomou tal sinal como significando: “Não faças perguntas.”

- Se assim é, meu anjo, seja como quiseres, é a ti que cabe decidir; ele ficou esperando lá, sozinho. Deveremos nós dar-lhe a entender que se deva ir embora?

Iván Fiódorovitch, por seu turno, piscou para a esposa.

- Não, não, isso não é necessário. E nem seria delicado. Tu vais até ele, tu mesmo, papai. E eu entrarei logo a seguir. Desejo pedir perdão a esse bom rapaz, porque feri os seus sentimentos.

- Sim, e de um modo terrível - concordou Iván Fiódorovitch, muito sério.

- Bem, então... o melhor é ficarem aqui e eu entro sozinha. Logo imediatamente depois entram todos. Mas venham imediatamente, mal eu esteja chegando; será melhor.

Ela já tinha chegado até a porta, mas repentinamente, não se contendo, voltou.

- Sou capaz de rir! Vou morrer de rir! - declarou, pesarosa.

Mas no mesmo instante se desprendeu dali e se encaminhou para o príncipe.

- Em que vai dar isso? Que é que tu achas? - começou Iván Fiódorovitch, precipitadamente.

- Nem sei o que diga. Tenho medo - respondeu Lizavéta Prokófievna, prontamente.

- Mas, pelo menos para o seu espírito, está tudo mais do que claro.

- Para o meu, também. Tão claro como o dia. Ela o ama.

- Amor, só, não. Está apaixonada - asseverou Aleksándra.

- Mas, pensando bem, apaixonada por...

- Se o destino dela tem de ser esse, que Deus a abençoe - disse Lizavéta Prokófievna, benzendo-se devotamente.

- É o destino dela - concordou o general. - E não há como escapar uma pessoa ao seu destino.

E todos eles entraram na sala de jantar onde uma surpresa os esperava, outra vez. Agláia, longe de rir, como temera, ao se dirigir até Míchkin, lhe disse timidamente:

Perdoe a uma estúpida, imbecil e ruim moça! (tomou-lhe a mão) e creia-me que todos o respeitamos imensamente. E se ousei ridicularizar a sua esplêndida e bondosa simplicidade, me perdoe como perdoaria a uma criança por estar sendo mal comportada.

Perdoe-me por estar eu insistindo em um inconcebível absurdo que não poderia, naturalmente, ter a menor conseqüência.

E Agláia proferiu as últimas palavras com uma ênfase especial. O pai, a mãe e as irmãs haviam todos chegado à porta a tempo de ouvir tudo isso; e ficaram impressionados com tais palavras: inconcebível absurdo que não poderia vir a ter nenhuma conseqüência”. E mais ainda pela maneira por que ela se referia a esse “inconcebível absurdo”.

Todos se entreolharam, interrogativamente. Mas parece que o príncipe não entendeu tais palavras, pois estava no auge mesmo da felicidade.

- Por que falais deste modo? - murmurou ele. - Por que... me pedis... perdão?

Teria dito até que não merecia que ela lhe pedisse perdão. Quem sabe, talvez não tivesse notado o significado das palavras “inconcebível absurdo que não poderia vir a ter nenhuma conseqüência”, mas, sendo o homem estranho que era, talvez ficasse aliviado ante tais palavras. Não há düvida de que só o simples fato dele poder vir ver Agláia de novo, sem empecilho, de que lhe seria permitido falar com ela, sentar-se ao seu lado, passear com ela, já era o máximo de felicidade para ele; e, quem sabe, talvez só isso já  lhe bastasse para o resto da vida. (E era justamente esse contentamento platônico que Lizavéta Prokófievna receava secretamente; compreendia-o; temia muitas coisas, em segredo, que não se aventurava a pôr em palavras.) É difícil descrever como o príncipe recobrou o ânimo, completamente, além da coragem que o reanimou essa noite. Tornou-se tão jovial que elas, por sua vez, joviais se foram tornando para com ele, como as irmãs de Agláia depois se expressaram. Deu em falar muito, o que não lhe acontecera mais desde aquela manhã, havia já seis meses, quando conhecera os Epantchín. Em seu regresso a Petersburgo adotara notório e intencional mutismo e tinha pouco depois dito ao Príncipe Chtch..., na presença de todos, que devia se conter e calar, para não degradar uma idéia, só com o exprimi-la. Foi quase ele somente quem falou essa noite, contando uma porção de coisas. Respondia às perguntas claramente, minuciosamente, e, com prazer. Mas em toda essa sua conversa não houve sequer, indício de palavra referente a idílio. Só expressava coisas sérias, às vezes, mesmo, profundas idéias. Chegou até a expor alguns pontos de vista seus, observações pessoais, o que até seria engraçado se não fosse tão bem expresso. Com o que, todos quantos o ouviram essa noite, acabaram concordando, mais tarde.

Embora o General Epantchín gostasse de assuntos sérios, como palestra, ainda assim, tanto ele como Lizavéta Prokófievna lá intimamente acharam que isso estava sendo intelectual demais, tanto que lá para o fim da noite já estavam entediados. Mas Míchkin tanto falou que acabou até contando histórias muito divertidas, de que era o primeiro a rir, vindo todos a rir mais da sua jovial gargalhada do que da história propriamente. Quanto à Agláia, pouco falou, em toda a noite. Mas esteve todo o tempo a escutar Liév Nikoláievitch, fitando-o mesmo mais do que o ouvindo. Tanto que, depois, dizia Lizavéta Prokófievna ao marido:

- Ela estava a olhar para ele, sem poder tirar os olhos, estava presa a cada palavra que ele dizia, atenta a tudo. Mas vá uma pessoa dizer-lhe que ela o ama e essa pessoa terá as paredes por ouvidos.

- Para isso não há recurso algum. É o destino - respondeu o general, encolhendo os ombros.

E muito tempo depois, ainda conservava o hábito de repetir essas palavras que o tinham agradado. Devemos acrescentar que, como homem de negócios, ele também não estava lá muito contente com a presente situação, acima de tudo com essa indefinibilidade. Mas também ele resolvera provisoriamente conservar-se quieto e precaver-se... contra Lizavéta Prokófievna.

Essa feliz disposição de espírito da família não durou muito. No dia seguinte indispôs-se Agláia outra vez com o príncipe e as coisas ficaram nesse pé durante vários dias. Por horas inteiras debicava ela o príncipe, transformando-o em um palhaço. Verdade é que muitas vezes ficavam sentados debaixo do arvoredo, no jardim, mas logo foi observado que em tais vezes Míchkin quase sempre apenas lia alto, para Agláia, um jornal, ou algum livro.

- Ouça aqui - dissera-lhe Agláia uma vez, interrompendo-lhe a leitura do jornal -, tenho reparado que é medonhamente mal instruído. Não sabe nada profundamente; se alguém lhe pergunta quem é qualquer pessoa, ou em que ano tal fato se passou, ou o nome de um tratado, sua vacilação causa lástima.

- Já vos disse que aprendi pouco - respondeu o príncipe.

- Que sabe então, se ignora coisas tão banais? Depois disso. Como lhe hei de ter respeito? Continue a ler, ou melhor, não leia mais. Deixe isso de lado.

E mais uma vez, nessa noite, uma coisa se deu, a todos surpreendendo o comportamento de Agláia. O Príncipe Chtch... havia regressado. Agláia estava muito cordial com ele. Fez-lhe muitas perguntas a respeito de Evguénii Pávlovitch. (Míchkin ainda não entrara.) E inesperadamente o Príncipe Chtch... se permitiu uma alusão a “certo acontecimento muito próximo, na família”, aproveitando-se de umas poucas palavras que Lizavéta Prokófievna deixara escapar. E sugeriu que deveriam adiar de novo o casamento de Adelaída, de maneira que os dois casamentos se pudessem realizar juntos. Agláia inflamou-se ante “essas estúpidas suposições”, fazendo-o de modo chocante; e entre outras coisas lhe escapou a frase que “não tinha intenção, no presente, de substituir a amante de ninguém.”

Estas palavras impressionaram todo o mundo, e mais ainda os pais. Tanto que, em uma confabulação secreta com o marido, Lizavéta Prokófievna insistiu ser urgente e necessário entrar no assunto relativo a Nastássia Filíppovna, com Míchkin, uma vez por todas.

Jurou Iván Fiódorovítch que tudo isso era apenas “uma veneta”, ligando tudo a um escrúpulo ou suscetibilidade de Agláia; que se o Príncipe Chtch... não tivesse feito nenhuma referência a casamentos tal explosão não teria havido, pois Agláia sabia, e sabia de muito boa fonte, que tudo isso não passava de uma difamação de gente perversa. Que Nastássia Filíppovna ia se casar com Rogójin; que o príncipe não tinha nada de ver com tal história, nem havia mesmo uma liaison com ela; e que nem nunca houvera, já que a verdade devia ser dita.

E no entanto continuava o príncipe felicíssimo, nada o perturbando. Oh! Lógico que ele também, muitíssimas vezes, percebera algo sombrio e impaciente na expressão de Agláia; mas tinha mais confiança em algo bem diferente, e a melancolia se desfazia por si só. Uma vez tendo confiança em uma coisa, nada o podia demover, depois. Talvez houvesse quietude demais em seu espírito. Pelo menos foi a impressão de Ippolít, com quem, por acaso, se encontrou no parque.

- Ora, ainda bem. Já uma vez não lhe disse eu que o senhor andava apaixonado? - começou ele, dirigindo-se a Míchkin e o fazendo parar.

O príncipe apertou-lhe a mão e o felicitou “por lhe parecer ter melhorado muito”. O doente também deu mostras de certa esperança, como acontece facilmente com os tuberculosos.

Dirigira-se ao príncipe só para lhe dizer qualquer coisa sarcástica a respeito de sua expressão de felicidade; mas logo se desviou desse fim, começando a falar sobre si próprio. Começou a se queixar, e as suas queixas, em sua maioria, eram intermináveis e um pouco incoerentes.

- Custará ao senhor crer quanto eles aqui são irritáveis, insignificantes, egoístas, nulos e vulgares. Quer saber de uma coisa, apenas me acolheram supondo que eu ia morrer logo, o mais depressa possível! E agora estão todos uma fúria porque eu, em vez de morrer, pelo contrário, dei em melhorar. Mas é uma farsa! Aposto como o senhor nem acredita!

O príncipe não se sentiu disposto a nenhuma resposta.

- As vezes penso em tornar a me mudar para a casa do senhor - acrescentou Ippolít, despreocupadamente. - Então o senhor não acha que eles sejam capazes de acolher um homem com a condição só de que esse homem não demore a morrer? Pois são!

- Pensei que o tinham convidado com outras intenções.

- Ah!... O senhor nem por isso é tão simplório como o querem fazer ser. Agora não é tempo, do contrário eu lhe diria qualquer coisa relativa a esse tal miserável Gánia e respectivas esperanças. Eles estão minando a sua situação, príncipe; estão fazendo isso, sem misericórdia e... chega a causar pena a serenidade do senhor... Mas ai do senhor, não pode fazer nada!

- Estou achando graça na sua piedade para comigo - riu o príncipe.

- Então acha! Então acha que eu seria mais feliz se fosse menos sereno?...

- Melhor é ser infeliz e saber a verdade, do que ser feliz e viver.., nas nuvens. Está me parecendo que o senhor não acredita que tem um rival - e neste quarteirão, não é mesmo?

- O que você me quer dizer sobre um suposto rival meu, Ippolít, é um tanto cínico. Desculpe-me; não tenho o direito de lhe responder assim. Quanto a Gavríl Ardaliónovitch, julgue você por si mesmo se ele, em seu espírito, pode ser feliz depois de tudo quanto perdeu. Isso, caso você saiba alguma coisa, pouca que seja dos negócios dele. A mim me parece melhor considerar o assunto só quanto a este ponto de vista. Já é tempo dele mudar; ele tem uma vida diante de si; e a vida, Ippolít, é uma coisa rica, muito embora... muito embora...

- E o príncipe parou, como que em dubiedade. - Quanto ao fato de que me estejam minando, não entendo o que você quer dizer. Vamos mudar de conversa, Ippolít.

- Deixá-la-emos de lado, por enquanto. Além disso o senhor continua, e não há quem o demova, a ser cavalheiro, haja o que houver. Sim, príncipe, o senhor é dos tais que nem mesmo tocando em uma coisa, acreditam! Ah! Ah! E o senhor ainda me despreza bastante, não?

- Por quê? Porque você tem sofrido e ainda está sofrendo mais do que nós?

- Não, mas porque eu não valho o que sofro!

- Quem quer que possa sofrer mais ainda, vale cada vez mais o próprio sofrimento. Tanto que, quando Agláia Ivánovna leu a sua confissão, quis logo conhecê-lo, mas...

- Mas desistiu, não pôde... Compreendo, compreendo...- retorquiu logo Ippolít como se quisesse interromper a conversa o mais ligeiro possível. - A propósito, disseram-me que o senhor leu para ela, alto, toda essa algaravia. Foi em literal delírio que escrevi aquilo e que fiz... E o que eu não compreendo é como haja quem possa ser assim... não direi cruel (pois seria humilhante para mim), mas tão infantil e vingativo que me tendo admoestado por causa dessa confissão a use agora contra mim, como uma arma. Não se preocupe, não é ao senhor que me estou referindo.

- Pois eu sinto que você tenha repudiado esse manuscrito, Ippolít; ele é sincero! E você sabe muito bem que mesmo os mais absurdos pontos dele, e não são poucos (Ippolít ficou carrancudo” foram redimidos pelo sofrimento, pois confessar é sofrer e... talvez signifique até grande virilidade. A idéia que animou você deve ter fundamentos bem nobres, sejam lá quais forem. Vejo isso mais claramente à medida que o tempo passa, juro-lhe. Eu não o estou julgando. Falo apenas para dizer o que penso e lamento não o ter compreendido naquela ocasião.

Ippolít enrubesceu fortemente. Acudiu-lhe ao espírito o pensamento de que Míchkin estava simulando e querendo envolvê-lo nessa simulação. Nisto o olhou bem no rosto; e então viu e o convenceu que havia sinceridade. E a sua face se iluminou.

- Sim, seja lá como for, morrerei - quase acrescentando “apesar de ser quem sou.”  - E imagine agora como seu amigo Gánia me roga pragas. A objeção que ele me berrou é que no mínimo três ou quatro dos que escutaram a minha confissão morrerão muito provavelmente, antes de mim. Que diz o senhor disto? Suponha ele que isso seja um conforto para mim. Ah! Ah! Em primeiro lugar, esses tais ainda não morreram. E mesmo que essa gente tivesse morrido, há de o senhor admitir que isso não me valeria de modo algum como conforto. Ele julga os outros por si. Mas o diabo é que ele ainda vai mais adiante. Agora deu simplesmente em abusar de mim. Diz ele que um sujeito decente deve morrer em silêncio e que tudo não passa de egoísmo da minha parte. Que me diz o senhor a isto? Egoísmo, sim, mas da parte dele; de que lhe vale todo aquele refinamento se ao mesmo tempo tem uma rudeza bovina de egoísta, muito embora não dê por isso? Leu o senhor, por acaso, príncipe, a morte de Stepán Glíebov no século dezoito? Pois ontem me aconteceu ler isso...

- Qual Stepán Glíebov?

- O que foi empalado no tempo de Pedro.

- Oh, sim, já sei. Esteve quinze horas no pelourinho, exposto àgeada, em um casaco de pele, e morreu com extraordinária grandeza. Sim, já li isso, mas qual a relação que...

- Deus concede tal morte a certos homens, mas não a nós! Acha o senhor, talvez, que eu não seja capaz de morrer como Glíebov?

- Por que não? - respondeu Míchkin, meio embaraçado. -Apenas queria dizer que você.., a meu ver, não seria como Glíebov, mas sim.., a meu ver, mais provavelmente você faria como...

- Ah! Já sei, como Osterman? E não como Glíebov - não foi o que o senhor quis dizer?

- Qual Osterman? - perguntou o príncipe, surpreso.

- Osterman, o diplomata Osterman. Osterrman, do tempo de Pedro - explicou Ippolít bastante desapontado.

Seguiu-se uma perplexidade mútua.

- Oh! Não! Eu não quis dizer isso, afirmou categoricamente o príncipe, após breve pausa.

- Você nunca seria, acho eu... um Osterman.

Ippolít franziu a cara.

- A razão pela qual eu mantenho isso - resumiu o príncipe ansioso por colocar as coisas direito - é que os homens daqueles tempos (e juro que isso sempre me impressionou) não eram absolutamente como nós hoje somos; não era a mesma a raça de agora. Nos nossos tempos; realmente parece que somos de uma espécie diferente... Naqueles tempos os homens tinham uma idéia, mas agora nós somos mais nervosos, mais evoluídos, mais sensíveis: somos homens capazes de duas ou de três idéias ao mesmo tempo... (os homens modernos têm maiores propensões - e eu juro que isso os impede de serem inteiriços como os de outrora. Foi... foi só com essa idéia que eu disse aquilo, e não...

- Compreendo, o senhor está aplainando as coisas melhor para me consolar agora por causa da simplicidade com que discordou di mim, ah, ah! O senhor é uma perfeita criança, príncipe. Noto que todos os senhores me tratam com o cuidado com que se trata uma xícara de porcelana chinesa... Mas não me zango, está tudo muito bem, não faz mal! Afinal, pensando bem, tivemos uma conversa formidavelmente engraçada; o senhor, às vezes, é uma perfeita criança, príncipe. Deixe, porém, que lhe diga que talvez eu viesse ser melhor coisa do que Osterman. Não valia a pena ressuscitar Osterman... Acho que devo morrer o mais depressa possível, ou, então... eu próprio devo... Mas, aqui me despeço. Adeus! Bem, já agora, diga a este seu amigo qual seria para mim a melhor maneira de morrer?... Ter um fim virtuoso, o mais possível, não é assim? Vamos, diga-me!

E então, o príncipe disse em voz baixa:

- Passar por nós... E ao passar nos perdoar a nossa felicidade..

- Ah! Ah! Ah! Direitinho o que eu pensava. Eu sabia que teria de ser uma coisa mais ou menos assim! Pois não é que o senhor.. não é que o senhor... Bem, bem! Esta gente eloqüente! Adeus” Adeus!

 

O que Varvára Ardaliónovna disse ao irmão sobre a recepção dos Epantchín, para a qual a Princesa Bielokónskaia era esperada, estava perfeitamente correto. Os convivas eram esperados essa noite. Era realmente correta a informação, mas um pouco exagerada, pois tudo tinha sido arranjado às pressas, e mesmo com desnessessária excitação, justamente porque naquela família “tudo quanto se fazia era diferente do modo dos outros fazerem”. E tudo devido quer à impaciência de Lizavéta Prokófievna que estava “ansiosa para não continuar suspensa”, quer aos temores do coração paterno quanto ao que concernia à felicidade de sua filha favorita. Como a Princesa Bielokónskaia não se demoraria e como vir ela a ser “madrinha” certamente pesaria na sociedade, e esperavam que simpatizasse com Míchkin, os pais contavam que “o mundo” aceitaria com bons olhos o noivado de Agláia sob os auspícios da onipotente princesa anciã e que, por conseguinte, o que nele houvesse de estranho, viria a parecer muito menos estranho debaixo de tal recomendação. O fato real é que os pais não se sentiam capazes de decidir a questão, por si mesmos, como se houvesse qualquer coisa de anômalo nela. E se houvesse, tanto pior! Assim, não ficaria havendo nada de estranho. A cândida e amistosa opinião de pessoas influentes e idôneas não tendo sido precisa até agora visto Agláia não ter até então decidido nada. Em todo o caso, mais tarde ou mais cedo, o príncipe teria de ser apresentado à sociedade, da qual não tinha a menor idéia. Resumindo, estavam tentando “mostrá-lo”. A reunião arranjada era, porém, simples. Somente “amigos da família” eram esperados e, esses mesmos, poucos.

Além da Princesa Bielokónskaia, viria uma outra dama, esposa de um importante dignitário. Evguénii Pávlovitch era o único jovem esperado e deveria vir fazendo honras à velha princesa. Míchkin ouvira dizer que a princesa viria com três dias de antecedência. Da reunião só veio a saber na véspera. Notara, naturalmente, o ar atarefado dos membros da família e, através de deduções tiradas das ansiosas tentativas para lhe assinalarem o fato, percebeu que receavam a impressão que viria a causar. Mas, de qualquer maneira, os Epantchín todos, sem exceção, estavam possuídos pela idéia de que ele era simplório demais para adivinhar que estavam preocupados a seu respeito, e por causa da recepção. E, assim, olhando-o, estavam todos interior-mente constrangidos. Ele, na verdade, ligou pouca importância ao acontecimento porque estava mais preocupado com coisa bem diferente.

Agláia tornava-se cada hora mais soturna e caprichosa, e isso o oprimia. Quando soube que também contavam com a vinda de Evguénii Pávlovitch, ficou muito satisfeito e disse que desde muito estava desejoso de vê-lo. Por qualquer equívoco, ninguém gostou dessa observação. Agláia retirou-se amuada, da sala, e foi só mais tarde, lá pela meia-noite, quando o príncipe se despediu, que ela aproveitou a oportunidade para trocar algumas palavras com ele, quando saía:

- Gostaria que não viesse ver-nos, durante o dia, amanhã. Venha só à noite. Chegue quando as visitas já estiverem aqui. Sabe que vai haver visitas, não sabe?

Tinha o ar impaciente e severo. Foi a única vez que lhe falou da recepção. Para ela, também, a lembrança dessas visitas era insuportável. Todo o mundo notara isso. Viera-lhe até a tentação de indisporse com os pais, por tal motivo, só a impedindo uma mistura de orgulho e modéstia. Míchkin percebeu imediatamente que ela também estava apreensiva por causa dele, e conquanto não quisesse admitir receio da parte dela, acabou subitamente se sentindo assustado.

- Sim, fui convidado - respondeu.

Ela, evidentemente, achou dificuldade em prosseguir.

- Pode-se falar consigo a respeito de uma coisa séria? Ao menos uma única vez? - Sentiu-se inesperadamente temerosa e aborrecida, não sabendo direito porque, mas ainda assim não se contendo.

- Podeis, sim. Estou ouvindo, de bom grado - balbuciou ele.

Depois de um minuto de silêncio, ela começou, com evidente mortificação:

- Não quis discutir com eles, a tal respeito, porque não há quem os demova de certas coisas. Certos princípios de mamãe sempre me revoltaram. Quanto aos de papai, nem falo nada; estamos habituados a não esperar nada dele.

Mamãe é uma nobre mulher, naturalmente. Se você ousasse propor-lhe a compreenção de qualquer coisa, veria. Até hoje ela ainda se inclina profundamente diante dessas criaturas insuportáveis. Não me refiro só à velha princesa; esta então é uma velha desprezível, um desprezível caráter, mas muito esperta e sabe como fazê-los girar ao redor do seu dedo. Ao menos tem isso! Oh! A baixeza de todas essas coisas! E o ridículo! Nós sempre fomos gente da classe média, como a classe média possivelmente possa ser. Por que forçar-nos para esse círculo aristocrático? E minhas irmãs adotam a mesma política. Não viu como o Príncipe Chtch... as alvoroçou? Por falar nisso, por que se alegrou você com a vinda de Evguénii Pávlovitch?

- Escutai, Agláia. Parece que estais receosa de que eu me escarrapache aqui, amanhã... na recepção!

- Eu? Com medo? Por sua causa? - E Agláia enrubesceu. Não vejo por que hei de eu ter receio, por sua causa, mesmo que você se arruine totalmente!... Que tenho eu de ver com isso, e como pode empregar tais palavras?

Que quer dizer com esse termo grosseiro “escarrapache!”?

-É... gíria de recreio de colégio.

- É sim, um termo de colégio! Horroroso! Decerto pretende usar expressões como esta amanhã! Neste caso escolha mais umas, no seu dicionário, em casa. É uma pena como você sabe entrar corretamente em um salão! Onde aprendeu? Saberá como segurar uma xícara de chá e tomá-lo direitinho, quando todo o mundo o estiver olhando?

- Creio que sim.

- Se sabe, é pena. Pois, se não soubesse, ao menos teria do que me rir. Em todo o caso, preste atenção.

Imagine quebrar o vaso de porcelana da China da sala de visitas. É um vaso extravagante. Por favor, quebre-o! Foi um presente. Mamãe ficaria tão fora de si que choraria diante de todo o mundo. Ela o admira tanto! Gesticule, como você sempre faz quando fala, bata nele e quebre-o! Sente-se perto, de propósito.

- Que nada! Sentar-me-ei o mais longe possível! Obrigado por me terdes prevenido.

- Então, fique nervoso e acabe desengonçando os braços. Aposto o que quiser como vai logo discorrer sobre qualquer coisa difícil, um assunto elevado. Isso... demonstrará muito... tato!

- Se não for apropriado, acho que será estúpido.

- Ouça, uma vez por todas - disse Agláia, perdendo a paciência. - Se falar sobre qualquer coisa assim como pena capital, ou a posição econômica da Rússia, ou como a Beleza salvará o mundo, naturalmente eu ficarei radiante, aplaudirei, rirei.., mas desde já o previno, não me apareça depois, nunca mais! Estou falando sério! Desta vez estou falando sério.

Realmente a sua ameaça era séria. Algo de excepcional podia ser ouvido nestas palavras e visto naqueles olhos; algo que não era brincadeira e que o príncipe nunca reparara antes.

- Agora, depois do que acabastes de dizer, tenho a certeza de que vou falar demais e que até vou quebrar o vaso. Antes não tinha receio de nada, agora tenho pavor de tudo. Certamente “que me escarrapacharei!”.

- Então, contenha a língua. Sente-se quieto e contenha a língua,

- Vou fazer o possível. Mas já tenho a certeza de que vou ficar atrapalhado, que começarei a falar demais e que espatifarei o vaso. Talvez até escorregue no assoalho encerado! Ou qualquer coisa assim. Isso já me aconteceu uma vez. Agora vou sonhar com essa história. Por que me fostes falar?

Agláia olhou-o soturnamente.

Vou dizer uma coisa: será melhor que eu não venha amanhã. Darei parte de doente e assim tudo acabará bem - concluiu ele.

Agláia bateu com o pé e ficou branca de raiva.

- Bom Deus! Onde é que já se viu uma coisa destas? Agora que tudo está arranjado por sua causa, não quer vir! Ó, meu Deus. Mas é um regalo tratar com uma pessoa tão insensata.

- Então eu venho! Então eu venho! - interrompeu-a apressadamente o príncipe.

- E dou minha palavra de honra que ficarei todo o tempo sentado, sem abrir a boca. Vou tomar tento em mim.

- E faria bem. Mas por que disse, há pouco, que ia “dar parte” de doente? Onde colhe estas expressões? Que o atacou para as usar deste modo? Ou está querendo que eu me aborreça, de propósito - Peço perdão. Isto foi mais um termo de colégio... Não uso mais. Compreendo perfeitamente que fiqueis preocupada por minha causa. (Sim, não fiqueis zangada.) Até fico contente quando me emendais. Agora, por exemplo, nem sabeis como estou ao mesmo tempo, assustado e contente. Mas asseguro que todo esse receio é despropositado e insignificante. Deveras, Agláia. Mas permanece a alegria. Estou formidavelmente contente por serdes a criança que sois; uma criança tão bondosa! Oh! Como podeis ser maravilhosa, Agláia!

Agláia naturalmente estava a ponto de ter um acesso de raiva mas subitamente tomou posse da sua alma, em um instante, um sentimento inteiramente inesperado.

- E nunca me censurará pelas palavras grosseiras que acabei de lhe dizer? Nunca? Em dia algum? - perguntou.

- Como podeis pensar isso? Que idéia! Estais um deslumbramento! Oh! Por que enrubecestes? Mas ficastes tristonha, outra vez! E agora já estais de novo me olhando desapontada.

Destes para me olhar, de vez em quando, de um modo esquisito, Agláia. Não éreis assim, antes. Eu sei por que é!

-Psiu!

- Não, é melhor que eu diga logo! Desde muito que estou querendo dizer. Até já comecei, mas não é o bastante, visto terdes o costume de não acreditar no que eu falo. Há uma pessoa entre nós...

- Psiu! Psiu! Psiu! Psiu! - Agláia interrompeu-o imediatamente, segurando-lhe a mão com força, olhando-o quase com terror.

Nisto, lá de dentro chamaram por ela. Com ar de alívio, deixou-o logo e correu.

O príncipe teve febre a noite toda. Uma febre que já desde várias noites não o largava.

Mas, aquela noite, estando em subdelírio, um pensamento lhe sobreveio: e se, no dia seguinte diante de todo o mundo, tivesse um ataque? Já tivera ataques em público. Tal pensamento gelou-o. Em sonho, se imaginou no meio de uma estrada e incrível companhia de gente desconhecida. E o pior é que não parava de falar. Sabia que não devia falar, mas falava o tempo todo, tentando persuadir essa gente de alguma coisa, voltando-se ora para Ippolít, ora para Evguénii Pávlovitch que estavam extremamente amistosos para com ele.

As nove horas, quando se levantou, sentia o espírito confuso; as impressões lhe vinham de um modo compacto e a cabeça lhe doía. Veio-lhe uma vontade indomável e disparatada de ir ver Rogójin, de ficar horas e horas a conversar com ele. Sobre quanta coisa não conversariam! Mas logo caiu em si: era a Ippolít que deveria ir ver. Sentia uma sensação esquisita em seu coração, tanto que quando lhe aconteceu certa coisa, pouco depois, ficou sem perceber o que era. Todavia tudo não passava de quê? De uma visita de Liébediev.

Dera-se um pouco depois das nove horas a entrada de Liébediev. Vinha já completamente bêbado. Desde que o General Ívolguin o tinha largado, havia uns três dias, até Míchkin, que ultimamente já não era tão observador, reparou que Liébediev ia de mal a pior. Andava todo engordurado e sujo, a gravata para um lado, a gola do paletó puída. No cubículo onde morava erguia a todo instante uma tempestade que se ouvia do pátio.

Vera, mais de uma vez, em lagrimas, viera, por causa disso, chamar o príncipe.

Mas esta manhã ao se apresentar, começou a falar de um modo enigmático, batendo no peito, culpando-se de uma porção de coisas.

- Recebi.., recebi o castigo da minha baixeza e da minha vilania... uma formidável bofetada – concluiu tragicamente.

- Uma bofetada? De quem? E já tão cedo?

- Já tão cedo? - E Liébediev sorriu sarcasticamente. - Que tem o tempo a ver com isso de castigos corporais? Além de que o que recebi foi um castigo moral, e não físico!

Sentou-se logo, sem cerimônia, e começou a contar a sua história que, aliás, era muito incoerente. O príncipe, fechando o cenho, esteve para se ir, mas certas palavras lhe prenderam a atenção. Ficou completamente mudo de espanto ante as coisas estranhíssimas que este  Sr. Liébediev estava a contar.

Aparentemente, para poder começar, meteu a história de uma carta. O nome de Agláia Ivánovna foi encaixado... Depois, Liébediev entrou a falar mal do próprio Míchkin. Só se podia concluir que estava zangado com o príncipe. Relembrou, inicialmente, que o Príncipe o honrara com a sua confiança, em determinadas transações com “certa pessoa” (com Nastássia Filíppovna), interrompendo-as completamente e ignominiosamente o despedindo, chegando até a tomar contra o pobre dele atitudes ofensivas, como ainda no outro dia repelindo, com imediata grosseria, “uma inocente pergunta a respeito de próximas alterações íntimas”. Com lágrimas de bêbado protestou que, depois disso, tinha de explodir, principalmente sabendo o mundo de coisas que sabia de Rogójin, de Nastássia Filíppovna e da amiga dela, da própria Varvára Ardaliónovna mesmo de... sim... de Agláia Ivánovna.

- Se não acredita em mim, saiba então que foi através de Vera, através de minha adorada filha única... isto é, a bem dizer não é a única, pois na verdade tenho três... E quem foi que informou Lizavéta Prokófievna, por meio de cartas, em segredo de morte, naturalmente? Eh! Eh! Quem andou escrevendo a ela, informando-a direitinho das astúcias e alternativas da “personagem” Nastássia Filíppovna? Eh! Eh! Eh! Quem, quem é o escritor anônimo, permita-me perguntar-lhe!?

- Serás tu? - exclamou o príncipe.

- Nem mais nem menos! - replicou o bebado com dignidade.

- E esta manhã mesmo, há meia hora, aí pelas oito e meia. Não, faz três quartos de hora! Informei àquela mãe de coração tão generoso que tinha um fato... de importância a participar-lhe. - Informei por carta entregue à empregada, pela porta dos fundos. O papel lhe foi ter às mãos.

- Você já esteve hoje com Lizavéta Prokófievna? - perguntou o príncipe, incapaz de crer nos seus ouvidos.

