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Os Irmãos Karamazov - p4 / Dostoiévski
Os Irmãos Karamazov - p4 / Dostoiévski

 

 

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Os Irmãos Karamazov

 

O DIA FATÍDICO

No dia seguinte aos acontecimentos que narramos, às 10 horas da ma­nhã, foi aberta a sessão do tribunal e começou o julgamento de Dimítri Karamázov.

Devo declarar previamente que me é impossível relatar todos os fatos na sua ordem detalhada. Tal exposição demandaria, creio, um grosso volume. De modo que não me queiram mal por limitar-me ao que me pareceu mais impressionante. Pode ser que tenha tomado o acessório pelo essencial e omitido traços característicos... Aliás, é inútil descul­par-me... Faço o melhor que posso e os leitores saberão vê-lo.

Antes de penetrar na sala, mencionemos o que causava a surpresa geral. Todo mundo conhecia o interesse despertado por aquele processo impacientemente esperado, as discussões e suposições que provocava ha­via dois meses. Sabia-se também que aquele caso tivera repercussão em toda a Rússia, mas sem se imaginar que ele pudesse suscitar semelhante emoção em outra parte que não entre nós. Veio gente, não somente da sede da província, mas de outras cidades e até mesmo de Moscou e de Petersburgo, juristas, notabilidades, bem como senhoras. Todos os car­tões foram arrebatados num abrir e fechar de olhos. Para os visitantes de destaque, haviam reservado lugares por trás da mesa que presidia o tribunal; instalaram-se ali cadeiras, o que jamais se vira. As senhoras, bastante numerosas, formavam pelo menos a metade do público. Havia tantos juristas que não se sabia onde metê-los, estando todos os convi­tes distribuídos desde muito tempo. Construiu-se à pressa no fundo da sala, por trás do estrado, uma separação no interior da qual tomaram eles lugar, dando-se por felizes em poderem ficar mesmo de pé, porque haviam retirado todas as cadeiras, a fim de obter-se espaço, e a mul­tidão reunida assistiu ao julgamento de pé, em massa compacta. Cer­tas senhoras, sobretudo as recém-chegadas, mostraram-se nas galerias excessivamente enfeitadas, mas a maior parte não pensava na toalete. Lia-se em seus rostos uma curiosidade ávida. Uma das particularidades daquele público, digna de ser assinalada e que se manifestou no correr dos debates, era a simpatia da enorme maioria das senhoras por Mítia, que desejavam ver absolvido. Talvez porque tivesse ele a reputação de cativar os corações femininos. Contava-se com a presença das duas rivais. Catarina Ivânovna sobretudo excitava o interesse geral; contavam-se coisas espantosas a seu respeito e de sua paixão por Mítia, apesar do crime deste. Lembravam seu orgulho (não fizera visitas quase a nin­guém), suas "relações aristocráticas". Dizia-se que tinha ela a intenção de pedir ao governo autorização para acompanhar o condenado ao pre­sídio e casar-se com ele nas minas, embaixo do solo. A aparição de Grúchenhka não despertava menos interesse, esperava-se com curiosi­dade o encontro em plenário das duas rivais, a jovem aristocrata e a cortesã. Aliás, nossas damas conheciam melhor Grúchenhka, que "tinha posto a perder Fiódor Pávlovitch e seu desgraçado filho", e a maior parte se admirava de que uma mulher tão ordinária, nem mesmo boni­ta, tivesse podido tornar a tal ponto apaixonados o pai e o filho. Sei pertinentemente que em nossa cidade sérias querelas de família rebenta­ram por causa de Mítia. Muitas senhoras disputavam com seus maridos, em conseqüência do desacordo a respeito daquele triste caso, e com­preende-se que estes chegassem ao recinto, não somente mal dispostos para com o acusado, mas enraivecidos contra ele. Em geral, ao contrá­rio das mulheres, o elemento masculino era hostil ao detento. Viam-se rostos severos, carrancudos, outros encolerizados e isto na maioria. É verdade que Mítia insultara muitas pessoas, durante sua permanência en­tre nós. Decerto, alguns espectadores estavam quase alegres e bastante indiferentes à sorte de Mítia, embora interessados pelo resultado do ca­so; a maior parte desejava o castigo do culpado, salvo talvez os juristas, que só encaravam o processo do ponto de vista jurídico contemporâneo, negligenciando o lado moral. A chegada de Fietiukóvitch, de grande reputação por causa de seu talento, agitava todo mundo; não era a pri­meira vez que vinha ele à província advogar em processos criminais de repercussão, dos quais se guardava depois por muito tempo a lembran­ça. Circulavam anedotas sobre nosso procurador e sobre o presidente do tribunal. Contava-se que o procurador tremia ao ter de tornar a encon­trar-se com Fietiukóvitch, que eram antigos inimigos, já em Petersburgo, no começo de suas carreiras; que o nosso suscetível Ipolit Kirílovitch, que se julgava lesado desde muito, porque não era convenientemente apreciado o seu mérito, havia retomado coragem com o caso Kara­mázov e sonhava mesmo reerguer sua reputação embaciada, mas que Fietiukóvitch lhe causava medo. Quanto ao temor de Fietiukóvitch, essas asserções não eram totalmente justas. Nosso procurador não era desses caráteres que se deixam levar diante do perigo, mas, pelo contrário daqueles cujo amor-próprio aumenta, exalta-se, precisamente na propor­ção do perigo. Em geral, nosso procurador era demasiado ardente e impressionável. Punha por vezes toda a sua alma num negócio, como se de sua decisão dependessem sua sorte e sua fortuna. No mundo ju­diciário, sorriam dessa singularidade, que valera a nosso procurador certa notoriedade, maior do que não se teria podido crer de acordo com sua situação modesta na magistratura. Riam sobretudo de sua paixão pela psicologia Na minha opinião, todos se enganavam; nosso procurador era, eu creio, dum caráter bem mais sério do que muitos pensavam. Mas aquele homem doentio não soubera colocar-se no início de sua carreira, nem depois.

Quanto ao presidente do tribunal, era um homem instruído, humano, conhecendo praticamente a causa e com as idéias mais modernas. Tinha certo amor-próprio, mas pouca ambição. O principal objetivo de sua existência consistia em ser um progressista. Aliás, tinha relações, fortuna. Verificou-se mais tarde que se interessava bastante vivamente pelo caso Karamázov, mas somente num sentido geral; como fenômeno clas­sificado, encarado como a resultante de nosso regime social, como a característica da mentalidade russa, etc. Quanto ao caráter particular do caso, à personalidade dos seus atores, a começar pelo acusado, isso não lhe apresentava senão um interesse vago, abstrato, como convinha aliás, talvez.

Muito tempo antes da hora, a sala estava repleta. É a mais bela da cidade, vasta, alta, sonora. À direita do tribunal, que tinha assento sobre um estrado, tinham instalado uma mesa e duas filas de cadeiras para o júri. À esquerda se encontrava o lugar do acusado e de seu de­fensor. No meio da sala, perto dos juizes, as peças de convicção figura­vam sobre uma mesa: o roupão de seda branca de Fiódor Pávlovitch, ensangüentado; o pilão de cobre, instrumento presumido do crime; a camisa e a sobrecasaca de Mítia, toda manchada perto do bolso onde metera ele o lenço; o dito lenço, onde o sangue formava uma crosta; a pistola carregada em casa de Pierkhótin para o suicídio de Mítia e tirada furtivamente por Trifon Borísovitch, em Mókroie; o envelope dos 3 000 rublos destinados a Grúchenhka, a fita côr-de-rosa que o amar­rava e outros objetos que esqueci. Mais longe, no fundo da sala, man­tinha-se o público, mas diante da balaustrada tinham disposto cadeiras para as testemunhas que ficariam na sala depois de seu depoimento. Às 10 horas apareceu o tribunal, composto do presidente, dum assessor e dum juiz de paz honorário. O procurador chegou no mesmo instante. O presidente era robusto, baixo e gordo, com o rosto congestionado, ho­mem duns cinquenta anos, de cabelos grisalhos cortados curtos e con­decorado. O procurador pareceu a toda gente estranhamente pálido, de tez quase verdoenga, emagrecido por assim dizer subitamente, porque eu o havia visto na antevéspera no seu estado normal. O presidente co­meçou por perguntar ao oficial de justiça se todos os jurados estavam presentes... Mas é-me impossível continuar assim, tendo-me escapado certas coisas e sobretudo porque, como já o disse, o tempo e o lugar me faltariam para um relato integral. Sei somente que a defesa e a acusação só recusaram pequeno número de jurados. O júri compunha-se de quatro funcionários, dois comerciantes, seis camponeses e pequenos burgueses de nossa cidade. Muito tempo antes do julgamento, lembro-me de que na sociedade perguntavam, sobretudo as senhoras: "Será possível que um caso de psicologia tão complicada seja submetido à decisão de funcionários e de mujiques? Que é que eles compreen­derão disso?" Efetivamente, os quatro funcionários que faziam parte do júri eram gente modesta, já grisalha, exceto um, pouco conhecidos em nossa sociedade, tendo vegetado com mesquinhos orde­nados; deviam ser casados com velhas, impossíveis de exibir, e ter uma ninhada de meninos, talvez descalços; as cartas encantavam-lhes os la­zeres e não tinham, bem entendido, jamais lido coisa alguma. Os dois comerciantes tinham o ar calmo, mas estranhamente taciturno e imóvel, estando um deles barbeado e trajado à européia, e o outro, de barba grisalha, trazia no pescoço uma medalha. Nada a dizer dos pequenos burgueses e camponeses de Skotoprigonievsk. Os primeiros assemelham-se bastante aos segundos e trabalham como eles. Dois dentre eles usa­vam também traje europeu, o que os fazia parecerem mais sujos e mais feios talvez que os outros, tanto que todos perguntavam a si mesmos involuntariamente, como o fiz, olhando-os: "Que pode essa gente compreender mesmo dum tal caso?" Não obstante, seus rostos, rígidos e carrancudos, mostravam uma expressão imponente.

Enfim, o presidente abriu a sessão declarando ao auditório que ia dar-se início ao julgamento do crime de que foi vítima o conselheiro titular aposentado, Fiódor Pávlovitch Karamázov... Não me recordo bem como o disse. Os oficiais de justiça tiveram ordem de introduzir o acusado e apareceu Mítia. Reinou profundo silêncio na sala. Poder-se-ia ouvir uma mosca voar. Mítia causou-me uma impressão das mais des­favoráveis. Apresentou-se como um janota, de roupa nova, luvas lus­trosas, roupa branca fina. Soube depois que ele encomendara para aque­le dia uma sobrecasaca em Moscou, em casa de seu antigo alfaiate, que havia conservado suas medidas. Avançou a grandes passos, rígido, olhan­do fitamente à sua frente, e sentou-se com ar impassível. Apareceu ao mesmo tempo seu defensor, o famoso Fietiukóvitch; um murmúrio dis­creto percorreu a sala. Era um homem grande e seco, de pernas finas, dedos exangues e afilados, cabelos curtos, o rosto imberbe, e seus lábios finos pregueavam-se por vezes num sorriso sarcástico. Parecia ter qua­renta anos. O rosto teria sido simpático não fossem os olhos, desprovi­dos de expressão e muito aproximados do nariz, comprido e delgado. Em suma, aquela fisionomia lembrava um pássaro. Estava de casaca e de gravata branca. Lembro-me do interrogatório de identificação. Mítia respondeu com uma voz tão forte que surpreendeu o presidente. De­pois fizeram leitura da lista das testemunhas e peritos. Quatro dentre ele faltavam: Miúsov, que voltara a Paris, mas cujo depoimento figu­rava no processo; a Senhora Khokhlakova e o proprietário rural Mak­símov, por motivo de doença, e Smierdiákov, falecido subitamente, co­mo o atestava um relatório da polícia. A notícia de sua morte causou sensação. Muitos, no público, ignoravam ainda o seu suicídio. O que impressionou sobretudo foi uma frase de Mítia a esse respeito:

— Para cão, morte de cão! — exclamou ele.

Seu defensor adiantou-se para ele, o presidente ameaçou-o de tomar medidas severas no caso de novo insulto. Mítia repetiu várias vezes ao advogado, à meia voz e sem arrependimento aparente:

— Não o farei mais! Escapou-me. Não recomeçarei.

Esse episódio não testemunhava em seu favor aos olhos dos jurados e do público. Dava uma amostra de seu caráter. Foi sob essa impres­são que o escrivão leu o libelo acusatório. Era conciso, limitando-se à exposição dos principais motivos de acusação; não obstante, fiquei viva­mente impressionado. O escrivão lia com uma voz nítida e sonora. Aque­la tragédia aparecia em relevo, alumiada por uma luz implacável. De­pois do que, o presidente perguntou a Mítia:

— Acusado, reconhece-se culpado? Mítia levantou-se.

— Reconheço-me culpado de embriaguez, de devassidão e de pre­guiça — disse ele com exaltação. — Queria corrigir-me definitivamen­te, na hora mesma em que a sorte me feriu. Mas estou inocente da mor­te do velho, meu pai e meu inimigo. Não o roubei tampouco, não, não sou capaz disso. Dimítri Karamázov é um canalha, mas não um ladrão!

Sentou-se de novo, a fremir. O presidente exortou-o a responder uni­camente às perguntas. Em seguida, foram chamadas as testemunhas para prestar juramento. Os irmãos do acusado foram dispensados dessa for­malidade. Depois das exortações do padre e do presidente, mandaram pa­ra fora as testemunhas para serem de novo chamadas uma a uma.

 

TESTEMUNHOS PERIGOSOS

Ignoro se as testemunhas de acusação e de defesa foram agrupadas pelo presidente e em que ordem se propunha chamá-las. É provável. Em todo o caso, começou-se pelas testemunhas de acusação. Repito que não tenho a intenção de reproduzir integralmente os interrogatórios. Aliás, seria em parte supérfluo, porque a acusação e a defesa resumi­ram claramente a marcha e o sentido do caso, bem como os depoimentos das testemunhas. Anotei integralmente por vezes aqueles dois notáveis dis­cursos que citarei a seu tempo, da mesma maneira que um episódio ines­perado do julgamento, que influiu indubitavelmente no seu desenlace fatal. Desde o começo, uma particularidade daquele caso afirmou-se aos olhos de todos: a força extraordinária da acusação, em relação aos meios da defesa. Todo mundo compreendeu logo isso, quando se viu os fatos agruparem-se, acumularem-se e o horror do crime exibir-se pouco a pouco à plena luz. Dava-se conta o público de que a causa estava bem clara, que a dúvida era impossível, que os debates seriam apenas mera formalidade, estando mais que demonstrada a culpabilidade do acusado. Penso mesmo que nem dúvida havia para todas as senho­ras que aguardavam com tanta impaciência a absolvição do interessante acusado. Mais ainda, parece-me que se sentiriam elas aflitas diante de uma culpabilidade menos evidente, porque isso teria diminuído o efeito do desenlace, quando se absolvesse o criminoso. Coisa estranha é que todas as senhoras acreditaram na absolvição quase até o derradeiro mi­nuto. "Ele é culpado, mas absolvê-lo-ão por humanidade, em nome das idéias novas", etc. Eis por que haviam acorrido com tanto açodamen­to. Os homens interessavam-se sobretudo pela luta entre o procurador e o famoso Fietiukóvitch. Todos perguntavam a si mesmos com espan­to: que poderá fazer de uma causa perdida de antemão Fietiukóvitch, com todo o seu talento? De modo que o observavam com uma atenção intensa. Mas Fietiukóvitch ficou até o fim como um enigma para to­dos. As pessoas experimentadas pressentiam que tinha ele um sistema, que perseguia um objetivo, mas era quase impossível adivinhar qual. Sua segurança saltava no entanto aos olhos. Além disso, notou-se com sa­tisfação que, durante sua curta estada entre nós, se pusera notavelmente a par do caso e havia-o estudado em todos os seus detalhes. Admirou-se em seguida sua habilidade em desacreditar todas as testemunhas da acusação, em confundi-las tanto quanto possível e sobretudo em man­char-lhes a reputação moral, e, por conseqüência, seus depoimentos. Aliás, supunha-se que ele assim agia muito por jogo, por assim dizer, por coquetismo jurídico, a fim de pôr em ação todos os processos advo­catórios, porque pensava-se com razão que aqueles "denegrimentos" não lhe proporcionariam nenhuma vantagem definitiva, e ele próprio, pro­vavelmente, o compreendia melhor que ninguém; devia ter em reserva uma idéia, uma arma oculta, que revelaria no momento querido. No instante, consciente de sua força, parecia divertir-se. Assim, quando in­terrogou Gregório Vassílievitch, o antigo criado de quarto de Fiódor Pávlovitch, que afirmou ter visto a porta da casa aberta, o defensor aferrou-se a ele, quando chegou sua vez de fazer-lhe perguntas. Gre­gório Vassílievitch apareceu à barra das testemunhas sem se mostrar absolutamente perturbado pela majestade do tribunal ou pela presença do numeroso público. Depôs com a mesma segurança com que o teria feito se estivesse a sós com sua mulher, mas com mais deferência. Era impossível confundi-lo. O procurador interrogou-o muito tempo a res­peito de particularidades da família Karamázov. Gregório traçou dela um quadro sugestivo. Via-se que a testemunha era ingênua e imparcial. Malgrado todo o seu respeito pelo antigo patrão, declarou que este fora injusto para com Mítia e "não educava seus filhos como era pre­ciso. Sem mim, teria ele sido roído pelos piolhos", disse ele, ao falar da tenra infância de Mítia. "Tampouco, não deveria ter o pai prejudi­cado seu filho no referente aos bens que herdara da mãe. " Tendo-lhe o procurador perguntado sobre que se baseava para afirmar que Fiódor Pávlovitch prejudicara a seu filho por ocasião do acerto de contas, Gre­gório, para espanto geral, não apresentou nenhum argumento decisivo, mas persistiu dizendo que aquele acerto não fora justo, e que Mítia de­veria ter recebido ainda alguns milhares de rublos. A este propósito, interrogou o procurador, com uma insistência particular, todas as tes­temunhas que se presumia estivessem ao corrente, inclusive os irmãos do acusado, mas nenhuma delas o esclareceu duma maneira precisa, cada qual afirmando a coisa sem poder fornecer dela uma prova mais ou me­nos exata. O relato da cena na mesa, que Dimítri Fiódorovitch irrom­peu na sala e bateu em seu pai, ameaçando de voltar para matá-lo, pro­duziu uma impressão sinistra, tanto mais quanto o velho criado narrava com calma e concisão, numa linguagem original, o que causava muito efeito. Declarou que a ofensa de Mítia, que então lhe batera no rosto e o derrubara, estava desde muito tempo perdoada. Quanto a Smierdiákov — benzeu-se —, era um rapaz bem dotado, mas deprimido pela doença e sobretudo ímpio, tendo sofrido a influência de Fiódor Pávlovitch e de seu filho mais velho. Atestou com calor sua honestidade, contando o episódio do dinheiro achado e entregue por Smierdiákov a seu patrão, o que lhe valeu, com uma moeda de ouro, a confiança dele. Sustentou teimosamente a versão da porta aberta para o jardim. Aliás, fizeram-lhe tantas perguntas que não posso lembrar-me de todas. Por fim, foi a vez do defensor; que se informou em primeiro lugar do envelope onde, se­gundo parecia, Fiódor Pávlovitch ocultara 3 000 rublos para certa pes­soa. "Viu-o, o senhor que vivia desde tanto tempo junto de seu patrão?" Gregório respondeu que não e que não sabia da existência desse. dinhei­ro e dele só conhecendo "depois que toda gente falava". Esta pergunta relativa ao envelope fê-la Fietiukóvitch, todas as vezes que pôde, às tes­temunhas, com a mesma insistência que o procurador pusera em infor­mar-se sobre a partilha dos bens; todas responderam que não tinham podido ver o envelope, embora muitas dele tivessem ouvido falar. A persistência do defensor foi notada desde o começo.

— Agora, poderia eu perguntar-lhe — continuou Fietiukóvitch — de que se compunha esse bálsamo, ou antes essa infusão com a qual o senhor esfregou seus rins, antes de deitar-se, na noite do crime, como ressalta do inquérito?

Gregório olhou-o com ar aparvalhado e, após um silêncio, murmu­rou: "Havia salva nela".

— Somente salva, nada mais?

