Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O VENTRE
O VENTRE E EU
Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tortura seria interessante se devidamente explorada - mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias.
Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustração de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez papai comprar para nosso espiritual proveito. Uma mulher nua, a ser devorada por cobras e chamas, nas profundezas do inferno. Segundo o texto, tal era a verdadeira imagem da luxúria e demais safadezas que atentam de uma forma ou outra contra os bons mandamentos da Santa Lei de Deus.
Fez sucesso em nossas mãos. Cometeu-se muita masturbação diante dela - a página ficou emporcalhada. Se não cheguei a tanto não foi culpa da mulher, bem merecia o pecado, culpa das cobras, sempre me inspiraram repugnância.
Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito.
Não creio nos sentimentais encabulados, nos líricos disfarçados que se benzem quando os raios caem. Meu materialismo é integral. Nasceu no mesmo ventre que me concebeu. Mas voltemos ao meu irmão.
Dentro da predestinação que fez Caim matar o inocente Abel e Jacó passar o conto-do-vigário em Esaú, meu torturado irmão foi coisa que sempre desprezei.
Nunca fiz indagações em torno de tal diferença. Sei, o problema é dos muitos que aguçam a ignorância dos sábios e demais desocupados que teimam explicar coisas inexplicáveis, como a vida. Não sou entendido em cromossomos. O que sei de genética é pouco mas divertido: está suficientemente espalhado em todos os mictórios do mundo.
A despeito da ignorância, reservo-me o direito de achar estupidez da natureza fazer coisas antagônicas no mesmo forno, com os mesmos ingredientes. Ventre de mulher é coisa que funciona mal, incha tripas, bota para fora. A sociedade, em vez de reparar o erro, registra as tripas nos cartórios, candidata-as ao reino dos céus, às artes, às vezes à presidência da República.
Minha mãe não fez exceção à regra. Botou-me para fora com cinco quilos - “um monstrinho”, disse meu futuro padrinho na ocasião -, dois anos e meio depois expeliu o não ainda torturado irmão, três quilos roubados - “uma minhoca!”, afirmou o padrinho, que já o era, satisfeito no fundo, a raça dos Severos degenerava.
Diferenças não ficaram no peso e biótipo: eu, endiabrado e malcriado; meu irmão, anjo de candura terna e sossegada. Eu, comilão, vendia a inocente alma e talvez o inocente corpo por qualquer baboseira da confeitaria do Seu Couto; ele, asceta e frugal, vivia de brisas e de pílulas cor-de-rosa que Dr. Moreira nos receitava para “puxar as cores”. Apesar das pílulas, continuávamos numa amarelidão vergonhosa. Até que meu pai resolveu puxar minhas cores por conta própria, não mais pílulas do Dr. Moreira, mas inesperados tabefes que passei a levar pela cara anêmica e desavisada.
Um dia, meu pai exagerou no zelo em me fazer corado pelo próprio método. Fui desabafar com Julinho, menino das vizinhanças, no consenso unânime mau elemento vitalício. Julinho recebia tabefes do padrasto, dono de sapataria na Rua Camerino. Bordoadas ordinárias, sem a elevada finalidade das de papai: Julinho já era suficientemente corado. O padrasto habituara-se a espancá-lo três vezes ao dia: pela manhã, que o enteado não fizesse molecagem durante o dia; ao chegar para o jantar, que na certa o enteado fizera ou deixara de fazer alguma; e à noite, para consolidação dos bons propósitos, não repetisse no dia seguinte os pecados da véspera.
Era tempo de Natal e ele ouviu as narrações das minhas desgraças com ar superior e sábio. Inútil qualquer conselho, mostrou um bilhetinho que escrevera ao Papai Noel, pedindo que o bom velhinho fizesse crescer nas magras bochechas um par de nádegas igual ao traseiro, até então inútil, o padrasto nunca batia em sítio tão adequado, tinha requintes, preferia carnes enxutas, onde a dor fosse mais feia.
Olhei o rosto anguloso do Julinho. Imaginei duas nádegas caindo-lhe pela cara abaixo. Fiquei comovido, embargado. (Dada a total incapacidade, deixo sugestão a ser aproveitada para conto, poema ou canção, dessas de fazer sentimentais chorar pelo Natal, enquanto a neve cai: a história do menino triste, num Natal perdido e sem neve, querendo ter nádegas na cara.)
Aos cinco anos meu torturado irmão fez a primeira comunhão, exaltações de Fé e Edificação em todos os parentes, vizinhos e curiosos que acompanham a vida alheia. Era um predestinado: aprendeu de cor todo o catecismo, as pias orações, os atos de contrição.
O vigário do Lins, maravilhado. Um prodígio no rebanho, um “lírio que brotava em meio a rudes espinhos”, segundo própria expressão. Ninguém precisou despender esforços para que eu entendesse. Aquilo de “rudes espinhos” só podia ser alusão decente e paroquial à minha pessoa.
E eu era, na verdade. Só fui admitido ao “banquete celestial” - outra pitoresca expressão do vigário - após ameaças gerais e prováveis da sociedade que me rodeava. Em casa, minha mãe cortou-me a sobremesa até que eu aprendesse o credo. Papai aproveitou o ensejo com facúndia e encheu-me de pancada sob o pretexto de que pulava a palavra “ventre” na Ave-Maria - e eu tinha uma profunda vergonha de dizer coisa tão feia - e até meu padrinho, tão benigno para com meus crimes, entrou também na dança, não me trazendo mais chocolates da cidade e apostrofando-me com inusitada ferocidade por ter dito Poncio em vez de Pôncio.
Desnecessário dizer que os vizinhos também participaram do sagrado repúdio. Por esse motivo fui barrado de forma ignominiosa da festa dos oito anos de Helena, a mulher pública de toda a infância adjacente. Foi o próprio pai de Helena, o Dr. Luís, que se dignou a descer ao portão para dizer-me que, a contragosto, não podia consentir na participação naquela festa a presença de um marmanjo de quase dez anos que não havia feito ainda a primeira comunhão. Percebi meu pai mancomunado naquela atitude, na esperança de que o choque traumatizasse minha alma e eu tratasse de enveredar pelos bons caminhos.
Força reconhecer, aquilo doeu não só à alma, mas à minha carne, naquele tempo já ciumenta e má.
Da calçada fiquei assistindo à festa, meu irmão no lugar de honra, alvo de muitas atenções e pasmos, ao lado de Helena. Foi para ele que ela cortou a primeira fatia do bolo de aniversário. Os adultos bateram palmas e concordaram todos em que o meu irmão era um anjo descido à terra em alguma importante missão redentora, só ele digno de ser estimado por Helena, que breve seria aspirante a Filha de Maria e que já coroara Nossa Senhora diante do senhor cardeal arcebispo.
Interiormente, eu não ligava muito para tantas honrarias; o que queria era ver Helena fazer diante do senhor cardeal arcebispo o que ela fazia comigo no porão de nossa casa. Desde essa época, porém, passei a fazer pouca fé na vida íntima das mulheres.
Ignorava o que pensava meu irmão daquilo tudo. Sabia que Helena dava-se a todos, sem muito rogo, mas tinha certa predileção por ele. Um dia, surpreendi-os no quarto de nossa empregada: o meu irmão não era um hipócrita; ao vê-lo naquele transe notei que conservava o mesmo ar de apalermado, a fisionomia de quem estava quase sofrendo. Helena, sim, se esbaldava.
Nesse mesmo dia, sentindo alma e carne possuidoras de uma angústia inexplicável, procurei Julinho para mais um desabafo. Ele me ouviu com ar superior, como quem não dá importância às porcarias da vida. Eu respeitava Julinho principalmente porque era o nosso mestre em todas as patifarias que os adultos cometiam e proibiam. De seus lábios ouvi o primeiro palavrão aproveitável, de seus bolsos saíram os primeiros cigarros, de seu dinheiro tomei o primeiro parati, de suas mãos presenciei a primeira masturbação. Fora ele, além do mais, quem pervertera Helena e outras gurias das redondezas. O título e a função de mestre caíam-lhe como nunca mais soube caírem em alguém.
Não fiquei decepcionado. Julinho deu-me sábios conselhos. Foi uma vasta digressão sobre a alma e o corpo das mulheres, eram todas imundas, porcas. Prova bastante o fraco de Helena pelo meu irmão: bem comprovadas a sordidez e a torpeza femininas.
Ora, acabei achando que Julinho exagerava um pouco. Por que tanta severidade? Não era ele igual aos outros? Mas nem precisei formular a questão. Julinho leu-a nos olhos ou tirou-a de dentro de si mesmo. Disse então que meu irmão “era gilete de dois fios!”.
Não podia deixar sem reparo assertiva que enxovalhava a honra da família. Pedi provas, um testemunho bastava, de alguém que provadamente pudesse dizer: eu abusei e ele gostou. Reconhecia, era um retraído, diferente dos demais, mas daí até a anormalidade ia muita distância.
Julinho deixou-me falar. Quando acabei, fez cara de autoacusação tão evidente que tive ímpetos de esbofeteá-lo ali mesmo. Lembrei-me, porém, do Papai Noel: o padrasto teria melhor ocasião para isso. Abandonei-o com cara de nojo.
Desde aquele dia aumentaram minhas suspeitas de que a vida era uma porcaria.
Ao entrar em casa, levava decisão de proceder a um interrogatório a sós com meu irmão. Mas a cara com que ele me recebera era tão tola e alheia à vida que resolvi desistir. Mesmo porque encontrei a família reunida, com a presença de meu padrinho e de algumas pessoas mais chegadas. O motivo da reunião, dada a compunção reinante em todas as fisionomias, só podia ser eu mesmo. E era. Haviam feito essa coisa imbecil que se chama deliberar sobre o futuro de uma criança. E exprimindo o pensamento de todos, principalmente o próprio, meu pai falou-me com voz grave, cheia de indulgências e boas intenções. Fui assim comunicado de que ia para um colégio interno, onde o rigor da disciplina, a severidade dos estudos e a prisão constante domariam meus instintos até então desviados para o mal e para a dissipação.
Ouvi a sentença com ânimo forte. Sabia que todos eram porcos, que eu apenas não era exceção. Alguma coisa, entretanto, doeu dentro de mim. Não fosse o incidente de há pouco, e correria ao Julinho em busca de conselhos e lenitivos.
Fui, porém, procurar Helena. Ela me ouviu sem dar muita importância.
- Então, nunca mais, Helena?
- Nunca mais o quê?
Estava embaraçado. Desejava dizer-lhe que ia sentir sua falta, que iria lembrar sempre o nosso amor pelos porões escuros. Mas não disse nada. Foi melhor assim. Se eu soubesse então de tudo, teria ficado calado mesmo.
Minha mãe começou a fazer-me o enxoval. Meu padrinho presenteou-me com um refulgente pijama de sete cores. Mas o meu irmão fez tamanha choradeira por causa do pijama que papai resolveu dar-lhe o meu, comprando-me um outro, este mais modesto, com apenas quatro cores. O que eu não disse a ninguém, mesmo porque ninguém se interessou em conhecer a minha opinião, é que achava os dois pijamas ridículos.
Doeu, e muito, a última noite. Após o jantar, encostou à nossa porta um enorme caminhão e dele saíram uns homens suarentos carregando móveis novos: uma cama de solteiro, um armário cheio de divisões e espelhos, uma cômoda, uma estante de livros, uma mesa de estudos e uma cadeira giratória, que me pareceu importante e sagrada.
Vi desmontarem minha cama. Meu velho armário, vazio de roupas e cheio de traças. Desmontaram também os móveis de meu irmão. E no quarto vazio armaram a nova mobília. Aquele seria o novo quarto do irmão.
Notaram a tristeza, que eu não sabia ainda esconder. Tolinho, fui para o canto chorar. Explicaram-me que não necessitava de quarto na casa. Meu irmão, predisposto à asma, jamais iria para internato algum, necessitava de conforto e calma para viver e estudar com proveito. Quando viesse passar as férias no fim do ano, eu dormiria na sala, no velho sofá azul, relíquia do avô materno.
No sofá azul, molas todas arrebentadas, dormi o último sono de infância no lar paterno. Força de expressão: fiquei acordado a noite inteirinha, ruminando, ruminando.
Foi então que descobri: me expulsavam.
Tive de madrugar no dia seguinte. Na hora de partir, fui despedir-me do pré-asmáticmeu irmão. Mas não consentiram, ele ainda dormia, não tinha necessidade de fazer uma madrugada inútil. Fui, porém, às escondidas, espiá-lo, agora que ele usufruía de requintes no quarto, até mesmo um tapete em que ainda não reparara e que impregnava o aposento com um calor agradável e bom.
Meu irmão dormia feliz e pesadamente. Um terço enrolado à cabeceira. No chão, caído durante o sono, o livro de orações, um velho Goffiné ensebado, privilégio todo especial usá-lo, vinha de geração em geração ensinando a rezar os lábios mais sagrados da família.
Apanhei o livro com minhas mãos ímpias. Um santinho se escapou daquelas páginas beatas: uma estampa ordinária de Nossa Senhora da Aparecida. No verso, uma letrinha miúda que adivinhei ser de Helena. Ouvi passos no corredor e meti o santinho no bolso.
Ao me deparar com papai, parecia até que ele adivinhara o delito.
Tomei a bênção à mamãe. Pediu-me que cuidasse da saúde e não lhe trouxesse aborrecimentos. Fez-me fazer o “pelo sinal” diante do Sagrado Coração da sala.
- Vamos ver se você se corrige. Se o colégio interno não lhe alterar os hábitos, a única coisa que podemos fazer é mandá-lo ganhar a vida na rua.
Saímos: papai, meu padrinho e eu. Havia certa solenidade naquilo tudo. O leiteiro botava leite em nosso portão. Deu-nos bons dias. A rua estava deserta, um bonde acabava de fazer a curva na esquina.
Ao passar pela casa de Helena pisei forte na calçada, com os pesados tacões das botas novas. Queria fazer barulho, que ela ao menos soubesse que eu passava. Defronte ao seu portão fingi um acesso de tosse tão forte e veraz que fez meu padrinho comprar-me mais adiante um xarope peitoral à base de creosoto. Mas as janelas de Helena permaneceram mudas e vazias.
Logo meu pai apertou o passo. E eu deixei para trás, com o coração apertado, uma coisa que ainda hoje não sei o nome exato.
Penosos os primeiros dias de internato. Visitas apenas no último domingo do mês. A primeira foi concorrida, todos os lá de casa, incorporados, como numa manifestação.
Constrangimento ser centro de atenção daqueles que nunca me haviam dado atenção.
Meu irmão engordara. Tanto tomou as pílulas do Dr. Moreira, as bochechas lá estavam, enormes, banhudas, cara de petropolitano no frio, que mais lhe acentuava a estupidez exterior e a tortura interior.
Vontade de perguntar. Saudades de Helena, de Julinho. Meu irmão por conta própria falou. Julinho ia para a Marinha, mandava-me abraços. E Helena? Papai falou nela, de passagem, fazendo a elegia das atividades do irmão, “a menina do Dr. Luís também está aprendendo inglês com o professor do seu irmão”. Aplicados os dois, o professor surpreendido com a rapidez com que ambos aprendiam os segredos da língua da “Velha Albion”, que fiquei sabendo na ocasião, solicitude do padrinho, não perdia oportunidade para demonstrar a erudição de funcionário da biblioteca do Itamaraty.
Nada alegre a visita. Foi tão triste. Nem jantei depois. Repercussão nas altas esferas da administração: apesar de um mês no internato, já a fama de comilão transcendera fronteiras. O próprio intendente começou, depois todo mundo:
- Zé Gordura! Zé Gordura!
Gordo não. Mas comia tanto que o apelido caiu bem, fui o primeiro a reconhecer.
A verdade é que não jantei naquele dia. Um aperto na garganta. Mais uma vez a família fizera-me mal. Passeei pelos recreios, sozinho, vontade de esconder a cara em algum canto para chorar livremente.. Nas mãos, um santinho de Nossa Senhora da Aparecida.
Na cama, ainda o santinho. Beijei o pedacinho de papel, a letrinha incerta de Helena, não eram para mim as palavras bonitas: “Para você, meu querido amor, a imagem da nossa padroeira, para que ela proteja sempre o nosso amor e te dê felicidade. Da tua - Helena”.
Estava sem sono. De repente me deu louca vontade de chorar. Só chorava por motivos ordinários, físicos: injeção, dor de dente, pancada, outros afins.
Chorei pela primeira vez por motivos além-física. Pena de mim mesmo, e isso é horrível na escuridão de um dormitório estranho. Memória trabalhando, cenas e feridas esquecidas, ali nas paredes. Os olhos projetando no teto escuro, como num cinema, toda a infância inútil.
Naquela noite descobri a tristeza. Minha namorada tristeza. Namorada, depois amante vitalícia.
Ela penetrou dentro de mim. As lágrimas, transbordamento bobo da alma, que entrasse a tristeza, se fizesse senhora. Talvez a minha tristeza fosse saudade de não sabia o quê.
Aquela noite marcou o fim da minha infância. E o início de uma maturidade precoce e desesperada. Os tristes são sempre maduros.
Naqueles dez ou quinze minutos vivi e chorei, sem saber, toda a mocidade. Deitara-me criança, acordaria homem. O jovem nascera e morrera ali, diluído no pranto macio que molhou os travesseiros, deixando em minhas faces um gosto estranho que às vezes procuro, inutilmente, renovar.
Nas outras visitas, só a pessoa e a sabedoria do padrinho. Trazia credenciais de toda a família. Transmitia-me as novidades, se inteirava dos meus progressos no saber e na virtude.
Fim de ano, ali pelo meu aniversário, vieram todos novamente. Meu irmão resplandecia, um terno branco de calças compridas, gravata branca também, ar de primeira comunhão, os cabelos ensopados em vaselina cheirando a sândalo. O esplendor do seu terno me deslumbrou. Era dos meus fortesdesejos, um terno igual àquele. Achavam que não ficava bem aos meus hábitos pouco limpos, minhas roupas eram sempre de azul-marinho, a cor clássica, como me engabelavam, e que me permitia ir a enterros e casamentos com o mesmo e sovado terno.
Afora a velada afronta do traje - meu uniforme cáqui cheirando a miséria - foram amáveis comigo. Minha mãe trouxe-me torta de banana, sobremesa maldita que me fez vender a alma ao diabo, anos atrás. Uma das decepções da vida. Pensava: basta a gente formular o pensamento e logo o diabo aparece em carne, osso e enxofre, com a torta na mão, quentinha, untada de manteiga. Mas o diabo achou que minha alma não valia uma torta de banana. Ou descobriu que não precisava gastar torta para ganhar uma alma já destinada ao seu reino de sombras e de inquietudes.
Meu irmão também participava daquele amor às tortas, mas nunca necessitou apelar para métodos tão rebarbativos, sempre foi muito bem suprido. Insincero se eu não sentisse comoção diante da torta, apesar de pequenina, mamãe tinha duas formas, a grande ficara em casa.
Papai deu presente: pasta de livros. O padrinho também, um livro, até hoje em lugar de destaque nos quartos onde tenho abrigado a carcaça: O moço educado, um tal Tihámer Toth, húngaro metido a entender de juventude.
Notícias de Helena, por intermédio de mamãe:
- Helena mandou abraços. Não veio por causa dos exames.
Naquela noite não chorei. Proximidade de fim de ano. Férias próximas, daqui a mês e pouco.
Examinei-me ao espelho. Feio, decididamente. O nariz enorme, um respeitável senhor nariz. Espinhas brotando no rosto, como furinhos de ralador de coco. Barba feia nascendo rala e irregular. Uma caricatura. A natureza caprichara em minha formação. Magro, esquelético, principalmente o rosto, só ossos de fora. Pior mesmo o nariz, agressivo, preponderante. Na visita, notado o inusitado volume da narigueira. Ninguém explicava a responsabilidade genealógica de tanto nariz. O padrinho aproveitou, nariz grande, sinal de inteligência, citou Napoleão: “Quando quero que me façam algum serviço importante e que precisa ser bem-feito, chamo sempre um homem de nariz grande”. Chegou mesmo à heresia, lembrou o respeitável e pontifical nariz de Sua Santidade, o Papa Pio XII, gloriosamente reinante.
Ninguém deu importância. Um despropósito o paralelo com o Santo Padre, Vigário de Deus na Terra, logo com um sujeito que dizia Poncio em vez de Pôncio.
Feiura constatada. Mesmo assim fiquei alegre de repente, sem motivo aparente para isso. Verdade que as férias estavam próximas. Mas o que esperar dasférias? Sempre mais liberdade, mais comida, dormir até mais tarde, ver Helena todos os dias.
Helena. Teria seios agora? Preocupação nossa, seus parceiros no amor infantil. Por intuição apenas, sabia que os seios deviam ser parte do jogo do amor . Mas o que fazer com as cicatrizes magras e roxas do seu peito, iguaizinhas às minhas? O ano correra, ela na certa já deitara para fora a gostosura toda.
Quem foi o primeiro? Meu torturado irmão? Lembrei suas recentes bochechas gordas. Na certa contágio, de tanto se esfregar na outra. Associação de ideias muito compreensível: Julinho, o que queria ter nádegas na cara. Julinho era perverso, petiscara também. Meu irmão era inepto, calhorda. Julinho porém era devasso, de inventiva própria. Não se limitaria ao usufruto manual apenas, na certa inventara outros meios e modos para aproveitar as novidades branquinhas que surgiam, inchadas, no peito de Helena.
Pensando em seus seios, seios que não vira ainda e que talvez nem existissem, na boca o santinho com a letrinha miúda de Helena, um gosto safado no coração, pequei furiosamente a noite inteira.
Os exames custaram a passar. Fui reprovado em quase todas as matérias, confirmando previsões de todo mundo, as minhas inclusive.
Mal que vem para bem, minha reprovação teve um mérito: justificou a fria recepção lá de casa. Nem sequer foram me apanhar. O padrinho foi que veio, tentou ser amável, tratou-me como gente, como um homenzinho: prometeu levar-me a São Paulo, passar dias em casa da irmã, falou na cidade, programou passeios.
Um parêntesis para falar nesse sujeito. Cedo ou tarde falaria nele e é bom que fale logo. Primeira impressão: representou na minha vida o papel de um canastrão convicto e esforçado. Nunca o perdoei por isso. Filho do pai e da mãe dele, até aí sem novidade. Pai e mãe não lá essas coisas em fidelidades conjugais, a casa desfeita, educado por um velho tio, um tal Antônio das Neves, patriarca dos Neves, homem de perfeições físicas e morais, afora a imperfeição física de ser estéril e a moral de gostar de galos de briga. Para alegrar o lar, encheu-o de galos e sobrinhos, que seus irmãos se encarregavam de produzir aos magotes. Meu padrinho foi um deles, o mais velho de todos, “sobrinho primogênito”, conforme o próprio se classificava. Seus desejos eram ordens na casa do tio Antônio, que lhe devotava afeto imediatamente inferior aos dos seus vinte e cinco galos de briga.
Grassou epidemia entre os galos, o padrinho satisfeito, promoção à vista no bolso e no afeto do tio. Diabo foi que o tio acabou que alguém, na calada da noite, colocara arsênico na mistura dos ditos, e de investigações nas farmácias próximas e nas macumbas especializadas, foi levado a crer que o envenenador outro não era senão o coitado padrinho.
Com a roupa do corpo, mais o embrulho com um restinho de arsênico no bolso, o padrinho encontrou-se naquele importante lugar vulgarmente denominado “olho da rua”. A primeira ideia que lhe acudiu foi a de tomar o resto do arsênico com cerveja preta. Até hoje não se explicou devidamente sobre os motivos que impediram gesto tão saneador. Continuou vivendo, sem muitas convicções a respeito da vida, mas a ela se aferrando com unhas e dentes, mais tarde dentadura.
Quando o conheci, nos primeiros momentos de infância, era o padrinho a quem me obrigavam a tomar a bênção, e o compadre a quem meu pai secretamente chamava de “traste”.
Eis o homem. Pouco para que o compreendam. Muito para que o considerem um aproveitável sujeito. De fato, o era.
Em casa finalmente. Dois meses sem ver os meus, um ano inteirinho sem vir à nossa casa. Mamãe pareceu-me mais velha, os cabelos brancos acentuavam o silêncio de sua cabeça. Dentro das órbitas escuras, dois olhos tristes. A casa, pequena e ridícula. Habituado aos dormitórios, aos refeitórios, a tudo terminado em ório e grande, achei tola nossa velha sala de jantar, atravancada de móveis estranhos.
Meu irmão não havia terminado o ano letivo. Passaria as férias estudando, preparatórios para o Colégio Militar.
À noitinha, chegou papai. Evitou falar comigo e eu com ele. Na hora do jantar não houve outro remédio, fui tomar-lhe a bênção. Ele reparou na minha magreza, na minha feiura, mas não disse nada. O padrinho aproveitou o tema da minha magreza, abriu baterias contra os colégios internos, que o governo devia intervir, sabia de casos criminosos, citou instituições assassinas. A prova ali estava, um menino outrora sadio e gorducho voltar para casa com o esqueleto à luz do dia.
- Não foi essa - ponderou meu pai - a informação que me deram no colégio. Sabe o apelido dele? Zé Gordura...
Para confirmar, apontou o fura-bolos em direção ao meu prato enorme, transbordante de macarrão com picadinho.
- Como come! - disse mamãe. - Se não engorda é que anda fazendo das suas!
Não me incomodei com alusão tão torpe. Meu irmão corou e se incomodou por mim.
À sobremesa, queijo e goiabada. Mamãe já botava os dois pedacinhos no meu prato quando a empregada veio com um um restinho de torta de banana no pires, sobra da véspera. Pedaço colocado em frente ao irmão, duas garfadas, as bochechas ficaram redondas, como se estivessem mastigando um mundo.
O padrinho notou minha dor de corno, informou-me que aquilo era da véspera, a comadre faria outras. Mamãe teve de se comprometer, não sem antes valorizar:
- Banana anda difícil agora!
Meu pai, calado o jantar todo. Ao terminar a sobremesa, um pigarro exagerado, advertência que ia falar coisa solene. Falou mesmo. Disse que não estava satisfeito, um fraco rendimento no colégio, reprovado de forma vergonhosa, procedimento ruim, o diretor talvez nem me aceitasse mais. Nem ele, nem minha santíssima mãe, tinham esperanças. O prazer de receber-me para as férias, completamente estragado. Com palavras imprecisas, das quais eu ignorava o significado, disse que não tinha culpa, nenhuma responsabilidade na minha maneira rebelde, não conhecia antecedentes tão refratários aos bons caminhos. Mais que a vergonha da família, eu era a vergonha de duas raças. A prova, ali estava, o meu pio irmão, esplêndido estudante, resplandecendo de bons procedimentos, proveitosos estudos, edificantes ações.
Ouvi tudo com respeito, e por que não dizer? com certa vontade de chorar. Fui forte, a cara de sempre, enxuta, “a cara cínica”, como os outros diziam.
Após o pai, falou o padrinho. Deitou o verbo, mais modesto, sem tom definitivo. Que apesar de tudo eu não era caso perdido, caso difícil apenas, da minha têmpera saíam grandes homens, fez uma fé pública pelos meus altos destinos.
Meu pai deixou o padrinho falar. Não concordou nem ousou discordar. Minha santa mãe, porém, na santíssima sinceridade que lhe era própria quando se tratava de malhar minha pessoa, fez o padrinho abandonar rapidamente as nuvens, voltar à realidade dos fatos:
- O compadre não enxerga um palmo diante do nariz!
Doeu naquela advertência é que o nariz do padrinho era pequenino. Essa vantagem eu tinha, mesmo só enxergando um palmo diante do meu, via mais do que os outros na mesma situação.
Sem ninguém perceber, fiz um afago no enorme nariz. Primeiro e último afinal. Nunca mais tive motivo para afagá-lo. Nunca mais foi glória. Continuaria a ser o narigão do narigudo, na sua triste missão de chegar aos locais antes do meu corpo, e assim muitas vezes era o primeiro a sofrer, e o último a ser consolado pelos controles interiores.
Serão. Tentei ir à rua, mas tive receio de que não me deixassem. Perguntei ingenuamente a meu irmão se não queria dar um giro. Aquilo caiu como um raio dentro de casa. Nem ainda chegara e já queria botar o outro a perder! Um giro!
Minha mãe olhou-me como a um ser infectado, rosnou que era preciso evitar o “contágio”. O próprio padrinho não teve remédio, teve de achar um despropósito. Eu era um monstro.
Foi então que o irmão teve oportunidade de resplandecer em toda extensão de suas virtudes. Veio em meu auxílio, disse que o padrasto do Julinho havia perguntado por mim, que ele prometera visita minha à noitinha. Mentira ou verdade, foi um “abre-te Sésamo!”. Tudo ficou serenado, minha mãe pegou nas costuras, meu pai nos jornais. Que não me demorasse, apenas.
Apanhei-me sozinho na rua. Momentaneamente livre de tudo, do colégio, da família, em plena rua e em plena noite, podendo tomar um bonde e sumir. O vento que descia da Boca do Mato batia no meu rosto um hálito de arvoredo e liberdade.
A casa de Julinho era à esquerda, a de Helena à direita. Desde a manhã que me prendia para não sair correndo, rever seus olhos espantados, seus seios novinhos em folha. Mas não podia ir assim, corria o risco de passar vexame, o Dr. sabia-se escorado pelos meus pais e gostava de exagerar no zelo em me manter afastado da filha. Trazia na carne, ainda, a vergonha dos oito anos de Helena, e não sou de repetir emoções desagradáveis.
Melhor seria aturar Julinho e o competente padrasto. Mais tarde, pediria que me acompanhasse à casa de Helena, eu seria melhor tolerado se escudado por pessoa nas graças gerais.
Julinho me recebeu na porta. Mais alto, forte, bonito, só um ligeiro prenúncio de boçalidade a se insinuar pelo rosto. Não lhe causei boa impressão. Meu aspecto feio, desnutrido, exageradamente alto e magro, devia constrangê-lo também.
Ficamos embaraçados, um diante do outro.
- Como é? Você voltou?
- Sim. Tudo bem em casa?
- Bem. O padrasto perguntou por você. Entre.
O padrasto do Julinho. Dono de sapataria na rua Camerino. De pijama, lia o boletim da Sociedade dos Donos de Sapataria do Distrito Federal, órgão oficial da classe, dizia o cabeçalho. Não me reconheceu de pronto. Julinho lembrou-lhe:
- O Zé, filho do seu Severo...
- Ah! - fez o padrasto, compreendendo.
Abraçou-me, achou-me bem disposto, forte, um rapagão, perguntou pelos estudos, pelos meus pais, pelo meu irmão, não ouviu nenhuma resposta e voltou ao boletim, órgão oficial da classe.
Assunto rapidamente esgotado. Ficamos a sós, na varanda. Eu o mesmo, nada mudado, perseverando honestamente em todos os meus defeitos, na safadeza. À minha infância obstinadamente fiel o resto da vida. Ele não.
Tive vontade de perguntar se o padrasto ainda lhe sovava, se ele desejava ainda subverter a posição das nádegas. Ele adivinhou a pergunta nos meus olhos:
- Sabe? Estou regenerado...
Foi um abismo que se abriu entre nós dois. Julinho mudara, não o conhecia mais, era um estranho que surgia de repente, com o mesmo nome do outro. Onde estava o Julinho do cigarro, o do parati, o que pervertia as meninas, o que sabia todos os mistérios bonitos da vida? Para sobreviver em mim, Julinho teria de ficar parado na minha saudade.
Odiei o rapaz estranho, bem-educado, quase bonito, cumpridor dos deveres. Deixei escapar comentário que resumia a situação, que abrangia toda a minha decepção:
- É. Tudo mudado!
A resposta foi fria:
- Mais ou menos...
Julinho fora para o mais. Eu ficara no menos.
Pensei em Helena. Também mudada? Precisava ir vê-la correndo.
- E Helena?
- Boa. Muito amiga de seu irmão agora.
- Bonita?
- Sabe? Nem reparo mais nela.
Pedi que viesse comigo. Acedeu:
- Ninguém vai te comer vivo!
Foi lá dentro, avisou que ia sair, não demorava nada. Na rua, parou de repente e me encarou:
- Será? Está gostando dela?
Encabulei.
- Não, não é isso. Talvez você não entenda, mas no colégio a gente dá muita importância às coisas que ficam aqui fora. Pensei nela, pensei em todos, em você, na rua, em tudo...
- E no porão também!
Não ouvi. Julinho era um estranho, não merecia confidências, não abriria minhas janelas para ele.
Mãos nos bolsos, fomos em silêncio. Passamos por minha casa, ninguém à janela. O portão de Helena. Meus receios fizeram-me suar frio. Vontade de voltar atrás. Julinho foi entrando com familiaridade. Fiquei na rua. A voz austera do Dr. Luís mandou-me entrar.
O pai de Helena foi amável. Fez-me as mesmas perguntas do padrasto do Julinho, deu-me palmadinhas nas costas, elogiou meu pai, exaltou minha mãe. Ao falar em meu irmão engasgou um pouco, forçou o crânio para encontrar palavra apropriada:
- Um... an... um arcanjo!
O irmão do arcanjo perguntou por Helena. Ia bem, sucesso no colégio, excelente média global, férias em fazenda, no sul de Minas.
Tanta jovialidade encheu-me de coragem. Perguntei se Helena já havia ido.
- Não, não. Foi ao cinema, com a mãe. Vai depois de amanhã, no trem das sete.
Julinho alegou uns estudos, eu aproveitei a oportunidade.
Novamente na rua. Um desespero repentino. O ano inteirinho a esperar pelas férias, a sonhar com o porão, com as facilidades diárias. E ela ia para fora!
Meu pai agora estava na janela, fumando charuto. Não disse nada, nem precisava dizer.
- Pois é, Julinho, contente em rever vocês todos.
Um pigarro estrondoso na janela.
- Até amanhã, Julinho.
- Até amanhã.
Em casa, o silêncio. Meu pai a fumar, minha mãe costurando, o padrinho lendo Eça. Meu irmão no quarto, a estudar. Tentei ligar o rádio, mas não podia, qualquer barulho perturbaria o gênio doméstico.
Nada a fazer. Nem dormir, pois não tinha cama nem quarto, tinha de esperar que todos se recolhessem para deitar-me no sofá da sala.
O padrinho notou minha situação, insinuou que fosse pedir um livro ao irmão. O silêncio de meus pais aprovou a sugestão. Fui ao quarto-sacrário, templo onde meu irmão comungava o saber, as pias obras.
Tão absorto estava que não deu pela insignificante presença. Precisei tossir, baixinho e modestamente, como um contínuo para falar com o chefe. Ele então se dignou baixar seus misericordiosos olhos. Disse-lhe que desejava um livro. Na certa ele se alarmou com a inesperada inquietação cerebral que me possuía, mas não disse nada, indicou-me a prateleira, tirasse o que quisesse.
Predominavam livros escolares. Gramáticas Expositivas, Novíssimos Vocabulários da Língua Portuguesa, Cem Exercícios Latinos de F. T. D. Alguns livros de Monteiro Lobato, Emília nisso, Emília naquilo. O tesouro da juventude em bonita encadernação ouro-azul. Júlio Verne, a capinha vermelha, aquele balãozinho subindo.