- Agora mesmo, e recebi um golpe moral. Devolveu-me a carta; ou melhor, atirou-ma à cara, sem a abrir. E me deu, moralmente falando, um pontapé. Não fisicamente, lá isso não! Embora quase fosse físico também; não esteve mesmo longe de o ser!...

- Que carta foi essa que ela lhe atirou sem abrir?

- Ora! Eh! Eh! Já não lhe disse? Pensei que já lhe tinha dito. Era uma carta que me fora entregue de propósito com o fim de a... entregar a...

- De quem? De quem?

Era difícil de ligar pé com cabeça, nas explicações de Liébediev, ou de entender fosse o que fosse. Mas, tanto quanto depreendeu, Míchkin ficou sabendo que a carta tinha sido trazida, por uma empregada, a Vera Liébedieva que, por sua vez, a deveria entregar à pessoa a quem era endereçada. “Tal como da outra vez, a uma certa personagem, da parte de uma outra... pessoa. Pois, como vê, designo uma das partes aqui chamando-a “personagem” e à outra simplesmente “pessoa”, por ser assim mais derrogatório e distinguível, visto haver grande distinção entre uma inocente e bem-nascida senhorita da família de um general e.., uma senhora de uma outra espécie. A carta provinha dessa pessoa cujo nome começa pela letra “A”...

- Como assim? Para Nastássia Filíppovna? Absurdo! - exclamou Míchkin.

- Era, sim; era, sim. E se não para ela, para Rogójin. Dá no mesmo. Foi para Rogójin... e havia uma outra, também, para o Sr. Tieriéntiev, para lhe ser entregue, vinda da pessoa que começa pela letra “A” – disse Liêbediev, sorrindo e piscando.

Como continuamente misturava uma coisa com outra e esquecia o que tinha começado a falar, o príncipe teve paciência em deixá-lo ir falando. Ainda assim ficou obscuro se a correspondência fora levada por ele ou por Vera. Apesar de ter declarado que dava no mesmo que as cartas fossem dirigidas para Rogójin ou para Nastássia Filíppovna, pareceu mais provável a Míchkin que as cartas não lhe tivessem passado pelas mãos, se é que cartas havia. Ficava, pois, sem explicação, como conseguira ele ter em mãos aquela carta. O mais provável é que a tivesse surrupiado de Vera, roubando-lha com jeito, visto lhe convir ir entregá-la a Lizavéta Prokófievna. Foi, pelo menos, o que, de certo modo, o príncipe depreendeu e deduziu.

- Isso só existe na sua cabeça! - disse-lhe, em extrema agitação.

- Não só nela, nobilíssimo príncipe! - respondeu Liébediev, não sem alguma malícia.

- Pensei até em trazer-lha, em depô-la em suas mãos, para lhe render um serviço.., mas refleti que a melhor maneira de usá-la, nestas circunstâncias, era levá-la à mãe de tão nobre coração, visto já me ter comunicado com ela, por carta anônima; e quando, ainda agora mesmo, lhe escrevi um bilhete preliminar, pedindo-lhe que me recebesse às oito e vinte da manhã, tornei a assinar. “Do vosso secreto informante”. E então, pela porta dos fundos, fui pronta e imediatamente introduzido à presença da ilustre dama.

- E então?

- E então... lá, como já disse, quase me espancou. Sim, quase ou melhor, até se poderia dizer que, praticamente, me espancou.

Arremessou-me à cara a carta! Bem reparei que desejou guardá-la.

Vi isso muitíssimo bem; mas refletiu melhor e a jogou nas minhas fuças. “Já que um indivíduo da sua marca aceita destes encargos... tome!” Estava positivamente ofendida.

Deduzo que estava ofendida porque não se envergonhou. É uma senhora muito esquentada!

- E onde está a carta?

- Tenho-a ainda comigo. Está aqui. - E estendeu a Míchkin o bilhete de Agláia a Gavril Ardaliónovitch, o mesmo que este, duas horas antes, mostrara, com tanto triunfo, à irmã.

- Esta carta não pode ficar com você.

Então é sua. Dou-lha - apressou-se em declarar, calorosamente, Liébediev.

- De agora em diante, sou do senhor, inteiramente do senhor, da cabeça ao coração, servo do senhor, depois da minha passada vilania. “Puna-se o coração, poupe-se a barba”, como disse Thomas Moore, na Inglaterra e na Grã-Bretanha. “Mea culpa, mea culpa”, como diz o Papa romano, isto é, quero dizer o Papa de Roma, embora tenha dito o Papa romano.

- Esta carta tem de ser enviada imediatamente - disse, muito ansioso, o príncipe.

- Vou entregá-la.

- Mas, não seria muito melhor, não seria muito melhor, muitíssimo culto príncipe, fazer isto.., com ela? Isto!... - E fez com as mãos um gesto para os lados e para baixo, um gesto significativo, piscando, dissimuladamente, com uma porção de caretas, remexendo-se no seu lugar, violentamente, como se tivesse sido inesperadamente -picado por uma agulha. O príncipe perguntou-lhe, severamente; - Que é que você quer dizer?

- Não seria melhor abri-la? - ciciou, insinuando-se como que confidencialmente.

O salto que Míchkin deu na direção dele foi de tal ímpeto que Liébediev fugiu, desabaladamente, só parando lá longe, na porta, a ver se conseguia perdão.

- Escute uma coisa, Liébediev! Como lhe é possível chafurdar assim em tão abjeta degradação? - perguntou-lhe o príncipe amargamente.

- Sou abjeto, abjeto!... - logo se aproximou, em lágrimas batendo no peito.

- Você bem sabe que isso é abominável!

- Que é abominável, é! Eis a palavra para isso!

- Que hábito horroroso, proceder de maneira tão falsa! Você não passa de um espião! Para que foi mandar cartas anônimas, afligir uma mulher de coração tão bondoso? Agláia não tem direito de escrever a quem quiser?

Você foi lá para delatar... Esperava receber uma recompensa? Que foi que o induziu a inventar histórias?

- Simplesmente uma agradável curiosidade e o desejo de pôr em útil ação um coração generoso! Mas, agora, sou outra vez só do senhor. Todo! O senhor pode até mandar enforcar-me!

- E você foi lá deste jeito? Será possível? - indagou o príncipe, enojado.

- Não, eu estava direito! Mais decente! Foi só depois da minha humilhação que me reduzi a este estado!

- Bem, basta! Vá embora.

Teve de repetir esta intimação várias vezes antes de conseguir que Liébediev se fosse. Antes de abrir a porta, ainda voltou, nas pontas dos pés; parou no meio da sala e gesticulou, querendo significar que convinha abrir a carta. Não se aventurou a objetivar o conselho com palavras. Posto o quê, saiu, com um sorriso suave e cortês.

Fora-lhe extremamente doloroso ter tido de ouvir tudo aquilo. Agora ficava ainda mais evidente o que o andava impressionando: a grande inquietação de Agláia, o seu ar como que perplexo, a sua angústia causada por qualquer coisa. (Por ciúme, sussurrava o príncipe.) Gente mal-intencionada a andava afligindo; e o que era mais estranho, gente em quem confiava. Sem dúvida aquela inexperiente e febril cabecinha estava chocando alguns planos especiais, decerto ruinosos e totalmente bárbaros. O príncipe ficou muito alarmado e, em sua perturbação, não soube o que fazer. Sentia, porém, que urgia fazer alguma coisa. Olhou mais uma vez para o sobrescrito da carta lacrada. Oh!

Não receou nada; não se perturbou. Quanto a isso, confiava em Agláia. O que, a propósito da carta, o inquietou, foi outra coisa muito diferente: não confiava em Gavríl Ardaliónovitch. Mesmo assim, resolveu ir pessoalmente entregar a carta, tendo até saído de casa com tal desígnio. Mas, na rua, mudou de idéia. Por feliz casualidade encontrou, quase à porta de Ptítsin, Kólia, encarregando-o de entregar a carta ao irmão, como vinda diretamente de Agláia Ivánovna. Sem perguntar nada, Kólia a foi entregar logo, de maneira que Gánia não suspeitou que ela tivesse dado tantas voltas.

Regressando a casa, Míchkin mandou chamar à sua presença vera Liébedieva; contou-lhe o indispensável, sossegando-lhe o espírito, pois a coitada estivera todo o tempo à cata do que julgara ter perdido, e ainda estava em lágrimas. Ficou horrorizada quando soube que fora o pai quem carregara com a carta. (O príncipe veio a saber dela, em seguida, que mais de uma vez tinha ajudado Rogójín e Agláia Ivánovna, em segredo, sem lhe ocorrer que Míchkin, com isso, estava sendo injuriado.) Depois de tudo isso, o príncipe ficou tão zonzO que, duas horas depois, quando uma pessoa, a mando de Kólia, correu a dar-lhe notícias de que o General Ívolguin piorara, não alcançou, nos primeiros minutos, a gravidade do caso.

Depois, porém, este acontecimento lhe acabou distraindo completamente a atenção. Foi à casa de Nina Aleksándrovna (para onde o doente naturalmente tinha sido carregado) e lá ficou até a noite. Nenhum auxílio podia prestar. Mas pessoas há, cuja presença, nas horas de angústia, é consolo. Kólia estava terrivelmente desesperado; chorava desesperadamente, embora a todo instante o mandassem à rua para diversos expedientes: correr à procura de um médico (sendo que veio logo com três), dar uma carreira à farmácia, mandar chamar o barbeiro. Afinal, conseguiram fazer o general voltar a si, mas ficou completamente marasmado, opinando os médicos que, em todo o caso, continuava em perigo. Gánia ficou muito aflito, tentou dominar-se, não subiu, parecia recear o doente. Em dada hora, diante de Míchkin, juntou as mãos e, em uma linguagem desconexa e incoerente, deixou cair esta frase:

- Que calamidade! E justamente em um momento destes!

O príncipe pôs-Se a analisar intimamente o que quereria ele significar por “um momento destes”. Não encontrou Ippolít em casa de Ptítsin. Liébediev que, depois da explicação matinal, tinha dormido de dia um sono só, correu para lá, à noite. Agora já estava “curado”, e derramou lágrimas verdadeiras sobre o doente, como se se tratasse de um irmão. Censurou-se repetidas vezes, em voz alta, sem explicar por que, e não largava Nina Aleksándrovna, assegurando, a todo momento, que “fora a causa disso, ele e mais ninguém, mercê de uma leviana curiosidade” e que o “finado” persistia em chamar assim ao general ainda vivo) fora positivamente um homem de gênio! Insistia, muito sério, nessa coisa de cênio, como se isso pudesse causar, no momento, qualquer vantagem. Reparando que as lágrimas dele eram verdadeiras. Nina Aleksándrovna acabou por lhe dizer com uma nota de reprimenda feita cordialmente:

- Bem, que Deus te abençoe, não chores. Vamos! Que Deus te perdoe!

Liébediev ficou tão impressionado com estas palavras, e com O tom delas, que não houve meio de deixá-la um momento, grudando nela toda a noite (e os dias subseqüentes, desde manhã até a hora da morte do general não largando a casa). Duas vezes, durante o dia, um mensageiro de Lizavéta Prokófievna veio perguntar pelo moribundo.

Quando, às nove horas da noite, o príncipe apareceu na sala de visitas dos Epantchín, que já estava repleta de convidados, Lizavéta Prokófievna logo lhe começou a perguntar pelo general, de modo muito simpático e minucioso, respondendo com dignidade à pergunta da Princesa Bielokónskaia: “Que doente é esse e quem é essa Nina Aleksândrovna?”, o que muito agradou a Míchkin. Em resposta à Sra. Epantchiná, explicou a situação do enfermo, falando esplendidamente (como as irmãs de Agláia disseram depois), modestamente sereno, com dignidade, sem profusão de gestos nem de palavras. Soube entrar admiravelmente; estava vestido com perfeição, e em vez de escorregar no assoalho polido, como temera na véspera, a impressão que causou a todos foi evidentemente favorável.

Sentando-se e olhando em torno, por sua parte ele notou logo que a companhia não era absolutamente constituída pelos fantasmas com que Agláia tinha tentado amedrontá-lo, nem se assemelhava às figuras de pesadelo do seu sonho da última noite. Pela primeira vez na sua vida, estava vendo um corte transverso daquilo a que se dá o nome respeitável de “sociedade”. Em tempos passados certas considerações o tinham inclinado, quase que sequiosamente, ao projeto de penetrar nesse círculo encantado. E era por isso que se sentia tão profundamente interessado na sua primeira impressão. E esta era fascinante. Pareceu-lhe, de certo modo, que essa gente devia ter nascido para estar, por assim dizer, junta. Era como se não houvesse recepção alguma de convivas na casa dos Epantchín, mas de uma gente própria a que ele desde muito tempo estivesse devotado, lhe conhecesse os pensamentos e à qual estivesse voltando agora, depois de uma curta separação. O encanto e a distinção de suas maneiras, sua simplicidade e sinceridade aparente produziam um efeito quase feérico. Nunca lhe entraria pela cabeça que toda aquela singela nobreza de maneiras e aquela dignidade, a que se juntaram talento e espírito fossem mera encenação, ou que a maioria dos convidados, a despeito de seu exterior atraente, fosse de cabeças ocas, inacauteladas, sua superioridade sendo mero verniz, dela nem sendo responsáveis, tendo-a adotado apenas por herança, inconscientemente.

Empolgado pelo encanto de suaprimeira impressão, o príncipe não se inclinou absolutamente a suspeitar disso.

Viu, por exemplo, que esse importante e velho dignitário, que podia ser seu avô, parava de falar para ouvir um jovem inexperiente como ele; não só ouvi-lo, mas até conceituar a sua opinião; e que era cordial, sinceramente bondoso para com ele, muito embora fossem, como eram, estranhos um ao outro, tendo-se encontrado pela primeira vez ali. Decerto o refinamento da cortesia fora o que produzira maior efeito na sequiosa sensibilidade de Míchkín.

Ele estava pois prejudicado por sua predisposição a impressões favoráveis.

E todavia, essa gente - muito embora fosse amiga da família e amiga entre si, na realidade não era tão amiga da família nem tão amiga entre si, como ao príncipe pareceu quando lhe foi ao encontro para lhe ser apresentado. Pessoas havia, na reunião, que jamais reconheceriam os Epantchín como seus iguais. E pessoas havia que mutuamente se detestavam: a velha Princesa Bielokónskaia sempre havia menoscabado a esposa do velho dignitário, ao passo que esta, por sua vez, estava longe de gostar de Lizavéta Prokófievna. Esse dignitário, seu marido, que por qualquer motivo fora o patrono dos Epantchín desde a mocidade deles em diante, e era a pessoa mais influente dali, era um personagem de tão vasta importância aos olhos de Iván Fiódorovitch que este, perante o outro, só conhecia a sensação da reverência e do temor, ao passo que o dignitário sentiria desprezo por si mesmo se algum dia, por um momento só, viesse a se pôr em pé de igualdade com ele, cuidando-se no mínimo como um júpiter olímpico. Havia gente que não se encontrava desde muitos anos e que não sentia senão indiferença, ou melhor, desprazer uma pela outra. Todavia, agora se saudavam como se se tivessem encontrado ontem em agradável companhia. E nem a reunião era assim numerosa. Além da Princesa Bielokónskaia e do velho dignitário que, de fato, era um indivíduo de categoria, e respectiva esposa, havia, em primeiro lugar, um corpulento general, conde, ou barão, com nome alemão - homem de extraordinária taciturnidade com reputação de grande conhecedor dos negócios públicos e até com vocação para sábio - um desses administradores do Olimpo que conhecem tudo, exceto, talvez, a Rússia; homem que uma única vez, em cinco anos, fizera uma observação extraordinariamente profunda, dessas que inevitavelmente se transformam em provérbio, caindo até nos círculos mais avançados; um desses oficiais do governo que, habitualmente, após um extremo período de serviço, morrem de posse de Larga fortuna e com as honras inerentes às posições do mando, muito embora nunca tenham realizado nenhum grande empreendi-mento; pelo contrário, até tendo tido aversão pelos empreendimentos.

Este general era o chefe imediato do General Epantchín que, no zelo de sua gratidão, o que nele era uma forma toda especial de vaidade, o considerava seu protetor. Coisa aliás que o outro absolutamente não considerava como sendo de Iván Fiódorovitch, pois o tratava com absoluta frieza; sabendo embora avaliar os seus préstimos, substituí-lo-ia imediatamente para outro oficial, se, por qualquer consideração, mesmo trivial, achasse conveniente tal troca.

Havia, também, um importante cavalheiro, de meia-idade, suposto parente de Lizavéta Prokófievna (coisa aliás bem inverídica), homem de alta posição por nascimento e fortuna. Ainda era robusto, gozava de excelente saúde, era um grande conversador e tinha reputação de homem insatisfeito no mais legítimo sentido da palavra.

E mesmo atrabiliário (o que também lhe era agradável); copiava os artifícios da aristocracia inglesa e o gosto inglês como rosbife, armaduras, mordomos etc. Era um grande amigo do dignitário e o divertia. Todavia Lizavéta Prokófievna, por qualquer motivo, acariciava a extravagante idéia de que a este provecto cavalheiro (aliás pessoa frívola com inclinação pelo sexo fraco) repentinamente lhe daria na cabeça fazer a felicidade de Aleksándra, pedindo-lhe a mão. Abaixo dessa altíssima e sólida camada da sociedade, vinham os convidados mais novos, também se fazendo notar por suas qualidades extremamente elegantes, e a cujo grupo pertenciam o Príncipe Chtch... e Evguénii Pávlovitch, bem como o afamado e fascinante Príncipe N... que seduzira e transtornara corações pela Europa inteira, homem de uns quarenta e cinco anos, de formosa aparência ainda, e formidável causeur. Tinha dissipado uma grande fortuna e habitualmente vivia no estrangeiro.

Havia também outra gente, que constituía uma terceira camada especial, não pertencendo ao círculo fechado da sociedade, mas que, como os Epantchín, podia ser encontrada nela. Através de um certo senso e de um talento de adaptação que sempre os guiava, os Epantchín gostavam, nas raras ocasiões em que davam recepções de misturar com a alta sociedade pessoas de graduação um pouco menor, representantes seletos da “espécie média”. E não faltava quem elogiasse os Epantchín por fazerem isso, pois davam a entender assim que percebiam com muito tato a sua posição. Um dos representantes da classe média, esta noite;era um coronel de engenharia. Homem sério, amigo íntimo do Príncipe Chtch... por quem fora introduzido e apresentado em casa dos Epantchín. Quase não falava em sociedade, usava um anel desconforme e raro no dedo indicador da mão direita, provavelmente um presente. Havia, também, um poeta de origem alemã, mas poeta em idioma russo, perfeitamente apresentável, podendo, sem dúvida, ser introduzido sempre em boa sociedade, sem que viesse a causar apreensões. Era de aparência bem conformada, embora, por certa razão difícil de dizer à primeira vista qual fosse, repulsiva. Devia ter uns trinta e oito anos e se vestia irrepreensivelmente. Descendia de uma família alemã fundamentalmente burguesa, mas respeitável. Tinha o dom de obter vantagens e escolher oportunidades, sabendo quais as pessoas altamente colocadas cujo patrocínio lhe convinha. Certa vez traduzira versos de uma obra importante de um poeta alemão, fora hábil ao dedicar a sua tradução, e mais hábil ainda em ostentar sua amizade com um célebre poeta russo, já morto (havia uma turma de escritores cuja amizade gostava de recordar pela imprensa; sempre amizades de grandes escritores já mortos).

Fora apresentado recentemente aos Epantchín, pela esposa do velho dignitário. Esta dama era célebre pela proteção que dedicava a literatos e homens cultos; tinha mesmo, com sua influência, arranjado pensão para um ou dois escritores, servindo-se de poderosos personagens. Realmente dispunha de influência. Era mulher de quarenta e cinco anos (e por conseguinte bastante nova ainda para um homem da idade do marido); fora muito bonita e, como certas mulheres quarentonas, tinha ainda a mania de se vestir um pouco espalhafatosamente. Sua inteligência era curta e os seus conhecimentos literários duvidosos. Proteção a literatos era uma mania igual à dos seus atavios estapafúrdios. Muitas obras e traduções lhe haviam sido dedicadas e. com a sua permissão, dois ou três escritores tinham publicado cartas a ela escritas sobre assuntos da maior importância!...

Toda essa sociedade tomou-a Míchkin como moeda de lei, ouro puro, sem liga. Toda essa gente se achava, essa noite, como que por privilégio, no mais feliz estado de espírito e muito contente de si. Todos, sem exceção, sabiam que estavam, com a sua visita, prestando uma grande honra aos Epantchín. Mas pobre dele, Míchkin!

Não suspeitava existirem tais sutilezas. Não suspeitava, por exemplo, que, conquanto os Epantchín estivessem considerando um passo tão importante para decisão do futuro de sua filha, ousariam deixar de exibi-lo, a ele, Príncipe Liév Nikoláíevitch, ao velho dignitário que era reconhecidamente o patrono da família. E embora o velho dignitário, por sua parte, viesse a suportar com perfeita equanimidade as novidades da mais terrível calamidade que caísse sobre os Epantchín, certamente se ofenderia se os Epantchín contratassem o noivado de sua filha sem se aconselharem com ele, ou melhor falando, sem o seu consentimento.

O Príncipe N... estava convencido de que era uma espécie de sol que se tinha levantado esta noite para ofuscar a sala dos Epantchín, sendo, como era, encantador e inquestionavelmente talentoso. Olhava-os a todos como infinitamente abaixo dele, e fora justamente essa franca e generosa noção de si próprio que o insinuara com maravilhosa e encantadora facilidade entre os Epantchín. Sabendo muito bem que tinha de contar uma história qualquer, para deleitar os convivas, para tal se preparara com positiva inspiração.

Quanto ao Príncipe Liév Nikoláievitch, é logico que depois que ouviu a história sentiu que jamais ouvira nada tão brilhante como humor, alegria estonteante e ingenuidade encantadora, dos lábios de um dom-joão como esse Príncipe N... Se, no entanto, tivesse sabido quão velha e repetida essa história era, sabida até de cor, gasta, usada e imprópria para uma sala de visitas, só em casa dos Epantchín podendo passar como novidade ou improviso, como verídica reminiscência de um homem esplêndido e brilhante!... Até mesmo o pequeno poeta alemão, que se estava comportando com grande modéstia e polidez, inclinava-se a acreditar que, com a sua presença, rendia uma homenagem à família. Mas Míchkin não via nada pela outra face, não sabia reconhecer correntes submarinas! Tal calamidade, Agláia não previra.

E, esta noite, ela estava particularmente formosa. Trajavam as três moças vestidos de soirée, mas não demasiado suntuosos, e usavam penteados de estilo sui generis. Agláía estava sentada com Evguénii Pávlovitch; conversava com ele e até brincavam ambos com excepcional amizade. Evguénii Pávlovitch comportava-se com mais tranqüilidade do que de costume, um pouco, talvez, em respeito aos dignitários. Conhecido em sociedade da forma por que o era, estava como em casa, apesar de tão moço. Chegara à casa dos Epantchín, essa noite, com crepe no chapéu, o que não passou despercebido à Princesa Bielokónskaia, que aprovou isso. Qualquer jovem mundano não poria luto, em tais circunstâncias, por tal tio. Lizavéta Prokófievna também apreciou, embora tivesse mais com que se preocupar essa noite.

Notou o príncipe que Agláía o observara com certa atenção uma ou duas vezes e lhe pareceu que ela quis significar com isso que estava contente com ele. Pouco a pouco começou a se sentir muito feliz. Aquelas suas apreensões depois da conversa com Liébediev pareciam-lhe, agora, bem como as suas mais recentes idéias quando de súbito lhe voltavam à memória por entre intervalos, um sonho inconcebível, incrível e ridículo! (Durante todo o dia o seu esforço principal - embora inconsciente - tinha sido rejeitar até à anulação aquele sonho!) Falava pouco, e isso mesmo em resposta a perguntas. Já muito depois, não falou mais. Sentado como estava, ficou quieto, a ouvir, evidentemente feliz e satisfeito consigo. Mas, vagarosamente, dentro dele começou a trabalhar qualquer coisa, assim como que uma inspiração, pronta a romper no primeiro ensejo!... E eis que se pôs a falar, mas, com efeito, só em resposta a perguntas, aparentemente, sem nenhum especial desígnio.

 

Contentava-se o príncipe em prestar atenção na conversa de Agláia com o Príncipe N... e Evguénii Pávlovitch quando, inesperadamente, o velhote anglomaníaco (que entretinha, a um canto, o velho dignitário, contando-lhe com muita animação uma história qualquer), pronunciou o nome de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev. Míchkin virou-se logo na direção dos dois e ficou a escutar.

Discorriam sobre negócios públicos e comentavam certos distúrbios havidos recentemente em propriedades rurais. Devia ser divertido o cunho da narrativa do anglomaníaco pois o velho, ao fim de cada período do locutor, desandava a rir. Aquele, de fato, narrava de modo muito pitoresco, ajudando o efeito com as mãos, pondo uma ênfase muito flexível nos fonemas. E contava como se vira obrigado, como conseqüência direta da recente legislação, a vender um esplêndido domínio na província, nada mais nada menos do que pela metade do valor real, embora não estivesse precisado de dinheiro; e como ao mesmo tempo se vira obrigado a conservar uma outra propriedade que estava arruinada, em litígio e sujeita a embaraços, tendo até gasto dinheiro com isso.

- Para evitar cair na aplicação da lei agrária, tive de protelar o inventário da propriedade antiga de Pavlíchtchev. Mais uma ou duas outras heranças como esta, e eles me arruinam... E deixe que lhe diga que eu deveria entrar na posse de nove mil acres de excelente terra.

Estando por acaso o General Epantchín perto de Míchkin e lhe notando a atenção toda especial pela conversa, lhe disse baixo:

- Nem tenha dúvida. Iván Petróvitch é parente do falecido Níkolái Andréievitch; aproveite o ensejo para travar conhecimento.

O General Epantchín estivera até então a entreter um outro general que era o diretor da sua seção; desde muito percebera a situação deslocada do príncipe, preocupando-se com isso. Desejou trazê-lo com naturalidade para a conversação, e nesse sentido foi desentocá-lo, apresentando-o de novo àqueles grandes personagens.

- Pela morte dos pais, aqui o nosso Liév Nikoláievitch teve Nikolái Andréievitch como tutor! - explicou, indicando Míchkin a Iván Petróvitch.

- Agrada-me sobremodo ouvir isso - disse cortesmente este último. - E, de fato, recordo-me bem disso.

Quando, à entrada, Iván Fiódorovitch nos apresentou, imediatamente reconheci o senhor. E foi pelo rosto; mudou pouco, é verdade. E me lembrei, embora o senhor só tivesse uns dez ou doze anos quando o vi. Aliás os seus traços são fáceis de guardar. Reconhecem-se logo...

- O senhor me viu quando eu era criança?

Iván Petróvitch reparou na surpresa do príncipe, e continuou:

- Sim, e há muito tempo! O senhor costumava viver em casa de meu primo, em Zlatovérkhovo. Não se recorda de mim? É muito provável que não se possa recordar.., O senhor, naqueles tempos, tinha uma espécie de doença: e que até me impressionou muito, naquela ocasião.

- Não me recordo do senhor, em absoluto - asseverou fervorosamente Míchkin.

Seguiram-se mais algumas palavras entre ambos. Da parte de Iván Petróvitch, muito calmas; da parte de Míchkin, muito agitadas. E logo ficou mais ou menos esclarecido que as duas senhoras, solteiras, primas de Pavlíchtchev, que tinham vivido na propriedade dele, em Zlatovérkhovo, e que haviam criado o príncipe, também eram primas de Iván Petróvitch. Este, como aliás qualquer outra pessoa, não saberia explicar o que induzira Pavlíchtchev a tomar tão a peito a proteção do jovem príncipe.

- “Não me ocorreu nenhuma curiosidade a respeito”. Ainda assim, parece que tinha uma excelente memória, pois ainda se lembrava de quanto a suá prima mais velha, Márfa Nikítichna, fora severa para com o seu pequenino pupilo, “tanto que, uma ocasião, me levantei a seu favor e ataquei o sistema de educação dela. Por qualquer coisinha, vara, e outra vez, vara! Convenhamos que para uma criança doente...” E como era mais terna a irmã caçula, Natália Nikítichna, para com a pobre criança... “Estão ambas - prosseguiu ele - na província de X... (embora não esteja certo se estão vivas) onde Pavlíchtchev lhes deixou pequenina propriedade extremamente bela. Parece-me que Márfa Nikítichna quis entrar para um convento, mas não tenho certeza, não. Acho que estou confundindo com outra pessoa... Foi ela, sim; contou-me no outro dia a senhora do médico.”

O príncipe ouvia com olhos radiantes de prazer e emoção. Calorosamente declarou que nunca se perdoaria de não ter ainda arranjado uma oportunidade para empreender uma visita às senhoras que o tinham educado, não obstante ainda poucos meses antes ter estado nas províncias do centro. Adiava sempre, tolhido por outros negócios. Mas que, desta vez.., estava decidido. Iria procurá-las nem que tivesse de se perder na província de X...

- Com que então o senhor conhece Natália Nikítichna!? Que delicada e santa natureza! E Márfa Nikítichna

também!... Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de Márfa Nikítichna. Era severa, mas... como não haveria de perder a paciência com um idiota da marca que eu era naquele tempo? Hã! Hã. O senhor mesmo sabe muito bem que eu era um completo idiota. Ah! Ah! Ora, o senhor me viu, como é que não se

lembraria disso? Diga-me, faça o favor, então... Meu Deus!... Então o senhor é parente de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev?!

- Dou-lhe a minha palavra que sou - disse Iván Petróvitch com um sorriso, examinando o príncipe.

- Oh! Eu não disse isso porque estivesse duvidando... E, na verdade, como haveria eu de duvidar afinal, ah, ah! Mas que homem que foi Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev! Que coração boníssimo!

Míchkin não estava propriamente sem fôlego e sim “sufocado pela gratidão”, como disse no dia seguinte Adelaída a seu noivo, Príncipe Chtch ...

- Misericórdia e clemência! - exclamou rindo Iván Petróvitch. - Por que não poderei eu também ser parente de um homem de coração boníssimo?

- Oh! Meu Deus! - disse logo Míchkin dominado pela confusão e cada vez mais afoito.

- Tornei a dizer uma estupidez.

Mas isso tinha de acontecer porque eu... eu... eu... Mas eis outro despropósito que me ia saindo! Mas, quem sou afinal, digam, diante de tantos interesses, tão vastos interesses, comparado com um tão nobre coração? Pois o senhor bem sabe: ele foi realmente um coração nobilíssimo, não foi? Não foi?

O príncipe positivamente tremia todo. É difícil dizer por que motivo estaria tão agitado, em tal paroxismo de emoção, assim quase inconveniente, toda a sua maneira tão desproporcionada com o assunto geral e a conversa do seu grupo. Seu estado de espírito era conseqüência da mais viva e ardorosa gratidão que se estendia a Iván Petróvitch, senão a todos. “Espumava de felicidade”. Iván Petróvitch começou a fitá-lo mais detidamente, e o próprio dignitário passou a prestar-lhe uma atenção mais especial. A Princesa Bielokónskaia, contraindo os lábios, olhava para Míchkin com raiva. O Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch, o Príncipe Chtch... e as moças interromperam a conversa e se puseram a escutar. Agláia apenas parecia assustada, mas Lizavéta Prokófievna tinha o coração em sobressalto. E a culpa era delas, mãe e filhas, que se tinham comportado de modo tão estranho, na antevisão de tudo, havendo decidido que seria melhor para o príncipe ficar toda a noite sentado e quieto. Mas a verdade é que quando o viram sentado, em completa solidão, perfeitamente satisfeito em seu canto, se sentiram mortalmente penalizadas. Aleksándra estivera a ponto de ir ter com ele, atravessando o salão e, para ficar mais próxima, se ajuntara ao grupo do Príncipe N..., perto da velha Bielokónskaia. Quando porém, agora, Míchkin resolvera falar, ficaram por demais preocupadas.

- Bem razão tem o senhor de dizer que ele foi o mais excelente dos homens.

- pronunciou Iván Petróvitch com uma expressão onde já não havia traço de sorriso. - Sim, sim, era um excelente homem! Excelente e valioso. - acrescentou depois de uma pausa.

- De valor sob qualquer aspecto, pode-se dizer - insistiu mais expressivamente ainda, depois de um outro intervalo. - E é muito agradável ouvir isso da sua parte!...

- Não foi com esse Pavlíchtchev que houve uma história extravagante com.., com o abade?.., o abade?... Esqueci o abade qual foi... mas todo o mundo andou falando disso em certa ocasião! sobreveio o dignitário, tentando lembrar-se.