— E tanchagem.

— E pimenta, talvez?

— Havia também pimenta.

— E tudo isso com vodca!

— Com álcool.

Ligeiro sorriso percorreu o auditório.

— Veja-se, até mesmo álcool. Depois de ter-se esfregado a região renal, o senhor bebeu o resto da garrafa, com uma piedosa prece co­nhecida somente por sua esposa, não é?

— Sim.

— Bebeu muito? Um ou dois copinhos?

— O conteúdo de um copo.

— Tanto assim? Um copo e meio, talvez? Gregório guardou silêncio. Parecia compreender.

— Um copo e meio de álcool puro, não teria sido muito? Que pensa o senhor? Com isso podem-se ver abertas as portas do paraíso!

Gregório continuava calado. Nova risada esfuziou. O presidente agi­tou-se.

— Poderia o senhor dizer — insistiu Fietiukóvitch — se estava des­perto quando viu a porta do jardim aberta?

— Estava em cima de minhas duas pernas.

— Isto não quer dizer que o senhor estivesse desperto. (Novas risa­das. ) Teria podido, por exemplo, responder naquele momento, se al­guém lhe perguntasse, em que ano nós estamos?

— Não sei.

— Está bem! Em que ano estamos, desde o nascimento de Jesus Cristo? Sabe-o?

Gregório, com ar confuso, olhava fixamente seu carrasco. Sua igno­rância do ano atual parecia estranha.

— Talvez saiba o senhor quantos dedos tem nas mãos.

— Tenho o hábito de obedecer — proferiu, de súbito, Gregório. — Se agrada às autoridades zombar de mim, devo suportá-lo.

Fietiukóvitch ficou um pouco desconcertado. O presidente interveio e lembrou-lhe que devia fazer perguntas mais em relação com o caso. O advogado respondeu com deferência que nada mais tinha a pergun­tar. Certamente, o depoimento de um homem "tendo visto as portas do paraíso" e ignorando em que ano vivia poderia inspirar dúvidas, de sorte que o fito do defensor foi atingido. Um incidente marcou o fim do interrogatório. Tendo-lhe o presidente perguntado se tinha observa­ções a apresentar, Mítia exclamou:

— Exceto o que se refere à porta, a testemunha disse a verdade. Eu lhe agradeço ter-me livrado dos parasitas e perdoado minhas pancadas; esse velho foi durante toda a sua vida honesto e fiel a meu pai como 36 cães-d'água.

— Acusado, policie suas expressões — disse severamente o presidente.

— Não sou um cão-d'água — resmungou Gregório.

— Pois bem! Sou eu que sou um cão-d'água! — gritou Mítia. — Se é uma ofensa, assumo-a para mim e peço-lhe perdão. Fui brutal e violento com ele. Com Esopo também.

— Que Esopo? — acentuou severamente o presidente.

— Refiro-me a Pierrot... a meu pai Fiódor Pávlovitch.

O presidente exortou de novo Mítia a escolher seus termos com mais prudência.

— O senhor se prejudica assim no espírito de seus julgadores.

O defensor procedeu com a mesma habilidade com Rakítin, uma das testemunhas mais importantes, da qual muito esperava o procurador. Sabia uma multidão de coisas, vira tudo, conversara com uma multidão de pessoas e conhecia a fundo a biografia de Fiódor Pávlovitch e dos Karamázovi. Na verdade, não ouvira falar do envelope de 3 000 rublos senão por Mítia. Em compensação, descreveu com detalhes as proezas de Mítia no botequim A Capital, suas palavras e atos comprometedores, contou a história do "esfregão de tília", do Capitão Snieguiriov. Quanto ao que o pai podia ter de restituir ao filho por ocasião do acerto de contas, o próprio Rakitin nada sabia e safou-se graças a generalidades desdenhosas: "Impossível compreender qual não tinha razão e não se emaranhar naquela barafunda dos Karamázovi". Apresentou aquele cri­me trágico como o produto dos costumes atrasados da servidão e da desordem em que estava mergulhada a Rússia, privada das instituições necessárias. Em suma deixaram-no discorrer. Foi depois desse julgamen­to que o Senhor Rakitin se revelou e atraiu a atenção. O procurador sa­bia que a testemunha preparava para uma revista um artigo relativo ao crime e citou algumas partes dele no seu discurso acusatório (como se verá mais adiante). O quadro pintado pela testemunha pareceu sinis­tro e reforçou a acusação. Em geral, a exposição de Rakitin agradou ao público pela independência e pela nobreza de pensamento; ouviram-se mesmo alguns aplausos, quando falou ele da servidão e da Rússia presa da desorganização. Mas Rakitin, que era jovem, cometeu um des­cuido de que soube logo aproveitar-se o defensor. Interrogado a respeito de Grúchenhka e arrastado pelo seu êxito e pela altura moral em que havia plainado, exprimiu-se com algum desdém a respeito de Agrafiena Alieksándrovna, "mantida pelo comerciante Samsónov". Teria dado mui­to depois para retirar esta expressão, porque foi aí que Fietiukóvitch o apanhou. E isto porque Rakitin não esperava que o advogado tivesse po­dido iniciar-se em tão pouco tempo em detalhes tão íntimos.

— Permita-me uma pergunta — começou o defensor com um sorriso amável e quase atencioso. — É mesmo o Senhor Rakitin, autor de uma brochura editada pela autoridade diocesana, Vida do Bem-Aventurado Padre Zósima, cheia de pensamentos religiosos, profundos, com uma dedicatória bastante piedosa a Sua Grandeza e que eu li recentemente com muito prazer?

— Não estava destinada a aparecer... publicaram-na depois — mur­murou Rakitin, que parecia desconcertado.

— Está muito bem. Um pensador como o senhor pode e mesmo deve interessar-se pelos fenômenos sociais. Sua brochura, graças à proteção de Sua Grandeza, o Senhor Bispo, divulgou-se e prestou serviço... Mas eis o que estaria eu curioso de saber: o senhor acaba de declarar que conhecia intimamente a Senhora Svietlova?[1] (Nota bene. Tal era o nome de família de Grúchenhka. Ignorava-o até aquele dia. )

— Não posso responder por todas as minhas amizades... Sou jo­vem... Aliás, quem o poderia? — disse Rakitin, corando.

— Compreendo, compreendo perfeitamente! — disse Fietiukóvitch, fingindo-se confuso e como que pressuroso em desculpar-se. — O se­nhor poderia, como não importa quem, interessar-se por uma mulher jovem e bonita, que recebia em sua casa a flor da juventude local, mas... eu queria somente informar-me; sabemos que há dois meses, desejava vivamente a Senhora Svietlova conhecer o mais moço dos Ka­ramázovi, Alieksiéi Fiódorovitch. Ela lhe prometera 25 rublos, se o se­nhor lho levasse com sua batina religiosa. A visita ocorreu na noite mesma do drama que provocou o processo atual. Recebeu o senhor en­tão da Senhora Svietlova 25 rublos de recompensa? Eis o que queria que o senhor me dissesse.

— Era uma brincadeira... Não vejo em que isto possa interessá-lo. Recebi esse dinheiro por brincadeira... para restituí-lo em seguida.

— Por conseqüência, o senhor aceitou-o. Mas ainda não o restituiu... ou talvez já?

— Uma bagatela... — murmurou Rakítin. — Não posso responder a tais perguntas... Decerto, haverei de restituí-lo.

O presidente interveio, mas o defensor declarou que não tinha mais nada a perguntar ao Senhor Rakítin. Este retirou-se um tanto envergo­nhado. O prestígio da personagem ficou assim abalado, e Fietiukovitch, acompanhando-o com olhar, parecia dizer ao público: "Eis o que va­lem vossos acusadores!" Mítia, furioso por causa do tom com que Ra­kítin se referira a Grúchenhka, gritou de seu lugar: "Bernard!" Quando o presidente lhe perguntou se tinha alguma coisa a dizer, exclamou:

— Ia ele ver-me na prisão para arrancar-me dinheiro, esse miserá­vel, esse ateu. Mistificou Sua Grandeza, o Senhor Bispo!

Mítia foi naturalmente chamado à ordem, mas o Senhor Rakítin ficou liquidado. O testemunho do Capitão Snieguiriov não logrou êxito, por uma razão bem diversa. Apareceu esfarrapado, de roupa suja e, malgrado as medidas de precaução e o exame prévio, encontrou-se em estado de embriaguez. Recusou responder a respeito do caso do insulto que lhe fizera Mítia.

— Deus lhe perdoe! Iliúcha proibiu-o. Deus me recompensará lá em cima.

— Quem o proibiu de falar?

— Iliúcha, meu menino: "Bátiuchka, bátiuçhka, como ele te humi­lhou!" Dizia isto perto da pedra. Agora, está morrendo.

O capitão se pôs subitamente a soluçar e deixou-se cair aos pés do presidente. Levaram-no logo, entre as risadas da assistência. O efeito com que contava o procurador malogrou-se.

O defensor continuou a usar de todos os meios, causando admiração cada vez mais pelo seu conhecimento do caso, até nos seus menores de­talhes. Assim, o depoimento de Trifon Borísovitch tinha causado viva impressão, naturalmente das mais desfavoráveis ao acusado. Segundo ele, Mítia, por ocasião de sua primeira estada em Mókroie, deveria ter gas­to pelo menos 3 000 rublos, "mais ou menos. Quanto dinheiro foi gas­to, só com os cigarros! Quanto aos nossos mujiques piolhentos, não eram 50 copeques mas 25 rublos no mínimo que distribuía a cada um. E quanto lhe roubaram! Os ladrões não se gabaram disso. Como reco­nhecê-los, entre tamanhas liberalidades? Nossa gente são uns bandidos, desprovidos de consciências. E as moças, que não tinham um vintém, es­tão ricas agora". Em suma, lembrava cada despesa e fazia conta de tudo. Isto arruinava a hipótese de 1 500 rublos gastos e do restante guardado no amuleto. "Vi eu mesmo os 3 000 rublos em suas mãos, vi com os meus próprios olhos e sabemos o que é dinheiro, ora se não sabemos!" Sem tentar prejudicar-lhe o depoimento, o defensor lembrou que o cocheiro Timofiéi e outro mujique, Akim, tinham encontrado no vestíbulo, por ocasião da primeira viagem a Mókroie, um mês antes da detenção, 100 rublos perdidos por Mítia, que estava embriagado, e os haviam entregue a Trifon Borísovitch, que deu 1 rublo a cada um. "Pois bem! devolveu o senhor então esse dinheiro ao Senhor Kara­mázov, sim ou não?" Trifon Borísovitch, malgrado seus rodeios, con­fessou a coisa, depois que foram interrogados os mujiques, afirmando ter restituído o dinheiro a Dimítri Fiódorovitch, "com toda a honestidade, mas estando este embriagado na ocasião, não podia lembrar-se disso".

Ora, como tivesse negado o achado antes, sua restituição a Mítia em­briagado inspirava naturalmente dúvidas. Desta maneira, uma das tes­temunhas de acusação mais perigosas tornava-se suspeita e atingida na sua reputação. Foi a mesma coisa com os poloneses; entraram com ar desenvolto, atestando que haviam "servido à coroa" e que "pan Mítia lhes oferecera 3 000 rublos para comprar-lhes a honra". Pan Mussialó­vitch esmaltava suas frases com palavras polonesas e vendo que isto lhe dava importância aos olhos do presidente e do procurador, tornou-se ousado e se pôs a falar em polonês. Mas Fietiukóvitch apanhou-os também em suas redes; malgrado suas hesitações, Trifon Borísovitch, chamado de novo à barra, teve de reconhecer que pan Vrabliévski substituíra um baralho de cartas ao dele, e que pan Mussialóvitch, presidindo a banca, trapaceava. Isto foi confirmado por Kolgánov por ocasião de seu depoimento, e os panówie retiraram-se um tanto enver­gonhados, entre os risos da assistência. As coisas se passaram da mesma maneira com quase todas as testemunhas mais importantes. Fietiukóvitch conseguiu desconsiderar cada uma delas e apanhá-las em falta. Os amadores e os juristas admiravam-no, enquanto perguntavam a si mesmos para que podia servir aquilo, porque, repito-o, a acusação parecia cada vez mais irrefutável e trágica. Mas via-se, pela segurança do "grande mago", que ele estava tranqüilo e esperava-se: não era homem para vir de Petersburgo para nada e para lá voltar sem resultado.

 

A PERÍCIA MÉDICA E 1 LIBRA DE AVELÃS

A perícia médica tampouco foi favorável ao acusado. Aliás, Fietiu­kóvitch mesmo não contava muito com ela, como bem se viu. No fundo, realizou-se unicamente por insistência de Catarina Ivanovna, que mandara chamar um famoso médico de Moscou. A defesa, certamente, nada podia perder com isso, podia mesmo ganhar, no caso mais favorá­vel. Misturou-se nisso certo elemento cômico em conseqüência de um desacordo entre os médicos. Os peritos eram o famoso médico em ques­tão, o Doutor Herzenstube, de nossa cidade, e o jovem médico Var­vínski. Os dois últimos figuravam também na qualidade de testemunhas citadas pelo procurador. O primeiro chamado foi o Doutor Herzenstube, setuagenário grisalho, atingido de calvície, de estatura mediana e cons­tituição robusta. Bastante estimado e respeitado em nossa cidade, era um médico consciencioso, excelente homem pio, uma espécie de irmão morávio. Desde muito tempo estabelecido entre nós, tinha grande dig­nidade em suas maneiras. Filantropo, tratava gratuitamente os pobres e os camponeses, visitava os casebres e as isbás, deixando dinheiro para os remédios, mas era teimoso como uma mula. Impossível fazê-lo desis­tir duma idéia. A propósito, quase todo mundo na cidade sabia que o famoso médico, chegado de pouco, já se permitira fazer observações bastante descorteses a respeito da capacidade do Doutor Herzenstube. Se bem que o médico de Moscou não cobrasse menos de 25 rublos por visita, houve pessoas que aproveitaram de sua estada para consul­tá-lo. Eram naturalmente clientes de Herzenstube e o famoso médico criticou por toda parte o tratamento dele da maneira mais acerba. Acabou por perguntar ao doente, ao entrar: "Então, quem o atochou de drogas, Herzenstube? Eh! eh! eh!" Este, bem entendido, veio a saber. Portanto, os três médicos apareceram como peritos. O Doutor Herzenstube declarou que "o acusado era visivelmente anormal do ponto de vista mental". Depois de ter exposto suas considerações, que omito aqui, acrescentou que essa anomalia resultava não só da conduta ante­rior do acusado, mas se observava presentemente, e, quando lhe pedi­ram que se explicasse, declarou o velho doutor com ingenuidade que o acusado, ao entrar, "tinha um ar espantoso, em vista das circunstân­cias, caminhava como um soldado, olhando diretamente à sua frente, quando deveria voltar os olhos para a esquerda, onde se conservavam as senhoras, porque era grande amador do belo sexo e devia preocupar-se com o que elas diriam dele", concluiu o velho na sua linguagem ori­ginal. Exprimia-se voluntária e longamente em russo, mas cada uma de suas frases tinha um torneio alemão, o que não o perturbava de modo algum, porque imaginara toda a sua vida que falava excelente­mente o russo, melhor mesmo que os russos, e gostava muito de citar os provérbios, afirmando cada vez que os provérbios russos são os melhores e os mais expressivos de todos. Na conversação, por distração talvez, esquecia por vezes as palavras mais comuns, que conhecia per­feitamente, mas que lhe fugiam de repente. O mesmo acontecia quando falava alemão; viam-no então agitar a mão diante de seu rosto como para agarrar a expressão perdida, e ninguém teria podido obrigá-lo a continuar antes que a tivesse tornado a encontrar. Sua observação de que o acusado deveria ter, ao entrar, olhado para as senhoras divertiu a assistência. O velho era muito querido de nossas damas. Sabiam que, tendo ficado celibatário, piedoso e de costumes puros, considerava as mulheres criaturas ideais e superiores. Assim, sua observação inesperada pareceu das mais estranhas.

O médico de Moscou declarou categoricamente por sua vez que tinha o estado mental do acusado como normal, mesmo em supremo grau. Discorreu sapientemente sobre a obsessão e a mania e concluiu que, de acordo com todos os dados recolhidos, o acusado, já vários dias antes de sua detenção, se achava presa duma obsessão mórbida incon­testável, e se cometera um crime, se bem que tivesse dele consciência, era quase involuntariamente, sem ter a força de resistir ao impulso que o impelia. Mas, além da obsessão, notara o doutor a mania, o que cons­tituía, na sua opinião, um primeiro passo para a demência completa. (N. B. Uso dos meus próprios termos, pois o doutor exprimia-se numa lingua­gem científica e especial. ) "Todos os seus atos estão em contradição com o bom senso e a lógica", prosseguiu ele. "Sem falar do que não vi, isto é, do crime e de todo esse drama, anteontem, conversando comigo, tinha um olhar fixo e inexplicável. Ria bruscamente e sem motivo, presa duma verdadeira irritação permanente e incompreensível. Proferia palavras estranhas: Bernard, a ética e outras coisas que não vêm ao caso. " Mas o doutor notava sobretudo essa mania no fato de que o acusado não podia falar sem exasperação dos 3 000 rublos de que se julgava frustrado, ao passo que ficava relativamente calmo ao lembrar-se das outras ofensas e fracassos sofridos. Enfim, parecia que, já antes, ficava furioso a respeito desses 3 000 rublos e, no entanto, assegura-se que não é ele interesseiro, nem cúpido. "Quanto à opinião de meu sábio colega", concluiu com ironia o doutor de Moscou, "de que o acusa­do, ao entrar, deveria ter olhado para as senhoras em vez de fazê-lo dire­tamente à sua frente, é uma asserção engraçada, mas radicalmente er­rônea, porque, muito embora convenha eu que o acusado, ao entrar na sala em que se decide sua sorte, não deveria ter tido um olhar tão fixo e que isso poderia com efeito revelar uma perturbação mental, afirmo ao mesmo tempo que deveria ter ele olhado não para a esquerda, para as senhoras, mas para a direita, procurando com os olhos seu defensor, aquele em quem espera e do qual depende sua sorte. " O doutor formulara sua opinião num tom imperioso. Mas o desacordo entre os dois peritos pareceu particularmente cômico após a conclusão inesperada do Doutor Varvínski, que lhe sucedeu. Segundo ele, o acusado, agora como então, era absolutamente normal, e muito embora antes de sua detenção devesse encontrar-se numa superexcitação extraor­dinária, podia isto provir das causas mais evidentes: ciúme, cólera, em­briaguez contínua, etc. Mas aquele nervosismo nada tinha que ver com "a obsessão", de que acabavam de falar. Quanto a saber para onde devia olhar o acusado ao entrar na sala, "na minha humilde opinião, deveria olhar diretamente à sua frente, como o havia feito na realidade, com os olhos fixos sobre os juizes dos quais dependia doravante sua sorte, de modo que por isso mesmo demonstrara seu estado perfeita­mente normal naquele instante", concluiu o jovem médico com alguma animação.

— Bravo, curandeiro! — gritou Mítia. — É isto mesmo! Fizeram Mítia calar-se, mas aquela opinião teve influência decisiva

sobre tribunal e público, porque toda a gente dela partilhou, como se viu posteriormente. O Doutor Herzenstube, ouvido como testemunha, serviu inopinadamente aos interesses de Mítia. Na qualidade de velho habitante, conhecia desde muito tempo a família Karamázov, forneceu algumas informações bastante interessantes para a acusação e con­tinuou:

— No entanto, o pobre rapaz merecia melhor sorte, porque tivera bom coração na sua infância e mesmo depois, eu o sei. Um provérbio russo diz: "Bom é que o homem tenha juízo, porém melhor é ainda que o acompanhe outro homem de juízo, pois assim serão dois juízos e não um só... "

— Dois juízos valem mais que um — declarou com impaciência o procurador, que conhecia o hábito do velho de falar com lentidão e prolixidade, sem se perturbar com a impressão produzida e com a perda de tempo que causava, afeiçoado ao contrário à sua pesada facúndia germânica. O velho gostava de mostrar-se espirituoso.

— Isto mesmo! É o que digo — continuou ele, com tenacidade: — Dois juízos valem mais do que um. Mas ele ficou só e o dele se foi... Onde o largou ele? Esqueci-me da palavra — prosseguiu, agi­tando a mão diante dos olhos. — Ah! sim! spazieren. [2]

— A passear?