Escolhi o livro por causa da capa, uma escandalosa bandeira brasileira tremulando ao vento e escoteiros bem-educados e de roupinhas limpas prestando continência: O Brasil e suas riquezas. Tratado de brasilogia, no subtítulo. Coisa útil, gravuras e diagramas atestando, com firma reconhecida, os tesouros pátrios.
O padrinho foi o único a aprovar minha patriótica escolha. Soltou uma frase na certa sutil sobre a necessidade do “amor à pátria no coração dos homens de amanhã”.
Abri ao acaso. Dei logo de cara com uma folha de papel ordinário, escrita a lápis, uma caligrafia já manjada e amada pelo meu coração. Era trecho de algum bilhete e dizia: “Você precisa deixar de ser bobo, faça como os outros, venha mais cedo que eu...”.
Fechei o livro violentamente.
Vontade louca de gritar, de chorar, de fazer qualquer coisa amarga ou estúpida.
O que saiu da minha garganta foi um soluço seco, quase um vômito.
- Que foi? - perguntou o padrinho.
Não dei resposta. Olhei com ódio para todos. Meu pai ia dizer alguma coisa. Eu me antecipei, medonho:
- Porcos! Porcos! Não suporto mais esta casa! Quero voltar para o colégio! Agora mesmo!
Meu pai foi lacônico e mau:
- Agora é impossível. Amanhã providenciaremos.
Nada se providenciou no dia seguinte. Fizeram todos por esquecer o incidente, eu mesmo também. Detestei o rompante imbecil. Além do mais, estava louco para rever Helena, pura ou depravada, não importava, queria vê-la, já devia estar moça, mulher quem sabe. Para ajudar a suposição, havia o bilhete, “faça como os outros fazem”.
Dia monótono, nem sombra dela. Ela viajaria no dia seguinte, não a veria mais depois. Eu voltaria ao colégio, mais um ano de ausência e morreria a intimidade, tornar-me-ia um estranho, nossas recordações morrendo, o porão escuro e comum breve se dissolvendo, a claridade de novos fatos expulsando aquele escurinho tão bom e íntimo que era toda a minha alegria, minha esperança, minha saudade.
Após o jantar apanhei novamente o tratado de brasilogia. Aprendi coisas. O papelzinho sórdido entre os dedos, uma certa volúpia em ter entre as mãos a prova do delito, se rasgasse aquele bilhetinho teria a impressão de estar despedaçando com a própria dor de toda a humanidade. Não o rasgava porque começava a achar um gosto estranho em sofrer.
Afundei-me num capítulo dedicado à imensidão do ouro em nosso solo e já retratado de forma perene no amarelo de nossa bandeira.
A casa tinha gosto macio de claustro. Meu pai na janela, olhando a noite, minha mãe bordando, meu irmão estudando.
Papai de repente se voltou:
- Helena vem aí!
Eu devia estar com a cara imbecil e alarmada. Mas não tinha outra para a ocasião. Talvez Helena nem desse por ela. Controlei-me o que pude e me atirei na apreciação de nossas jazidas minerais - as maiores do mundo.
Helena entrou dando boa noite para todos. Respondi à saudação em coro com papai e mamãe.
Beijou minha mãe no rosto com intimidade, estendeu a mão para papai. Veio em minha direção, muito correta e digna. Levantei-me cerimoniosamente. Para marcar a página que lia usei do bilhetinho. Tinha ironias a vida.
- Como vai? Como está... crescido!
O “crescido” saiu difícil. Queria dizer “feio”, mas reconsiderou em tempo, as mulheres são hábeis.
Meu olhar foi para os seios. Muito pequenos ainda, só firmando a vista percebia duas pequeninas inchações despontando em silêncio, sob o vestido.
Helena estava bonita. A cintura se acentuava, os quadris tomavam formas. Uma certa violência naquelas ancas adolescentes.
- Estudou muito?
- Fui reprovado.
- Ah! - fez ela, compreendendo que havia feito besteira em perguntar, sabia já da minha reprovação, façanhas tais eram suficientemente espalhadas para advertência alheia.
- Estive ontem em sua casa.
- Papai me falou. Obrigada pela visita.
- Não tem de quê.
Perguntou pelo meu irmão, coisa desnecessária, ela já tomava a direção dos quartos, sabia perfeitamente onde ele estava.
- Bem, vou me despedir dele.
Helena sumiu no corredor. A porta do quarto-sacrário rangeu e se fechou. Afundei-me novamente no livro. As orelhas me queimavam, eu devia ter febre. Mesmo assim consegui ler, palavra por palavra, todo o capítulo das jazidas de ferro - as maiores do mundo -, acabei o ferro, peguei o estanho, o manganês, a beleza dos rios, a graça sem-par de nossas borboletas, a opulência de nossa agricultura - a futura maior do mundo -, e nada da despedida acabar.
Revoltava-me sobretudo a tranquilidade de meus pais, alheios e confiantes na pureza daquela entrevista a portas trancadas. Eu me lembrava do porão, porão escuro, cheio de teias de aranhas, as vigas de pinho-de-riga a me abrir galos na testa. O outro, nada de galos, tinha a galinhazinha ali no quarto, na cama, com colchão e tudo! Reparava meus pais. A cara dos Severos, severa. Cambada de alcoviteiros todos, os pais de Helena também, todos sabiam de tudo e deixavam. São repugnantes os adultos!
A cabeça rodava. Vontade de vomitar, sempre essa vontade, qualquer emoção mais forte e logo vontade de abrir as goelas, despejar com nojo a alma, as tripas, ficar vazio, oco, subir aos céus.
O suor quente nas frontes. Sabia que a praxe para essas horas era fazer qualquer coisa de desesperado com os outros ou com a gente mesmo. Lembrava-me do caso do seu Werner, um suíço de meia-idade, relojoeiro na Rua Lins. A esposa, morena, baixinha, famosa no Largo dos Pilares, trepava pra burro. Seu Werner não sabia de nada. Veio em casa certa tarde apanhar uns recibos, apanhou foi a mulher embaixo do Sacadura, famoso apanhador de balões daquelas adjacências. O mesmo tiro matou um e outro. Mas seu Werner exagerou, deu vários outros tiros no ar, como que para assassinar o universo inteiro que pactuara com o adultério de sua esposa e com a enormidade da sua dor. Reservou um, o último, para a própria cabeça. Ficou varada, olhos esbugalhados, a massa cor de creme estragado saindo pelos ouvidos.
A tragédia impressionou a todos, adultos e crianças. Meu padrinho, na hora do jantar, exaltou a forma pela qual morreram os dois amantes, varados pela mesma bala. Era um episódio de Dante em pleno Lins de Vasconcelos!
Para mim aquilo tudo foi meio obscuro. Entendia só parte, outra não. Sacadura em cima da mulher, certo. Seu Werner dar tiro no Sacadura e na mulher, ainda certo. O que não fazia sentido era aquele último tiro, bem no centro da testa. Isso me escapava. Por que seu Werner fizera aquilo?
Parecia entender tudo agora. Forças ocultas há. Na ocasião falaram muito em tragédia, o nome de nossa rua saiu no jornal, “tragédia na Rua Cabuçu!”, e eu não chegava a saber a força maligna que havia na palavra. Meu pai a vulgarizava demasiadamente, qualquer coisa que eu fizesse ele logo vinha:
- A vida desse menino vai ser uma tragédia!
Mas tragédia é sopa, duro é a aflição. E a minha aflição tinha de ter fim. Ou uma pausa. Ouvi a porta ranger, passos no corredor, Helena outra vez na sala, arrumadinha, dona de si, o narizinho empinado.
- Já falei com todos, agora até a volta. Mandarei cartas.
- Boas férias para você! - disse papai.
- Aproveite o ar da montanha! - recomendou mamãe.
Helena, sentimental:
- Obrigada. Vou sentir saudades de todos.
A tirada pungiu:
- Vai, minha filha, que Deus te abençoe!
Eu, calado. Olhos num crioulo levando às costas um saco do melhor algodão do mundo. Senti um fogo em cima de mim. Helena me olhava. Encarei-a também. Não pude esconder certa gana. E ela percebeu a gana. Percebeu também que eu a despia, catando vestígios do amor. Abaixou os olhos, com raiva.
“Ela me odeia!”
Helena foi embora. Sua nuca foi a última coisa a desaparecer. Nuca nua, nuca perturbada. Ela desconfiara da minha suspeita, da minha raiva, do meu ciúme, e isso tudo era verdade. E do amor?
O amor também era verdade.
Não dormi. Revirei nas molas do sofá, pra lá, pra cá. Meu pai urinou três vezes no urinol, ouvi o barulhinho. Pela janela da frente entraram os primeiros clarões do dia.
Helena àquela hora já acordada, se aprontando.
Levantei-me.
Abri uma fresta na janela, para olhar.
Vi o táxi passar e parar mais adiante. Ouvi vozes, bater de portas, o Dr. Luís para a mulher: “Cuidado com os batedores de carteira na estação!”.
O carro fez a manobra, acelerou mais forte. Passou pela minha frente. Helena virou o rosto em direção à nossa casa. Mas não foi para mim aquele olhar de saudade.
As perspectivas para as minhas férias ficaram sombrias. E as primeiras semanas transcorreram monótonas, numa pasmaceira que me fazia desesperar. Julinho passou a me evitar. Meu irmão não saía de cima dos livros, meu pai não me dirigia a palavra, limitava-se a me olhar do fundo das órbitas, um olhar inquisidor e cruel. Minha santa mãe, essa nem sequer me olhava mais.
A desgraça só não foi maior porque restava ainda o padrinho, que nos meados de janeiro resolveu levar-me a São Paulo, passear um pouco, alargar horizontes. Meus pais relutaram a princípio. Argumentavam que os prêmios eram para aqueles que mereciam, eu nada merecera, nada mais justo que ficasse por ali mesmo, entediando-me com a vida e meditando sobre a necessidade de imprimir novos rumos à vida.
Acabou, porém, o prazer de me verem longe superando a justa vontade de me corrigirem. Embarquei de trem de luxo, meu padrinho desdobrou-se em amabilidades, comprou-me revistas. Durante a viagem chegou a me oferecer cigarros, com uma cara de incentivo:
- Você já tem catorze anos, é quase um homem. Pode confiar em mim.
Não aceitei os cigarros. Mas aceitei a amizade e a confiança daquele homem, que sempre me parecera um chato. Eu vivera até então amando pessoas que não me dispensavam atenção. Por que não amar um pouco também aquele canastrão que afinal de contas era o único para quem eu não era um criminoso ou um estorvo?
Os parentes de meu padrinho dispensaram-me honras de chefe de Estado. Tive quarto só para mim, boas cobertas, café servido na cama. Às refeições havia sempre meus pratos preferidos. Foi providenciada uma indigestão de tortas de banana. Mas as tortas não eram tão gostosas quanto as de mamãe; até no paladar estava marcado para o resto da vida. Fui ao Butantã, ao Museu do Ipiranga, assisti a jogos no Parque Antarctica, fui a Santos, vi as usinas de Cubatão. Todas as noites íamos ao cinema.
Dias tão intensos que nem tive tempo para pensar nos meus problemas, no colégio, em casa, em meu irmão, em Helena. Não pensava nem mesmo em mim.
Durante a viagem de volta, meu padrinho mergulhou no Eça de Queiroz. Olhava de lado, via na capa do livro a cara cretina do autor e não sei por que acabei perguntando se o Eça era um cretino. Meu padrinho não sabia a que Eça eu me referia. Mas quando soube que era mesmo o de Queiroz teve um sorriso benevolente para com a minha ignorância:
- Não, meu caro, o Eça não foi um cretino.
Um dia, meu pai brigou com o padrinho por causa do Eça, falou em divisor de boçalidade, não entendi muito bem, só que meu pai era por Machado.
À tardinha, quando o trem varava os subúrbios cariocas, o padrinho guardou o livro e fez uma prática deveras salutar:
- Escuta, meu filho, não ignoro que você tem tido problemas, sei que você sente, e muito, na própria carne, o impacto de problemas que o agoniam justamente porque você não os entende. Talvez chegue a pensar que tenha alguma culpa, ou que toda a culpa da situação lhe caiba. Mas não é verdade. A sua culpa é mínima, quase inexistente. Mas daí você não deve concluir apressadamente que os outros é que sejam culpados. Eu vi você nascer. Conheço seus pais de ainda solteiros. Conheço os problemas da família melhor que eles mesmos. Por isso, sem querer impor uma norma para sua conduta, desejaria pedir-lhe... bem, você ainda está muito verde para compreender certas coisas na vida... mas acho bom que... ou melhor, você agiria certo se pudesse ou se procurasse não aprofundar certas questões...
Olhava para o padrinho com a cara idiota que me é peculiar. Não entendia uma palavra daquilo. Ele percebeu isso. Mudou de tom e rapidamente concluiu:
- É. O melhor que você faz é procurar não criar maiores obstáculos que os já existentes, criar problemas novos. Evite, sobretudo, ter desabafos diante de seus pais. Quando quiser, ou necessitar de um, procure a mim. Entendido?
Disse que entendia. Só para não me amolar mais. Continuava a não entender nada mesmo. Nada de nada. Em todo o caso, de uma coisa ficava sabendo: todos lá em casa tinham problemas. Nunca procurava aprofundar as causas de certas coisas, aceitava-as, eis tudo. Prometi, no entanto, a mim mesmo, respeitar todos esses problemas, inclusive, e principalmente, os meus.
A nossa chegada em casa não foi saudada com muita efusão. Morrera um velho amigo da família. O Dr. Moreira, o mesmo que nos receitava pílulas cor-de-rosa para puxar as cores de nossas faces anêmicas. Fora o nosso médico desde crianças, e amigo de meus pais desde os tempos de noivado. Era um solteiro inveterado e feio, muito alto e magro. Papai e mamãe gostavam imensamente dele, sentimento que nem eu nem meu irmão compartilhávamos. Pessoalmente, eu tinha uma birra toda especial para com ele, um nojo para com aquele homem já meio idoso, gasto, de olhos apagados e hipócritas que gozava em nossa casa de cheiro de santidade.
Meu padrinho disse a sua frase de sentimento - “O Moreira era um santo e um sábio homem” - e despediu-se.
Longe do padrinho, sentia-me novamente atirado às feras. Mas pouco me davam atenção. Pude então constatar que todos estavam tristes, tristes mesmo, com a morte daquele homem. Eu estava até aliviado por sabê-lo morto. Não o via há muito, mas tinha tanta aversão à sua pessoa que parecia vê-lo ainda, a receitar óleo de rícino para nossas disenterias e óleo gomenolado para nossos narizes entupidos por resfriados periódicos. Sua medicina era essa mesma: não ia além dos óleos, e era coisa sagrada lá em casa, quase sacramento. Foi devido a tanta pingação de óleo gomenolado que o meu nariz ficou tão grande, agressivo e feio.
Minhas férias acabavam. Meu torturado irmão lavrou mais um tento em sua triunfal carreira fazendo os preparatórios de forma brilhante, foi citado em boletim interno. Em casa, procurou-se comemorar o grande evento. Mamãe encomendou bolo na Dona Palmira - ela não andava bem, emagrecia e tinha os olhos cada vez mais cansados e vagos. Mas a vitória do rebento amado abrira tréguas em sua tristeza, em sua melancolia.
Na hora da festa, o pai de Helena, em nome dos amigos da família, profetizou-lhe os mais altos destinos.
Ninguém me olhando, eu comia o bolo num canto, mastigando sem prazer o sucesso do outro. Papai me esbarrou sem querer, o bolo caiu, estava amargando na boca. Papai me apanhou desprevenido, me beijou na cara.
Última vez que me beijou, talvez primeira também. Tinha repugnância de mim, sempre. Beijava sua mão, “bênção, papai”, “Deus te abençoe”, e a mão dele ia para a calça, limpar no lenço.
A festa ia animada. Chegavam cartões e telegramas felicitando meus pais pela genialidade daquele filho ilustre. Até Helena mandou o dela, comunicada que fora, às pressas, da nova e espetacular façanha do irmão.
Apesar de tanta exaltação, ele mantinha a cara de sempre, bochechuda, rosada, alheia, muito suarenta, o cabelo ensopado em vaselina líquida que lhe escorria pela testa dando brilho indecente e desagradável nas frontes.
No dia seguinte, minha mãe amanheceu adoentada. Chamou-se um médico, nada de óleos, limitou-se a solicitar exames de laboratório e chapas de raio X. À tarde, ela melhorou subitamente e papai julgou desnecessária tanta despesa e trabalho para um repentino mal-estar. Nada mais se providenciou. Eu, porém, observava minha mãe, do fundo da minha solidão. Notava que dia a dia ela definhava, o rosto tomava uma cor de palha seca, os olhos cada vez mais doridos e fundos, irradiando uma melancolia de fim de vida, de cansaço, de tristeza.
De tanto reparar em minha mãe acabei fazendo uma descoberta: era muito bonita, ainda era muito bonita. E na sua mocidade, principalmente em sua maturidade, deveria ter sido uma mulher esplêndida. Era justificável o amor que meu pai lhe devotava.
Na véspera do meu retorno ao colégio, fui à casa de Helena. Conversei vagamente com o seu pai, que me comunicou o regresso da esposa e filha para dali a dois dias. Despedi-me deixando um abraço para as duas.
No sofá da sala, na minha última noite de férias, passei acordado um tempo enorme, pensando na vida, na minha e na dos outros. Em mamãe, que envelhecia abatida e triste. Em papai, tão inexplicavelmente embrulhado em suas contradições, ora alegre demais, ora soturno, trevoso, o olhar perdido em cismas. Em meu irmão, herói de tantas façanhas. Em Helena, voltando queimadinha pelo ar de Minas, sabendo coisas aprendidas no campo.
Pela manhã, chegou o padrinho para me levar de volta. Tomei o café sozinho, papai no banho. Gritou-me um “Deus te abençoe” que não ouvi direito por causa do chuveiro.
Mamãe ainda estava deitada, levantava-se mais tarde agora, não andava bem. Levei um susto quando entrei em seu quarto. Era a primeira vez que a via assim, toda desarrumada. Na cama, uma vasta cabeleira branca, só isso. O que fazia ela para esconder tanta velhice, tantos cabelos brancos? Uma velha, a mãe.
Do fundo da cova, seus olhos me olhavam sem amor, sem pena. Abençoou-me, puxou minha cabeça e me estalou um beijo frio na testa. Passou-lhe um brilho nos olhos, lembrou alguma coisa talvez, o olhar pareceu ficar moço de repente, foi coisa muito rápida.
- Tenha juízo, vê se não traz aborrecimentos para seu pai, já tem de sobra por sua causa.
- E a senhora?
- Não, eu não conto mais. Acabou.
Vontade danada de amar minha mãe. Mas como? Eu estava seco por dentro, espremia a alma e não saía nada.
Beijei sua mão sem afeto. No corredor ouvia-a dizer - “Não precisa acordar seu irmão, ele precisa dormir até tarde!”
Não tinha nenhuma intenção de despedir-me dele. Apanhei a mala e segui o padrinho.
No colégio, ele abriu a sua pasta e tirou um embrulho de dentro:
- Tome, meu caro, é do Eça. Você já pode saborear o grande Eça!
O “saborear” me pareceu odioso.
Está junto até hoje do Tihámer Toth, nem sequer foram abertos.
E eu vou vivendo muito bem, sem esses nem outros livros, arrastando o fardo da minha amargura e descobrindo pouco a pouco um secreto prazer em ser amargo, uma impossibilidade de ser totalmente infeliz.
Ao iniciar o segundo ano de internato eu estava menos atribulado que no ano anterior. Os colegas, antes tão odiados, estranhos ou inúteis, adquiriam caráter novo, pareciam quase necessários à minha vida. Já não eram estranhos. Pelo menos, eram cenários de minha vida. E até hoje não fiz outra coisa na vida senão amar cenários.
Trotes para os novatos. Ao fim do primeiro mês cheguei a possuir dezoito tesourinhas Solingen, quarenta e três tubos de pasta de dente, várias dúzias de sabonetes de cheiros e tamanhos diversos, e um tabuleiro de xadrez que não sei por que me deu vontade de roubar, roubei por roubar, para ver o outro botar a boca no mundo, os bedéis procurando, os chaleiras ajudando, eu ajudava também.
Quanto às proezas das férias, quando todo mundo contava coisas safadas, eu também inventava, transformando a velha irmã do padrinho em guria, dizendo porcarias, e os outros babando, me invejando, “sujeito de sorte”. Eu ficava mais triste depois.
Na primeira visita do ano só o meu padrinho. Perguntou pelo Eça, pelo “saborear”. Não, não saboreara coisa nenhuma, exceto a tristeza diária. Menti, os estudos puxados, estudando muito para fazer bonito. Mas logo vieram os boletins, o padrinho viu os zeros, um quatro em composição, chegou a me animar, “está melhorando”.
Foi em maio. Eu era um dos mais altos do colégio e frequentava a roda dos mais adiantados. Ora, a roda havia descoberto, ao início do ano, o que se chamou genericamente de “boca rica”. Vizinha ao terreno do nosso recreio, lá para as bandas do bambual onde ninguém ia com medo das cobras que remota lenda dizia existir por lá, havia uma casa onde morava um capitão da cavalaria cujo principal atributo era ser casado com uma atraente mulher que ia começar a carreira dos trinta anos. O capitão saía de casa pela madrugada, só voltava tarde da noite. Depois do expediente no quartel, ia aprimorar os conhecimentos táticos em não sei que cursos especializados do Estado-Maior.
A mulher, votada ao abandono, sem visitas, sem vizinhos, sem filhos, sem poder sair de casa, começou a de distrair de forma um tanto concreta com os rapazes do colégio, os mais taludinhos. Ora, a turma escolhida organizou em torno uma confraria muito bem organizada, embora o descobridor da coisa quisesse exclusividade absoluta da descoberta, intenção obstada pela própria senhora.
Era ela quem escolhia os rapazes, através de uma fresta do muro, abertura feita por ela mesma a fim de examinar os rapazes do colégio. Quem a agradasse era chamado à confraria.
Um belo dia, chamou o chefão:
- Quem é aquele ali, muito alto e narigudo?
- Qual! Aquele é um criançola. Só tem tamanho e nariz.
Mas a mulher gostava dos tamanhos, insistiu, e eu fui comunicado da tramoia. No recreio após o café da tarde, acobertado pelos outros membros da confraria, que a esse respeito eram de solidariedade exemplar, embrenhei-me pelos bambuais. Dois colegas fizeram escadinha com as mãos, engenho que me possibilitou galgar o muro com facilidade. Para voltar, garantiram-me que a senhora emprestava um banquinho.
Mal pulei o muro deparei-me frente a frente com a mulher. Ela havia feito duas coisas inéditas em minha vida: me desejara e me escolhera.
Decepcionou-se comigo, porém. A distância, talvez eu não parecesse tão feio e desajeitado. Em todo o caso ela gostava de tamanho, e o meu era autêntico.
Impressionou-me fortemente. Era um tipo sensual, morena, silhueta magra apesar de todinha gorda, dessa gordurinha que recheia a carne sem prejudicar a forma. Seus olhos, rasgados e profundos, pareciam daquelas sacerdotisas antigas, que por obrigação para com os deuses iam prostituir-se nos bosques, bandalheiras que fui aprender graças a um piedoso trecho latino que me obrigaram a decorar para os exames.
Chamou-me para dentro. Sua casa não tinha personalidade, era vulgar, mal mobilada, com o conforto tipo classe média piorado pelo mau gosto dos militares. Levou-me diretamente para o quarto. E logo de saída foi dizendo que se admirava de eu não ter ainda tocado em sua pessoa; os outros, disse-me ela, iam logo avançando, e ela gostava assim. Mas eu era um inepto, se não era completamente virgem era porque havia um porão na minha infância e na minha saudade. Não tinha jeito nem coragem de iniciar uma coisa que se me afigurava complicada e quase sagrada.
Ela compreendeu, através de um sorriso de surpresa que lhe brilhou nos olhos. Agradou-lhe ter rapaz virgem para o seu vício. Enlaçou-me pelos quadris e beijou-me o peito magro, no qual nasciam, encaracolados, os primeiros pelos da mocidade. Despiu-me com malícia e perícia. Cometeu depois um sem-número de barbaridades que jamais sonhara possíveis. Abusou devassamente da minha vitalidade em exuberância, nos seus espasmos parecia que eu a matava, havia momentos em que eu nao sabia ao certo se ela sofria ou gozava, tal a fúria com que gemia, esgazeada.
Não digo que tenha me decepcionado com aquilo. Mas fiquei admirado. Então, era isso o amor? Uma boa porcaria! E dizer que fora a coisa que de melhor inventaram os homens e os deuses para suavizar o mundo! Por causa daquilo houvera guerras, dilúvios, massacres, livros e crenças! Ou eu era diferente dos outros ou os outros tinham pouca imaginação.
Aquela primeira sessão de amor só terminou quando a sineta marcou o fim do recreio. Precipitei-me pelo muro, mesmo sem o auxílio do banquinho que a mulher, amolecida, tardou em buscar. Esfolei-me pelo bambual, cheguei atrasado à formatura, fato que obteve geral reprovação de todos os membros da confraria. Fizeram-me sentir que mais um descuido daqueles e poderia estragar a sociedade tão avaramente escondida dos outros.
Passei o restante do dia emburrado. Sentia no corpo alguma coisa de realizado. Mas havia dentro um peso enorme. No fundo, eu me sentia um criminoso. Havia profanado alguma coisa de importante dentro de mim mesmo.
Não tinha escrúpulos de inteligência ou moral. O fato de cornear um pobre homem que nada de mal me fizera? Ora, houvesse quantas esposas de generais ou marechais e eu refocilaria em cima, do mesmo modo. Não, não era isso.
Fiz então uma promessa: não iria mais ao encontro da mulher, mesmo que ela me chamasse. Iria perder uma coisa boa, minha primeira mulher, mas a perda deveria compensar a minha tranquilidade interior.
Semanas depois o chefe da confraria veio avisar-me de que o distância seguinte me pertencia, de acordo com a tabela feita e aprovada por todos, principalmente pela própria senhora. Eu estava no sério propósito de recusar, de não ir mais. Tal decisão fora firmada inabalavelmente. Preferi nada dizer ao chefe. Fiz que sim, que iria, disposto, no entanto, a não ir nunca mais.
No dia seguinte, mal acabado o café, quando dei por mim já estava em cima do muro, pulando para a casa do capitão.
A mulher me esperava de combinação, uma combinação de seda azul, transparente à claridade do dia. Foi ela quem tomou a iniciativa. Abraçou-me com fogo, tomou minhas mãos e guiou-as pelas suas carnes brancas, através da curva macia de seu ventre, até que senti, meio repugnado, a seda de seus pelos.
Ela notou a repugnância que não pude esconder e pareceu ofender-se. Entramos para o quarto. Pelo caminho esbarrei em duas botas de cavalariano que haviam chegado do engraxate, cheirando a graxa e a morrinha de cavalo.
A mulher deitou-se na cama sem tirar a combinação. Atraiu-me a si, esquecida de seu amuamento anterior. Eu relutei em deitar a seu lado, estava calado, não pronunciara uma só palavra ainda, intrigado comigo mesmo em como fora possível estar outra vez ali, prestes a ser devorado, após ter feito os mais solenes juramentos de nunca mais pular o muro nem nunca mais rever a mulher.
Ela estranhou a indecisão:
- Você quer ou não quer?
Eu continuava calado, a olhá-la, com um pouco de espanto.
- Bolas! - disse ela. - Rapazes melhores não me faltam. Você é feio, narigudo, ossudo demais, sem poesia. Agradou-me da outra vez... mas isso são questões pessoais... Que há agora? Não me acha desejável?
- Acho - respondi.
Ela tirou a combinação e ficou nua e se ofereceu ao meu exame. Era muito bonita. Tinha sexo em todo o corpo. Parecia não ter outra coisa a não ser sexo. Seus cabelos, seus olhos, suas narinas, suas coxas, seus braços, tudo era prolongamento daquele sexo medonho que a devorava por baixo.
Eu continuava vestido. Ela me disse que da primeira vez resolvera me despir a fim de quebrar o meu constrangimento de rapaz virgem, marinheiro de primeira viagem. Não iria fazer o mesmo agora. Eu que tratasse de me despir e de a possuir, se quisesse.
Permaneci em pé, olhando aquele corpo cheio de abismos, mas sem desejo, sem amor, sem nada. Súbito, caí sobre ela, impotente:
- Não! Hoje não! Não posso!
- Não pode o quê?
- Não posso! Você não entende?
- Causo-lhe repugnância?
- Não.
- Acha-me vagabunda?
- Não! Pelo amor de Deus, não!
- Sou muito velha para você?
- Não adianta! Você não entenderá!
Ela se levantou, vestiu a combinação.
- Acho melhor você ir chamar outro.
Eu continuei deitado. Detestava-me profundamente por aquele papel ridículo e tolo. Que não pensaria ela de mim? E que pensar eu mesmo de mim?
Depois de um tempo em que me considerou atentamente, ela teve pena de mim. Deitou-se novamente a meu lado, alisou carinhosamente os meus cabelos.
- Algum amor, meu filho? Às vezes um rapaz diante das outras...
- Não amo ninguém!
Ela ia dar o caso por perdido, quando, de repente, apertei-a pela cintura e subjuguei-a. Arranquei-lhe a combinação com raiva. Seus seios surgiram, túmidos, com uma ligeira tremura de excitação. Enfiei minha cabeça entre eles e chorei, desatei a chorar vergonhosamente.
Aos poucos fui sentindo um secreto prazer em enxovalhar com minhas lágrimas aquele recanto interio de mulher. Molhei-o de lágrimas. E quando beijei seus ombros, eles estavam salgados pelas minhas lágrimas. Quase nunca chorara na vida, e, que me lembre, nunca em presença de estranhos. Mas naquele instante rompi todos os meus diques interiores e a enxurrada desceu, sem desespero, sem ódio, com um pouco de prazer.
A mulher foi boa. Percebeu que vivia alguma coisa que eu mesmo não saberia explicar ou definir, que talvez nem mesmo entendesse. Foi carinhosa, abafou os soluços que me saíam da garganta, tapou depois a minha boca com um dos seios e ficou a alisar os meus cabelos. Terminou gozando, sei lá como, um espasmo que ela mesma classificou como o mais doce de toda a sua vida de mulher acanalhada por homens apenas bestiais.
Naquele dia não me atrasei na formatura. E em lugar da apreensão e da angústia da vez anterior, uma sensação de bem-estar físico e espiritual caiu como um bálsamo sobre o meu coração e sobre meus olhos, queimados ambos pelas próprias incompreensões.
À noite, antes de dormir, pensei em Helena. Apesar da sua sensualidade nascente, da sua promissora beleza, como estava longe da realidade daquela mulher.
Coisa curiosa, passei a pensar em Helena em termos precisos, exatos, sem exaltações. Antes, Helena era um complexo de inocência e pecado, de alma e carne, de vicio e virtude, de luz e sombra, um enigma diante da minha vida e do meu sexo. Agora, cada coisa adquiria seu lugar exato, tudo tomava sentido.
Helena ainda era Helena. Seria sempre Helena. Eu é que mudara. Helena me marcara. Agora, eu continuava marcado e tinha um certo prazer em estar marcado. Por Helena.
Talvez estivesse errado. Mais tarde, quem sabe, atribuísse aquele incidente a outros motivos mais reais ou mais próximos da realidade. Naquele momento, porém, eu tinha a certeza de que sobre aquele corpo, sobre aquela carne branca de mulher, eu chorara, inteira, toda a minha angústia por tudo aquilo que eu não entendia dentro de mim e fora. Que eu sofria sem entender. E que sem entender, pouco a pouco, parecia que já começava a amar.
Algumas semanas mais tarde, estava na aula de geografia, quando o inspetor entrou na sala e conferenciou baixinho com o nosso professor. Chamaram-me pelo número:
- 285!
- Pronto!
Acompanhei o inspetor até o gabinete da diretoria. Ao abrir a porta vi o meu padrinho a conversar com o diretor.
A comunicação foi feita em termos breves: minha mãe estava doente, passando mal mesmo e eu deveria ir assisti-la naquele transe. O diretor foi amável, disse a meu padrinho que eu poderia ficar o tempo que fosse julgado necessário, que as minhas faltas seriam plenamente abonadas, os regulamentos tinham previsto a situação em não sei que artigos e parágrafos.
Arrumei pequena mala de roupas. Meu padrinho tomou um táxi e pelo caminho procurou fazer o que ele misteriosamente chamava de “preparação do espírito”. Após um gasto de palavras e rodeios inúteis, fiquei sabendo que minha mãe estava mesmo à morte. Depois de suspeitar de todas as moléstias catalogadas na patologia moderna, o médico diagnosticara um câncer no pâncreas.
Meu ilustrado padrinho aproveitou a oportunidade para exaltar as importantes funções do pâncreas dissertou à vontade por dois motivos: por me saber completamente ignorante e por ter ido ao Larousse.
Chegamos em casa. Ar de antecipado velório. Presentes diversos e hostis parentes, um médico, os vizinhos mais chegados. Ao lado de meu irmão, que permanecia com a mesma cara balofa e rosada, absolutamente imprópria para a ocasião, Helena.
Levantou-se à minha chegada, veio falar comigo. Foi amável, envolvente. Surpreendi-me, porém, naquele instante mais ou menos solene da vida, olhando para os seus peitos. Ali estavam, finalmente! Duros, cheios, agressivos, a estourar de seiva, dois seios recentes!
Examinei-a dos pés à cabeça, com impudência total. Ela já era mulher. E eu não era mais virgem.
Helena não se ofendeu com a brutalidade do exame. Notou que a despia, lembrou-se na certa do porão comum que ficava cada vez mais distante, quase inexistente já. Mas respeitou o momento que todos nós vivíamos, não disse nada, chegou a sorrir embaraçada, entre a lisonja e a vergonha do meu exame.
Levaram-me ao quarto. Lá estavam, também, algumas pessoas mais íntimas. Curvado à cabeceira, fisionomia transtornada pelo cansaço das noites insones, meu pai. Segurava as mãos de minha mãe, que volta e meia se crispavam.
Ninguém deu pela minha chegada. Meu padrinho teve de chamar a atenção de papai. Virou o rosto em minha direção. Olhou-me então sem expressão. Baixou o rosto até o de mamãe:
- Pronto. O outro chegou!
Mamãe virou os olhos vidrados para mim. Seus cabelos, inteiramente brancos, embagados pelo suor da agonia próxima; sua face estava opaca, terrosa. Parecia sofrer mais com os olhos que com o resto do corpo.
Mandaram-me aproximar. Alas para mim. Ela me tomou o rosto nas mãos, tremiam ridiculamente, pareciam de pobre pedindo esmola. Senti um beijo viscoso, um gosto de túmulo na cara, feito bofetada dada com os lábios.
- Afinal... você é meu filho!... - falou mansinho.
Não entendi o “afinal”, mas todo mundo pareceu entender. Retribuí o beijo, o padrinhopegara-me na nuca, me abaixara a cabeça, não tive outro jeito, beijei-a com nojo.
Passou novamente a mão em mim, parecia ceguinha lendo um rosto amado pelo tato. Brilhou nos seus olhos um clarão, a boca entortou num riso às avessas, um esgar doloroso, repugnante, obsceno para a hora da morte.
O médico percebeu minha mãe emocionada e pediu que me afastassem. Além de que meu pai já estava aflito para me ver longe dali. E eu também.