- Com o Abade Goureau, um jesuíta - lembrou-lhe Iván Petróvitch. - E aí tem o senhor a que se expõe a nossa mais excelente e preciosa gente! Pois ele era, além de tudo, um homem de boa estirpe e de fortuna, viria a ser um gentil-homem da câmara se tivesse preferido continuar nas funções... E não é que repentinamente abandonou a carreira para ingressar na Igreja Romana e se tornar um jesuíta, com a maior decisão, com uma espécie mesmo de entusiasmo? Mas morreu na hora certa... conforme todo o mundo disse.

Míchkin ficou inteiramente pasmado.

- Pavlíchtchev converteu-se à Igreja Romana? Impossível! -exclamou horrorizado.

- “Impossível”? Com efeito! - E Iván pronunciou isto com, firmeza.

- Exagera muito, o senhor, não lhe parece, caro príncipe?... Principalmente tendo, como tem, tão alto conceito do falecido... Certamente que ele foi um homem de grande coração e isso, principalmente, atribuo eu o sucesso desse velhaco Goureau. Mas nem me pergunte que amolações e trapalhadas não tive eu depois com esse caso e com esse Goureau. Imagine o senhor disse voltando-se para o dignitário -, tentaram demandar contra testamento e me vi obrigado a recorrer às mais vigorosas medidas para os repor no uso da razão, pois eles eram de primeira ordem neste gênero de especialidade. Formidável gente! Mas, louvacdo seja Deus! Tudo isso aconteceu em Moscou. Dirigi-me diretamente à Corte e logo os reconduzimos a um raciocínio mais lúcido.

- O senhor nem imagina quanto me aflige e me faz pasmar asseverou o príncipe.

- Sinto muito. Mas como fato em si, tudo isso não passou de insignificante negócio e acabou em fumaça, como tais coisas sempre acabam. Nem penso mais nisso. No verão passado - virou-se para o velho - contaram-me que a Condessa K... entrou para um convento católico, no estrangeiro. Os russos, uma vez na mão desses velhacos, não se livram mais... especialmente estrangeiro.

- Isso tudo provém do nosso tédio - murmurou, com autori dade, o velho dignitário.

- As maneiras que eles empregam para conquistar prosélitos é repugnante e só própria deles. Sabem como intimidar o povo. Também a mim me pregaram um bom susto, em Viena, em 1832. É o que lhe digo! Mas não me apanharam. Fugi-lhes das malhas, ah, ah! Consegui escapulir...

- A mim, o que me contaram, meu caro senhor, foi que o senhor fugiu de Viena para Paris com a Condessa Levítzkaia, abandonando o seu posto, e não por causa dos jesuítas - intrometeu-se inesperadamente a Princesa Bielokónskaia.

- Procurando bem, deve haver nisso um jesuíta - retorquiu o velho dignitário, rindo ante a agradável recordação. Mas genialmente acrescentou, refugiando-se no pasmo do Príncipe Liév Nikoláievitch que o estava ouvindo de boca aberta e que ainda mais espantado ficou: - O senhor parece-me muito religioso, coisa que hoje em dia não se encontra com freqüência entre gente nova.

Por qualquer motivo o príncipe se tornou objeto de atenção para ele que evidentemente quis estudá-lo mais intimamente.

- Pavlíchtchev, que era um homem iluminado e um cristão, um verdadeiro cristão - declarou Míchkin sem que isso fosse esperado -, como pôde aceitar uma fé que não é cristã? O catolicismo vale tanto como qualquer religião não cristã - ajuntou, de repente, olhando em volta, como a querer, com os olhos cintilantes, esquadrinhar todo o grupo.

- Ora, vamos, isso é exagerado - balbuciou o velho que olhou, surpreendido, para o General Epantchín.

- Por que diz o senhor que o catolicismo é uma religião anticristã? - interrogou Iván Petróvitch virando-se lá da sua cadeira.

- Que é então?

- Primeiramente é uma religião anticristã - começou o príncipe com excesso de animação, respondendo com uma presteza mais que afoita. - Em segundo lugar, o catolicismo é até pior do que o ateísmo, na minha opinião. Sim, esta é a minha opinião. O ateísmo apenas nega, ao passo que o catolicismo falscia o Cristo, calunia, difama e se opõe ao Cristo. Prega o anticristo! Declaro e assevero que prega o anticristo. Esta é a convicção a que cheguei e que me atribulou. O catolicismo romano não consegue sustentar a sua posição sem uma política universal de supremacia e exclama: “Non possumus!” Assim, a meu ver, nem religião é, mas tão somente uma espécie de tentativa de continuação do Império Romano Ocidental, tudo nela está subordinado a esta idéia, começando mesmo pela fé. O Papa se apoderou da terra, seu trono terrestre, e empunhou o gládio. Desde então tudo continuou da forma antiga, sendo que àespada, ao gládio, eles juntaram a mentira, a fraude, o embuste, o fanatismo, a superstição e a vilania. Divertiram-se com os mais santos. mais sinceros e mais ferventes sentimentos do povo. Trocaram tudo, tudo, pelo dinheiro, pela vil força terrena. E não é justamente isso que ensina o Anticristo? Como poderia o ateísmo deixar de provir dele? O ateísmo emergiu do próprio catolicismo romano! Este gerou aquele. Começou pelos seus adeptos: poderiam eles crer em si próprios? Um se fortaleceu com a reação contra o outro. Um foi procriado pela mentira e pela incapacidade espiritual do outro. Ateísmo! Entre nós são só as chamadas classes excepcionais que não crêem, aquela camada que conforme tão bem se expressou Evguénii Pávlovitch, perdeu as suas raízes. Mas aí pela Europa uma formidável massa de gente está começando a perder a fé, um pouco por causa da treva e da mentira e muito, principalmente agora, por causa do fanatismo e do ódio da igreja e da cristandade.

O príncipe parou para tomar fôlego pois argumentara com incrível precipitação. Estava pálido e sem ar. O velho dignitário, depois que todos se entreolharam, deu um largo sorriso. O Príncipe N... tirou os óculos, pondo-se sem eles a observar Míchkin por algum tempo. Por sua vez o poeta alemão, saindo do seu canto, se aproximou da mesa, um sorriso hostil nos lábios, com ar de querer prolongar assunto tão inédito.

Nisto, com afetação de quem se sente desconsiderado diante de tamanha desenvoltura, Iván Petróvitch disse vagarosamente:

- Mas como o senhor está exagerando! Existem representantes dessa igreja que não somente são virtuosos como até mesmo merecedores de todo o nosso respeito!

- Não estou falando contra os representantes individuais da igreja. Estou falando da essência do catolicismo romano. Estou falando de Roma. Como haveria uma igreja toda de desaparecer? Nunca disse isso!

- Estou de acordo. Trata-se de fato bem conhecido. De assunto, com efeito, aqui, inadequado e inconveniente, agora. De mais A mais, é uma questão puramente teológica...

- Oh! Não, não! Não é uma questão apenas teológica, posso afiançar-lhe. Interessa-nos muito mais intimamente do que o que o senhor julga. O erro está justamente em não sabermos ver que não se trata de uma questão teológica, exclusivamente! Foi precisamente como desespero, como oposição ao catolicismo que o ateísmo nasceu, com uma função ética para substituir a força moral perdida da religião. Para extinguir a sede espiritual da humanidade abrasada e então salvá-la a seu modo, não através de Cristo, mas pela violência. Ora, também isso não passa de tentativa de liberdade por intermédio da violência! Também isto outra coisa não é senão a união feita com a espada e o sangue. “Não ouseis ter crença em Deus! De que adianta ter propriedades e individualidade! Fratermité ou la mort! Dois milhões de cabeças!”

Pelas suas obras os convenceremos, já foi dito. E não acredite o senhor que tudo isso não tenha um alvo, que tudo isso não constitua um perigo. Oh! É preciso resistirmos, imediatamente, já! Aquele Cristo que conservamos intato, o nosso Cristo, e que eles não conheceram nunca, deve brilhar diante de todos e vencer o Ocidente! Não deixemos que as forças dos jesuítas nos escravizem! Levemos a nossa civilização russa até eles, enfrentemo-los, e não consintamos que seja dito diante de nós, como ainda agora foi, que a sua pregação é mais sagaz e mais proficiente.

- Mas me permita um instante.., um instante! - retrucou Iván Petróvitch, cujo espanto crescia à medida que olhava para o príncipe positivamente com receio. - Todas essas suas idéias são muito valiosas e demonstram patriotismo, mas tudo isso está exagerado ao extremo e... com efeito, seria melhor desistirmos de...

- Exagerado em quê? Eu não disse tudo, absolutamente; não disse tudo pois me faltam os termos mediante os quais possa...

- Per-mi-ta-me...

Sentando-se de chofre na cadeira, o príncipe parou de falar, encarando com olhar fixo e fervente Iván Petróvitch.

- A minha impressão é que o amigo se deixou afetar pelo que aconteceu ao seu benfeitor – observou indulgentemente o velho dignitário em tom calmo e inalterável. - Esse seu temperamento ardoroso deve provir da sua solidão. Se vivesse mais entre as pessoas, e visse um pouco mais o mundo, espero que chegaria a ser um notável moço. Se não tivesse crescido assim tão irritável, veria como tudo isso é muito mais simples. E acabaria reconhecendo, ainda por cima, como eu reconheci, que esses casos excepcionais são devidos, por uma parte, por estarmos blasés, por outra parte por estarmos aflitos...

- Justamente, justamente! - aplaudiu Míchkin. - Esplêndida idéia! Tudo isso advém da nossa estupidez, de uma grande estupidez nossa. Não por sermos blasés. Muito ao contrário. Pela nossa insatisfeita sofreguidão, e não por sermos hlasés. Nisso o senhor está errado. Não só, simplesmente, pela nossa sofreguidão insatisfeita, mas por esta abrasadora, sufocante sede. E não se diga que a diferença é assim tão diminuta que dela nos possamos rir. Desculpe-me, mas essas coisas devem ser olhadas de frente. Logo que os russos sentem o chão sob os pés e se convencem que é chão, ficam tão contentes de o terem atingido que não param mais, vão aos limites mais avançados. Por que será? O senhor se surpreendeu com Pavlíchtchev e deu como causa, da parte dele, loucura ou simplicidade. Mas não foi uma coisa nem outra. A intensidade russa é uma surpresa não só para nós, como para a Europa inteira. Se um de nós se torna católico, automaticamente vira jesuíta e dos mais inabaláveis. Se se torna ateu, não cessará nunca de clamar pela extirpação da crença em Deus, através da força, isto é, pela -espada. Por que é isto? Por que este frenesi? Precisamos descobrir: o motivo. Seria porque encontrou a pátria que tinha perdido aqui?:

Ele atingiu o litoral, descobriu a terra e investe para beijá-la. Os. ateus russos, da mesma maneira que os jesuítas russos, são os exilados não só da vaidade, não só de um mau e vão sentimento, mas também de uma agonia espiritual, de uma sede interior, a fome por uma coisa mais alta, a rota firme rumo a uma outra pátria já que deixaram de crer nesta porque nunca chegaram a conhecê-la. É mais fácil um russo se tornar ateu, do que qualquer outra pessoa no mundo. E os russos não só se tornam ateus, como acreditam invariavelmente no ateísmo, como em uma nova religião, sem reparar que estão pondo a sua fé a serviço de uma negação. Tão grande é a nossa fome! “Quem não tem raízes debaixo de si, não tem Deus!” Não sou eu que o estou dizendo! Foi dito por um mercador e Velho Crente que encontrei certa vez em viagem. Na verdade, as suas palavras não foram estas. O que ele disse, foi: “O homem que renunciou à sua pátria, renunciou ao seu Deus!”

Corre entre nós que muita gente altamente educada se filia à seita dos Flageladores. Ora, pergunto, será isso pior do que o ateísmo, o jesuitismo ou niilismo? Não será, antes, um pouco mais profundo? Pois foi ao que os levou a sua agonia. Revelado aos sôfregos e febris companheiros de Colombo o “Novo Mundo”, revelemos ao russo o “mundo” da Rússia, deixemo-lo descobrir o ouro, o tesouro. escondido dentro da terra! Mostremo-lhe a humanidade inteira levantando-se outra vez renovada pelo pensamento russo tão somente, talvez pelo Deus e pelo Cristo russo, e veremos em que poderoso e verdadeiro gigante, belo e sábio, ele se desenvolvera diante dos olhos do mundo atônito! Atônito e pasmado, porque não esperava de nós senão a espada! Senão a espada e a violência, porque, julgando-nos por eles próprios, não nos podiam conceber livres da barbárie. Sempre foi assim até aqui e continuará sendo, cada vez mais! E...

Mas, a esta altura, aconteceu um incidente que cortou de pronto a eloqüência do locutor, da maneira mais inesperada.

Este período desordenado, este rasgo de estranhas e agitadas palavras e de entusiásticas idéias confusas que pareciam tropeçar umas nas outras, pareciam indicar, todas elas, algo da ominosa condição mental desse jovem que, a propósito de uma nonada, se pusera nesse estado assim tão inesperadamente. Dentre os presentes, aqueles que conheciam o príncipe, se encheram de apreensões (e alguns até ficaram contrafeitos) ante essa explosão que não era de esperar, dada a sua habitual timidez e notório acanhamento, ou melhor, dado o seu raro e especial tato diante de certos casos, pois tinha um sentimento instintivo das conveniências reais. Não puderam entender o motivo a que era devido isso. O que lhe tinham contado a respeito de Pavlíchtchev não podia ter sido a causa. Lá dos seus lugares as damas o contemplavam crentes de que estava fora do seu juízo. E a Princesa Bielokónskaia confessou depois que estivera até para se retirar. Os senhores de idade ficaram desconcertados, em seu primeiro espanto. O diretor de seção olhou-o, lá do seu canto, de um modo carrancudo e antipático. O coronel de engenharia permaneceu em absoluta imobilidade. O alemão empalideceu, mas, sorrindo um sorriso artificial, observou toda aquela gente a ver que efeito estava sentindo. Mas tudo isso, se escândalo houve, em outra circunstância teria terminado de maneira comum. O General Epantchín, que estava extremamente estupefato, compreendera a situação muito antes dos demais e fizera diversas tentativas para que o príncipe parasse. Os seus esforços tendo falhado, dirigiu-se em pessoa, para o príncipe, com firme e resoluto desígnio e, se houvesse tido tempo, um minuto só que fosse, teria tomado a extrema solução de levar Míchkin para fora do salão, de maneira amistosa, pretextando achar-se ele doente, o que bem poderia talvez ser verdadeiro, estando o general, no íntimo, convencido disso... Mas a cena acabou de um modo muito outro.

No começo, quando de sua entrada na sala, lembrando-se de que Agláia o amedrontara a respeito do vaso da China, sentou o mais distante possível dele. Pareça, ou não, verdade, depois das palavras de Agláia, na véspera, o obsedou como convicção prodigiosa o pressentimento incrível de que, pela certa, quebraria o vaso no dia seguinte. Para evitar o desastre, cuidadosamente se afastara do vaso. Mas tinha de ser. No decorrer do serão outras e mais ardentes impressões se foram apoderando da sua alma, conforme ainda agora mesmo estivemos descrevendo. E ele esqueceu o seu pressentimento. Quando ouviu falar o nome de Pavlíchtchev e, depois, quando o General Epantchín o conduziu até Iván Petróvitch, para o apresentar, Míchkin se mudara para mais perto da mesa, acabando por se sentar justamente na poltrona mais próxima do enorme e lindo vaso da China que estava sobre um pedestal quase rente do seu cotovelo e um pouco atras.

Ao proferir as últimas palavras, inadvertidamente escancarara os braços e dera um repelão com o ombro...

Houve um grito geral de espanto. O vaso balançou primeiro, como a hesitar se deveria cair sobre uma das cabeças dos senhores idosos; mas subitamente se inclinou para o lado oposto, na direção do poeta alemão, que se desviou para um lado; e então se foi espatifar no assoalho. Um barulho, um só grito, e os preciosos cacos se espalharam pelo tapete. A perplexidade e o susto decorrentes e como a situação de Míchkin se tornou crítica, tudo isso é desnecessário descrever áqui. Mas não podemos omitir uma impressão exótica que logo o crispou e que não se desvaneceu nem mesmo durante o tempo em que toda aquela massa de sensações o confundiu. O que o impressionou não foi a vergonha nem o escândalo concomitante com o susto. Nem foi mesmo o inesperado do fato. Foi essa presciência de que isso se daria ao tomar de súbito uma conformação objetiva. Não saberia julgar porque o subjugara antes essa certeza agora confirmada. Ficou parado, sentindo um aperto no coração, invadido por um terror quase supersticioso.

Bastou porém um minuto para sentir um desafogo quando tal terror foi substituído por uma espécie de luz, de alegria radiosa. Antes que o ar lhe faltasse, já o momento crítico tinha passado. Respirou fundo e olhou em volta.

De início ficou impossibilitado de compreender o tumulto que o cercava; imediatamente depois lhe pareceu não ser causa nem motivo daquilo tudo e sim estar também ele presenciando. como se, em um conto de fadas, tivesse entrado pulando invisível lá para dentro, atraído pelo fato com o qual nada tinha de ver mas que o interessava. Via gente curvada, pegando aqui e acolá os cacos maiores; ouvia o vozerio; via Agláia, pálida, sem traço de ódio ou de aborrecimento, olhá-lo de modo muito estranho. Aqueles olhos o miravam com afeição, depois olhavam para as outras pessoas também com afeição, e isso deu ao coração de Míchkin uma doce pena.

Para maior espanto seu, viu todos de repente se sentarem outra vez. E rindo, sim, todos estavam rindo, como se nada houvesse acontecido. No momento seguinte, olhando-lhe a estupefação muda, tornaram a rir. Era uma risada amável, alegre, bondosa. Muitos se dirigiam a ele, cordialmente. Lizavéta Prokófievna, mais do que todos risonha, lhe dizia qualquer coisa muito, muitíssimo inefável. Quando o príncipe reparou, o general estava a dar-lhe pancadinhas amistosas no ombro, Iván Petróvitch também se ria; mas o velho dignitário foi de todos o mais encantador. Tomou a mão do príncipe, apertou-a de modo jocoso e ao mesmo tempo íntimo, bateu-lhe com a outra mão livre umas pancadinhas nas costas, animou-o, deram alguns passos juntos. Falava-lhe como a um garoto que tivesse levado um susto. (O príncipe ficou radiante com isso.) E acabou por fazê-lo sentar ao seu lado. Agora Míchkin olhava, contentíssimo, para aquele semblante venerável, e não podia falar, com a respiração suspensa. Como gostou da fisionomia daquele velho!

- Com que então - murmurou afinal - realmente todos me perdoam? A senhora também, Lizavéta Prokófievna?

A risada foi maior do que antes. Lágrimas vieram aos olhos de Míchkin. Nem podia acreditar: estava encantado.

Iván Petróvitch disse então:

- Não há dúvida de que era um vaso preciosÍssimo. Lembro-me dele ali no mesmo lugar, deve haver uns quinze anos. Quinze, no mínimo!

- Não foi nenhum desastre terrível. Se até a gente acaba um dia, quanto mais um objeto? Por que todo esse espanto, Liév Nikoláievitch, por causa de um vaso de cerâmica? - exclamou Lizavéta Prokófievna, com vivacidade redundante. - Veja Lá se vai agora ficar desapontado por causa disso! - acrescentou com ar de já estar apreensiva. - Não se incomode, meu rapaz. não se incomode. Veja que eu estou à vontade! Não estou?

- E perdoa-me por tudo? Por tudo, além do vaso?

E ia levantar-se, mas o velho lhe puxou o braço, como para não o deixar prosseguir, murmurando por cima da mesa para Iván Petróvitch:

- C’est três curieux ei c’est três sérieux!

Mas o fez alto e instintivamente a ponto de o príncipe dar a entender que ouvira.

- Assim, pois, não ofendi a ninguém? Nem podem imaginar como esta verificação me põe feliz. Mas tinha de ser assim. Poderia eu ofender a alguém aqui? Persistindo em perguntar é que ofendo, não é mesmo?

- Acalme-se, meu querido rapaz. Isso tudo é exagerado. Não há motivo para se mostrar tão grato assim! Trata-se de um sentimento excelente mas exagerado.

- Não estou agradecendo e sim apenas eu... eu... os estou admirando! Palavra de honra que olhá-los dá felicidade... Decerto estou proferindo bobagens, mas devo falar, devo explicar, quando mais não seja por consideração a mim próprio...

O que dizia, o que fazia era já sob espasmo, febricitação e névoa. Provavelmente as palavras que proferia não eram as que pretendera proferir. Mas os seus olhos perguntavam se ainda podia continuar a falar mais e mais. E nisto deram com os da Princesa Bielokónskaia.

- Está muito bem, bátiuchka, prossiga, prossiga, mas não se precipite dessa forma. Já não viu o resultado da sua pressa no que deu ainda agora? Estas damas e estes cavalheiros já foram mais extravagantes do que o senhor, e portanto não se podem surpreender. E nem o senhor fez nada de extraordinário! Que fez o senhor?

Quebrou um vaso e nos pregou um susto.

Míchkin ouvia, sorrindo.

Pouco depois teve o velho dignitário que ficar todo vermelho, pedindo ao príncipe “calma, calma!” pois este se voltando para ele lhe perguntara de chofre:

- Com que então foi o senhor quem, há três meses, salvou do degredo um estudante chamado Podkúmov e um tabelião chamado Chvábrin?

Virou-se a seguir para Iván Petróvitch:

- E penso que foi o senhor, se ouvi direito, que presenteou madeira suficiente para os seus mujiques reconstruírem suas isbás que um incêndio destruíra? E isso depois de lhes haver abolido a servidão e nem assim lhe terem dado provas sequer de agradecimento?

- Oh! Exageraram-lhe! - Mas Iván Petróvitch sentiu um prazer dignificado. Nesse caso, Iván Petróvitch tinha toda a razão, pois era apenas um boato absolutamente falso, que tinha chegado aos ouvidos do príncipe.

Agora era com a Princesa Bielokónskaia:

- E não me recebeu a senhora há seis meses, em Moscou. como a um filho, quando Lizavéta Prokófievna lhe escreveu me recomendando? E que mãe daria aos próprios filhos os conselhos que a senhora me deu?!

Nunca me esquecerei. Lembra-se, Alteza?

- Por que está o senhor nesse estado?

- A Princesa Bielokónskaia vexada - É uma Pessoa de CoraÇão esplêndido, mas.., absurda Se alguém lhe dá uma pequena moeda se põe a agradecer como se esse alguém lhe tivesse Salvo a vida. Sua gratidão é valiosa mas vexa... - Esteve a ponto de se zangar, mas acabou também ela rindo, e dessa vez a risada era de desvanecido contentamento.

O rosto de Lizavéta Prokófievna estava radiante, o do General Epantchín até refulgia, sendo que ele, repetindo as palavras da princesa que tanto o haviam tocado, disse ainda em êxtase:

- Também acho que se Liév Nikoláievitch não fosse tão precipitado seria... como direi?... seria...

Somente Agláia demonstrava mortificação. Havia um rubor talvez de ressentimento difuso em suas faces.

E o velho dignitário exclamou outra vez para Iván Petróvítch.

- Ele é deveras muito encantador!

E eis que com emoção crescente, recomeçando a falar de modo cada vez mais extravagante e impetuoso sempre com uma estranha pressa, Míchkin declarou:

- Dizer-se que entrei neste salão, hoje, com uma tremenda angústia interior! Temia-os a todos e temia a mim mesmo. A mim mais do que a todos. Quando cheguei do estrangeiro vim com o intento de procurar a melhor gente. Gente de antigas famílias de antigas linhagens, como é o meu caso entre as quais me encontro na primeira fila por direito de nascimento Agora, por exemplo, me vejo sentado perto de uma princesa como príncipe que sou, não éverdade? Ainda quero conhecêlos mais, e sei que é necessário, muito necessário! A mim me diziam que, em gente como as pessoas com quem aqui tenho a honra de estar, havia mais defeitos do que qualidades. Que era gente rabugenta, exclusivista voltada só para os seus interesses, estagnada de educação superficial e de hábitos ridículos! O que se falou e o que por aí há escrito a tal respeito! Entro aqui com a maior curiosidade. E com inquietação, dado esse conceito crítico. Vim Com o intento de formar pessoalmente uma opinião exata, ver se de fato a Camada superior do povo russo não Prestava para nada, se vivia fora do seu tempo, aderida à sua vida retrógrada! Vim para verificar se, assim sendo, não lhe valeria mais morrer de vez em lugar de se estiolar aos poucos, persistindo em intermináveis e inúteis rixas com os homens do futuro, em lugar de lhes entravar o caminho com seus corpos já quase cadáveres. Já anteriormente não cheguei nunca a acreditar nessa asserção, tanto mais que entre nós aqui na Rússia nunca houvera uma casta superior propriamente, salvo os cortesãos, por uniforme ou por acidente, e que desapareceram de todo, agora. Estou falando direito, ou não?

- Não, não está certo - disse Iván Petróvitch sorrindo com ironia.

- Pronto! Lá vem ele outra vez! - comentou a Princesa Bielokónskaia, perdendo a paciência.

- Laissez-le dire!... Está morto por isso! - garantiu-lhe o velho dignitário, em voz baixa.

O príncipe perdera completamente o autodomínio:

- E que encontro eu? Sim, aqui neste salão, nesta sociedade? Gente elegante, de bom coração, inteligente! Deparo com um respeitável ancião que se prontifica a ouvir um rapaz como eu, que se torna afável comigo! Encontro gente apta a compreender e a perdoar! Eis a bondosa gente russa! Tão bondosa e caritativa como a que encontrei por lá. Talvez até melhor! Fácil é julgar que deliciosa surpresa não é a minha! Oh! Permitam-me que eu traslade isso para palavras! Tanto se ouve dizer e tanto se acredita que a alta sociedade não passa de maneirismos, de etiquetas antiquadas, na qual toda a realidade da vida está extinta! E agora, aqui estou e verifico por mim próprio que entre nós na Rússia não se dá isso. Lá fora talvez possa ser, mas aqui na Rússia, não! Pode gente assim ser contrafação? Pode disto nascer vocação para jesuítas? Ouvi o Príncipe N... contar agora há pouco uma história. Que espontaneidade, que singeleza de humor, que franqueza genuína. Poderiam tais palavras sair de um homem que estivesse morto já? Cujo talento e cujo coração houvessem secado já? Tratar-me-iam os mortos como aqui me trataram? Não é isto material e substância para o futuro? Para uma crença esperançosa? Pode gente assim ficar para trás, deixar de ter sensibilidade?

- Peço-lhe de novo, meu rapaz, que se acalme. Vamos deixar esse assunto para uma outra vez. Terei muito prazer - sorriu o velho dignitário.

Iván Petróvitch resolveu limpar a garganta. E mexendo-se na sua poltrona. O General Epantchín fez um movimento qualquer. O chefe de seção resolveu conversar com a esposa do alto dignitário, deixando de prestar atenção em Míchkin. Mas a mulher do dignitário ainda assim o escutava e olhava de soslaio.

- Não, o melhor para mim é falar - tornou a investir o príncipe, febrilmente, dirigindo-se para o ancião com particular confiança, como se estivesse fazendo uma confidência. - Ontem Agláia Ivánovna me pediu que permanecesse aqui hoje muito calado. Ou melhor, chegou a me dizer quais os assuntos que eu não deveria falar em hipótese alguma. (Ela sabe em que espécie de assuntos digo incoerências.) Tenho vinte e seis anos, mas não ignoro que sou uma criança. Já muitas vezes me admoestei a mim próprio pois acho que não tenho o direito de exprimir uma opinião já que o faço sempre errado. Foi somente com um tal Rogójin que uma vez me abri francamente. Líamos Ptíchkin inteiro, juntos, do qual ele ignorava até o nome. Sempre temi que este meu modo absurdo pudesse desacreditar o pensamento, a idéia dominante. Não tenho elocução. Não tenho gesticulação adequada, causo risos nos outros, enfim... degrado as minhas idéias. Não tenho o senso de proporção, muito menos! E isso é que é pior. Sei que me é muito mais vantajoso ficar sentado, quieto. Mas quando persisto em ficar quieto me torno muito sensível e, o que é mais, me ponho a pensar em uma porção de coisas. E então Sinto que o melhor é falar. Falando me sinto logo magnificamente. Todos estão com expressão tão inefável! Prometi ontem a Agláia Ivánovna que ficaria calado hoje toda a noite!

- Vraiment? - sorriu o velho dignitário.

- Mas pensando bem vi que não tenho razão em pensar assim. A sinceridade não é declamação, mesmo que pareça ser só isso e nada mais. Não é verdade mesmo?

- As vezes.

- Quero explicar tudo, tudo, tudo! Sim, cuidam que sou utópico? Teórico? Pelo amor de Deus! Mas as minhas idéias são o que há de mais simples! Não acreditam? Riem? Digo-lhes, sou às vezes desprezível exatamente por não manter sempre acesa essa minha fé, por vacilar às vezes. Quando entrei aqui neste salão, ainda há pouco, perguntava a mim mesmo: Como me devo dirigir a eles? Com quais palavras devo começar a fim de que me compreendam ao menos um pouco?” Como entrei amedrontado! E mais amedrontado estava por todos aqui. Foi terrível, terrível! E, afinal, por que esse medo? Não é vergonhoso ter medo? Por que há de um espírito avançado recear diante de uma tal ou qual massa de retrógrados e maus? Devia entrar de fronte erguida! E eis o que me tornou assim tão feliz! É que minutos depois já eu me havia Convencido que não existe absolutamente essa tal ou qual massa retrógrada e má, mas que todos são, todos somos substância viva! Assim, por que continuar eu preocupado, arredio, temendo já agora apenas o meu feitio absurdo? Meu? Só meu? Estamos todos fartos de saber que somos absurdos, superficiais, que temos maus hábitos, que somos maçantes, que não sabemos encarar as coisas, que não compreendemos coisíssima nenhuma! Somos todos assim, nós, eu, eles, aqueles, estes, todos! E não ficam ofendidos por lhes estar eu dizendo no rosto, que são, que somos absurdos? Estão? Mas é que. também assevero que somos substância esplêndida! Querem que lhes diga uma coisa? A meu ver às vezes ser absurdo não deixa ser bom. Com efeito, é melhor até. Toma mais fácil nos perdoarmoss uns aos outros, é mais fácil do que ser humilde. Não é possível a humanidade compreender tudo, imediatamente, não é possível começar logo com a perfeição! Para atingirmos a perfeição, devem começar por uma grande ignorância bem difusa! Tudo que é compreendido depressa carece de compreensão eficiente. Digo-lhes isto porque por mais que se haja entendido e compreendido muita coisa, muitíssima mais ainda há a ser compreendida com eficiência essencial! Mas agora caio em mim: não se teriam molestado por um criançola como eu lhes dizer tais coisas? Claro que não! Bem, sabem todos aqui de que forma relevar e perdoar os que os ofendem: e os que não os ofendem. Sim, sempre é muito mais difícil perdoar quem não nos ofende, pois tal perdão tem de ser duplo, para a inocência alheia e para a injustiça de nosso equívoco, já que errada-mente supusemos nos ter advindo dano. Eis o que eu esperava de gente sã, eis o que eu ansiava por declarar quando comecei a me exprimir, não sabendo ser claro... O senhor está rindo, Iván Petróvitch? Cuida que ao entrar aqui eu estava com prevenção por causa deles, de quem passo por paladino, tido como sou por um democrata um advogado da igualdade? (Riu de forma crispada. Já vi entrecortando os períodos com acento de riso prazeroso.) Não, não era isso. Meu medo era por todos nós aqui juntos. Pois se eu próprio sou um príncipe, de antiga família! Se me vejo sentado entre príncipes! Falo, para salvar a todos nós, para que a nossa classe não pereça em vão nas trevas, sem realizar nada, tendo recebido tudo e tudo tendo perdido! Por que hei de eu desaparecer. dar passagem a outros, quando posso permanecer na vanguarda e ser dos principais? Já que estamos na frente, urge sejamos os chefes! Tornemo-nos servos para sermos condutores!

Fez menção de se levantar da poltrona mas o velho dignitário o conteve de novo embora o olhasse com uma inquietação crescente.

- Tenham paciência, ouçam! Sei que não está direito que eu esteja falando. Melhor dar um exemplo, fica mais claro!... Melhor começar... e já comecei... e... e... pode alguém ser deveras infeliz? posso eu, por exemplo, me considerar infeliz só porque sou doente, só por causa do meu caso tão triste? Mas se posso ser feliz! Palavra que não entendo como é que existe gente que ao passar por uma árvore não se sinta feliz em vê-la! Como pode uma pessoa conversar com outra e não sentir felicidade em amar essa outra pessoa? Estão entendendo? O que digo é certo, exato, nítido! Só que não consigo me exprimir certo... E que de coisas inefáveis deparamos a todo instante, a cada passo, tantas e tais que mesmo o homem mais desesperançado tem de se sentir feliz, pelo menos ao dar com uma delas! Que nossos olhos batam no rosto de uma criança, que nossos olhos se deslumbrem diante do nascer do sol, que se abaixem para ver como a erva cresce! isso não chega para dar felicidade? E se nossos olhos dão de chofre com uns olhos que nos amam?!...