— Isto mesmo! É o que digo. Seu juízo saiu, pois, a vagabundear e perdeu-se. E no entanto, era um jovem grato e sensível; lembro-me dele quando era pequeno, abandonado em casa de seu pai no quin­tal, quando corria de pés descalços, com um botão só nas calças. — A voz do honesto velho matizou-se de emoção. Fietiukóvitch estremeceu como se pressentisse alguma coisa.

— Sim, era eu mesmo ainda. jovem então... Tinha 45 anos e aca­bava de chegar aqui. Tive piedade da criança e disse a mim mesmo: "Por que não comprar 1 libra para ele?... " Pois sim! Uma libra de quê? Esqueci como isso se chama... 1 libra do que as crianças gostam muito, como é mesmo?... — E o doutor agitou de novo as mãos. — Cresce numa árvore, colhem-no.

— Maçãs?

— Oh! n-não! Vendem-se às libras, ao passo que as maçãs se ven­dem às dúzias, não a peso... há muitas, são pequeninas, a gente me­te-as na boca e craque!...

— Avelãs?

— Isto mesmo! Avelãs, é o que digo — confirmou o doutor, im­perturbável, como se não tivesse procurado a palavra. — E levei ao menino 1 libra de avelãs; nunca as recebera. Levantei o dedo e disse: "Meu rapaz! Gott der Vater". Ele pôs-se a rir e repetiu: "Gott der Vater". "Gott der Sohn. " Ele riu de novo e gorjeou: "Gott der Sohn". "Gott der heilige Geist" Ele riu ainda e esforçou-se para dizer: "Gott der heilige Geist" * Dois dias depois, quando eu passei, ele mesmo gritou para mim: "Meu senhor, Gott der Vater, Gott der Sohn". Esque­cera-se de Gott der heilige Geist, mas eu lho recordei e ele de novo me causou compaixão. Levaram-no e não mais o vi. Vinte e três anos depois, encontrava-me uma manhã em meu consultório, com a cabeça já branca, quando entra um jovem em pleno viço e que não fui capaz de reconhecer; levantou o dedo e disse rindo: "Gott der Vater, Gott der Sohn und Gott der heilige Geist![3] Cheguei ainda há pouco e venho agradecer-lhe a libra de avelãs, porque ninguém nunca as comprara para mim, foi o senhor o único". Lembrei-me então de minha feliz juventude e do pobre menino descalço. Fiquei comovido e disse-lhe: "És um jovem agradecido, já que não te esqueceste daquela libra de avelãs que te levei na tua infância". Apertei-o em meus braços e abençoei-o. E chorei. Ele ria... porque o russo ri muitas vezes em ocasiões em que devia chorar. Mas ele chorava também, vi-o. E agora, ai!...

— E agora choro eu, alemão, e agora choro eu, homem de Deus! — gritou de repente Mítia.

Seja como fôr, aquela anedota produziu uma impressão favorável. Mas o principal efeito em favor de Mítia foi causado pelo depoimento de Catarina Ivânovna, do qual vou falar. Em geral, quando chegou a vez das testemunhas de defesa, a sorte pareceu sorrir a Mítia e, o que é mais de notar, inopinadamente para a própria defesa. Mas antes de Catarina Ivânovna, interrogaram Aliócha, que se lembrou de súbito de um fato que parecia refutar positivamente um dos pontos mais im­portantes da acusação.

 

A SORTE SORRI A MÍTIA

Isso ocorreu improvisadamente mesmo para Aliócha. Não prestara juramento e desde o começo fora objeto duma viva simpatia, tanto de um lado quanto do outro. Via-se que seu bom renome o precedia. Aliócha mostrou-se modesto e reservado, mas seu afeto por seu desgra­çado irmão transparecia em seu depoimento. Caracterizou-o como um ser sem dúvida violento e arrebatado pelas suas paixões, mas nobre, altivo, generoso, capaz de se sacrificar se lho pedissem. Reconheceu aliás que para o fim a paixão de Mítia por Grúchenhka, sua rivalidade com seu pai, haviam-no posto numa posição intolerável. Mas repeliu com indignação a hipótese de que seu irmão tivesse podido matar para roubar, embora convindo que aqueles 3 000 rublos tinham-se tornado uma obsessão no espírito de Mítia, que os considerava como uma parte de sua herança, fraudulentamente desviada por seu pai, e não podia falar-se deles sem ficar furioso. Quanto à rivalidade das duas "pessoas", como dizia o procurador, exprimiu-se evasivamente e recusou mesmo responder a uma ou duas perguntas.

— Seu irmão lhe disse que tinha a intenção de matar seu pai? — perguntou o procurador. — O senhor pode não responder, se isto lhe convier.

— Diretamente não mo disse.

— Indiretamente, então?

— Falou-me uma vez de seu ódio por seu pai, temia... num mo­mento de exasperação, ser capaz de matá-lo.

— E o senhor acreditou nele?

— Não ouso afirmá-lo. Sempre pensei que um sentimento elevado o salvaria no momento fatal, como aconteceu, com efeito, porque não foi "ele" quem matou meu pai — disse Aliócha, com uma voz forte que ressoou. O procurador estremeceu como um cavalo de batalha ao som do clarim.

— Esteja certo de que não duvido da sinceridade de sua convicção, independentemente de seu amor fraternal por esse infeliz. O inquérito já nos revelou sua opinião original sobre o trágico episódio que se desenrolou em sua família. Mas não lhe oculto que ela é isolada e contraditada pelos outros depoimentos. De modo que estimo necessá­rio insistir para conhecer os dados que o convenceram definitivamente da inocência de seu irmão e da culpabilidade de uma outra pessoa que o senhor designou no inquérito.

— No inquérito, respondi somente às perguntas — disse Aliócha com calma. — Não formulei acusação contra Smierdiákov.

— Contudo, o senhor designou-o.

— De acordo com as palavras de meu irmão Dimítri. Sabia que, por ocasião de sua detenção, acusara Smierdiákov. Estou persuadido da inocência de meu irmão. E se não foi ele quem matou, então...

— Foi Smierdiákov? Por que ele precisamente? E por que está o senhor tão convencido da inocência de seu irmão?

— Não podia duvidar dele. Sei que ele não mente. Vi, pelo seu rosto, que ele me dizia a verdade.

— Somente pelo seu rosto? São essas todas as suas provas?

— Não tenho outras.

— E não tem outras provas da culpabilidade de Smierdiákov senão as palavras de seu irmão e a expressão de seu rosto?

— Não.

O procurador não insistiu. As respostas de Aliócha decepcionaram profundamente o público. Tinha-se falado de Smierdiákov, corria o boato de que Aliócha reunia provas decisivas em favor de seu irmão e contra o lacaio. Ora, ele nada trazia, senão uma convicção moral, bem natural no irmão do acusado. Chegou a vez de Fietiukóvitch, que perguntou a Aliócha em que momento o acusado lhe falara de seu ódio por seu pai e de suas veleidades de assassínio, e se fora, por exemplo, por ocasião de sua derradeira entrevista antes do drama. Aliócha estremeceu como se uma lembrança lhe voltasse.

— Lembro-me agora de uma circunstância que tinha completamente esquecido. Não era claro então, mas agora...

E Aliócha contou com animação que, quando viu seu irmão pela última vez, à noite, debaixo de uma árvore, ao voltar para o mosteiro, Mítia, batendo no peito, lhe repetira várias vezes que possuía o meio de reerguer sua honra, que esse meio estava ali, sobre seu peito... "Acreditei então que, ao bater no peito, falava de seu coração", prosse­guiu Aliócha, "das forças que podia ali colher para escapar a uma vergonha horrenda que o ameaçava e que ele não ousava mesmo con­fessar-se. Na verdade, pensei então que falasse de seu pai e fremisse de vergonha à idéia de tratá-lo com violência; no entanto, parecia desig­nar alguma coisa sobre seu peito, de modo que, lembro-me, veio-me a idéia de que o coração se encontra mais embaixo, ao passo que ele batia bem mais alto, aqui, abaixo do pescoço, e designava sempre esse lugar. Minha idéia pareceu-me absurda, mas designava talvez precisamente o amuleto onde estavam costurados os 1 500 rublos!...

— Precisamente — gritou de súbito Mítia. — É isso, Aliócha, era sobre ele que eu batia.

Fietiukóvitch rogou-lhe que se acalmasse, depois voltou a Aliócha. Este, arrebatado pela sua recordação, emitiu calorosamente a hipótese de que aquela vergonha provinha sem dúvida de que, tendo consigo aqueles 1 500 rublos que teria podido restituir a Catarina Ivânovna como a metade de sua dívida, tinha Mítia, no entanto, decidido fazer deles outro uso e partir com Grúchenhka, se ela consentisse nisso...

— É isso mesmo, é bem isso mesmo — exclamou Aliócha, muito animado —, meu irmão me disse naquele momento que poderia apagar imediatamente a metade de sua vergonha (disse várias vezes: a metade!), mas que, por desgraça, a fraqueza de seu caráter o impedia disso... sabia de antemão que era incapaz de fazê-lo!

— E o senhor se recorda nitidamente de que ele batia naquele lugar do peito? — perguntou Fietiukóvitch.

— Muito nitidamente, porque perguntava a mim mesmo então: por que bate ele tão alto, se o coração está mais embaixo? Minha idéia pareceu-me absurda... lembro-me. Eis por que essa recordação me voltou. Como pude esquecê-la até agora? Seu gesto designava decerto esse amuleto, esses 1 500 rublos que ele não queria restituir! E por ocasião de sua detenção, em Mókroie, contaram-me, gritou que a ação mais vergonhosa de sua vida era que, tendo a possibilidade de devolver a Catarina Ivânovna a metade de sua dívida (justamente a metade!) e de passar por um homem honesto, preferira guardar o dinheiro e continuar como ladrão a seus olhos. E quanto essa dívida o atormentava! — concluiu Aliócha.

Bem entendido, o procurador interveio. Pediu a Aliócha que descre­vesse de novo a cena e insistiu em saber se o acusado, batendo no peito, parecia designar alguma coisa. Talvez batesse por acaso com o punho.

— Não, não com o punho! — exclamou Aliócha. — Designava com os dedos, aqui, bem no alto... Como pude esquecê-lo até agora?

O presidente perguntou a Mítia o que podia dizer a respeito desse depoimento. Mítia confirmou que designara os 1 500 rublos que trazia sobre o peito, abaixo do pescoço, e que era uma vergonha, "uma ver­gonha que não contesto, o ato mais vil de minha vida! Teria podido restituí-los e não o fiz. Preferi ficar como ladrão aos olhos dela e o pior é que eu sabia de antemão que agiria assim! Tu tens razão, Alió­cha, obrigado".

Dessa forma terminou a declaração de Aliócha, caracterizada por um fato novo, por mínimo que fosse, um começo de prova demonstrando a existência daquele amuleto com os 1 500 rublos e a veracidade do acusado, quando declarava, em Mókroie, que aquele dinheiro lhe per­tencia. Aliócha estava radiante, sentou-se todo vermelho no lugar que lhe indicaram, repetindo entre si: "Como pude esquecer aquilo? Como foi que só me lembrei, agora?"

Foi ouvida em seguida Catarina Ivânovna. Sua entrada causou sen­sação. As senhoras assestaram suas lunetas, os homens agitaram-se, alguns se levantaram para ver melhor. Afirmou-se, mais tarde, que Mítia ficara branco como um pano, quando ela apareceu. Toda de preto, avançou para a barra modestamente, quase timidamente. Seu rosto não traía nenhuma emoção, mas a resolução brilhava nos seus olhos sombrios. Estava muito bonita naquele momento. Falou com uma voz doce, mas nítida, com grande calma, ou pelo menos esforçando-se para isso. O presidente interrogou-a com muitas atenções, como se temesse tocar "certas cordas", e cheio de respeito pelo seu infortúnio. Desde as primeiras palavras, Catarina Ivânovna declarava que fora noiva do acusado "até o momento em que ele próprio me abandonou... " Quando a interrogaram, a respeito dos 3 000 rublos confiados a Mítia para serem enviados pelo correio às suas parentas, respondeu com firmeza: "Não lhe havia dado aquela quantia para que a remetesse logo; sabia que estava ele muito precisado de dinheiro... naquele mo­mento... Entreguei-lhe aqueles 3 000 rublos com a condição de enviá-los a Moscou, se quisesse, no prazo de um mês. Não teve razão em atormentar-se a propósito dessa dívida... "

Não relato as perguntas e as respostas integralmente, limitando-me ao essencial de seu depoimento.

— Estava certa de que enviaria aquela soma assim que a tivesse recebido de seu pai — prosseguiu ela. — Sempre tive confiança na sua lealdade... na sua perfeita lealdade... nos negócios de dinheiro. Contava ele receber 3 000 rublos de seu pai e falou-me disso por diver­sas vezes. Sabia que estavam eles em conflito e sempre acreditei que seu pai o havia lesado. Não me recordo de que haja ele proferido ameaças contra seu pai, pelo menos na minha presença. Se tivesse vindo ver-me, tê-lo-ia logo tranqüilizado a respeito daqueles desgra­çados 3 000 rublos, mas não voltou... e eu mesma... encontrava-me numa situação... que não me permitia que o mandasse chamar... Aliás, não tinha absolutamente o direito de mostrar-me exigente por conta dessa dívida — acrescentou num tom resoluto. — Recebi eu mesma dele, um dia, uma soma superior, e aceitei-a sem saber quando estaria em condições de pagar-lhe.

Sua voz tinha algo de provocante. Naquele momento, foi a vez de Fietiukóvitch interrogá-la.

— Não foi aqui, mas no começo de suas relações com ele, não? — perguntou com tato o defensor, que pressentia algo em favor de seu cliente. (Entre parentesis, se bem que chamado de Petersburgo, em parte pela própria Catarina Ivânovna, tudo ignorava do episódio dos 5 000 rublos dados por Mítia e da saudação até o chão. Ela lho havia dissimulado! Silêncio estranho. Pode-se supor que, até o derradeiro momento, hesitou em falar, aguardando alguma inspiração. )

Não, jamais esquecerei aquele momento! Ela contou tudo, todo aque­le episódio, comunicado por Mítia a Aliócha, e a saudação até o chão, as causas, o papel de seu pai, sua visita à casa de Mítia, e não fez nenhuma alusão à proposta de Mítia de enviar-lhe Catarina Ivânovna para buscar o dinheiro. Guardou a respeito um silêncio magnânimo e não corou de revelar que fora ela que correra, por sua própria vontade, à casa do jovem oficial, esperando não sabia o que... para obter dele dinheiro. Era comovedor. Eu estremecia ouvindo-a, a assis­tência era toda ouvidos. Havia naquilo algo de inaudito, jamais se teria esperado, mesmo de uma moça tão imperiosa e altiva, tal franqueza e semelhante imolação. E por quem, para quê? Para salvar aquele que a havia traído e ofendido, para contribuir, por pouco que fosse, a tirá-lo de apuros, causando uma boa impressão! Com efeito, a imagem do oficial, dando seus 5 000 rublos, tudo quanto lhe restava, e inclinando-se respeitosamente diante de uma moça inocente, aparecia como das mais simpáticas, mas... meu coração cerrou-se! Senti a possibilidade de uma calúnia, posteriormente (e foi o que aconteceu!). Com uma ironia malévola, repetiu-se na cidade que a narrativa não era talvez totalmente exata, precisamente naquele ponto em que o oficial deixava partir a moça com apenas uma respeitosa saudação. Fez-se alusão a uma "lacuna". "Se as coisas não se passaram mesmo assim", diziam as mais respeitáveis de nossas damas, "podem-se ainda fazer reservas a res­peito da conduta da moça, mesmo para salvar seu pai. " Será que Ca­tarina Ivânovna, com sua penetração mórbida, não pressentira tais falatórios? Decerto que sim, mas decidira tudo dizer! Naturalmente, essas dúvidas insultuosas a respeito da veracidade do relato só se manifestaram mais tarde. No primeiro momento todos ficaram emo­cionados. Quanto aos membros do tribunal, escutavam num silêncio respeitoso. O procurador não se permitiu nenhuma pergunta sobre o assunto. Fietiukóvitch fez a Catarina uma profunda vênia. Oh! o triunfo era seu, quase. Que o mesmo homem tenha podido, num ímpeto de generosidade, dar seus derradeiros 5 000 rublos, e em seguida matar seu pai para roubar-lhe 3 000, era coisa que não se agüentava de pé. Fietiukóvitch podia pelo menos afastar a acusação de roubo. O caso esclarecia-se a uma nova luz. A simpatia voltava-se a favor de Mítia. Uma ou duas vezes, durante o depoimento de Catarina Ivâ­novna, quis ele levantar-se, mas tornou a cair sobre o banco, cobrindo o rosto com as mãos. Quando ela acabou, exclamou ele, estendendo-lhe os braços.

— Cátia, por que causaste minha perda?

Desatou em soluços, mas se repôs depressa e gritou ainda:

— Agora, estou condenado!

Depois enrijeceu-se em seu lugar, com dentes cerrados, os braços cruzados sobre o peito. Catarina Ivânovna ficou na sala? estava pálida, de olhos baixos. Seus vizinhos contaram que ela tremia, como presa de febre. Foi a vez de Grúchenhka.

Vou abordar a catástrofe que causou talvez, com efeito, a perda de Mítia. Porque estou persuadido, e todos os juristas disseram-no depois, que, sem esse episódio, o criminoso teria obtido pelo menos as circunstâncias atenuantes. Mas tratar-se-á disso dentro em pouco. Falemos primeiro de Grúchenhka.

Apareceu também toda de preto, com os ombros cobertos pelo seu magnífico xale. Avançou para a barra com seu andar silencioso, re­quebrando-se levemente, como fazem por vezes as mulheres corpulen­tas, com os olhos fixos no presidente. Na minha opinião, estava muito bem e nada pálida, como o pretenderam as damas mais tarde. Assegu­rou-se também que tinha o ar absorto e maldoso. Creio somente que estivesse irritada e sentisse pesar com intensidade sobre ela os olhares desprezadores e curiosos de nosso público, ávido de escândalo. Era uma dessas naturezas altivas, incapazes de suportar o desprezo, que, desde que o suspeitam nos outros, as inflama de cólera e as impele à resistência. Havia também, seguramente, timidez e pudor dessa timi­dez, o que explica a desigualdade de sua linguagem, ora encolerizada, ora desdenhosa e grosseira, na qual se sentia de súbito uma nota sincera, quando ela se acusava a si mesma. Por vezes, falava sem se importar com as conseqüências: "Tanto pior para o que acontecerá, dir-lhe-ei no entanto... " A propósito de suas relações com Fiódor Pávlovitch, observou num tom cortante: "Bagatelas, tudo isso; é culpa minha se ele se ligou a mim?" Um instante depois, acrescentou: "Tudo isso é culpa minha, zombava do velho e de seu filho e levei-os aos extremos a ambos. Sou a causa desse drama". Veio-se a falar de Samsónov: "Isto não diz respeito a ninguém", replicou ela com vio­lência, "era meu benfeitor, foi ele quem me recolheu descalça, quando os meus me expulsaram da isbá". O presidente lembrou-lhe que ela devia responder diretamente às perguntas, sem entrar em detalhes su­pérfluos. Grúchenhka corou, seus olhos cintilaram. Não vira o envelope dos 3 000 rublos e só sabia da existência pelo "celerado". "Mas tudo isso são bobagens, por preço algum teria ido à casa de Fiódor Páv­lovitch... "

— A quem trata a senhora de celerado? — perguntou o procurador.

— Ao lacaio Smierdiákov, que matou seu amo e enforcou-se ontem. Apressaram-se em perguntar sobre que baseava uma acusação tão categórica, mas tampouco ela sabia de nada.

— Foi Dimítri Fiódorovitch quem mo disse. Podem crer nele. Aquela pessoa perdeu-o, ela é a única causa de tudo — acrescentou Grúchenh­ka, toda trêmula, num tom em que transparecia o ódio.

Quiseram saber a quem fazia ela alusão.

— Ora, a essa senhorita, a essa Catarina Ivânovna. Chamara-me à sua casa, oferecera-me chocolate, na intenção de seduzir-me. Não tem um pingo de vergonha, palavra...