Saí do quarto intrigado. Antes de cruzar a porta olhei para trás mais uma vez. Papai assumira a mesma atitude anterior, debruçado sobre o leito, a segurar as mãos agitadas de mamãe. Foi quando percebi que ele amava com fúria e concentrado entusiasmo aquela mulher que morria. Para muita coisa eu tinha explicação agora, diante daquela revelação de amor. Mas, a rigor, pouco me importei com isso. O que me intrigava era a expressão que vira passar, meteoricamente, pelo rosto de minha mãe.
Meu padrinho levou-me para fora. Logo o vaivém das visitas não me permitiu concentrar os pensamentos. Todos procuravam uma palavra de consolo para o meu irmão. As mesmas pessoas, ao me verem, chegavam a sorrir, boçalizadas:
- Como é? Você não para de crescer?!
E achavam isso engraçado, porque riam.
Jantou-se na cozinha. Com a desorganização que ia pela casa foi a mãe de Helena que nos esquentou alguma coisa. Comemos os três, meu irmão, Helena e eu, na mesa da cozinha.
Helena estava à minha frente. Vez por outra eu me distraía e grudava furiosamente os olhos em cima daquelas polpas que começavam a inchar debaixo do vestido. Meu irmão surpreendeu-me num daqueles olhares, mas não dissenem fez nada, como se não tivesse notado o meu indecente enleio.
Foi então que, esquecido da agonia da minha mãe, da aflição de meu pai, da dor de todos nós, odiei aqueles dois seres, meu irmão e ela. Sim, o santarrão já se fartara naqueles seios.
Veio a noite. As visitas rareando, o vigário com os óleos, nada de rícino ou gomenol, óleos de Cristo. Deixou-nos santinhos, o meu era igualzinho ao outro, Nossa Senhora da Aparecida também. Amarrotei-o com raiva, Nossa Senhora da Aparecida rogai por mim e perdoai-me, mas não podia ficar com os dois, tinha de rasgar um.
Ouvi o médico na sala.
- Não passa desta noite!
A noite lá fora, a morte lá dentro. No meio, eu.
O irmão passeou a cara palerma pelas pessoas, sentiu sono, fechou-se no quarto, logo ouvi o ronco da asma. Bateu meia-noite. Eu esbarrava nos móveis, de cansaço. O padrinho chamou a empregada, providenciaram cobertas, deitaram-me no sofá da sala, ao lado do quarto fatal.
Dormi umas três horas. Acordei sobressaltado, ruído de passos, pessoas saindo do quarto de mamãe. A morte? Não. Ainda a vida. Para quê? Para vomitar mais uma vez?
A voz do padrinho:
- Muito natural, deseja se despedir, é assim mesmo, muita gente já morreu nesses braços, sei que é assim, comove. Logo eles! Como se amavam, como se amavam!
Fiquei no escuro, espantado. Através da porta, um filete de luz. Do outro lado, os dois que se amavam. Que estariam fazendo? Vontade danada de espiá-los, o buraco da fechadura dando sopa. Seria decente profanar aquilo? Enxovalhar com a curiosidade um instante de morte? Atravessei a sala em diagonal, na ponta do pé. Agachei-me na porta.
Lá estavam os dois, papai curvado, um lenço na cara, suor ou lágrima? Mamãe falava, coisas do passado, ele concordava, complacência terna por causa da morte, se não ridícula: sim, sim, sim, é, é, sim, está bem...
Chatice ficar ali, podiam me pegar, e eu não teria explicação. Já ia voltar quando mamãe perguntou:
- Severo, nunca desconfiou de mim?
Papai, firme:
- Nunca!
- Pode responder, seja sincero, não me minta nessa hora, você nunca desconfiou?
Titubeou, mais para lá que para cá:
- Uma bobagem, querida, uma simples bobagem. Amei você toda a vida, isso me deu direitos de ter ciúmes, apenas isso, nos primeiros anos... uma bobagem enfim.
- Quer dizer, você desconfiou?
- Bom, desconfiar... Talvez não, ciúmes só, passou logo, nada de sério...
- Não foi bobagem, Severo...
Momento tenso lá dentro, gelo em cima de duas cabeças, medo nos quatro olhos. Meu pai foi o mais forte:
- Não fale nada, pelo amor de Deus, você está se preocupando à toa com bobagens, você não pode se torturar assim, em nome do nosso amor, em nome dos nossos... em nome de Deus, não fale!
- Vou morrer - ela gemia -, tenho a obrigação de soltar tudo, não quero levar esse remorso... quero o seu perdão...
- Não precisa, já tem o perdão se for o caso, mas não fale!
- Não é só isso, tenho obrigação de contar, sei que você desconfia de alguma coisa... o padre me avisou, para Deus me perdoar, devo contar tudo também a você, que fique prevenido...
Estava obstinada. Gemeu muitas vezes, falou coisas baixinho. Retomei o diálogo com ela contando:
- Não podia resistir, o Moreira vinha, dizia coisas, suplicava, armava ciladas, você até ajudava... Houve um dia... depois vieram outros... só paramos com medo, você pareceu desconfiar, deu de ficar emburrado às vezes...
- Sim, lembro bem, desconfiava alguma coisa de errado em você, mas não com o Moreira... logo o Moreira!
Mantinha serenidade, apesar de tudo. Até um pouco de dignidade. Mamãe não, parecia feder de remorso:
- O pior, Severo, é que... bom, você deve ter entendido pela época. Seu instinto de homem adivinhou, mas devo soltar tudo, um dos nossos filhos... um dos meus filhos não é seu... e você sabe quem é...
Papai disse que sim, com a cabeça.
Eu não ouvi mais nada. Corri e chorei.
Eu também sabia.
Morreu pela madrugada. Surgia um dia triste, cheio de nuvens inchadas. Assisti ao dia nascer do quintal. Nem tinha jeito de entrar em casa, meus olhos deviam estar loucos, eu os sentia crescer para fora, numa ardência que impedia lágrimas.
Bem que o padrinho insistiu, loucura ir de noite para fora, fosse acabar o sono com meu irmão, a cama era grande, espaço para dois, uma noite assim não mataria ninguém. Mas não. Aturar asma dos outros e ser filho da puta ao mesmo tempo é duro, nada melhor que a noite para ninguém ver. Doía em algum lugar, dor não digo nova mas inesperada. E explicava, muito tarde afinal, mas sempre explicava, dando sentido à minha vida, onde não havia outro significado que não esse, o comborço de papai, o pecado da mamãe, a vergonha de todos.
Pela manhã, o carro da funerária, os apetrechos ridículos e complicados enchendo a casa, cheiro de vela me enjoando, cheiro de flor pior. O bonde Lins, periodicamente, trazia uma coroa amarrada do lado de fora, “à idolatrada”, “à inesquecível”, “à bondosa”, “saudades eternas”, “homenagem”, “último adeus”.
A mãe de Helena levou-nos a almoçar, o Dr. Luís me deu pêsames, fez um arremedo de abraço, eu não sabia se dizia obrigado ou não tem de quê.
Evitei olhar o pai. Volta e meia o surpreendia olhando estupidamente a cara de minha mãe no caixão. Sua cara era uma expressão de abismo, profunda e vaga ao mesmo tempo, sobretudo cansada. Parecia não sofrer mais. Todo o drama da vida, arrastado penosamente, mais o cansaço dos últimos dias, tudo derivava para uma loucura mansa e abandonada. Era isso mesmo. Meu pai estava com cara de louco. Mas os amigos, os parentes, os conhecidos, todos enfim respeitavam a sua atitude aloucada. E comentavam:
- Como o Severo está sentido!
Só eu, que o observava com mais profundidade, sabia que ele, finalmente, nada mais sentia.
Meu padrinho ficou com a gerência da casa e do enterro, dada a situação alheia de papai, inútil para pronunciar uma palavra. Foi meu padrinho que tudo programou, orientou tudo e tudo saiu bem graças ao seu engenho na arte de ser dono de defunto. Sabia-o ser.
Na hora da saída, papai não quis despedir-se de minha mãe. Foi se esconder num canto da sala, justamente o mesmo canto onde eu também estava procurando me esconder.
Trocamos um olhar soturno. Se as almas emitem fluidos e cargas, se as almas produzem ondas magnéticas, naquele instante o universo ter-se-ia desintegrado no ar, como um balão de sopro, tal a densidade do olhar que trocamos. Era a minha vida que adquiria contornos certos e precisos. Definitivos. Eu fora um equívoco, um tremendo equívoco do ventre que me gerara. Tudo se explicava agora. Tudo. Até a minha cara angulosa, até o meu nariz exageradamente grande. O culpado daquela vasta excrescência nasal não fora o óleo gomenolado que o Dr. Moreira tanto receitara para meus resfriados. Fora o próprio Dr. Moreira, aquele homem de quem eu odiava o cheiro, o tamanho, o olhar míope de canalha. Mas nada disso importava afinal. A vida ali estava agora: a morte. A vida nada mais era que uma missão ridícula para mim e para meu pai.
Fomos empurrados para dentro dum carro.
Ele se arrastou como um autômato pelo cemitério. Parecia que de repente ia soltar uma gargalhada e fugir daquilo tudo.
E eu? Afinal tinha a ver com aquilo tudo? Poderia por acaso dizer que levava minha mãe ao túmulo? Mas até que ponto ela fora minha mãe? - Não, aquela não fora minha mãe. Fora apenas o ventre que me gerara. Era tanto mãe quanto a minha placenta, essa sim, não participara de equívoco algum, já estava enterrada há tempo, apodrecida em cinza, diluída em água.
O caixão baixou à sepultura. Os coveiros estavam com má vontade, não disfarçavam a irritação do pequeno atraso com que chegáramos ao cemitério. Olhavam para os acompanhantes com olhares desafiadores, como que com vontade de nos enterrar a todos, vivos mesmo, com roupas e tudo.
Meu irmão lia os epitáfios dos túmulos vizinhos, procurando ver se os pronomes estavam devidamente colocados na frase, se era honesta a correlação dos tempos. No fundo, sofria.
Helena chorava. Como mulher, era predestinada às lágrimas fáceis dos enterros, dos casamentos, das emoções convencionais da sociedade. Com um lencinho enxugava os olhos avermelhados, sem perder, no entanto, a mesma expressão brejeira, como se estivesse permanentemente fazendo troça da vida de todos. O padrinho agitado, poucas vezes o vi assim, dava ordens aos coveiros, respondia os améns do padre que benzia a cova, consolava os mais aflitos, tinha tempo ainda para se comover nas folgas de tudo isso, o nariz vermelho como se estivesse prendendo um espirro.
O pai, perdido no meio dos outros, tão outro quanto outro qualquer, parecia dizer que não tinha nada a fazer ali, empurrou um camarada que queria abraçá-lo, “seja forte, Severo”. Mas ninguém deu importância ao empurrão, todos suspeitavam que ele tivesse bebido.
Eu, graças a Deus, mais que nunca fui nada.
Já iam todos embora. Me deu vontade de espiar no fundo da cova. Os coveiros botavam as coroas por cima, havia uma com o meu nome, providência do padrinho, eu li a faixa, parecia de um outro enterro, há muito José no mundo, muita “idolatrada mãe”. Ficou apoiada num túmulo vizinho, foi a última a ser colocada. O coveiro que a jogou parecia entender a vida, fez com má vontade, eu não faria melhor.
Era fim de dia, sol morno coando pelos ciprestes. Os coveiros estavam cansados. Um deles falou à guisa de oração fúnebre que servisse para todos, mortos e vivos:
- Como complicam a vida!
Voltei ao colégio no dia seguinte. Não suportei viver naquela casa. Junto de papai, que se arrastava feito um fantasma pelos cantos, sujo, desgrenhado, abobalhado. Nem de meu irmão, guardando o seu sofrimento no imponderável de sua alma torturada não sei bem por quê. A cara continuava a mesma, alheia aos fatos, indecente, corada, banhuda.
Afora o meu padrinho, todos nos deixaram a sós. Há há dias que a casa vivia permanentemente cheia, num contínuo entra e sai de visitas. O contraste acentuou mais ainda a nossa tristeza, e, para que não dizer, o nosso abandono.
Tentei fazer sentir a papai que sabia de tudo e que isso não me importava afinal de contas. Que eu soubera de tudo na véspera; que adivinhava, porém, há muito tempo, alguma coisa de errado em minha vida e em minha casa. Tentei mesmo forçar meu coração a gostar daquele homem que não era nada meu e que sofria. Era um porco, como os outros homens, mas sofria e isso o enobrecia um pouco. O sofrimento tem dessas coisas, enobrece, dá dignidade. Nada mais filosofia que a felicidade.
Eu estava, porém, desidratado da boa água do amor. Talvez não odiasse ainda a ninguém. Mas por acaso podia amar?
A minha volta ao colégio teve assim o sabor de uma fuga, bem verdade que fuga parcial, um escape apenas. Seria melhor uma fuga integral, mas essa só a morte poderia dar. Tomei então uma resolução de uma descoberta mais ou menos repentina: envelhecer é porcaria. Um homem depois dos cinquenta é anti-higiênico, começa a cheirar mal, a se decompor. A velhice não é apenas feia. É porcaria no duro, é sujeira, é fedor.
Por isso, eu me mataria um dia, sem motivo de espécie alguma, apenas por higiene interior, como se fosse tomar um banho. Não iria feder diante dos outros, arrastar pelas ruas e pelos caminhos meu corpo a se liquefazer em lama, enojar os outros, exibir à sociedade os vermes que começavam a me comer por dentro. Os médicos dariam nomes latinos aos vermes, mas todo mundo saberia que eram simplesmente vermes.
A rotina do colégio aliviou a tensão, rompeu a densidade da vida de dentro. O chefão no terceiro dia veio rindo:
- Amanhã é você.
Disse que não, não queria ir.
- O luto não atinge essas coisas - sentenciou.
- Não é nada disso. Não vou, estou sem vontade.
- Na hora a vontade vem.
- Não vou, está acabado.
Tive aborrecimentos por causa disso, todos os dias vinham recados, a mulher queria falar comigo, só falar, eu acabei indo, e quando resolvi ir, já queria trepar.
Pulei o muro, ela me esperava, vestida inteirinha, parecia outra coisa, mãe de filhos, que fosse apanhar o garoto no colégio, coisa assim.
Tinha mais curiosidade que raiva.
- Não te entendo, rapaz!
- Eu também não me entendo.
- O que há com você? Mais de uma semana recusando... Não sou um achado na juventude de você, feio, sem oportunidade? Ou prefere perverter os novatos, gastar as energias diante de fotografias?
Não respondi. Ela estava irritada, a irritação fazia a mulher parecer menina, uma cara de garota suada. Notou que não me incomodava com a esculhambação. Alterou a tática, pegou no meu braço, em tom de amiga:
- Escuta, te mandei chamar durante uma semana, você se recusou até agora e veio sem vontade, vejo pela cara. Isso não faz diferença. O que não quero é manter ilusões nos outros. Gosto de você, nem preciso negar isso, no fundo sou uma sentimental como qualquer bobinha. Da última vez, havia alguma coisa de anormal com você, chorou tanto, parecia sofrer sei lá o quê. Os outros me contaram, sua mãe morreu, você passou maus momentos, eu não posso fazer nada, só ensinar que é bom a gente amar nessas horas, o prazer ganha novo calor, é mais gostoso, falo com experiência, quando meu pai morreu... bom, isso é comigo. Quero te dar oportunidade, só isso, entendeu? Agora, se você quer que eu me apaixone, isso é outra coisa.
Baixou os olhos, olhou em torno. Baixinho, com carinho:
- Não vê que é impossível?
Aprendi a lição rapidamente, vale cem anos sobre filosofias e morais, mas eu não queria estar sobre filosofias nem morais, queria ficar era em cima da mulher, coisa sem moral, embora com um pouco de filosofia. Estava mais bonita, classuda, com alguma coisa de égua, gostosa a filha da mãe.
Parados um bom tempo, olhando nos olhos um do outro.
“Ela pensa que eu gosto dela!” Era idiota, tinha vontade de esbofeteá-la por causa disso, mas ela não entenderia.
- Você veio para ficar parado? Vamos entrar!
Diretamente para o quarto. Deitou vestida como estava, chegou para a beirinha, pediu que me deitasse também.
- Posso perguntar uma coisa?
- Pode.
- Por que chorou tanto da vez passada?
- Sei lá.
Teve um sorriso mau no canto da boca.
- Em que você está pensando? - perguntei.
Demorou a resposta. Ela se virou de bruços para melhor me observar. Ingênua naquela atitude.
- Curioso, todos os narigudos são complicados. Meu marido tem um amigo, da artilharia, mais narigudo que você. Como é complicado...
- Como é que você sabe?
- Bobo! Você não entende nada da vida!
Voz aborrecida, toda irritada:
- Então acha que vou perder tempo só com crianças?
Mexeu a cabeça, os cabelos dançando nos ombros, o ar sério:
- Vocês servem para passar o tempo, mulher bem vivida precisa cometer uns infanticídios. Há também prazer, são simples, objetivos, vão direto, sem complicações, chegam, amam e vão embora. Nem sempre isso basta, a mulher precisa às vezes de homens complicados...
Olhou-me séria. Um narigudo de barriga para cima é espetáculo ridículo.
- Homens complicados, ouviu, homens, não crianças complicadas!... Isso é horrível!
- Está me mandando embora?
- Não.
Beijou-me a boca com carinho, e depois, num crescendo, atingiu a gana. Num passe, nus os dois. Engraçado como dois amantes ficam nus de repente, após se lançarem abismos de ódio.
Com raiva, eu abraçava tudo o que podia, perna, coxa, busto, cabeça, tivesse uma faca e abriria o meu corpo para enfiá-la inteirinha dentro de mim, a posse é coisa impossuída.
Virei-a para cima, ela se entregou, vencida, cansada já, gozo na pontinha, procurou afobadamente um travesseiro para apoiar a cabeça. Olhei-a, esgazeada, aberta, os olhos dilatados, lábios crispados, com pressa, parecia ter cólica.
Passou comigo um vento frio que gelou tudo. Vontade de gritar, gritar como um náufrago, só por desespero. Encher o universo, sentir a voz arrebentar as nuvens, as ondas, a alma e a carne se diluírem no eco infinito.
Caí. Frio, impotente, inumanamente homem. Nem era mais homem, era apenas um pouco de carne gemendo. Via naquela mulher, torcida pelo prazer, o mesmo rosto, a mesma expressão de olhar - mistura de pavor e gana - de minha mãe, na hora da agonia.
Nunca mais houve escapadas pelo muro dos bambuais. Nunca mais a confraria saboreou daquele fruto bom e barato caído dos céus. Pois justamente no dia seguinte o capitão da cavalaria armou colossal encrenca doméstica ao encontrar, debaixo de sua cama conjugal, o casquete de um dos alunos do colégio.
A cena foi trágica. Ouviram-se bofetões e, apesar das janelas fechadas, um ou outro palavrão mais forte varou o ar:
- Puta! Filha e neta de putas!
Tinha hierarquia.
Nós, os membros da extinta confraria, ficamos escondidos no bambual, ouvindo os ecos da briga. Ouvimos o rebenque do cavalariano soar mais forte contra a carne da mulher. Não víamos, mas imaginávamos a cena brutal: à ação do chicote a carnação rasgar-se e o sangue brotar inocentemente das carnes mortificadas.
Os mais exaltados quiseram pular o muro para arrancar a vítima das iras do marido. Mas o chefe impediu o arroubo. Chegou mesmo a deitar moral, dizendo que em briga de marido e mulher o bom senso, firmado pelo veredicto dos séculos, aconselhava a ninguém se intrometer.
A insensibilidade do chefão irritou a alguns:
- Cretino!
- Calma, calma, eu sei o que estou dizendo, isso não é nada, não vale a pena piorar o negócio, o capitão é temperamental, todos os anos encontra pretexto digno ou indigno para surrar a mulher, no ano passado foi um gringo da prestação debaixo da cama, agora o casquete, entre o gringo e o casquete o mais cômodo é sovar a mulher. Tem outros casos ainda, o coronel do regimento, um concunhado do marido, não é a primeira nem será a última vez que o milico sova a mulher por prevaricação de cama.
A turma ouvia com mal-estar geral. Repartiam todos a mulher, mas assim também não, era safadeza demais, pensavam outra coisa, uma vítima de circunstâncias, abandonada, sem filhos, sem amigas, a mocidade consumida sem graça. Sofriam todos mortificados, o amor-próprio dando raiva na gente.
O chefão compreendeu os sentimentos gerais, rematou com solenidade, saída que nunca esquecim Helena, que mais tarde fez curso na Cultura Inglesa, me dizia que era de Shakespeare:
- Eis os fatos! É lamentável que isto seja verdade e é verdade que isto seja lamentável!
O casquete era meu
O capitão mudou-se logo no dia seguinte, cada prevaricação descoberta, mudança na porta, a mulher aos prantos, querendo ficar. A casa foi logo alugada novamente, mas para o desencanto geral os novos vizinhos eram dados ao respeito e velhos.
A confraria dispersou-se ingloriamente. Não mais solidariedade, cada um por si, Deus por alguns, o diabo por todos. Os mais ousados procuravam os garotos assim- assim e grossos escândalos tiveram velada germinação. O chefão arranjou um guri das Laranjeiras, papa-fina, filho de italianos. Outros também andaram nas águas do carcamano, até que o chefão resolveu ter uma explicação de homem para homem com todos os rivais:
- Olha aqui, pessoal, eu dividi a mulher, mas o guri não divido!
E exibiu o canivete, terror famoso do colégio inteiro.
Não dei por falta da mulher. Lamentei suas desgraças, se pudesse a teria salvo da surra. Mas só.
Pouco abusara também. Três vezes apenas, no duro uma só. Depois, só chorar em cima. E mais o momento idiota, aquilo de lembrar a outra morrendo, justamente na hora.
Domei a carne depois. Poderia inaugurar um ascetismo sem Deus, um estado de graça só por higiene. Amava Helena, amaria sempre, mas tranquilo, sem pressa, sem dor. Amadurecido, parece, para o verdadeiro amor.
Setembro. Os flamboyants no pátio. Cada manhã olhava o contraste: vermelho e azul lá em cima. Não dizia nada, mas achava bonito. Não achei bonito quando o bedel me chamou. Para comparecer na diretoria. Primeira ideia: meu pai estrebuchando. Revi tudo, o padrinho, câncer aonde? Câncer bonito era o vermelho no meio do azul.
À porta do gabinete, reunidos, os inspetores e bedéis do colégio. Assunto grave, com toda a certeza. Minha chegada fez sucesso, todos se voltaram, a cara alarmada, catástrofe pela frente.
- O senhor é o 285?
- Sou.
Risos.
- Meteu-se em boas, hein?
Ar velhaco na cara de todos, “meteu-se em boas!” Que boas?
Fizeram-me entrar. Atrás da escrivaninha, com a cara pungida, um caso embaraçoso para destrinchar, o diretor do colégio. Ao lado, um homem entrado nos trinta, meia altura, meia calva, bigode grosso quase grisalho, embrulhado num terno de brim amarelado que lhe caía muito mal.
- O senhor é o 285?
- Sim, seu diretor.
Entreolharam-se, misteriosamente, ar sagaz nos dois.
- É seu esse casquete?
Jogou em cima da mesa, como um objeto infecto, o casquete cáqui, ensebado por dentro, linha vermelha bem na cara, marcando o 285, podia ser também o 283, confuso o último número.
- Sim, o casquete é meu.
Quis apanhá-lo, não me deixaram, fizeram um gesto largo, não, não podia tocar no objeto, era a prova do crime, ficaria o tempo todo ali, dele sairia a verdade, a verdade cabe em pouca coisa.
- Não mexa, por favor, não precisa mexer. Vamos apurar, primeiro, tudo direitinho!
O diretor fez uma pausa, mandou um olhar inteligente ao homem do lado, sentou-se atrás da mesa, tomou expressão grave, cheia de sutilezas:
- O senhor não havia dado pela falta?
- Dei. Pensei que tivessem roubado.
- Não se lembra por acaso onde o deixou pela última vez?
- Não tenho certeza. Em qualquer canto.
Pausa. Até ali eu fora bem, suportara o interrogatório com sangue-frio, voz segura, resposta pronta, nada de gagueiras comprometedoras. O diretor aproveitou a pausa, coordenou ideias e voltou:
- O meu caro aluno conhece o senhor aqui ao meu lado?
Mesmo sem olhar o senhor a seu lado disse que não. Parece que o diretor não esperava por isso. Não se alterou, porém, encontrou novamente o tom neutro, sem raiva, cerimonioso:
- Muito bem. O senhor aqui ao meu lado é um honrado oficial do nosso glorioso Exército, o Capitão Ruy da Silva Aires. O nome, pelo menos, não deve ser estranho...
- É, sim senhor.
Levantou-se, deu passos em torno da mesa, em busca de entrar no assunto, com delicadeza, sem ofender.
- Até aqui - disse - acredito que o caro aluno tenha dito a verdade, a pura e tão-só verdade. Desejava agora saber a que fato atribui ter o seu casquete aparecido embaixo da cama do nosso capitão.
O capitão não gostou muito daquele “nosso”, mas continuou sem estrilar.
- Foi você ou outra pessoa que, inadvertida ou propositadamente, esqueceu o casquete, talvez para comprometê-lo?
Pensei, não adiantava mentir, seria mais engraçado confessar tudo, pareciam não aceitar a ideia de que eu fosse mesmo amante da mulher, um outro talvez, mulher nenhuma faria besteira por causa dum tipo assim.
- Fui eu mesmo, seu diretor, esqueci o casquete no quarto da mulher do capitão.
O capitão tremeu de alto a baixo, feito torrão de açúcar esfarinhado. Além da dor de corno, a constatação cruel: passado para trás por um narigudo boçal e tolo.
O diretor, impassível, juiz no meio, nem pra lá nem pra cá, justiça acima de tudo, a cara dele dizia bem isso.
- Então você reconhece que esteve no quarto do capitão?
- No quarto da mulher do capitão - corrigi.
Estremecimento mais forte do capitão. O diretor perdeu a calma, era velhacaria demais, deu um murro na mesa, berrou possesso:
- E o que ia fazer lá? Responda, seu sem-vergonha de merda! O que ia fazer lá?
Notou que o capitão aprovava a violência, era assim que ele queria, nada de justiça, rebenque logo. Explicou então mais para ele que para mim:
- O regulamento prevê com a pena de expulsão qualquer caso de saída sem autorização dos limites do colégio. A culpa não é nossa, esse tratante vai pagar!
O capitão não ligou para a explicação. O diretor outra vez:
- O que ia fazer lá, finalmente?
- Ela me mandava chamar.
- Ela quem? - o diretor boiando, não sabia quem.
- Ao senhor? - o capitão rompia o silêncio com espanto.
Tratava-me de senhor, as virtudes não me deram tratamento assim, as safadezas davam. Continuei:
- Ela me chamava sim senhor, a mim e a outros, muita gente, uma porção.
- Isso é uma infâmia! - berrou o capitão.
- São uns cretinos! - o diretor não aprovava também.
Tinha cara pungida o diretor, quem entrasse ali podia pensar mal, a mulher parecia a dele. No fundo, pena apenas, uma mulher daquelas, nas barbas, todo mundo se fartar, menos ele.
A exaltação do capitão era mais profunda. Ameaçava tomar corpo contra o meu corpo, um cheiro de pancada no ar.
- O senhor... tem a coragem... de dizer isso! Minha mulher é que... chamava tanta gente assim?
- Sim, havia uma tabela...
- Cale-se! - gritou o diretor revoltado. - Um verdadeiro absurdo!
E para o capitão:
- Esse menino mente como um verme!
Eu não sabia que verme mentia, de verme só sabia os vermífugos, o óleo de rícino, suando no peniquinho. Verme podia mentir, eu é que não mentia, dizia a verdade, a pura e tão-só verdade, conforme o diretor havia pedido.
Os homens foram para o canto, conferenciaram baixinho, volta e meia me olhavam, avaliando. O capitão olhava para as minhas calças, parecia querer medir, imaginava grande na certa. Suava frio, tinha cara de ser atrofiado, de tanto quicar no cavalo. Traçaram novos planos de combate e voltaram resolutos para botar tudo em “pratos limpos”, expressão do diretor:
- Precisamos botar tudo em pratos limpos. O capitão aqui presente achou um casquete embaixo de sua honrada cama conjugal (pigarro sem querer), supôs, e supôs certo, que a esposa cometera adultério com o dono do casquete. Ora, “habemus confitentem reum!” (tossiu outra vez, de propósito, para acentuar o latinório), você acaba de confessar que é seu. Até aí, muito bem. Queremos, contudo, apelando para a sua consciência, perguntar se a acusação feita é verdadeira, você confirma?
Foi a vez de me espantar um pouco:
- Que acusação? Não acusei ninguém!
O diretor fez cara de não ter sido entendido, explicou melhor:
- Você disse que ela chamava outros, falou mesmo numa tabela...
- Isso é verdade.
O capitão não aguentou, avançou, segurou minha gola, espumando de raiva:
- Repete, repete que faço você engolir tudo!
O diretor se interpôs, tentando a paz física, nada de pancada, ali era só justiça. Conciliador:
- Muito bem, nós...
O capitão tremeu, corrigiu logo:
- Muito mal!
- ...de qualquer forma acreditamos nessa... tabela, admitimos... Queremos agora saber os nomes dos outros, todos os que estavam na... tabela (a palavra saía difícil, constrangida).
- Não posso, sou peste, diabo feito gente, mas traidor nunca. Nós fizemos juramento de honra...
O capitão berrou, vermelhão...
- O miserável fala em honra!...
A bofetada cantou na minha cara, escureceu a vista, eu ia avançar, batia nos dois, poder podia, não era fraco. Mas javia a polícia, era pior. Além do mais, era lógica a bofetada, eu manchara a cara dele com coisa pior, definitiva, bofetada passava, chifre nunca, nem depois da morte. Era uma compensação.
O diretor aprovou por dentro a bofetada, mas por fora pediu calma, “vamos com calma, não precisa violências”, ele era pela persuasão, passara o tempo da punição corporal.
- Você será expulso, imediatamente, levará o certificado negro, não poderá se matricular em nenhum colégio mais. Sua vida assim fica estragada, mal saiu do alfabeto, os colégios fechados à sua pessoa, nada mais aprenderá, ficará ignorante toda a vida.
Olhou para o capitão, buscando aprovação para as judiciosas palavras que proferia. Mas o capitão não ligava, pouco lhe fazia que eu desse para carregador de pedras ou para Sumo Pontífice.
- Entretanto - continuou o diretor -, tencionamos dar uma oportunidade, embora você nada mereça, sua expulsão é certa, não posso evitar, o artigo 171 e seguintes são claros, não há jeito de sofismar. Podemos, porém, tirar o certificado, não fazer a comunicação ao Ministério da Educação, sua folha ficará limpa, o que lhe aconterá será relativamente pouco, perderá o ano mas poderá se matricular em outro colégio, no ano que vem. Condicionamos o favor, grande favor, aliás, se você nos disser os nomes de todos os outros...
- Que outros?
- Os outros metidos nesta... nesta... lamentável situação!...
Achado, esse “lamentável situação”. O capitão também se sentiu com mais dignidade, não havia tabela, havia uma situação lamentável.
“Esses porcos querem me comprar!”
O diretor olhando, esperando. Eu calado, disposto à tortura.
Ele perdeu a paciência, berrou outra vez:
- Quero o nome de todos os seus... cúmplices!
O capitão pareceu gostar dos cúmplices, fitou-me também ansioso, se eu dissesse cinco nomes de homem sua honra ficava intacta, era isso que parecia.
Fiquei irredutível! Herói no duro, já gostando de representar o papel.
- Não, seu diretor, não posso dizer, nós juramos, um por todos, todos por um, não sou traidor.
- Cretino!
- Pulha!
- Miserável!
Os dois estavam possessos, raiva nos olhos, a balbúrdia foi tão grande que fiquei tonto, com vontade também de gritar os nomes feios de minha habitual frequência. A tempestade amainou para o lado do diretor, a do capitão durou mais ainda, só parou quando recomeçou a inquisição:
- Você está disposto a sofrer todas as consequências?
- Estou. Não fui o único, muitos outros também, já fui claro, me entenderam bem. O casquete é meu, o azar foi meu, não posso distribuir a culpa por ninguém, doutra vez faço melhor. Aguento as consequências.
- Todas?
- Todas!
O diretor olhou, o capitão olhou, todos olharam sério, compreendendo. A coisa mais grave ainda vinha, o adultério era banal, o pior vinha ainda, embora um adultério nem sempre seja coisa divertida nem deixe de ser grave também.
Iam soltar o enigma, a chave da questão, a bomba. Quem a soltou, com a cara devastada pelo horror, foi o diretor:
- A esposa do capitão está grávida!
Sem querer, acabou o gesto apontando para a barriga do próprio capitão, parecia que ele é que estava grávido, não a mulher.
- Está grávida! - gritou o capitão, como se soubesse da coisa agora e quisesse infectar o universo inteiro com aquilo, botar a gravidez para fora ali mesmo.
Eu, alheio, nada daquilo me dizia respeito.
O diretor resolveu fazer ironia, teve o mau gosto:
- Você não acredita na cegonha, hein?
- Que cegonha?
O capitão, dando voltas pelo gabinete, as mãos no ar, fazendo gestos de afogado, gritando para melhor se convencer da desgraça de que era mesmo um miserável:
- Está grávida! Grávida!
Perguntei, sem má intenção, o que tinha a gravidez comigo.
- Cínico! - gritou o diretor.
- Se te pego no quartel! - prometeu a si mesmo o capitão.
Eu estava confuso por dentro. Sabia vagamente dessas coisas, no fundo achava porcaria, uma simples lambuzada fazer criancinhas. Foi coisa que custei a admitir, aceitava por fora, por dentro mantinha a dúvida. Julinho me ensinara errado, todo mundo errado, o certo era outra coisa qualquer, menos aquilo, podiam ser gostosas mas nada de nascer criancinhas por causa das lambuzadas. Julinho errava também, dizia que urinar contra o vento dava gonorreia, podia estar errado outra vez - era minha última esperança enquanto aguardava a vida.
Nada feito. Lambuzada em mulher dava filho mesmo. E agora? Quem lambuzara para valer? Tanta gente! Até mesmo o capitão podia ser.
Perguntei isso. Sem maldade.
- Fique sabendo que eu não mantinha relações com minha esposa há muito tempo!...
- Fez muito mal - respondi tranquilamente.
O capitão levantou o braço, nova bofetada a caminho, o diretor se meteu no meio, levou a sobra. Tentou me explicar:
- Por isso fiz questão dos nomes, para repartir as responsabilidades.
Raciocinei por fim.
- Posso dizer uma coisa? - perguntei.
Não me deram resposta. Podia.
- É melhor para todo mundo que o culpado seja um só, eu, por exemplo. Não posso garantir nada, só fui uma vez para valer, nas outras não houve nada. De qualquer forma, fui eu o descoberto, fico com a culpa, a criança não é minha mas, se é o caso, fico com ela.
O diretor riu, da bobagem:
- O caso não é esse.
O capitão, admirado de estar calado, me ouvindo.
- Sou o responsável, pronto. Se o capitão precisar de sangue, não precisa promover mortandade, o meu sangue basta.
- Ninguém falou em sangue - o diretor assustado com o rumo, querendo dar fim ao caso.
- Mas talvez venha a se falar! - o capitão alvoroçado com a ideia cruenta que eu mesmo lembrara.