Ergueu-se por um instante, enquanto falava. De repente o ancião o olhou estupefato, sendo que Lizavéta Prokófievna, erguendo os braços, aturdida, exclamou: “Deus do Céu!” pois fora a primeira a perceber a terrível surpresa.

Nisto, Agláia se precipitou de onde estava para ele e ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços, ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia, aquele uivo selvagem do “espírito que dilacera e rasga um desgraçado”.

O doente jazia agora sobre o tapete e alguém se apressou em lhe colocar uma almofada sob a cabeça.

Quem poderia esperar por uma coisa destas?

Um quarto de hora depois, o Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch e o velho dignitário se empenhavam em restabelecer a vivacidade da reunião. Foi impossível. E dentro de meia hora a recepção se desfez, sendo pronunciadas muitas palavras de simpatia e de mágoa, os comentários se restringindo ao mínimo. Iván Petróvitch observou que “o jovem era um eslavófilo mas que não havia nada de perigoso nisso”, O alto dignitário não expressou opinião de espécie alguma. Cumpre dizer, de passagem, que no dia seguinte e no imediato, todos os que tinham estado presentes pareciam um tanto ou quanto circunspectos ou mesmo frios com os Epantchín. Iván Petróvitch tomou ares de “desconsiderado”, isso logo passando. O chefe de seção do departamento onde trabalhava o General Epantchín tratouo um tanto secamente. O velho dignitário grunhiu qualquer reparo genérico, à guisa de advertência ao chefe da família, valendo-se da sua categoria de padrinho, ou melhor, patrono, coisa que logo abrandou, passando através de termos elogiosos a deixar entrever quanto se interessava pelo futuro de Agláia. Realmente era um homem de bom coração. E a prova complementar disto é que uma das razões por que naquela noite se interessara por Míchkin promanava do fato de já ter ouvido alusões ao papel que opríncipc desempenhara no escândalo referente a Nastássia Filíppovna. Viera a saber qualquer coisa sobre o caso, interessara-se bastante, gostaria até de fazer umas perguntas.

A Princesa Bielokónskaia disse a Lizavéta Prokófievna ao se despedir aquela noite:

- Bem, há nele coisas boas e ruins. E se desejas que eu seja franca: as ruins são em maior quantidade do que as boas. Podes ver por ti mesma o que ele é: um homem doente!

A generala compenetrou-se, de uma vez para sempre, que um tal noivado era “impossível” e naquela mesma noite ainda fez o voto de, enquanto vivesse, não consentir que ele viesse a ser marido de Agláia. Tal opinião perdurou até à manhã seguinte, quando se levantou. Com o decorrer das horas se sentiu enleada em contradições que chegaram ao auge por volta de meio-dia, ao se sentar para o almoço.

Em resposta a uma pergunta que as irmãs lhe fizeram com muita cautela, Agláia declarou, friamente, mas com altivez, de forma peremptória:

- Nunca lhe dei margem a acariciar qualquer esperança, nem mesmo vagamente. Jamais o considerei sequer em pensamento cOmo podendo vir a ser meu noivo. Para mim é um homem tão desinteressante como outro qualquer.

Lizavéta Prokófievna queimou-se logo:

- Nunca poderia esperar isso de ti! - disse com mágoa. - Bem sei que como pretendente ele se acha fora de questão, e agradeço a Deus estarmos todas e todos de pleno acordo. Mas não esperava estas palavras de ti.

Esperava coisa muitíssimo diferente! Quanto a mim, estive para mandar embora toda aquela gente ontem à noite ficar apenas com ele! Eis a minha opinião em resposta à tua! ...

E imediatamente se calou, apavorada com as próprias palavras. Mas se ao menos pudesse saber quanto estava sendo injusta com a filha nesse momento! Sim, pois esta já mentalmente havia decidido tudo. Também ela estava aguardando ansiosa a hora definitiva e qualquer alusão, qualquer referência, só lhe poderia produzir uma profunda ferida coração adentro.

 

Também para o príncipe essa manhã começou sob a influência de cruéis pressentimentos; poderiam eles ser explicados por seu estado doentio, mas a sua tristeza era quase indefinida. E isso o angustiava ainda mais.

Verdade é que fatos desagradáveis e mortificantes estavam demasiado vivos. Essa tristeza, porém, se desvencilhara já de tais lembranças e agora perdurava transformada em angústia. Pouco a pouco o invadia a convicção de que algo de especial e decisivo lhe aconteceria naquele dia mesmo. O ataque da noite anterior fora de pouca importância, só lhe permanecendo agora, sem contar a depressão e o enfado, dores pela cabeça e pelos membros, O cérebro funcionava bem, apesar da alma estar inquieta e aflita. Levantou-se um pouco mais tarde e logo se recordou da noite em casa dos Epantchín, não tendo conseguido lembrar direito como fora trazido para casa uns trinta minutos após o ataque. Veio a saber que os Epantchín já haviam mandado um mensageiro saber de sua saúde. As onze e meia recebeu outra pessoa que lhe causou grande prazer. Foi Vera Liébedieva que, tendo sido das primeiras visitas, ficara ali desde antes à espera que levantasse. Assim que o viu, desandou a chorar, mas o príncipe a acalmou, não demorando ela a sorrir. O príncipe logo se impressionou pela simpatia que a menina parecia lhe dedicar; tomou-lhe a mão e a beijou. Ela ficou muito vermelha de pejo.

- Oh! Que é que o senhor está fazendo?

E retirou a mão, atônita, indo embora apressadamente, muito confusa; mas tivera tempo de lhe dizer antes que o pai saíra muito cedo de casa a fim de ir ver o defunto (que era como persistia em chamar ao general); de fato, ou deveria ter morrido aquela noite, ou estava nas últimas.

Ao meio-dia o próprio Liébediev, voltou e veio ver Míchkin apenas um instantezinho para me informar sobre a sua preciosa saúde”. mas também para dar uma espiada no guarda-louça e no cofre. Quedou-se diante do príncipe a suspirar e a fungar até compreender que se devia retirar, o que fez só depois de umas tentativas para saber algumas novidades a respeito do ataque da noite anterior, conquanto fosse evidente que já se inteirara de todas as minúcias. Pouco depois da sua saída apareceu Kólia, mas com muita pressa. Apesar disso o seu estado de nervosismo o fez solicitar sem rodeios uma explicação a Míchkin por lhe haver escondido tudo referente ao general. Coisas... que conforme asseverou só viera a saber direito na véspera. Estava profunda e violentamente amargurado. Com toda a simpatia possível, o príncipe lhe contou o episódio por inteiro, fazendo um relato absolutamente nítido, o que produziu o efeito de um raio sobre o pobre rapaz que, sem poder articular uma única palavra, caiu em pranto. O príncipe sentiu que aquelas eram das tais impressões que permanecem para sempre e que causam uma crise na vida de um jovem.

Apressou-se em lhe dar a sua opinião sobre o caso, acrescentando que, a seu ver, a morte do velho teria como causa predominante o horror advindo da própria ação. E que não era qualquer pessoa que seria capaz de um tal sentimento. Ao ouvir isso, os olhos de Kólia faiscaram.

- Os tres, Gánia, Vária e Ptítsin, são um bando ordinário; não brigarei com eles mas doravante nossos caminhos têm rumos opostos. Ah! Príncipe, tive de ontem para hoje sentimentos tão novos! Tudo isso foi uma lição para mim. Considero agora minha mãe também sob a minha responsabilidade. Mesmo estando como está em casa de Vária e a coberto de todas as necessidades, isso não impede que eu...

Foi-se logo, de um salto, lembrando-se de que era esperado em casa. Na varanda perguntou, voltando-se, pela saúde do príncipe,e ao ouvir a resposta ajuntou lestamente:

- E não há mais nada de novo? Ouvi ontem qualquer coisa (conquanto não devesse fazê-lo...) mas se precisar de um servo dedicado, aqui tem um, defronte do senhor. Parece que nenhum de nós é feliz, não é mesmo? Não pergunto nada, não pergunto nada.

E foi embora. O príncipe caiu em meditações ainda mais profundas. Cada qual vaticinava mais desgraças, cada qual esboçava já conclusões, cada qual o olhava como ciente de fatos que todavia ele ainda ignorava. “Liébediev faz perguntas; Kólia insinua coisas; Vera chora...” Por fim atirou para longe as cogitações que o amofinavam, criticando esta estuporada sensibilidade doentia...”

Mas uma hora depois o seu rosto se iluminou vendo entrar as Epantchín “que subiam para uma visita de um instantezinho só.. Realmente não demoraram. Ao levantar-se da mesa do almoço, em casa, Lizavéta Prokófievna convidou autoritariamente para um passeio, “todos juntos”. Foi mais uma ordem seca, abrupta, sem explicações. Saíram todos, isto é, ela, as meninas e o Príncipe Chtch... Lizavéta Prokófievna tomou logo por um caminho em sentido oposto aos habituais passeios diários. Entenderam logo o que isso significava, mas se abstiveram de comentários e objeções, evitando assim que ela se irritasse e os admoestasse. Deixaram-na seguir na frente; vendo que ela não olhava para trás, Adelaída foi a primeira a dizer que era tolice correr tanto, pois ninguém alcançava a mãe.

Diante da vila do príncipe, Lizavéta Prokófievna, voltando-se repentinamente, declarou:

- Cá estamos. Pense Agláia o que pensar, e tenha havido o que houve e... haja o que houver, ele não é nenhum estranho. E o que émais, está doente e conturbado. Vou visitá-lo, de qualquer modo. Quem quiser vir comigo que venha. Quem não quiser, a estrada élarga...

Entraram todos, naturalmente. O príncipe ainda achou ser sua obrigação pedir desculpas mais uma vez pelo vaso e pela cena...

- Oh! Não tem importância! - atalhou logo a generala. -Não me incomodo com o vaso, me incomodo, isso sim, por você. Com que então está ciente de que se prestou a uma cena ontem ànoite? Bem, isso modifica o provérbio; já agora diremos: “A manhã é boa conselheira” em lugar do antigo refrão “Escuta o que te diz teu travesseiro”. O que houve não tem a mínima importância, serviu apenas para que todos compreendam de uma vez para sempre que não devem atiçá-lo. Adeus, pois, por enquanto. Se se sentir mais forte, dê um passeiozinho, depois durma um pouco. Conselho de velha. E se se sentir bem disposto, apareça como de hábito. Mas fique certo, de uma vez por todas, que sobrevenha o que sobrevier, nós seremos sempre seus amigos. Eu, pelo menos. Por mim posso responder.

Todas aceitaram tal desafio, apressando-se em secundar os sentimentos maternos. Saíram. Mas na presteza generosa de dizer palavras amáveis e encorajadoras estava pressuposto algo difuso que era cruel, embora Lizavéta Prokófievna estivesse longe de tal intento. Naquelas palavras “como de hábito” e “eu pelo menos” transparecia uma nota funesta. Míchkin começou a pensar em Agláia. Não havia dúvida de que ela ao se despedir lhe endereçara um sorriso maravilhoso, como aliás fizera também ao entrar; mas não pronunciara uma palavra sequer, nem mesmo quando as outras disseram protestos de amizade; todavia, enquanto as manas falavam, olhou-o umas duas vezes de um modo muito intencional. O seu rosto estava mais pálido do que de costume, como se tivesse dormido mal à noite. O príncipe ponderou que deveria ir visitá-los ao fim da tarde, “como de hábito”. E desde então não deixou mais deolhar para o relógio.

Daí a uns três minutos (após a saída das Epantchín) Vera entrou e disse:

- Trago-lhe um recado de Agláia Ivánovna; mas em segredo, Liév Nikoláievitch.

- Algum bilhete? - E Míchkin estremeceu.

- Não, um recado, muito às pressas. Pede-lhe que não saia de casa hoje um minuto que seja, até às sete, ou até às nove. Não ouvi direito.

- Mas... por quê? Como foi que ela disse?

- Por quê? Não sei. Estava muito séria. O recado foi só esse.

- Disse que era muito sério?

- Não, isso ela não falou. Deu um jeito de parar e de me dizer o recado justamente quando corri ao seu encontro para me despedir. Mas pela fisionomia percebi que era importante. Olhou-me de tal modo que fiquei com o coração batendo...

Depois de mais algumas perguntas, o príncipe ficou mais agitado do que antes, apesar das respostas pouco terem adiantado. Novamente sozinho, se estirou no sofá e reentrou em reflexões.

“Talvez tenham alguma visita até às nove horas e Agláia tema que eu torne a cometer algum disparate”, pensou por fim, esperando ansiosamente, e vendo as horas a todo instante. Mas o mistério se desvendou muito antes do que calculava, a chave do enigma sendo trazida por uma visita, caso esse que se revestiu de uma forma ainda maior de mistério e enigma.

Mais ou menos uma hora depois da visita das Epantchín, Ippolít chegou. E tão fraco e cansado que se atirou sobre uma poltrona sem pronunciar uma palavra, literalmente prostrado, logo desandando a tossir de maneira insofrida até vir sangue. Seus olhos emitiam chispas e duas rosetas rubras lhe tingiam as faces. O príncipe balbuciou qualquer coisa a que ele não pôde responder, apenas durante muito tempo fazendo sinal com a mão que aguardasse. Por fim se reanimou.

- Desta vez me vou - disse com esforço, muito rouco.

- Acompanho-o, se deseja - ofereceu-se o príncipe levantando-se, mas repentinamente retrocedendo ao lembrar que estava proibido de sair. Ippolít riu:

- Não me refiro que me vá de sua casa - prosseguiu, tossindo e ofegando sem parar.

- Pelo contrário tive de vir aqui por causa de uma coisa importante; de outra forma não ousaria importuná-lo. A frase “desta vez me vou” disse-a querendo significar que estou prestes a levar a breca. Longe de mim querer excitar compaixão; tampouco vim por simpatia, pode crer... Deitei-me hoje às dez horas decidido a não me levantar mais, esperando a hora. Por conseguinte, se mudei de idéia por alguma coisa, foi conforme vai já saber.

- Aflige-me vê-lo nesse estado. Por que não me mandou chamar em vez de ter vindo?

- Bem, já consola um tanto ouvir isso. É uma demonstração de pesar manifestada segundo os protocolos da polidez... Mas, ia me esquecendo: e o senhor próprio como vai?

- Agora estou bem. Ontem passei um pouco mal...

- Eu sei, eu sei. O pior foi o vaso chinês. Sinto não ter estado lá. Mas o que me trouxe foi um outro assunto. Em primeiro lugar tive o prazer de descobrir Gavríl Ardaliónovitch em colóquio com Agláia Ivánovna no banco verde. Fiquei boquiaberto em verificar como é possível um homem ter cara tão estúpida. Depois que ele se foi, deliciei-me em acentuar esta minha impressão a Agláia Ivánovna. O senhor parece já não se surpreender mais com coisa alguma deste mundo, príncipe - disse ele olhando para o rosto do príncipe com certa decepção. - “Não se surpreender diante de nada”, dizem, “é sinal de grande inteligência”. Para o meu modo de compreensão pode todavia ser prova da máxima estupidez. Mas com isto não estou incluindo o senhor no meu ponto de vista. Desculpe-me, estou muito infeliz hoje nas minhas expressões.

- Eu soube ontem que Gavríl Ardaliónovitch... - Mas o príncipe cortou a frase, notoriamente confuso, porque só então se deu conta de que Ippolít poderia se aborrecer por ele, Míchkin, não se surpreender.

- Já sabia, então? Ora aí está uma novidade. Mas não me vá dizer agora que até tomou parte ou que pelomenos testemunhou tal entrevista.

- Você sabe melhor do que eu, pois se você a testemunhou. bem viu que eu não estava.

- Ora! Podia estar atrás de uma moita! Mas fiquei contente por sua causa, pois cheguei a desconfiar que Gavríl Ardaliónovitch... fosse o favorito.

- Peço-lhe, Ippolít, que não se ponha a falar nestes termos.

- Principalmente já estando o senhor, como está, a par de tudo.

- Engana-se. Ignoro tudo completamente. A própria Agláia Ivánovna sabe que desconheço tal fato. Não soube de nada a respeito de qualquer encontro. Diz-me você que houve tal encontro entre eles. Muito bem. Mudemos de assunto!...

- Mas, como é isso? Em um minuto sabe, no minuto seguinte, ignora? Diz-me: “Muito bem. Mudemos de assunto   Mas, escute, não confie tanto assim, principalmente se ignora, conforme diz, o que se teria passado. A sua calma, aliás paradoxal, só se explica pela razão de ignorar o que houve. E não suspeita nada do que aqueles dois, irmão e irmã, estão planejando? Muito bem, muito bem, vou mudar de assunto - acrescentou percebendo a expressão de impaciência do príncipe. - O que aqui me trouxe deveras foi um assunto bem outro que me diz respeito e peço permissão para me explicar. Raios me partam que nem me é possível sequer morrer sem dar explicações. Já não tolero essa coisa terrível de ter de andar a me explicar. Interessa-lhe ouvir?

- Fale. Estou escutando.

- Eis-me forçado a mudar de opinião outra vez embora continue a citar o nome de Gavríl Ardaliónovitch. Acreditaria o senhor se eu lhe declarasse que também tive uma entrevista marcada para hoje no banco verde? Não quero pregar uma mentira. Quem insistiu nesse encontro fui eu. Solicitei-o sob a promessa de revelar um segredo. Não sei se cheguei cedo demais. (Creio que sim.) Mal me tinha eu sentado ao lado de Agláia Ivánovna, Gavríl Ardaliónovitch e Varvára Ardaliónovna se aproximaram de braço, como se estivessem a passear. Verem-me foi-lhes tão inesperado que ficaram perplexos. Agláia ficou muito vermelha. Se quiser acreditar, bem, se não... Ficou embaraçada, ou porque eles me vissem com ela, ou por eu os vir chegar. Bem sabe que beleza ela é, mas a verdade é que mudou, ficou vermelha, instantaneamente, de um modo até incrível. Levantando-se, respondeu ao cumprimento de Gavríl Ardaliónovitch e ao insinuante sorriso de Varvára, mas logo se foi explicando - “Vim, apenas, para lhes exprimir, pessoalmente, a minha gratidão ante os seus sinceros e amistosos sentimentos, e Se eles me vierem a ser necessários, acreditem que...” Depois voltou para o banco. E os dois prosseguiram, com um ar que não sei se era de patetas ou de triunfantes. O de Gánia, pelo menos, era de pateta. Ele nem sequer articulou uma palavra e ficou tão vermelho como uma lagosta. (É extraordinário como a cara dele pode mudar de uma hora para outra.)

Mas Varvára Ardaliónovna compreendeu que deviam raspar-se o mais depressa possível, e que Agláia Ivá- novna, da sua parte, já dissera o suficiente; e arrastou o irmão dali; ela é mais esperta do que ele, e não tenho dúvida de que está toda triunfante agora. Eu, porém, se estava ali, era porque tinha vindo de completar as providências para um encontro com Nastássia Filíppovna.

- Com Nastássia Filíppovna? - não pôde deixar de gritar o príncipe.

- Arre! Afinal começa o senhor a perder o seu ar de indiferença. Pelo menos já ficou surpreendido! Alegra-me verificar que, finalmente, está ficando um ser humano. Congratulo-me com o amigo. Eis, porém, o que advém de a gente querer servir uma rapariga de alma meiga. Recebi dela um tapa na cara.

- Simbolicamente falando? - Míchkin não pôde deixar de perguntar.

- Sim, moralmente, e não fisicamente; mesmo porque não creio que alguém levantasse a mão contra uma criatura no meu estado; agora, já nem mesmo mulher me bate! Nem o próprio Gavríl me bateria! Verdade é, porém, que ontem, uma vez, pelo menos, parece que ele quis voar sobre mim... Aposto o que quiser como sei o que o senhor está pensando agora. Está pensando: “Ele está nas últimas, naturalmente, mas mereceria, pelo menos, ser sufocado com um travesseiro, ou um esfregão molhado, durante o sono. Olá se merecia...” Está escrito em sua testa que está pensando isto, neste segundo.

Com evidente desagrado, o príncipe respondeu:

- Sabe muito bem que sou incapaz de pensar tal coisa...

- Não sei; sonhei na noite passada que estava sendo sufocado com um pano úmido por... um homem!... Vou dizer-lhe por quem: Rogójin! Que acha? Um pano molhado pode sufocar um homem?

- Não sei.

- Já ouvi dizer que isso é possível. Está bem, ponhamos isso de lado. Escute, tenho cara de caluniador? Por que me acusou ela hoje de caluniador? E, repare bem, só me deu tal epíteto depois de me escutar, palavra por palavra, e depois de me fazer as perguntas que lhe convinham. Mas isso é próprio de mulher. Apenas no interesse dela me pus em contato com Rogójin, aliás pessoa interessante. Apenas no interesse dela lhe arranjei uma entrevista com Nastássia Filíppovna. Seria porque feri o amor-próprio dessa jovem insinuando ocasionalmente que estaria se contentando com as “sobras” da outra? Sim, tentei fazer-lhe ver isso em seu próprio interesse, não nego. Escrevi-lhe duas cartas só com tal finalidade e hoje, por uma terceira vez, na entrevista, insisti no assunto... Fiz-lhe ver que isso era humilhante para ela. Não que a palavra “sobras” fosse minha. É de outra pessoa. Pelo menos em casa de Gánia todo o mundo a emprega e até ela própria ma repetiu.

Como então me chama de caluniador? Já sei, já sei, é muito divertido pôr-se a olhar para mim deste jeito!

Aposto como me está aplicando aqueles versos:

 

Mas no crepúsculo do seu declínio

Teve um brilho de amor em despedida...

 

Ah! Ah! Ah! - Sufocou-o um acesso de riso convulsivo. Depois disse através de um ataque violento de tosse:

- Repare que espécie de sujeito é Gánia. Fala em “sobras” e todavia ele próprio se esforça para obter vantagens, agora!

O príncipe continuou calado por muito tempo, aniquilado pelo espanto. Finalmente murmurou:

- Vai haver, disse você, uma entrevista com Nastássia Filíppovna?

- Ai, mau! Tem dúvida de que Agláia Ivánovna se vá encontrar hoje com Nastássia Filíppovna? Para esse fim foi ela trazida de Petersburgo por Parfión a instâncias minhas, mediante convite de Agláia Ivánovna. Lá está ela onde esteve antes, em casa de... Dária Aleksiéievna... uma mulher duvidosa, sua amiga. Perto de onde o senhor mora. Nessa casa suspeita Agláia Ivánovna se encontrará hoje com Nastássia Fílíppovna para ambas decidirem vários problemas. Vão ocupar-se com aritmética. Não sabia? E se eu lhe der minha palavra de honra?

- Isso é inacreditável!

- Lá que seja inacreditável talvez seja! Será? Não será? Muito embora isto aqui não passe de um lugarejo onde se uma mosca zunir toda gente sabe! Mas já que o estou avisando venha de lá com a sua gratidão, homem! Bem, até à vista.., decerto no outro mundo! Ah! Uma coisa, ainda: apesar de ter sido grosseiro com o senhor, e saber os motivos muito bem.., por que hei de acabar sendo o vencido? Podia me responder com toda a amabilidade? Perco eu para ganhar o senhor, hein? Dediquei a ela a minha “Confissão”. (Não sabia o senhor disso?) E de que forma ela a recebeu, ainda por cima! Ah! Ah! Mas a verdade é que com ela não agi grosseiramente, feito canalha, não lhe causei dano nenhum! Ela em paga me vilipendiou, me amesquinhou, a mim que nem mesmo ao senhor fiz qualquer mal. Se me referi a “sobras” e outras coisas no gênero, no entanto aqui vim lhe avisar o dia, a hora e o local do encontro. Verdade é que se estou desvendando todo o jogo, o faço por mero ressentimento e não por generosidade. Vou-me embora; adeus. Falei mais do que um gago ou um tísico! Tome agora suas providências, se quer ser chamado homem! A entrevista dar-se-á hoje; esta noite. Ora aí está.

Ippolít dirigiu-se para a porta; mas como Míchkin o chamasse, parou na soleira.

- De acordo com o que veio me dizer, Agláía Ivánovna vai a uma entrevista hoje na casa de Nastássia Filíppovna? - E ao perguntar, manchas vermelhas lhe apareceram nas faces e na testa.

- Não posso garantir mas é mais que provável - respondeu ippolít.

- Aliás, onde haveria de ser? Nastássía

Filíppovna não haveria de ir à casa da outra. Muito menos na de Gánia, cujo pai está em coma. Não sabe que o general entrou em agonia?

- Tudo prova a impossibilidade de um tal encontro - aventurou o príncipe.

- Como haveria ela de sair, mesmo que quisesse? Não sabe os hábitos daquela casa? Sair sozinha para ir ver Nastássia Filíppovna lhe seria impossível. Isso é um absurdo!

- Olhe aqui, príncipe; ninguém pula pela janela. Mas quando lavra incêndio em casa, o cavalheiro mais fino, ou a mais elegante das damas saltam pela janela. Se não há outro recurso, por que não pular mesmo que seja alto demais? E a sua gentil dama irá mesmo se encontrar com Nastássia Filíppovna. Com que então os Epantchín não permitem que as moças saiam sozinhas para onde queiram, hein’?

- Não, eu não disse isso...

- Pois então ela tem mesmo de descer lá das suas alturas e ir diretamente até à casa da outra. E conforme o caso nem precisa voltar para o lar. Casos há em que se incendeiam os navios para não se regressar. A vida não Consiste apenas em almoços e jantares, e em Príncipes Chtch... e não sei mais quê! Estou a ver que o senhor considera Agláia Ivánovna uma meninota, ou uma colegial! Espere, então, até às sete ou oito horas. Se eu fosse o senhor, mandava Kólia, por exemplo. Por sua causa ele de bom grado se prestará a ser espião. Penso eu. Tudo é relativo, neste mundo. Ah! Ah!...

Ippolít foi-se. O príncipe era incapaz de mandar alguém espiar e nem achou que havia motivos para isso.

Estava agora mais do que explicado o pedido feito por Agláia: não sair de casa... Mas, quem sabe se ela desejava vir vê-lo? Ou queria evitar que ele fosse à sua casa? Podia ser isso, esse pedido de que permanecesse em casa. A cabeça de Míchkin estava em um redemoinho. O quarto inteiro rodava... Estirou-se no sofá e fechou os olhos.

Um ou outro caso era provável. Por que haveria de tomar Agláia como meninota, ou como colegial?

Entendeu agora que se antes já estava inquieto era porque desconfiara de qualquer coisa. Mas, ir ver a outra, por quê? Os arrepios o fizeram certificar-se de que estava, novamente, com febre. Não, não a considerava uma criançola! Verdade é que certos modos e certos pontos de vista manifestados por ela, o vinham, ultimamente, horrorizando. De fato, às vezes ficava reservada demais, vigiava-se muito, alvoroçando-o. Bem que experimentara não pensar nisso, afugentar certas idéias que o oprimiam. Mas, que se esconderia naquela alma?

Esse mistério o aborrecera muitas vezes, embora tivesse fé naquela alma. Tinha havido, porém, uma combinação, tudo viera à luz, agora. Que horrível pensamento! E, de novo, aquela mulher! Bem lhe parecera, sempre, que aquela mulher apareceria no último momento para arrebentar, como a uma linha podre, o seu destino! Sempre pressentira isso, podia jurar, agora, mesmo estando quase em delírio. Bem que experimentara, ultimamente, esquecê-la... mas isso não fora senão medo dela! Amava ou odiava aquela mulher? Como é que esta pergunta nunca lhe viera antes? O seu coração a este respeito tinha certeza: sabia que amava! O seu medo não era tanto pelo encontro das duas, nem pela estranheza e pelo motivo desconhecido de tal encontro! E nem mesmo por aquilo que disso adviria! Adviesse o que adviesse. O seu medo era... de Nastássia Filíppovna. (Lembrou-se, alguns dias depois, que bem através daquelas horas febris, os seus olhos, a sua expressão, tinham estado diante dele e que as suas palavras tinham soado em seus ouvidos; estranhas palavras, embora delas pouco tivesse ficado depois que aquelas horas febris de miséria se tinham desfeito.) Muito mal se lembrava de que Vera lhe tinha trazido o jantar, que o havia comido mas não sabia se depois disso dormira ou não. O que acabou por ficar sabendo foi que as coisas só começaram a se clarear quando, aquela noite, Agláia inesperadamente apareceu, subindo a varanda. Saltando do sofá, ele precipitou-se para ela. Eram sete e um quarto. Agláia viera sozinha, vestida simplesmente, com um albornoz claro. Parecia apressada. Sua face estava tão pálida quanto de manhã e os seus olhos cintilavam com uma luz viva e fria. Nunca lhe vira tal expressão nos olhos. Olhou de maneira atenta e observou com aparente tranqüilidade:

- Está preparado. Vestido e com o chapéu na mão. Quer dizer que foi avisado. Ejá sei por quem: Ippolít.

- Sim, ele me disse - murmurou o príncipe mais morto do que vivo.

- Então, vem. É lógico que me deve acompanhar até lá. Já está bastante forte, pode sair?

- Já estou bom. Mas é isso possível?

Calou-se repentinamente e não houve meios de dizer mais nada. Foi a única tentativa feita para conter a rapariga louca. Depois do quê, a seguiu como um escravo. Por mais baralhadas que estivessem suas idéias, compreendeu todavia que, mesmo sem ele, ela iria até lá. Por conseguinte, devia acompanhá-la de qualquer forma. Não era preciso adivinhar a resolução dela. E ninguém lhe impediria esse impulso selvagem.

Caminharam todo o tempo calados, só no fim pronunciando uma ou outra palavra. Notou que ela sabia bem o caminho. E quando, em certo momento, lhe sugeriu que fossem por um caminho mais longo mas com a vantagem de ser mais deserto. ela fez um ar de reflexão demorada e acabou respondendo:

- Dá no mesmo...

Quando já tinham quase atingido a residência de Dária Alekséievna (uma grande casa velha de madeira), descia de lá uma senhora vestida espalhafatosamente, com uma menina. Entraram ambas em uma elegante carruagem que estava parada rente aos degraus, acomodaram-se conversando e rindo. Parece que não notaram o par que se aproximava, pois nem o olharam sequer. Logo que a carruagem partiu, a porta se abriu e Rogójin, que estava do lado de dentro, fez Míchkin e Agláia entrarem, fechando depois a porta.

- Em toda a casa não há ninguém, senão nós quatro - observou, ruidosamente olhando o príncipe de modo estranho.

Logo na primeira sala para onde passaram, deram com Nastássia Filíppovna que os esperava. Ela também estava vestida simplesmente, toda de preto. Levantou-se para saudá-los, mas não sorriu e nem estendeu a mão ao príncipe.

Seus olhos atentos e inquietos pousaram sobre Agláia. As duas sentaram-se a pequena distância uma da outra. Agláia, em um sofá, a um canto da sala; Nastássia Filíppovna rente à janela. Liév Nikoláievitch e Parfión não se sentaram e nem ela os convidou a isso. O príncipe olhou com perplexidade e mesmo, depois, com angústia para Rogójin que continuava com o mesmo sorriso. O silêncio durou pouco, logo uma expressão de vivacidade percorrendo todo o rosto de Nastássia Filíppovna. O seu olhar brilhou, obstinado, firme e cheio de rancor, não deixando um só segundo de alternar de um visitante para outro.

Agláia estava evidentemente perturbada, mas apesar da confusão não parecia intimidada. Desde que penetrara na sala não erguera os olhos para a rival, mantendo-os no assoalho, com ar de reflexão, apenas de quando em quando procurando olhar para as paredes e os móveis com naturalidade. Havia uma secreta expressão de mal-estar em seu rosto, como se receasse uma contaminação. Maquinalmente arranjou a orla do vestido e se sentou mais para a beira do sofá, fazendo isso com gestos e movimentos provavelmente incons-cientes. Mas essa atitude mutável tornava insultuoso o seu comportamento concentrado. Por fim olhou bem para Nastássia Filíppovna e leu instantaneamente tudo quanto se ocultava no enigmático brilho dos olhos da rival. A mulher compreendeu a mulher. E Agláia estremeceu.

- Naturalmente sabe o motivo do pedido que fiz para que viesse de Petersburgo - disse com voz baixa, fazendo duas pausas em período tão curto.

- Não, não sei de nada - respondeu Nastássia Filíppovna de modo abrupto e seco.

Agláia enrubesceu. Repentinamente a feriu, como fenômeno incrível, estar sentada ali com tal criatura e presa a uma sua resposta. Ao primeiro som da voz de Nastássia Filíppovna um calafrio a percorreu, o que logo a outra de modo muito claro percebeu.