O presidente interrompeu-a, rogando-lhe que moderasse suas expres­sões, Mas, inflamada pelo ciúme, estava pronta a tudo afrontar...

— Por ocasião da detenção, em Mókroie —- lembrou o procurador —, a senhora acorreu da peça vizinha, gritando: "Sou culpada de tudo, iremos juntos para o presídio!" A senhora também então, naquele mo­mento, acreditava que fosse ele parricida?

— Não me recordo de meus sentimentos de então — respondeu Grúchenhka. — Todo mundo o acusava, senti que era eu a culpada e que ele havia matado por minha causa. Mas desde que ele proclamou sua inocência, acreditei nele e acreditarei sempre, não é homem de mentiras.

Fietiukóvitch, que a interrogou em seguida, informou-se de Rakítin e dos 25 rublos "como recompensa por ter-lhe levado Alieksiéi Fió­dorovitch Karamázov".

— Não há nada de espantar no fato de ter ele aceitado esse di­nheiro — sorriu desdenhosamente Grúchenhka. — Vinha sempre pe­dinchar, recebendo até 30 rublos por mês e na maior parte das vezes para se divertir; tinha com que comer e beber, sem precisar de pedir dinheiro.

— Por qual razão era a senhora tão generosa para com o Senhor Rakítin? — continuou Fietiukóvitch, muito embora o presidente se agitasse.

— É meu primo. Minha mãe e a dele eram irmãs. Mas suplicava-me que eu não dissesse a ninguém, tanta era a vergonha que eu lhe causava.

Este fato novo foi uma revelação para todo mundo, ninguém sus­peitava disso na cidade, nem mesmo no mosteiro. Rakítin, dizem, estava rubro de vergonha. Grúchenhka estava furiosa contra ele, pois soubera que havia deposto contra Mítia. A eloqüência do Senhor Rakítin, suas nobres tiradas contra a servidão e a desordem cívica da Rússia ficaram assim arruinadas na opinião pública. Fietiukóvitch estava satisfeito, o céu vinha-lhe em auxílio. Aliás, não retiveram Grúchenhka muito tempo, pois nada podia comunicar de particular. Causou no público uma impressão das mais desfavoráveis. Centenas de olhares desdenhosos fixaram-na, quando após seu depoimento foi sentar-se bas­tante longe de Catarina Ivânovna. Enquanto a interrogavam, Mítia man­tivera-se em silêncio, como petrificado, de olhos baixos. Ivã Fiódorovitch apresentou-se como testemunha.

 

SÚBITA CATÁSTROFE

Fora chamado antes de Aliócha, mas o oficial de justiça informou ao presidente que uma indisposição súbita impedia a testemunha de com­parecer e que logo que se refizesse viria depor. Não se deu aliás atenção a isso e sua chegada quase passou sem ser notada, as principais testemunhas, sobretudo as duas rivais, já tinham sido ouvidas, a curio­sidade começava a cansar-se. Nada de novo a esperar dos derradeiros depoimentos, depois de tudo quanto já tinha sido dito. O tempo passava. Ivã avançou com uma lentidão estranha, sem olhar para ninguém, a cabeça baixa, o ar absorto. Trajava corretamente, mas seu rosto, mar­cado pela doença, tinha qualquer coisa de terroso que lembrava o de um moribundo. Ergueu os olhos, percorreu a sala com um olhar turvo. Aliócha levantou-se, lançou uma exclamação, mas não lhe prestaram atenção.

O presidente lembrou à testemunha que não havia ele prestado jura­mento, podendo, portanto, manter silêncio, mas devia depor de acordo com sua consciência, etc. Ivã escutava, com os olhos vagos. De repente, um sorriso desenhou-se no seu rosto e quando o presidente, que o olhava com espanto, acabou, desatou ele a rir.

— E depois, que mais? — perguntou em voz alta. Silêncio absoluto na sala. O presidente ficou inquieto.

— O senhor... talvez esteja ainda indisposto? — perguntou, pro­curando com o olhar o oficial de justiça.

— Não se inquiete, excelência, sinto-me suficientemente bem e posso contar-vos algo de curioso — respondeu Ivã num tom calmo e deferente.

— Tem uma comunicação particular a fazer? — continuou o presi­dente com certa desconfiança.

Ivã Fiódorovitch baixou a cabeça e esperou durante alguns segundos antes de responder.

— Não... nada a dizer de particular.

Interrogado, deu a contragosto respostas lacônicas e, no entanto, bastante razoáveis, com uma repulsa crescente. Alegou sua ignorância a respeito de muitas coisas e nada sabia das contas de seu pai com Dimítri Fiódorovitch. "Não me ocupava com isso", declarou. Ouvira as ameaças do acusado contra seu pai e sabia da existência do envelope por intermédio de Smierdiákov.

— Sempre a mesma coisa! — interrompeu-se de súbito, com um ar de cansaço. — Nada posso dizer ao tribunal.

— Vejo que o senhor ainda está doente e compreendo seus senti­mentos... — começou o presidente.

Ia perguntar ao procurador e ao advogado se tinham perguntas a fazer, quando Ivã disse com voz extenuada:

— Permita que me retire, excelência, não me sinto, bem. — Depois do que, sem esperar a autorização, voltou-se e encaminhou-se para a saída. Mas depois de alguns passos parou, pareceu refletir, sorriu e voltou a seu lugar:

— Pareço-me, excelência, com aquela jovem camponesa, o senhor sabe: "Se quiser, irei, se não quiser, não irei!" Seguem-na para vesti-la e levá-la ao altar e ela repete aquelas palavras... Isto se encontra numa cena popular...

— Que entende o senhor com isso? — perguntou severamente o presidente.

— Aqui está — disse Ivã, exibindo um maço de cédulas —, aqui está o dinheiro... o mesmo que se achava naquele envelope (e desig­nava as peças de convicção) e por causa do qual mataram meu pai. Onde devo depositá-lo? Senhor oficial de justiça, entregue-lho.

O oficial de justiça pegou o maço de notas e entregou-o ao pre­sidente.

— Como pode estar este dinheiro em seu poder... se é bem o mesmo? — perguntou o presidente surpreso.

— Recebi-o de Smierdiákov, do assassino, ontem... Fui à casa dele antes que se enforcasse. Foi ele quem matou meu pai, e não meu irmão. Matou e eu o incitei a isso... Quem não deseja a morte de seu pai?

— Está no seu juízo? — não pôde o presidente impedir-se de dizer.

— Mas sim, estou no meu juízo... um juízo vil como o vosso, como o de todos esses... focinhos! — Voltou-se para o público.

— Mataram seus pais e simulam o terror — disse ele com desprezo e rangendo os dentes. — Fazem caretas uns para os outros. Os menti­rosos! Todos desejam a morte de seu pais. Um réptil devora o outro... Se não houvesse parricídio, zangar-se-iam e ir-se-iam embora furiosos. É um espetáculo! Panem et circenses![4] Aliás, também eu sou bonito! Têm água, dêem-me de beber, em nome de Cristo! — Agarrou a cabeça. O oficial de justiça aproximou-se dele logo. Aliócha levantou-se, gritando: "Ele está doente, não acreditem nele, está com febre ner­vosa!" Catarina Ivânovna tinha-se levantado precipitadamente e, imóvel de terror, contemplava Ivã Fiódorovitch. Mítia, com um sorriso care­teante, escutava avidamente seu irmão.

— Tranqüilizai-vos, não estou louco, sou apenas um assassino — continuou Ivã. — Não se pode exigir eloqüência de um assassino — acrescentou, sorrindo.

O procurador, visivelmente agitado, inclinou-se para o presidente. Os jurados cochichavam. Fietiukóvitch aguçou os ouvidos. A sala aguar­dava, ansiosa. O presidente pareceu dominar-se.

— Testemunha, o senhor usa duma linguagem incompreensível e que não se pode tolerar aqui. Acalme-se e fale... se tem verdadeiramente alguma coisa a dizer. Por qual meio poderá confirmar tal confissão... se é que ela não resulta do delírio?

— O fato é que não tenho testemunhas. Aquele cão do Smierdiákov não vos enviará lá do outro mundo o seu depoimento... num envelope. Vós desejaríeis sempre envelopes. Basta um. Não tenho testemunhas... Exceto uma, talvez.

Sorriu com ar pensativo.

— Quem é sua testemunha?

— Tem uma cauda, excelência, não está de conformidade com as regras! Le diable ri existe point! Não presteis atenção, é um diabinho sem importância — acrescentou ele confidencialmente, deixando de rir. — Deve estar em alguma parte aqui, debaixo da mesa das peças de convicção. Onde estaria ele, senão ali? Escutai-me: eu lhe disse: "Não quero calar-me" e ele me fala de cataclisma geológico... bestei­ras! Ponde o monstro em liberdade... ele cantou seu hino porque tem

O coração leve! A mesma coisa que se um canalha bêbado berrasse: "Para Piter partiu Vanka". Eu, por dois segundos de alegria, daria 1 quatrilhão de quatrilhões. Vós não me conheceis! Oh! como tudo é estúpido entre vós! Pois bem! Prendei-me em lugar dele! Não vim aqui por coisa nenhuma... Por que tudo o que existe é tão estúpido?

E voltou a inspecionar lentamente a sala com ar meditativo. A emoção era geral. Aliócha ia correr para ele, mas o oficial de justiça já havia agarrado Ivã Fiódorovitch pelo braço.

— Que é que há? — exclamou ele, fixando o oficial de justiça, mas de repente agarrou-o pelos ombros e derrubou-o. Os guardas acor­reram, prenderam-no e ele se pôs a urrar como um louco furioso. En­quanto o levavam, gritava palavras incoerentes.

Foi um tumulto geral. Não me lembro de tudo em sua ordem, a emoção impedia-me de observar direito. Sei somente que, uma vez estabelecida a calma, o oficial de justiça foi repreendido, se bem que explicasse às autoridades que a testemunha estava durante todo o tempo em estado normal, que o doutor o examinara por ocasião de sua ligeira indisposição, uma hora antes; até o momento de comparecer exprimia-se sensatamente, de modo que nada se podia prever, fazia ele mesmo questão de ser ouvido. Mas antes que a emoção se acalmasse, ocorreu nova cena. Catarina Ivanovna teve uma crise de nervos. Gemia e soluçava ruidosamente, sem querer retirar-se. Debatia-se, suplicando que a deixassem na sala. De repente, gritou para o presidente:

— Tenho ainda alguma coisa a dizer, imediatamente... imediata­mente!... Eis aqui um papel, uma carta... tomai-a, lede depressa! É a carta do monstro que ali está! — disse ela, apontando Mítia. — Foi ele quem matou seu pai, ides vê-lo, escreveu-me dizendo como o mataria! O outro está doente, há três dias que está com febre nervosa!

O oficial de justiça pegou o papel e entregou-o ao presidente. Cata­rina Ivanovna tornou a cair sobre sua cadeira, ocultou seu rosto, pôs-se a soluçar silenciosamente, abafando seus menores gemidos, de medo que a fizessem sair. O papel em questão era a carta escrita por Mítia no botequim A capital, que Ivã considerava como uma prova categórica. Ai! foi justamente o efeito que ela produziu! Sem essa carta, não teria Mítia talvez sido condenado, pelo menos tão rigorosamente! Repito que foi difícil seguir todos os detalhes. Mesmo agora, tudo aqui­lo me aparece de um modo confuso. O presidente apresentou sem dúvida aquele novo documento às partes e ao júri. Ao perguntar a Catarina Ivânovna se já se restabelecera, respondeu ela vivamente:

— Estou pronta! Estou completamente em condições de responder-vos. Temia ainda que não a ouvissem. Pediram-lhe que explicasse porme­norizadamente em que circunstâncias recebera aquela carta.

— Recebi-a na véspera do crime, vinha do botequim, escrita numa fatura, vede — gritou ela, ofegante. — Ele me odiava então, tendo tido a baixeza de seguir aquela criatura... e também porque me devia aqueles 3 000 rublos. Sua vilania e sua dívida causavam-lhe vergonha. Eis o que se passou. Suplico-vos que me ouçais. Três semanas antes de matar seu pai, chegou à minha casa uma manhã. Sabia que ele necessitava de dinheiro e sabia também para quê... precisamente para seduzir aquela criatura e levá-la consigo. Conhecia sua traição, sua intenção de abandonar-me e entreguei-lhe eu mesma aquele dinheiro, sob pretexto de enviá-lo à minha irmã em Moscou. Ao mesmo tempo, fitava-o bem no rosto e lhe disse que poderia enviá-lo quando quisesse, mesmo dentro de um mês. Como não compreendeu ele que isso signi­ficava: "Precisas de dinheiro para trair-me; aqui está: sou eu que to dou; toma-o, se tens coragem!" Queria confundi-lo. Pois bem! Ele aceitou esse dinheiro, levou-o e gastou-o em uma noite com aquela criatura. No entanto, compreendera que eu sabia de tudo, garanto-vos, e que eu lho dava unicamente para experimentá-lo, para ver se co­meteria ele a infâmia de aceitá-lo. Nossos olhares se cruzavam, ele com­prendeu tudo e partiu com meu dinheiro!

— É verdade, Cátia — exclamou Mítia. — Tinha compreendido tua intenção e, no entanto, aceitei teu dinheiro. Desprezai todos um mise­rável, eu o mereci!

— Acusado — disse o presidente —, ainda uma palavra e eu o farei sair da sala.

— Esse dinheiro atormentou-o — prosseguiu Cátia, precipitada­mente —, queria devolver-mo, mas precisava dele para aquela criatura. Eis por que matou seu pai, mas não me restituiu nada, partiu com ela para aquela aldeia onde o prenderam. Foi lá que de novo fez a farra, com o dinheiro roubado. Um dia, antes do crime, escreveu-me essa carta estando bêbado — adivinhei logo —, sob o império da cólera e persuadido de que eu não a mostraria a ninguém, mesmo se ele cometesse assassínio. Senão, não a teria escrito. Sabia que eu não que­ria perdê-lo por vingança! Mas lede, lede com atenção, rogo-vos, vereis que ele descreve tudo de antemão: como matará seu pai, onde está escondido o dinheiro. Notai sobretudo esta frase: "Matarei contanto que Ivã tiver partido". Por conseguinte, premeditou seu crime — insi­nuou perfidamente Catarina Ivânovna. Via-se que ela estudara cada detalhe daquela carta fatal. — Sóbrio, não me teria ele escrito, mas vede, essa carta constitui um programa!

Na sua exaltação, desdenhava as conseqüências possíveis, se bem que as tivesse encarado talvez um mês antes, quando perguntava a si mesma, trêmula de cólera: "Será preciso ler isto no tribunal?" Agora, havia queimado seus navios. Foi então que o escrivão leu a carta, que produziu uma impressão esmagadora. Perguntaram a Mítia se a re­conhecia.

— Sim, sim! e não a teria escrito, se não tivesse bebido!... Nós nos odiávamos por muitas causas, Cátia, mas juro-te que, malgrado meu ódio, eu te amava e tu não me amavas!

Recaiu sobre seu banco, torcendo as mãos.

O procurador e o defensor perguntaram, cada qual por sua vez, a Catarina Ivânovna por quais motivos havia ela a princípio dissimulado aquele documento e deposto num tom completamente diverso.

— Sim, menti ainda há pouco, contra minha honra e minha cons­ciência, mas queria salvá-lo, precisamente porque ele me odiava e me desprezava. Oh! desprezava-me, sempre me desprezou, desde o ins­tante em que lhe fiz aquela saudação até o chão por causa daquele dinheiro. Senti-o logo, mas fiquei muito tempo sem acreditá-lo. Quantas vezes li em seus olhos: "Tu vieste, no entanto, tu mesma, à minha casa". Oh! ele nada tinha comprendido, não adivinhou por que eu fora, só pode pensar na baixeza! Julga todos os outros por si — disse com furor Cátia, no auge da exaltação. — Queria casar comigo somente por causa da minha herança, somente por isso, sempre suspeitei disso. É uma fera! Estava certo de que durante toda a minha vida eu tremeria de vergonha diante dele e que ele poderia desprezar-me e dominar-me, eis porque queria desposar-me! É a verdade! Tentei vencê-lo por um amor infinito, queria mesmo esquecer sua traição, mas ele nada compreendeu, nada, nada! Pode ele compreender alguma coisa? É um monstro! Não recebi essa carta senão no dia seguinte, à noite, trouxe­ram-ma do botequim, e de manhã estava ainda decidida a perdoar-lhe tudo, até mesmo sua traição!

O procurador e o presidente acalmaram-na do melhor modo possí­vel. Estou certo de que eles próprios tinham talvez vergonha de aproveitar-se de sua exaltação para colher tais confissões. Ouviram-nos dizer: "Compreendemos seu sofrimento, creia-o, somos capazes de compartilhar de seus sentimentos", etc, etc, e, no entanto, arrancavam aquele depoimento de uma mulher enlouquecida, presa duma crise de nervos. Enfim, com uma lucidez extraordinária, como acontece fre­quentemente em semelhante caso, descreveu ela como se desarranjara, naqueles dois meses, a razão de Ivã Fiódorovitch, obsedado pela idéia de salvar "o monstro e o assassino", seu irmão.

— Ele se atormentava — exclamou ela —, queria atenuar a falta, confessando-me que ele próprio não gostava de seu pai e tinha talvez desejado sua morte. Oh! É uma consciência de escol, eis as causas de seus sofrimentos! Não tinha segredos para mim; ia ver-me todos os dias como meu único amigo. Tenho a honra de ser sua única amiga! — disse ela, num tom de desafio, com os olhos brilhantes. — Foi ele duas vezes à casa de Smierdiákov. Um dia, veio dizer-me: "Se não foi meu irmão quem matou, se foi Smierdiákov (porque divulgou-se essa lenda), talvez seja eu também culpado, porque Smierdiákov sabia que eu não gostava de meu pai e pensava talvez que eu desejasse sua morte. Foi então que lhe mostrei essa carta. Ficou definitivamente convencido da culpabilidade de seu irmão. Estava aterrorizado. Não podia suportar a idéia de que seu próprio irmão fosse um parricida! Há uma semana que isso o torna doente. Nestes último dias, delirava, verifiquei que sua razão se perturbava. Ouviram-no andar falando sozinho pelas ruas. O médico que mandei buscar em Moscou examinou-o anteontem e dis­se-me que a febre nervosa ia-se declarar, e tudo isso por causa do monstro! Ontem, soube da morte de Smierdiákov e isto foi para ele o derradeiro golpe. Tudo isso por causa desse monstro e a fim de sal­vá-lo!

Certamente, não se pode falar assim e fazer tais confissões senão uma vez na vida, nos seus derradeiros momentos, por exemplo, ao subir-se no cadafalso. Mas isto convinha precisamente ao caráter de Cátia. Era bem a mesma moça impetuosa que havia corrido à casa de um jovem libertino para salvar seu pai; a mesma que, havia pouco, altiva e casta, sacrificara publicamente seu pudor virginal contando "a nobre ação de Mítia", com o único objetivo de amenizar a sorte que o esperava. E agora se sacrificava igualmente, mas por um outro, tendo talvez, naquele instante, somente, sentido pela primeira vez quanto aquele outro lhe era querido. Sacrificava-se por ele no seu terror, ima­ginando de súbito que ele se perdia com o seu depoimento, que havia matado em lugar do irmão, sacrificava-se a fim de salvá-lo, a ele e à sua reputação. Uma questão angustiante surgia: tinha ela caluniado Mítia a respeito de suas antigas relações? Não, não mentia ciente­mente, gritando que Mítia a desprezava por causa daquela saudação até o chão! Acreditava nisso, estava profundamente convencida desde aquela saudação talvez, de que o ingênuo Mítia, que a adorava ainda naquele mo­mento, zombava dela e a desprezava. E somente por orgulho deixara-se dominar por um amor extremado por ele, por orgulho ferido, e esse amor assemelhava-se a uma vingança. Talvez aquele amor extremado se tivesse tornado um amor verdadeiro, talvez Cátia não quisesse outra coisa melhor, mas Mítia havia-a ofendido até o fundo de sua alma com a sua traição e aquela alma não perdoava. A hora da vingança soara bruscamente, e todo o rancor doloroso, acumulado no coração da mulher ofendida, exalara-se dum só jato. Entregando Mítia, entre­gava-se ela própria. Assim que ela terminou, seus nervos a traíram, a vergonha invadiu-a. Sofreu nova crise de nervos, foi preciso carregá-la para fora. Naquele momento, Grúchenhka correu gritando para Mítia, tão rapidamente que não houve tempo para detê-la.