O diretor ajudou o fim. De nada adiantava derramar sangue de um se muitos eram culpados. O capitão caiu em si e na poltrona, arrasado, o chifre batendo no teto.
Admitiu tudo. A esposa infiel há muito, ele habituado já à infidelidade, não estrilava, aceitava os fatos resignadamente, a mulher não podia viver sem o adultério, ele não podia viver sem ela, o jeito era viverem os três debaixo do mesmo teto, por cima da mesma cama.
O caso de agora trazia um fato novo, novidade para sua capacidade de engolir as amargas da vida: um filho. Um filho que ninguém sabia de quem era, concordava que eu não mentia, sabia que muitos outros petiscavam dela, não adiantava arrancar mais nomes, tanto fazia, o melhor mesmo era se resignar, ficar com a mulher, os chifres, o filho - vida dura, ainda bem que a mãe dele não mais vivia, senão ia falar pra burro.
Não precisou dizer tudo isso, meias palavras apenas, mas eu e o diretor entendemos assim. Resignação franciscana, nem frei André era assim quando eu dizia “láudamus” em vez de “laudámus”. Apesar da resignação, fez questão absoluta de um castigo no duro, o pior possível. O diretor protestou, mão no peito, jurando, de tal ele se encarregava, eu seria expulso com toda a solenidade, ficaria impossibilitado de continuar os estudos, nenhum colégio me aceitaria mais, com o pouco que sabia ia ter vida ingrata e miserável - o que no fundo deu certo.
Excomunhão tamanha não bastou para o capitão. Perguntou se não havia pancada, meios físicos. Não havia; se fosse no quartel eu pagava.
Recebi ordem para arrumar minhas coisas. Expulsão solene, o sino tocou, as aulas pararam. Ritual só reservado para as grandes situações. O pessoal reunido, professores, alunos, empregados, apinhado o salão principal, onde se recebia o ministro da Educação nos dias de formatura.
Com certa falta de tato, o diretor perguntou se o capitão queria “prestigiar a solenidade”. O capitão declinou, modestamente, não, não queria.
As coisas neste pé, tudo serenado. Veio então aquilo, a droga que sempre me acontece, que sobe de dentro feito um vômito azedo, um gosto de ovo na boca, me entope a garganta, tenho de lançar tudo para fora, com nojo:
- Capitão, eu disse só a verdade, muita gente andou também com ela, eu só fui uma vez, das outras não fiz nada. O pai da criança pode ser muita gente, quer dizer, poder pode, agora, garanto que o filho é meu, isso garanto.
As iras amainadas foram despertadas furiosamente com a provocação. Palavrões vararam o ar. O próprio diretor avançou para mim:
- Como sabe? Diga! Diga logo!
Mas como explicar? Como dizer a certeza de dentro? Não adiantava falar da predestinação dos equívocos. Eu era um equívoco de ventre, entre o ventre e eu havia um pacto de erro e ironia. Milhares de jovens nascem de ventres certos, trepam com ventres certos, quando querem fazer filhos emprenham ventres certos.
Eu não. Tudo errado. Tudo e todo errado. Nascera de ventre errado, me repelira, me detestara. Envergonhei o ventre que me gerou. Nada de admirar - lógico até - que o ventre que me deflorasse recebesse, desastradamente. vergonhosa fecundação.
No meu livro de latim havia histórias, um imperador romano que desejava uma só cabeça para seus súditos, queria num só golpe de espada decapitar a todos. No instante lembrei daquilo. Queria coisa parecida, todas as mulheres do mundo com um ventre só. Fecundaria a todas duma só vez. Depois, com desprezo e nojo, num só golpe de navalha, arrebentaria a todas, com seus repugnantes fetos.
EU E O VENTRE
Um ano quase, longe de tudo, no pedacinho bonito do litoral brasileiro que é Maceió.
Cavara emprego no comércio local, os patrões não foram com a minha cara, eu não fui com a cara deles. Acabei motorista numa empresa de ônibus, percurso Centro-Pajuçara. Gostava. As praias eram bonitas. Tinha dezoito anos, não dirigia mal e era quase feliz.
No dia de folga eu não sabia o que fazer.
Dez meses na cidade, só conhecia o meu itinerário profissional, beirando o mar sempre. Ignorava as outras ruas da cidade e do mundo - não importavam: a minha rua era aquela.
A cidade, em si, era feia e triste. Havia o mar, apenas, um mar estranho e verde, exageradamente bonito. Para que tanto mar?
Gostava de passear sozinho pelas praias abandonadas. Ouvir o ronco do mar, os roncos aliás, pois havia dois bem distintos, como duas orquestras. Um era suave, espiritual, vinha morrer na praia com languidez de coisa virgem, intacta. O outro mais longe, na arrebentação dos recifes de coral, soturno, brutal, devasso.
Os dois sons inquietavam. E havia o vento no coqueiral esparramado, um canto desagradável de coisa rasgada, grito de vegetal insatisfeito, querendo ter alma.
Isso mesmo. O mar, o coqueiral, os recifes, o vento, tudo aquilo querendo ter alma. Se adiantasse ter alma! Eu tinha.
“O mar quer é gozar!”
Era um gigante enorme, sepultado vivo no abismo, bramindo o tempo todo de desejo. Por quem? Não bastavam os náufragos, a alma e o corpo dos náufragos sugados por suas ondas?
Uma jangada branquinha, cortando a linha dos recifes, se aproximava da praia.
Quem inventou a jangada?
O triângulo de vela branca cortando o azul do céu, um ponto preto manchando o verde da água.
“Naquele ponto preto existem almas.”
Almas que dominaram o mar. Que exploram miseravelmente o mar, que retiram as vísceras do mar para vender aqui fora, para alimentar as vísceras dos homens.
Pensava: um dia andarei de jangada. Para quê? Não sei fazer nada no mar, para mim ele é uma inutilidade que faz barulho e bonito.
Mas seria bom vencer as águas dentro dos pedacinhos de madeira, arrastados pela vela branca.
Ficaria deitado no fundo, olhando o ponto onde o verde se mistura com o azul. No meio, bojuda como nuvem, enorme, a vela me arrastando, arrastando até o fim.
Tinha de voltar, isso é que é chato, sempre se volta. Por que não se vai sempre para a frente, não precisa ser reto, apenas para a frente sempre?
“O trabalho, o ônibus, os passageiros, o itinerário, tudo me chama e me prende em suas dobras. Lá longe, muito longe, tem Helena. E tem o pó, aqui embaixo, a me esperar. Tudo isso pede que eu volte, um dia.”
Um calor subindo pelo rosto, eu não gostava de pensar na volta, sabia que algo me chamava, alguma coisa sempre me chamava.
“Não, dessa vez eu não volto, não quero voltar, prefiro estourar na arrebentação, ou explodir com meu ônibus!”
No fundo, sabia que voltaria. Me amarravam, me atraíam. Um ímã insensível, lá longe, guiando meus passos, dando pouca liberdade, como numa gaiola.
A jangada se aproximou, a vela não era tão branca assim, era suja, salgada, tinha remendos. Dizer que aquilo - um trapo imundo, roto - vencera mais uma vez o mar.
Um homem pulou antes, em manobra rápida com um remo na areia imobilizou a coisa que chegava de longe com gosto de mundo. Na vela, o cheiro forte dos ventos do mundo.
Os outros pularam depois, empurraram a jangada para cima. Largaram as cordas, a vela se abanou, ridícula ao vento, sem vida, sem forma, feito um cadáver de pano.
Nem me olhavam, eu não era nada para eles. E eles o que eram para mim?
Jangada apenas.
Há pouco, aquilo tudo era mancha suja no meio do verde-azul enorme, lá longe. Agora, uma porção de coisas separadas, embrulhadas, com uma porção de donos, com leis, com ódios.
“Talvez se odeiem. Desejam as mulheres um do outro.”
- Muito peixe? - perguntei.
Resposta demorada, os homens não gostavam de falar, cada um esperou o outro. Um deles se resolveu, disse com dificuldade, arrastado:
- Nada, o mar anda ruim.
Cuspiu. O cuspo na areia quente boiou um pouco, depois a areia chupou.
“Falam como cospem.”
Havia um cesto, coisa pequena, idiota, peixinhos miudinhos, insignificantes. O mar ali, vasto, profundo, tanta coisa no seu ventre inchado de monstro.
Os homens venceram o mar para trazerem aquilo, o mar é que estava ruim, nunca os homens.
Uns rolos de madeira, puxaram a jangada para fora, um homem esqueceu o dedo, a jangada passou por cima. Não deu um grito, olhou o dedo, não parecia o dele, chupou com força, ninguém ligou.
Na cidade era acidente de trabalho, dava direitos, o Estado se mexendo por causa do dedo. Ali, nada. Tudo indiferente, nada valia nada, hoje o dedo, amanhã o homem, inteiro, tragado pela jangada.
“Para que estou aqui?”
Achei estúpido me preocupar com a jangada. Com o mar. Revoltei-me novamente contra a folga, o dia bestão pela frente. Horrível, dava tempo para a gente pensar, eu só queria o meu itinerário, a lombriga enorme se desdobrando diante dos olhos, prendendo meu corpo em cada curva, amarrando a carne em cada dobra, sem sobrar tempo para nada, isso sim, era bom.
Do outro lado, pela avenida da praia, passavam os ônibus, velhos, novos, uma porção de cores. Não sabia direito as cores do meu, tantas! Só a faixa do meio, vermelha. Gostava dele, amava o barulho do seu motor, conhecia-o de sobra, adivinhava sua preguiça e seu cansaço. Batida simpática, os cilindros certinhos, um depois do outro, sem falhar um. Barulho bom de coisa que não existia, um dia não mais existirá, mas em dado momento existe, tremendamente existe e sofre e cansa nas ferragens, nos aços, no sangue negro e pastoso dos óleos lubrificantes. Barulho imbecil só o do mar, eterno, sempre existiu, antes da gente, um dia existirá, depois da gente.
Imbecis as coisas eternas.
Morava num quarto, em casa de família, lá para as bandas do Mercado, no trecho mais feio e triste da cidade feia e triste. O Atlântico não mandava brisas para lá, um calor bárbaro. Mas o aluguel barato, a família sem exigências, só não podia trazer mulher para dentro, no mais gente amorfa, sem inspirar sentimento nenhum, nem mesmo indiferença.
Tranquilo assim, atrapalha muito a gente se obrigar a gostar ou não gostar dos outros, compromissar-se com coisas idiotas. Nada melhor que viver no meio do neutro, nem mar nem terra, estreito espaço apenas.
Nos dias de folga saía de noite, um cinema ordinário, um trago no bar ao lado do Teatro Deodoro.
Naquele dia, vontade nenhuma. O pessoal estranhou, “estava doente?” - disse que estava e me deixaram em paz.
Deitei cedo. Cansado de verde. O mar entrando nos olhos, doíam de verde. No escuro, eu apertava as pálpebras, um painel verde movia-se disforme, diante de mim. Quis pensar noutra coisa, na jangada. Mas o mar tragava tudo, tudo era verde, a jangada verde, os homens da jangada eram verdes. Lembrei o cuspo, entranhando na areia quente. O cuspo saíra de uma coisa com alma, agora a maré enchia, o verde inchava, o cuspo também diluído no verde imenso, universal. Tudo verde.
“Não quero voltar. Estou bem assim, sozinho, tudo verde em minha volta, parece alucinação. O resto nem resto é.”
Havia outros, isso sabia. Coisas que se ama ou odeia. Papai com nojo de mim, meu irmão me amando ao modo dele. Helena. Que coisa para Helena? Quase nada, muito pior que nada. Talvez por isso a amasse.
Todos atrás do painel verde, a me espreitar da escuridão. Lá estavam, meu pai aloucado, meu irmão torturado. Helena pecando, quando pensava nela só via aquilo, Helena pecando, nunca falando, nunca dormindo, só safadeza.
Isso tudo no verde. Não via nada, os olhos fechados, apertando para dentro. Só o painel verde, líquido, movendo-se sem forma diante de mim. Queria que todos se dissolvessem no verde, todos fossem chupados pelo verde, como o cuspo do homem.
Mas o verde os respeitava, eles ficavam intactos, só eles não-verdes, me olhando, me julgando, verdes só de raiva.
Sei lá se cheguei a dormir. Os olhos doendo de verde, apertava, apertava para me livrar dos fantasmas verdes. Apertei-os tanto que começou a nascer uma coisa salgada dentro deles.
Se algum imbecil me visse, jurava que eu estava chorando.
Dia seguinte, firme no volante, desdobrando o roteiro que me satisfazia, rua depois de rua, as mesmas casas, os mesmos passageiros. Ao meio-dia um calor insuportável, a poeira subindo, envolvendo as caras, todo mundo suava e fedia.
Gostava daquilo, do cheiro de gente, gente sem história, estranhos, dependendo de mim, dos meus olhos, de minhas mãos, de meus pés, de meu raciocínio mecânico e imediato. Podia matar a todos, bastava um gesto do pulso. Era incapaz porém de fazer isso, não que gostasse deles, não fazia porque era bom saber que dependiam de mim e ninguém sabia o meu nome, como era o som de minha voz. Homens honestos, certinhos na vida, arrumados, cheios de rótulos e catálogos, dependendo sem saber de um camarada que não era nada, simplesmente uma coisa sem nome.
Junto da Western, todos os dias o mesmo homem tomava o meu ônibus. Trabalhava no centro, era um senhor respeitável. Parecia meu pai, antes de tudo. Meu pai agora estava diferente, não era mais aquele.
Lembrava quando cheguei em casa. Ele não disse nada. Em outros tempos faria a cara severa, só mesmo ele sabia fazer assim. Escolhia bem as palavras, dizia a frio a sua opinião, o que pensava sobre o meu crime, muito controlado, sem emoção nenhuma.
Era o que doía. Nunca rompantes comigo, nada de raiva misturada com amor, ódio só, frio, calculado, eterno.
Eu então parecia um réptil - nunca um homem, mesmo que criminoso.
Viu que eu chegava com as malas, com os livros, a comunicação com os selos, a assinatura do diretor por cima. Estava sentado, sentado continuou, parecia nem notar a minha presença. Foi meu irmão quem providenciou as coisas, arrumou para mim o quarto dos pais.
- E papai?
- Não deita mais. Passa o tempo todo ali, na cadeira de balanço, olhando as paredes.
Sobram sempre as paredes, para os loucos.
Meu padrinho, só à noite. Nervoso. Tomou providências de ordem geral, fez ver o estado de coisas, papai inútil, nada para fazer, só esperar o pior. Tratássemos da vida, meu irmão tinha colégio, sacrifício na asma, ficava mesmo interno, problema resolvido. Eu sobrava. Só havia um caminho, o trabalho.
Disse que se mexia, tratava de arranjar um emprego, conhecia um gerente de camisaria, ia falar, quem sabe arranjasse. Começava caixeiro, podia subir.
Poderia morar com ele, quando quisesse. Já, o melhor era ficar com papai, tomando conta da casa.
Ninguém contava comigo, ninguém sabia de nada. Eu não podia ficar ali, olhando a casa, olhando o pai imaginando feio. Detestava o pai e a casa: um o meu ódio, minha vergonha; outra um pesadelo. Ali mesmo o Dr. Moreira receitando os óleos, mamãe olhando, me obrigando a tampar nariz, “toma”, “toma”, só para fazer a vontade do outro, o canalha.
Dormi só uma noite. Revirei na cama, na mesma cama onde a outra rebolara, onde fizera meu irmão, me fizera com o outro, depois federa em cima, pâncreas podre. Era demais.
As malas ficaram arrumadas, nem me dei o trabalho de desfazer. Sabia onde tinha dinheiro, na gaveta maior do armário, um livro da mãe dele, bem velho, as páginas soltas, em francês, edição popular do Traité de la vraie dévotion, dum tal Montfort, papai lia às vezes para o meu irmão entender.
Dentro dele havia notas graúdas. Tirei algumas.
Aquilo seria roubo? Tinha direito de apanhar assim dinheiro? Eu não podia viver mais um dia na casa, acabava louco ou assassino. Precisava de dinheiro, para fugir, me aguentar uns tempos até arranjar emprego. Não havia escolha, nem outro caminho, e mesmo que houvesse eu iria embora do mesmo jeito, só para fugir, viver longe de tudo, esquecer o que pudesse, o que não pudesse danar.
Apanhei o dinheiro. Rompeu a madrugada e já estava na rua. Antes, cruzei com papai, a noite toda na cadeira, quase junto da porta, os olhos bem abertos, dilatados, caindo das órbitas escuras, aloucadas pela dor.
Viu tudo, viu que eu estava fugindo, não fez nada, nem piscou, parecia um cadáver, apenas respirava, os olhos abertos nem sequer olhavam.
Se tivesse um alfinete à mão espetaria o braço dele, só para ver correr sangue, o sangue que não corria em mim e que nos separava, cavando a repulsa, a incompreensão. Que ele me odiasse, certo, dentro do natural das coisas. Que eu o odiasse também, certo ainda, justificável. Mas podíamos, pelo menos, compreender um o outro, falar cada qual o que se trazia entupido na garganta, “corno!”, “filho da puta!” Verdade, nem sequer compreendíamos o ódio que nos unia.
Na rua, esta livre de novo, embora fosse apenas um rapaz com duas malas, algum dinheiro no bolso e vontade nenhuma de viver. Tomei táxi, rumei para o aeroporto, bati os guichês, os aviões lotados, apenas um, para Recife, com escala em Maceió, o passageiro tomaria lá, a vaga só até Maceió.
- Onde é Maceió?
O homem não respondeu, pensou que era troça mas não era. Sempre fui negação em geografia, sabia mal e porcamente as capitais, assim a frio não sabia nada, precisava investigar, mexer no mais fundo da memória. Tinha um processo pessoal e infalível, mas dispendioso, começando pelo norte, acabava no sul, beirando o mar.
Amazonas, capital, Manaus. Pará, capital, Belém. Maranhão, capital, São Luís. Ceará, capital, Fortaleza. Rio Grande do Norte, capital, Natal. Paraíba, capital, João Pessoa. Pernambuco, capital, Recife. Alagoas, capital, Maceió... pronto ali estava, Maceió, capital de Alagoas.
Ia, então, para Alagoas! Mas acaso existiriam mesmo esses lugares todos? Ou tudo aquilo não passava de uma cretinice dos adultos para obrigarem as crianças a se aporrinharem nas aulas e serem reprovadas nos exames?
Seria interessante se me dissessem:
- Nada disso existe. O mundo termina mesmo ali - naquela dobra do horizonte. O resto é o vazio
Mas Maceió - pelo menos - existia mesmo. Lá estava o avião enorme, bojudo, a brilhar como um grande peixe prateado dentro do aquário da luz do sol.
Aquele gigante de aço, como enorme pulga, deu um pulo, tomou fôlego na Bahia e, à tardinha, despejou-me numa pista onde se lia, lá de cima, escrito a cal: Maceió.
E agora era o meu ônibus, o meu itinerário de sempre, a cidade suja e feia, o mar exagerado e verde, os coqueirais rasgados, os passageiros suarentos, aquele senhor que se parecia com meu pai.
E eu? Onde ficara eu afinal de contas, naquilo tudo? Tinha a impressão que estava oco por dentro. Alguma coisa de muito importante havia ficado em algum lugar. Eu precisava encontrar essa alguma coisa. Mas isso seria a volta e eu não queria voltar. Preferia o roteiro boçal que me prendia à vida, que me amarrava à sua monotonia de tal forma que minhas complicações interiores pareciam burocratizadas.
Sofrer era o meu ofício, o meu cargo, na estúpida administração da dor.
Centro-Pajuçara; Pajuçara-Centro. Isso me desidratava, eu era um troço sem alma, que rolava pelo caminho, sem sentir nada.
Sim, aí estava a vida. A minha vida. O que me importavam o resto, os outros? Eu tinha aquela estrada. Era a minha estrada. A minha viagem.
Precisava apenas ter consciência de que essa viagem era coisa minha, criada por mim e para mim, cultivada como um câncer dentro da minha pele. O mais e o resto não passavam de tola preocupação do espírito e da carne.
Mas como doíam.
Largava o ônibus às quatro da tarde. Antes de ir para casa, ficava na praia um pouco, esperando as sombras, a noite que vinha certa, envolver o verde que doía nos olhos.
Coisa de que gostava, a noite. Noite que tornava o mar inexistente e vazio. Olhava além o quebra-mar, não via nada, parecia a órbita dum animal sem o olho, escura, oca. Onde ia o verde todo? Onde as espumas, onde as ondas? Iam todas para a noite, dormir o sono do mundo.
A tarde morria e aparecia Yara. A tarde empurrava Yara para mim. Morena, de olhos verdes, ignóbeis, a cara de bugre, dezesseis anos só, selvagem, estranha.
- Gosto de você, Yara, porque você é tola!
Ela ficava séria, gostava de dar dentadas, os dentes afiados e fortes, pareciam de gato. Um dia apanhou um tatuí na areia, quebrou com os dentes, comeu cru, com casca e tudo. Os lábios grossos, vermelhos, pedaços de carne sangrando.
- Gosto de sua boca. Parece coisa viva, um bicho.
Ria. Feia quando ria, parecia louca. Perguntava:
- Por que seu nariz é tão grande?
Eu não podia explicar as origens complicadas do meu nariz. No mais, gostava dele quando Yara estava perto, ele ficava mais junto dela, o cheiro de Yara era gostoso, coisa primitiva e boa, nem mato nem marisco, algo salgado, impreciso, sem forma, um cheiro vadio:
- Gosto do teu cheiro, Yara, cheiro de vela de jangada.
Naquela tarde ela veio aborrecida, fez um monte de areia, concentrou-se, os dedos nervosos caprichando aqui e ali, absorvida, naquele instante nada mais existia, nem mar, nem mundo, nem eu. O lábio caído de atenção, fruto pesado de seiva.
De repente, deu um pontapé naquilo tudo.
Sentou-se do lado, cotovelos no joelho, queixo na mão:
- Estou chateada!
- Por que desmanchou o castelo?
- Que castelo?
- O que fazia na areia!
- Aquilo era castelo?
- Sei lá! Era uma coisa, um castelo, uma catedral, um guindaste, um troço qualquer...
- Isso mesmo, fazia um troço qualquer.
- Por que desmanchou? Achei bonito.
- Não chateia!
Silêncio. O mar roncava, agonizando, a treva afogava a água, de verde ia ficando negra, até desaparecer na noite.
Yara falou:
- Você está sempre chateado.
- Não, eu nunca estou nada.
- Não tem problemas?
- Isso é outra coisa.
- Aposto, não tem nada sério, como o Vadeco.
- Precisamente o Vadeco, não. Mas nem só Vadeco é problema. Há outros.
- Piores?
- Equivalentes.
Obstinou, voltou a falar, gostava de falar nele:
- Você não conhece o Vadeco.
- O homem que dá em cima de você?
Fez que sim com a cabeça.
- Hoje, ele me apanhou à força, me deu um beijo.
- Você não mordeu?
- Pra quê? Eu gostei.
Pronto. Chateação à vista. Yara beijada, eu não tinha nada a ver, não a queria para mim, nunca a beijaria, mas para que o outro a beijara? Angústia agora, angústia nova. E gostara da coisa, a porquinha começava! Pensava que na hora do beijo gostasse de morder, sua boca parecia um bicho guloso, safado, com fome.
“Já provaram homem.”
Yara só me preocupava quando estava perto, longe não valia nada. Contrário de Helena, quanto mais longe, pior. Yara era diferente. E de uma hora para outra, estranha já, espécie de angústia menor.
Tomei-a nos braços todinha, apertei-a contra mim, ela me deu a boca cheirando a seiva, com gosto de vida, de animal. Os olhos ignóbeis abertos, grandes, como que espantados. Eu sentia prazer em ter na boca a coisa que parecia um bicho, a se mexer. Os dentes fortes, afiados, a língua musculosa, flexível, morna, de viço selvagem, parecendo um fruto.
Deixava-se beijar. “Está aporrinhada, topa tudo quando está assim, só para matar a aporrinhação.” Olhava seus olhos. Verdes e molhados, um pouco de treva já, a tarde vindo em mistério, cruéis os olhos da mulher ao cair da noite.
Ela perguntou:
- Por que você fez isso?
- Me deu vontade.
- Só?
- Só.
Levantou, foi à beira d’água, molhou os pés, pretexto de limpá-los, agora será pior, a areia mais grudada ainda. Voltou ao lugar, tentou enfiar os sapatos, a areia incomodando, cansou, amarrou os cordões, pendurou tudo no dedo. Ficou um pouco ainda, olhando a areia, chutando os restos do castelo.
Teve vontade, quase disse alguma coisa. Mas foi, sem uma palavra.
Fiquei só. Tudo escuro, o mar não mais, Yara não mais. O mar, som desagradável apenas, saído da treva, acorrentado na noite. Yara, um gosto de bicho na minha boca, engolia a saliva e Yara entrava dentro de mim. Comia Yara, de longe ainda.
No mais, a noite e eu.
Quando cheguei no quarto, àquela mesma noite, havia inquietação à minha espera: uma carta.
Como fora possível aquilo? Fugira em silêncio, sem deixar vestígios. Julgava, além do mais, que me haviam esquecido. Eu havia feito força para esquecê-los. Se não conseguira, bem, isso era comigo, não tinha que dar satisfações a ninguém. De qualquer maneira, ninguém tinha direitos de pensar em mim.
Mas isso tudo era engano. Ali estava o envelope. Quis rasgá-lo sem ler, jogá-lo fora. Aquela carta era coisa miserável.
Pesei o envelope:
“Está cheio de angústia!”
Reconheci a letra enfeitada do padrinho. Que trabalheira para achar meu endereço. Mobilizara a polícia, os ministérios, o diabo. Para quê? Para me mandar a angústia cheia de selos e carimbos.
“Vou ler amanhã. Pem, dormirei ainda esta noite em paz.”
Deitei-me. Não queria pensar na carta. Mas eu a sentia. Coloquei-a dentro dum blusão, joguei tudo numa gaveta da cômoda. Da minha cama olhava o móvel silencioso que guardava a angústia. Parecia que ele inchava, que ia estourar, jogando-me à cara o retângulo de papel branco que trazia a angústia.
Para não pensar na carta, pensei em Yara, a que tinha cheiro de vela de jangada. Nunca pensava em Yara. Mas naquele instante ela serviu para que escapasse da tortura velha para a tortura nova. Só os adjetivos mudavam na minha vida. Os substantivos, sempre os mesmos.
Quando acordei, ignorei a carta.
“Não vou lê-la. Nem hoje, nem nunca.”
Fui trabalhar. O ônibus, o itinerário de sempre aliviaram-me a tensão, absorveram-me.
Fiquei livre novamente.
Centro-Pajuçara; Pajuçara-Centro.
Sepultei a inquietação nas curvas imbecis.
Pelo meio-dia, ao passar pela Western, o senhor que se parecia com meu pai tomou o ônibus. O carro estava superlotado e eu seguia, insensível, ligado à minha máquina. Integrado nas dobras do caminho, na paisagem. No tédio.
Primeira, segunda, sinal vermelho, freio, primeira novamente, estico um pouco, engato logo a prise. Um camarada dobrava a rua e fez o sinal. Fiz que não vi. Ele olhou para o número do carro. Vai fazer reclamação.
Atrás de mim um sujeito queria saber onde era o Gogó da Ema. Todo mundo deu explicações. O homem ficou encabulado e não perguntou mais nada. Olhei-o pelo espelho. Estava com cara de quem não sabia ainda. Viera de longe. Para ver um coqueiro torto. Eu era um coqueiro torto - estava ficando lírico -, não era bem coqueiro mas era torto. Os coqueiros tortos servem para o turismo, para os cartões postais, os quadros dos pintores acadêmicos.
Os homens tortos para que servem?
Súbito, um calor me subiu pelo rosto. Logo senti uma vontade tremenda de vomitar, o estômago embrulhava, a boca amargava, sentia as faces lívidas, cadavéricas.
Já sabia o que era. Era a coisa que vem sempre das minhas vísceras, repentinamente, como uma cólica imprevisível, cruel.
Encostei o ônibus na calçada. Levantei-me do assento e encarei os passageiros com espanto, como se não soubesse o que estavam fazendo em torno de mim. Eles me fitavam ansiosos, sem saber o que se passava.
“O que tenho a ver com esses idiotas?”
O que falei foi outra coisa:
- Vão todos para o inferno!
Desci do ônibus. Os protestos se generalizaram, alguns mais decididos ameaçaram punições físicas, um rapazote de óculos ameaçou medidas jurídicas para o caso. A maioria ofendia a minha mãe.
Mas eu estava livre. E quando se está livre pode-se fazer tudo. Inclusive, voltar para as grades.
Defronte a mim estava aquela coisa. Uma coisa esquisita, trágica, coisa que já foi e não é mais. “Meu pai está louco”, pensava. Passa os dias ali sem sentir nada. Por que não se mata de uma vez? É tão simples. Para que agarrar-se à vida - se aquilo é vida -, por que não se aniquila logo na grande noite, na única treva?
“Ele é um porco. Gosta da vida como as galinhas que esperneiam diante da faca.”
Afinal, para que mandaram me chamar? Para assistir àquilo? Passar os dias naquela casa hostil, fantasmas nunca mortos saindo das paredes, defronte daquela coisa com a expressão de quem vai soltar uma gargalhada? Por que não dá logo a gargalhada que lhe entope a garganta e o sufoca?
Já era a segunda semana que passava ao lado daquela coisa estúpida. Aquilo não era nem o meu pai - era eu quem tinha a vontade e o direito de rir às vezes! Meu padrinho escrevera: “Venha assistir aos últimos momentos de seu pai, ele está nas últimas!”
Assistir aos últimos momentos... O que serão os últimos momentos? Eu já tive vários últimos momentos. O último momento de colégio, o último momento de Maceió.
Pensava sobretudo em Maceió. Para mim, o meu ônibus ainda estava parado no mesmo lugar. Adivinhava a exaltação dos passageiros. Deviam estar indignados, exibiam os bilhetes que davam direitos - eu os violara em algo sagrado.
Fui procurar condução para voltar ao Rio. Só encontrei avião para dois dias depois.
No último dia, esperava a tarde. Quando caiu, em outro canto qualquer enxotou Yara para cima de mim.
- Por que vai mudar a vida? - perguntou.
- A vida não vai mudar, vida não muda nunca.
Eu estava triste, sentimental:
- A vida não vale a vida, Yara.
Olhava o mar verde, última vez, mar último momento. Olhos de Yara também. Lembrei o beijo, fora numa tarde igual e boa.
- Não esquecerei o beijo, Yara.
- Nem eu.
Baixou os olhos. Uma expressão estranha, não aporrinhada, triste apenas, mas não por minha causa.
- Que que há?
- Vadeco quase.
- Quase? Por quê?
Deu de ombros, resposta simples, evidente, ela não sabia também.
- Também tive vontade muitas vezes, Yara, mas não me pergunte por que tive, nem por que não realizei.
Sombra dura no olhar de Yara:
- Algum dia terá de acontecer. Vadeco, você ou outro qualquer, isso é que faz a vida besta, as coisas acontecendo porque têm de acontecer, a gente não valendo nada, só esperando a hora das coisas. De qualquer forma, não gostaria que fosse você.
- Nunca?
- Nunca. Eu gosto de você.
- Também eu, Yara, mas além da carne e da alma.
- Onde?
- Num lugar qualquer que eu mesmo não sei, onde perdi uma coisa de dentro, não sei o quê, só sei que nunca mais encontrei.
Ela continuou olhando o chão. Seus pés eram espirituais, tudo era selvagem, menos os pés, não bugres, pé só anjo, alado, nascido para voar, parecendo uma outra pessoa dentro dela.
Ficou mexendo a areia com os pés, estava chateada e enterrava tudo, os pés pareciam querer sair voando, ela enterrava bem na areia, para ficarem presos no animal.
- E se eu fosse para um quarto com você?
- Talvez.
Ela baixou mais ainda os olhos, os pés sumiram na areia.
- Tinha coragem de fazer isso comigo?
- Não era questão de coragem, questão de obrigação. Se eu fosse para um quarto com uma menina de dezesseis anos, a sociedade faria inquéritos, há leis a respeito, a polícia, os juízes, os padres, os jornais, a opinião pública, tudo isso se meteria nessa coisa tão simples e que independe tanto dos outros. Nós frustraríamos isso tudo, roubaríamos toda essa gente se fôssemos para o quarto unicamente para nos olharmos nos olhos, ou para que eu beijasse seus pés.
Estava divertida agora, eu a distraía e ela então não mais me angustiava, éramos felizes num modo breve.
- Mas não tenha medo, nós nunca iremos para o quarto. Quando me der vontade, mas uma vontade muito forte mesmo de fazer aquilo com você, não vou me enfiar num quarto abafado, cheirando a safadeza dos outros. Fazia aqui mesmo, na praia, por cima da areia, ouvindo o barulho do mar, no ritmo das coisas.
Ela apanhou um punhado de areia com a mão:
- Meu sangue mancharia essa areia.
- O mar lavava amanhã, depois crianças com mãos inocentes viriam procurar conchinhas no meio. Isso é um pormenor sem importância. Importa apenas que eu não amaria Yara num quarto, nem beberia champanha num penico.
- Você já bebeu champanha em penico?
Yara estava divertida. Seus olhos brilhavam, seus pés estavam quietos, ela não queria mais voar, estava bem ali, em paz com ela mesma, e comigo.
- Sabe que o nome dessa coisa aqui é vaso da noite? Não acha bonito isso: vaso da noite?
Ela estava feliz. Tive de lhe dizer com seriedade:
- Vou sentir sua falta, Yara.
- Então - respondeu - vou dizer uma coisa que não queria dizer nunca: não quero que você vá embora.
Aquilo não me desconcertou nem comoveu:
- Sei disso. Você queria que eu a esperasse todas as tardes: “Vadeco me beijou, Vadeco disse isso, disse aquilo, Vadeco tem os olhos mansos, Vadeco quer se matar...”
Yara ficou dura. Seus olhos brilharam, de raiva; seus pés voaram.
- Quem sabe? Eu sou limpa, ouviu? Quando as unhas crescem, corto as unhas. Você não. Guarda tudo dentro de você. Você é um sujo, um porco, não solta a podridão para fora. Talvez goste da podridão. Morrerá um dia, entupido nela!
Agarrei-a quando tentava se levantar. Ainda me lançou um olhar cruel, cheio de ódio. E medo. Amassei sua cabeça contra a areia, num beijo bruto. Seus pés bateram ainda, queriam voar. Mansamente foram quietando, acabaram morrendo num pequeno estertor. Ela então me enlaçou a nuca e me aceitou, com fome. Na hora em que gritou mais forte, uma onda quebrava na praia, soturna, fervendo, ninguém ouviu, nem eu.
E longe, na arrebentação dos recifes, o mar roncava, bestial, com cio.
Aquilo tudo estava distante. Nem parecia ter acontecido. Já confundia as coisas que não eram mais com nunca ter sido. E fora também um último momento. Devia ter-me matado logo depois. Deve ser bom a gente morrer em plena tranquilidade, num bom momento da vida. Leva-se a impressão de que a vida foi boa e de que a possível eternidade também seja boa. Perpetua-se com a morte o instante da felicidade, o minuto de sossego da carne e da dormência do espírito. Para que esperar os enfartes, os espasmos cerebrais, a bexiga presa ou solta, a próstata inflamada, o câncer do reto?