- Compreende tudo, mas por cálculo pretende não entender... - disse Agláia, quase em um sussurro, olhando logo para o chão.

- Por que faria eu isso? Por que deveria eu fazer isso? - disse Nastássia e sorriu.

- Para adquirir vantagem sobre a minha situação de estar aqui nesta casa - atalhou Agláia de modo deselegante e inconveniente.

- Vós, e não eu, sois a responsável por vossa situação - opinou Nastássia Filíppovna, com veemência.

- Não estais aqui por convite meu. Eu sim é que aqui me acho obedecendo a um convite vosso; e ainda ignoro qual seja a razão.

Agláia ergueu orgulhosamente a cabeça:

- A sua língua é a arma de que dispõe. E não vim lutar batendo boca.

- Ah! Então viestes lutar comigo? Pois acreditai que vos julgava mais fina.

Olharam uma para a outra sem esconder seus mútuos despeitos. Uma delas era a mulher que havia escrito aquelas cartas à outra. E agora, ao primeiro encontro, tudo caía aos pedaços. E ainda assim nenhuma das quatro pessoas que se achavam naquela sala parecia haver percebido tão estranho fenômeno. O príncipe, que um dia antes nem por sonhos admitira a possibilidade disso, estava ali, olhando e ouvindo, como se desde muito houvesse previsto tudo. O mais fantástico dos sonhos se convertia assim nitidamente na mais viva e cabal realidade. Uma dessas mulheres desprezava naquele momento a outra, e de tal maneira, querendo lhe exprimir com tamanha intensidade esse desprezo (viera somente para isso, conforme Rogójin declararia no dia seguinte) que, não contando de antemão com o desordenado intelecto e a alma tenaz da rival, cuidou que esta não adotara previamente nenhuma idéia a usar contra tal desprezo maligno tão tipicamente feminino. O príncipe certificou-se logo que Nastássia Filíppovna espontaneamente não faria menção às cartas. Essas cartas o afligiam agora a ponto de dar metade de sua vida para que Agláia não se referisse a elas.

Mas parece que Agláia repentinamente se contagiou na atmosfera de contenção pois, já se dominando, disse:

- A senhora me compreendeu mal. Não vim lutar, muito embora não a estime... Eu vim.., apenas conversar, como um ser humano se dirigindo a outro ser humano. Quando a mandei procurar já havia decidido o que lhe haveria de dizer e não quero me afastar agora de uma tal decisão, mesmo que não fosse neste momento compreendida de todo. Seria pior para uma de nós, ou melhor... não para mim! Desejei responder-lhe ao que me escreveu e vim fazê-lo pessoalmente por me parecer mais conveniente. Ouça agora a minha resposta a todas as suas cartas: tive pelo Príncipe Liév Nikoláíevitch, desde o dia em que o conheci e principalmente depois que me contaram o que Lhe aconteceu na recepção da senhora, tive pena dele porque é um homem tão puro de coração que chegou a acreditar, mercê de sua ingenuidade, que poderia ser feliz com... uma mulher... de tal caráter. Do que temi que lhe viesse a suceder tudo já se deu, pois a senhora foi incapaz de amá-lo. Antes, o torturou e o abandonou. Não o pôde amar porque é muito orgulhosa... Não, expressei-me mal, porque... é muito vã... Ainda não é o termo que quero... Porque o seu egoísmo deu em crescer... crescer até ao ponto de vir a ser loucura, do que as suas cartas são uma prova concludente. Não podia amar um homem simples como ele e muito provavelmente no íntimo o desprezava e achava ridículo. A senhora não pode amar coisa nenhuma, exceto a sua própria vergonha e esse seu contínuo pensamento, que já é mania, de que foi posta pelos homens debaixo da ignomínia e da humilhação. Se a sua ignomínia fosse menor e, pudesse, por isso, se libertar dela de vez, seria muito menos infeliz...

- Agláia sentia prazer em pronunciar palavras ponderadas e desde muito preparadas, mas ainda assim, agora, pronunciava, demasiado apressadamente, essas palavras que tinha escolhido antes da entrevista; mas, apesar do nervoso, examinava o efeito delas no rosto contraído de Nastássia Filíppovna.

- Deve a senhora se recordar bem que ele me escreveu uma carta naquela ocasião. Sei que a senhora soube e leu essa carta, pois ele me disse, depois. Pois bem, aquela carta me fez entender tudo e de maneira bem correta. Ele já teve ocasião de me confirmar tudo isto que lhe estou agora quase que repetindo palavra por palavra. Depois da carta, esperei.

Estava certa de que a senhora viria para aqui. porque sem Petersburgo a senhora não pode existir. A senhora ainda é muito nova e bem parecida. para as províncias. Aliás estas palavras não são minhas - acrescentou enrubescendo vívamente e desde então a coloração não lhe abandonou mais as faces, até acabar de falar. - Quando revi o príncipe, me senti cruelmente tocada e ferida, por causa dele. Não ria. Se a senhora rir é porque não está capacitada para entender o que estou dizendo.

- Bem vedes que não estou rindo - disse Nastássia Filíppovna de um modo grave e quase lúgubre.

- Aliás, tanto se me dá. Pode rir, se quiser. Às primeiras perguntas que a ele dirigi, me respondeu que tinha cessado desde muito de a amar e que até a sua lembrança lhe causava tortura, mas que... sentia pena da senhora... e que quando pensava na senhora o coração lhe ficava trespassado. Tenho a dizer-lhe, também, que nunca, em minha vida, encontrei um homem como ele, de uma simplicidade tão nobre e de uma confiança tão ilimitada. Compreendi, só pelo modo dele falar, que quem quisesse o podia enganar e que ele perdoaria quem o enganasse; eis porque o fiquei querendo mais.

Agláia parou um momento, como que espantada, não acreditando ter ousado e podido pronunciar tais palavras. Mas, ao mesmo tempo, um orgulho infinito apareceu em seus olhos. Agora parecia de fato não se importar se “aquela outra mulher” se risse, imediatamente, ante a confissão saída de sua boca.

- Já lhe disse tudo e agora, sem dúvida, entendeu o que quero da senhora.

- Talvez tenha entendido, mas seria melhor se vós mesma mo dissésseis - respondeu Nastássia Filíppovna, mansamente. Houve um brilho de cólera no rosto de Agláia.

- Queria que me fizesse saber - pronunciou com firmeza e de modo bem perceptível - que direito tem de se misturar nos sentimentos dele por mim? Com que direito ousou mandar-me aquelas cartas? Com que direito andou declarando a ele e a mim que o ama, para abandoná-lo em seguida, por vontade própria, fugindo de maneira tão degradante e insultante?

- Nunca declarei a ele, ou a vós, que o amo - articulou Nastássia Filíppovna com esforço.

- E tendes razão em dizer que fugi dele - acrescentou tão baixo que o tom foi quase inaudível.

- Então nunca o declarou a mim, nem a ele? - gritou Agláia.

- E as suas cartas? Quem lhe pediu para começar lutando e pedindo que eu me casasse com ele? Não era isso declaração? Por que se interpôs? Pensei, no começo, que tentasse fazer erguer-se em mim uma aversão por ele, ao interferir contra nós, obrigando-me, assim, a desistir. Foi só depois que adivinhei o que isso tudo significava, Simplesmente imaginou que estava fazendo algo de heróico e de maravilhoso trabalhando assim a favor de suas pretensões Como há de amá-lo, se ama tanto a sua vaidade? Por que, então, não se foi simplesmente embora daqui em vez de ficar a me escrever cartas tão absurdas? Por que então não se casa com o homem que com generosidade a ama e a honra, com o lhe oferecer a sua mão? E claro, porque se se casasse com Rogójin de que se haveria de queixar? Ao contrário, teria feito muita honra a si mesma. Evguénii Pávlovitch disse muito bem que a senhora leu Poesia demais e teve educação demasiada para a sua... situação que é “saia e blusa” e quer ser “dalmática”; que vive na indolência querendo heroísmos... Junte-se agora, a isso, que ele caracterizou tão bem, a vaidade! E logo se tem uma explicação de tudo.

- E vós, não viveis na indolência?

Com excessiva rapidez e crueldade as coisas haviam chegado a um extremo tão inesperado; inesperado, porque Nastássia Filíppovna, ao dirigir-se a Pávlovsk, imaginava que tudo se passaria de maneira bem diferente, muito embora os seus pressentimentos fossem antes maus do que bons. Agláia deixou-se levar de modo tão absoluto pelo impulso do momento como se, estando a cair precipício abaixo, não pudesse resistir à alegria tenebrosa da vingança. Era positivamente estranho para Nastássia Filíppovna, ver Agláia neste estado. Olhou-a e não pôde acreditar em seus olhos, ficando, nos primeiros instantes, completamente estupefata. E apesar de, como dissera Evguénii Pávlovitch, ser uma mulher que havia lido poesia demais, ou fosse uma louca como Míchkin estava convencido, de qualquer modo, muito embora às vezes si comportasse com cinismo e impudência, ainda assim estava longe de não ser uma mulher modesta, mansa e sincera (mais até do que se poderia acreditar). Por mais cheia que andasse de idéias românticas, de fantasias caprichosas e cismas egoísticas, ainda assim, havia nela muita coisa de forte e de profundo!... O príncipe compreendeu isso. E agora a expressão do seu rosto era de indizível sofrimento. Agláia percebeu, tremeu de desdém, e com indescritível altivez disse em resposta à exclamação de Nastássia Filíppovna:

- Ousa dirigir-se deste modo a mim?

- Deveis ter-me ouvido mal - disse Nastássia Filíppovna, com surpresa.

- Como foi que me dirigi a vós?

- Se, realmente, queria ser uma mulher respeitável, por que, tão simplesmente, não abandonou o seu sedutor, Tótskii, sem cenas teatrais? - disse Agláia. subitamente, desviando a orientação da conversa.

- Que sabeis vós da minha situação, para assim ousardest julgar-me? - indagou Nastássía Filíppovna,

trêmula: estava ficando terrivelmente branca.

- Que sei? Pergunta isso a mim? Sei que a senhora não foi trabalhar, mas que se meteu com um homem rico, Rogójin, para fingir de anjo decaído. Não me espanta que Tótskii tente até se dar um tiro, para se livrar de um tal anjo decaído, - não faleis assim! - Nastássia Filíppovna fez um ar tanto de repulsa como de angústia. - Vós me entendeis tanto quanto a criada de Dária Aleksiéievna que se foi queixar ao juiz, do noivo! Ela entenderia melhor do que vós.

- E que tem de mais que entendesse?! Muito provavelmente! Uma rapariga respeitável que trabalha para viver! Por que se refere com tamanho desprezo a uma empregada doméstica?

- Não sinto desprezo pelo trabalho, e sim por vós, quando falais de trabalho!

- Se quisesse ser respeitável tinha de começar por se tornar primeiro uma lavadeira!

Ambas se ergueram e se olharam, lívidas.

- Agláia, pare; isso é injusto! - exclamou o príncipe, zonzo.

Rogójin já não sorria, mas estava escutando com os lábios cerrados, de braços cruzados.

- Vede! Olhai-a! - disse Nastássia Filíppovna, fremindo de cólera.

- Olhai essa jovem! E eu que a tomava por um anjo! Vieste à minha casa, tu, Agláia Ivánovna, sem trazeres uma governanta? Bem, já que assim preferes.., vou dizer-te imediatamente, e em cheio, por que me vieste ver. Tinhas medo, eis por que vieste.

- Medo de ti? - perguntou Agláia, fora de si, com uma admiração ingénua, insultada por aquela mulher lhe ousar falar desta forma.

- De mim, sim.., naturalmente que de mim! Tiveste medo. Se resolveste vir aqui, é que tinhas medo de mim.

Não desprezamos aqueles dos quais temos medo. E dizer-se que respeitei isso que está aí, até este momento! Mas queres saber o teu medo qual é e qual o teu fim, o teu propósito principal agora, nisto tudo? Queres descobrir tu mesma, se ele te ama mais do que a mim ... Não passas de uma terrível ciumenta!...

- Ele já me disse que te odeia! - murmurou Agláia. - Talvez, decerto mesmo, não o mereço... mas penso que estás mentindo! Ele não me pode odiar! Ele não pode ter dito isso! Mas estou pronta a perdoar-te, tendo em vista a posição em que te achas... embora eu esperasse poder pensar melhor a teu respeito. Pensei que fosses mais esperta e bem mais bonita, cheguei a pensar mesmo Está bem, toma o teu tesouro!... Aqui está ele, até está te olhando, está deslumbrado! Toma-o, mas com a condição de deixares esta casa imediatamente! Já, neste minuto!

Atirou-se em uma poltrona e caiu em pranto. Pouco depois. Porém, ergueu um rosto que se iluminava com um sentimento novo. Olhou com decisão para Agláia, fixou-a bem e se levantou.

- Mas, se duvidas, eu falarei com ele... Basta que eu ordene, estás ouvindo bem? Basta uma palavra minha, e ele te arremessará para longe, imediatamente! E ficará comigo! E casará comigo, ao passo que tu terás de correr para tua casa, escorraçada e sozinha. Devo fazê-lo? Devo? - gritou, como louca, sem saber que era capaz de dizer tal coisa.

Agláia correu aterrorizada para a porta, mas parou, porque ela continuava a falar.

- Quer que mande Rogójin embora? Achavas, então, que eu ia me casar com Rogójin só para te ser agradável! Pois aqui, na tua presença, vou gritar para Rogójin: “Vai embora!” e vou dizer ao príncipe:

“Lembras-te do que me disseste?” Céus, por que me humilhei diante deles? Disseste-me, ou não, príncipe, que me seguirias acontecesse o que acontecesse, que não me abandonarias nunca, e que me amavas.., e que me perdoavas tudo... e que me resp... e... quê?... Sim! Isto também tu disseste! E foi para te deixar livre que fugi aquela vez! Mas agora não fugirei, não! Pergunta, vamos, pergunta a Rogójin, se eu sou uma mulher perdida!

Ele lo dirá! E agora, que ela me cobriu de vergonha, diante de teus olhos, arredar-te-ás de mim e te retirarás de braço com ela? Bem, então, se tu também maldito, pois eras a única pessoa no mundo em quem eu confiava!

Sem saber direito o que estava dizendo, soltando as palavras com esforço, o rosto convulso, os lábios repuxados, disse mais alto ainda:

- Vai-te embora. Rogójin! Não és preciso para nada!

Evidentemente não acreditava em uma sílaba da sua tétrica eloqüência, e ao mesmo tempo desejava prolongar essa situação, por um minuto mais que fosse para iludir-se. O sofrimento foi tanto, que a poderia ter matado (como, pelo menos, pensou o príncipe).

- Aqui está ele. Olha-o! - gritou para Agláia apontando para Míchkin. - Se não vier para mim, imediatamente, se não me tomar, se não desistir de ti, toma-o tu, eu to dou, não o quero!

Mas ela e Agláia ficaram, nisto, em suspenso, e ambas, como criaturas loucas, olharam para o príncipe. Ele, decerto, não entendeis toda a força deste desafio. De fato! É certo que não entendeu.! Apenas via, diante de si, a frenética e desesperada face que (como uma vez dissera a Agláia) “tinha apunhalado o seu coração para sempre”.

E vendo, não pôde suportar mais e se voltou suplicando e repreendendo Agláia, mostrando-lhe Nastássia Filíppovna: “Como podeis...? Não vêdes, então, que criatura infeliz ela é?”

E não pôde pronunciar mais nada, petrificada pela terrível expressão dos olhos de Agláia. Esse olhar traía tamanho sofrimento, e ao mesmo tempo tão desmesurada cólera que, com um gesto de desespero, correu para ela... Mas era muito tarde. Ela não pudera suportar o instante sequer da sua hesitação. Escondeu o rosto nas mãos, gritou “Ó meu Deus!”, descobriu o rosto e saiu a correr da sala, seguida por Rogójin que foi desaferrolhar a porta. O príncipe instantaneamente correu também, mas já na porta se sentiu agarrado por dois braços, diante do umbral. Diante do seu, se estampava, convulso e desesperado, o rosto de Nastássia Fillíppovna que de modo lancinante lhe disse:

- Tu a segues? A ela?

E caiu sem sentidos em seus braços. Susteve-a, carregou-a para a sala, depô-la em um canapé, e ficou ali, em pé, marasmado. Havia um copo com um resto de água sobre a mesinha ao lado. Aproximando-se, vindo da porta, Rogójin aspergiu-o sobre o rosto dela. Abrindo, um minuto depois, os olhos, durante outro minuto não se lembrou de nada; mas, subitamente, volveu os olhos em redor, tentou erguer-se, arremessou-se aos braços do príncipe, gritando:

- Meu! És meu!... A jovem orgulhosajá foi embora? Ah! Ah! Ah! - Parecia uma histérica em paroxismo. - Ah! Ah! Ah! Eu te ofereci àquela jovem louca! E por quê? Para quê? Eu estava fora de mim! Vá-se embora, Rogójin! Ah! Ah! Ah!...

Rogójin olhou-os; não disse palavra. Tomou o chapéu e saiu.

Dez minutos depois o príncipe estava sentado ao lado de Nastássia Fílíppovna, com os olhos postos nela, acariciando-lhe o rosto e os cabelos com ambas as mãos, como se ela fosse uma criancinha. Suspirava em resposta às suas risadas e chorava em resposta às suas lágrimas. Não dizia nada. Só lhe escutava o balbucio entrecortado, incoerente e excitado. Não compreendia quase nada do que ela balbuciava, mas lhe sorria meigamente e logo que percebia que recomeçava a afligir-se, a chorar, a queixar-se dele, a lastimar-se, principiava de novo a acariciar-lhe a cabeça, desde os cabelos até ao queixo, acalmando-a, consolando-a como a uma cri ancinha.

 

Tinham-se passado quinze dias, desde os acontecimentos narrados no último capítulo, e a situação dos personagens que lhes dizem respeito estava tão completamente mudada que nos é difícil continuar a nossa história sem algumas explicações. No entanto nos temos de restringir, o mais possível, à declaração singela dos fatos, e por uma razão muito simples: porque defrontamos com muitas dificuldades, em vários pontos, ao querermos explicar quanto ocorreu. Tal declaração de nossa parte deve parecer muito estranha e obscura para o leitor que tem o direito de perguntar por que nos pusemos a descrever aquilo de que não tínhamos uma idéia clara o uma opinião pessoal. Evitando colocar-nos em uma posição ainda mais falsa, preferimos dar um exemplo, mercê do qual o leitor bondosamente compreenderá a nossa dificuldade. Tentaremos, até, fazer com que esse exemplo não quebre a seqüência da narrativa, tornando-se, antes, mera continuação dela.

Quinze dias antes, isto é, no começo de julho, a história do nosso herói, e, de um modo mais particular, o último incidente dessa história, se foi transformando no escândalo do ano, dada a sua estrutura estranha, divertida e até mesmo solene, espalhando-se gradualmente pelas ruas contíguas às vilas de Liébediev, Ptítsin Dária Aleksiéievna, atingindo a casa dos Epantchín, ultrapassando, a seguir, a cidade, e se desfigurando nos distritos vizinhos. Quase toda a sociedade que se aglomerava na praça, habitantes, veranistas” e povo, que se reuniam para escutar a banda, glosavam esta história, através de mil variações.

- De como um príncipe, depois de ter causado um escândalo em uma família muito conhecida e distinta, namorando uma formosa moça dessa família e chegando até a ficar noivo, se deixava cativar por uma conhecida cocote, e, rompendo com todos os amigos, indiferente a tudo, desdenhando ameaças, zombando da indignação popular, resolvera, poucos dias depois, olhando todo o mundo de cabeça erguida, casar-se ali mesmo em Pávlovsk, franca e publicamente, com essa mulher de passado ignominioso.

A história tornou-se tão ricamente adornada de escandalosas mInúcias, tantas e tão distintas pessoas tomaram parte nela, tão fantásticas e enigmáticas evidências foram dadas, e por outro lado, foram apresentados fatos tão concretos e tão incontestáveis que a Curiosidade geral e a tagarelice não podiam deixar de ser desculpáveis.

Verdade é que os comentários promanavam da mais múltipla, sutil e engenhosa interpretação. E promanavam - isso lhes dando maior probabilidade! - dessa gente sensível que, em todas as classes da sociedade, transforma a sua vocação em consolo, apressando-se sempre em explicar tudo aos vizinhos.

Segundo a versão dessa gente, um jovem de esplêndida família, um príncipe quase rico, mas louco e democrata, dera guarida em seu cérebro ao niilismo contemporâneo revelado pelo Senhor Turguénev. Embora não sabendo quase uma só palavra de russo, se apaixonara pela filha do General Epantchín, conseguindo ser aceito pelo noivo, pela família. Mas, como certo francês daquela história que os jornais recentemente tinham publicado (que depois de consentir que o sagrassem sacerdote, voluntariamente, tendo recebido as ordens, e se sujeitado a todo o cerimonial de reverências, orações, ósculos e votos, acabara, no dia seguinte, para informar, publica-mente, ao bispo, em cartas mandadas aos jornais liberais, que não acreditava em Deus e que por considerar desonroso enganar os fiéis, e deles receber considerações sem motivo, renunciava à batina!), como esse francês ateu, o príncipe também fingira e representara! Chegaram a afirmar que ele esperou, de propósito, pela recepção formal, dada pelos pais da moça para participarem o noivado (recepção essa em que fora apresentado a muitos personagens distintos), para declarar alto e bom som, diante de todos, que julgava leviandade venerar velhos dignatários, renunciando, a seguir, e de modo insultuoso, ao noivado. E que, depois, em luta com os lacaios que o punham para fora, quebrara um magnífico vaso da China. E assim, mais uma vez ficaria patenteada mais uma das características e tendências da época, pois não havia dúvida de que o desmiolado jovem estava apaixonado pela noiva - a filha de um general - mas renunciara simplesmente por causa do niilismo. E ainda por cima resolvera levar o escândalo mais adiante, determinando-se a casar com uma mulher perdida, somente para comprovar, com isso, à vista de todo o mundo, que a sua convicção era que não havia mulher perdida nem mulher virtuosa, todas elas sendo iguais e livres! Que a antiga divisão não merecia crédito! E que aos seus olhos uma mulher perdida era superior a uma que não fosse perdida!

Tais versões, parecendo extremamente prováveis, foram aceitas pela maioria dos veranistas e mais prontamente à medida que os fatos diários lhes davam azo. Garantiram que a pobre moça adorava tanto o noivo -  no dizer de alguns, seu sedutor - que no dia em que a abandonou correu a encontrá-lo, deparando com ele nos braços da amante. Outros asseguraram, ao contrário, que a coitada fora propositadamente atraída por ele à casa da amante, por causa ainda do niilismo que é a doutrina que timbra em envergonhar e insultar. De todos esses rumores resultou um interesse cada dia mais crescente, culminando quando se veio a saber que o incrível casamento realmente ia ser o desfecho.

E agora, se nos pedissem uma explicação, não quanto à significação niilista do incidente, oh! Não!, mas até que ponto o casamento proposto satisfazia aos desejos reais do príncipe, e quais eram esses desejos nessa ocasião, definindo a condição espiritual do nosso herói, teríamos dificuldade em responder. Só podemos dizer uma coisa: que o casamento, de fato, foi combinado e que o próprio Míchkin autorizou Liébediev, Keller e um amigo de Liébediev, apresentado por este nessa emergência, a empreender todas as providências necessárias, tanto as religiosas, como as seculares, sendo-lhes recomendado não poupar dinheiro, pois Nastássia Filíppovna insistia na urgência. Que Keller conseguira ver atendido o seu ardente desejo de ser escolhido como padrinho, enquanto Burdóvskii, escolhido para assumir o mesmo papel por parte de Nastássia Fillíppovna, aceitara evidenciando entusiasmo. O casamento estava marcado para o começo de julho. E não foram só estes os informes autênticos. Outros fatos foram por nós sabidos, e, por estarem em contradição direta com os precedentes acima narrados, atrapalham os nossos cálculos.

Desconfiamos, por exemplo, que, depois de ter autorizado Liébediev e outros a acelerar todos os preparativos, horas depois o príncipe parecia ter esquecido o casamento, os padrinhos e as cerimônias, sendo mais razoável pensarmos que justamente incumbiu urgência e cuidados a outrem para evitar pensar ele próprio no fato, apressando assim o esquecimento. No que estaria ele pensando simultaneamente com isso? Que era que não conseguia esquecer? Com o que estava lutando? Também não resta dúvida de que não houve coação da parte de Nastássia Filíppovna, muito embora tivesse sido ela quem pensara no casamento e dera a entender a sua urgência, de Míchkin partindo, sem dúvida um imediato acordo. (Mas uma espécie de acordo casual, como se o que lhe era sugerido fosse um pedido comum.) Esses fatos estranhos pululam diante de nós, mas, em vez de clarearem as coisas, tornandoas compreensíveis, positivamente as obscurecem, tornando absurdas as explicações tomadas onde quer que o sejam. Passemos a outro exemplo.

Ficou notório, como coisa verdadeira, que durante essas duas semanas o príncipe passava os dias inteiros em casa de Nastássia Filíppovna, sendo levado por ela a passear e a ouvir música. Que era visto na carruagem, acompanhando-a, todos os dias. Que uma só hora sem vê-la, o inquietava (indícios de amor sincero). Que, todavia, quando ela falava com ele, ficava a escutá-la com um sorriso indulgente e sutil, sem, porém, durante essas longas horas, dizer quase nada. Também se veio a saber que, no decorrer daqueles dias, fora muitas vezes à casa dos Epantchín, não o tendo feito às escondidas de Nastássia Filíppovna, sabendo embora que isso a exasperava. Verificou-se que, enquanto permaneceram em Pávlovsk, os Epantchín não o receberam, proibindo peremptoriamente Agláia Ivánovna de o ver. Que ele se retirava do vestíbulo, sem dizer palavra, voltando no dia seguinte, parecendo ter esquecido a recusa da véspera e saindo indiferente à de então. Também se descobriu que, uma hora depois da volta de Agláia Ivánovna da casa de Nastássia Filíppovna, o príncipe tinha ido pressuroso à casa dos Epantchín, certo de encontrá-la, à sua chegada, tendo posto toda a casa em rebuliço visto não se saber onde estivesse Agláia, tendo sido por ele que os Epantchín se puseram a par da ida da moça à casa de Nastássia Filíppovna. Asseverou-se que, nessa ocasião, aflitíssimos, Lizavéta Prokófievna, as filhas e o Príncipe Chtch... destrataram violentamente Míchkin, renunciando, nos mais fortes termos, a qualquer amizade ou relação daí em diante com ele. E que fora justamente no momento mais acalorado que Varvára Ardaliónovna subitamente aparecera para dizer a Lizavéta Prokófievna que Agláia Ivánovna estava lá em sua casa, em um pavoroso estado de espírito, jurando não querer voltar à casa paterna. Tal novidade afetara ainda mais Lizavéta Prokófievna. (E acontece que era verdadeira, pois, fugindo atarantada da casa de Nastássia Filíppovna, Agláia preferiria morrer a entrar em casa, tendo voado para casa de Nina Aleksándrovna, debulhada em pranto, tendo então Varvára Ardaliónovna, por sua parte, achado ser essencial ir avisar prontamente a mãe da moça.)

Mãe e filhas arrojaram-se, imediatamente, para a casa de Nina Aleksándrovna, seguidas pelo chefe da família, Iván Fiódorovitch, que mal acabara de chegar da rua.

Atrás deles seguira o príncipe, atarantado, embora o expulsassem e descompusessem, nem mesmo na casa onde ela estava lhe tendo sido permitido, devido às cautelas de Vária, ver Agláia. O final disso fora que, mal viu a mãe e as manas; também debulhadas em pranto, sem ousarem proferir uma palavra de censura, Agláia se arremessou nos braços delas, regressando logo com todos para o lar. Além de tudo isso, ainda se adiantou, sem que o pudéssemos autenticar, que Gavríl Ardaliónovitch também não fora muito feliz nessa conjuntura, por causa do seguinte: resolvera aproveitar a oportunidade de Varvára ter ido a correr à casa de Lizavéta Prokófievna, deixando-o sozinho com Agláia, para inoportunamente lhe falar ainda na sua paixão; mas, ouvindo isso, apesar de estar zonza e em lágrimas, ela desandou a rir, repentinamente. E até lhe perguntou se ele, para lhe provar esse amor, queimaria o dedo em uma vela. E Gavríl Ardaliónovitch - prossegue a história - ficara petrificado diante da pergunta. Tão petrificado, a sua cara traindo tamanho espanto que, tomada de uma espécie de ataque histérico, Agláia riu dele, acabando por fugir, escadas acima, para os cômodos de Nina Aleksándrovna, onde a família a fora encontrar.

Esse episódio foi contado ao príncipe, no dia seguinte, por Ippolít, que, não podendo mais levantar da cama, mandou-o chamar de propósito para lhe narrar o caso. Como Ippolít soubera do fato, ignoramos; mas quando Míchkin ouviu falar em vela e em dedo, riu tanto que Ippolít ficou admirado. E, inesperadamente depois, o príncipe se pusera a tremer e a chorar... Devia juntar-se a isso que durante aqueles dias estivera em um estado de grande confusão, e que uma extraordinária perturbação, embora vaga, o atormentava, agora. Ippolít rudemente afirmou que o príncipe estava fora do seu espírito; mas era impossível garantir-se isso com segurança.

Apresentando todos estes fatos e não tentando explicá-los, não temos o intuito de justificar o herói aos olhos do leitor. E, o que émais, estamos inclinados a comparticipar da indignação que ele provocara mesmo nos amigos. Vera Liébedieva ficara zangada, por uns dias. Kólia, idem. Keller só deixou de ficar indignado depois que foi escolhido para padrinho; sem que seja preciso nos referirmos a Liébediev que logo começara a intrigar, ora a favor, ora contra o príncipe, movido por uma indignação verídica. (Sobre isso, aliás, falaremos mais tarde.)

Mas, em compensação, simpatizamos logo com algumas palavras proferidas por Evguénii Pávlovitch, vigorosas e profundamente psicológicas, ditas em cheio, e sem cerimônia alguma, em conversa com o príncipe, seis ou sete dias depois do que se passara em casa de Nastássia Filíppovna.

Temos de intercalar aqui que não só os Epantchín, mas todos aqueles que lhes estavam direta ou indiretamente ligados, julgaram melhor romper com o príncipe. O Príncipe Chtch... para citar um exemplo, ao encontrar Míchkin, virava a cabeça para o lado e não respondia à sua saudação.

Mas Evguénii Pávlovitch não receou comprometer-se, visitando o príncipe, embora visitasse também, e assiduamente, os Epantchín, que o recebiam com evidente cordialidade. Uma dessas visitas suas ao príncipe foi justamente na noite do dia em que os Epantchín deixaram Pávlovsk. Estava perfeitamente a par dos rumores em circulação, e, muito possivelmente, ajudava até a espalhálos. O príncipe alegrou-se de o ver e começou logo a falar nos Epantchín. Uma tal franqueza fez que Evguénii Pávlovitch também sentisse a língua solta, indo diretamente ao ponto, sem se vexar.

O príncipe ignorava que os Epantchín tivessem ido embora. De tão surpreendido, ficou lívido. Um minuto depois, meneava, porém, a cabeça, confuso e meditativo, concordando que “só podia ser assim”. E avidamente perguntou “para onde tinham ido”.

Enquanto isso, Evguénii Pávlovitch o examinava cuidadosamente, pasmado, e não à toa, ante a rapidez das perguntas, a ingenuidade e a inquietação, o sossego e o nervosismo, e simultaneamente, com isso tudo, ante essa franqueza inefável. Contou tudo, mas procurando ser delicado. Muitas coisas o príncipe ignorava e essa era a primeira pessoa do círculo dos Epantchín a visitá-lo. Confirmou o boato de que Agláia estivera doente, três dias e três noites, com febre, sem dormir. Que já estava, agora, bem melhor e fora de perigo, mas em um estado muito nervoso. Que, felizmente, tinham adotado uma boa política em casa, resolvendo não fazer a menor alusão ao passado, não só diante de Agláia, mas mesmo entre si. Que os pais já estavam pensando em uma excursão ao estrangeiro, no outono, logo depois do casamento de Adelaída, tendo Agláia recebido as primeiras insinuações sobre essa viagem em silêncio. Que ele, Evguénii Pávlovitch, muito provavelmente iria também até ao estrangeiro, podendo o próprio Príncipe Chtch.. sair. uns pares de meses, com Adelaída, caso os negócios permitissem. Mas que, quanto ao general, esse teria de ficar. Que se tinham mudado todos para Kólmino, a umas vinte verstás de Petersburgo, pois possuíam lá uma espaçosa mansão. Que a Princesa Bielokónskaia não voltara para Moscou, parecendo que ainda permanecia um pouco em Pávlovsk, propositadamente. Que a saída dos Epantchín de Pávlovsk fora conseqüência de uma resolução categórica de Lizavéta Prokófievna, envergonhada com o que acontecera. Que ele, Evguénii Pávlovitch, fora dos que mais cautelosamente tinham transmitido à generala os rumores que circulavam pela cidade, tendo-lhes parecido, por isso, impróprio mudarem-se para a vila de Ieláguin.