— Mítia, aquela víbora te perdeu! Vós a vistes em ação! — acres­centou, fremente, dirigindo-se aos jurados. A um sinal do presidente, agarraram-na e levaram-na para fora. Ela se debatia, estendendo os braços para Mítia. Este lançou um grito e quis correr-lhe ao encontro. Subjugaram-no, não sem dificuldade.

Penso que as espectadoras ficaram satisfeitas, o espetáculo valia a pena. O médico de Moscou, que o presidente mandara chamar para cuidar de Ivã, veio fazer seu relatório. Declarou que o doente atra­vessava uma crise das mais perigosas, que deveriam levá-lo dali ime­diatamente. Na antevéspera, o paciente fora consultá-lo, mas recusara tratar-se, malgrado a gravidade de seu estado. "Confessou-me que tinha alucinações, encontrava mortos na rua, e que Satã lhe fazia visitas todas as noites", concluiu o famoso doutor. A carta de Catarina Ivânovna foi ajuntada às provas documentárias. Tendo o tribunal deliberado, decidiu prosseguir os debates e mencionar nos autos os depoimentos inesperados de Catarina Ivânovna e de Ivã Fiódorovitch.

Os depoimentos das últimas testemunhas só fizeram confirmar os precedentes, mas com certos detalhes característicos. Aliás, a acusação, à qual chegamos, resume-os todos. Os derradeiros incidentes haviam superexcitado os espíritos, esperavam-se com uma impaciência febril os discursos e o veredicto. Fietiukóvitch estava aterrorizado com as revelações de Catarina Ivânovna. Em compensação, o procurador triun­fava. Houve suspensão da audiência por uma hora. Às 8 horas da noite em ponto, creio, o procurador começou sua acusação.

 

A ACUSAÇÃO. — CARACTERIZAÇÃO

Ipolit Kirílovitch tomou a palavra com um tremor nervoso, a fronte e as têmporas banhadas dum suor frio, o corpo percorrido por arrepios, como o contou depois. Olhava aquele discurso como seu chef-d'ouvre, [5] seu canto de cisne, e morreu tuberculoso nove meses mais tarde, jus­tificando assim essa comparação. Pôs nele todo o seu coração e toda a inteligência de que era capaz, revelando um senso cívico inesperado e interesse pelas questões ardentes. Seduziu sobretudo pela sinceridade; acreditava sinceramente na culpabilidade do acusado e acusava não só por dever, em virtude de suas funções, mas animado do desejo de salvara sociedade. Até mesmo as damas, hostis no entanto a Ipolit Kirílovitch, convieram na viva impressão que ele produzira. Começou com uma voz irregular, que em breve se firmou e ressoou na sala inteira, até o fim. Mas apenas acabara sua acusação esteve a ponto de desmaiar.

"Senhores jurados, este caso teve repercussão na Rússia inteira. No fun­do, por que admirar-se disso? Estamos habituados a todas essas coisas! Por desgraça, esses casos sinistros quase não nos emocionam mais. É nos­sa apatia que deve causar horror e não o crime de tal ou qual indivíduo. Por que essa indiferença, donde vem que reajamos tão fracamente diante dos fenômenos que nos pressagiam um futuro sombrio? Será preciso atribuir isso ao cinismo, ao esgotamento precoce da razão e da imaginação de nossa sociedade, tão jovem ainda, mas já débil? À subversão de nossos princípios morais ou à ausência total desses prin­cípios? Deixo em suspenso estas perguntas, que nem por isso são menos angustiantes e solicitam a atenção de cada cidadão. Nossa impren­sa, no começo tão tímida ainda, prestou no entanto alguns serviços à sociedade, porque, sem ela, não conheceríamos a licenciosidade desen­freada e a desmoralização que revela sem cessar a todos, e não apenas aos frequentadores das audiências que se tornaram públicas sob o novo reinado. E que lemos nos jornais? Oh! atrocidades, diante das quais o processo atual empalidece e parece quase sem importância. A maior parte de nossas causas criminais atesta uma espécie de perver­sidade geral, que entrou em nossos costumes e é difícil de combater como flagelo social. Aqui, é um jovem e brilhante oficial da alta classe que assassina sem remorso um modesto funcionário, a quem de­via dinheiro, e sua criada, a fim de reapossar-se de uma promissória, e rouba o dinheiro: 'Isto servirá para meus prazeres'. Realizado o seu crime, retira-se, depois de ter posto um travesseiro sob a cabeça das vítimas. Em outra parte, um jovem herói, condecorado pela sua bravura, estrangula como um salteador, na grande estrada, a mãe de seu chefe, e, para persuadir seus cúmplices, assegura-lhes que 'aquela mulher ama-o como a um filho, confia nele e, por conseguinte, não tomará precauções'. São monstros, mas em nossa época não ouso dizer que estejamos diante apenas de casos isolados. Outro, sem chegar até o crime, pensa da mesma maneira e é tão infame quanto o outro, mas em seu foro íntimo. A sós com sua consciência, pergunta a si mesmo, talvez: 'Não será a honra um preconceito?' Vão dizer que calunio nossa sociedade, que estou fora de meu juízo, que exagero. Pois seja, nada de melhor exigiria senão que me enganasse a este respeito.

"Não me acrediteis, considerai-me como um doente, mas lembrai-vos de minhas palavras; mesmo que eu não diga senão a vigésima parte da verdade, é de fazer fremir! Olhai quantos suicídios ocorrem entre os jovens! E eles se matam sem perguntar a si mesmos, como Hamlet, o que haveria 'em seguida", a questão da imortalidade da alma, da vida futura não existe para eles. Vede nossa corrupção, nossos devassos: ao lado deles Fiódor Pávlovitch, a desgraçada vítima deste processo, parece uma criança inocente. Ora, nós todos o conhecemos vivia entre nós... Sim, a psicologia do crime, na Rússia, será talvez estudada um dia por espíritos eminentes, entre nós e na Europa, porque o assunto vale a pena. Mas esse estudo virá depois, com vagar, quando a incoerência trágica da hora atual, não sendo mais que uma recordação, poderá ser analisada mais imparcialmente do que sou eu capaz de fazê-lo. No momento, nós nos atemorizamos ou fingimos atemorizar-nos, embora saboreando esse espetáculo, como amadores de sensações fortes, que sacodem nossa cínica ociosidade, ou, como as crianças, escondemos a cabeça sob o travesseiro à vista desses fantasmas que passam, para esquecê-los em seguida na alegria e nos prazeres. Mas um dia ou outro será preciso refletir, fazer nosso exame de consciência, dar-nos conta de nosso estado social. Um grande escritor do período prece­dente, no final de uma de suas obras-primas, comparando a Rússia a uma fogosa tróica, que galopa para um fim desconhecido, exclama: 'Ah! trói­ca, ligeira como um pássaro, quem pois te inventou?', e, num ímpeto de entusiasmo, acrescenta que, diante dessa tróica em disparada, todos os povos se afastam respeitosamente. [6] Seja assim, senhores, bem o quero, mas, na minha humilde opinião, o genial artista concluiu assim num acesso de entusiasmo ingênuo, ou talvez temesse a censura da época. Porque, atrelando somente seus heróis à sua tróica, os Sobakiévitch, [7] os Nosdriov, os Tchítchikov, qualquer que seja o cocheiro, ir-se-ia Deus sabe aonde com tais corcéis! Ora, são os corcéis de outrora, bem inferiores aos nossos, temos melhores... "

Aqui, o discurso de Ipolit Kirílovitch foi interrompido por aplausos. O liberalismo do símbolo da tróica russa agradou. Na verdade, os aplausos foram raros, de sorte que o presidente não achou mesmo neces­sário ameaçar o público de "mandar evacuar" a sala. No entanto, Ipolit Kirílovitch sentiu-se reconfortado: nunca o haviam aplaudido! Tinham recusado escutá-lo durante tantos anos e de repente podia fazer-se ouvir por toda a Rússia!

"Quem é, pois, essa família Karamázov, que adquiriu de súbito tão triste celebridade? Talvez exagere, mas parece-me que ela resume certos traços fundamentais de nossa sociedade contemporânea, em estado mi­croscópico, 'como uma gota de água resume o sol'. Vede aquele velho debochado, aquele pai de família que acabou tão tristemente. De raça nobre, tendo estreado na vida como mesquinho parasita, um casamento imprevisto proporciona-lhe um pequeno capital; a princípio vulgar, ve­lhaco e palhaço obsequioso, é antes de tudo um usurário. Com o tempo, à medida que se enriquece vai tomando asas. A humildade, a bajulação desaparecem, resta apenas um cínico mau e zombador, um debochado. Nenhum senso moral, uma sede de viver inextinguível. De parte os prazeres sensuais, nada existe, eis o que ele ensina a seus filhos. Na qualidade de pai, não reconhece nenhuma obrigação moral, zomba dela, deixa seus filhos ainda meninos nas mãos dos criados e regozija-se quando os levam. Esquece-se mesmo deles totalmente. Toda a sua moral se resume nesta frase: Après moi le déluge![8] É o contrário de um cidadão, destaca-se completamente da sociedade: 'Pereça o mundo, contanto que eu me ache bem, eu só'. E acha-se bem, sente-se comple­tamente contente, quer levar aquela vida ainda vinte ou trinta anos. Engana seu filho e com o dinheiro dele, herança de sua mãe que se recusa a entregar-lhe, procura tomar-lhe a amante. Não, não quero abandonar a defesa do acusado ao eminente advogado vindo de Petersburgo. Eu também direi a verdade, eu também compreendo a indignação acumulada no coração desse filho. Mas basta a respeito desse desgraçado velho: recebeu sua recompensa. Lembremos, no en­tanto, que era um pai e um pai moderno. Será caluniar a sociedade dizer que há nela muitos como ele? Ai! a maior parte dentre eles não se exprime com tanto cinismo porque são mais bem educados, mais instruídos, porém no fundo têm a mesma filosofia. Admitamos que seja eu pessimista. Está entendido que me perdoareis. Não me acrediteis, mas deixai que me explique, havereis de lembrar-vos, contudo, de algu­mas de minhas palavras. Vejamos os filhos desse homem. Um está diante de vós, no banco dos réus; serei breve a respeito dos outros. O mais velho destes é um desses rapazes modernos, brilhante pela sua instrução e pela sua inteligência, que não crê em nada no entanto e já renegou muitas coisas, como seu pai. Todos nós o ouvimos, era rece­bido cordialmente em nossa sociedade. Não ocultava suas opiniões, muito pelo contrário, o que me encoraja a falar agora dele com alguma franqueza, não a título pessoal, mas somente como membro da família Karamázov. Ontem, suicidou-se aqui, na extremidade da cidade, um desgraçado, idiota, implicado estreitamente neste processo, antigo criado e talvez filho natural de Fiódor Pávlovitch, Smierdiákov. Contou-me, lamuriando, no inquérito, como esse jovem Karamázov, Ivã Fiódoro­vitch, o amedrontara com seu niilismo moral: Tudo, segundo ele, é permitido, e nada doravante deve ser proibido. Eis o que ele me ensi­nava'. Essa doutrina deve ter acabado de desarranjar o espírito do idiota, se bem que certamente sua doença e o terrível drama ocorrido na casa lhe tenham também perturbado o cérebro. Mas esse idiota é o autor duma observação que teria feito honra a um observador mais inteligente, eis por que falei dele. 'Se há', disse-me ele, 'um dos filhos de Fiódor Pávlovitch que mais se parece com ele pelo caráter, é Ivã Fiódorovitch!' A respeito dessa observação, que considero caracterís­tica, não quero insistir mais, pois acho indelicado seguir por esse caminho. Oh! não quero tirar conclusões e prognosticar unicamente a ruína para esse jovem destino. Vimos hoje que a verdade é ainda poderosa no seu jovem coração, que os sentimentos familiares não estão ainda sufocados nele pela irreligião e pelo cinismo das idéias, inspira­dos ainda mais pela hereditariedade do que pelo verdadeiro sofrimento moral. O mais moço, ainda adolescente, é piedoso e modesto; ao inverso da doutrina sombria e dissolvente de seu irmão, aproxima-se dos 'princí­pios populistas', ou do que assim se chama em certos meios intelec­tuais. Ligou-se ao mosteiro, esteve mesmo quase a ponto de tomar o hábito. Encarna, parece-me, inconscientemente, o fatal desespero que leva uma multidão de pessoas em nossa desgraçada sociedade — por temor do cinismo corruptor e porque atribuem falsamente todos os nossos males à cultura ocidental — a voltar, como dizem, ao solo natal, a lançar-se, por assim dizer, nos braços da terra natal, como crianças aterrorizadas pelos fantasmas se refugiam sobre o seio esgotado de sua mãe, para dormir tranqüilamente e escapar às visões que as amedronta­vam. Quanto a mim, formulo os melhores votos para esse adolescente tão bem dotado, desejo que seus nobres sentimentos e suas aspirações pelos princípios populistas não degenerem posteriormente, como ocorre com freqüência, num sombrio misticismo do ponto de vista moral, e num estúpido chauvinismo do ponto de vista cívico, dois ideais que ameaçam a nação de males ainda mais graves, talvez, do que a perver­são precoce proveniente da cultura ocidental mal compreendida e adqui­rida em vão, tal como a de que sofre seu irmão. "

As alusões ao chauvinismo e ao misticismo receberam alguns aplau­sos. Sem dúvida, deixara-se Ipolit Kirílovitch arrebatar e tudo isso não quadraria com o processo, sem contar que era pouco claro, mas aquele tuberculoso avinagrado tinha muita vontade de fazer-se ouvir, pelo menos uma vez na vida. Contou-se mais tarde que, na caracterização de Ivã Fiódorovitch, obedecera a um sentimento pouco delicado: ba­tido uma ou duas vezes por ele em discussões em público, queria agora vingar-se. Ignoro se se podia concluir assim. Aliás, tudo isso não era senão uma introdução antes de abordar diretamente o caso.

"O terceiro filho dessa família moderna está no banco dos réus. Sua vida e suas façanhas se desenrolam diante de nós, chegou a hora em que tudo se exibe à luz meridiana. Ao contrário de seus irmãos, dos quais um é um 'ocidental', o outro um 'populista', representa a Rússia natural, não toda, Deus nos livre! E, no entanto, ei-la, a nossa querida Rússia, sente-se, ouve-se nele a mátuchka. Há em nós uma estranha liga de bem e de mal, amamos Schiller e a civilização, ao mesmo tempo fazemos barulho nos botequins e arrastamos pela barba nossos com­panheiros de embriaguez. Acontece-nos ser excelentes, mas só quando tudo nos vai bem. Nós nos entusiasmamos pelos mais nobres ideais, com a condição de alcançá-los sem esforço e sem que isso nos custe alguma coisa. Não gostamos de pagar, mas gostamos muito de receber. Fa­zei-nos a vida feliz, dai-nos todos os bens possíveis e vereis como somos gentis. Não somos ávidos, decerto, mas dai-nos o máximo de dinheiro possível e vereis com que desprezo pelo vil metal nós o dissi­paremos em uma noite de orgia. E, se nos recusam o dinheiro, mostra­remos como sabemos arranjá-lo, se preciso. Mas procedamos com ordem. Vemos em primeiro lugar o pobre menino abandonado, 'descalço no quintal', segundo a expressão de nosso respeitável concidadão, de origem alemã. Ai! Repito, não abandono a ninguém a defesa do acusado. Sou acusador e defensor. Somos também seres humanos, capazes de apreciar a influência das primeiras impressões de infância sobre o ca­ráter. Mas o menino torna-se um rapaz, ei-lo oficial; suas violências e uma provocação a duelo obrigam-no a exilar-se para uma cidade fron­teiriça. Naturalmente, farreia, leva vida a rédeas soltas. Temos sobre­tudo necessidade de dinheiro e, após longas discussões, transige com seu pai em troca de 6 000 rublos que lhe são enviados. Notai: assinou um papel; existe uma carta dele em que renuncia quase ao resto e termina, por esta soma, a questão por causa da herança. Foi então que travou conhecimento com uma moça culta, de nobre caráter. Não entrarei em detalhes, vós acabais de ouvi-los: trata-se de honra e de abnegação, e eu me calo. A imagem do rapaz frívolo e corrupto, mas inclinando-se diante da verdadeira nobreza, diante de uma idéia superior, nos pareceu das mais simpáticas. Mas em seguida, nesta mesma sala, mostraram-nos o reverso da medalha. Não ouso tampouco lançar-me em conjeturas e abstenho-me de analisar as causas. Nem por isto deixam essas causas de existir. Essa mesma pessoa, com as lágrimas de uma indignação muito tempo contida, declara-nos que foi ele o primeiro a desprezá-la pelo seu ímpeto imprudente, impetuoso talvez, porém nobre e generoso. O noivo desta jovem teve um sorriso zombador que somente dele não podia ela suportar. Sabendo que a havia traído (porque pensava ele poder per­mitir-se tudo no futuro, até mesmo a traição), sabendo disto, ela lhe entrega 3 000 rublos, dando-lhe a entender claramente que adivinha suas intenções: 'Pois bem! recebê-los-ás, sim ou não, terás a coragem?' diz-lhe seu olhar penetrante. Ele a olha, compreende-lhe perfeitamente o pensamento (ele mesmo o confessou perante vós), depois apropria-se desses 3 000 rublos e gasta-os em dois dias com seu novo amor. Em que acreditar? Na primeira lenda, no nobre sacrifício de seus derradeiros recursos e na homenagem à virtude, ou no reverso da medalha, na bai­xeza dessa conduta? Nos casos comuns, convém procurar a verdade entre os extremos; não é o caso aqui. Muito provavelmente, mostrou-se ele tão nobre da primeira vez como vil da segunda. Por quê? Porque somos uma 'natureza ampla' um Karamázov — eis onde quero chegar —, capaz de reunir todos os contrastes e de contemplar ao mesmo tem­po dois abismos, o do alto, o abismo dos sublimes ideais, e o de baixo, o abismo da mais ignóbil degradação. Lembrai-vos da brilhante idéia formulada ainda há pouco pelo Senhor Rakítin, o jovem observador, que estudou de perto toda a família Karamázov: 'À consciência da degra­dação é tão indispensável a essas naturezas desenfreadas quanto a cons­ciência da nobreza moral', e é verdade; essa mistura antinatural lhes é constantemente necessária. Dois abismos, senhores, dois abismos simul­taneamente, senão não estamos satisfeitos, falta alguma coisa à nossa existência. Somos amplos, amplos como nossa mãe, a Rússia, tudo admi­timos e a tudo nos acomodamos. A propósito, 'senhores jurados, acaba­mos de falar desses 3 000 rublos e me permito antecipar um pouco. Imaginai que com esse caráter, tendo recebido esse dinheiro ao preço duma tal vergonha, da derradeira humilhação, imaginai que no mesmo dia tenha podido separar a metade, costurá-la num amuleto e ter em seguida a constância de andar com ela um mês inteiro sobre seu peito, malgrado a falta de recursos e as tentações? Nem por ocasião de suas orgias nos botequins, nem quando lhe foi preciso deixar a cidade para arranjar em casa de sabe Deus quem o dinheiro necessário, a fim de subtrair sua bem-amada às seduções de seu pai, de seu rival, ousa tocar naquele amuleto. Não fosse senão para não deixar sua amiga exposta às intrigas do velho de que se mostrava tão ciumento, deveria ter des­feito seu amuleto e montado guarda em torno dela, aguardando o mo­mento em que ela lhe diria: 'Sou tua', para levá-la para longe daquele meio fatal. Mas não, não recorreu ao seu talismã, e sob qual pretexto? O primeiro pretexto, dissemo-lo, era que necessitava de dinheiro, no caso de querer sua amiga partir com ele. Mas esse primeiro pretexto, segundo as próprias palavras do acusado, deu lugar a um outro. Enquanto, diz ele, carregar comigo este dinheiro, 'sou um miserável, mas não um ladrão', porque posso sempre ir encontrar minha noiva e, apresentando-lhe a metade da soma de que fraudulentamente me apropriei, dizer-lhe: 'Vês, gastei a metade de teu dinheiro e provei que sou um homem fraco e sem consciência e, se queres, um miserável (emprego os termos do acusado), mas não um ladrão, porque então não te teria trazido esta me­tade, ter-me-ia apropriado dela como da primeira'. Singular explicação! Esse arrebatado sem caráter, que não pôde resistir à tentação de aceitar 3 000 rublos em condições tão vergonhosas, dá prova de súbito de uma firmeza estóica e anda com 1 000 rublos no pescoço sem ousar neles tocar! Quadra-se isto com o caráter que analisamos? Não, e permito-me contar-vos como o verdadeiro Dimítri Fiódorovitch teria procedido, se estivesse verdadeiramente decidido a costurar seu dinheiro num amuleto. À primeira tentação, fosse apenas para causar prazer à sua bem-amada, com a qual já havia despendido a metade do dinheiro, teria descosido o amuleto e retirado, digamos, 100 rublos para a primeira vez, porque de que serve restituir absolutamente a metade, quando 1 400 rublos são sufi­cientes? Dá na mesma: 'Sou um miserável e não um ladrão, porque resti­tuirei 1 400 rublos; um ladrão teria guardado tudo'. Algum tempo depois, teria de novo retirado uma cédula, depois uma terceira, e assim por dian­te, até a penúltima, no fim do mês: 'Um miserável, não um ladrão. Gastei 29 cédulas, restituirei a trigésima, um ladrão não agiria assim'. Mas essa penúltima cédula desapareceu por sua vez e teria ele olhado a der­radeira dizendo a si mesmo: 'Não vale mais a pena, gastemos esta como as outras!' Eis como teria procedido o verdadeiro Dimítri Karamázov, tal como o conhecemos! Quanto à lenda do amuleto, está em contradição absoluta com a realidade. Pode-se supor tudo, menos isso. Mas voltare­mos a isso. "

Depois de ter exposto ordenadamente tudo quanto o inquérito co­nhecia das discussões de interesses e relações entre pai e filho, con­cluindo de novo que era totalmente impossível estabelecer, a respeito da divisão da herança, a qual havia prejudicado o outro, Ipolit Kirílovitch, a propósito daqueles 3 000 rublos que se tornaram uma idéia fixa no espírito de Mítia, trouxe à baila a perícia médica.