Porcaria a gente viver até o fim. Sobretudo isso, porcaria. Arrastar as doenças e as deformações da idade, dar o ridículo espetáculo de uma morte com penicos embaixo das cobertas, sondas fedorentas a destilar urinas rebeldes, os vizinhos curiosos aproveitando a confusão para se certificarem se temos fimose ou como somos por dentro, não, morrer assim é porcaria. Viva o suicídio! É higiênico, prático, barato. Não aporrinha ninguém. Nem mesmo os padres para as bênçãos, nem os amigos, para as missas de sétimo dia.
Papai se mexia às vezes, na cadeira de balanço. Eu tinha a impressão de que ele ia soltar um palavrão e depois gargalhar até estourar as artérias obstruídas.
Meu irmão regressara ao colégio pela manhã. Passara alguns dias comigo, a tomar conta de papai. Mas ontem o médico disse que papai podia morrer a qualquer instante, já ou daqui a vinte anos. Ora, meu irmão tinha pressa, seus triunfos e sua glória não podiam esperar tanto tempo, seu futuro não podia esperar vinte anos, tinha as aulas, os exames, os livros, a sua vida exigia coisas imediatas que tinham de acontecer umas após as outras, numa sucessão ordenada, sem hiatos.
Mas eu podia. Quem nunca esperou por nada tem paciência e tempo para esperar vinte anos. Nem que seja para ver as nuvens formarem no céu um dragão. Ou uma mosca passar pela parede e sujar.
Eram dez horas da noite, pouco mais talvez. Ouvi o relógio bater as horas. Contei as batidas para me distrair. Pouco depois me levantei.
Nesse exato momento tive a impressão de ter visto alguma coisa se mexer no olhar de papai. Há muito tempo que nada se mexia naquele olhar. E eu tinha a certeza, alguma coisa acabara de se mexer agora, um estremecimento, uma nuvem passara por aquelas pupilas que não brilhavam mais. O rosto continuava o mesmo, mesma a expressão do olhar. Fora um estremecimento rápido. Tudo voltou ao que era antes. O mesmo rosto amorfo. O mesmo olhar louco.
Arrumei as cobertas no sofá e fui até o banheiro. Mudei de roupa, vesti o pijama. Quando voltei à sala notei que a cabeça de papai caíra um pouco para o lado esquerdo. Dei a volta para olhar-lhe o rosto. Era ainda o mesmo rosto, o mesmo olhar. Mas dos cantos da boca escorria-lhe uma baba grossa e opaca, como clara de ovo mal batida.
Aquela coisa já não era mais. Acabara. Mas parecia ainda vivo, afinal de contas. A cor de sua pele era a mesma, amarelada e triste. “Deve estar frio” - pensei. Mas meu pai sempre fora frio. Uma das coisas que mais me desagradava nele era justamente a frieza de seu corpo, uma frieza de réptil. Quando lhe beijava a mão, não era apenas ele que sentia nojo.
Agora, ele tinha um motivo bem sério para estar frio.
Então era isso. Meu pai morrera. Aquela morte não parecia ter sentido. Mas lá estava ele. Aquilo era um cadáver. Antes não era. Por quê? Qual a diferença entre o antes e o depois?
Seus pés estavam dentro dos chinelos, descansados, confortáveis, parecia que iam sair andando de repente. Mas eu sabia que aqueles pés nunca mais andariam.
“Preciso fazer alguma coisa.”
Mas fazer o quê? Ressuscitar aquela coisa? Enterrá-la? Ou deixá-la ali mesmo?
“Sim. É isso mesmo que vou fazer.” Chamaram-me para assistir aos últimos momentos daquela coisa. Eu assistira, gradativamente, a todos os últimos momentos. Agora não haveria nem último nem mais momento algum. Minha missão acabara.
Despi o pijama. Fiz as malas. Já me habituara a fazer malas com certa frequência:
“Um homem, quando começa a fazer as malas com muita frequência, ou está ficando importante ou vagabundo.”
Às onze horas telefonei para meu padrinho. Ficou agitado:
- Vou já! Imediatamente! Não tome providência alguma antes de me consultar!
Como não tencionava tomar providência alguma, não precisaria consultá-lo a respeito de nada. Decidi ir mesmo embora. Estava livre, era só - dono do meu destino.
Para ganhar a rua precisava atravessar a sala e passar rente ao cadáver de meu pai. Evitei a sua frente, fui por trás, sem fazer barulho, podia dar azar e ele despertar de repente, e aí recomeçava tudo.
Parei um instante. Olhei bem a sua nuca. Era uma nuca vencida. A nuca pouco altera com a morte. É muito importante uma nuca, tem certa dignidade, une a cabeça ao resto do corpo, por ela passam os instintos, a angústia, toda a dor do homem.
Tive ódio de mim mesmo por não ter amado aquele homem. Ele sofrera, sofrera muito, o sofrimento diviniza a matéria canalha, Cristo só convence como Deus pregado na cruz, no berço é uma boa droga.
Eu quase não fora nada se não fosse a sua constante e eterna vergonha. Sua ignominiosa loucura. Sua morte. Mais que nunca senti então: ali estava o meu pai.
Eu e ele. Pela primeira vez. Até então era sempre ele e eu.
Um já superado, além dos problemas, finalmente quieto. O outro, na fila, esperando a vez de substituir o outro no trapézio até cair vencido com nuca igual. Isso era mais que um palpite, mais que uma predestinação. Era um ofício.
De repente, tive nojo daquilo tudo. O ar estava impregnado de morte e sofrimento. Havia miasmas pelo ar, os vermes começavam a comer meu pai e, saciados, voavam. Entravam pelas minhas narinas, comiam-me os olhos.
“Isso vai feder daqui a pouco!”
Abri a porta. Antes de fechá-la, olhei ainda para trás. Nas casas piedosas acendem velas para iluminar as almas que abandonam os corpos. As beatas mais convictas e comprometidas com o defunto puxam o terço e fazem pro nobis.
Não deixam os cadáveres sozinhos, montam guarda, incorporados e chorosos. Depois de tudo isso os jogam num buraco e tampam muito bem tampado, para não voltarem, para federem sozinhos.
Eu seria incapaz de fazer isso com meu pai. Deixava-o livre e só, duas coisas essenciais a qualquer homem, mesmo que se trate de um cadáver.
Afinal, ele se libertava de sua vergonha, de sua dor. E, até certo ponto, me libertara também.
Pois acabara de existir o ódio na minha vida e na dele. Morrera a única pessoa que me detestara com razão e a quem, igualmente, eu podia e devia detestar.
Mas a minha vida não melhoraria com isso: morto o ódio, sobrava lugar para o amor.
A coisa mais estúpida da vida é a gente ser livre e não ter nada o que fazer com a liberdade. Os burgueses, sólidos, instalados na vida, ao menos têm essa vantagem: “Ah! Eu sou assim porque não tenho tempo, sou um prisioneiro, tenho grades, convenções, polícias, direitos, deveres, ah!”
Isso ao menos é um consolo. Mas quando se é totalmente livre e não se tem nada a fazer com essa liberdade, sente-se como um homem que passou a vida inteira para arrombar a porta de um quarto escuro, vazio e sem janelas; às vezes nem resta a porta - a possibilidade da porta - para a volta.
Eu estava no escuro. Não precisava de janelas para olhar dentro de mim mesmo.
Pensei em voltar para o norte. Mas aquilo seria preparar a grade, a prisão. Não. Lá tinha o mar, aquele mar verde. E Yara. A do cheiro de vela de jangada. Aquele cheiro era uma prisão. Não, eu não voltaria para o norte. Ir para o sul seria asneira: pareceria dor de corno. As soluções radicalmente contrárias são sempre dor de corno. Ou tudo ou nada. E eu não tinha motivos para me considerar corno de coisa alguma.
Restava ficar. Mas seria ridículo continuar. Imaginei-me na sacristia de São Francisco de Paula a receber pêsames na missa de sétimo dia pela alma de meu pai.. Era forte demais, eu precisava ir, nem que fosse para o diabo.
Tinha algum dinheiro no bolso. Tinha uma profissão humilde. Tinha tudo, portanto, para ser um santo ou um sábio, talvez as duas coisas juntas, ou nenhuma.
Não tomei resolução. Tomei um trem para Belo Horizonte.
Belo Horizonte. São Paulo. Campinas. Curitiba. Novamente Belo Horizonte. Cuiabá. Campo Grande. Londrina. Regresso a Curitiba.
Dirigi ônibus e caminhões. Varei estradas e sertões. Cidades e desertos. Evitava o litoral. Não queria nada com o mar. Ele não precisava de mim nem eu dele.
As cartas de meu padrinho seguiam teimosamente as minhas pousadas transitórias. Eu nem abria as cartas. Juntava-as para ter alguma coisa que juntar. Mas nunca abri um envelope. Um dia não chegou mais carta alguma. Fechei então o maço e queimei tudo. Depois fiquei imaginando meu padrinho a prestar contas, ao Eterno ou entidade equivalente, da morte dos vinte e cinco galos de briga que envenenara com arsênico. Fora o seu único crime. Afora a crença que tinha em mim, que era mais uma tolice do que um crime propriamente dito.
Mais ou menos por essa época mandei fazer uns cartões profissionais: José Severo - Transportes Rápidos - Serviço Interestadual. Quando recebi os cartões da tipografia fiz duas descobertas importantes: não gostava da minha profissão; e não tinha a quem mandá-los. Como vem sempre uma ideia quando não queremos ter ideia alguma, resolvi mandar alguns para pessoas que não mais existiam: papai, mamãe, Dr. Moreira, meu padrinho, Joaquim José da Silva Xavier e o duque de Caxias. Abri exceção para Yara. Coloquei no envelope: Yara - Aos cuidados do Senhor Vadeco - Maceió - Alagoas - Brasil. Depois reparei na série daqueles nomes: Yara, Vadeco, Maceió, Alagoas, Brasil. Fariam sentido?
O que não fez sentido foi que o cartão que mandei para o Alferes Joaquim José da Silva Xavier fez um barulho desgraçado nas agências postais, foi publicado nos jornais, a Câmara dos Deputados mandou uma cesta de flores ao monumento do herói como desagravo.
Soube disso tudo por uma carta que só me chegou às mãos pouco antes de me chegar, em carne, osso e tortura, o meu torturado irmão.
Éramos então dois adultos, dois homens feitos como vulgarmente se diz, embora isso também não faça sentido. Eu já beirava os trinta. Ele os vinte e oito. Era assistente da cadeira de matemática da Faculdade Nacional de Filosofia e preparava tese para se tornar catedrático. Tinha aliança no dedo e retratos na carteira possivelmente. Estava corado, como sempre. Talvez ainda à custa das famosa pílulas do Dr. Moreira. Talvez pelo esforço da viagem.
- Sabe? Estou casado.
Ia perguntar com quem. Mas ele me disse isso com tal inflexão que a pergunta se tornou ociosa. Meio embaraçado, ele se julgou na obrigação de explicar alguma coisa.
- Não havia outro caminho. Tão logo me formei tinha de tomar um rumo na vida. Nem sempre a gente sabe dirigir caminhões.
E mudando de tom:
- Nós queremos que você volte.
Meu irmão era de poucas palavras; aquele desperdício custara-lhe um sacrifício enorme. Além do mais, ele nunca dizia a palavra “quero”. Havia dito “queremos”. Era suave.
“Esse sujeito me estima”, pensei.
Arrumei as malas, vendi os caminhões, tomei um pifão na zona, de despedida. Era muito livre para merecer a tranquilidade, ou muito tranquilo para merecer a liberdade, qualquer coisa assim, o fato é que voltava, nem mais livre, nem mais tranquilo.
Meus equívocos me chamavam. A mãe fizera dois, um por causa do outro, outro por nenhuma coisa mesmo, ela pensara fazer bem, agora os equívocos que se danassem entre si. E havia por fora, de quebra, a carne de Helena
Não havia de ser nada, destino era destino, e eu homem apenas. Podia dizer que não, mandar meu irmão para o inferno, ninguém me amolaria mais. Iria porém. No fundo, me julguei péssimo caráter.
Perguntou por que não me casara. Não dei resposta, insistiu:
- Como é? O coração livre?
- Pior. Vazio.
Morava no Grajaú, bairrinho metido a besta, quase grã-fino, ilhado, aristocracia feroz e pedante, semiprovinciana. Ângulos bonitos, bonitas casas, estanques, separadas por jardins e muros.
“Muito adultério por aqui” - sentia o cheiro.
A casa do meu irmão era típica ao bairro, confortável, bem mobilada. Comprada a prazo, pagava ainda, em quinze anos acabava, virava proprietário, seguia bem o exemplo paterno.
Na porta, Helena. Recebeu-nos alegre. Fora a primeira ausência do marido aquela, desde o casamento sempre agarrados todas as noites, por minha causa ficou uma semana sozinha, de noite com medo, sem nada. Declarou não suportar vida assim, a semana virava ano, não dava para freira. Tratou bem dele, com amor, cheia de de dengues. Mas eu não gostei, agora que podiam fazer aquilo, na vista de todos, qualquer coisa soava falso. Verdade, não gostei.
Estendeu a mão, as duas mãos para mim, com amizade. Olhou-me nos olhos, sorrindo, parecia não lembrar o porão; no fundo eu sabia, aqueles olhos lembravam.
Para meu irmão Helena mudara, era agora um direito, um dever. Para mim era a mesma. Helena sempre.
- Enfim, o desaparecido! Sabe que agora somos irmãos?
- Sei.
- Contente?
Acho que disse que sim, contrariado, julgando-me um imbecil.
Perguntei pelos pais. Dr. Luís morto, uremia aguda. Mãe escalonada, meio ano com ela, meio ano com a cunhada fraca do peito, em Correias.
Helena mostrou-me a casa, a cintura fininha bamboleando na minha frente, eu já estava gostando e não ao mesmo tempo.
A casa era impessoal, estranha, nada da família quase. Só um quadro, no hall da escada, uma paisagem holandesa, moinhos parados esperando um vento que nunca vinha. O padrinho, sempre que olhava para aquilo, perguntava:
- Como é moinho em francês?
- Moulin - respondia o irmão.
Na cristaleira, uns copos da Boêmia, presente do Dr. Moreira no casamento dos pais. Bonitos, lugar de honra lá em casa, mesmo destaque ali.
No gabinete as mais fortes lembranças. Lá O Brasil e suas riquezas, bilhetinho de Helena no meio. O Tihámer Toth intacto, nem uma folha aberta, só enfeitando. O Eça não saboreado. Que lembrasse, não fizera doação, meu irmão avançara naquilo. Tanto me fazia.
O pior estava na parede do centro, à altura do lustre. Retrato de moldura e vidro, a família toda, ar dominical, ternos vincados, pareciam mortos. Sentada, meu irmão no colo, a minha mãe. Ao lado, em pé, papai. Atrás de mamãe, escondido, já vergonha de todos, eu. Papai com bigodes, bonito, a cara do meu irmão de hoje. Minha mãe também bonita, mas rude, beleza má. O irmão um pimpolho, dedinho no ar, mal se adivinhava ciência e tortura posteriores. O rapazola magro e narigudo, escondido, jeito de quem apanhara pouco antes para sair com cara decente no retrato, era eu mesmo. Lá estava o que depravava Helena no porão.
Será que olhando ela não se lembraria?
- Sim, a família, uma fotografia na parede.
Zombava de mim por cima de tudo. Respondi:
- O importante não se bota na parede.
Ela me encarou, ficou vexada um minuto. Lembrou tudo, eu sei.
À mesa, o irmão discutindo sobre as acomodações, que ficasse no quarto ao lado do deles, já preparado, onde dormia a velha quando vinha passar os meses. Helena não, queria preparar outro quarto, ao lado do gabinete, maior, ficava mais descansado. Deixei que falassem. Marchavam para um acordo quando resolvi estragar tudo deitando opinião:
- Não se preocupem. Fico mesmo no gabinete, tem sofá lá, gosto de sofás, vou ficar por pouco tempo, bobagem fazer arrumações definitivas.
Protestos. Não, devia ficar, tolice continuar sozinho, sangue era sangue.
Sim, sangue era sangue, justamente por isso.
Nada disse, a discussão seria idiota, eu acabava fugindo do mesmo jeito. Tentei a delicadeza, dei explicações:
- Aceito a hospitalidade, com prazer, acreditem. Mas só até arranjar emprego. Não posso viver em definitivo com vocês, coisas cá minhas, difíceis de falar. Sou só, gosto assim, por favor, não insistam. Tão logo arranje tudo, mudo depressa para um quarto ou apartamento pequeno. Não se ofendam, tenho minha missão também, um destino a cumprir. Já falei muito, acho que me compreenderam.
Helena queria saber dos meus planos. Fui simples. Eu era um analfabeto, só sabia dirigir caminhões afora sofrer ao meu modo. Não tinha muito o que escolher.
Ela achou serviço pesado, por que não comprava dois ou três carros, ficava com um, os outros na praça, davam dinheiro.
- Pensarei no caso - respondi, sinceramente.
Meu irmão riu. Tinha seus planos já, deixou-me falar para gozar, já havia previsto tudo, falara com amigos, amanhã mesmo me apresentava ao Xavier, genro de ministro, havia lugar para mim, bem remunerado, pouco trabalho, aposentadoria garantida, pensão para a viúva.
- Não tenho viúva! - objetei.
Riram. Eram sólidos na vida, a burguesia bem amanteigada, e não satisfeitos, queriam me contagiar.
A proposta me embrulhou o estômago, tive vontade de abandoná-los ali mesmo, fugir outra vez, para sempre. Mas adiantava?
Estava preso agora, amarrado à cidade, à tortura do irmão, à carne de Helena.
Mal jantou, meu irmão se enfurnou no gabinete, preparando tese importante, defesa da cátedra, era o favorito certo, os outros toupeiras, só ele sabia que dois e dois são quatro. Iniciava-se na fama, os jornais vez por outra falando nele, fora o primeiro sul-americano a comentar em conferência do Rotary a teoria geral da relatividade. Explicou-me como foi, o sucesso, a fotografia da mesa, o quadro-negro cheio de fórmulas, mulheres bonitas e homens feios na assistência, o copo d’água em frente. Falou muito no Einstein, um tipo feio e descabelado que mais parece maestro, desses que regem opus, opus número um, opus número dois, todos chatos.
No living, Helena e eu. Era a primeira vez, depois de tanto tempo, que estávamos sozinhos, um em frente ao outro. Não mais o porão de pinho-de-riga, nem mais Helena com vestidos feios, feito camisolas caindo sem forma no corpo quase sem forma também. Tudo diverso agora. Mulher transbordando seiva. Saia justa, colante, apertando as coxas fortes, sentada assim eu via os joelhos nus, dobrados, o brilho da pele esticada na rótula. Fêmea forte, saudável, negócio sério na cama. Blusinha vermelha, os dois braços brancos saindo da manga apertada em cima, os seios estourando, o botãozinho de madrepérola bem no meio dos dois. Lembrava da gana de que aquilo nascesse logo, na brincadeira do porão, não sabia o que fazer com as cicatrizes magras que ela tinha iguais às minhas. Depois que a carne encheu aquilo tudo, nunca mais Helena foi minha, nunca mais Helena foi nada para mim.
Dois metros, nem tanto, separando meu corpo do dela. Em tão estreito espaço a vida deitara tanta barreira de carne, de sangue e de alma.
Eu fingia que lia uma revista enquanto minha memória trabalhava. Via Helena através de um pequeno ângulo que a revista não cobria. Examinava-a. Ela devia saber que estava sendo examinada. Devia sentir em seus joelhos, em seus seios, o calor com que a olhava. Sim, eu tinha certeza, ela também se lembrava do porão comum, ela sabia que eu a desejava com fome, com incontrolável gana. Mantinha, porém, a atitude calma de sempre, sem perturbação, sem sombra no olhar. Lia também. Ou também fingia ler.
Surpreendi-me, em dado momento, dizendo esta coisa idiota:
- Helena, gosto muito de vocês. Creia-me, estou contente por ter voltado.
Ela me olhou com o olhar clássico, aquele olhar que me punha a nu. Era um olhar esquisito que só ela sabia fazer. Ficava um pouco estrábica, olhava para dois lados como para melhor zombar de muitas coisas ao mesmo tempo. Respondeu fria:
- Obrigada. Não era justo, afinal, que você vivesse longe da gente, estávamos preocupados. Acima de tudo, sempre fomos amigos, não?
Às onze horas, meu irmão veio para a sala, interrompeu os estudos em minha homenagem, queria deixar livre o gabinete, que dormisse, descansasse das emoções, vida nova amanhã.
Helena serviu mate, biscoitos, coisas gostosas, perto dela tudo ficava melhor. Providenciou cobertas, que dormisse à vontade até tarde, ninguém me incomodaria.
Fechei a porta, abri a janela. Uma brisa macia descendo do Pico do Papagaio varreu o aposento. Deitei cheio de requintes, tudo limpinho, arrumado - tudo Helena.
No escuro, os livros. Contornos severos.
“Me censuram.”
As lombadas pareciam plateia, gente me censurando, vaia invisível, só o cérebro ouvia.
Não podia dormir, uma coisa medonha havia no ar.
Levantei, subi na cadeira, apanhei o retrato da família - aqueles mortos todos. Tentei virar contra a parede, o cordão não dava jeito. Pensei jogar pela janela, seria bobo, amanhã não poderia explicar. Fiz o possível: suspendi a ponta do tapete, escondi embaixo.
“Pronto. Esses fantasmas agora não mais incomodam.”
Não demorei um mês em casa do irmão. Ambiente muito tolo, me incomodava. Habituado já a viver sozinho, a receber o tratamento neutro do barbeiro, do garção, de gente assim, pagava, diziam obrigado, eu não ficava devendo favor. Ali era diferente, me davam comida, Helena trazia café na cama para mim, tudo soava falso, não neles mas em mim. A convivência parecendo promiscuidade, a carne de Helena por cima, inquietando, me dando angústia física.
Talvez ela nem percebesse, ou não ligasse. Não sabia que me enlouquecia aos poucos, quando saía do banho fresquinha, enrolada na toalha felpuda, pedindo pecado o quadril solto. Nem quando vinha me acordar, café quentinho, pão tenrinho, ela quentinha e tenrinha também, eu comia o pão, tomava o café, e ela nada. Às vezes percebia movimento dos dois, porta do quarto fechada, espaço, banheiro, porta fechada, outra vez banheiro, , banho juntos os safados.
“Estão fazendo aquilo, os porcos!”
Depois olhava bem na cara deles, procurava sei lá o quê, me sentia traído não sei bem em que lugar ou direito. Meu irmão sempre a mesma cara, alheia, sem forma, sem vida. Helena não, só cansaço, extravagância, na boca um jeito obsceno, nos olhos coisas molhadas, úmida todinha.
Não fugia: mais uma vez me expulsavam.
Resolvi mudar. Arranjei um apartamento pequeno, no centro da cidade, zona braba, só rendez-vous, na rua do Riachuelo, ex-Mata-Cavalos. Desde que soube do nome antigo tive vontade de morar lá.
Foi o padrinho, muito ilustrado nas coisas todas, que me explicara a troca dos nomes, numa tarde perdida da infância. A rua era um atalho antigamente, ligando a cidade com as chácaras e os engenhos, tudo humilde. Andar por ali era forçar os cavalos a descidas bruscas, a lamas, a valas, a tudo. Daí o nome, Mata-Cavalos. Depois, veio o Paço para São Cristóvão, outros melhoramentos, a coisa subindo, bairros novos, o atalho ficou importante, virou rua, Mata-Cavalos primeiro, Riachuelo depois, por causa da guerra no Paraguai, cada tiro do canhão virava história.
Encontrei coisa mais em conta em outras ruas mas preferi aquela. Não dava para morar na Rua do Senado, já trabalhava em repartição, para que viver em outra? Nem em Senhor dos Passos, coisa triste, cheirando a enterro.
Mata-Cavalos era diferente. Rua feia, feia mesmo, a rua mais feia do centro. E os rendez-vous, enormes, malcheirosos, mal-frequentados, manjados por todo mundo, as senhoras passavam de bonde virando a cara. Nomes obscenos ou engraçados, a casa da Marocas, o treme-treme, o bole-bole, o mexe-mexe, o viradinho, o franguinho-assado, por aí afora. De vez em quando, polícia e assistência quase ao mesmo tempo. Outra vez um enterro, foi um acontecimento, a putada toda reunida chorando a colega, pifões, brigas, palavrões e trepadas no meio do velório. Veio o padre de manhã para encomendar o corpo estragado, tomou liberdade, aprendeu o endereço, voltou à noite para consolar as amigas, levaram a mal, deu polícia, os jornais comunistas meteram o pau no padre, saiu procissão de desagravo da Matriz de Santana.
Para completar o sabor, nunca mais disse Rua do Riachuelo, só Mata-Cavalos, fiquei mesmo conhecido nos botequins:
- Salta filé de fritas aqui pro Mata-Cavalos!
O apartamento era pequeno, grande porém para minha solidão. Uma sala quadrada, escura e mal ventilada, dois quartinhos brancos, janela dando para Santa Teresa, cozinha e banheiro, não mais.
Era muita coisa, embora; trouxeram problemas, o que colocar naquilo tudo? Eu era um homem de setenta e cinco quilos e duas malas, cabia bem em três metros, pouco mais que num caixão. Para que tanto exagero?
“Agora sou um burguês, preciso de coisas, de móveis, talvez de fotografias na parede. Coisas assim ajudam, dão escora, dão finalidade, os móveis precisam ser limpos. Sim, isso fixa a vida.”
O emprego que me arranjaram era sórdido, embora bem remunerado. Vivia folgado. Frugal sempre, asceta do mal, nenhum dos grandes nem dos pequenos vícios que desgraçam os homens e derivados. Vícios, de dentro só, malignos, perdiam-me a alma mas nada me custavam ao corpo. Vícios baratos. Acresce que não dava esmolas, não fazia caridade nem dívidas. Pouco fumava. Bebida rara, sempre ordinária, apenas o bastante para ficar de bem comigo mesmo, o que era necessário às vezes, quando crise mais forte chegava e vinha vontade de fazer besteira, ir às igrejas, ao Jardim Zoológico, coisas assim.
Mobilei ao meu gosto, tudo simples, exagero só um, me deu na cabeça, comprei um violão, grande, bonito, fazia pose da janela até que enjoei. Virou cinzeiro, o buraco grande do meio, parecendo umbigo dum ventre oco.
Não conhecia os vizinhos, não os procurava, nem eles a mim. Havia um senhor, grosso e solitário, aposentado da Prefeitura. Num carnaval encontrei-o no elevador, esfregando as mãos dentro das calças. Tinha hemorroidas. Para se desculpar, deu-me bom dia.
A minha vida adquiria amarras. Era uma cachaça que prendia, que me embriagava. Vivia. Viver era o meu mais importante vício. O mais caro também.
Sem perspectiva. Rua na frente, Santa Teresa por trás. No meio nada. Na estrada era diferente, cada dia paisagem nova, tudo passando, dormindo aqui e ali, no sol quente parava o carro, sono gostoso embaixo, trepadas avulsas, sei lá como, de repente aparecia na estrada mulher feia ou mais ou menos, pedia carona, a gente trepava, tudo muito bem, sem constrangimento.
Diferente agora, os outros correndo, as luzes, os bondes, tudo, eu cenário apenas, passageiro que não podia fumar nos três primeiros bancos dos bondes.
Evitei visitar meu irmão. De início, tanto ele como Helena protestaram. Que eu não fizesse aquilo. Era injusto para com eles. Aos poucos, porém, foram se habituando. E eu também.
Vez por outra um triunfo mais espetacular chamava-me até lá. Os jornais falavam cada vez mais naquele professor que se destacava na matemática e na física. A tese que defendeu na faculdade foi comentada até no estrangeiro. Vieram de diferentes países convites para conferências e cursos. Meu irmão era um sábio. Mas eu sabia que no fundo nada mais era que o eterno torturado que nem o amor de Helena nem a glória dos estudos podiam alterar.
O que me intrigava é que sempre ignorei a causa de sua tortura. Aceitava-o simplesmente, com a cara amorfa e meio cretina, sua tortura interior, da mesma forma como ele me aceitara também. Mas por que aquela tortura? Que eu sofresse, tivesse problemas, era lógico, era quase necessário. Mas ele?
Tivera o amor de Helena desde criança, eles se amavam praticamente desde meninos. Sabia, além do mais, que meu irmão nunca dera importância aos problemas alheios, à tristeza de mamãe, à loucura de papai. Aceitava puramente os fatos, nunca entrava no mérito das coisas. Os fatos existiam, dois e dois eram quatro, era tudo e bastava.
Uma coisa eu tinha certeza: ele amava Helena com furor. Nunca trocáramos uma palavra a esse respeito, mas afinal de contas corria em suas veias um sangue parecido com o meu e eu podia ter certas intuições a seu respeito. Ele a amava com profundidade, com a intensidade dos tímidos, com a persistência dos tolos.
E Helena? Amaria ainda o meu irmão? Difícil saber. Era uma fêmea forte e exuberante. Fora ela quem pervertera a infância do meu irmão, disso eu sabia muito bem. Doutrinara meu irmão em coisas do amor e do sexo. Mas agora que nada mais era senão a sua obrigação e o seu dever, quem sabe se a carne má não andava à procura de sensações novas, de novos experimentos, de novas ânsias?
Ora, eu morava sozinho. Quando começava a pensar com muita intensidade nisso tudo, sentia-me agoniado. Fugia então, ia para a rua, esquecer Helena, procurar esquecer eu mesmo.
Um dia, não sei o que me deu, tive vontade medonha de possuir Helena. Fome da sua carne, sede dos seus olhos úmidos, vontade de chupá-la inteirinha, feito pastilha, até acabar na boca.
Procurei na rua, as mulheres eram espiadas em relação com ela, pesadas e medidas assim, no gabarito de Helena.
“Essa tem pernas iguais, aquela o nariz. A mulata do Pinto tem o mesmo feitio do braço.”
À noite, visitei a zona. Vitrolas berrando, chope correndo.
A mulher que eu quero,
por quem tanto espero,
anda por aí de mão em mão...
Procurei um rosto, uma expressão bastava, igual a Helena. Mulheres iguais a Yara, outras iguais à mulher do capitão. Igual a Helena nenhuma. Só ela.
Entrei num bar do fim da Lapa. Muita fumaça, muito barulho, muita bebida, luz pouca. Pedi rum. Dose em cima de dose, sem água nem gelo, puro, para vir depressa. Até não distinguir mais nada, tudo disforme, baço, as mesas parecendo fantasmas de camisola agachados, o copo gelatinoso, apertava na mão ele entrava para dentro, feito borracha. Rosto dormente, não mais sentia a cara, passava a mão por cima não sentia nada, nem nariz, nem boca, nem olho. Um buraco vazio em cima da cabeça. Bem que diziam, eu era um monstro.
Uma mulher enorme, de ancas medonhas, sentou-se perto, olhando para mim. Olhei também. Modelei a carne dela no meu gosto, meus olhos vidraram:
- Helena!
Fomos para a cama. Depois me levaram, aos bordos, para casa.
Foi no início do verão daquele ano. Meu irmão aceitara uma missão no estrangeiro. O convite partira da Faculdade de Ciências de Madri, um curso de alguns meses. Até lá haviam chegado seus triunfos. Suas proezas vararam o Atlântico, chegavam à península. Breve estaria o continente inteiro a clamar pela sua sabedoria.
Na mesma tarde em que soube da novidade, fui ao Grajaú. Já lá estavam colegas e amigos de meu irmão. Todos a cumprimentá-lo, a incentivá-lo. Helena notou o meu constrangimento em permanecer ali, no meio daquela gente para a qual a vida é um E sobre a raiz quadrada de M2 ± T + X.
A minha era um pouquinho mais complicada que isso.
Ela veio falar comigo:
- Salve, o desaparecido!
- O trabalho, Helena.
- Qual! Eu sei que você não trabalha! Aquilo é uma mistificação.
Concordei:
- Sim, não existe trabalho, mas o que há tira-me a vontade para tudo o mais.
- Infeliz?
- Quem é que sabe? - disse filosoficamente.
Ela tomou a resposta por outro lado:
- Está amando?
Fiz cara tão repugnada que Helena resolveu acabar com o interrogatório e eu com o assunto:
- Calor, não é?
- Aqui é um suplício. Já falei com seu irmão para vendermos esta casa e comprarmos um apartamento no Leblon ou Ipanema.
- Lá também faz calor.
Aproveito a neutralidade do assunto para observar Helena. A nunca por demais observada Helena.
- Você também vai?
Helena ficou séria. Parecia que eu tocara num ponto sensível. Alguma coisa de duro ou de mole passou pelos seus olhos. Mas na hora de dar a resposta já estava serena:
- Não.
- Não? - estranhei embora estupidamente.
Helena continuou impassível, a remoer sei lá que ideias. Eu ia fazer a asneira de prolongar o assunto, fazer o interrogatório que eu mesmo detestava. Reprimi-me a tempo. Afinal, nada daquilo devia me interessar.
Lá pelas onze horas as visitas começaram a se retirar. Já ia saindo quando meu irmão pediu-me, aflito:
- Não. Fique mais um pouco. Precisamos conversar.
Helena, perto, aborreceu-se com isso. Deu-me boas noites com irritação, subiu as escadas sem esconder o mau humor.
Ficamos a sós. Meu irmão estava envelhecido. Parecia dez anos mais velho que eu. Em torno de seus olhos as vigílias do estudo haviam colorido roxas olheiras. Na boca havia um travo amargo, de alguém que começa a duvidar de tudo, a não ter confiança em mais nada.
A semelhança com meu pai era espantosa. Quando comecei a perceber o mundo, aos quatro ou cinco anos, meu pai era exatamente aquilo: os mesmos olhos, a mesma testa, o mesmo ar nobre mas um pouco velhaco no interior. Havia, sobretudo, o mesmo tom de voz, quase as mesmas palavras preferidas. Dentro daquela cabeça, na certa, as mesmas ideias.
- Como é? Sempre na mesma, não é?
Respondi vagamente:
- É.
- A sua vida tem isso de bom. Você não tem planos, não tem objetivos, nem métodos. Tudo é simples, tudo é finalidade em si mesmo. Eu não. Tenho metas. Roteiros. Suportes. Degrau sobre degrau. Nada é fixo. Tudo se move. Tudo passa.
Olhou em torno. A casa era firme. Sua sólida burguesia estava fixada nas paredes, nos móveis, nos tapetes, nos quadros. Tudo aquilo parecia definitivo, realizado, completo. Mas não. Era uma espera - disse -, uma espera por algo que está sempre a vir e quando vem passa a ser espera para uma outra coisa que vai acontecer ainda e que precisa acontecer sob a ameaça de tornar inútil tudo o que já havia acontecido. Essa cadeia imbecil amarra tudo, prende homens a coisas e coisas a sonhos, sobrando no fim de tudo a frustração definitiva da morte, o porvir da vida.
Eu estava admirado. Jamais supusera meu irmão com tais inquietações. Via claro agora: ou meu irmão me julgava um sábio ou me invejava em alguma coisa.
- Eu sou um analfabeto - disse-lhe. - Por isso, não me incomodo jamais com adjetivos. Aprendi apenas os substantivos e basta. Vivo apenas. Enfrento a necessidade imbecil de viver vinte e quatro horas hoje para ter direito às vinte e quatro horas de amanhã. O dia em que isso me aborrecer de uma forma mais positiva acabo com a vida e eis tudo. Não tenho satisfações a dar a ninguém, nem a Deus, nem aos homens. Eis aí uma das vantagens em ser analfabeto.