E, com efeito - acrescentou Evguénii Pávlovitch -, o senhor deve compreender que eles a custo poderiam enfrentar tudo isso... Principalmente sabendo do que se passa aqui em sua casa, príncipe! E ante a sua insistência, embora insistam em não o receber, de lhes ir bater todos os dias na porta.

- Sim, sim, sim! Tem razão. Mas eu queria ver Agláia - disse o príncipe, acenando com a cabeça três vezes.

- Ah! Querido príncipe - exclamou Evguénii Pávlovitch, com exaltação e tristeza -, como lhe haveriam de permitir uma coisa dessas, depois de tudo quanto aconteceu? Naturalmente, naturalmente! Foi tudo tão súbito! Compreendo que o senhor estivesse fora dos seus sentidos e não pudesse conter a pobre menina. Isso não estava em suas forças. Mas devia ter compreendido como e quanto o sentimento dela para com o senhor era intenso e sério. Pois se ela nem se dominou sabendo que havia na sua vida uma outra mulher... E o senhor pôde abandonar e despedaçar um tesouro como aquele?

- Sim, sim, sim! Tem razão. Sou muito culpado - recomeçou Míchkin, em uma terrível angústia.

- E o senhor sabe, só ela, só ela demonstrava essa consideração para com Nastássia Filíppovna. Só ela, mais ninguém.

- Sim, é isso que torna tudo ainda mais terrível, não haver nada de sério em tudo isso! - tentou explicar Evguénii Pávlovítch, deixando-se empolgar. - Há de me perdoar, príncipe, mas eu estive pensando muito, muitíssimo... nisso tudo. Estou a par de tudo o que aconteceu antes, de tudo quanto aconteceu há seis meses. E cheguei à conclusão de que nada disso tinha consistência. Foi só a sua cabeça, e não o seu coração, que se envolveu em uma ilusão, em uma fantasia, em uma miragem! E só o imaginoso ciúme de uma rapariga completamente inexperiente é que poderia ter tomado isso a sério!...

A esta altura, sem retalhar muito as coisas principais. Evguénii Pávlovitch deixou que toda a sua indignação  enfunasse. Raciocinando com clareza e, repetimos, com muita visão psicológica, traçou um quadro vívido das primeiras relações do príncipe com Nastássia Filíppovna. (Ele sempre tivera o dom da linguagem, mas esse momento lhe despertou uma eloqüência verdadeira.)

- Desde o primeiro minuto, tudo começou com falsidade. E o que nasce com a mentira, com a mentira morre; isto é uma lei da natureza. Não concordo e até me indigno quando alguém o chama de idiota. O senhor é inteligente demais para merecer essa classificação. Mas o senhor é tão estranho que não se assemelha a nós outros, vamos, concorde comigo. E então me veio à cabeça que o que está no fundo de tudo que aconteceu é a sua inata falta de experiência (marque bem esta palavra “inata”, príncipe!), a sua extraordinária ingenuidade, a sua fenomenal carência de noções de proporção (o que, alias, o senhor mesmo várias vezes reconheceu) e, finalmente, a enorme massa de convicções que, sendo, como no senhor são, intelectuais, o senhor cuidou que fossem inatas e intuitivas. Deve admitir, príncipe, que desde o começo houve em suas relações para com Nastássia Filíppovna um elemento convencional democrático (uso esta expressão por brevidade), uma fascinação, por assim dizer, pelo caso “mulher” (para expressar-me outra vez com brevidade). Sei todas as minúcias da cena escandalosa que se passou em casa de Nastássia Filíppovna quando Rogójin trouxe o dinheiro. Se prefere, posso analisar tudo, contando pelos meus dedos, ou lhe mostrando em um espelho, para o senhor assim se certificar de que realmente sei como tudo isso foi, como acabou, e no que acabou. Na juventude, lá da Suíça, anelava pela Rússia, e pensava no seu país natal como em uma terra da promissão. Lá leu uma porção de livros sobre a Rússia, excelentes livros, decerto, porém perniciosos para o senhor. Depois veio para cá, sequioso de bem-fazer e, se bem me exprimo, de meter mãos à obra. Exatamente no primeiro dia da sua chegada, a triste e lancinante história de uma mulher aviltada lhe chega aos ouvidos. O senhor, um cavalheiro virginal, a escutar a história de uma dama! Naquele mesmo dia viu essa mulher e ficou maravilhado ante tão fantástica e demoníaca beleza! (Concordo que ela seja bonita, naturalmente!)

Junte a isso os seus nervos e a sua epilepsia, junte a isso o degelo de Petersburgo, que estraçalha os nervos.

Junte tudo isso em um só dia, em uma cidade desconhecida e quase fantasmagórica. Um só dia com tantas peripécias e encontros, um só dia com tão inesperados conhecimentos, Hora sobre hora, da mais surpreendente realidade, o encontro com as três beldades Epantchin. E Agláia entre elas.

Depois, a sua fadiga, o torvelinho na sua cabeça e, ainda por cima, a sala de Nastássia Filíppovna, o diapasão dessa sala! E... que poderia o senhor esperar? Diga-me, vamos, que pensa de tudo isso?

- Sim, sim! Sim, sim! - O príncipe abaixou a cabeça e começou a mudar de cor.

- Tem razão. Foi o que aconteceu, realmente. E, sabe o senhor, mal dormi, ou melhor, não dormi absolutamente naquele trem, nem naquela noite nem na anterior. Estava pavorosamente exausto.

- Pois decerto! E é o que estou procurando demonstrar - acudiu Evguénii Pávlovitch.

- Intoxicado, por assim dizer, pelo entusiasmo, logo se lhe deparou o ensejo de proclamar, publica-mente, a generosa idéia de que o senhor, um príncipe por nascimento, e um homem de vida ilibada, não considerava desonrada uma mulher arremessada à vergonha não por culpa própria e sim por um repugnante aristocrata libertino. Deus do Céu, naturalmente que se entende isso! Mas esse não é o ponto, meu caro príncipe. O ponto é saber se houve realidade, se houve sinceridade em suas emoções; se o que houve foi sentimento natural ou entusiasmo intelectual. Que pensa disto? A mulher, no templo, realmente foi perdoada - uma mulher justamente como esta. Mas não lhe foi dito que agira bem e que todo o respeito lhe era devido. Não émesmo? Não lhe disse o senso comum, três meses depois. qual o verdadeiro estado da questão? Não desejo criticá-la, mas poderiam todas as aventuras dessa mulher justificar o seu intolerável e diabólico orgulho e o seu insolente egoísmo rapace? Perdoe-me, príncipe, se me deixei arrastar por tudo isso, mas...

- Sim, talvez tudo seja assim. Talvez tenha razão...- tornou a concordar o príncipe. - Ela é muito suscetível... O senhor está certo, mas..

- Que é merecedora de compaixão? É o que quer dizer, meu magnânimo amigo? Mas como pôde, atrapalhando-se com a compaixão, servir o prazer de uma mulher para envergonhar outra? E esta, uma pura e suave moça que o senhor consentiu que uns olhos altivos e rancorosos humilhassem! Ao que o vai levar a compaixão, ainda? A um exagero que ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Como pôde o senhor, amando uma jovem, humilhá-la perante a rival, e, por causa da rival, deixando-a assim, depois do senhor mesmo lhe haver feito uma proposta de casamento honorabilíssima? Não lhe fez o senhor esse pedido, essa proposta? Sim, o senhor o fez, e diante dos pais e das irmãs. Chama-se ainda, depois disso, um homem de bem? Permita que lhe pergunte, príncipe? E... o senhor não iludiu essa adorável criatura quando lhe disse que a amava?

- Sim! Sim! Tem razão! De fato eu me sinto culpado! - repetiu o príncipe, tomado de inenarrável angústia.

- Mas acha que isso é o bastante? - insistiu Evguénii Pávlovitch, indignado. - Acha que basta gritar: “Ah, mereço todas as censuras!”? Sim, é digno de censura, mas persiste! E onde estava o seu coração, então, o seu coração de cristão? Ora, não viu o rosto de Agláia, naquele momento? Bem, e estava ela sofrendo menos do que a outra, do que essa outra mulher que se interpôs entre ela e o senhor? Como foi que viu isso e permitiu? Como pôde permitir?

- Mas.., eu não permiti! - balbuciou o desgraçado príncipe.

- Não permitiu?

- Sim, não permiti coisa nenhuma! Até agora não compreendo como tudo aquilo se passou. Eu... eu ia a correr atrás de Agláia Ivánovna, mas justamente naquele instante Nastássia Filíppovna caiu desacordada. Desde então não me deixaram mais ver Agláia IVánovna.

- Deixe disso! O ataque não importava! De qualquer forma o senhor devia ter corrido atrás de Agláia! Mesmo que a outra desmaiasse!

- Sim, sim! Devia ter feito isso, sim! Ela podia, porém, ter morrido; o senhor não sabe. Ela poderia até se matar, o senhor não a conhece... Depois, que é que tinha? Eu contava depois tudo a Agláia e então... Evguénii Pávlovitch... Mas vejo que o senhor não sabe nada. Diga-me, por que não me hão de deixar ver Agláia Ívánovna? Eu já teria explicado tudo a ela. Para que se puseram as duas a falar de coisas erradas?... Foi por isso que aconteceu tudo aquilo. Ao senhor é difícil explicar. Mas a Agláia eu posso. Ah! A pobrezinha! A pobrezinha! E o senhor a me recordar ainda o rostinho dela quando se foi embora. Então eu poderia esquecer?

- Vamos lá! Temos de ir! - Pulou subitamente e puxou Evguénii Pavlovitch.

- Ir aonde?

- Ver Agláia Ivánovna, vamos imediatamente!

- Mas não está mais aqui em Pávlovsk, estou lhe dizendo.

- E ir, para quê?

- Ela compreenderá, ela compreenderá! - bradou o príncipe, implorando, com as mãos juntas. - Ela compreenderá que não se trata do que aconteceu, mas de alguma coisa mais! Alguma coisa bem diferente!

- Que quer dizer com mais essa coisa “diferente”? Só se é para dizer que se vai casar com a outra! Pois o senhor persiste, não é? O senhor vai, ou não vai se casar?

- Vou sim. Vou sim!

- Então, como é que “há uma outra coisa diferente”?

- Não é isso, não é isso. O eu me ir casar não quer dizer nada, absolutamente nada.

- Como não quer dizer nada? Não tem importância? Ora, a mim me parece que não se trata de uma coisa à-toa, acho eu! Vai se casar com uma mulher que ama, para a tornar feliz. E Agláia Ivánovna vê e sabe disso. E como é que ainda acha que não tem importância?

- Fazê-la feliz? Oh! Não! Apenas vou me casar com ela. E ela quem quer. E que tem que eu case com ela?

- Eu... Oh!... Nada disso tem importância! Assim ela não morre. Casar-se com Rogójin é que seria uma loucura! Compreendo agora tudo quanto não compreendi antes. E, veja o senhor, quando elas estavam lá, uma em face da outra, não pude suportar o rosto de Nastássia Filíppovna... O senhor não sabe, Evguénii Pávlovitch - o príncipe abaixou a voz, misteriosamente -, eu nunca disse isto a ninguém, nem mesmo a Agláia, mas eu não posso suportar o rosto de Nastássia Filíppovna. O senhor tinha razão quando ainda há pouco falava daquela noite em casa de Nastássia Filíppovna: mas deixou de dizer uma coisa que ignora. Já naquela manhã, quando olhei o retrato dela, não pude suportar aquele rosto!... Veja por exemplo os olhos de Vera; não são uma coisa muito diferente? Eu... eu tenho medo do rosto dela! - acrescentou com extraordinária expressão de terror.

- Tem medo?

- Sim. Ela é louca -  ciciou ele, empalidecendo.

-  Tem certeza? - perguntou Evguénii Pávlovitch, com extremo interesse.

- Tenho sim. agora, tenho. Certifiquei-me, destes ultimos dias para cá.

- Mas que é que está fazendo, então, príncipe? - O pavor também se estava comunicando a Evguénii Pávlovitch. - Então vai se casar com ela por causa de uma espécie de medo? Mas não se compreende! Sem mesmo a amar, talvez?

- Oh! Não. Eu a amo com todo o meu coração. Ora... ela é uma criança! Agora ela não passa de uma criança. Completamente! Uma criança! Oh! O senhor não entende essas coisas.

- E ao mesmo tempo declara que ama Agláia Ivánovna?

- Oh! Sim, sim!

- Mas como? Então ama a ambas?

- Oh! Sim, sim!

- Palavra de honra, príncipe, pense no que está dizendo!

- Sem Agláia, eu sou... Preciso absolutamente ver Agláia! Eu... eu vou morrer qualquer dia destes, durante o sono! Ainda a noite passada tive a sensação de estar morrendo... Oh! Se Agláia soubesse, se ela ao menos pudesse vir a saber tudo, mas absolutamente tudo, entende? Pois em um caso destes se precisa vir a saber de tudo, isso é que importa! Por que é que nós nunca chegamos a saber tudo relativamente a uma outra pessoa, principalmente quando se censura essa pessoa? Não sei mais o que estou dizendo. Estou zonzo. O senhor me assombrou... Será que ela ainda tem a mesma expressão no rosto, como na hora em que fugiu? Provavelmente éminha a culpa toda. Não sei bem como, mas a culpa é minha. Há em tudo isso qualquer coisa que eu não lhe posso explicar, Evguénii Pávlovitch. Não posso achar as palavras, mas... Agláia... Agláia compreenderia. Eu sempre acreditei que ela compreenderia.

- Não compreenderia não, príncipe. Agláia o amou como mulher, como ser humano e não como espírito abstrato. Quer saber de uma coisa mais do que provável, príncipe? O senhor nunca amou nenhuma delas!

- Sei lá! Talvez.., talvez seja isso. O senhor tem razão em muita coisa, Evguénii Pávlovitch. O senhor é muito inteligente! Ah! A minha cabeça está começando a doer, outra vez. Pelo amor de Deus, vamos à casa dela! Pelo amor de Deus!

- Mas já lhe disse que não está em Pávlovsk. Foi para Kólmino.

-  Então vamos a Kólmino, imediatamente.

- Isso é impossível - declarou Evguénii Pávlovitch, peremptóriamente, levantando-se. - Ouça. escreverei a ela. O senhor leva a carta.

- Não, príncipe. não! Poupe-me essa incumbência. Não posso.

Despediram-se. Evguénii Pávlovitch saiu com profundas impressões, concluindo de tudo isso que o príncipe não estava em seu juízo perfeito. “Que quereria ele significar com aquele rosto que quanto mais temia mais amava? E quem sabe se realmente não viria a morrer sem ver Agláia, de modo a ela nunca vir a saber quanto ele a amava? Ah!... Pode-se amar duas pessoas ao mesmo tempo? Bem misterioso que isso é... Pobre idiota! Doravante, que será dele?”

 

Mas o príncipe não morreu antes do casamento, aquele seu pressentimento, confiado a Evguénii Pávlovítch, de que morreria talvez até mesmo à noite, durante o sono, não se tendo realizado.

Continuou dormindo pouco e assim mesmo com pesadelos; mas, de dia, no meio de gente, era amável e parecia sem preocupações, só se perdendo em cismas quando estava sozinho. O casamento fora apressado, já tendo sido fixado, devendo se realizar uma semana depois daquela visita de Evguénii Pávlovitch. Tal pressa embaraçaria seus melhores amigos, caso os tivesse, de salvar o “pobre maluco”. Ao que constava, o General Epantchín e senhora tinham sido, parcialmente, os responsáveis pela visita de Evguénii Pávlovitch. Mas, se na imensa bondade de seus corações, neles podiam desejar salvar o pobre lunático da ruína, era difícil ir além desse fraco esforço, a sua posição e mesmo a sua inclinação sendo incompatíveis com qualquer ação mais pronunciada.

Já mencionamos aqui que muitos dos que formavam a roda do príncipe se opuseram a ele. Vera Liébedieva só teve o recurso de se fechar na solidão do cômodo que habitava, onde, por entre lágrimas, deixou o príncipe sem sua habitual assistência. Kólia estava nessa ocasião ocupado com os funerais do pai, pois o velho general viera morrer de um segundo ataque que lhe sobreveio oito dias após o primeiro. O príncipe, com a mais fervorosa simpatia, se associou ao luto da família, passando nos primeiros dias várias horas ao lado de Nina Aleksándrovna. Assistiu ao funeral e ao serviço na igreja. A muita gente não passou despercebido que a chegada e a saída dele, da igreja, dera lugar a sussurros entre a assistência que lá estava. Também nas ruas e no jardim, ao passar, mencionavam-lhe o nome, apontando-o, passando ele indiferente aos sussurros entre os quais se distinguia o nome de Nastássia Filíppovna. Cuidaram até que ela tivesse ido aos funerais, mas não a encontraram. Outra pessoa que primou pela ausência foi a viúva do capitão, impedida de tal desplante por Liébediev. A cerimônia do sepultamento causou aflitiva e forte impressão no príncipe que, em resposta a algumas perguntas de Liébediev, confessou que era a primeira vez que assistia a um funeral ortodoxo, apenas guardando vaga lembrança de um outro, na sua infância, na igreja da sua aldeia.

- Sim, nem parece que a pessoa que está no caixão seja a mesma que elegemos presidente ainda no outro dia, não é, príncipe? Por quem está o senhor procurando?

- Oh! Ninguém. Pareceu-me...

- Rogójin?

- Por quê? Ele veio?

- Sim, está lá dentro, na igreja.

- Tive a impressão de haver visto os olhos dele. - Míchkin estava confuso.

- Mas por que veio? Foi convidado?

- Nem pensaram nele. Ora, não o conhecem, sequer! Veja que multidão! Há gente de toda espécie! Mas o senhor parece estar espantado? Agora dei para encontrar sempre Rogójin. Na semana passada o encontrei quatro vezes em Pávlovsk.

- Pois eu, desde aquela vez.., nunca mais o vi - declarou o príncipe.

O príncipe lá consigo concluíra, já que Nastássia Filíppovna, nem sequer uma só vez, desde aquela noite, lhe dissera ter visto Rogójin. que este se andava retraindo, de propósito. Todo aquele dia esteve o príncipe perdido em raciocínio, ao passo que Nastássia Filíppovna, tanto nesse dia como de noite, estivera excepcionalmente vivaz.

Kólia, que havia feito as pazes com o príncipe antes da morte do pai, sugerira que devia escolher Keller e Burdóvskii para seus padrinhos (pois o casamento ia ser realizado com urgência e portanto precisava tê-los à mão). Garantira o bom comportamento de Keller e a sua provável serventia, não havendo sido necessário se referir a Burdóvskii, sabidamente uma pessoa quieta e sempre às ordens.

Nina Aleksándrovna e Liébediev chegaram a fazer ver ao príncipe que, já que o casamento era coisa determinada, não precisava ser em Pávlovsk, em uma estação de verão, tão à vista. Sugeriram que isso se realizasse em casa, e, melhor ainda, em Petersburgo.

Foi só então que o príncipe viu claramente o rumo que suas apreensões estavam tomando. Deu como resposta que não admitia comentários, e que esse era o desejo de Nastássia Filíppovna.

Um dia depois da escolha, foi Keller chamado para falar ao prIncipe, sendo então informado que seria o seu “padrinho”. Ficou parado à entrada, e, mal avistou Míchkin, levantou a mão direita, com o dedo polegar afastado dos outros, e jurou, como fazendo um voto:

- Não beberei mais!

Depois se aproximou do príncipe, apertou-lhe calorosamente a mão, sacudindo-a e anunciou que, na verdade, quando ouvira falar nesse casamento, tomara atitude hostil imediata, desancando-o pelos bilhares, pois se antecipara ao príncipe na escolha, diariamente, com a impaciência de um amigo, desejando para ele, no altar, toda de branco, pelo menos uma princesa de Rohan! Mas agora via com os seus próprios olhos que Míchkin procurara e acertara pelo menos doze vezes mais do que todos os amigos juntos! Pois não se importara com pompa, riqueza ou conceito público, só se importando com a verdade! Que as simpatias das pessoas exalçadas eram demasiado bem conhecidas e que o príncipe era demasiado sublime por sua educação para não ser uma pessoa exalçada, falando de um modo geral.

- Mas a ralé, a gentalha, julga diferentemente; na cidade, nas casas, nas reuniões, nas vilas, nos banhos públicos, nas tavernas e nos bilhares não se fala de outra coisa, senão do próximo acontecimento. Já me chegou aos ouvidos, por exemplo, que estão preparando uma serenata ao jeito de vaia, debaixo da sua janela, e isso, a bem dizer, na noite do casamento. Se o senhor vier a precisar da pistola de um homem honesto, estou pronto a trocar uma dúzia de tiros, como cavalheiro, na madrugada seguinte às núpcias.

Aconselhou também, como aviso prévio, já que na certa viria toda onda de almas imundas aglomerar-se diante da igreja, a se ter preparada a mangueira de jorrar água, diante da calçada. Mas Liébediev se opôs, temendo que o jorro da mangueira lhe derrubasse a casa.

- Este Liébediev está intrigando contra o senhor. príncipe, lá isso é que está. Queria pô-lo sob tutela quanto à sua liberdade e ao seu dinheiro, as duas coisas que distinguem cada um de nós de um quadrúpede! Ouvi, ouvi em boas fontes! É a santa verdade!

Míchkin então se lembrou já lhe ter sido rosnada uma coisa assim, a que naturalmente não prestara atenção.

Agora, desta vez, também simplesmente se riu e esqueceu de novo. Mas não havia dúvida que, de fato, Liébediev andara, por este tempo, muito ocupado. Os projetos deste homem nasciam de inspirações e, através do ardor com que se metia a ombro, se tornavam demasiado complexos desenvolvendo-se para lá de ramificações desde muito já afastadas do original ponto de partida. Essa a razão por que se atrapalhava em suas empresas. Quando, quase às vésperas do casamento, se dirigiu ao príncipe para expressar seu arrependimento (era um hábito dele vir expressar arrependimento àqueles contra os quais estivera intrigando, principalmente não tendo obtido êxito), declarou que nascera para ser um Talleyrand e não sabia como se tornar, um simples Liébediev. E então desvendara todo o seu jogo que escandalizou profundamente o príncipe. Segundo a sua história, começara por procurar a ajuda de certas pessoas de importância, com cujo apoio pensou contar em caso de necessidade.

Começara por procurar Iván Fiódorovitch. O general, embora perplexo, acreditou na boa-vontade do homem para com o príncipe, mas declarou que por mais que desejasse não lhe era possível agir nesse caso. Lizavéta Prokófievna não o quis ver nem escutar. Evguénii Pávlovitch e o Príncipe Chtch... simplesmente o despediram.

Mas Líébediev não era homem para perder assim a energia! E foi aconselhar-se com um advogado sagaz, um velho de experiência. seu amigo e até mesmo protetor. Dera-lhe este a opinião de que a coisa só era possível se testemunhas idôneas atestassem o desarranjo mental e a indubitável insanidade; e, ainda mais, pessoas de importância apoiando estas. Liébediev, nem com isso se desencorajou e teceu meios e modos de um médico, também homem de valor, já idoso, com uma condecoração, a cruz de Sant’Ana, e que estava em Pávlovsk, vir ver o príncipe, por assim dizer por acaso, para ver e apalpar o terreno, travando relações com ele e depois, não oficialmente, mas como amigo, dizer o que julgava dele. O príncipe recordava-se da visita desse médico. Recordava-se que, certa noite. Liébediev o amolara a respeito de não o achar bom; mas, vendo que o príncipe categoricamente recusara uma visita médica, Liébediev tparecera, assim por acaso, com o doutor, pretextando que tinham ambos vindo da casa de Ippolít Tieriéntiev, o qual vinha de piorar, que o doutor, ali, tinha muita coisa a dizer a Míchkin a respeito do doente. O príncipe louvara Liébediev e recebera o médico cordialmente. Puseram-se logo a discorrer sobre Ippolít. O doutor pediu ao príncipe que lhe fizesse um relato da cena do suicídio, bem minuciosa: e o príncipe quase o distraiu com a descrição e a explicação do acidente. Falaram, também, do clima de Petersburgo, das aflições de Míchkin, da Suíça e do Dr. Schneider. A discussão do sistema do Dr. Schneider e as histórias do príncipe a respeito dele interessaram tanto o médico que ficou duas horas e até fumou os excelentes cigarros do príncipe, enquanto Liébediev fora atrás de um licor que pouco depois Vera trouxe. E que o doutor, que era um homem casado e pai de família, se derramou em tais elogios a Vera que a acabaram indignando. Separaram-se como amigos. Tendo deixado o príncipe, o doutor disse a Liébediev que se uma pessoa como aquela devia ser posta sob vigilância, quem estaria apta a vigiá-la? E como resposta à trágica descrição de Liébediev quanto ao próximo acontecimento, o doutor abanara a cabeça, dissimulada e astutamente, observando que, mesmo excluindo o fato de que “não há ninguém com quem um homem não se possa casar”, a fascinante senhora, além de ser incomparavelmente bela, o que só bastava para atrair um homem rico, também - assim, pelo menos, tinha ouvido - possuía uma fortuna, advinda de Tótskii e de Rogójin, em pérolas, diamantes, xales e móveis. Por conseguinte, a escolha do príncipe, longe de ser uma forma peculiar, ou melhor evidente de loucura, era, antes, um testemunho da perspicácia de sua sabedoria mundana e da sua prudente previdência, levando, portanto, à conclusão inteiramente oposta, a favor, com efeito, do príncipe...

Esta opinião impressionara de tal forma Liébediev que não prosseguiu, tendo chegado a dizer a Míchkin:

- E agora, não verá o senhor, em mim mais do que devoção e inteireza, pronto até a derramar meu sangue pelo senhor. Vim especialmente para lhe falar como estou falando.

Ippolít também distraiu o espírito do príncipe durante aqueles dias, em que foi chamado à casa dele várias vezes. A família estava vivendo em uma pequena casa não longe. Os menores, a irmã com o irmão de Ippolít, sentiam-se radiantes em Pávlovsk porque pelo menos aí podiam fugir do doente, escapando para o jardim.

A pobre viúva do capitão fora abandonada à sua mercê, sendo sua vítima de agora. O príncipe era obrigado a intervir e a pacificá-los todos os dias; e o doente ainda o apelidava de sua enfermeira menoscabando-o por tomar o papel de pacificador. Passaram a ter grande ressentimento por Kólia. visto este estar espaçando suas visitas, tendo, primeiramente, passado junto do pai moribundo e depois com a mãe viúva. Por fim fez Ippolít do casamento do príncipe com Nastássia Filíppovna o mote de escárnio, ofendendo tantas vezes, com isso, o príncipe, que este acabou se zangando, a ponto de deixar de visitá-lo. Mas logo daí a dois dias a viúva do capitão trotou para casa do príncipe, de manhãzinha, e implorou com lágrimas que fosse vê-lo, do contrário “aquele indivíduo seria a causa da morte dela”. Inventou até que o doente tinha um segredo para contar. Míchkin foi. Ippolít preparara tudo; chorou, e depois das lágrimas, naturalmente, ainda ficou mais estúpido e insolente do que antes, embora tivesse receado demonstrar o seu despeito. Estava tão mal que pelos indícios o fim estava perto. Não tinha segredo nenhum a dizer-lhe, e sim, apenas, algumas petições. E, sem ar, ou, para melhor dizer, com emoção (possivelmente envergonhado), avisou o príncipe “que se acautelasse contra Rogójín”. “É um homem que nunca largará de mão uma coisa. Ele não é como o senhor, ou eu, príncipe; se quiser uma coisa, nada o demoverá.”

O príncipe começou a interrogá-lo mais minuciosamente, tentando colher fatos, fosse como fosse. Mas fatos não havia e só sentimentos e impressões de Ippolít que para sua intensa satisfação conseguiu o que queria: sobressaltar o príncipe, de modo cabal. A princípio, o príncipe não quis responder a certas insinuações de Ippolít, apenas sorrindo ao seu conselho de “ir para o estrangeiro; que havia padres russos por toda parte, que se poderia casar por lá”. terminando com esta sugestão:

- É por causa de Agláia Ivánovna que eu receio, o senhor sabe. Rogójin sabe quanto o senhor a ama. É um caso de amor por amor. O senhor lhe roubou Nastássia Filíppovna! Ele então matará Agláia Ivánovna; e muito embora ela não seja sua, o senhor ficará sentido, pois não é?

Conseguiu o seu fim; o príncipe deixou-o, partindo completa mente zonzo.

Estas advertências relativas a Rogójin foram feitas na véspera do casamento. A tarde, o príncipe viu Nastássia Filíppovna pela última vez antes do casamento. E ela não estava em estado de o deixar sossegado.

Pelo contrário, ultimamente o pusera mais e mais apreensivo. Até aquela tarde, isto é, dias antes quando ela o via, se esforçava por encorajá-lo, estando terrivelmente assustada com a sua expressão melancólica. Chegou a cantar para ele. Coisas assim alegres, que lhe vinham à mente, ao que o príncipe, fingindo, ria cordialmente.

Algumas vezes, porém, ele ria de verdade ante a maneira brilhante, o talento e o sentimento puro que ela punha ao lhe contar histórias, deixando-se levar pelo assunto, inefavelmente. Alegrava-a a alegria do príncipe e começava a orgulhar-se dele. Mas, de hora a hora, a tristeza e a ansiedade cresciam mais marcada mente nele. A sua opinião sobre Nastássia Filíppovna estava feita, senão a atitude dela lhe pareceria incompreensível e enigmática; acreditou, porém, que ela se refaria. Fora sincero quando disse a Evguénii Pávlovitch que a amava verdadeira e sinceramente e que em seu amor havia um elemento de ternura para com uma criança doente e infeliz que não podia ser deixada entregue a si mesma. Não explicou a mais ninguém o seu sentimento por ela e de fato o desagradava falar nisso quando lhe era impossível evitar o assunto. Quando estavam os dois juntos, não discutiam “os seus sentimentos”, como se nisso houvesse uma tácita promessa mútua. Qualquer pessoa podia testemunhar a alegria e a agitada conversação diária de ambos. Dária Aleksiéievna costumava dizer, muito depois, que não fizera outra coisa aqueles dias senão admirar-se e rejubilar, olhando-os.

Mas a sua noção sobre a condição mental e espiritual de Nastássia Filíppovna, em certo grau o poupava de muitas perplexidades. Ela, agora, era uma mulher completamente diferente da mulher que conhecera três meses antes. Não achou paradoxal, por exemplo, que ela, que preferira fugir a casar com ele, e fugir com lágrimas de maldições e de reprimendas, insistisse agora no casamento, o que o fez acreditar que ela já não julgava mais que tal casamento o desgraçaria. Tão rápida prova de confiança em si mesma, no ver do príncipe, não parecia natural; e muito menos decorrer apenas do seu ódio para com Agláia Ivánovna, conquanto fosse capaz de sentir sobremaneira tal ódio. Não podia provir também do temor do seu destino com Rogójin. muito embora tanto esta como as outras coisas pudessem sedimentar dentro dela. Mas o que claramente ficava patente ao seu espírito era a desconfiança antiga: isto é, que aquela pobre alma estivesse estilhaçada. Se tais conhecimentos lhe poupavam perplexidades, não eram de molde; todavia, a lhe dar paz e sossego. todo esse tempo.

As vezes experimentava não pensar em nada disso; punha-se a encarar o seu casamento apenas como qualquer formalidade comum: muito menos se inquietava com o próprio destino. Quanto a certos protestos, como no gênero dos da conversa com Evguénii Pávlovitch. se sentia totalmente incapaz de responder a eles, tal incapacidade sendo de tal ordem que o melhor era esquecer qualquer referência.

Percebeu porém que Nastássia Filíppovna sabia e compreendia perfeitamente bem tudo quanto Agláia Ivánovna significava para ele. Nunca lhe dissera nada, mas naqueles dias em que ele teimara em ir à casa dos Epantchín, o rosto dela mostrava bem sua apreensão; esse rosto só tendo ficado calmo e radiante quando ela veio a saber que tal família deixara Pávlovsk.