 

BOSQUEJO HISTÓRICO

"A perícia médica quis provar-nos que o acusado não está em seu juízo cabal e é maníaco. Sustento que está no uso de sua razão; mas isto é o pior de tudo: se não estivesse com todo o seu juízo, talvez se tivesse mostrado mais inteligente. Eu reconheceria de boa vontade sua mania, mas num ponto somente, assinalado pela perícia, a maneira de ver o acusado a respeito desses 3000 rublos de que seu pai o havia frau­dado. Não obstante, pode-se encontrar um ponto de vista bem mais direto que a propensão do acusado à loucura para explicar sua exaspe­ração constante a propósito desse dinheiro. Quanto a mim, partilho intei­ramente da opinião do jovem médico que acha que o acusado goza e go­zava de todas as suas faculdades e estava apenas exasperado e irritado. Eis o que importa: não eram aqueles 3000 rublos que constituíam o objeto da exaltação constante do acusado, mas bem outra causa que excitava sua cólera. Essa causa era o ciúme!"

Aqui, Ipolit Kirílovitch estendeu-se a respeito da fatal paixão do acusado por Grúchenhka. "Começou pelo momento em que o acusado se dirigira à casa da 'jovem pessoa' para 'bater nela', de acordo com a expressão dele; mas, em lugar disso, ficou a seus pés e foi o começo desse amor. Ao mesmo tempo, essa pessoa é notada pelo pai do réu — coincidência fatal e surpreendente —, porque aqueles dois corações infla­maram-se ao mesmo tempo com uma paixão desenfreada, como verda­deiros Karamázovi, se bem que conhecessem desde antes a jovem mulher. Possuímos a própria confissão dela: 'Zombava', diz ela, 'de um e do outro'. Sim, essa intenção veio-lhe de repente ao espírito, e finalmente os dois ficaram enfeitiçados por ela. O velho, que adorava o dinheiro, preparou 3 000 rublos, somente para que ela fosse à casa dele, e em breve chegou a estimar-se feliz se ela consentisse em casar-se com ele. Temos testemunhos formais a este respeito. Quanto ao réu, conhecemos a tragédia que viveu. Mas tal era o 'jogo' da jovem pessoa, Essa sereia não deu nenhuma esperança ao desgraçado, senão no derradeiro mo­mento, quando, de joelhos diante dela, estendia-lhe os braços. 'Enviai-me para o presídio com ele, fui eu que o impeli, sou a culpada!', gritava ela com um sincero arrependimento por ocasião da detenção. O Senhor Rakítin, o talentoso jovem que já citei e que empreendeu descrever este caso, definiu em algumas frases concisas o caráter da heroína: 'Um desencanto precoce, a traição e o abandono do noivo que a seduzira, depois a pobreza, a maldição duma honesta família, por fim a proteção dum velho rico que, ' aliás, ela encara ainda agora como seu benfeitor. Naquele jovem coração, talvez inclinado ao bem, a cólera amontoou-se. Tornou-se calculista, amante da acumulação de dinheiro; zomba da so­ciedade e tem-lhe rancor'. Isto explica o ter podido ela zombar de um e de outro, por pura maldade. Durante esse mês em que o réu ama sem esperança, degradado pela sua traição e pela sua desonestidade, está além disso enlouquecido, exasperado por um ciúme incessante de seu pai. E, para cúmulo, o velho insensato esforça-se por seduzir o objeto de sua paixão por meio daqueles 3 000 rublos que seu filho lhe recla­ma como a herança de sua mãe. Sim, convenho que era duro de suportar! Havia motivo para ficar maníaco. E não era o dinheiro que importava, mas o cinismo repugnante que conspirava contra a sua feli­cidade, com aquele mesmo dinheiro!"

Em seguida, Ipolit Kirílovitch abordou a gênese do crime no espírito do réu, baseando-se nos fatos.

"Em primeiro lugar, limitamo-nos a vociferar nos botequins durante todo aquele mês. Dizemos voluntariamente tudo quanto nos passa pela cabeça, até mesmo as idéias mais perigosas. Somos expansivos, mas, não se sabe por que, exigimos que nossos ouvintes nos testemunhem inteira simpatia, tomem parte em nossos desgostos, façam coro, não nos estor­vem em nada. Senão, ai deles! (Seguia-se o caso do Capitão Snieguiriov. ) Os que viram e ouviram o acusado durante esse mês tiveram finalmente a impressão de que ele não se ateria a simples ameaças contra seu pai e que, na sua exasperação, era capaz de levá-las a efeito. (Aqui o pro­curador descreveu a reunião de família no mosteiro, as conversações com Aliócha e a cena escandalosa em casa de Fiódor Pávlovitch, em que o réu havia irrompido na sala depois do jantar. ) Não estou certo", pros­seguiu Ipolit Kirílovitch, "de que, antes dessa cena, tivesse já o réu re­solvido suprimir seu pai. Mas esta idéia lhe viera já, encarava-a, os fa­tos, as testemunhas e sua própria confissão o provam. Confesso, senho­res jurados, que até hoje hesitava em crer na premeditação completa. Estava persuadido de que havia ele encarado por várias vezes aquele momento fatal, mas sem precisar a data e as circunstâncias da execução. Minha hesitação cessou em presença desse documento esmagador, apre­sentado hoje ao tribunal pela Senhorita Vierkhóvtseva. Vós ouvistes, senhores, sua exclamação: 'É o plano, o programa do assassinato!' Eis como definiu ela aquela desgraçada carta de bêbado. Com efeito, essa carta estabelece a premeditação. Foi escrita dois dias antes do crime, e sabemos que naquele momento, antes da realização de seu horrendo projeto, jurava o réu que, se não encontrasse quem lhe emprestasse o dinheiro no dia seguinte, mataria seu pai para tomar o dinheiro que estava embaixo do travesseiro, 'num envelope amarrado com uma fita côr-de-rosa, assim que Ivã partir'. Estais ouvindo? 'Assim que Ivã par­tir... ' Por conseguinte, tudo está combinado, as circunstâncias são pre­vistas, e tudo se passou como ele o escrevera. A premeditação não tem dúvida alguma, o crime tinha o roubo como móvel, está escrito e assi­nado. O acusado não renega sua assinatura. Dir-se-á: é a carta de um bêbado. Mas isto não atenua nada, pelo contrário; escreveu, estando bêbado, o que havia combinado em estado lúcido. Senão, ter-se-ia absti­do de escrever. Mas, objetar-se-á talvez, por que gritou seu projeto nos botequins? Quem premedita tal ato cala-se e mantém seu segredo. Ê verdade, mas então tinha ele apenas veleidades, sua intenção amadu­recia. Posteriormente, mostrou-se mais reservado a esse respeito. Na noite em que escreveu aquela carta, depois de ter-se embriagado no bo­tequim A Capital, ficou excepcionalmente silencioso, manteve-se à parte sem jogar bilhar, limitando-se a maltratar um caixeiro de armazém, mas inconscientemente, incapaz de renunciar a discutir, de acordo com seu hábito. Decerto, uma vez resolvido a agir, devia o réu recear ter-se ga­bado por demais em público de suas intenções, e que isso pudesse servir de prova contra ele, quando executasse seu plano. Mas que fazer? Não podia recolher suas palavras e esperava safar-se ainda dessa vez. Fiamo-nos em nossa estrela! Senhores! Deve-se reconhecer que fez ele grandes esforços antes de chegar a esse ponto e para evitar um desenlace san­grento: 'Pedirei amanhã dinheiro a todo mundo', escreve ele na sua lin­guagem original, 'e se mo recusarem, o sangue correrá'. De novo, vemo-lo agir em estado lúcido, como tinha escrito quando estava ébrio!"

Aqui, Ipolit Kirílovitch descreveu pormenorizadamente as tentativas de. Mítia para arranjar dinheiro, para evitar o crime. Relatou suas ges­tões junto a Samsónov, sua visita a Liagávi. "Fatigado, mistificado, fa­minto, tendo vendido seu relógio para pagar a viagem (embora levando consigo 1500 rublos, com efeito!), atormentado pelo ciúme por causa de sua bem-amada que deixou na cidade, suspeitando de que na sua ausência pudesse ela ir encontrar-se com Fiódor Pávlovitch, regressa afinal. Deus seja louvado! Ela não esteve lá. Ele próprio a acompanha à casa de seu protetor Samsónov. (Coisa estranha, não temos ciúme de Samsónov, e é este um detalhe característico!) Corre a seu posto de observação 'no quintal' e ali sabe que Smierdiákov teve uma crise, que o outro criado está doente; o campo está livre, os 'sinais' estão em suas mãos, que tentação! Não obstante, resiste; vai à casa de uma pessoa por todos respeitada, a Senhora Khokhlakova. Esta senhora, que se compa­deceu desde muito tempo da sorte dele, dá-lhe o mais sábio dos conse­lhos: renunciar à farra, àquele amor escandaloso, àquelas excursões pelos botequins, em que se gastava sua jovem energia, e partir para as minas de ouro, na Sibéria: 'Lá está o derivativo para as forças que refervem no senhor, para seu caráter romanesco, ávido de aventuras'. " Depois de ter descrito o desenlace do encontro e o momento em que o réu soube de repente que Grúchenhka não ficou em casa de Samsónov, bem como o furor do infeliz ciumento, à idéia de que ela o enganava e se encon­trava agora em casa de Fiódor Pávlovitch, Ipolit Kirílovitch concluiu, fazendo notar a fatalidade desse incidente: "Se a criada tivesse tido tempo de dizer-lhe que a bem-amada dele estava em Mókroie com seu primeiro amante, nada teria acontecido. Mas estava transtornada, jurou a seus deuses, e se o réu não a matou ali mesmo foi porque correu em perseguição da infiel. Mas notai isto: embora fora de si, apodera-se de um pilão de cobre. Por que precisamente um pilão? Por que não outra arma? Mas se nos preparávamos para essa cena, encarada havia um mês, se qualquer coisa parecida com uma arma se nos apresenta, dela nos apoderamos como tal. Desde um mês, dizíamos a nós mesmos que um objeto daquele gênero poderia servir de arma. De modo que não hesitamos. Por conseguinte, o réu sabia o que fazia ao agarrar aquele fatídico pilão. Ei-lo no jardim de seu pai, o campo está livre, nenhuma testemunha, uma escuridão profunda e o ciúme. A suspeita de que ela está ali, nos braços de seu rival, e zomba dele talvez naquele instante, apodera-se de seu espírito. E não somente a suspeita, trata-se bem disto, a velhacaria salta aos olhos: ela está ali, naquele quarto onde há luz, está em casa dele, por trás do biombo, e o infeliz desliza para a janela, olha com delicadeza, resigna-se e se vai prudentemente para não pra­ticar uma desgraça, para evitar o irreparável; e querem fazer-nos acre­ditar nisso, a nós que conhecemos o caráter do acusado, que compreen­demos seu estado de espírito revelado pelos fatos, sobretudo então quan­do estava a par dos sinais que permitiam penetrar logo na casa!"

A este propósito, Ipolit Kirílovitch abandonou provisoriamente a acusa­ção e achou necessário estender-se a respeito de Smierdiákov, a fim de liquidar o episódio das suspeitas dirigidas contra ele e de liquidar duma vez por todas essa idéia. Não negligenciou nenhum detalhe e todo mundo compreendeu que, malgrado o desdém que testemunhava por essa hipótese, considerava-a, no entanto, muito importante.

 

DISSERTAÇÃO A RESPEITO DE SMIERDIÁKOV

"Em primeiro lugar, donde vem a possibilidade de semelhante sus­peita? Quem primeiro denunciou Smierdiákov como o assassino foi o próprio réu, por ocasião de sua prisão; contudo, até hoje, não apresen­tou ele o menor fato em apoio dessa inculpação, nem mesmo uma alusão mais ou menos verossímil a um fato qualquer. Em seguida, três pessoas somente confirmam seus dizeres: seus dois irmãos e a Senhora Svietlova. Mas o mais velho formulou essa suspeita somente hoje, no curso dum acesso de demência e de febre nervosa; antes, durante estes dois meses, estava persuadido da culpabilidade de seu irmão e nem. mesmo procurou combater essa idéia. Aliás, voltaremos a isso. O mais moço declara não ter nenhuma prova que confirme sua idéia da culpabilidade de Smierdiákov e se baseia unicamente nas palavras do acusado e na 'ex­pressão de seu rosto'; proferiu duas vezes ainda há pouco esse argu­mento extraordinário. A Senhora Svietlova exprimiu-se duma maneira talvez ainda mais estranha: 'Podeis crer no acusado, não é homem de mentiras*. Eis todas as acusações alegadas contra Smierdiákov, por essas três pessoas que estão muito interessadas na sorte do réu. E no en­tanto a acusação contra Smierdiákov circulou e persiste; pode-se acre­ditar nisso, pode-se imaginá-la?"

Aqui, Ipolit Kirílovitch julgou necessário esboçar o caráter de Smier­diákov, "que pôs fim a seus dias numa crise de loucura". Apresentou-o como um ser fraco, de instrução rudimentar, conturbado por idéias filo­sóficas acima de seu alcance, aterrorizado diante de certas doutrinas mo­dernas sobre o dever e a obrigação moral, que lhe inculcavam — na prática —, pela sua vida descuidada, seu amo Fiódor Pávlovitch, talvez seu pai, e — na teoria —, por meio de conversações filosóficas estranhas, o filho mais velho do defunto, Ivã Fiódorovitch, que apreciava essa diversão, sem dúvida por tédio ou por uma necessidade de zombaria, não tendo encontrado outro emprego. "Descreveu-me ele próprio seu estado de espírito, os derradeiros dias que passou na casa de seu amo", explicou Ipolit Kirílovitch, "mas outras pessoas atestam a coisa: o acusado, seu irmão e até mesmo o criado Gregório, isto é, todos aqueles que deviam conhecê-lo de perto. Além disso, atingido de epilepsia, Smierdiákov era medroso como uma galinha. 'Caía a meus pés e beijava-os', declarou-nos o réu, quando não compreendia ainda o prejuízo que poderia causar-lhe essa declaração, 'é uma galinha epiléptica*, dizia ele do outro na sua linguagem pitoresca. E eis que o acusado (ele mesmo o atesta) faz dele seu homem de confiança e o intimida a ponto de consentir ele afinal em servir-lhe de espião e de informante. Nesse papel de espião, trai seu amo, revela ao acusado a existência do envelope das cédulas e os sinais por meio dos quais pode-se chegar até ele; aliás, poderia ele agir de outro modo? 'Ele me matará, dava-me bem conta disso', dizia ele, tre­mendo, no inquérito, se bem que seu carrasco já estivesse detido e fora de condições de molestá-lo. 'Suspeitava de mim a cada instante e eu, gelado de terror, apressava-me, para acalmar-lhe a cólera, em comuni­car-lhe todos os segredos, a fim de provar minha boa fé e ter a vida salva'. Tais são as palavras, anotei-as. 'Quando gritava por mim, acon­tecia-me atirar-me a seus pés. * De natural bastante honesto, gozando da confiança de seu amo, que comprovara essa honestidade quando seu criado lhe entregou o dinheiro que ele havia perdido, o infeliz Smierdiá­kov deve ter sentido profundo arrependimento de sua traição aquele a quem amava como seu benfeitor. Os epilépticos, gravemente atacados, de acordo com o relato de psiquiatras eminentes, têm a mania de acusar-se a si mesmos. A consciência de sua culpabilidade atormenta-os, têm remorsos, muitas vezes sem motivos, exageram suas faltas, forjam mes­mo crimes imaginários. Acontece que semelhante indivíduo torna-se ver­dadeiramente culpado e criminoso, sob a influência do medo, da inti­midação. Além disso, pressentia ele a possibilidade duma desgraça, em vista das circunstâncias. Quando o filho mais velho de Fiódor Pávlovitch, Ivã Fiódorovitch, partiu para Moscou, no mesmo dia do drama, Smier­diákov suplicou-lhe que ficasse, mas sem ousar, com sua covardia habi­tual, dar-lhe parte de seus temores de uma maneira categórica. Limitou-se a alusões que não foram compreendidas. É preciso notar que, para Smierdiákov, Ivã Fiódorovitch representava como que uma defesa, uma garantia de que nada de desagradável aconteceria enquanto estivesse ele presente. Lembrai-vos da frase de Dimítri Fiódorovitch na sua carta de ébrio: 'Matarei o velho, contanto que Ivã parta'. Por conseguinte, a pre­sença de Ivã Fiódorovitch parecia a todos garantir a ordem e a calma na casa. Parte ele e Smierdiákov, cerca de uma hora depois, tem uma crise, aliás bastante compreensível. É preciso mencionar aqui que, presa do terror e duma espécie de desespero, Smierdiákov, nos derradeiros dias, sentia particularmente a possibilidade de uma crise próxima, que se pro­duzia sempre nas horas de ansiedade e de viva emoção. Não se podem evidentemente adivinhar o dia e a hora desses ataques, mas cada epilépti­co pode sentir-lhes os sintomas. Assim fala a medicina. Um pouco de­pois da partida de Ivã Fiódorovitch, Smierdiákov, que se sente abando­nado e sem defesa, vai à adega para atender às necessidades da casa e pensa, ao descer a escada: Terei ou não um ataque, e se ele me tomasse' agora?' Precisamente, aquele estado de espírito, aquela apreensão, aque­las perguntas provocam o espasmo na garganta, precursor da crise; pre­cipita-se sem conhecimento no fundo da adega. Esforçam-se em suspeitar desse acidente bem natural, em ver nele uma indicação, uma alusão revelando a simulação voluntária da doença! Mas, neste caso, pergunta-se logo: 'Por quê? Com que fim?' Deixo de lado a medicina; a ciência» mente, dizem, a ciência se engana, os doutores não souberam distinguir a verdade da simulação; pois seja, admitamos, mas respondei a esta per­gunta: que razão tinha ele para simular? Seria para se fazer notar de antemão na casa onde premeditava um assassínio? Vede, senhores jura­dos, houve cinco pessoas em casa de Fiódor Pávlovitch, na noite do crime: em primeiro lugar, o dono da casa, mas não se matou a si mes­mo, é claro; em segundo lugar, seu criado Gregório, mas quase foi morto; em terceiro lugar, a mulher de Gregório, Marfa Ignátievna, mas seria uma vergonha supô-la assassina de seu amo. Restam, por conseqüência, duas pessoas em causa: o réu e Smierdiákov. Mas como o acusado afir­ma que não é ele o assassino, deve ser Smierdiákov, não há outra alter­nativa, porque não se pode suspeitar de ninguém mais. Eis a explicação dessa acusação 'sutil' e extraordinária contra o infeliz idiota que se sui­cidou ontem! Justamente porque não havia ninguém em quem deitar a mão! Se tivesse existido a mínima suspeita contra algum outro, uma sexta pessoa, estou certo de que o próprio réu teria tido vergonha de acusar então Smierdiákov e acusaria esse outro, porque é perfeitamente absurdo acusar Smierdiákov desse assassinato.