Meu irmão ouviu-me cabisbaixo. Depois respondeu:
- Eu também não passo de um analfabeto especializado em números, o que é ser analfabeto de uma forma muito pior. A minha especialização deformou tudo, tudo caricaturou. Saindo do cálculo infinitesimal e da tábua dos logaritmos, eu sou um iogue.
Aquela conversa era ridícula. Meu irmão queria abrir janelas. Sempre ignorei as janelas alheias, máxime as do meu irmão, que me parecia um ser fechado sobre si mesmo, feito um casulo. Era um absurdo, além do mais, aquela abertura de janelas. Não tínhamos que olhar um para dentro do outro. O fato da mesma porcaria nos fazer no mesmo ventre não nos obrigava a isso. Mas tinha de aturá-lo. Nós sempre fôramos amáveis um com o outro, principalmente quando nos detestávamos.
Ele acendeu um cigarro. Tinha o mesmo jeito de segurar o cigarro de papai. Senti vontade de lhe dizer isso. E ao mesmo tempo revelar-lhe que era seu irmão apenas pela metade. Tinha medo, porém, que ele me respondesse: “Eu já sabia”.
Voltou a falar:
- José, eu sou um predeterminado. Tenho um objetivo: a matemática. Preciso estudar. Preciso ganhar dinheiro, muito dinheiro, para continuar a estudar. Preciso firmar um nome para ter direitos a certas oportunidades que não se abrem a qualquer um. Surgiu uma, afinal. Que não é grande coisa em si mas que abre caminho para outras melhores e maiores. Não posso recusar o curso que me oferecem. É breve, de apenas nove meses. De Madri já tenho um roteiro: correr a Itália, ouvir alguns mestres na Suíça, dar um pulo até a Bélgica e, na volta, passar um ou dois anos nos Estados Unidos. Terei então toda a matéria-prima para poder me realizar. Você me compreende?
- Mais ou menos - respondi. - Compreendo que você tenha sonhos e procure realizá-los. O que não compreendo é que precise ir à Itália, à Bélgica, à Suíça, aos Estados Unidos, só para ter certeza de que o seno A mais o seno B é igual ao coseno C.
Meu irmão ignorou a ironia. Continuou:
- Infelizmente, surgiu um problema...
- Ah! - disse eu com autoridade. - surge sempre um problema. Embora não tenha sonhos de espécie alguma, posso lhe garantir que surgem sempre problemas. Sou um especialista nesse assunto.
- Mas o meu problema é grave!
- Todos os problemas são graves.
- Sim, são graves até que se encontre uma solução.
- A solução não resolve o problema. Evita-o, o que é bem diferente. Ou cria outro problema mais adiante, o que vem dar na mesma.
- Como queira. O fato é que surgiu um problema que considero grave e cuja solução vai depender de - não se admire - mas de você mesmo. Preciso de você.
Aquilo foi dito de forma sincera, sem estudo, com naturalidade rara em meu irmão, para quem tudo parecia difícil e tudo acabava difícil mesmo.
Então o meu irmão precisava de mim! Era um assombro. Eu sabia, por intuição de sangue, que ele era um torturado. Mas sempre ignorei o motivo e a profundidade de sua tortura. O tom com que falara “preciso” colocava-o nu à minha frente. Despia-se de todas as reservas, todas as escoras internas e externas. Mostrava-se puro à luz do sol, exato à minha observação.
- Farei o que estiver ao meu alcance - disse. - Honestamente falando, sem que isso represente uma censura a você ou à forma pela qual fomos educados, eu nunca esperava que você precisasse de mim.
- Também não poderia imaginar que um dia precisaria tanto de um... como direi... amigo, não, não é bem amigo, o amigo trai ou pode trair, pode trair em certas coisas... Mas de um irmão, sim, é isso mesmo, de um irmão, que talvez não seja amigo mas que tem certas barreiras... como direi... de sangue...
Aquilo saiu difícil de dentro dele. Era doloroso para ele chamar-me de irmão, falar em sangue. Além do mais, era uma charada completa que se delineava à minha frente. Encorajei-o, colocando-o à vontade:
- Pode falar. Não precisamos comentar fatos passados que aconteceram sem a nossa participação ou mesmo com ela. Ignoremos o resto e atentemos apenas para duas coisas importantes: somos irmãos e um precisa do outro.
- Ótimo! Você situa bem a questão.
- Já lhe disse que os problemas são a minha especialidade.
- Ainda bem. Talvez você nos possa ajudar realmente.
- Mas o problema é seu ou é de outros também?
- Sim, meu e de... Helena.
Era a primeira vez, em toda a vida, que ele pronunciava o nome de Helena à minha frente. Aquilo custou a sair de sua boca.
- Helena?
Meu irmão tinha a cabeça baixa.
- Sim, Helena. Não quer ir comigo.
- E daí?
Ele abanou os braços, com um pouco de desespero.
- Você não me entende. Estou casado há quatro anos, vivemos muito bem, nunca brigamos, nunca tivemos problemas. Queríamos ter filhos, mas não foi possível. O médico disse que a culpa é minha. Sou normal, saudável, não tenho lesões orgânicas, cumpro normalmente todas as funções, mas não posso ser pai, a seiva é fraca e não se casa bem com a de Helena...
Aquela intimidade de espermas assim revelada seria repugnante se no fundo eu não a soubesse trágica. Ele continuou:
- O primeiro problema que nos surge é esse.
Meu irmão calou-se. Olhou-me, à espera de uma opinião.
- Mas eu não vejo questão alguma - disse. - Você tem seu plano, sua missão. Helena não quer ir, tem motivos para não querer ir, talvez não se dê bem com a vida itinerante e nômade que você vai levar durante tanto tempo. Ora, você não tem meios, nem modos, nem direitos de obrigá-la a ir.
- Disso sei eu. Não movi nem moverei uma palha para que ela altere sua maneira de pensar.
- Então? Não vejo mais problema algum! Quando puder, no intervalo de seus compromissos, você poderá vir visitá-la. Três anos passam depressa e há profissões em que as viagens fazem parte da rotina.
- Mas há um detalhe importante, muito importante nisso tudo: eu não posso passar tanto tempo longe dela.
Olhou o tapete:
- Eu amo Helena. Muito, muito mesmo.
A declaração foi um impacto para mim. Não que ignorasse o seu amor por Helena: o que me agoniou foi a persistência e a profundidade desse amor. Amava-a muito mais que eu, pois o meu amor talvez não passasse de um capricho contrariado, um desejo insatisfeito, recalque de infância quem sabe, que me exacerbava. Meu irmão não. Possuía Helena desde criança. Era o próprio passado de Helena. O seu presente. Tinha sempre à sua disposição a alma e a carne de Helena. Todos os dias. Todas as noites.
- Se você gosta mais de Helena do que da matemática, fique. Caso contrário, vá sozinho mesmo.
Meu irmão irritou-se:
- Lá vem você com a solução clássica, a medida das coisas. Botar nos pratos os dois valores, pesá-los e escolher o mais pesado. Eu quero os dois. Acho que não se repugnam. E depois, acima de tudo, há uma suspeita.
- Você é cruel!
- Não é nada disso que você está pensando. A suspeita é contra mim mesmo. Estou ficando... meio atordoado com certas coisas que se passam comigo. Helena me esgotou. Sou um desencantado. Preciso dela junto de mim, do contrário, não sei... enfim, preciso dela. Se outras razões não existissem, bastava essa: o amor.
Levantou-se. Acendeu outro cigarro e ficou passeando de um lado para o outro. Olhou para um quadro na parede. Era a reprodução de um Degas: bailarinas esfumaçadas em aula; no primeiro plano, ao lado, uma delas amarra as sapatilhas rosa. Meu irmão soprou a fumaça em cima do Degas. Eu, como sempre mais modesto, soprei minha humilde baforada em cima do catálogo de telefones.
Tinha a impressão de que meu irmão não queria falar mais nada. Embora nada se tivesse falado. Apenas ficara participndo daquele drama conjugal, burguês, que se esboçava em cores distantes, mas que podiam tomar corpo, crescer.
- Você não me compreendeu - disse ele depois de um longo silêncio. - Enfim, ao menos ficará sabendo de tudo. Eu irei de qualquer maneira. Helena ficará. Não pretendo vir visitá-la nos breves intervalos dos meus compromissos. O estudo me absorverá por completo e o tempo que gastar em outras coisas será um roubo e uma traição a mim mesmo. Sei que ela ficará com a mãe e isso me tranquiliza sob certos aspectos. Mas uma mulher precisa de algo mais sólido, mais firme. Precisa da proteção permanente de um homem. Há problemas que surgem todos os dias na vida de uma mulher e que só um homem pode resolver: ela então busca o pai, o marido, o amante, o filho, o rufião ou o coronel. Com a minha ausência surgirão pequeninos problemas que embaraçarão Helena. Questões de dinheiro, de papéis, de impostos, de prestações da casa, de outros compromissos. Queria que você não a abandonasse. Procurasse estar sempre em contato com ela. Ou com elas - você se lembra da minha sogra? É boa pessoa, sempre fala em nós, lembra-se muito de nossa infância, de nossos pais...
Meu irmão amarrotou o cigarro no fundo do cinzeiro. Divagava. Tinha alguma coisa importante para me pedir ou para me participar. Mas ficara inibido diante da minha incapacidade de entendê-lo. Batia então em retirada, desconversava, banalizava:
- Sim, ficaria muito mais tranquilo sabendo que você prestará assistência às duas. Principalmente no que se refere às relações com os bancos que deverão efetuar o pagamento do dinheiro que depositar no estrangeiro. Posso contar com você?
- Pode - respondi secamente.
Sentia que ele havia desconversado da metade da conversa para o fim. Mas talvez fosse melhor assim. Seriam responsabilidades a menos. E eu não saberia representar o papel de pai, marido, amante, filho, rufião e coronel ao mesmo tempo.
- É só?
- Só.
Meu irmão embarcou duas semanas depois. Procurei evitá-lo até a véspera. Não podia deixar de ir visitá-lo, empenhara minha promessa de ajuda.
Mal cheguei, ele pareceu alegrar-se. Abandonou os preparativos e veio conversar comigo. Tinha algumas instruções escritas, uma procuração, alguns documentos, a sua caderneta de banco. A conversa, contudo, foi banal e fria, Helena assistiu-a e participou com alguns palpites. Chegou a zombar:
- Muito bem! Viva a matemática do meu marido!
- Viva por quê? - perguntei.
- Ora! Só mesmo um matemático tomaria tantas providências. Parece uma equação: sogra mais irmão tomando conta da esposa igual a tranquilidade: S + I x E = T.
Achei a brincadeira de mau gosto. Fiquei sério. Meu irmão também. Cheguei então a desconfiar de que algo andava errado na vida deles. Mas foi apenas uma impressão.
O restante da noite foi plácido, os dois estava amigos, ternos, com saudades antecipadas um do outro. A mãe de Helena - que há tantos anos eu não via e que tinha a mesma cara e as mesmas maneiras de antigamente - reparou na ternura que os unia:
- Veja como se amam!
Desde a nossa infância que ela vivia a dizer isso. Aliás, todo mundo dizia isso. O que era estranho é que nunca ninguém percebesse que eu também amava Helena.
Alegrei-me de vê-los unidos. Naquela noite eles se amariam com fúria. Depois viria o que Deus ou o Diabo quisessem. Eu faria o possível para evitar aborrecimentos, a eles e a mim. Se precisassem do meu sangue, eu o daria de bom grado. Mas sabia que acabariam por exigir de mim algo mais importante que o meu sangue, que afinal não valia nada. Mas não tinha importância. Isso eu dava também.
No dia seguinte amanheci no Aeroporto do Galeão. Fui o primeiro a chegar. Depois vieram alguns alunos, colegas e amigos do irmão. Finalmente, acompanhado por Helena, pela sogra e por numerosas malas, o próprio.
Ele me procurava com os olhos. Percebi isso e me afastei para um canto. Logo depois ele arranjou um pretexto e veio falar comigo.
Estava preocupado. Pálido. Parecia que chorara a noite inteira. Aquele choro sem lágrimas que os homens sabem ter.
- Então tudo combinado? Posso confiar?
- Pode. Vá descansado a esse respeito. O que estiver ao meu alcance será feito.
Quis deixá-lo à vontade para mais alguma coisa. Cheguei a encorajá-lo:
- Alguma instrução nova?
Ele hesitou:
- Não, a rigor não há nada de especial. Em todo caso, se não for difícil, se não lhe repugnar aos hábitos de solidão e de liberdade, eu gostaria que você procurasse distrair Helena, levá-la a um cinema ou a um teatro... a um passeio... Ela ficará sozinha, não nasceu para freira, precisa viver. Não pode, por minha causa, perder três anos de sua mocidade. Confio em você, em seu discernimento...
- Farei o que for possível.
Sentia que ele guardava ainda “a coisa”. Na garganta. Sem coragem para soltá-la. Houve um momento em que pareceu soltá-la. Vomitá-la, seria melhor dizer. Mas Helena chegou-se no justo momento e ele teve de generalizar a conversa:
- Vou tranquilo... sim, nada a recear...
O alto-falante chamou os passageiros. Ele apertou a mão de todos. A minha recebeu um aperto especial. Através daquele aperto tentou dizer a coisa. Sentia isso, mas somente isso. A equação, o problema, continuavam vagos. Via a equação, sentia o problema. Mas tinha de resolvê-los sozinho, sem a ajuda de ninguém.
Helena abraçou-se com ele. Beijaram-se na boca, durante um bom tempo. Eu já os vira, há tempos, num beijo igual àquele, no quarto de nossa empregada. Alguma coisa mudara no beijo, neles e em mim. Eu os detestara no beijo de infância. Agora não. Tinha pena deles.
Destino era destino. E eu era apenas um homem.
“Sou um covarde”, pensava. “Devia berrar bem alto, à vista de todos: não quero! não posso! Eu também amo esta mulher! Quero-a para mim! Os outros que se danem!”
Mas fui cretino até o fim.
Fiquei ao lado de Helena, acenando com o braço, dando adeusinhos para meu irmão que se encerrava no bojo do avião com as suas malas, suas equações e suas imponderáveis torturas.
“Bolas! Isso é aporrinhação que vem por aí!”
Acabara de desligar o telefone. Aquele objeto preto era estranho para mim, não tinha história na minha história. Dois minutos antes não havia telefone na minha vida. Mas aquela campainha tocara. Um colega atendeu:
- Severo!
- Ahn?
- Telefone!
Eu fui tão tolo que não me admirei de pronto. Ninguém telefonava para mim. Ninguém tinha interesse em falar comigo: nem credores, nem amigos, nem amantes, nem desafetos. Ninguém mesmo.
Ao apanhar o gancho o colega esclareceu:
- É mulher!
Agradeci a informação com gesto vago.
- Alô?
- José?
- Sim.
- É Helena. Como vai?
- Bem.
Então era ela. Estivera no Grajaú no último domingo, todos os domingos, agora, eu almoçava com ela. Pelo fim do mês tirava uma quinta-feira para realizar alguns pagamentos e colocar em dia os compromissos da casa. Já era o sétimo mês de ausência de meu irmão, tudo corria bem. Somente uma vez Helena pedira dinheiro extraordinário a fim de comprar presente para uma parenta que se casava.
Meu irmão escrevia sempre, para ela e para mim. Seus sucessos continuavam. Chegavam de toda a parte solicitações para cursos e conferências. Publicara um trabalho comentando as últimas pesquisas da alta matemática, o próprio Einstein correspondera-se com ele. Uma editora de Barcelona ia publicar a correspondência trocada.
Aqui no Brasil os ecos de tanto triunfo faziam furor nos setores especializados. O grande público podia ignorá-lo, mas os sábios, as cultas gentes o admiravam. O irmão era uma glória nacional.
Mas agora Helena estava ao telefone e isso não era glória nenhuma. Nunca me telefonara. Esperava sempre que o fizesse, o que invariavelmente fazia, dia sim, dia não, pela noitinha.
- Que que há, Helena?
- Uma coisa chata me aconteceu.
- Falta de dinheiro?
- Não. Uma coisa chata apenas.
- Que que posso fazer?
- Vir encontrar-se comigo.
- Vou hoje à noite, está bem?
- Não, estou na cidade. Quero que você venha até aqui.
- Onde?
- Esquina de Sete de Setembro com Avenida, junto ao café.
- Já?
- Imediatamente.
- Até já!
- Até já!
Pronto. Aconteceu uma coisa chata a Helena. Quando ela dizia “coisa chata” era porque a coisa era chata mesmo. Nunca dizia: coisa grave, tragédia, drama. Essas palavras não tinham sentido para ela. Tudo o que nós outros designamos sob essas palavras ela o fazia com aquela geral e vaga denominação - coisa chata - que tanto podia ser um fecho éclair arrebentado ou um homicídio.
“Não vou pensar em nada antes de saber o que é” - prometi a mim mesmo. Aquelas chateações eram uma tortura. Ignorava ainda o que era. Tinha tempo. Do meu trabalho até a Rua Sete de Setembro eram três minutos. Levei dez. Caminhei devagar, saboreando aquela insciência da coisa chata que acontecera a Helena.
Cruzei com homens e mulheres pelas ruas. Muitas daquelas mulheres talvez tivessem dito há pouco: aconteceu comigo uma coisa chata!
Estava na calçada oposta ao café quando divisei a silhueta de Helena, num costume de tropical cinza-claro, os cabelos castanhos quase alourados e luminosos, muito bem penteados e jovens. Estava de costas. Atravessei a Avenida e cheguei-me bem perto. Observei suas pernas. Suas ancas eram fortes e saudáveis. Ancas fecundas, de mulher viçosa e exuberante. Muitos homens que passavam olhavam para ela. Um rapazola botou um olhar cúpido em cima de suas pernas.
“Isso não vê homem há sete meses” - pensei.
Helena olhava uma vitrina, uns grãos de café catalogados segundo os diferentes tipos. Um anúncio enorme prendia-lhe a atenção e o olhar: um escocês tomando uma xícara da “preciosa rubiácea”, segundo dizia a legenda: “No mundo inteiro se bebe a preciosa rubiácea do Brasil”.
Ainda não me notara. Aproveitei por alguns instantes aquele momento de esquecimento. Ali estávamos, eu e ela, dois destinos há tanto tempo juntos, dois destinos que seguiam há tanto tempo paralelos, que nunca se cruzaram. Menos de um metro separava nossos corpos. Mas nossas almas estavam ligadas, pareciam estar unidas naquele instante pela “coisa chata” que lhe acontecera.
Helena me ignorava atrás dela. Para ela só existia agora a vitrina, o escocês, a preciosa rubiácea. Que interesse teria Helena por aquilo? Nenhum. Olhava por olhar, para esperar. “Nós sempre estamos esperando alguma coisa” - isso era uma frase de meu irmão. As coisas mais sólidas, as mais desejadas, quando acontecem passam a ser espera de outras coisas. Helena esperava e olhava o café. O escocês sorria para ela, com suas bochechas rosadas pelo tecnicolor.
- Helena?
Ela virou-se, rápida.
- Salve! Não demorou nada!
- Vim num pulo - menti -, o trabalho é perto.
Helena tinha os olhos baixos, evitava oferecer-se a um exame que lhe seria odioso. Falaria com a boca, diria tudo, não precisava que lhe lesse os olhos.
- Vamos tomar alguma coisa? - propôs ela.
- Um sorvete?
- Qualquer coisa.
Fomos a uma sorveteria, na rua Gonçalves Dias. Pelo caminho, Helena reclamava dos transeuntes, dos esbarrões, da gritaria dos camelôs.
- Odeio gente! - dizia, entre os dentes.
Sentamo-nos numa mesinha do fundo, junto à parede espelhada.
- Dois imperiais com creme - pediu ela.
O garção trouxe os dois imperiais sem o creme.
Helena generalizava, falava do calor, da condução que ficava difícil àquela hora da tarde. Eu a olhava e pensava:
“Essa mulher é perigosa. É capaz de tudo.”
- Está zangado comigo? - perguntou-me, à queima-roupa.
- Eu?!
- Não me tem raiva por lhe ter tirado de sua “solidão liberta”, como você chama à sua vagabundagem?
Helena notou que precisava entrar no assunto.
- Bem, você quer saber o que se passa, não é?
- Não, Helena, eu não quero saber de nada. Você me chamou e eu estou aqui. É tudo e é simples.
- Ótimo! Você encara sempre bem todas as coisas. Sabe que houve uma época em que eu o odiava?
- Adivinhava.
- E que houve outra época em que... bom, isto não interessa...
Helena acabava com o sorvete e os preâmbulos. Estava corada, um fogo bom queimava-lhe as faces. Seus olhos continuavam inquietos, evitavam oferecer-se a um exame; aliás, eu não queria fazer exame nenhum.
Houve uma pausa. Ela sentiu que chegava a hora. Li na sua testa ligeira vacilação. “Vai fugir”, pensei. Mas a vacilação passou. A testa recobrou a limpidez habitual. Os seus cabelos cheiravam a sândalo, com um pouco de fumo.
- José - disse-me ela, limpando a boca com o guardanapo de papel -, você não é imbecil, encara bem todas as coisas.
Ela abriu a bolsa, uma bolsa preta onde guardava um mundo de pequenas coisas. Uma caverna de Ali Babá. Tinha de tudo. Principalmente mistério.
Apanhou o maço de cigarros. Acendi-lhe um. Ela puxou uma tragada forte. Tirou com a ponta da unha um fiozinho de fumo que se grudara no canto da boca.
- Zé, estou grávida.
Senti vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Conservei sem querer o mesmo tom neutro:
- É isso a “coisa chata”?
- É.
Ela soltava a coisa. Não era como eu. Para dizer coisas importantes e dolorosas eu precisava de engulhos. Não dizia. Vomitava. Ela não. Aquilo lhe saíra tão naturalmente como um sopro para apagar velinhas de bolo de aniversário.
Esperou que eu dissesse alguma coisa. Esperou pelo inquérito. Pela inquisição. Fui vago:
- Tem certeza?
- Tenho. Dois meses de atraso. Nunca me aconteceu. Mais fácil as teorias do Einstein ou do meu marido falharem do que o meu organismo.
- Bem, se é assim.
Admiti a certeza daquela gravidez. Olhava para Helena. A mesa impedia que lhe visse o ventre. Era mais um ventre errado na minha vida. Os ventres só existiam para mim na hora dos equívocos. Até então eu nunca notara o ventre de Helena, não saberia dizer se era grande ou pequeno, magro ou gordo. Helena não tinha ventre, era isso. Porque era um ventre certo. Mas agora existia na minha vida aquele ventre, era um ventre errado e, seguindo a trajetória do meu destino, e do dele, vinha desaguar em cima de mim as águas sujas, sua placenta, seu repugnante feto, aquela tripinha escura que vai ser gente.
Helena notou o sorriso mau que não pude esconder.
- Acha engraçado?
- Devia achar - respondi. - Não acho porque há uma predestinação, um pacto de erro entre eu e os ventres equivocados.
- Quer dizer, eu sou apenas um ventre equivocado?
- Mais ou menos.
- Isso seria um consolo, sabe? Infelizmente não sou apenas um ventre. Sou uma pessoa física e jurídica completa. Com deveres, com certidões.
- Essa pessoa não existe para mim. O que existe é apenas isso: um ventre equivocado.
- Causo-lhe repugnância?
- Não. Já estou habituado.
Helena estava impaciente. Fumava cigarro após cigarro; o curioso é que antes de soprar a “coisa” ela estava tranquila, senhora de seus controles, ceerta de seus domínios. Agora se impacientava. Disse-lhe que estranhava isso.
- Sei, eu também estranho, mas... como direi? Você me desarmou. Eu esperava outra reação. Não que esperasse censura. Mas julgava que desse maior importância...
- Decepcionada?
- Talvez assim seja melhor.
Procurei forçar amabilidade:
- Helena, eu não queria nem devia perguntar nada. Mas já que você esperava isso de mim, lá vai a pergunta: o que pretende fazer?
- Não sei.
- Não sabe?
- Vim te procurar justamente por isso. Tome você a decisão.
- Eu?!
- Sim. Por que estranhou?
- Mas afinal, Helena, o ventre é seu. Não sou seu marido nem seu amante. Não fui eu quem lhe emprenhou o ventre. Poderia dar um palpite. Nunca uma decisão.
- Você não disse ainda agora que era um especialista em ventres, em equívocos de ventre?
- Isso não vem ao caso.
- Foge?
- Evito o problema.
Ela sacudiu os ombros. Olhou-me com ódio:
- Sendo assim eu mesma tomarei a decisão.
Fizemos silêncio sem querer. Ela estava irritada. Depois disse:
- Mas afinal você nem se interessa em saber qual a decisão que pretendo tomar?
- Para quê? O que você espera de mim? Conselhos? Penitências? Não sou juiz nem padre, nem o caso é para isso. Não me interessa em absoluto o que houve. E o que pode haver me interessa de modo um pouco relativo. Afinal, prometi ao irmão que olharia por você. Foi uma promessa imbecil, mas as promessas imbecis também contam.
Helena repassou batom nos lábios. Chamei o garção. Paguei a conta.
- Bom - disse ela -, já que você foge eu mesma decidirei. Terei o filho. O resto que se dane!
- Que resto?
- O resto, ora essa! Seu irmão, você, o filho que vai nascer...
- Não seja cruel, Helena.
- Cruel? Para quem? Para seu irmão?
- Não, Helena, para esse filho que vai nascer. Meu irmão já sofreu o que tinha que sofrer. Com ou sem filho o chifre dele não altera de dimensão. Mas a criança não merece essa crueldade...
- Acha que não serei boa mãe? Seu irmão me abandonará?
- Não. Meu irmão perdoará de uma forma ou outra. Quem nunca perdoará será esse filho...
- Qual! Ele nunca saberá!...
Tive um ligeiro engulho. Minha velha angústia subia de dentro e dava um nó na garganta. Pensando mais em mim mesmo disse:
- Eles sempre sabem, Helena, eles sempre sabem.
Voltei mais cedo para casa. De muita coisa chateado e sofrido. Coordenar ideias. Coisa estúpida, jamais ideia tem ordem, só há a palavra para designar, a coisa não existe. Sabia que nada tinha que ver com aquilo, nada para me afligir. Me afligia porém. Sofria, não na carne, nem no espírito, mas num lugar estranho isso sim, que havia entre um e outro. Sofria por sofrer, por obrigação, amor à arte, fidelidade a mim mesmo. Os fatos tramaram aquilo para me aporrinhar, se eu fosse um forte dava risada, mas não era forte, dava risada de raiva só, aporrinhado de não ter jeito.
Deitei na cama, olhando as paredes nuas, o teto branco em cima, com o último sol do dia manchando de amarelo pálido.
“Ela emprenhou, a puta!”
Pensava no irmão. Chifre esperado há muito, destinado desde a fundação para a sua cabeça cheia de logaritmos. Presente ou ausente, ele tinha de passar pela aflição, entraria no grande rol dos homens realmente sérios, o homem só é sério depois do gostinho íntimo dos chifres, antes disso gozador apenas, depois sim, gozado.
E Helena? Negócio adiantado, já dois meses, o organismo não despejava aquele sanguezinho tranquilizador, a tripa inchando, já quase gente.
“Me chamou para providenciar o aborto!”
Tinha certeza agora, ela queria despejar a tripa imunda para fora. Custar tanto para descobrir coisa tão na cara!
Bolas, que tinha eu a ver com isso? Nada com as tripas erradas dos outros! Que Helena procurasse outro, por que logo eu? Procurasse o responsável pela tripa, o que dera a lambuzada.
Nem pensara ainda nesse detalhe mais ou menos chato: quem foi? Duas pessoas, sabia, não podiam ser: o irmão e eu. Outros homens todos, o papa, o Aga Khan, pelo menos eram uma possibilidade.
“Também já emprenhei uma mulher e dei o fora!”
Lembrei a mulher do capitão, a surra, eu quieto, nunca mais a vi. O filho era meu com certeza, filho sim, não podia ser filha, palpite sério aqui dentro. Devia estar crescido, quase catorze anos ou já. Quem sabe se não cruzara com ele sem saber, nem eu nem ele? Talvez aquele menino que vi um dia, brigando na Rua Barão de Mesquita, quando ia para casa de Helena. Porta dum colégio apinhada, todo mundo vendo a briga. O mais alto surrou o outro com raiva, com nojo da humanidade, quase matou. O outro, todo ensanguentado, depois de protegido pela turma do deixa-disso começou a gritar:
- Filho da puta! Todo mundo sabe, tua mãe é puta, todo mundo já trepou com ela, meu irmão já trepou duas vezes!
O outro estava preso, senão matava. Reparei bem, era alto, todo desengonçado, caricatura também por fora, ódio também por dentro.
Talvez fosse o meu filho. Cruzara com ele, sem lucidez, não foi bom nem mau, se soubesse com certeza seria divertido ao menos para mim.
Meu caso não contava mais. Agora só Helena, a tripa inchando no meio das tripas de Helena.
“Se aquilo nascer, vai ser chato pra burro, batismo, registro civil, quem sabe Helena me pegue para padrinho, compro um livro - ‘aqui está, já pode saborear o grande Eça!’ - Não, aquilo precisava ir depressa para o esgoto, o mais cedo possível!”
Levantei alvoroçado. Tomei um táxi, no caminho pensei em abandonar tudo, mandar Helena às favas com as tripas erradas.
“Vou fazer uma besteira deste tamanho!”
Cheguei ao Grajaú. Desci na esquina para não assustar ninguém descendo de carro na porta. A velha veio atender, ficou alegre me vendo:
- Ora que boas! Entre, rapaz! Isto aqui virou cemitério!
- Quando puder virei jantar também às quintas...
Já no living perguntei:
- Helena?
- Subiu cedo hoje, voltou da cidade, a cara amarrada, tomou banho, se trancou no quarto, nem jantou.
- Zangada?
- Parece. Quer falar com ela? Suba!
Subi.
Bati na porta, sem firmeza, ótimo se ela me mandasse embora, me enxotasse com palavrões, me mandasse para o inferno, não quisesse saber de mim.
Veio abrir a porta. Nem admirada de me ver ali, parecendo me esperar, sabendo que eu iria, acendeu o rastilho e ficou esperando a bomba pegar fogo.
Pegou, eu lá estava.
Nunca entrara no quarto dela, era a primeira vez. Quente, abafado, nenhuma coisa lembrando o irmão, ela sozinha enchia tudo, eu jurava que nunca homem nenhum entrou ali, deitou naquela cama. Havia um toque de virgem na cama, no quarto, nas cortinas brancas, tudo intacto, casto.
Helena vestia quimono branco, cheio de rendas. Foi logo pedindo cigarro, mandou me sentar numa poltrona perto da cama, sentou no meio, a luz da mesinha batendo num lado só, o outro no escuro, opaco, eu também no escuro. Arranjou cinzeiro para mim, ficou com outro, queria conversa longa.
Não me dava importância. Seria capaz de tirar a roupa, ficar nuazinha ali. Aos poucos foi me chegando o cheiro de Helena, carnes mal vestidas, tudo solto debaixo das sedas e das rendas. Me perturbava.
“Porco, grande porco! Essa mulher tem uma tripa inchando dentro dela e você a deseja assim mesmo!”
Começou por ela:
- Sempre se resolveu?
- A quê?
- A participar de alguma forma nesse equívoco?
- Que equívoco?
- Você mesmo disse, equívoco de ventre, não foi?
- Sim. Não quero porém participar de coisa alguma, nem dar opinião, nem julgar. Apenas, estou disposto a fazer o que for necessário, o que você precisar que eu faça, mas sem entrar no mérito ou demérito da solução. Não é favor que lhe presto, nem é da minha conta me meter assim.
Ela riu:
- Então o que é?
- Predestinação talvez. Não me pergunte mais nada, você não entenderia em precisaria entender. Vim aqui para ouvir, não para falar.
Pediu mais cigarro, puxou tragadas fortes com certo desespero, querendo afogar na fumaça a tripa errada que lhe mexia por dentro.
Perguntei:
- Tem algum plano?
- Eu? Não, não tenho plano nenhum.
- Não vai botar fora essa coisa chata?
- Vou. Mas só na época precisa, daqui a uns sete meses.
Fiquei desconcertado.
- Pretende mesmo ter a criança?
- Por que não?
- Helena, isso é absurdo!
- Absurdo? Absurdo seria se fosse você parindo. Sou eu que vou parir, sou mulher, posso ser mãe, nenhum absurdo nisso.
- Mas o seu marido?
- Ah! O seu irmão?
- Não, não é o meu irmão quem conta, é o seu marido!
- Quem conta sou eu só, o resto que se dane!
Decidi ir embora. Nada mais a fazer ali, pensava no aborto, Helena teria necessidade dum homem para providenciar coisas embaraçosas para a situação, procurar médico de confiança, manter discrição, reservas. Enfim eu pensava nisso e foi o que disse.
Ela me ouviu com cara de troça, só ela sabia fazer assim, o olho vesgo de zombaria, me dando vontade de esbofeteá-la e beijá-la ao mesmo tempo.
Não me levou a sério.
- Deixa de ser bobo!
Tentei levantar.
- Fique aí mesmo, temos muito a falar, mas não pense mais em aborto!
Fui solene:
- Helena, talvez eu seja ridículo, mas é loucura você ter a criança. Loucura inútil!
- Loucura por quê? Mulher sempre teve filhos, se o mundo é louco não é por causa disso, mulher só tem mesmo essa missão, está até na Bíblia.
Ela não precisava de mim para nada, sugerisse a melhor coisa e ela recusaria, tinha já opinião sobre o que faria, não havia força no mundo capaz de mudá-la um centímetro.
- Acha que o seu irmão vai me abandonar? - perguntou vagamente, como se não desse importância ao pormenor.
Dei de ombros.
Helena apertou a unha de encontro aos dentes:
- Sabe? Ele me ama.
- Sei. Sei muito bem. Por isso mesmo é capaz de tudo. Perdoar, esquecer, matar ou se matar.
- Sim, ele é capaz de tudo isso.
- Menos de uma coisa: esquecer você.
- Como é que sabe?
Encarei Helena frontalmente, com gana.
- Está na massa do sangue.
Riu.
- Você tem o mesmo sangue...
Ridicularizava, chegou a perguntar:
- Já amou alguma vez?
- Não vem ao caso.
Levantei. Disposto a sair, ela não mais me prenderia. Bom sair sem dizer palavra, ela não merecia consideração. Mas botei tudo para fora, para não me arrepender depois.
- Vou te propor uma coisa, não me pergunte por quê, nem para quê, nem classifique nada com adjetivo, pense apenas em substantivo, coisa que realmente importa. Desejo ajudar você, desejo e devo, promessa feita afinal, bem verdade que em outro sentido. Não terei nem quero ter opinião a respeito de nada. Você dirá o que quiser que eu faça, eu farei tudo o que for possível. Basta isso.
Ela me olhou com interesse. Lógica a minha proposta, sobretudo o que ela queria, o que esperava de mim.
- Você é um anjo!
Levantou-se também, chegou perto de mim, quase juntinho:
- Estamos em novembro, espero a coisa lá para os fins de abril ou inícios de maio. Daqui a um mês o troço já dá para ser notado, temos de ir para fora, para qualquer lugar.