Embora fosse o príncipe pouco perspicaz, o pensamento de que Nastássia Filíppovna podia armar algum escândalo para obrigar Agláia a sair de Pávlovsk, tinha-o atormentado até a partida dos Epantchín. As conversas e o nervosismo em todas as vilas de Pávlovsk por causa de tal casamento eram sem dúvida sustentados por Nastássia Filíppovna com o proposito de irritar a sua rival. E como, naqueles dias, fora difícil encontrar os Epantchín, Nastássia Filíppovna deu um jeito de passar em frente das janelas deles, com o príncipe ao lado, na carruagem. O príncipe caiu nessa armadilha, só percebendo, e muito surpreso (o que estava de acordo com seu atarantamento), quando a caleça já se achava rente à fachada ejá era tarde demais para evitar o escândalo. Não ousou fazer nenhuma reprimenda, mas ficou doente dois dias de onde ela não repetir a experiência. Nos dias anteriores à data do casamento, ela teve crises de tristeza. Conseguia disfarçar. Recalcava a melancolia, tornava-se cada vez mais carinhosa e meiga, mas não com o antigo arrebatamento de felicidade. O príncipe redobrou de atenção. Intrigou-o, como fato curioso, nunca lhe falar de Rogójin A não ser certa vez, uns cinco dias antes da data do casamento; é que Daria Aleksiéievna lhe mandou recado urgente para que viesse imediatamente, visto Nastássia Filíppovna estar em um estado terrível.

Encontrou-a a gritar, a chorar e a tremer, dizendo que Rogójin estava escondido no jardim, em sua casa! Que tinha acabado, ainda agora, de vê-lo! Que ele a ia matar, de noite, que lhe ia cortar a garganta! Não houve meio de acalmá-la. Mas, indo já bem depois Míchkin ver Ippolít, a viúva do capitão, que acabava de chegar da cidade onde fora a pequenos negócios seus, lhe contou que Rogójin fora nesse dia ao seu cômodo e lhe fizera lá perguntas a respeito de Pávlovsk. Em resposta ao relato do príncipe respondeu ela que Rogójin tinha estado a falar com ela justamente na hora mesma de suspeita de estar no jardim da casa de Nastássia Filíppovna, ficando pois, tudo explicado como pura imaginação. Nastássia Filíppovna depois de fazer insistentes perguntas à viúva do capitão, acabara ficando grandemente aliviada.

Mas, na véspera do casamento, deixara-a o príncipe em grande excitação. O enxoval tinha chegado do costureiro, de Petersburgo.

O vestido nupcial, o véu de noiva, e assim por diante. O príncipe não julgava que à vista do vestido ela ficasse tão nervosa. Gostou de tudo e, segundo as suas expressões, estava mais feliz do que nunca. Mas deixou também deslizar o que estava em seu espírito; que ouvira que na cidadezinha havia rancor; que os boêmios da praça estavam preparando uma espécie de demonstração, uma espécie de charivari, com música e versos compostos para o momento, tudo com a aprovação geral da sociedade de Pávlovsk. E que, por isso mesmo, queria erguer a cabeça ainda mais alto do que nunca, diante deles, para deslumbrá-los a todos com o bom gosto e a riqueza de seus enfeites. “Deixá-los sussurrar! Que me valem, se são capazes!” E os seus olhos dardejavam, ante o só pensamento disso. Tinha um outro pensamento secreto que não exteriorizou alto.

Esperava que, por dados motivos, Agláia ou, a seu mando, qualquer outra pessoa, estivesse também no meio dos curiosos quando houvesse aglomeração, ou às escondidas na igreja. E secretamente se preparava. Eram onze horas da noite quando se separou do príncipe, ficando absorta em tais pensamentos. Mas antes de soar a meia-noite um mensageiro chegou correndo; queria falar com o príncipe, da parte de Dária Aleksiéievna, que lhe rogava ‘que viesse imediatamente, que ela estava muito mal”.

Encontrou o príncipe sua noiva na cama, chorando, em desespero, em uma grande crise, durante muito tempo não dando resposta ao que lhe era dito através da porta fechada. Por fim, abriu, não deixou entrar mais ninguém, senão o príncipe. Caiu de joelhos, diante dele assim, pelo menos, Dária Aleksiéievna. que conseguiu espiar, contou depois).

- O que estou fazendo? O que estou fazendo? O que estou fazendo de ti? - gritava, abraçando-lhe os pés, convulsivamente.

O príncipe teve de passar uma hora inteira com ela. Não sabemos sobre que conversaram. Contou Dária Aleksiéievna que se separaram despedindo-se em paz e felicidade. E que, durante a noite, o príncipe mandara uma vez saber notícias dela, lhe tendo sido dito que caíra em profundo sono.

De manhã, antes mesmo dela ter acordado, dois recados tinham sido mandados perguntando por ela a Dária Aleksiéievna, sendo que um terceiro mensageiro veio de lá, depois, dizendo que havia um verdadeiro enxame de costureiros e cabeleireiros de Petersburgo, em volta de Nastássia Filíppovna, agora, não havendo nem traço da balbúrdia da véspera ou da noite. Que estava ela toda atarefada em se embelezar, preparando a toilette do casamento. E que bem neste minuto, agora. havia uma importante consulta a respeito de quais diamantes devia pôr, e como pô-los.

O príncipe ficou completamente calmo.

A narração do que se seguiu, durante a cerimônia, me foi dada por pessoa que assistiu a tudo. E creio que contou corretamente.

Estava o casamento marcado para as oito horas da noite. Mas, às sete, Nastássia Filíppovnajá estava quase completamente pronta. Uma turba fervilhante começara a ajuntar-se desde as seis em volta da vila de Liébediev. E outra, ainda maior, diante da casa de Dária Aleksiéievna. A igreja começara a encher desde as sete horas. Vera Liébedieva e Kólia achavam-se muito nervosos, por causa de Míchkin, embora estivessem muito ocupados preparando a recepção e os refrescos nos apartamentos do príncipe, apesar dos convidados não serem em grande número. Além das pessoas indispensáveis, estariam presentes Liébediev, os Ptítsin, Gánia, o doutor com a sua cruz de Sant’Ana ao pescoço, e Dária Aleksiéievna como convidada também. Tendo sido perguntado ao príncipe por que fora o doutor convidado, sendo “homem que mal conhecia”, respondeu complacentemente:

- Em consideração ao seu busto condecorado; como se trata de pessoa muito respeitada, convém ao estilo da coisa! - E riu.

Keller e Burdóvskii, em trajes de gala, de luvas, pareciam estar corretos; apenas Keller tendo perturbado outra vez o príncipe e seus partidários, pela insistência que não era lá muito distinta, agora, de brigar, lançando olhares assaz hostis, da janela e da porta, à onda de curiosos que cercava a casa.

Por fim, às sete e meia, o príncipe saiu para a igreja, de carro. Queremos observar que ele, particularmente, não quis omitir nenhuma das cerimônias usuais, tudo devendo ser feito, abertamente. publicamente e na “devida ordem”. Tendo feito, como foi possível, a sua passagem por entre a multidão, na igreja, escoltado por Keller, que ainda dardejava olhares ameaçadores para a direita e para a esquerda, e seguido de um contínuo fogo de sussurros e exclamações, o príncipe desapareceu temporariamente atrás do altar-mor da igreja, enquanto Keller saiu para ir buscar a noiva na casa de Dária Aleksiéievna, lá encontrando uma multidão duas ou às vezes maior e mais estouvada e crepitante do que a que rodeava a casa do príncipe. Ao subir a escada ouviu exclamações que ultrapassavam sua capacidade de paciência e já se ia voltar para dirigir uma arenga apropriada à ralé e à gentalha quando foi impedido disso, ainda a tempo, por Burdóvskii e Dária Aleksiéievna.

Contendo-o, obrigaram-no a entrar. Keller era todo irritação e pressa. Nastássia Filíppovna levantou-se, olhou-se ainda ao espelho, observando-se com um sorriso contrafeito, conforme depois Keller contou, “tão pálida como a morte”, inclinou-se com toda a devoção para o ícone e se dirigiu para os degraus.

Um zumbido de vozes, quase clamor, saudou a sua aparição. No primeiro instante é verdade que houve sons de risos e aplausos, talvez mesmo assobios; mas, dentro de um momento, começaram a ser ouvidas coisas assim:

- Que beleza! - exclamavam de dentro da multidão.

- Não é a primeira e nem será a última!

- Vai cobrir tudo com a cauda do vestido nupcial!

- Uma beleza destas não se acha tão depressa! - gritaram os que estavam mais perto.

- Hurra!

- Que princesa! Por uma princesa assim, vendo a alma! - gritou um serventuário que avaliou:

- “Uma noite pelo preço de uma vida!”

Nastássia Filíppovna evidentemente estava tão branca como um lenço, quando apareceu com os seus grandes olhos postos sobre a multidão. Olhos que pareciam carvões acesos. Toda a turba, agora, era a seu favor, pois a indignação se tinha transformado em gritos de entusiasmo. E a porta da carruagem já estava aberta, e Keller já oferecia o braço à noiva, quando ela, de súbito, deu um grito e enveredou por entre a multidão. Todos, acompanhando-a com os olhares, ficaram petrificados de pavor. A multidão abriu-se para lhe dar passagem. E nisto, a cinco ou seis passos do último degrau, apareceu Rogójin. Nastássia Filíppovna lhe descobrira os olhos no meio da multidão. Arremessou-se na direção dele, como uma criatura que enlouqueceu; agarrou-se a ele, com as duas mãos, gritando:

- Salve-me. Leve-me daqui. Para onde quiser, já!

Tomando-a nos braços, Rogójin a carregou para a sua carruagem. Em um relance puxou uma nota de cem rublos, entregando-a ao cocheiro.

Para a estação da estrada de ferro. Se pegarmos ainda o trem, mais outra nota igual!

Disse e pulou para dentro da carruagem onde já estava Nastássia Filíppovna; e bateu a porta. O cocheiro não hesitou um momento. Fustigou os cavalos. Keller deu explicações, depois que tinha sido pegado de surpresa! “Um minuto só, mais, e eu voltaria a mim e não os teria deixado fugir”, explicou, ao descrever a aventura. Burdóvskíi pensou em tomar uma outra carruagem que se encontrava ali perto, ao lado, e correr em perseguição de Rogójin, mas refletiu, quando já estava para sair, considerando que “de qualquer forma era demasiado tarde e ninguém a iria trazer à força”.

- E o príncipe não haveria de querer isso, não! - decidiu Burdóvskii, tremendamente agitado.

O carro, ao galope dos animais, chegou à estação, ainda a tempo. Rogójin e Nastássia Filíppovna saltaram a correr. E quando Rogójin já estava a subir para o trem, fez parar uma meninota que se achava com um manto preto, ainda decente, embora usado, e com um lenço de seda na cabeça.

- Quer cinqüenta rublos por isso? - perguntou, instantaneamente, estendendo o dinheiro para a rapariga que ficou espantada, sem saber se segurava ou não o dinheiro. E logo Rogójin lhe arrebatou manto e lenço que jogou aos ombros e à cabeça de Nastássia Filíppovna. Sua toilette fora do comum despertaria atenção durante a viagem. E foi só depois, quando os viu desaparecer no vagão, que a rapariguinha compreendeu qual a serventia do seu manto velho e do lenço barato.

A notícia do que acabara de acontecer chegou à igreja com uma rapidez assombrosa. Quando Keller entrou como um raio, muitas pessoas se precipitaram para ele a fazer-lhe perguntas. Ninguém saiu da igreja que burburinhava de falatórios, risadas e movimentos de cabeças. O que todo o mundo queria era ver como o noivo receberia a notícia.

Ele recebeu a comunicação com aparente calma: apenas ficou pálido e teve certa dificuldade em dizer:

- Eu tinha qualquer receio, mas nunca pensei que isto viesse a acontecer.

- E acrescentou depois de breve pausa: - Contudo, está na ordem natural das coisas, principalmente tendo em vista o estado dela.

Até Keller falou depois sobre tal observação do príncipe como sendo de “uma filosofia incomparável”.

Aparentemente calmo e resignado, o príncipe deixou a igreja: pelo menos assim muita gente teve a impressão e comentou depois, tinha o ar de querer veementemente ir embora para casa e ficar sozinho, nem isso lhe tendo sido de todo permitido, pois vários convidados o acompanharam até aos seus aposentos: Ptítsin, Gavríl Ardalíónovitch e o médico que, como os outros, não pensou em tão cedo ir embora. Era mais do que natural que a casa em pouco estivesse literalmente rodeada de gente desocupada. Lá da varanda, Míchkin ouvia Liébediev e Keller, furiosos, afastando pessoas desconhecidas que só por estarem regularmente vestidas se julgavam no direito de ir entrando. A algumas delas que se adiantaram se dirigiu o príncipe, perguntando do que se tratava, polidamente afastando Keller e Liébediev. Depois se encaminhou para um cavalheiro corpulento, de cabeça grisalha, parado diante dos degraus, àfrente de um dos tais grupos, e cortesmente o convidou a honrá-lo com a sua entrada. Um tanto desconcertado, o homem entrou, seguido logo depois de um segundo e um terceiro. Até que do grupo entraram bem uns oito, que conseguiram isso de maneira desenvolta.

Depois do que, não houve mais quem se arriscasse a se ajuntar àqueles, pondo-se até alguns, cá de fora, a censurar os outros que, no entanto, lá dentro se assentavam, desmanchando-se em conversa e aceitando o chá que lhes era oferecido. Tendo isso, da parte do príncipe, sido feito com modéstia e espontaneidade, a surpresa dos recém-chegados se foi transformando em grata expectativa. Ficaram, naturalmente, tentando reanimar a conversa e encaminhá-la para o tema que jazia culminante em seus espíritos. Arriscaram umas perguntas indiscretas, também tendo sido proferidas certas observações. O príncipe respondeu a tudo com tanta simplicidade e cordura e, ainda por cima, com tamanha dignidade e confiança na bem educada intenção dos convidados que a atmosfera de curiosidade se extinguiu por si mesma. Pouco a pouco a conversa enveredou para outras coisas, aliás sérias. Um cavalheiro, por exemplo, pegando no ar qualquer palavra, jurou, repentinamente, com intensa indignação, que não venderia a sua propriedade, acontecesse o que acontecesse, mas que, muito pelo contrário, iria contemporizando, e que “possuir imóveis era melhor do que dinheiro”.

- Este é que é o meu sistema econômico, meu caro senhor, e não há mal nenhum em comunicar este meu ponto de vista. - Dirigia-se ao príncipe que calorosamente levou em apreço aquelas palavras, até que Liébediev lhe disse ao ouvido, disfarçando, que aquele indivíduo não tinha lar, nem casas nem propriedade de espécie alguma. Quase uma hora se passou nisto e o chá acabou, ficando então as visitas sem jeito de permanecer mais tempo. O doutor e o cavalheiro dos cabelos grisalhos despediram-se efusivamente de Míchkin, pondo-se também os demais em debandada, despedindo-se com ruidosa cordialidade, expressando a opinião de que não era preciso ninguém se afligir, que tudo acabaria da melhor forma, e assim por diante. Antes tinha havido tentativas de pedir champanha, acabando, porém, as pessoas mais velhas por frear a rapaziada.

Depois que todos se foram embora, Keller se inclinou para Liébediev e lhe fez ver que “você e eu devíamos ter feito uma barreira, ter brigado, mesmo que nos desgraçássemos e fôssemos arrastados até a polícia! Mas ele fez uma porção de novos amigos. E que amigos! Conheço-os a todos”.

Liébediev que estava um pouco “alto” grasnou, por entre gesticulações:

- “Aos sábios e aos prudentes escondeste estas coisas mas as revelaste às criancinhas!” Já antes disse eu isto, referindo-me a ele. mas agora acrescentarei que Deus salvou a própria criança do báratro sem fundo. Ele e os Seus santos!

Enfim, lá para as dez e meia, o príncipe conseguiu ficar sozinho, Doía-lhe a cabeça. Kólia ajudou-o a mudar a roupa de casamento pelo terno diário e foi a última pessoa a deixá-lo, tendo-se despedido com muita efusão, sem falar no que havia acontecido, e prometendo vir bem cedo no dia seguinte. Depois, no inquérito, testemunhou que o príncipe não deixara escapar nenhuma insinuação ou pressentimento fosse sobre o que fosse, na hora de se despedirem, tendo pois escondido até dele suas intenções. E em breve não ficou mais ninguém na casa, tendo Burdóvskii ido ver Ippolít, e Keller com Líébediev saído decerto para beber. Apenas permaneceu, por algum tempo ainda, no apartamento do príncipe, Vera Liébedieva. E isto mesmo para apressadamente repor as coisas em seus costumeiros lugares, olhando, de relance, ao sair, para Míchkin que estava sentado, com os cotovelos fincados sobre a mesa e com a cabeça escondida entre as mãos. O príncipe voltou-se para ela, com surpresa, e por um minuto ficou como que a se querer recordar. Mas, recordando e reconhecendo as coisas, uma a uma, pouco a pouco foi começando a ficar agitado. O mais que fez, porém, foi pedir-lhe muito sério, que lhe batesse na porta, no dia seguinte, às sete horas, com tempo de ainda pegar o primeiro trem, tendo Vera dito que sim. Ao que o príncipe lhe rogou que não dissesse isso a ninguém. Ela tornou a prometer. E. quando já estava abrindo a porta para sair, o príncipe a chamou, uma terceira vez, tomoulhe as mãos, beijou-as, depois lhe beijou a testa e, de maneira um tanto esquisita, lhe disse:

- Até amanhã.

Assim, pelo menos, o descreveu Vera, depois.

Saiu, muito aflita, por causa dele. E, em verdade, só teve ânimo e sossego de manhã quando, às sete horas, lhe bateu à porta, conforme a combinação, informando-o que o trem para Petersburgo partiria dentro de um quarto de hora. E, pelo tom, lhe pareceu que ele respondera de forma natural e até mesmo afável. Disse, lá de dentro, que nem se despira, mas que tinha dormido um pouco. Que pensava voltar ainda hoje. Parecia, por  conseguinte, que ele julgara melhor e mais conveniente não dizer senão a ela, nesse momento, que ia à cidade.

 

Uma hora depois já chegava a Petersburgo. E logo um pouco depois das nove horas estava tocando a campainha da casa de Rogójin. Durante longo tempo, parado no vestíbulo do andar, não foi atendido. Insistiu.

Por fim a porta da ala ocupada pela mãe de Rogójin foi aberta por uma empregada idosa e de aparência respeitável que foi logo informando:

- Parfión Semiónovitch não está em casa. Com quem quer falar o senhor?

- Com Parfión Semiónovitch.

- Não está. - A criada olhava para o príncipe com uma curiosidade desatenciosa.

- Em todo o caso me informe se ele dormiu em casa esta noite, se chegou sozinho aqui, ontem! A velha continuava olhando para ele sem responder. - Esta noite passada não veio com ele, para aqui, Nastássia Filíppovna?

- Mas permita, por favor, que lhe pergunte: quem é o senhor? O Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Somos amigos íntimos.

- O  patrão não está em casa.

A mulher abaixou os olhos.

- E Nastássia Filíppovna?

- Não entendo o que o senhor está falando.

- Espere. espere! Quando é que ele volta?

- Quanto a isso, não sabemos tampouco.

E a porta fechou-se.

O príncipe resolveu voltar daí a uma hora justa. Deu uma olhadela ao pátio e viu o porteiro.

- Parfión Semiónovitch está em casa?

-  Sim, está.

- Como é que me disseram agora mesmo que não estava?

- Disse-lhe isso a empregada dele?

- Quem me disse foi a empregada da mãe dele. Toquei a campainha da porta dele, mas não obtive resposta.

- Talvez ele tenha saído - ponderou o dvórnik. - Ele nunca avisa, sabe? Às vezes leva a chave e as peças ficam fechadas até três dias seguidos.

- Veja se se lembra bem se ele esteve em casa ontem!

- Esteve sim. Às vezes entra pela porta da frente e a gente não vê.

- E não estava Nastássia Filíppovna com ele, ontem?

- Isso não posso dizer. Ela não vem muito por aqui. Penso, porém, que se tivesse estado, a gente teria visto, ou pelo menos sabido.

Perdido em pensamentos. o príncipe, tendo saído, começou a caminhar pela calçada oposta. para cima e para baixo. Reparara ja que as janelas do apartamento de Rogójin se achavam fechadas e que as do lado onde a mãe dele morava estavam quase todas abertas. Era um dia quente e luminoso. Lá da calçada fronteira tornou a olhar para cima. E então distinguiu que, além de fechadas. as janelas tinham entre as vidraças, cortinas brancas. Ficou parado algum tempo e teve, de repente, como que a impressão de que um canto de uma cortina fora afastado e logo largado, no ínterim entre uma coisa e outra lhe parecendo ter visto, de relance, a cara de Rogójin, em uma espécie de vislumbre. Esperou mais um pouco, depois resolveu voltar e tocar outra vez; refletindo porém melhor, resolveu esperar uma hora. “E quem sabe se não foi apenas imaginação minha...”

Mas essa resolução de adiar por uma hora fora subconsciente pressa de ir até Ismáilovskii Polk, ao apartamento que Nastássia Filíppovna ocupava ultimamente. Lembrou-se de que três semanas antes, quando a seu pedido deixara Pávlovsk, ela se tinha ido acomodar em casa de uma amiga, viúva de um mestre-escola, estimável senhora com família, que alugava peças mobiliadas e que vivia, realmente, quase que só disso. Assim, pois, não era de todo improvável que, voltando a Pávlovsk, pela segunda vez, não tivesse conservado os aposentos. E de qualquer forma, mais provável era agora que tivesse passado esta noite, de ontem para hoje, naqueles aposentos, levada naturalmente por Parfión. O príncipe tomou uma tipóia e no caminho lhe veio a censura de não ter começado por onde agora ia, pois era evidente que ela não teria passado a noite em casa de Rogójin, reforçando-lhe este pensamento a afirmativa do porteiro de que Nastássia Filíppovna raramente aparecia. Se, dantes, não aparecia senão raramente, por que haveria de permanecer em casa de Rogójin essa noite? Procurando se reconfortar com tais deduções, chegou Míchkin à casa de Ismáilovskii Polk, mais morto do que vivo.

Mas, para grande decepção sua, na casa da viúva do mestre-escola nem sequer tinham ouvido falar em Nastássia Filíppovna essa manhã, ou na véspera; mas todos acorreram para o observar como a um prodígio. A numerosa família daquela senhora, tudo meninas entre sete e quinze anos, rodeara a mãe, fitando Míchkin com  muita vivacidade. Juntou-se-lhes a tia, de cara chupada e amarela e, por último, a avó, muito idosa, de óculos. A dona da casa, muito diligentemente, lhe sugeriu que entrasse e se sentasse, o que o príncipe logo fez. Percebeu que sabiam muito bem quem ele era e que estivera para se casar na véspera, estando mortas por perguntar pela noiva, muito abismadas por estar ele a indagar da esposa que, não havia dúvida, devia estar consigo àquela hora, em Pávlovsk. Mas, delicadas como eram, não o fizeram. Em breves palavras lhes satisfez a curiosidade quanto ao casamento. Gritos e exclamações de espanto e de admiração se seguiram, de modo que se viu na obrigação de contar a história quase toda, embora por alto, naturalmente. Finalmente, as senhoras idosas e sábias, em concílio, determinaram que a primeira coisa a fazer, indubitavelmente, era bater à porta de Rogójin até obter resposta, procurando saber, positivamente, alguma coisa dele. Caso não estivesse em casa (do que ele teria de se certificar de modo absolutamente certo!), ou se não quisesse dizer, então o príncipe devia ir imediatamente à casa de uma senhora alemã que vivia em companhia da mãe em Semiónovskii Polk, muito amiga de Nastássia Filíppovna: quem sabia lá se, no seu atarantamento e desejo de se esconder, não fora passar a noite lá. com elas?

O príncipe levantou-se, completamente arrasado. Segundos depois, elas depuseram, ficara mortalmente pálido; de fato, as suas pernas não se resolviam a caminhar. Percebeu, dentro do terrível e agudo estridor de suas vozes que estavam combinando agir com ele, e que lhe perguntavam o seu endereço na cidade. Ainda por cúmulo, não tinha ele endereço algum para lhes dar. Aconselharam-no a ir então para um hotel; o príncipe pensou um pouco e lhes deu o nome do hotel onde estivera uma vez já, aquele onde cinco semanas antes sofrera um ataque.

Encaminhou-se novamente para a casa de Rogójin. Lá, desta vez, não conseguiu ser atendido em nenhuma das duas portas. Foi então procurar o porteiro, com muita dificuldade acabando por encontrá-lo no pátio, ocupado e que lhe respondeu grosseiramente, olhando-o de esguelha, garantindo que Parfión Rogójin saíra de manhã, muito cedo, para Pávlovsk, não devendo voltar a casa esse dia.

- Fico esperando. Talvez volte à noite.

- Não voltará nem daqui a uma semana. É escusado.

- Mas, então, esteve em casa esta noite?!

- Que esteve, lá isso esteve. Pode ficar certo.

Tudo era muito suspeito e havia qualquer coisa esquisita nisso. Muito possivelmente o porteiro recebera instruções recentes, na sua ausência de ainda agora, pois Como era que, da primeira vez, fora tão tagarela e agora lhe voltava as costas? Sem dizer nada, o Príncipe resolveu voltar daí a duas horas e, se achasse preciso, ficar vigiando a casa, logo lhe sobrevindo uma esperança na pessoa da senhora alemã de Semiónovskii Polk.

Mas na casa da senhora alemã não entenderam uma palavra do que ele queria. E, por algumas palavras deixadas escapulir, o príncipe se deu conta de que essa beldade alemã cortara relações com Nastássia Filíppovna quinze dias antes, não tendo pois ouvido mais falar nela, ultimamente, esmerando-se mesmo em dar a entender que não se importava absolutamente de saber até “que se tinha casado com todos os príncipes do mundo”. O Príncipe apressou-se em ir embora. E então começaram a lhe ocorrer outras hipóteses e conjeturas. Ela podia ter ido para Moscou como já fizera antes, uma vez, tendo naturalmente Rogójin ido depois, ou talvez mesmo com ela. “Se, ao menos, eu pudesse achar alguns traços!” Nisto, se lembrou de que lhe era conveniente ficar um pouco no hotel: e foi ligeiro para a Litéinaia. Arranjou logo umquarto. O criado perguntou-lhe se queria comer alguma coisa. Respondeu a esse que sim. Depois, quando caiu em si, ficou furioso em ter de perder meia hora com um almoço. E ainda foi muito depois que lhe veio a evidência de que não era obrigado a comer o que lhe haviam trazido. Ao sair afinal do hotel, mal sabendo o que estava fazendo, uma estranha sensação tomou posse dele quando se viu ao longo do corredor escuro e abafado. Uma sensação que custou, cruelmente lenta, a se transformar em pensamento perceptível. Perceptível? Pois se nem assim pôde adivinhar que pensamento novo, ou velho, era esse em que se debatia! A sua cabeça estava em um rodopio. Mas, para onde estava ele indo agora? Arremessou-se, outra vez, na direção da casa de Rogójin.

Mas este não havia voltado. Resposta nenhuma, por mais que tocasse a campainha ou batesse. Foi tocar diante da porta da velha senhora Rogójin. Estava aberta, e algum tempo depois de espera, alguém lhe disse que Rogójin não estava e nem estaria durante, pelo menos, três dias. O príncipe ficou mais perplexo ainda ao se sentir olhado, como antes, com tão desconcertante curiosidade.

Desta vez não conseguiu, de modo algum, encontrar o porteiro. Atravessou para a calçada do outro lado, como já fizera antes, percorreu a vista pelas janelas e ficou caminhando para cima e para baixo, por meia hora, ou possivelmente mais, sob o calor insuportável. Em todo esse tempo, coisa alguma buliu lá em cima; as cortinas brancas estavam imóveis e as janelas permaneciam fechadas. Imaginou que, decerto, daquela vez, antes, se tinha enganado; devia ter sido mera alucinação.

De fato, as vidraças eram opacas e encardidas, sendo difícil cá de baixo distinguir se alguém espiava de lá. Sossegado com estas reflexões, dirigiu-se de novo à casa da viúva em Ismáilovskii Polk.

Já o estavam esperando, aflitas. A senhora estivera pessoalmente já em três ou quatro lugares. Inclusive na porta da residência de Rogójin, onde nada pudera saber nem ver, O príncipe, ouvindo em silêncio, entrou para a sala, sentou no sofá e ficou a olhar como se não estivesse entendendo o que elas todas lhe contavam, falando ao mesmo tempo. Por mais estranho que seja, convém ser dito aqui que, em dado momento, o seu olhar era de quem está com o espírito completamente ausente do corpo. Toda a família declarou mais tarde que, nesse dia, ele estava assim como uma pessoa em quem éfácil ver que “o fim já era claro”. Posto o que, se levantou e pediu para ver os aposentos que tinham sido de Nastássia Filíppovna. Estes eram claros, altos, lindamente mobiliados, dos que se alugam a alto preço. As senhoras relataram mais tarde como foi que o príncipe examinou tudo, minuciosamente, coisa por coisa, objeto por objeto. Que, tendo visto sobre a mesa um livro aberto, um volume francês. Madame Bovary, dobrou a folha, fechou-o, pediu permissão para levá-lo e sem ouvir as explicações das senhoras de que o livro era de uma biblioteca circulante, meteu-o a seguir no bolso externo do paletó. Sentou-se um pouco, em frente mesmo da janela. E depois, notando uma mesa de jogo, com o tampo coberto de rubricas de giz, perguntou quem tinha estado a jogar. Responderam que na temporada anterior Nastássia Filíppovna costumava jogar todas as noites, com Rogójin, paciência, o burro, durakí uíste e mielnike. Que se tinham posto a jogar cartas, naquela vez em que vieram de Pávlovsk, porque Nastássia Filíppovna vivia sempre se queixando que estava entediada, que Rogójin nem conversar sabia, as noites sendo insuportáveis. Que muitas vezes até chorara.

E que então, uma noite, sem dizer nada, ele, Rogójin, trouxera um baralho. Que Nastássia ficara contente, dando então em jogar para se distrair. O príncipe perguntou pelo baralho; mas não houve meio das cartas aparecerem.

É que Rogójin trazia um baralho novo todas as tardes levando o usado cada vez que se ia embora, de noite.

Aconselharam-no as senhoras a voltar ainda à casa de Rogójin e a tocar bem alto e bater com força. Não agora, mas de noite. “Talvez conseguisse alguma coisa”. Ofereceu-se a viúva a, enquanto isso, ir até Pávlovsk, pessoalmente, à casa de Dária Aleksiéievna, a fim de indagar se alguma coisa fora sabida lá. Sugeriram a Míchkin que em todo o caso voltasse às dez horas para, se fosse necessário, combinarem os planos para o dia seguinte. A despeito de todas as tentativas para consolá-lo e acalmá-lo, a sua alma estava subjugada por um absoluto desespero, tendo se dirigido para o hotel em uma inexprimível angústia. A poeirenta e sufocante atmosfera de Petersburgo pesava sobre ele como uma prensa; era acotovelado por gente vagarosa ou bêbada; fixava a esmo as fisionomias. E decerto caminhou muito além do que o necessário, já sendo quase noite quando  voltou para o seu quarto. Resolveu descansar um pouco antes de tornar a ir à casa de Rogójin, como lhe tinham aconselhado. Sentou-se em um sofá, apoiou os cotovelos sobre a mesa, e afundou em pensamentos.

Deus sabe o tempo e aquilo em que pensou. Havia muitas coisas que ele temia. Sentiu dolorosamente, pungentemente, uma horrível apreensão.

Mais, bem mais que apreensão. Pavor. Vera Liébedieva lhe veio ao espírito. E nisto o pensamento o assaltou de que Liébediev talvez soubesse de alguma coisa; ou que, se não soubesse, pudesse procurar mais depressa e com mais facilidade do que ele. Depois se lembrou de Ippolít: e que Rogójin costumava conversar com Ippolít. E pensou ainda em Rogójin, quando estivera no funeral, depois no jardim e depois - e isso repentinamente - naquela vez em que ele, Rogójin, estivera ali no corredor do hotel e como se escondera e o esperara com um punhal. Recordou-se dos olhos dele, aqueles olhos que o olhavam em brasa, na treva. Estremeceu, porque um pensamento, esse pensamento que se estava conformando em expressão aguda, lhe veio à cabeça.

Se Rogójin estivesse em Petersburgo, escondido mesmo, por enquanto, acabaria, certamente, por vir até ele, o príncipe, fosse com boa ou com má intenção, como já fizera uma vez. De qualquer maneira, se, pois, quisesse vir vê-lo, não podia ser em lugar nenhum senão ali, naquele corredor. Não tendo nenhum outro endereço, só poderia supor que ele, o príncipe, estivesse no mesmo hotel de antigamente. Acabaria por vir procurá-lo ali; tentaria isso, se tivesse grande precisão dele. E quem sabia lá se já não tinha precisado dele?

Desta maneira esteve a considerar. E a idéia lhe pareceu bem razoável. Não lhe teria sido possível explicar por qual motivo concluíra que ele, o príncipe, era necessário a Rogójín e que, portanto, se teriam de encontrar.