"Senhores, deixemos a psicologia, deixemos a medicina, deixemos mes­mo a lógica, consultemos os fatos, nada mais que os fatos, e vejamos, o que eles nos dizem. Smierdiákov matou, mas como? Só ou de cumpli­cidade com o réu? Examinemos primeiro o primeiro caso, isto é, o assas­sinato cometido sozinho. Evidentemente, se Smierdiákov matou, foi por alguma coisa, num interesse qualquer. Mas, não tendo nenhum dos mo­tivos que impeliam o acusado, isto é, o ódio, o ciúme, etc, Smierdiákov só matou para roubar, para se apropriar daqueles 3 000 rublos que seu patrão metera, diante dele, em um envelope. E eis que. tendo resolvido matar, comunica previamente a outra pessoa, que acontece ser a mais interessada, precisamente o réu, tudo quanto se refere ao dinheiro e aos sinais, o lugar onde se encontra o envelope, seu sobrescrito, com que está ele amarrado, e sobretudo lhe comunica aqueles sinais, por meio dos quais pode-se entrar em casa de seu amo. Pois bem! é para se trair que ele age assim? Ou a fim de arranjar um rival que talvez tenha tam­bém vontade de vir a apoderar-se do envelope? Sim, dir-se-á, mas falou dominado pelo medo. Como assim? O homem que não hesitou em con­ceber um ato tão ousado e feroz, e em executá-lo em seguida, comunica semelhantes informações, que é o único a conhecer no mundo e que ninguém teria jamais adivinhado, se tivesse ele guardado silêncio. Não, por mais medroso que fosse, depois de ter concebido tal ato, esse homem não teria falado a ninguém a respeito do envelope e dos sinais, porque teria sido trair-se de antemão. Teria inventado alguma coisa de propó­sito e mentido, se tivessem exigido dele informações, mas guardado si­lêncio a respeito. Pelo contrário, repito-o, se não tivesse dito palavra a respeito do dinheiro e dele se tivesse apossado após o delito, ninguém no mundo teria jamais podido acusá-lo de assassinato tendo o roubo como móvel, porque ninguém, exceto ele, tinha visto aquele dinheiro, ninguém sabia da existência dele na casa. Mesmo acusando-o, ter-se-ia atribuído outro motivo ao crime. Mas na ausência de outros motivos prévios, e como todo mundo, ao contrário, tinha-o visto estimado por seu amo, honrado com sua confiança, ter-se-ia suspeitado logo de início de um homem tendo esses motivos, de um homem que, longe de dis­simulá-los, ter-se-ia gabado publicamente, em uma palavra, ter-se-ia sus­peitado do filho da vítima, Dimítri Fiódorovitch. Teria sido vantajoso para Smierdiákov, assassino e ladrão, que se acusasse esse filho, não é? Pois bem! é a ele, é a Dimítri Fiódorovitch que Smierdiákov, tendo premeditado seu crime, fala de antemão do dinheiro, do envelope, dos sinais; que lógica, que clareza!!!

"Chega o dia do crime premeditado por Smierdiákov, e ele cai da escada, tendo simulado um ataque de epilepsia. Por quê? Sem dúvida para que o criado Gregório, que tinha intenção de tratar-se, renuncie a isso talvez vendo a casa sem vigilância, e monte guarda. Provavelmente também a fim de que o próprio patrão, vendo-se abandonado e temendo a vinda de seu filho, o que ele não ocultava, redobrasse de descon­fiança e de precauções. Sobretudo, enfim, para que o transportem ime­diatamente, a ele, Smierdiákov, esgotado pela sua crise, da cozinha onde dormia só e tinha sua entrada particular, para a outra extremidade do pavilhão, no quarto de Gregório e de sua mulher, por trás duma sepa­ração, como faziam sempre que tinha ele um ataque, de acordo com as instruções do amo e da compassiva Marfa Ignátievna. Ali, oculto atrás do biombo e para melhor parecer doente, começa sem dúvida a gemer, isto é, a despertá-los a noite inteira (o depoimento deles faz fé), e tudo isso a fim de se levantar mais facilmente e matar em seguida seu pa­trão!

"Mas, dir-se-á, talvez simulasse uma crise precisamente para desviar as suspeitas, e falou ao réu a respeito do dinheiro e dos sinais para tentá-lo e impeli-lo ao crime. E quando o réu, depois de ter matado, retirou-se. levando o dinheiro e talvez fez barulho e despertou testemunhas, então, vede, Smierdiákov se levanta e vai também... pois bem, que vai ele fazer? Vai assassinar uma segunda vez o patrão e roubar o dinheiro já roubado. Senhores, não é isto caso para rir? Eu mesmo tenho vergonha de fazer tais suposições; no entanto, imaginai que é precisamente o que afirma o acusado: 'Quando eu já havia partido', diz ele, 'depois de ter abatido Gregório e provocado o alarma, Smierdiákov se levantou para assassinar e roubar'. Deixo de lado a impossibilidade para Smierdiákov de calcular e de prever os acontecimentos, a vinda do filho exasperado que se contenta com olhar respeitosamente pela janela e, conhecendo os sinais, retira-se e lhe abandona sua presa! Senhores, proponho a pergun­ta seriamente: em que momento Smierdiákov cometeu seu crime? In­dicai esse momento, senão a acusação tomba.

"Mas talvez a crise fosse real. Tendo recuperado seus sentidos, o doente ouviu um grito, saiu, e então? Olhou e disse a si mesmo: 'Está decidido: matarei o patrão!' Mas como soube ele o que se tinha pas­sado, jazendo até então sem conhecimento? Aliás, senhores, a própria fantasia tem seus limites.

" 'Pois seja', dirão as pessoas sutis, 'mas se os dois estivessem de coni­vência, se houvessem assassinado juntos e partilhado o dinheiro?'

"Sim, há, com efeito, uma suspeita grave, e, antes de tudo, com fortes presunções em apoio: um deles assassina e se encarrega de tudo, en­quanto o outro cúmplice fica deitado simulando uma crise precisamente para despertar de antemão a suspeita em todos, para alarmar o patrão e Gregório. Pergunta-se: por quais motivos teriam podido os dois cúmpli­ces imaginar plano tão absurdo? Mas talvez não houvesse senão uma cumplicidade passiva da parte de Smierdiákov; talvez, apavorado, con­sentiu apenas em não se opor ao assassínio e, pressentindo que o acusa­riam, pode ter deixado matar seu amo sem defendê-lo, terá obtido de Dimítri Karamázov a permissão de ficar deitado durante aquele tempo, como se tivesse uma crise: 'Estás livre para assassinar, nada tenho com isso'. Neste caso, como essa crise teria posto a casa em alvoroço, Dimítri Karamázov não podia consentir em tal convenção. Mas admito que te­nha consentido; nem por isso deixaria de resultar que Dimítri Karamázov é o assassino direto, o instigador, e Smierdiákov, um cúmplice passivo, e nem mesmo isso; deixou simplesmente fazer, por temor e contra a sua vontade; esta distinção não teria escapado à justiça; ora, que ve­mos? Por ocasião de sua detenção, o acusado lança toda a culpa sobre Smierdiákov e acusa-o, só a ele. Não o acusa de cumplicidade; só ele é que assassinou e roubou, é obra de suas mãos. Mas que cúmplices são esses que começam logo a acusar-se? Isto não existe. E notai que risco para Karamázov: é o principal assassino, o outro limitou-se a deixar fazer, deitado atrás do tabique, e ele o ataca. Mas esse comparsa poderia zangar-se e, por instinto de conservação, apressar-se em dizer toda a verdade; participamos todos dois, contudo, eu não matei, somente to­lerei e deixei fazer, por temor. Porque Smierdiákov podia compreender que a justiça discerniria logo seu grau de culpabilidade, e contar com um castigo bem menos rigoroso que o principal assassino, que queria atirar toda a culpa sobre ele. Mas então teria forçosamente confessado. Contudo, nada disso se dá. Smierdiákov não soprou palavra a respeito da cumplicidade, se bem que o assassino o haja acusado formalmente e apontado todo o tempo como o único autor do crime. Não é tudo; Smierdiákov revelou no inquérito que havia ele próprio falado ao acusa­do do envelope com o dinheiro e dos sinais, e que sem ele este nada teria sabido. Se tivesse sido verdadeiramente cúmplice e culpado, teria comunicado a coisa tão voluntariamente no inquérito? Pelo contrário, ter-se-ia desdito, teria certamente desnaturado e atenuado os fatos. Mas não agiu assim. Somente um inocente, que não teme ser acusado de cumplicidade, pode agir dessa maneira. Pois bem! num acesso de me­lancolia mórbida consecutivo à epilepsia e a todo esse drama, enfor­cou-se ontem, depois de ter escrito este bilhete: 'Ponho fim a meus dias voluntariamente. Não acusem ninguém de minha morte'. Que lhe custa­ria acrescentar: sou eu o assassino e não Karamázov? Mas não fez nada disso; sua consciência não chegou a esse ponto.

"Ainda há pouco, trouxeram dinheiro ao tribunal, 3 000 rublos, 'as cédulas que se encontravam no envelope que figurava entre as peças de convicção, recebi-as ontem de Smierdiákov'. Mas vós não vos es­quecestes, senhores jurados, dessa triste cena. Não lhe tornarei a traçar os detalhes, contudo permitir-me-ei duas os três observações escolhidas de propósito entre as mais insignificantes, porque não surgirão no espí­rito de cada um e serão esquecidas. Em primeiro lugar, foi por remorso que ontem Smierdiákov restituiu o dinheiro e enforcou-se. (De outro modo não o teria restituído.) E não foi senão ontem à noite evidente­mente que confessou pela primeira vez seu crime a Ivã Karamázov, como este último o declarou, senão por que teria este guardado silên­cio até agora? Confessou, admitamos. Mas, por que, repito-o, não disse toda a verdade no seu bilhete fúnebre, sabendo que no dia se­guinte iam julgar um inocente? O dinheiro apenas não constitui uma prova. Soube completamente por acaso, há uma semana, bem como duas pessoas aqui presentes, que Ivã Fiódorovitch Karamázov mandara trocar na sede da província dois títulos de dívida a 5 por cento, de 5 000 rublos cada um, ou seja, 10 000 ao todo. Isto para mostrar que sempre se pode arranjar dinheiro para uma data fixa e que os 3 000 rublos apresentados não são necessariamente os mesmos que se encon­travam na gaveta ou no envelope. Enfim, tendo Ivã Karamázov colhido ontem as confissões do verdadeiro assassino, ficou em seu quarto. Por que não fez imediatamente sue declaração? Por que ter esperado até o dia seguinte? Estimo que se possa adivinhar a razão disso; doente desde uma semana, tendo confessado ao médico e aos que o cercavam que tinha alucinações e encontrava pessoas mortas, ameaçado pela febre nervosa que se declarou hoje, ao saber de súbito da morte de Smierdiá­kov, fez este raciocínio: 'Esse homem está morto, pode-se acusá-lo, salvarei meu irmão. Tenho dinheiro, apresentarei um maço de cédulas, dizendo que Smierdiákov mas entregou antes de morrer'. É desones­to, direis, se bem que acuse um morto, mas não é desonesto mentir, mesmo para salvar seu irmão? Pois seja, mas se mentiu inconsciente­mente, se imaginou que tenha acontecido, com o espírito definitiva­mente transtornado pela notícia da morte súbita do lacaio? Assistis­tes àquela cena ainda há pouco, vistes em que estado se encontra­va aquele homem. Mantinha-se de pé e falava, mas onde estava sua razão? O depoimento do doente foi seguido de um documento, de uma carta do réu à Senhorita Vierkhóvtseva, escrita dois dias antes do crime de que contém o programa detalhado. De que serve procurar esse programa e seus autores? Tudo se passou exatamente de acor­do com ele e ninguém ajudou o autor! Sim, senhores jurados, isso se passou como estava escrito!' E não fugimos com um temor respeitoso da janela paterna, sobretudo estando persuadidos de que nossa bem-ama­da se encontrava nos aposentos dele. Não, é absurdo e inverossímil. Ele entrou e foi até o fim. Deve ter matado num acesso de furor, vendo seu' rival detestado, talvez com um só golpe de pilão, mas em seguida, de­pois de ter-se convencido por um exame detalhado de que ela não estava ali, não se esqueceu de meter a mão sob o travesseiro e de apoderar-se do envelope com o dinheiro, que figura agora, rasgado, entre as peças de convicção. Falo disso para assinalar-vos uma circunstância caracte­rística. Um assassino experimentado, vindo exclusivamente para roubar, teria deixado no soalho o envelope, tal como foi encontrado junto do cadáver? Smierdiákov, por exemplo, teria levado tudo, sem se dar o tra­balho de abri-lo perto de sua vítima, sabendo bem que ele continha di­nheiro, pois que o vira ser nele metido e lacrado; ora, desaparecido o envelope, não se podia saber se houvera roubo. Pergunto-vos, senhores jurados, teria Smierdiákov agido assim e deixado o envelope no chão? Não, assim devia proceder um assassino furioso, incapaz de refletir, nunca tendo roubado nada e que, mesmo agora, se apropria do dinheiro, não como um vulgar malfeitor, mas como alguém que retoma seus bens da­quele que os roubou, porque tais eram precisamente, a respeito daqueles 3 000 rublos, as idéias de Dimítri Karamázov, que nele chegavam já à mania. De posse do envelope, que jamais vira antes, rasga-o para certi­ficar-se de que contém dinheiro, depois atira-o fora e foge com as cé­dulas no seu bolso, sem suspeitar de que deixa assim atrás de si, sobre-o soalho, uma prova esmagadora. Tudo porque foi Karamázov e não Smierdiákov, e não refletiu, aliás não tinha tempo. Foge, ouve o grito do criado que o alcança, que o agarra, que o detém, vacila e caí der­rubado por uma pancada de pilão. O réu salta do alto da paliçada por compaixão. Imaginai que" ele nos garante que desceu por piedade, por compaixão, para ver se podia socorrê-lo. Mas seria aquele o momento para enternecimentos? Não, tornou a descer precisamente para cer­tificar-se de que estivesse ainda viva a única testemunha de seu crime. Qualquer outro sentimento, qualquer outro motivo teriam sido insólitos! Notai que ele se mostra solícito para com Gregório, enxuga-lhe a cabeça com o lenço, depois, crendo-o morto, como que desvairado, coberto de sangue, corre de novo à casa de sua bem-amada; como não pensou ele que naquele estado imediatamente o acusariam? Mas o próprio réu nos assegura que não prestou atenção a isso; pode-se admiti-lo, é muito possível, isto acontece sempre aos criminosos em semelhantes momen­tos. Dum lado, um cálculo infernal, do outro, o raciocínio falha. Mas naquele minuto perguntava ele somente a si mesmo onde ela estava. Na sua pressa de sabê-lo, corre à sua casa e sabe duma notícia imprevista, esmagadora para ele; ela partiu para Mókroie a fim de juntar-se ao seu antigo amante, 'o indiscutível'. "

 

PSICOLOGIA A VAPOR. A TRÓICA EM DISPARADA. PERORAÇÃO

Chegado a este momento de seu discurso, Ipolit Kiríloviích, que ha­via evidentemente escolhido o método de exposição rigorosamente his­tórico, muito do agrado de todos os oradores nervosos que procuram de propósito quadros estritamente delimitados, a fim de moderar seu ardor, estendeu-se a respeito do primeiro amante, 'o indiscutível', e for­mulou a esse respeito algumas idéias interessantes. "Karamázov, feroz­mente ciumento de todos, apaga-se de súbito e desaparece diante do 'antigo' e do 'indiscutível'. E é tanto mais estranho que antes quase não prestara atenção ao novo perigo que o ameaçava na pessoa desse rival inesperado. Mas representava-se isso como distante, e Karamá­zov só vive no momento presente. Provavelmente, considerava-o mes­mo como uma ficção, mas tendo logo compreendido, com seu coração dolorido, que a dissimulação daquela mulher, sua mentira de ainda há pouco, provinham talvez do fato de que esse novo rival, longe de ser um capricho e uma ficção, representava tudo para ela, toda sua espe­rança na vida. Tendo compreendido isso, resignou-se. Pois bem, se­nhores jurados, não posso passar em silêncio esse traço inesperado no réu: de súbito apareceram a sede da verdade, a necessidade imperiosa de respeitar aquela mulher, de reconhecer os direitos de seu coração, e isto no momento em que, por ela, acabava de tingir suas mãos no sangue de seu pai! É verdade que o sangue vertido gritava já vingança, porque, tendo perdido sua alma, destruído sua vida terrestre, devia, malgrado seu, perguntar a si mesmo naquele momento: 'Que sou eu, que posso eu ser agora para ela, para essa criatura querida mais que tudo no mundo, em comparação com esse primeiro amante, 'o indis­cutível', com aquele que, arrependido, volta para essa mulher seduzida outrora por ele, com um novo amor, com propostas leais e a promessa de uma vida regenerada e doravante feliz?' Mas ele, o desgraçado, que pode ele oferecer-lhe agora? Karamázov compreendeu tudo isso e que seu crime lhe barrava a estrada, que não passava de um criminoso votado ao castigo, indigno de viver! Esta idéia o esmagou, aniquilou-o. Imediatamente, decide-se por um plano insensato que, dado o seu ca­ráter, devia parecer-lhe a única saída para sua terrível situação: o sui­cídio. Corre a desempenhar suas pistolas em casa do funcionário Pier­khótin, e, de caminho, tira de seu bolso o dinheiro por causa do qual acaba de manchar suas mãos no sangue de seu pai. Oh! agora mais do que nunca tem ele necessidade de dinheiro; Karamázov vai morrer, Karamázov se mata; hão de lembrar-se disso! Não é por coisa nenhuma que somos poeta, não é por coisa nenhuma que queimamos nossa vida como uma vela, pelos dois- lados. Alcançá-la e, lá, uma festa de arrom­ba, uma festa como jamais se viu, para que fique na lembrança e dela se fale por muito tempo. No meio dos gritos selvagens, das loucas can­ções e das danças dos ciganos, ergueremos nosso copo para felicitar a bem-amada pela sua nova felicidade, depois ali, diante dela, a seus pés, estouraremos os miolos, para redimir nossas faltas. Ela se recordará de Mitia Karamázov, verá quanto a amava, lamentará Mítia! Aí temos o pitoresco, a exaltação romanesca em quantidade, reencontramos o ar­rebatamento selvagem e a sensualidade dos Karamázòvi, mas há algo mais, senhores jurados, que grita na alma, impressiona o espírito sem cessar, envenena o coração até a morte; esse algo é a consciência, se­nhores jurados, é seu julgamento, é o remorso. Mas a pistola concilia tudo, é a única solução; quanto ao outro mundo, ignoro se Karamázov pensou então no que haveria do outro lado e se é capaz disso, como Hamlet. Não, senhores jurados, em outra parte, tem-se Hamlet, nós não temos senão Karamázov!'*