- Temos? Eu também?
- Olha o pacto, nada de perguntas!
- Mas logo eu!
- Ir com a velha seria asneira, dava no mesmo, todo mundo reparava. Com você é diferente, passavamos por marido e mulher, a moral pública e a nossa ficavam a salvo.
- Marido e mulher!
- Não vão pedir certidões na testa!
- Coisa ridícula, Helena, coisa ridícula!
- Olha o adjetivo!
- Assim é forte demais.
- Marido e mulher, amigados, amantes, qualquer troço. Basta que as raízes fiquem encobertas, entendeu?
Não havia jeito, disse que sim.
- Vai pensar nisso?
- Vou.
Já na porta. O quarto me sufocava, a carne de Helena cheirando, saindo das paredes, escorrendo pelas cortinas, impregnando minhas roupas. Se agarrasse aquele corpo, cobrisse de beijos, levasse para a cama, daria no mesmo, talvez ela nem reclamasse, talvez gostasse.
- Sabe o que nós somos?
- Combinamos, nada de classificações.
Tinha de dizer o que me entupia:
- Somos dois cretinos, Helena.
Ela me olhou com um riso mau. Sua boca tremeu. O corpo inclinou-se um pouco em minha direção. Senti suas pernas tocarem nas minhas. Um gesto, e a teria, inteira, submissa, amante.
Levantei-me. Bati com a porta.
Sei lá por quê, toda a vez que saio dum quarto de mulher tenho a impressão de que ela ficou a rir.
- Olha o trem das dez e meia!
Levantei os olhos do caniço, olhei o leito da estrada de ferro. Na curva da Garganta de Pedra, limitando a Fazenda Modelo, a máquina lançava o focinho de aço, deitando uma fumaçada negra, vomitando calor. Depois, os vagões, os dois primeiros sempre de carga, mais dois de segunda, o carro-restaurante, cinco ou seis de primeira.
Helena e eu gostávamos de olhar o trem das dez e meia. Era íntimo, amigo, nele viajamos até Desengano e isso nos unia ao trem, era o nosso trem.
Passavam outros depois, o mais bonito era mesmo o das nove da noite, alegre, todo iluminado, no carro-restaurante pessoas jantando, adivinhava-se o ruído dos talheres, via-se o brilho dos copos.
E os trens de carga, compridos, intermináveis, levando o gado de Minas, vagarosamente, para o matadouro de Mendes.
Os trens eram acontecimento. Da Garganta de Pedra até a curva do outro lado, onde sumiam, havia a reta, uns duzentos metros, não mais. Sem trem, sobrava a inutilidade dos trilhos, silenciosos, os dormentes sujos de óleo, as pedras recheadas de carvão.
Os trilhos inspiravam tristeza, abandono. Só olhava para aquilo quando passavam os trens, não gostava dos fios paralelos e longos que conduziam à cidade. Teria de passar por eles, na amarga volta. Aqueles dois fios eram miseráveis, eu os olhava e sentia pena de mim mesmo.
Fevereiro já. Desde meados de dezembro ali, enfurnados naqueles sítios. Helena fecundando, eu bestando. Tudo plano dela, eu só aceitara, sem discutir. Ela não queria perder o filho, a solução mais decente seria esconder o negócio tanto quanto possível, passar os meses de barrigueira longe dos conhecidos, dos amigos de todos.
Plano completo, previa ainda detalhes, uma pessoa ou família que ficasse com a criança por um ano. Depois se forçava uma situação qualquer, um batismo de proteção, qualquer troço que justificasse a ida do guri para junto da verdadeira mãe. O meu irmão - pensava Helena - acabaria convencido da criança, da sua necessidade, já que não podia entrar pelas vias habituais num lar marcado pela esterilidade, figueiras brabas (sim,uma ova!).
Plano escabroso, cretino, digno de filme mexicano. Mas foi o que Helena pensara de melhor. Eu me comprometera a não discutir nada, a aceitar o que ela quisesse sem dar palpite. Dando ou não dando certo, tanto me fazia.
A meu critério ficaram os pormenores, a escolha do local, o modo de vida que levaríamos, responsabilidades assim.
Antes de mais nada, precisava arranjar um lugar, um desses lugares perdidos que escondem as botas de Judas, ou mais perdido que isso ainda.
Pensei em Maceió. Havia inconvenientes, longe demais para qualquer eventualidade. Pensei: Barra do Piraí, Campos, outras cidades vizinhas do Rio, mas grandes demais para a pequeneza do intuito.
Bati de automóvel uma porção de lugarejos, vilas, aldeias, vasculhei todo o Estado do Rio, nada de bom. Preferia um lugarejo ao longo da estrada de ferro, no eixo Rio-Belo Horizonte. Gostava desse lado, o mais bonito, o rio Paraíba fazendo curvas, lagos de vez em quando, pedrinhas redondinhas de fora, grotas calmas, profundas. Do lado da Rio-São Paulo o rio era feio, correndo vertical e sujo, a vegetação rala nas margens acentuando a tristeza.
Dei com os costados em Desengano, fim do mundo no meio do mundo, vilazinha tola, a estação caindo aos pedaços quando passava a malé das manobras. Igreja, coletoria do governo para tirar sem nada botar, dois botequins, duas ou três dezenas de casas espaçadas e feias.
Escolhi dois motivos: o Paraíba, soberbo ali, cortando o vale em duas curvas caprichadas, formando arquipélagos de pedras boas, abençoadas ao sol. E mais: o vale em si, gramado por capim rasteiro, cheio de seiva, crescendo feito cultivo lá para longe, até esbarrar com a Mantiqueira, pesada, montanhaça emburrada, cheia de si.
A casa era pequenina, sala, quarto, banheiro e cozinha, tudo tosco, luz elétrica só nos dois cômodos principais, o resto mesmo lampião, que comprei na Rua Larga.
Mobiliário simples, adquirido por lá mesmo, em não sei que mão, muita gente foge assim, os móveis pareciam trocados mil vezes. Daqui levamos pouco, sofá-cama, poltrona, radiozinho pequeno, cangalha de cozinha. Me disseram que o rio dava peixe, muito piscoso no trecho, bom de traíra. Fui munido. Comprei em loja especializada um complicado aparelho de pesca em rio, tipo californiano, made in USA, maravilha tudo, caixa envernizada, instruções em cinco idiomas, tudo detalhado, desenhos mostrando, até gravura colorida de algum efeito, um lago azul refletindo a tarde, um homem de blusão vermelho e botas engraxadas no meio, montanhas ao longe, e em linha igual à minha, fisgada já, uma truta pulando, prateada, gorducha.
Deu em nada. Cedo tudo uma droga, salvei só a gravura, pendurei com prego na sala, ficou sendo nossa única decoração doméstica. Apanhei então um junco selvagem, sequei ao sol, adaptei linha e anzol e era raro o dia que não trazia traíra para a mesa.
Helena nunca havia provado peixe de rio, demorou a aceitar, acabou aderindo e gostando.
Vida simples no mais, médico lá para a Fazenda Modelo, semana sim, semana não, exame, íamos na charrete que aluguei até o fim de maio.
Gravidez normal, nada de crise, Helena forte, sem complicação, boa parideira, bacia bem maternal - disse o doutor.
Temperatura boa. No Rio, tudo escaldando, as cartas da velha no Grajaú, tomando conta da casa, dizendo barbaridade do sol, “uma caldeira!”, e eu satisfeito, a velha já no inferno. Mandava as cartas do irmão, Helena lia no quarto, longe dos meus olhos. Depois dizia:
- Tudo vai bem.
Íamos cedo para o rio, Helena sentava na beira.
Eu pulava as pedras, até atingir a grota mais funda por perto, que descobri um dia, ao acaso, ninho bom de traíra.
Pescando, tranquilo. Helena falou:
- Olha o trem das dez e meia!...
Levantei os olhos para ver o bichão. O barulho assustava as traíras, tinha de dar tempo para que o sossego voltasse à água fecunda.
O sol me tostando em cima da pedra. Deixara a barba crescer, amolação me raspar todo dia. Aspecto selvagem. Helena achava melhor assim, dizia que os olhos ficavam mais tranquilos no meio de toda a feiura. Eu me olhava no espelho e me convencia de que parecia era inglês barbudo, inglês de anedota, que vai para o mato procurar ossada de outro inglês, ler a Bíblia nas horas vagas e depois virar ossada.
Helena a ler ou a bordar. Imbecil tudo isso, um quadro burguês, sentimental, só não me enojava porque no fundo nós não éramos nada, nem casados, nem amantes, nem amigos, nada mesmo, apenas escoras, terminando aquilo, cada um por seu lado procuraria esquecer as traíras, o rio, o vale, o trem das dez e meia.
Eu via o ventre inchado, mas não sofria mais. De início me incomodava, o barrigão crescendo, causando nojo. Depois me habituei, quietava a carne, isso era bom.
O rosto de Helena ficou vulgar, redondo um pouco, os olhos meio apagados, sem languidez nem fogo, olhar vago, olhando além da vida, parecendo olho de estátua, vazio.
As traíras não mordiam, podia ficar olhando Helena, sentada assim ela nem parecia fecundar. Perfil bonito, fazendo parte da paisagem, tão bonito quanto o trem das dez e meia, o vale, a Mantiqueira ao longe.
Traíra beliscando, coisa gostosa na linha. Puxei para cima:
- Olha! Que grande!
Helena levantou, o ventre enorme aparecendo de repente:
- Maior que a Macaca?
Macaca foi pescada pelo Ano Bom, era enorme, pesava dois quilos e meio, focinho feito de macaco. Helena não quis comer, nem eu, muito feia, botamos no tanque com água do rio que renovava. Virou nosso bicho doméstico, Helena dava sobras de comida, quando eu pescava um lambari dava também, Macaca fazia farra com o coitadinho. Não gostávamos dela, nos distraía apenas, e aquele ódio comum também nos unia.
A que acabara de pescar era quase igual no tamanho, pesada também, só que bonita, a cara lembrando ovelha, coisa mansa assim. Traíra tem isso de bom, cada qual lembra uma cara conhecida. Um domingo pesquei uma pequenina, do tamanho dum palmo. Mostrei para Helena, ela mesmo reconheceu:
- Céus! Como esse bicho se parece comigo!
Não sei o que nos olhos, talvez o seu jeito de olhar, travessa e vesga quando zomba da gente.
No jantar, Helena não quis comer da bichinha. Cotovelo na mesa, mão segurando o queixo, ficou em silêncio, olhando para mim. Perguntou se eu queria. Quis. Comi inteirinha, com pirão e pimenta.
Ficávamos até tarde no rio. Levávamos farnel para comer sob as árvores que vinham caindo quase dentro da água.
Helena me perguntava:
- Tem nojo de mim?
- Não.
- Diga que não me odeia.
- Não odeio ninguém.
- Diga: Helena, não te odeio!
- Helena, não te odeio!
- Ótimo.
Certa tarde veio com novidade, fez colocar a mão em cima do mundo que lhe nascia dentro.
- Olha como pula!
- A tripa?
- Não, meu filho.
- Bobagem, Helena, isso é apenas uma tripa que vai inchando, crescendo, até não aguentar mais, vem para fora, a gente dá mingau, o padre benze, o colégio ensina os pronomes oblíquos e pronto. No fundo, é tripa.
- Está bem. É tripa apenas. Viva a tripa!
- Por ora, viva!
- E depois?
- Nunca se sabe.
Helena gostava do programa de tangos, à tarde. Eu detestava os tangos, mil razões cá comigo. Mas ficava calado diante do capricho, mulher fecundando é assim, tem coisa besta de repente, aquele era mais um, eu vinha fazendo uma porção de coisas de que não gostava, mais uma menos uma tanto fazia.
cuartito azul
de mi primero amor
si alguna vez volvera la que amé
vos le dirá que nunca la olvidé
O compasso sensual varara a janela e se espraiava no verde do vale. A tarde morrendo, a Mantiqueira ardendo no último sol.
cuartito azul
de mi primero amor...
O cantor chorava, lamentava a paixão frustrada, a ingratidão da amada, se pungia de dor diante do quarto azul, “fiel testigo de nuestra juventud”.
Helena ficava esquisita, ouvindo calada, toda pra dentro. Na certa quarto azul também. Perguntei isso um dia.
- Pergunta besta!
- Desculpe. Foi sem querer.
Respondeu assim mesmo:
- Todos temos. Quarto azul pertence a todos, a primeira experiência e o primeiro amor não se abrem de vez para a mulher, o amor e o sexo não chegam de forma instantânea e completa. Começam veladamente, nem se percebe, até que chega a vez do quarto azul. Há sempre um quarto azul na vida da mulher, meretriz ou freira, o quarto azul existe.
Olhou-me profundamente.
- Vocês, homens, devem ter coisa parecida.
Respondi sem entusiasmo:
- Conheço um tipo que teve um porão escuro.
Apareceu o circo pelo povoado. Coisa pequena, artistas esfarrapados debaixo de lona ainda mais esfarrapada, luzes sem cor já, roupas douradas agonizantes, dois cavalos brancos e leão.
O programa atestava: leão autêntico. Para mim e Helena tudo era leão.
Fomos ver o leão autêntico, antes que aparecesse algum não autêntico. Helena não podia subir na arquibancada. O jeito foi o dono arrumar duas cadeiras junto da pista, cobriu tudo com um pano vermelho fedendo a bicho, chamou aquilo de camarote.
Vimos o leão. Deu uma volta na pista dentro da jaula, nem tiraram o pobre de dentro. Estacionou no meio e ficou a dormir, num tédio honesto, digno de rei. Dormiu o tempo todo. Nós só não dormimos o tempo todo porque houve um acidente. A mocinha do saiote verde fazia acrobacias em cima do cavalo. O cavalo estranhou as duas cadeiras vermelhas, deu um pulo fora do compasso, a pequena voou feio e caiu, quase em cima de mim.
Agarrei-a como pude, levei-a correndo para dentro. Nada sério, só o pé machucado. Foi um alvoroço, enfaixei o tornozelo, mão hábil de estrada sabendo tudo, Helena me olhando, um riso na boca.
O dono do circo berrando:
- Pros lugares! Pros lugares! O espetáculo vai continuar! Cacá, entre em cena!
Cacá não entrava, todo mundo querendo ver a perna da moça bem de perto. Menos o leão, que continuava a dormir.
Três dias depois, manhã clara, estava pescando em cima da pedra, Helena lendo na margem. Vi a moça do cavalo mais acima, pescando com vara igual.
Gritei:
- Aí não adianta! Não dá nada, corrente muito forte!
Ela veio para junto de mim.
Passou por Helena, cumprimentou-a com desembaraço, com embaraço pulou as pedras, mancando, o pé ainda doendo. Sentou a meu lado. De slack azul, magrinha, sem graça nenhuma, só com o saiote verde tinha valor, tudo de fora.
Nada de peixe. Chateado, a moça dando azar.
Ela falou:
- Vou-me embora, não gosto de criar problema.
- Que problema?
Virou o rosto para a margem. Helena tinha ido embora.
Pelo carnaval, visita da mãe de Helena. Veio passar uns dias com a gente, “desintoxicar o organismo viciado pelo ar da cidade”, segundo dizia, mentira no fundo, vinha somente inspecionar a nossa vida e a gravidez da filha. Não era uma hipócrita. Propalava aos ventos a certeza de que era eu o pai da criança, nem outro podia ser. Tal convicção redimia em parte o delito da filha, quase o justificava. Foi com o irmão do marido. Do marido que a deixara só e fora aprimorar o espírito em outras plagas, deixando a esposa abandonada aos perigos de uma cidade. E veio o irmão do marido, também companheiro de infância, ficou com a gerência de tudo, da casa e da pessoa da filha. O adultério era decorrência, ficava tudo em família, quase não era pecado.
A velha só não compreendia a obstinação de Helena em ter a criança. Sabia, porém, que a filha era irredutível, se cismasse de colocar um hipopótamo dentro da cristaleira colocava mesmo, os outros que se danassem, o hipopótamo inclusive.
Não gostei da visita. Diante da velha fazíamos tudo constrangidos, acabávamos parecendo mesmo amantes, tínhamos de fingir que fingíamos, coisa duplamente detestável, nos deixava sem jeito.
No domingo, levou-nos à missa, no centro da vila. Fomos os três, endomingados. Helena ajudou-me a dar o laço na gravata e minha melhor camisa havia recebido, misteriosamente, um monograma bordado.
A missa não serviu para nada, só atrapalhou a pescaria do dia. Para reforçar o almoço não houve outro jeito, tivemos de sacrificar a Macaca. Deu um assado esplêndido. Mas nem eu nem Helena provamos daquilo. A velha comeu-o inteirinho, guardou os restos para o dia seguinte, renderam uma apreciável fritada.
Na véspera de seu regresso tivemos conferência promovida e dirigida por ela. Preliminarmente, fez pública declaração de que não aconselhara o nascimento da criança, fizera olho grosso sobre a nossa mancebia, “justificava-a” em parte - chegou mesmo a acrescentar com espírito superior.
Várias vezes tentei atalhar a história, derramando um pouco de verdade. Mas Helena me prendia com olhar, eu prometera aceitar tudo sem discutir.
Ela não aconselhou o nascimento da criança, mas já que era fato a se consumar, propunha que trabalhássemos não com o coração, mas com a cabeça - e apertava o próprio crânio, para mostrar o local onde se encerrava a solução de todos os problemas humanos.
Uma loucura levar o garoto como afilhado ou coisa que o valha, mais cedo ou mais tarde meu irmão acabaria desconfiando daquele fruto caído assim sem mais nem menos do céu. E ainda por cima, a presença da criança seria um constrangimento para todos, o melhor seria deixá-la definitivamente em Desengano, não faltariam famílias roceiras que com boa remuneração não disputassem o privilégio. Ao dizer “boa remuneração” olhou significativamente para o meu lado, dando a entender que o encargo deveria ser meu.
- Tudo poderia voltar ao que era antes! - concluiu.
Helena deixou-a falar. Eu também. Resolvera não dar palpite nenhum, nem discutir o assunto com mais ninguém, nem mesmo comigo. Mas a velha, terminada a fala, quis ouvir democraticamente as opiniões contrárias. Exigiu minha opinião.
Dei:
- Prometi não discutir o assunto. Helena fará o que quiser. Eu ajudarei no que puder. Apenas isso.
A velha ficou decepcionada com a parcimônia. Não disse mas pensou mal, mandou-me um olhar reprovativo, como a dizer: “Que cretinaço!”
Voltou-se para a filha:
- E você?
Helena estava cabisbaixa. Os olhos grisados. Tinha raiva. Toda a vez que tinha raiva ficava assim, os olhos perdiam o verde travesso, uma cor cinza tornava opacos aqueles olhos que sabiam brilhar tanto.
- Não, mamãe - começou ela -, a senhora está enganada em vários pontos, em todos os pontos.
Tomou fôlego. Os olhos voltaram a chispar:
- Só eu, ouviu? Só eu decidirei. E já decidi. Terei a criança. E para evitar melodramas, evitar que a senhora ou outra pessoa façam novela à minha custa, atalharei logo. Conto tudo para ele. Escreverei carta amanhã mesmo. Se ele quiser me abandonar, que abandone. Pode ficar mesmo por lá, com sua matemática, seu Einstein, se quiser dormir com ele também pode, o homenzinho talvez seja mais bonito se pentear os cabelos.
Helena tremia. Eu precisava fazer alguns reparos, diante da velha sentia-me na obrigação de defender o irmão, pensasse ela o que quisesse de mim ou dele. Na intimidade, não perderia tempo abrindo a boca em sua defesa.
- Não, Helena, meu irmão jamais dormirá com outra pessoa, nem com Einstein, nem com mulher nenhuma. Ele ama a mulher dele. E é um asceta.
Helena fuzilou:
- Asceta! Belo asceta! Se você soubesse o que me entope a garganta!
- Alguém teve culpa nisso.
- Ah! Sou eu a culpada? Ele faz as misérias e sou eu a culpada, a miséria é minha?
- Houve uma miséria que ele não fez e que você fez com outro: o filho.
Helena me vomitou um olhar de nojo. Saiu furiosa da sala, bateu a porta do quarto. Foi chorar sozinha, de raiva. Da sala, eu ouvia os soluços.
A velha caiu em si. Ficou alarmada diante da tragédia que ela mesma desencadeara. Eu a tranquilizei:
- Fique descansada, ela não contará nada. Foi nervoso, coisa de mulher grávida. Passa logo, amanhã está boa outra vez.
Depois eu vi, sozinho, passar pelo vale adormecido o trem iluminado das nove horas.
A velha se foi, para nosso sossego e calma. Ficamos de novo sozinhos. Helena continuou amuada uns dias, queimava meus bifes na cozinha, fazia tudo de má vontade, deixou de ouvir o programa de tangos, nem foi ao rio por dois ou três dias. Mas tudo voltou ao normal. No quarto dia, após o incidente, quando acordei, vi Helena preparando o farnel de pescaria. Aquilo me alegrou, eu também andava insatisfeito comigo mesmo, bobagem aquele rompante idiota, levara muito longe a preocupação de defender o irmão, coisa que no fundo não me preocupava. Procurei um pretexto para dizer que fora coisa tola aquilo, só o fizera por causa do diabo da velha.
Qualquer palavra sobre o assunto só aumentaria o mal-estar recíproco. Não tocamos mais no assunto. Foi melhor assim.
Chegamos ao rio. Ela quis sentar-se na relva. Sempre a ajudava, a gravidez tirava-lhe a presteza dos movimentos. Ela tentou sentar-se sozinha, como a dizer que não precisava de mim. O cesto na mão atrapalhava. Segurei o cesto pela alça, ela não teve tempo de retirar a mão. Nossas mãos se encontraram, uma por cima da outra. Apertei-a com brandura.
Ficamos assim, de pé, mãos dadas e esquecidas. Helena não queria olhar para mim, cravara os olhos no chão, eu só via a sua testa onde os cabelos colocavam um pouco de tristeza.
Súbito, ela deu um risinho ingênuo. Apontou o chão:
- Olha a formiguinha! Leva uma folha maior do que ela! Parece um barco à vela!
Não olhei a formiguinha. Ela teve de levantar a cabeça. Trazia os restos daquele sorriso que a formiguinha causara. Mas ao dar com meus olhos ficou séria. Seu olhar, porém, estava límpido, nenhuma nuvem. Sentia sua mão apertar a minha com força. Eu também apertei.
Ela suspendeu-se na ponta dos pés, beijou-me a face, com carinho.
Um mosquito me mordera a orelha, o lóbulo estava inflamado, ela me vira futucando na véspera.
Passou a mão pela ferida, beijou-a devagarinho, olhando-me nos olhos:
- Dói?
Disse que sim com a cabeça.
Deu outro beijo.
- Vai ficar bom, tá?
Eu não podia dizer nada. Sentia o perigo, qualquer descuido e ficaríamos agarrados um no outro. Procurei ser forte:
- Precisamos substituir a Macaca.
Helena riu, tranquilizada também.
A saída aliviou. O melhor era aquele plácido alheamento, não éramos nada um para o outro, mas no fundo sabíamos que nos pertencíamos de uma forma qualquer, sem a porcaria do sexo, sem a estupidez das palavras.
Completa a nossa reconciliação. À noite, um momento de paz, na janela. Víamos os últimos carros do noturno das nove horas, já sumiam na curva do rio. A escuridão, cortada há pouco pelos pontinhos luminosos, retornou pesada e bruta. Ouvia-se o deslizar das rodas nos trilhos, compassadamente, morrendo aos poucos.
- Acabou! - disse ela. - Agora só amanhã!
Senti Helena pelas costas. Inclinou o busto sobre minhas espáduas, o calor de seus cabelos queimou-me a nuca. Eu sabia que ela estava com os olhos fechados. Apertava-me em seus braços, com carinho. Grudou a cabeça nas minhas costas, como que para ouvir o meu coração por trás, depois beijou-me devagarinho a nuca. Suas mãos passaram pelo meu rosto. À altura dos quadris sentia o seu ventre. Não nos inutilizava, nem sequer nos separava mais.
As mãos de Helena desceram até o meu peito. Segurei-as com força.
- Helena!
Àquele nome, ela se aprumou. Não deu tempo sequer de virar-me. Fugiu. Fechou-se no quarto.
O noturno apitava lá longe, melancolicamente. O apito enchia o vale, morria devagarinho. A Mantiqueira, ao longe, guardava em suas sombras o eco distante. O rio corria mansamente, com o compassado murmúrio de suas águas.
Olhava o vale escurecido, sons imperceptíveis saindo do meio. Na escuridão meus olhos projetaram, silenciosamente, cenas de minha infância sem sonhos, de tudo sem esperanças.
No peito, sentia ainda o calor das mãos de Helena. Aquele calor redimia tudo. O passado adquiria significação, parecia apenas um longo e sofrido noviciado para aquela sensação doce.
Então zombei do futuro.
Uma noite - fazia lua medonha lá fora - eu estava cheio de calor. Revirava no sofá-cama, tirei a blusa do pijama, contei carneirinhos, não conseguia dormir. Levantei-me com cautela. Fumei um cigarro na janela. A lua derramava uma luz indecente em cima do vale, o rio brilhava, parecia um bicho de escamas.
Pulei a janela, fui para fora. O calor era intenso, o chão devolvia o mormaço do dia.
Na margem me deu vontade. Despi-me. Mergulhei no rio, nadei sem compromisso dum lado para outro. Explorei grotas. Havia mais fundas que a minha. Ia até o fundo, encontrava raízes de árvores, não, não dava traíras.
Depois das pedras, um largo descampado. A correnteza era então mais forte. Experimentei os músculos. Fui à outra margem e voltei, saí quase no mesmo lugar. Boa forma física, os anos em cima dos caminhões, a rudeza da estrada, os imprevistos da solidão, tudo temperara bem os músculos.
Estava bom ali, dentro d’água. A lua, ridícula, abençoando o homem nu dentro do rio nu. Pensei em Helena. Estava sozinha em casa. Deixara a janela da frente aberta. Fiquei apreensivo. Quem sabe um ladrão, um louco, um animal?
Voltei. Percorri novamente as grotas, ia alcançando a margem.
Helena estava sentada em cima da calça do meu pijama.
- Eu também estava com calor - explicou.
Fiquei desconcertado. Estava nu e ela sabia disso.
- Se não fosse a tripa errada ia nadar com você.
- Não valia a pena.
- Por quê?
- Calor do mesmo jeito.
Ela se levantou. Pegou na minha roupa:
- Levo isto. Como recordação.
Foi embora.
“Malandro não estrila!”
Dei tempo para que ela chegasse em casa. Depois fui correndo, com medo da lua. Senti-me ridículo correndo nu dentro da noite. Mudei, fui no meu passo normal. Achava um certo prazer naquilo, não era tão ruim assim, em sonho é pior.
O pijama estava em cima da janela. Vesti rapidamente. Só então reparei, Helena estava perto, um pouco de lado.
- Estava devendo esta peça - disse.
- Que peça?
Riu.
- Você é ridículo nu, sabe?
- Nem a lua ajudou.
Zombou do meu embaraço. Depois ficou séria:
- Estava brincando. Ajudou sim. Você tem silhueta bem feita, parece uma estátua andando.
Eu começava a ficar irritado.
- Bom, o meu calor já passou. Vou dormir. Até amanhã.
Ia pular a janela. Ela pediu:
- Vamos dar uma volta?
- Agora?
Saímos.
- O médico sempre recomenda andar bastante, ajuda a coisa.
- Mas não de madrugada.
- Nem com homem nu.
- Não estou mais nu.
- Esteve. Dá na mesma. Um homem não fica nu impunemente diante de uma mulher.
- Tramando alguma coisa? Outra peça?
- Não. Só brincando com você.
Deu-me a mão. Andamos bastante.
- Quero deitar um pouco.
- Aqui?
Ela se deitou. Fez sinal, que me deitasse também.
Vi a lua caminhar pelo céu. Adormeci sem querer. Quando acordei, uma aragem anunciava o amanhecer. Senti um peso no ombro. Virei o rosto. Minha boca esbarrou nuns cabelos macios. Helena dormia, pequenina, a cabeça sobre meu peito.
Não fiz um gesto. Controlei o que pude a respiração. Até que a aurora, como um grito, caiu sobre a terra.
Na madrugada de um domingo Helena começou a sentir as dores. Estávamos em inícios de maio. Tinha a charrete pronta para qualquer eventualidade, esperávamos a coisa.
Ela me acordou:
- Já?
- Parece.
Fui buscar o médico na Fazenda Modelo. Uma noite estrelada por cima de mim, alheia. Fui e voltei em menos de uma hora. Helena já havia acendido o fogão, preparara o possível. Separou roupinhas, ferveu água, colocou toalhas na mesa.
Fiquei na sala. O médico examinou, achou a dilatação adiantada, não demoraria nada.
Ouvi só os ruídos. São estranhos os ruídos do parto. Têm mistério e dor.
Depois alguns gemidos. Nunca a ouvira gemer, nem de dor, nem de prazer. E agora gemia. Odiei os partos, os gemidos, as mulheres. Odiei principalmente Helena:
“A porca! Como geme! Sofre, geme, vomita sangue por baixo, arrebenta-se, expulsa a tripa, aquela coisa que parece um vômito...”
Na realidade, tinha motivos de sobra para odoar “especialmente” aquele parto. Era o fim de tudo. Não precisamente o fim, o reinício de tudo. Tudo voltaria agora - especialmente o que não deveria voltar nunca. A cidade, o emprego sórdido, Grajaú, os adultérios de Helena, a tortura do meu irmão - tudo parecia me esperar na estação.
Motivos bastantes para odiar aquele parto. Ele me roubava em coisa muito importante que eu não tinha coragem de admitir para mim mesmo.
“Sou uma besta, desde o início sabia, o fim seria esse. Por que me aborrecer agora? Não construía solidão e liberdade? Pois ia voltar para minha solidão liberta!”
Mas ia voltar com o coração sangrando.
Antes, era virgem daquilo. Sensações novas vieram depois. Meu coração sangrava. Tanto quanto o ventre de Helena. O sangue dela vinha para fora. O meu subia até a boca, sufocava. Era pior. E por isso odiava.
Choro de criança no quarto. A voz do médico contente:
- É um menino!
O sol nascia de todo. Colocava visgos de sangue nos picos mais baixos da Mantiqueira. O vale tremia, nascendo embuçado na névoa de sangue.
Do quarto de Helena vinha um cheiro de sangue.
E era assim que se nascia. No meio do sangue, de tanta coisa imunda . Aqui fora, depois, a continuação da mesma imundície, do mesmo sangue.
Uma coisa me unia ao menino: nascêramos de ventres errados. Tive um momento de generosidade:
“No estado em que está, tanto faz. Se jogar no rio, com o balde das outras porcarias, será melhor para ele.”
Acendi um cigarro. Abri as janelas da casa para espalhar o cheiro de sangue que se impregnava nas coisas. Um ar de manhã, cheirando a capim e a orvalho, invadiu a casa. Ar de coisa virgem, intacta, entrou pelas janelas, lavou o cheiro de sangue.
- Nasceu mais um filho da puta!...
Era verdade. Parecia que só isso era verdade.
Tive vontade de esconder o rosto nas mãos. Sem querer me escapou um soluço seco.
“Preciso de controle! Preciso de controle!”
As lágrimas não deram para chegar aos olhos. Morriam na garganta e voltavam para dentro. Na boca havia gosto de sangue. Mas era apenas um gosto azedo de choro.
Helena ficou na cama durante cinco dias. Fui o seu enfermeiro, seu médico, principalmente seu amigo. Só não cuidava da criança, que me repugnava. Contratei uma senhora das proximidades, muita perita em umbigos e em outras porcarias, que me fora recomendada pelo próprio médico. Ela tratava de tudo o que se relacionasse com a ex-tripa, agora gente.
Abatida a fogosa Helena. As faces descoloridas, os cabelos opacos, os olhos vidrados. Por baixo das cobertas adivinhava-lhe o ventre murcho, mumificado, finalmente desentupido. Apesar de abatido, o rosto de Helena tinha um langor que excitava. Devia ficar assim depois do prazer. Era dessas mulheres que se dão todas no ato do amor, quando o acabam tornam-se meio cadavéricas, de vida incerta, de incerto calor.
Só voltei ao rio após uma semana, quando Helena já se levantara. Mas fui sozinho, ela não podia abusar, evitava caminhar muito.
Ao rever nosso habitual lugar, senti que tudo havia acabado. A rigor, nós nem precisávamos regressar à cidade para tudo ter acabado. A criança e o ventre murcho de Helena maculavam invisivelmente a paisagem. O trem das dez e meia passou pelos trilhos, cadenciadamente, estranho e inútil.
“É melhor assim.”
Passei a manhã inteira e parte da tarde no rio. Não pesquei uma só traíra. Quando voltei, Helena fez zombaria:
- Onde está o grande pescador?
- Que pescador?
- Aquele de traíras...
Olhei-a desanimado, abanando os braços vazios. Quis dizer que não havia mais pescador, nem traíras, nem trens, nem mais nada. Nada mais nos unia a não ser a eterna incompreensão que o amor e a vida independentemente entre si jogaram em cima de nós.
Helena entendeu o meu gesto.
- É - concordou -, acabaram-se.
- Sim, Helena, acabaram-se.
O que nós não dissemos, mesmo porque se tornava desnecessário, era que nós também havíamos acabado.
À noite daquele dia combinamos detalhes para a nossa volta ao Rio, aí pelo fim do mês. Helena já tinha pensado em tudo. Estava segura de si, era forte. Sobretudo, não temia em abandonar a criança. Nem sequer se comovia.
- Admirado? - perguntou-me, ao ver que a fitava com espanto.
- Sim.
- Não sabe que só os tolos se admiram?
- Eu sou um tolo, Helena, sempre lhe disse isso.
- Você também já me chamou de tola...
- Sim, nós somos tolos, mas você é... forte demais...
- Por quê?
- Ora... - dei de ombros - a criança, isso tudo...
- Eu quis isso tudo. E estou contente. Não temo o que possa vir. Desprezo o futuro e tenho raiva do passado. É tudo.
- Um dia, talvez a carne de mãe se revolte e você queira o filho de volta... não suporte a farsa...
Ela riu espantada. Parecia que eu havia dito uma besteira sem tamanho.
- Acho que ainda não contei tudo...
Foi a minha vez de rir.
- E ainda tem alguma coisa para contar? Não basta o que já teve?
- Não. Você ignora uma coisa importante. Depois daquela discussão diante de mamãe tentei escrever a seu irmão contando que ia ter um filho. Você me fez reconsiderar mais tarde. Uma noite, porém, acordei sem sono, não tinha nada o que fazer, não podia ir tomar banho nua no rio... Apanhei papel e comecei a escrever, a contar tudo. Coloquei a carta num envelope, subscritei e deixei aqui na sala, junto ao radiozinho. No dia seguinte você apanhou o envelope e levou-o ao correio. Trouxe até os recibos, lembra-se?
Lembrava-me. Sempre que escrevia, ela me entregava a carta e pedia: “Coloque isso para ele”. Mas certa vez encontrei uma carta encostada no radiozinho, e sem perguntar nada, levei-a à estação. Não poderia supor que Helena lançara à sorte o destino da carta: escrevera por desabafo. Se eu pactuasse, a carta chegaria ao destino. Minhas próprias mãos fizeram o resto.
- Você contou tudo?