Mas a conclusão era categórica, na forma deste pensamento alternado: “Se ele estiver bem, não virá; mas se se sentir infeliz, virá. E é lógico que se sente infeliz.”

Já que estava com esta convicção, devia ter ficado no hotel, esperando Rogójin, em seu quarto. Mas não se sentiu capaz de permanecer ali, com aquela idéia. Agarrou o chapéu e saiu apressadamente. Àquela hora o corredor estava escuro. E se ele, de repente, saísse daquele vão e investisse contra mim, na escada?” Foi a idéia que lhe relampejou no espírito quando se sentiu perto do mesmo lugar daquela vez passada. Mas não surgiu ninguém. Alcançou a porta da rua, saiu, admirou-se ao ver a densa multidão que se espraiava pelas ruas (como sempre, no verão, à hora do poente, acontece em Petersburgo). Virou na direção da Gorókhovaia. Devia já estar distanciado do hotel uns cinqüenta passos quando, na primeira rua que ia atravessar, alguém, na multidão, sem ele esperar, lhe tocou o cotovelo e lhe sussurrou ao ouvido:

- Liév Nikoláievitch, meu irmão, preciso de ti. Segue-me. - Era Rogójin.

Foi uma coisa estranha, mas deve ser dita: o príncipe pôs-se logo a lhe contar efusivamente, muito além de qualquer propósito, de modo atabalhoado, que estivera a esperá-lo no hotel e que até pensara encontrá-lo no corredor.

- Eu estive lá - respondeu Rogójin. - Vem comigo!

Esta resposta surpreendente só espantou o príncipe dois minutos depois, quando a entendeu bem. E, tendo compreendido, ficou alarmado, a olhar com toda a atenção para Rogójin, que caminhava na sua frente, à distância de um passo, abrindo passagem para ele, Míchkin, com cuidado mecânico, alheio a todo o mundo.

- Mas, se esteve no hotel, por que não foi me procurar no quarto?

Rogójin parou, olhou-o um pouco e, como se não tivesse ouvido direito a pergunta, disse:

- Presta atenção no que te vou pedir, Liév Nikoláievitch. Segue sempre à direita, rua acima, até a minha casa; e eu atravesso e vou pelo outro lado da rua. Mas repara que um tome conta do outro.

Dito o que, atravessou a rua, para a outra calçada, parou, a ver, de lá, se o príncipe estava andando. Vendo, porém, que não, fez-lhe um sinal com os olhos, tomou a direção de Gorókhovaia e seguiu, virando a todo momento para olhar o príncipe, e lhe fazendo sinal para o seguir. E evidentemente se certificou logo que o príncipe o tinha compreendido e o estava já seguindo, pelo outro lado da rua, na calçada paralela. O príncipe pensou que, com certeza, Rogójin queria espreitar alguma pessoa que lhe não conviria que passasse por ele ou o seguisse. E tinha atravessado para o outro lado, por precaução. “Mas, ao menos, por que não me disse de quem está com receio?”

Caminharam, assim, uns quinhentos passos. De repente, sem saber direito por que, Míchkin começou a tremer. Rogójin continuava a olhá-lo, de quando em quando, porém mais espaçada-mente. Sentindo que não podia prosseguir, o príncipe lhe fez um sinal, chamando-o. Rogójin atravessou imediatamente a rua, enviesando-se na sua direção.

- Nastássia Filíppovna está em sua casa?

- Está.

- Foi você que me olhou, por detrás da cortina, esta manhã?

- Fui.

- Como? Era você?

E o príncipe não soube o que perguntar a seguir e nem como acabar a sua interrogação. De mais a mais, o seu coração batia tanto que mal poderia continuar a falar. Rogójin também ficou calado e continuou a olhar para ele, como ainda agora, com uma expressão de sonho...

- Bem, então vou indo - disse, afinal, preparando-se para atravessar para o outro lado. - Tu vais sozinho, pois fica melhor cada um seguir separadamente...

Quando, por fim, dobraram a esquina para a Gorókhovaia, já próximos da casa de Rogójin, as pernas do príncipe começaram a fraquejar a ponto de lhe ser quase impossível poder prosseguir. Eram mais ou menos dez horas da noite.

As janelas do lado da velha ainda estavam escancaradas, como de dia. As da parte de Rogójin permaneciam todas fechadas e, na penumbra, as cortinas ficavam mais visíveis. O príncipe aproximava-se pela calçada oposta à casa. Rogójin, sempre pela sua calçada, chegou, dobrou para as escadas e, lá do vão, lhe acenou. Míchkin atravessou e veio se juntar a ele.

- O porteiro ignora que estou aqui. Menti-lhe, esta manhã, que ia para Pávlovsk e deixei uma palavra neste sentido também à minha mãe - sussurrou, com um sorriso dissimulado e quase jactancioso.

- Vamos entrar de maneira que ninguém ouça.

A chave já estava na sua mão. Subindo a escada, virou-se, fez com o dedo no ar um gesto bem significativo, dando a entender ao príncipe que subisse sem nenhum ruído. Abriu sem o menor estalido a porta dos seus aposentos, fez o príncipe passar, entrou também, com muita cautela, fechou a porta, guardou a chave no bolso.

- Vem - ciciou ele.

Desde a Litéinaia que só falava por cicios, estando, por dentro, a despeito de toda a calma aparente, em um estado de intensa agitação. Chegando à sala de visitas, a caminho do gabinete, se dirigiu para a janela e fez um gesto para Míchkin.

- Esta manhã, quando tocaram, adivinhei logo que eras tu. Fui, na ponta dos pés, até àquela porta e te ouvi falar com a Pafnútievna. Mal o dia raiou eu dei ordem a ela para que se tu, ou qualquer pessoa mandada por ti, batesse na minha porta, não dissesse absolutamente que eu estava aqui: principalmente se fosses tu, e lhe dei o teu nome. Depois, quando te foste embora, me veio o pensamento: “E se ele fica parado a espiar lá da rua, vigiando?” Aproximei-me então desta janela. aqui. franzí um pouco a cortina.... E lá estavas tu, e me olhaste até... Foi assim.

- Onde está Nastássia Filíppovna? - perguntou o príncipe, quase sem fôlego.

- Ela... está... aqui... - respondeu Rogójin, baixo, demorando a falar.

- Onde?

Rogójin ergueu os olhos e fitou o príncipe.

-Vem...

Falava sempre ciciando, com aquele mesmo ar de sonho. Já um pouco antes, ainda agora mesmo, quando contou aquela coisa a respeito da cortina, parecia querer dizer coisa muito outra, apesar de ter simulado estar falando espontaneamente Entraram no gabinete. Havia qualquer mudança naquela sala, depois da anterior vinda do príncipe. Uma pesada cortina verde, que devia ter servido para outro fim, pendia de viés, separando a ala da alcova de Rogójin.

Estava escuro. As noites brancas, do verão de Petersburgo, já se iam alterando, e se não houvesse lua cheia teria sido difícil distinguir qualquer coisa nessas peças com janelas tapadas por cortinas. Em todo o caso podiam distinguir o rosto um do outro, embora mal. As faces de Rogójin estavam pálidas como de costume. Os seus olhos cintilantes continuavam a vigiar o príncipe, com um brilho seco.

- Seria melhor acender uma luz - sugeriu Míchkin.

- Não. Não precisa - respondeu o Outro -que, tocando a mão do príncipe, o fez sentar. Sentou-se também, por sua vez, tendo trazido a cadeira para tão perto que quando se sentou, ficou roçando os joelhos do outro.

Junto deles, um pouco para um lado, havia uma mesinha redonda.

- Fiquemos aqui um pouco - disse, como querendo persuadir o príncipe a não se levantar.

- Bem me pareceu que devias estar lá naquele hotel, de novo - começou ele, com aquela maneira por que certas pessoas, iniciando um assunto importante, preludiam antes com ninharias que não vêm a propósito.

- Mal entrei pelo corredor adentro, pensei: “E se ele estiver sentado lá dentro esperando por mim, enquanto eu estou aqui em pé, esperando por ele?” Estiveste na casa da viúva do mestre-escola?

Devido ao violento palpitar do seu coração, o príncipe mal pôde responder:

- Estive.

- Pensei nisso, também “Vão acabar falando”, pensei.., então disse comigo assim: “Vou trazê-Lo aqui, esta noite, de maneira a passarmos a noite juntos...

- Rogójín! Onde está Nastássia Filíppovna? - perguntou o príncipe, prontamente. E todos os seus membros começaram a tremer, quando ficou de pé. Rogójin também se levantou, e sussurrou, apontando para a cortina:

- Está ali.

-  Dormindo? - balbuciou o príncipe.

Rogójin tornou a olhar para ele com profunda atenção.

- Bem, entra, tu... somente... Entra...

Ergueu a cortina, assim, em pé, voltado para o príncipe.

- Entra! - disse, reforçando, com um gesto, empurrando-o mansamente para dentro da cortina. Míchkin entrou.

- Está escuro... - disse.

- Mas se vê... - ciciou Rogójin.

- Vejo muito mal... Aqui... é... uma cama?

- Aproxima-te - sugeriu Rogójin, brandamente.

O príncipe deu o primeiro passo; depois o segundo e parou. Parou e ficou olhando. Passou um minuto.

Custou muito a passar outro minuto. Permaneciam perto da cama, bem rente. Não falavam absolutamente nada.

O coração do príncipe batia tão violentamente que era agora a única coisa audível na quietude mortal da alcova.

Os seus olhos jáse estavam acomodando na treva e então começou a distinguir a cama inteira. Alguém jazia nela, dormindo um sono de perfeita imobilidade, sem fazer ruído algum, por mais insignificante que fosse: nem mesmo o da respiração. E quem assim dormia estava coberto desde a cabeça até aos pés com um lençol branco sob o qual os membros vagamente se configuravam. Tudo quanto se podia ver era que um corpo humano jazia ali, estendido em todo o seu comprimento. Na mais completa desordem, aos pés da cama, sobre as cadeiras ao lado, e pelo chão, havia roupas jogadas.

Um rico vestido de seda branca. Flores. E fitas. Em uma pequenina mesa, junto àcabeceira da cama, um diadema de diamantes que tinha sido tirado e posto ali. Do lado dos pés da cama havia um monte de sedas e cambraias amarrotadas, e sobre elas emergia de uma nesga do lençol um pé nu. Tão branco, tão imóvel que parecia de mármore.

O príncipe olhava... E, olhando, sentia que a alcova cada vez se ornava mais sepulcralmente silenciosa. Nisto ouviu o zunido de uma mosca que voou sobre o leito e foi pousar no travesseiro. O príncipe recuou.

- Agora, vem comigo! - Era Rogójin, que lhe tocava no braço. Saíram da alcova e se sentaram nas mesmas cadeiras, novamente um defronte do outro. Tremendo com uma violência cada vez mais incontida, Míchkín não tirava os olhos indagadores do rosto de Rogójin.

- Noto que estás tremendo, Liév Nikoláievitch, muito mais do que quando estiveste doente. Lembras-te, em Moscou? Tal qual como antes de te vir o acesso, aquela vez!... Fica bem calmo, senão, que vou fazer contigo agora?

O príncipe escutou, fez todo o esforço para ficar em condições de compreender; mas os seus olhos não paravam de perguntar que éque fora aquilo...

- Quem foi? Foi você? - conseguiu dizer, por fim, mostrando a cortina.

- Fui eu. - Rogójin ciciou; e não pôde erguer os olhos. Mantiveram-se calados cinco minutos. Cinco minutos...

- Escuta aqui - recomeçou Rogójin, como se não tivesse interrompido a sua confissão -, como és doente e tens ataques e convulsões, não vá alguém ouvir do pátio, ou da rua.., e descobrir, assim, que há gente aqui nos meus aposentos. Se descobrirem... começarão a bater e entrarão.., pois todos estão convencidos de que não estou em casa. Já foi por isso que não acendi luz... podiam perceber da área ou da calçada... Quando saio, levo, sempre, a chave.., e ninguém entra aqui, nem para a limpeza, enquanto dura a minha ausência. Dois.., as vezes três dias... É hábito meu. Tomei bastante cuidado para que não percebessem que estamos aqui...

- Pode continuar... - disse o príncipe. - Eu perguntei, tanto ao porteiro como à empregada, se Nastássia Filíppovna não tinha passado a noite aqui. Portanto... isto é...

- Eu sei que perguntaste. Mas eu disse à Pafnútievna que Nastássia Filíppovna estivera aqui ontem apenas uns dez minutos e que já havia regressado para Pávlovsk. Ninguém sabe que ela ficou aqui, de noite. Entrei, ontem, com ela, às escondidas, tal como nós dois fizemos ainda agora. Quando vínhamos para cá eu pensei que ela não tomaria cuidado para entrar em segredo. Mas qual o quê! Entrou na ponta dos pés, suspendeu e dobrou a cauda do vestido em volta do corpo, segurando a ponta na mão, para que a seda não rugisse; e quando falou, foi sempre ciciando... Chegou a me balançar o dedo, escadas acima - era de ti que ela tinha medo! No trem, se  visses, estava louca de terror! E foi ela quem quis passar a noite aqui. Porque eu, eu tinha pensado em levá-la ao apartamento dela, na casa da viúva; mas, qual o quê! “Mal o dia raie, ele me achará lá!” Foi o que ela disse.

Mas você (refería-se a mim) vai me esconder hoje, e amanhã de manhã, cedinho, partiremos para Moscou”. Depois, já não era para Moscou que queria ir... Qualquer outra cidade... Oriól, por exemplo... Até mesmo já deitada, me dizia, de lá, que tínhamos de ir para Oriól...

- Escute, Parfión! Que é que você vai fazer, agora? Que é que pensa fazer?

- Mas pára de tremer! Eu fico espantado, por tua causa! Nós vamos ficar aqui, toda a noite. A cama é aquela só... Mas acho que podemos pegar as almofadas e os coxins dos dois sofás, e fazer uma espécie de cama para mim e para ti, do lado de cá da cortina... Para ficarmos juntos. Pois se eles vierem para cá e começarem a pesquisar, a indagar, e entrarem, darão logo com ela e a levarão. E... me achando.., me perguntarão... eu direi que fui eu e me levarão imediatamente. Assim, pois, se ficares, é melhor, não é? Ela agora fica conosco, ao nosso lado, junto de ti... e junto de mim...

- Sim, sim! - concordou o príncipe vivamente.

- Quando vierem.., nós não confessaremos não, e não deixaremos que a levem!

- É sim! Não deixaremos não, de forma alguma, custe o que custar. Isso mesmo... decidiu o príncipe.

- Foi o que eu decidi também, rapaz, não a entregar de forma alguma. A ninguém! Ficaremos quietos aqui; a noite inteira. Hoje só saí, de manhã, por menos de uma hora. Não contando esse tempo, estive sempre com ela. E depois só saí para te ir buscar, de noite já. Mas uma outra coisa.., de que estou com medo: está muito quente e talvez comece a cheirar mal... Tu estás sentindo algum cheiro?... Eu...

- Talvez esteja... Nem sei... Mas... de madrugada, certamente...

- Eu a cobri com um oleado americano! Um bom oleado. Estendi o lençol por cima e coloquei em volta, embaixo, rente àcama, quatro botijas de desinfetante Jdánov. Desarrolhei... Ainda estão lá... Devem servir...

- Ah! Sim, como leu que fizeram aquela vez em Moscou!?...

- Por causa do cheiro, irmão! Viste como ela está... deitadinha... De manhã quando houver luz é que deves ir olhá-la... Que é isso? Não te podes erguer? - perguntou Rogójin, com espanto, vendo, todo apreensivo, que Míchkin estava tremendo de maneira tão absurda que, apesar do esforço para ir ver outra vez Nastássia Filíppovna, não conseguia se pôr em pé...

- As minhas pernas não.., obedecem - explicou baixinho o príncipe - e creio que é... terror! Mas quando isto passar, me levantarei para ir... vê-la.

- Sossega; vou arranjar uma cama para nós. Deitando, ficarás logo melhor. Eu deitarei também... E ficaremos escutando... Pois é, rapaz, não compreendo ainda, não compreendo como tudo isso foi... Bem que te avisei, que te preveni, de antemão.., de modo a que ficasses sabendo...

Sussurrando essas palavras ininteligíveis, Rogójin começou a fazer as camas no chão. Era evidente que só essa noite é que lhe tinha vindo à cabeça improvisar essa cama no chão. A outra noite, ficara no sofá. Mas não havia agora lugar para dois, no sofá estreito, e Rogójin resolveu e combinou que deviam deitarjuntos. Eis por que, com muito esforço, ele agora arrastava os vários Coxins do sofá e os depunha ao rés da cortina. Fez a cama de qualquer modo. Aproximou-se do Príncipe afavelmente e, com certo entusiasmo macabro, o conduziu pelo braço. Mas o príncipe achou que podia ir, e se desvencilhou pensando que o tremor já havia passado.

Rogójin fez o príncipe estirar-se nos coxins, à esquerda, e depois, sem se despir se arrojou, pesadamente.

Cruzou as mãos debaixo da cabeça e começou a balbuciar:

- Está quente, sim, está quente, irmão! E, como sabes, vai começar a cheirar. Acho que não devemos abrir as janelas... Minha mãe tem sempre jarros com flores... Uma porção de flores... E que perfume delicioso que elas têm! Cheguei a pensar em trazer.., mas Pafnútievna podia desconfiar.., ela repara em tudo...

- É reparadeira, sim,.. - concordou o príncipe, aparvalhadamente. - Achas que devíamos comprar punhados e mais punhados de flores para rodeá-la toda? Mas.., pensando bem, amigo, vê-la rodeada de flores nos causaria tamanha tristeza!

- Escute - disse o príncipe, de modo incerto, como se estivesse procurando o que ia dizer, já esquecido outra vez do que era escute, com que foi que fez isso? Com uma faca? Com aquela mesma?

- Com aquela!

Outra coisa, ainda. Quero perguntar-lhe Outra coisa, Parfión. Quero fazer-lhe uma porção de perguntas. Quero que me conte tudo... Mas, para começar, será melhor me dizer, primeiro, para eu entender bem... Você pensava em matá-la antes do nosso casamento, com uma faca, à entrada da igreja?

- Não sei se pensei, ou não - respondeu Rogójin, secamente, parecendo até surpreendido com a pergunta, ou não a compreendendo.

- Você chegou a levar consigo a faca para Pávlovsk?

- Não, nunca! Tudo quanto te posso dizer a respeito da faca éque eu a tirei de uma gaveta esta madrugada... pois tudo aconteceu de madrugada, mais ou menos às quatro horas... A faca esteve enfiada dentro de um livro, sempre, aqui, em casa. E... e... coisa estranha. Afundou três ou quatro polegadas, bem debaixo do seio esquerdo. Não saiu mais do que uma quantidade assim.., de uma meia colher de sopa... de sangue... que se espalhou pela camisola. Nem tanto!...

- Isso.., isso.., isso eu sei, já li a respeito, é o que eles chamam de hemorragia interna – esclareceu sinistramente o príncipe, em grande agitação. - Às vezes não dá uma gota... Quando a punhalada vai certeira ao coração e encrava...

- Pára! Não estás ouvindo? - Rogójin interrompeu-o imediatamente, sentando-se, apavorado, sobre o coxin. - Escuta só!

- Não ouço nada - respondeu Míchkin tão rápido quanto apavorado.

- Passos! Ouves? Na sala de visitas... - puseram-se ambos a escutar.

- Ouço - disse o príncipe, sem a menor hesitação.

- Passos de gente!

- Sim.

- Convém, ou não, fechar a porta?

- Feche.

Foram fechar a porta e vieram deitar outra vez. Ficaram calados uma porção de tempo.

- Ah! É mesmo! - começou inesperadamente o príncipe, com um sussurro farfalhante, como retomando um pensamento e querendo falar depressa antes de o esquecer de novo; sentou-se no chão.

- É mesmo! Eu queria aquele baralho de cartas!... As cartas... Elas me disseram que você jogava com ela!

- Jogava, sim - confirmou Rogójin, depois de curto silêncio.

- Onde estão.., as cartas?

- Estão aqui - disse Rogójin. depois de uma pausa maior. - Aqui.

Tirou do bolso um baralho de cartas enrolado em papel e deu a Míchkin, que o tomou com uma espécie de marasmo. Um sentimento novo, de desesperadora tristeza, pesava em seu coração. Compreendeu, subitamente, que nesse momento e durante muito tempo, antes, não estivera a dizer o que desejava; e que isso não era direito; estava fazendo uma coisa má. E compreendeu, também, que nessas cartas que segurava agora, e que, só de as ver, lhe davam tanto conforto, não eram de ajuda nenhuma, absolutamente não serviam para coisa alguma, agora... Levantou-se, comprimindo o baralho na mão fechada. Rogójin continuava deitado e não parecia ouvir nada, nem nada ver dos gestos do príncipe; mas os seus olhos cintilavam na treva, e estavam muito arregalados, com uma expressão fixa. O príncipe foi sentar-se na cadeira, começando a olhá-lo de lá, com terror.

Passou meia hora.

E então Rogójin se pôs a falar alto, e a rir, como se tivesse esquecido que deviam falar somente ciciando.

- Aquele oficial, aquele!... Tu te lembras como ela chicoteou aquele oficial, perto do coreto da música? Ah! Ah! Ah! E havia um cadete.,, um cadete.., um cadete também que interveio...

O príncipe pulou da cadeira, com redobrado pavor. Nisto, Rogójin ficou quieto (e foi subitamente que se calou) e o príncipe se curvou dócilmente sobre ele, depois se sentou ao lado e, com o coração batendo violentamente e a respiração aos arrancos, começou a fitá-lo. Rogójin nem virou a cabeça para ele, como se o tivesse esquecido. O príncipe olhava e esperava. O tempo foi passando. Começou a clarear. De vez em quando, Rogójin recomeçava a murmurar coisas, com voz rígida, incoerentemente; ria e soltava exclamações. Então o príncipe estendia a mão trêmula até ele e mansamente lhe tocava a cabeça, os cabelos, acariciando-os, ou lhe afagava as faces.., pois não podia fazer mais nada! Começou a tremer, outra vez. E as pernas, de novo, pareceram nem existir. Uma sensação nova lhe corroía o coração com infinita angústia.

No entanto, tinha clareado completamente. Em dado instante ele se estirou sobre as almofadas, como que absolutamente inerme, sem esperança e sem solução. Juntou o seu rosto ao rosto petrificado de Rogójin, as suas lágrimas escorrendo para as dele, ambos, decerto, nem as percebendo nem se importando com elas.

Fosse como fosse, quando, depois de muitas horas, as portas foram arrombadas e pessoas estranhas entraram, deram com o assassino completamente inconsciente, a delirar. Míchkin estava sentado no assoalho, sem se mover dali, ao lado dele. E sempre que o homem que se achava delirando desandava a dar gritos e a tartamudear, ele se apressava em lhe passar a mão trémula, suave-mente, sobre os cabelos e sobre as faces, como o acariciando e acalmando, Mas nem por isso conseguiu compreender nenhuma pergunta que lhe foi feita e nem reconheceu as pessoas que o rodeavam.

Se Schneider, em pessoa, viesse da Suíça para olhar o seu antigo pupilo e paciente, ligando a cena de agora à recordação do estado em que o príncipe, às vezes, ficava naqueles seus primeiros anos de estada no estrangeiro, teria erguido as mãos para o ar, desesperançado, e diria, como dizia naquele tempo: “Um idiota!”

 

Precipitando-se para Pávlovsk a viúva do mestre-escola se dirigiu direta-mente a Dária Aleksiéievna que já estando assombrada com os acontecimentos da véspera, ainda ficou em um pânico maior, ante o que lhe foi contado.

Resolveram as duas senhoras comunicarem-se imediatamente com Liébediev que, como era natural, estava preocupadíssimo com o seu inquilino e amigo. Contou-lhes Vera Liébedieva tudo quanto sabia. A conselho de Liébediev decidiram seguir os três para Petersburgo com o fim de o mais depressa possível evitar o que pudesse estar para acontecer. E assim foi que, cerca das onze horas da manhã do dia seguinte, o apartamento de Rogójin foi arrombado na presença da polícia, das senhoras, de Liébediev e de um irmão de Rogójin, Semión Semiónovitch, que morava na outra ala - ato esse facilitado pela declaração do porteiro que, depondo, disse ter visto à noite Parfión Semiónovitch entrar pela porta da frente, com uma visita, mas, pelo que lhe pareceu, às escondidas.

Durante dois meses esteve Rogójin prostrado, com inflamação cerebral, tendo sido julgado logo que se restabeleceu. Com muita exatidão deu provas irretorquíveis sobre cada ponto do libelo, em conseqüência do que absolutamente não foi trazido à baila o nome de Míchkin.

Durante o julgamento, conquanto taciturno, não contradisse Rogójin o eloqüente conselho judicial que provou, com clareza e lógica, ter o crime sido cometido em conseqüência da febre cerebral que acometera o réu muito antes da perpetração do crime que, assim, pois, mais não foi do que um resultado de suas perturbações. Não acrescentou Rogójin coisa alguma em contestação, mantendo com a mesma clareza exata o seu depoimento feito durante o inquérito relativamente às circunstâncias ligadas ao crime. Foi sentenciado, em vista das circunstâncias atenuantes, a somente quinze anos de servidão penal na Sibéria. Ouviu a sentença soturnamente calado e como que “sonhando”. Toda a sua enorme fortuna, de que só uma parte comparativamente pequena fora dilapidada nos primeiros meses de libertinagem, passou para o seu irmão, Semión Semiónovitch, com grande satisfação deste. Sua velha mãe ainda vive, e parece que, lá uma vez ou outra, se recorda de seu filho favorito, Parfión, decerto, porém, muito vagamente, Deus lhe tendo poupado o espírito e o coração do conhecimento do golpe desferido sobre o seu melancólico lar.

Liébediev, Keller, Gánia, Ptítsin, e muitas outras pessoas desta história, continuam a viver, tendo mudado pouco, quase nada havendo a relatar sobre eles.

Ippolít, quinze dias depois de Nastássia Filíppovna, morreu em terrivel estado de excitação, e decerto mais cedo do que calculara. Kólia ficou profundamente marcado pelos acontecimentos, ligando-se mais intimamente do que nunca à sua mãe, Nina Aleksándrovna, que vive inquieta com esse seu filho demasiado pensativo para a idade. Mas de uma coisa ela não tem dúvida: ele tornar-se-á um homem útil e ativo; entre outras coisas, a acomodação do futuro de Míchkin foi, parcialmente, obra sua. Desde muito tendo notado que Evguénii Pávlovitch Radómskii era uma pessoa diferente das outras cujas amizades fora fazendo, o procurou para contar o caso do príncipe e sua conseqüente situação. Evguénii Pávlovitch não o decepcionou na estima com que era distinguido, pois tomou logo o maior interesse pela sorte do infortunado “idiota” que, devido a seus cuidados e diligências, foi reenviado ao Dr. Schneider, na Suíça. Considerando-se, francamente, um homem Supérfluo na Rússia, Evguénii Pávlovitch seguiu para o estrangeiro, decidido a passar uma grande temporada na Europa, fazendo, então, várias visitas a seu amigo doente na instituição do Dr. Schneider. Visitava-o, no mínimo, de três em três meses. Mas Schneider franzia as sobrancelhas e meneava a cabeça, cada vez mais desanimado; pressentia, categoricamente, ser impossível uma remissão, de vez em quando se permitindo um ou outro vaticínio quanto a possibilidades ainda mais melancólicas. Isso afetou muito o coração de Evguénii Pávlovitch; e não é um coração qualquer, esse seu, como fica demonstrado ante o fato de Kólia lhe escrever cartas que recebem constantes respostas. Há ainda um outro fato que patenteia um traço bondoso do seu caráter, e aqui nos apressamos em mencionar qual seja: depois de cada visita sua ao Dr. Schneider, Evguénii Pávlovitch sempre remete uma carta a certa pessoa de Petersburgo, com as mais simpáticas e minuciosas informações sobre o estado da saúde do príncipe. Acompanhadas com as mais respeitosas expressões de devotamento, essas cartas invariavelmente (e cada vez com mais freqüência) contêm um franco desenvolvimento de idéias, vistas e sentimentos, qualquer coisa que, em realidade, se aproxima de um sentimento fervoroso de amizade mal disfarçada através disso tudo. Essa pessoa, que se corresponde com ele  (conquanto, deste lado, as cartas sejam menos freqüentes) e que é assim merecedora de tanta atenção e respeito da sua parte, é Vera Liébedieva. Nunca nos foi dado nos certificarmos de como essas relações nasceram entre ambos; não resta dúvida, porém, terem começado ao tempo do colapso total do príncipe, quando Vera Liébedieva ficou tão aflita que até caiu doente. Mas, de um modo exato, qual o incidente que os levou a esse conhecimento e amizade, não sabemos informar.

Aludimos a essas cartas principalmente porque contêm notícias sobre os Epantchín e, especialmente, sobre Agláia. Segundo uma carta de Paris, um pouco desconexa, Evguénii Pávlovitch contava que, após uma súbita e extraordinária atração por um conde polaco exilado, Agláia se casara logo, apesar da oposição dos pais que só tinham acabado dando consentimento por haver possibilidades de um terrível escândalo. Depois de seis meses de silêncio, chegou nova carta de Evguénii Pávlovitch, mandando à pessoa com quem se correspondia uma comprida e minuciosa descrição de como, em sua última visita à instituição do Dr. Schneider, se tinha encontrado lá com o Príncipe Chtch... e toda a família Epantchín (exceto, naturalmente, Iván Fiódorovitch, retido, pelos negócios, em Petersburgo). E que fora um estranho encontro, todos tendo demonstrado extraordinário contentamento, não cessando Adelaída e Aleksándra de se demonstrarem incalculavelmente gratas a ele. “por sua angélica bondade para com o desgraçado príncipe”. Lizavéta Prokófievna não parava de chorar amargamente, à vista da aflita e humilhada condição de Míchkin. Evidentemente tudo lhe fora perdoado. O Príncipe Chtch... fizera mesmo umas poucas observações justas e sinceras. Que lhe parecera a ele, Evguénii Pávlovitch, que Adelaída e o marido não estavam em muito perfeita harmonia, mas que, com certeza, no futuro, Adelaída ainda viria a permitir que o seu impetuoso temperamento fosse guiado pelo Príncipe Chtch... que tinha bom-senso e experiência. E seria de esperar, de mais a mais, que as cruéis experiências que a família sofrera através, principalmente, da recente aventura de Agláia com o conde exilado, viessem a causar profunda impressão na irmã. Que tudo quanto a família receara ao negar Agláia ao conde polaco, se tinha, em menos de seis meses, confirmado, e até da pior maneira, com surpresa que eles nunca haviam sequer sonhado. Esclareceu-se que o conde nem conde era e que, se estava exilado como dizia, era isso devido a certa aventura sombria e duvidosa do seu passado. O tratante fascinara Agláia pela sua extraordinária “nobreza” de alma dilacerada em angústia patriótica. Fascinação essa que, mesmo depois de casada, subira a ponto de fazer que ela se tornasse sócia de um Comitê pela restauração da Polônia e desse em freqüentar o confessionário de um célebre pregador católico, passando logo o seu espírito a lhe sofrer a influência. Quanto às vastas propriedades do conde polaco, e de que antes mostrara ao Príncipe Chtch... e a Lizavéta Prokófievna as mais incontestáveis provas, não passavam de um mito. E ainda mais: que seis meses após o casamento, o conde e o seu amigo, o célebre confessor, haviam conseguido indispor Agláia completamente com a família, de modo que desde meses nem sequer tinham notícias dela. Restava de fato ainda muita coisa a contar: mas Lizavéta Prokófievna, filha e genro estavam tão aborrecidos com esse “terrível caso” que relutaram em aludir a outros pontos durante essa conversa com Evguénii Pávlovitch, muito embora cientes de que ele já sabia a história da última peripécia de Agláia. Como Lizavéta Prokófievna se sentia ansiosa por voltar à Rússia! Segundo o relato de Evguénii Pávlovitch, ela agora se mostrava mais amarga e injusta do que nunca em suas críticas contra tudo da Europa.

- Eles aqui nem sabem fazer um pão decente! No inverno ficam mais entanguidos do que camundongos em uma adega. Aqui só me foi dado o consolo de ao menos poder chorar lágrimas bem russas por este desgraçado. (Apontava para o príncipe que nem a tinha reconhecido.) Já chega de seguir as nossas venetas! Já é tempo de sermos sensatos. Tudo isto, toda esta vida aqui no estrangeiro, e toda esta Europa tão gabada, tudo, mas tudo, não passa de uma fantasia! E todos nós, no estrangeiro, somos fantasia e nada mais!... Guarde bem estas minhas palavras, pois irá me dar razão pessoalmente! - concluiu ela, de modo quase raivoso, ao se despedir de Evguénii Pávlovitch.

 

                                                                                            Dostoiévski

 

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