- Quer dizer, tudo, tudo, não. Disse apenas que ia ter um filho que não era dele e que você estava me ajudando dentro de suas possibilidades. Tudo verdade, não é? Disse que não renunciaria ao filho, que se ele quisesse poderia ficar mesmo por lá. Se quisesse me matar, podia vir. Se quisesse se matar, também podia.
Aquilo era absurdo. Um completo e extravagante absurdo. Helena estranhou o meu silêncio:
- Anda! Diga alguma coisa! O que é que está pensando?
Observei vagamente:
- Ele me tomará como seu cúmplice nessa história toda. Isso é desagradável. Sou um cretino, mas não gosto de trair. Complexo de quem nasceu traído.
Helena deu um riso largo, divertido:
- Qual! Você tomado como cúmplice!...
Ficou séria.
- Olha, todo mundo pensa que você é o pai da criança. Ainda não percebeu isso?
- Sim. Sua mãe, o médico, a mulher que trata do guri, todos dão a entender isso e não chego a me amolar por tão pouco. Mas não quero que meu irmão tenha dúvidas a esse respeito. Aborrece-me pensar que ele me julgará traidor, duplamente traidor, na confiança e no amor.
- Mas, afinal, você está ficando imbecil?! Você não dizia que nada importava, os rótulos, os adjetivos...
- Sim, nada importa. Já que assim está, enfrentarei o resto.
Helena gostava de citar Shakespeare. Mania que vinha dos tempos em que cursara a Cultura Inglêsa. Aproveitava de minha ignorância para dizer muita coisa da própria cabeça rotulada por uma autoridade insuspeita:
- “O resto é silêncio”. Hamlet, terceiro ato, cena segunda.
Ela citara por citar. Mas ficou preocupada de repente:
- Nem sempre o resto é silêncio. O próprio Shakespeare admitia isso...
Riu desanuviada. Sentia que o limitado auditório pouco se importava com Shakespeare.
- Para você isso não é nada. Mas fique sabendo, Shakespeare é como os gregos: tem sempre razão. Se no Hamlet o resto é silêncio, em Romeu e Julieta é coisa diferente.
Tomou um ar trágico e declamou:
- “Quem viver mais leva o resto.”
Pegou-me a mão.
- Lembre-se sempre disso: quem viver mais leva o resto.
E para me convencer melhor:
- Romeu e Julieta, quinta cena, primeiro ato.
Na véspera do nosso regresso, quando já havia despachado a maior parte de nossas coisas e o nosso mobiliário ficara reduzido apenas ao essencial para mais uma noite, julguei de minha obrigação dissuadir Helena daquele projeto descabido de levar a criança consigo. Isso tornaria sem efeito toda a nossa fuga da cidade, todo o mistério que nos levara a Desengano. Se era para todo mundo saber e se danar, por que não ficáramos no Grajaú, a enfrentar as iras da sociedade e das vizinhas ofendidas?
O sacrifício fora feito, era só aproveitá-lo. Não desperdiçá-lo. Se a criança ficasse em Desengano, permaneceria em pé o plano anterior e restaria ainda alguma esperança de se normalizar a situação. Meu irmão poderia, não diria perdoar, mas esquecer, e ela mesma poderia esquecer - era tão importante ela esquecer também! Tudo voltaria ao normal, remendado, mas inteiro.
Com a presença da criança isso seria impossível. Ela perpetuaria o adultério para todo o sempre. Diante dela teriam todos sempre presente a nódoa que afinal pertencia a todos. Meu irmão jamais tragaria as duas coisas juntas: o chifre e o bastardo. Um, talvez ele engolisse.
Meus argumentos fizeram Helena sorrir. Ficou meio estrábica, chamou-me de burguês imbecil. No fundo, eu a admirava mais ainda por causa disso. Era a mulher voluntariosa de sempre. Sabia querer realmente alguma coisa. E, na certa, deveria saber amar.
À tardinha, logo após o jantar - que foi mais cedo - Helena quis dar umas voltas pelas redondezas, para se despedir daquela paisagem que nos unira. Fomos até o rio. Pela primeira vez ela não ficou na margem. Saltou também as pedras comigo, de mãos dadas, e foi conhecer pessoalmente a grota donde eu tirara, pacientemente, tantas traíras.
- Era aqui?
- Sim.
- Como é bonita!
Curvou-se para melhor apreciar, ver até o fundo. A água estava límpida, refletia a cor rosada do céu que se preparava para receber a noite.
Helena voltou à margem, catou pedrinhas e regressou. Jogou as pedrinhas espaçadamente, divertindo-se em ver formar os círculos que tremiam à superfície e morriam aos poucos nos recôncavos da grota.
- Está espantando as traíras - disse-lhe.
- Que mal tem isso? Preferível espantá-las que fisgá-las à traição, como você fazia. O que é pior: acordar ou comer as traíras?
- Sei lá. O problema não é meu, é delas. Eu não tenho problemas.
Helena colocou-me nas mãos uma pedra, guardando outra consigo:
- Agora, juntos, vamos atirar...
Ela mesma contou:
- Um... dois... e... três!
Jogamos as pedras. Dois círculos nasceram à flor da água e se misturaram em convulsões de pequenas ondas. Helena curvou-se tanto que perdeu o equilíbrio. Segurei-a então pela cintura, com a minha mão forte. Ela se refez rapidamente. Encarou-me com aquele olhar que me colocava a nu:
- Então, o senhor não tem problemas...
- Não, Helena. No momento o meu problema é não deixar você cair no meio das traíras. O que Helena iria fazer no meio das traíras?
Continuava a segurá-la pela cintura. Ela se deixava enlaçar, um pouco entregue. O sol que morria - o nosso último sol - colocava em seus cabelos um tom de ouro sujo.
Helena cruzou as mãos em minha cabeça. Apertou-a, olhando-me nos olhos, quase que pedindo. Atraiu-me a si. Eu também a puxei para mim.
Senti primeiro a umidade de seus lábios. Depois o mormaço de sua língua. Nossos dentes se encontraram, duros, com um fragor de batalha. Pela sua garganta sentia subir um cheiro de vida, um calor estranho de carne. Fechei os olhos. Helena entrava dentro de mim e me amolecia.
Não pensava em nada. Ela dentro de mim, eu dentro dela. Até que o mundo tinha suas leis mais ou menos certas.
Helena me dava a impressão de estar gozando. Sua respiração era sôfrega, gulosa, não queria perder um fôlego. O calor que lhe subia pela garganta queimava-me a boca, ardendo. Eu sofria. Sofria desesperadamente. Helena saía de dentro dela e me entrava pela boca. Mordia-me. Eu a respirava.
A tarde caiu.
O céu perdeu a cor crepuscular, acinzentou rapidamente e mais rapidamente ainda escureceu.
O verde da paisagem se recolheu. Os contornos morriam. A Mantiqueira, ao longe, agonizava, amortalhada em treva.
Eu via apenas os olhos de Helena, dilatados, vagos, com aquele brilho opaco que parece gemer em silêncio. Olhos estranhos os da mulher quando goza em nossos braços. Pareciam contemplar alguma coisa de irreal, além do céu, além da tarde.
Seu rosto estava frio, gelado, cristalizado pela volúpia com que me dava a boca. Apertei-a com força. Ela gemeu, baixinho, dentro de mim.
Um trem comprido de carga apareceu na curva do rio. Vagarosamente cortou o vale. O mugido do gado saía de dentro dos vagões com um toque de melancolia dolorida que fazia mais pungente ainda o entardecer. Um cheiro de carvão queimado ficou pairando no ar. Quando o último carro sumiu pelas bandas da fazenda, eu e Helena tínhamos os olhos molhados.
Era a fumaça do trem.
O VENTRE E O RESTO
A vida era essa mesmo: uma questão glandular. Uma série de coincidências que fazem a gente existir e deixar de existir. Tudo o mais é decorrência dessas coincidências. O amor e o ódio. E o tédio também. Para que lutar contra tudo isso se eu não era nada mais que um ponto insignificante na trajetória de todas essas coincidências? A única coisa que eu podia fazer de positivo era dar um tiro na cabeça. Mas não tinha revólver nem vontade de comprar um. Um veneno serviria. Mas não é a mesma coisa a gente dizer: “Vou tomar veneno”. Dizer: “Vou dar um tiro nos miolos” tem mais ênfase, soa com eloquência, com retórica própria, tem certo sabor que nos alivia momentaneamente, ou adia nossas angústias.
“Sim, eu preciso me matar. Não agora. Seria imbecil o meu suicídio. Diriam que me encrencara com questões sentimentais. Helena pensaria que fora por causa dela, meu irmão lamentaria estar envolvido no meu drama, todos enfim seriam sórdidos e miseráveis. No necrotério procurariam minhas vísceras sentimentais, já cantadas pelo poeta. Assim não. Vou me matar quando ninguém tiver, nem eu mesmo, motivo sério ou não sério para atribuir ao meu gesto de desespero.”
Ah, aí estava um lugar-comum cretino: “gesto de desespero”. O suicídio é gesto de desespero. Ateou fogo nas vestes, lançou-se do nono andar ao solo, tomou formicida com guaraná - tudo isso é gesto de desespero. Mas aquele beijo em nossa última noite de Desengano não fora também um gesto desesperado?
Já que resolvera não me matar agora, de que adiantaria pensar na morte? Curioso, a morte nunca acontece enquanto pensamos no suicídio, marcamos datas para estourar os miolos. Se todos os dias a gente dissesse: “É hoje”, nunca morreríamos, ficaríamos eternos. Até para morrer a vida não ajuda a gente.
Fica para depois. Esperemos um pouco. Veremos o que a vida ia fazer comigo. Todo mundo tem sempre um dia em que adia a própria morte. Prefere a decomposição aos pedaços, os espasmos cerebrais, a queda dos cabelos, a uretra obstruída, o câncer no duodeno.
Vou viver por curiosidade Como um tobogã desconhecido, ignorando o que vem após cada curva, mas achando um sabor amargo em descer vertiginosamente rumo ao misterioso destino que aqueles ventres todos me haviam preparado.
Tudo podia acontecer agora. Ao menos este lado de minha vida era monótono. Meu organismo estava imune ao sofrimento. De doses pequeninas foi adquirindo essa imunidade. Sobravam alguns momentos bons, mas eu não gostava deles. Pareciam esmolas da vida, coisas dadas, com má vontade, soando falso. “Isso vai acabar daqui a pouco, por que não acaba logo?”
Isso sim, ainda me apanhava desprevenido, e eu sofria. Não sabia suportar a volta à tristeza, o retorno à liberdade. Por isso, chegava a odiar Desengano. Odiava Helena.
Odiava sobretudo o meu sobrinho postiço. Ele parecia o culpado de tudo. Nele eu podia desaguar toda a incompreensão que me acompanhava desde o ventre. Sabia que os meus problemas continuariam nele e isso era um consolo, besta, mas sempre consolo. Era também um fruto do ventre equivocado. Detestaria a vida, os homens, as mulheres. Principalmente as mulheres.
Ao invés de estimá-lo, não o suportava. Tinha completa repugnância por aquele gurizinho que começava a balbuciar uns sons imbecis, a engatinhar pelo chão como bicho. E ele não era feio. Era saudável até. Tinha os mesmos olhos de Helena, olhos quase estrábicos, profundos e irônicos. Eu não dizia a ninguém que detestava o guri. Distraía-me tratando bem o garoto. Sempre que ia ao Grajaú levava-lhe algum presente. Mas o garoto também não gostava de mim. No fundo daquele pequenino ser alguma coisa advertia-o contra o meu ódio.
Ficava irritado quando pensava que um dia o guri poderia pensar que fosse eu o seu verdadeiro pai. Um dia perguntei a Helena:
- Você já pensou na possibilidade do seu filho perguntar pelo meu pai?
- Já.
- E você dirá a verdade?
- Para que a verdade? Já viu coisa mais imbecil do que a verdade? O mundo não se sustenta na mentira? Imagine se um gongo diabólico soasse nas nuvens e a partir daquele toque todo mundo só pudesse dizer a verdade pelo tempo de cinco ou dez minutos. Quando o gongo soasse outra vez, encerrando o prazo, o que aconteceria?
- Um suicídio universal - creio eu.
- Por isso mesmo, fiel à mentira, se algum dia ele me perguntar pelo pai eu direi o que vier à cabeça. Direi que é você, por exemplo.
- Eu?
- Por que não? Mamãe está crente que o pai seja você. Chega a achar o garoto parecido... Seu irmão também deve estar pensando o mesmo. Para que incomodar tanta gente? Fique você mesmo como o pai e pronto, está acabado o assunto.
- Isso é um novo absurdo, Helena. Nós nunca tivemos isso que se chama relações sexuais. Nunca misturamos espermas. Respeitemos Desengano, com o que houve de tolo ou belo, mas respeitemos. É a única coisa que me atrevo a pedir. Porque é a única coisa que realmente possuo. O resto é o vácuo, o vácuo que enche o antes e o depois. Para que enxovalhar aquilo com os golpes de catch que fazem parte do amor comum, do amor do carroceiro, do maquinista, do deputado?
Helena ficou admirada do ardor com que me defendia:
- Você está ficando imbecil ou louco.
- Estúpido apenas. E você é uma cretina.
- Já sabia.
Fez uma careta. Deu uns passos, em volta, olhou o tal quadro de Degas, único enfeite do living da casa do Grajaú. Disse, num murmúrio:
- É. Esse garoto fez uma coisa horrível. Tornou-me cretina, tornou meu marido corno, tornou você estúpido.
E com raiva, os olhos chispando:
- Odeio o garoto!
- Todos nós o odiamos. Você, meu irmão, eu, todos o odiamos. Mas não podemos afogá-lo num tanque. Seria muito bom para ele. É necessário que ele viva até o fim.
- Você acha o tanque melhor?
- Acho. Conheci um sujeito que nasceu em situação mais ou menos parecida. Todos o odiavam. E o odiavam tanto que ninguém teve a caridade de afogá-lo num tanque. Deixaram-no viver, o que foi muito pior para ele.
- Como sabe disso?
- Ora, a gente sempre sabe.
- Nós já nos dissemos isso, não?
- Já.
Helena olhou-me fixamente. Examinou bem meus olhos. Desceu fundo às suas recordações, reviu cenas de nossa infância, comparou ideias. Finalmente suspeitou. Disse com delicadeza, como quem não quer ferir:
- Você?
Fiz que sim com a cabeça. Era a primeira vez que confessava a outra pessoa a vergonha com que nascera.
De início, Helena pareceu séria, respeitando a coisa. Mas ela não respeitava mesmo nada. Soltou uma risada clara, completa, muito alegre.
- Bem que todo mundo o achava tão diferente de seu irmão!
Ela continuava a rir. Era preferível que risse. Se me lastimasse seria pior, eu me sentiria mais miserável ainda. Mas foi ela mesma quem disse, de repente, ficando séria:
- A vida é uma porcaria!
E voltando ao seu tom habitual:
- De qualquer forma isso não redime a sua atual estupidez. Você é um estúpido agora. Igual a milhões, igual a todos...
- Tem razão, Helena. Alguma coisa me tornou estúpido. Estou me aferrando à vida com muito gosto, estou ficando um porco igual a todos. Meu ideal é a mesma lama, a lama do dia que vem depois da lama do outro dia e que os imbecis ainda acham muita coisa, isso de uma lama depois da outra. De qualquer forma, aquilo que eu fui em Desengano - tranquilo ou imbecil não sei ainda - deixou-se completamente inutilizado para viver o resto.
- Por que você precisa desse resto? Quem lhe obriga a suportar esse resto?
Ora, um resto! Eu mesmo me transformei num resto.
Meu irmão retornou três dias depois do primeiro aniversário do filho de Helena. Telegrafou-me de Recife, pedindo-me que o fosse esperar no cais. Não queria que os amigos e os colegas soubessem de sua vinda.
Era então uma celebridade universal. Seu nome chegara a ser lembrado para o prêmio Nobel do ano passado, mas as nossas autoridades diplomáticas revelaram-se de uma imbecilidade tão pasmosa que o prêmio acabou nas mãos de um holandês de duvidosos méritos, mero diluidor das teorias de meu irmão.
Nunca tinha ido esperar alguém no cais. Nunca o mar me mandara nada. Compareci pontualmente à hora marcada para o desembarque. Mas o navio não procedeu da mesma e correta forma. Passei a tarde inteira no cais, olhando os guindastes, até que os alto-falantes do Touring Club avisaram que havia um grande atraso, o navio tivera um contratempo no porto de Vitória, só chegaria no dia seguinte, ao meio-dia.
Voltei para meu apartamento em Mata-Cavalos. Telefonei para Helena:
- Como é? Alguma novidade?
- Nada. O navio só chega amanhã.
- Tanto faz. Podia não chegar nunca até.
Deitei-me. Estava sem sono, custei a dormir. Pensava em meu irmão. Voltaria para quê? Para sua família? Que família? Para a sua pátria? Que pátria? A pátria de meu irmão era a tábua de logaritmos. A família, essa ele não tinha mesmo. Eu não era bem seu irmão, Helena não era bem sua esposa e o filho, esse positivamente não era nada seu. Mas não importava que meu irmão tivesse ou não pátria ou família. Isso não contaria para a sua eternidade. Daqui a cinquenta anos falarão nele como o autor de uma teoria sobre a quadratura da hipotenusa em relação aos catetos no espaço tetradimensional. Essa seria a sua eternidade. A posteridade tem isso de bom. Não se preocupará jamais com a dimensão dos seus chifres. Preferirá a sua outra dimensão, uma dessas dimensões novas descobertas recentemente e que abalaram em seus alicerces as teorias e doutrinas de Pitágoras, Newton e outros desocupados que só servem para nos aporrinhar nos exames.
A imortalidade cancela os ângulos grotescos dos heróis, e quando não pode cancelá-los, exalta-os. Ninguém retratou Napoleão com chifres nem César numa orgia homossexual. Celebrizaram, no entanto, a calva de um e a úlcera do outro. Dessa forma, as enciclopédias de amanhã estamparão o frontispício do meu irmão com uma expressão inteligente e sagaz, com esse ar de superioridade tão próprio dos homens quando conseguem aprender as equações do segundo grau e as frações decimais.
Só eu, seu irmão pela metade, saberia que no fundo das frações, das equações e das dimensões, haveria sempre o mesmo torturado.
Acordei, em meio ao sono, com a impressão de que alguém tocara a campainha. Teria sido um sonho? Já me dispunha a dormir de novo quando outro toque me levantou de vez. Olhei o relógio: quase três horas da manhã. Quem seria àquela hora?
Abri a porta. Vi um homem magro e terroso no corredor escuro. Não sabia quem era. Pensei inicialmente que era engano, o homem procurava outro apartamento na certa. Mas aquele vulto não se mexia, não saía da minha frente.
Ia perguntar a mim mesmo se não o conhecia. Mas não tive tempo. Um cheiro estranho saía daquele corpo terroso. Essa é uma das vantagens dos homens de nariz grande: percebem coisas que os outro não percebem; adivinham cheiros; sentem, a distância, objetos, seres, angústias. Até mesmo saudades.
Sim, eu já sentira aquele cheiro. Um cheiro íntimo, antigo, apesar de vagamente desagradável. Olhei para o visitante misterioso que a noite me mandava bem nos olhos. Ele também me olhava, mais tímido que espantado. Parecia ter medo de alguma coisa. Se eu gritasse: “Vá para os infernos”, ele ia mesmo. E sofria, sofria alguma coisa de importante, alguma tortura brilhava naqueles olhos idiotas. Sim, uma tortura.
Não precisava de mais nada. Já conhecia o homem.
- O navio chegou fora do horário - disse, como a se desculpar.
Fazia quase quatro anos que não nos víamos. Entre nós dois havia um mundo de palavras a serem ditas, explicações a serem dadas, fatos a serem comentados. Mas o que ele dizia era mesmo aquilo: o navio chegara fora dos horários, atrasado primeiramente e adiantado depois. Para a sua matemática aquilo era transcendental. Mas meu irmão devia ser um matemático epidérmico.
- Esperava você amanhã - disse eu. - Fui ao cais, avisaram que o navio só chegaria ao meio-dia de hoje. Essas companhias são uma droga!
Ele concordou. E entrou pela minha sala com pouco de cerimônia. Divagou o olhar neutro pelas paredes nuas, sentou-se numa poltrona, cansado de um esforço milenar. Estranhei a ausência das malas.
- Ficaram no navio. Devo seguir viagem para Buenos Aires. O Rio me é insuportável.. Desci unicamente para... descansar um pouco...
Eu estava de pijama, desgrenhado pelo sono. Não sabia o que fazer.
- Fome? - perguntei.
- Obrigado. Ceei a bordo. Aceitaria um café.
Fui preparar o café. Meu irmão instalou-se mais à vontade, tirou o paletó e a gravata. Estava magro, ossudo, uma ligeira corcunda se pronunciava, tal qual meu pai. Foi ao banheiro, lavou o rosto, depois chegou-se à cozinha, onde eu esperava a água ferver. Quando despejei o pó na vasilha um aroma bom espalhou-se por toda a casa. Ele aspirou o perfume.
- Há muito tempo não tomo um cafezinho desses. Lá fora o negócio é diferente. O cheiro do café sempre me lembra uma porção de coisas.
- Tristes? - perguntei.
- Os adjetivos não importam.
- Isso é apenas uma frase.
- Tudo termina em frase.
Concentrou-se para saborear o café. Repetiu a dose. Bebeu-o devagar, com unção, como um sacramento. Depois pediu-me um cigarro. Estava cheio dos americanos, uma boa droga. Para atenuarem a incidência do câncer pulmonar que julgam ser causado pelo fumo, os santíssimos americanos fabricam uns cigarros que têm tanto de fumo quanto o Padre Eterno de sífilis.
Decididamente, meu irmão voltava mudado. Nunca fora dado a frases, ou a ironias. Voltara mais humano, mais quente. Sua fisionomia era mais suave, chegava a parecer espiritual. Um futuro Correggio, como dizia meu padrinho a seu respeito. Ali estava, finalmente, o Correggio. O sofrimento pode transformar isso: um porco num Correggio.
Ele percebeu que eu o observava com surpresa.
- Estou mudado, não?
- Tudo muda - respondi. - É a exigência da vida, do progresso.
- Sim. O progresso. Impelem-nos para a frente, desgraçam-nos a alma, aviltam-nos o corpo - e a tudo isso chamamos ir para a frente, progresso...
Voltamos para a sala. Sentamo-nos a fumar.
- O que você fez da vida? - perguntei.
- Resolvi equações.
- Vocês, matemáticos, só se preocupam com o universo, só cogitam de universo para cima. E sabe ao menos o que é o universo?
Meu irmão pareceu divertir-se com a pergunta:
- Einstein definiu-o: Gik = 0. Ou mais explicitamente: RiK, = 0, RiK, 1 + i + R1 = 0.
Baixou os olhos e disse, com humildade:
- À falta de outra, eu aceito mesmo essa. É simples, lógica, e até certo ponto bela.
- É - disse eu desanimado -, você tem razão. Pena que para mim tudo isso seja muito vago, uma estupidez de muito mau gosto...
- Mas o universo também é.
- Eu não entendo o universo.
- Eu tampouco. Apenas o defino. É diferente.
Não podíamos passar a noite conversando sobre alta matemática. Ele não queria voltar para o navio, já há mais de uma semana dormia naquela geringonça que balançava sobre as águas, queria uma noite em cima de coisa mais sólida. Emprestei-lhe um pijama e cobertas. Deitei-o no sofá-cama que levara para Desengano. E voltei ao meu quarto, para tentar dormir novamente. Mas a excitação da visita não me dava sossego. Sentia que meu irmão também não conseguiria dormir. E aproveitando uma deixa, quando percebi que ele procurava cigarros, levantei-me, dei a noite como encerrada.
- Já é tempo - disse-me ele. - Pouco conversamos antes. E afinal somos irmãos...
- Pela metade - disse-lhe eu, enfrentando o seu olhar.
Ele pareceu surpreso:
- Como? Você também sabe?
- Quem lhe pergunta sou eu. Como é que também sabe?
Era evidente que nós não iríamos contar como soubéramos. Essas coisas são assim. “A gente sempre sabe.” É tudo. Além do mais o problema era mais meu do que dele. Mesmo assim ele foi cortês. Perguntou se eu sofrera muito.
- Isso não mais importa - respondi. - Tenho hoje uma perspectiva estranha sobre a nossa infância, sobre nossos pais. Não me identifico em nada com o sujeito que você conheceu em menino. Essa foi a minha maneira de ser fiel à infância.
- Comigo o negócio foi diferente - disse ele.
Parecia sofrer. Mesmo assim foi forte e desabafou:
- Sou justamente isso. Um sujeito que não cresceu por dentro, que ficou o mesmo o tempo todo. Intacto. Isso no fundo é amargo. Dói.
Meu irmão pareceu meditar nas próprias palavras. Depois disse, sem emoção alguma:
- O mais curioso é que fomos amar a mesma mulher...
- Helena?
- Sim. Mas não importa mais. Sobrou de tudo isso, de toda a minha experiência, uma coisa importante: eu mesmo. E vou dispor dela com o máximo de liberdade pela primeira vez na vida. Sem nenhum vínculo. Sem nenhum sentimento. Precisei regressar para perceber isso: não tenho mais nenhum sentimento. Nem sequer sofro.
Acendeu um cigarro e foi até a janela ver o dia que nascia. De repente perguntou:
- Você já pensou no suicídio?
- Já.
- E daí?
- Ótimo. Principalmente quando se descobre a inutilidade desse GiK igual a zero.
- Também acho. Já pensou em matar-se?
- Já. Todo mundo pensa um dia nisso. Só que programei o meu para daqui a sete ou oito anos.
- Coisa idiota, esses sete ou oito anos...
- Não, não é idiota. Idiota é a gente se matar por temperamento, por decisão do momento, imprevistamente, por imposição de uma paixão qualquer. O belo é a gente acabar com tudo quando não houver motivos precisos, nem externos nem internos. Matar-se como se matam os sentimentais abandonados, os amantes traídos ou os comerciantes falidos - eis aí a prostituição do suicídio.
- E a dor de corno?
- Você se considera corno?
- Não. Descobri que amei fantasmas.
- E eles te traíram?
- Pior. Não existiam.
- E agora?
Levantou-se. Parecia nervoso.
- Não tem mais agora. Quando se amou fantasmas e se descobre que eles não existiram, que nunca existiram, não há mais agora, nem há antes nem depois. E quando não se tem mais agora é-se eterno.
- Isso existe?
- Que seja outro fantasma, não importa. Será o último. O definitivo.
- E depois?
- O eterno se basta a si mesmo. Não tem depois...
- O seu eterno é muito parecido com o nada.
- O nada é que é eterno.
- E daí?
- A pergunta é de Platão, sabia disso?
- Não.
- Em todo o caso, mãos à obra. Iniciar a viagem. Transpor o... o...
Ele hesitava.
- É o nome de um rio. César transpôs esse rio. De um lado, um homem, do outro lado, um Deus. Ah! o Rubicão!...
- Há sempre um rio no meio...
- Isso chega a ser monótono. Há sempre um rio.
Parou de falar. Ficou olhando o ar, com uma cara vazia.
- Vai ver Helena? - perguntei.
- Para quê?
- Afinal, o seu fantasma andou por perto, não?
- Não. O fantasma nunca saiu de dentro de mim. Ela me roubou por uns tempos, criando um outro fantasma. Mas houve outros também.
- Outros?
- Os fantasmas não têm sexo...
- Não compreendo.
- Nem precisa compreender. O fato é que houve outros.
Não sei por que lembrei-me do Julinho, colega de infância. Sim, a vida era uma porcaria. Creio que disse isso em voz alta. Pelo menos, ele pareceu me entender:
- Enfim, restei eu ainda. Sobrevivi aos fantasmas. Ou melhor, sou agora o único fantasma.
E triste:
- Oh, José, como isso é cruel!
Resolvi ficar calado. Já havia feito muitas perguntas. Agora quem devia perguntar era ele. A vida é assim mesmo, uma brincadeira de salão em que se pergunta e se responde, um de cada vez.
- Você sempre a amou, não?
A pergunta estalou no ar. subitamente. Fiquei embaraçado. Esperava tudo, menos aquela pergunta tão fria, tão incômoda, tão sem resposta. Respondi finalmente:
- Sim. Sempre amei Helena. Antes e depois de você.
Ele pareceu aliviar-se com a resposta. Sentou-se novamente. Vestido de pijama, mais se parecia ainda com papai.
- Nosso pai morreu de pijama. Sabe que você está a cara dele?
Ele não deu importância. Olhava obstinadamente para o chão. Só o chão parecia lhe interessar. A vida de um homem mais cedo ou mais tarde atinge aquele ponto em que só o chão importa. Tudo então fica sendo chão. Nada mais antinatural que a verticalidade, a altura das coisas e das pessoas. Tudo termina em chão. Tudo só pode ser medido quando se tem a horizontalidade do chão.
O dia nascera de vez. Os bondes passavam com ruído, rumo à Lapa. Barulho de ferro rodando subia até a sala e nos incomodava. Comecei a sentir sono. Tinha o dia à minha inteira disposição, sempre tinha os dias à minha inteira disposição. Podia dormir, ir trabalhar, podia fazer o que quisesse.
Meu irmão não. Tinha problemas, negócios interiores a resolver. Viera tomar hausto. Convencer-se de que havia amado fantasmas e que esses fantasmas não mais existiam porque nunca haviam existido. Para ter certeza de que o seno A mais o cosseno B era igual a X ele precisou ir à Bélgica, à Itália, ao diabo. Para se convencer de que os fantasmas não existiam, precisou voltar. Mas isso era problema dele.
De repente, sem mais nem menos, perguntou:
- Posso perguntar pelo pai do filho de Helena?
- Pode.
- Está feita a pergunta.
Era a minha vez de falar. Até então nós evitáramos o assunto. Mas ele existia sobre as nossas cabeças. Pensei ainda: se ele quer se matar, por que não se mata logo, ignorando tudo? Mas o porco queria saber!
- O pai do filho de Helena não existe - respondi.
- Muitos?
- Não sei. Talvez muitos. Talvez um só.
- Isso não o exime. Você não está mentindo. Talvez não seja o único amante de Helena. Essa dúvida você também a tem. Mas eu não tenho dúvida. Você é o pai do filho de Helena. Isso é uma reparação que eu lhe devia. Estamos quites, não?
Resolvi não dizer nada. Ele não me acreditaria. Além do mais, achei divertido aquilo de reparação, de compensação. Meu irmão era um matemático, para ele tudo tendia ao equilíbrio. Aquela suposição era matematicamente viável. Se a vida fosse mesmo uma coisa arrumadinha, eu deveria ter sido o pai da criança.
- A coisa mais besta do mundo é a verdade - disse como resposta.
- Helena sempre me dizia isso - concordou ele. - Os homens preferem a mentira, por isso os deuses abandonaram a terra...
- Foi melhor assim. Prefiro o mundo com as mentiras e sem os deuses. Os deuses nunca me consolaram. E as mentiras às vezes consolam. O passado da gente não é nada mais que uma mentira que nós torcemos a nosso modo, dentro dos gabaritos dos nossos fantasmas, para usar de sua expressão. E o futuro também é uma mentira que nós esperamos que aconteça dentro de gabaritos de outros fantasmas. Sobra o presente. Mas o presente é a única coisa que não existe. Vivemos sempre a esperar e a ruminar as coisas que já aconteceram ou vão acontecer. O presente nem transição é.
Meu irmão admirou-se:
- Você ficou poeta ou louco?
- Nem uma coisa nem outra. Estúpido apenas.
- E o que o tornou estúpido?
Desconversei:
- Você também veio mudado. Saiu estúpido, voltou purificado - penso eu. Não sei bem o que lhe alterou a vida... Quanto a mim foi uma certa...
- Felicidade...
- Não...
- Alegria...
- Também não. É difícil, aliás, definir aquilo que me alterou a vida. Não sei álgebra para dizer os G, os K e os zeros. Mas talvez tenha sido uma certa tranquilidade...
- Tranquilidade?
- Sim. Tranquilidade. A humilde certeza de que nada se pode fazer a não ser esperar que as coisas aconteçam.
A frase saíra espontânea, como se de há muito estivesse gravada em meu coração, amadurecida em minha cabeça.
Meu irmão prestou atenção a ela. Meditou-a bastante.
- Sim. A tranquilidade. Você a definiu com uma frase em que só há um adjetivo: humilde.
E para dentro de si mesmo:
- Esse deveria ser o único adjetivo do homem. É o mais necessário. O mais verdadeiro. O único necessariamente verdadeiro.
Meu irmão suicidou-se na tarde daquele dia. Fomos dormir pela manhã quase, após gastarmos a noite numa conversa inútil. Quando acordei, pouco depois do meio-dia, encontrei-o morto, dentro da banheira cheia d’água, os pulsos abertos. A água um pouco morna: o filete de sangue boiava obscenamente, entre as suas coxas, desgrudado dos pulsos.
Depois de morto, voltava a mesma cara balofa. O homem trevoso que me chegara na véspera fora passageira visão. Na banheira encontrei-o tal qual em nossa infância, amorfo, meio pulha, só não estava corado.
Sua morte foi um grande estorvo. A polícia fez tudo e os amigos fizeram o resto. Mesmo assim tive algum trabalho. Queriam explicações, disse que ele tinha descoberto um câncer no piloro. Engoliram o câncer no piloro.
A perda foi irreparável para a pátria - proclamou um deputado da tribuna da Câmara.
Perdoei muita coisa a meu irmão. Menos aquele último estorvo. Podia ter morrido em tantas partes do mundo! Afogar-se no Tibre, no Guadalquivir, no Sena, no Mississípi - há rio em toda a cidade -, mas o calhorda foi escolher a banheira de Mata-Cavalos, a minha banheira!
Helena não foi ao enterro. Recebeu a notícia com calma:
- Era uma das coisas que ele podia fazer.
Três anos depois se juntou a um visionário. Foram procurar a ossada de um hipotético cientista inglês perdido nas selvas. Morreram mesmo por lá, picados por mosquitos de febre má. Li nos jornais que outro inglês veio correndo da Inglaterra para procurar as ossadas dos dois.
Deixou-me um bilhete e o filho para tomar conta.
O bilhete dizia: “Quem viver mais leva o resto”.
Fiquei com o resto.
O garoto é odioso. Tem o mau gosto de ir se parecendo comigo. Eu trato bem dele para me distrair e purificar.
Outro dia quis uns canários que vimos numa casa da rua da Assembleia. Chorou, queria os canários, o reino dele pelos canários, fez malcriação em plena rua, cobriu-me de opróbrio, ameaçou dizer nomes.
Comprei-lhe os canários.
Os canários cantavam o dia inteiro e me aporrinhavam.
- Por que eles cantam? - perguntou-me o guri.
- Eles têm um apito de matéria plástica nas tripas - respondi com má vontade.
Ontem, quando cheguei em casa, os canários estavam mortos, as tripas de fora. Procurei pelo garoto. Ouviu a espinafração com o mesmo olhar de Helena, aquele olhar meio estrábico que zombava de tudo e me colocava sem jeito.
Perguntei por que havia feito aquilo.
- Queria ver se tinham mesmo o apito nas tripas.
Como prêmio, levei-o ao cinema. Fomos de mãos dadas, comprei-lhe balas, prometi-lhe um canivete.
- Não há dúvida, esse menino promete, não há dúvida, esse menino promete.
Carlos Heitor Cony
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