Aqui, Ipolit Kirílovitch traçou um quadro detalhado dos fatos e ges­tos de Mítia, da cena em casa de Pierkhótin, no botequim, com os co­cheiros. Citou uma multidão de frases confirmadas por testemunhas, e o quadro se impunha à convicção dos ouvintes. Sobretudo impressio­nava o conjunto dos fatos. A culpabilidade daquele ser desorientado, descuidoso de sua segurança, saltava aos olhos. "De que servia a pru­dência?", prosseguiu Ipolit Kirílovitch. "Duas ou três vezes esteve ele a ponto de confessar e fez alusões (seguiam-se os depoimentos das tes­temunhas). Gritou mesmo ao cocheiro na estrada: 'Sabes que conduzes um assassino?* Mas não podia dizer tudo; era-lhe preciso em primeiro lugar chegar à aldeia de Mókroie e ali terminar o poema. Ora, que é que esperava o infeliz? O fato é que em Mókroie percebeu logo que seu rival indiscutível' não é irresistível e que suas felicitações a pro­pósito da nova felicidade não são recebidas com agrado. Mas conheceis já os fatos, senhores jurados, segundo o inquérito. O triunfo de Kara­mázov sobre seu rival foi completo; então começa para ele uma crise terrível, a mais terrível de todas as que atravessou. Pode-se reconhecer, senhores jurados, que a natureza ultrajada e o coração criminoso exer­cem um castigo mais rigoroso que o da justiça humana! Além disso, os castigos que ela inflige trazem um abrandamento à expiação da na­tureza, são mesmo necessários à alma do criminoso naqueles momen­tos, para salvá-la do desespero, porque posso imaginar o horror e o sofrimento de Karamázov ao saber que ela o amava, que ela repelia por causa dele o antigo amante, que o convidava a ele, Mítia, a uma vida regenerada, prometia-lhe a felicidade, e isto quando tudo está para ele acabado, quando nada mais é possível! A propósito, eis aqui, de passagem, uma observação muito importante para explicar a ver­dadeira situação do acusado naquele momento: aquela mulher, objeto de seu amor, permaneceu para ele até o fim, até a detenção, uma criatura inacessível, se bem que apaixonadamente desejada. Mas por que não se suicidou ele então? Por que ter abandonado esse projeto e esquecido até mesmo sua pistola? Essa sede apaixonada de amor e a esperança de estancá-la imediatamente retiveram-no. Na embriaguez da festa, está como que acorrentado à sua bem-amada, que compartilha da orgia com ele, mais sedutora do que nunca. Ele não se afasta de seu lado e, cheio de admiração, apaga-se diante dela. Esse ardor apaixonado pôde abafar até mesmo por um instante o temor da prisão e o remorso. Oh! por um instante somente! Imagino o estado de alma do criminoso como escravizado a três elementos que o domi­navam totalmente: em primeiro lugar, a embriaguez, os vapores do álcool, o barulho da dança e dos cantos, e ela, a tez avermelhada pelas libações, cantando e dançando, sorrindo-lhe, ébria também. Em seguida, o pensamento reconfortante de que o desenlace fatal está ainda afastado, de que virão prendê-lo somente no dia seguinte de manhã. Algumas horas de prazo é muito, pode-se imaginar muita coisa durante esse tempo. Suponho que terá experimentado sensação análoga à do criminoso a quem levam à forca; é preciso percorrer ainda uma longa rua, a passo, diante de milhares de espectadores, depois dobra-se para outra rua, ao fim da qual somente se encontra o lugar fatal. No começo do trajeto, o condenado, em cima da carreta ignominiosa, deve imaginar que tem ainda muito tempo para viver. Mas as casas se suce­dem, a carreta avança, não tem importância, está ainda longe a esquina da segunda rua. Olha ele corajosamente à direita e à esquerda aqueles milha­res de curiosos indiferentes que o encaram e sempre lhe parece que é um homem igual a eles. E eis que dobram para a segunda rua, mas não im­porta, resta um bom pedaço de caminho. Enquanto vai vendo desfilarem as casas, o condenado pensará: 'Ainda há muitas'. E assim até o local da execução. Eis, imagino, o que experimentou Karamázov. 'Ainda não des­cobriram o crime', pensa ele, 'pode-se procurar alguma coisa, terei tempo de combinar um plano de defesa, de me preparar para resistir, mas no momento, viva a alegria! Ela é tão sedutora!' Está perturbado e inquieto, contudo consegue retirar a metade de seu dinheiro e escon­dê-lo. Não posso explicar a mim mesmo de outro modo o desapareci­mento da metade dos 3 000 rublos retirados de sob o travesseiro de seu pai. Tendo já ido a Mókroie para fazer farra, conhece aquela velha casa de madeira, com seus alpendres e varandas. Suponho que uma parte do dinheiro foi escondida então, pouco tempo antes da detenção, numa fenda ou rachadura, sob uma tábua do parquete, num canto, debaixo do telhado. 'Por quê?', perguntarão. Uma catástrofe está imi­nente, sem dúvida não pensamos ainda em enfrentá-la, falta tempo, as têmporas nos batem, 'ela' nos atrai como um ímã, mas tem-se sempre necessidade de dinheiro. Em toda parte é-se alguém com dinheiro. Tal previdência, num momento semelhante, parecer-vos-á talvez estranha. Mas ele mesmo afirma ter, um mês antes, num momento também crítico, posto de lado e cosido num amuleto a metade de 3 000 rublos; e, se bem que seja isso certamente uma invenção, como vamos prová-lo, essa idéia é familiar a Karamázov, meditou-a. Além do mais, quando afirmava mais tarde ao juiz de instrução ter reservado 1 500 rublos num amuleto (o qual nunca existiu), imaginou isso ali na hora talvez, pre­cisamente porque, duas horas antes, retirara e escondera a metade da soma, em alguma parte, em Mókroie, por prevenção, até pela manhã, para não a guardar consigo, de acordo com uma inspiração súbita. Lembrai-vos, senhores jurados, de que Karamázov pode contemplar ao mesmo tempo dois abismos. Nossas pesquisas naquela casa foram vãs, talvez o dinheiro lá ainda esteja, talvez tenha desaparecido no dia seguinte e se encontre agora de posse do acusado. Em todo caso, detiveram-no ao lado de sua amante, de joelhos diante dela, que estava deitada; estendia-lhe ele os braços, esquecendo tudo mais, a ponto de não ouvir a aproximação daqueles que iam detê-lo. Não teve tempo de preparar uma resposta e foi apanhado desprevenido.

"E agora ei-lo diante de seus juizes, diante daqueles que vão decidir de sua sorte. Senhores jurados, há, no exercício de nossa funções, momentos em que nós mesmos temos quase medo da humanidade! É quando se contempla o terror bestial do criminoso que se vê perdido, mas quer lutar ainda. É quando o instinto de conservação desperta nele de repente, quando ele fixa em nós um olhar penetrante, cheio de ansiedade e de sofrimento, quando ele escruta vosso rosto, vossos pensamentos, pergunta a si mesmo de que lado virá o ataque, imagina, num instante, no seu espírito perturbado, mil planos, mas teme falar, teme trair-se! Esses momentos humilhantes para a alma humana, esse calvário, essa avidez bestial de salvação são horríveis, fazem tremer por vezes o próprio juiz e excitam sua compaixão. E nós assistimos a esse espetáculo. A princípio aturdido, deixou ele escapar no seu terror algumas palavras das mais comprometedoras: 'O sangue! Mereci!' Mas logo se reteve. Não sabe ainda que dizer, que responder, e só pode opor uma vã negativa: 'Sou inocente da morte de meu pai!' Eis a pri­meira trincheira, por trás da qual tentará construir outros trabalhos de defesa. Sem aguardar nossas perguntas, trata de explicar suas pri­meiras exclamações comprometedoras dizendo que se acha culpado somente da morte do velho criado Gregório: 'Sou culpado desse sangue, mas quem matou meu pai, senhores, quem pôde matá-lo, senão eu?' Ouvis, ele no-lo pergunta, a nós que fomos fazer-lhe essa pergunta! Compreendeis esta frase antecipada: 'Senão eu?', essa trapaça, essa ingenuidade, essa impaciência de Karamázov? Não fui eu quem matou, não acrediteis em nada. 'Quis matar, senhores', apressa-se ele em confessar (tem pressa), 'mas estou inocente, não fui eu!' Convém que quis matar: vede como sou sincero, apressai-vos também em crer na minha inocência. Oh! nesses casos, o criminoso se mostra por vezes duma irreflexão, duma credulidade incríveis. Como por acaso, o juiz de instrução lhe faz a pergunta mais ingênua: 'Não seria Smierdiákov o assassino?' Aconteceu o que esperávamos; zangou-se por ter sido precedido, tomado de improviso, sem que lhe deixem tempo de escolher o momento mais favorável para empurrar para a frente Smierdiákov. Seu gênio arrebata-o logo ao extremo, afirma-nos energicamente que Smierdiákov é incapaz de assassinar. Mas não lhe deis crédito, não passa de uma astúcia, não renuncia absolutamente a acusar Smierdiákov, pelo contrário, pô-lo-á ainda em causa, já que não tem outra pessoa, porém mais tarde, porque para o momento o negócio está estragado. Não será talvez senão no dia seguinte, ou mesmo dentro de vários dias: 'Vós vedes, era o primeiro a negar que foi Smierdiákov, vós vos lembrais, mas agora, estou convencido, não foi talvez senão ele!' No momento, opõe-nos negações veementes, a impaciência e a cólera lhe sugerem a explicação mais inverossímil; olhou seu pai pela janela e afastou-se respeitosamente. Ignorava ainda o alcance do depoimento de Gregório. Procedemos ao exame detalhado de suas roupas. Essa operação exaspera-o, mas retoma coragem; só foram encontrados 1 500 rublos dos 3 000. É então, nesses minutos de irritação contida, que a idéia do amuleto lhe vem pela primeira vez ao espírito. Certamente, ele próprio sente toda a inverossimilhança desse conto e tem trabalho para torná-lo mais plausível, para inventar um romance conforme à verdade. Em semelhante caso, o inquérito não deve dar ao criminoso tempo de se reconhecer, proceder por ataque brusco, a fim de que ele revele seus pensamentos íntimos na sua ingenuidade e na sua contradição. Não se pode obrigar um criminoso a falar senão comunicando-lhe de improviso, como por acaso, um fato novo, uma circunstância duma extrema im-oortância, que permaneceu até então para ele não prevista e desperce­bida. Tínhamos bem pronto um fato semelhante, é o testemunho do criado Gregório, a respeito da porta aberta por onde saiu o acusado. Tinha-a ele totalmente esquecido e não supunha que Gregório tivesse podido notá-lo. O efeito foi colossal. Karamázov ergue-se, gritando: 'Foi Smierdiákov quem matou, foi ele!', revelando assim seu pensamento íntimo, sob a forma mais inverossímil, porque Smierdiákov não podia assassinar senão depois que Karamázov tivesse dominado Gregório e fugido. Ao saber que Gregório vira a porta aberta antes de cair, e ouvira, quando se levantou, Smierdiákov gemer por trás do tabique, ficou aterrorizado. Meu colaborador, o ilustre e sagaz Nikolai Par-fiénovitch, contou-me mais tarde que naquele momento sentira-se emo­cionado até às lágrimas. Então, para livrar-se de apuros, apressa-se o réu em contar-nos a história daquele famoso amuleto. Senhores jurados, já vos expliquei por que considero essa história do dinheiro cosido um mês antes num amuleto não somente como um absurdo, mas como a invenção mais estravagante que se possa imaginar no caso particular. Mesmo apostando para saber quem faria o conto mais inverossímil, nada de pior se teria encontrado. Aqui, pode-se confundir o narrador triunfante com os detalhes, esses detalhes cuja realidade é sempre tão rica e que esses infelizes narradores involuntá­rios desdenham sempre como supostamente inúteis e insignificantes. Trata-se bem disto, o espírito deles medita um plano grandioso e ousam objetar-lhes ninharias! Ora, está nisso o defeito da couraça. Pergunta-se ao acusado: 'Onde arranjou o senhor o pano para seu amuleto, quem o costurou?' 'Eu mesmo o costurei. ' 'Mas donde vem o pano?' O acusado ofende-se logo, considera isso como um detalhe quase ofensivo para ele e, acreditá-lo-íeis? está de boa fé! São todos semelhantes. 'Cortei-o de minha camisa. ' 'Perfeito. De modo que, amanhã encontra­remos na sua roupa íntima essa camisa com um pedaço tirado. ' Pensai bem, senhores jurados, que se tivéssemos encontrado essa camisa (e como não encontrá-la na sua mala ou na sua cômoda, se ele disse a verdade?), constituiria isto já um fato tangível em favor da exatidão de suas declarações! Mas não se dá ele conta disso. 'Não me lembro, pode dar-se que o tenha costurado aproveitando uma touca de minha locadora. ' 'Que touca?' 'Tirei-a de seu quarto, andava por ali, uma velharia de algodão. ' 'Está bem certo disso?' 'Não, bem certo não... ' E ele se zanga, no entanto. Como não se lembrar? Nos momentos mais terríveis, quando levam a gente ao suplício, são precisamente de seme­lhantes detalhes que nos lembramos. O condenado esquecerá tudo, mas um teto verde avistado em caminho ou uma gral ha sobre uma cruz voltar-lhe-á à memória. Ao costurar seu amuleto, ocultava-se das pes­soas da casa, deveria lembrar-se desse medo humilhante de ser surpreen­dido, de agulha na mão, e como, ao primeiro alerta, correu para trás do tabique (há um no seu quarto)... Mas, senhores jurados, por que comunicar-vos todos estes detalhes?", exclamou Ipolit Kirílovitch. "É porque o réu mantém obstinadamente até hoje essa versão absurda! Durante esses dois meses, desde aquela noite fatídica, nada explicou nem acrescentou um fato probante às suas precedentes declarações fan­tásticas. 'São ninharias', diz ele, 'e vós deveis acreditar na minha palavra de honra!' Oh! seríamos felizes em acreditar, desejá-lo-íamos ardente­mente, ainda que seja só pela honra! Somos chacais, sedentos de sangue humano? Indicai-nos um só fato em favor do réu, e nós nos regozijare­mos, mas um fato tangível, real, e não as deduções de seu irmão, baseadas na expressão de seu rosto, ou a hipótese de que, batendo no peito, no escuro, devia necessariamente designar o amuleto. Nós nos regozijaremos com esse acontecimento novo, seremos os primeiros a abandonar a acusação. Agora, a justiça reclama, e nós acusamos, sem nada supri­mir às nossas conclusões. "

Depois, Ipolit Kirílovitch chegou à peroração. Tinha febre; com uma voz vibrante evocou o sangue vertido, o pai morto por seu filho "pela vil intenção de roubá-lo". Insistiu na concordância trágica e flagrante dos fatos. "E seja o que fôr que possa dizer-vos o defensor célebre do réu, malgrado a eloqüência patética que fará apelo à vossa sensibilidade, não esqueçais que estais no santuário da justiça. Lembrai-vos de que sois os defensores do direito, o baluarte de nossa santa Rússia, dos princípios, da família, de tudo quanto lhe é sagrado. Sim, vós representais a Rússia neste momento e não somente neste recinto repercutirá vosso veredicto; toda a Rússia vos escuta, a vós, seus sustentáculos e seus juizes, e ficará reconfortada ou consternada pela sentença que ides proferir. Não enganeis sua expectativa, nossa fatal tróica corre a toda a brida, talvez para c abismo. Desde muito tempo, muitos russos elevam os braços, quereriam deter essa corrida insensata. E, se os outros povos se afastam ainda da tróica em disparada, não é talvez por respeito, como imaginava o poeta; é talvez por horror, por desgosto, notai-o bem. E ainda é bom que se afastem, porque poderiam muito bem erguer um muro sólido diante desse fan­tasma e pôr eles próprios um freio ao desencadeamento de nossa licen­ciosidade, para se preservar a si mesmos e à civilização. Essas vozes de alarma começam a repercutir na Europa, já as ouvimos. Guardai-vos de tentá-las, de alimentar seu ódio crescente com um veredicto que absolveria o parricida!"

Em suma, Ipolit Kirílovitch, que se deixara arrebatar, acabou duma maneira patética e produziu grande efeito. Apressou-se em sair e quase desmaiou na peça contígua. O público não aplaudiu, mas as pessoas sérias estavam satisfeitas. As damas estavam-no menos, contudo a elo­qüência dele também lhes agradou, tanto mais que não lhes temiam as conseqüências e contavam bastante com Fietiukóvitch: "Ele vai afinal tomar a palavra, e, decerto, triunfar!" Mítia atraía os olhares; durante a acusação, permanecera silencioso; de dentes cerrados, olhos baixos. Uma vez ou outra, erguia a cabeça e prestava atenção, sobre­tudo quando se tratou de Grúchenhka. Quando o procurador citou a opinião de Rakítin sobre ela, Mítia teve um sorriso desdenhoso e pro­feriu bastante distintamente: "Bernard!" Quando Ipolit Kirílovitch con­tou como o havia atormentado por ocasião do interrogatório em Mó­kroie, Mítia levantou a cabeça, escutou com intensa curiosidade. Num dado momento, pareceu querer levantar-se, gritar qualquer coisa, mas conteve-se e contentou-se com erguer desdenhosamente os ombros. As proezas do procurador em Mókroie desenfrearam mais tarde os fala­tórios e zombaram de Ipolit Kirílovitch: "Não pôde ele impedir-se de gabar suas capacidades". A audiência foi suspensa por um quarto de hora, vinte minutos. Tomei nota de certas opiniões expostas em público:

— Um discurso sério! — observou, franzindo os supercílios, um senhor num grupo.

— Meteu-se na psicologia — disse outra voz.

— Tudo isso é rigorosamente verdadeiro.

— Sim, revelou-se um mestre.

— Fez o balanço completo.

— Nós também tivemos a nossa cota — acrescentou uma terceira voz. — No começo, lembram-se? quando disse ele que todos eram como Fiódor Pávlovitch.

— E no fim também. Mas isso não é verdade.

— Deixou-se arrebatar um pouco!

— É injusto, injusto.

— Mas não, foi hábil. Esperou muito tempo sua hora: falou afinal! eh! eh!

— Que irá dizer o defensor? Num outro grupo:

— Não teve razão em atacar o petersburguês, "fazendo apelo à sensibilidade", lembram-se?

— Sim, cometeu uma rata.

— Foi demasiado longe.

— Um homem nervoso.

— Estamos aqui, a rir, mas como se sentirá o réu?

— Sim, como se sente Mítia?

— Que irá dizer o defensor? Num terceiro grupo:

— Quem é aquela senhora obesa, com uma luneta, sentada na extremidade?

— É a esposa divorciada dum general. Conheço-a.

— Por isso usa uma luneta.

— Um velho quadro.

— Mas não, é picante.

— Dois lugares mais adiante está uma lourinha, aquela é melhor.

— Procederam com muita habilidade em Mókroie, não foi?

— Decerto. Voltou a falar disso. Como se não o tivesse feito bas­tante na sociedade!

— Não pôde conter-se. O amor-próprio.

— Um preterido, eh! eh! eh!

— E suscetível. Muita retórica, frases grandiloquentes.

— Sim, e notem que ele quer causar medo. Lembram-se da tróica? "em outra parte tem-se Hamlet, e nós não temos senão Karamázov!". Isto não está mal.

— Isto é endereçado aos liberais. Tem medo.

— Tem medo também do advogado.

— Sim, que irá dizer o Senhor Fietiukóvitch?

— Pois bem! Diga o que disser, não convencerá os nossos mujiques.

— Acredita que não? Num quarto grupo:

— O que disse da tróica está bem, principalmente quando fala dos povos.

— E é verdade, lembras-te?, quando disse que os povos não espe­rariam.

— Como assim?

— Na semana passada, um membro do Parlamento inglês interpelou o ministério a respeito dos niilistas e perguntou: "Não seria tempo de ocuparem essa nação bárbara para educá-la?" Foi a ele que Ipolit Kirílovitch fez alusão, eu o sei. Falou disso a semana passada.

— Não têm o braço tão longo assim.

— Por que não bastante longo?

— Basta que fechemos Cronstadt [9] e não lhes forneçamos trigo. Onde o arranjarão?

— Mas há agora na América.

— Não é verdade.

Mas a sinêta fez-se ouvir. Cada qual se precipitou para seu lugar. Fietiukóvitch tomou a palavra.

 

A DEFESA. UMA ARMA DE DOIS GUMES

Ficou tudo em silêncio às primeiras palavras do célebre advogado. A sala inteira tinha os olhos fixos nele. Começou com uma simpli­cidade persuasiva, mas sem a menor jactancia. Nenhuma pretensão à eloqüência e ao patético. Era um homem que conversava na intimidade de um círculo de amigos. Tinha uma bela voz, forte, agradável, em que ressoava algo de sincero, de simples. Mas cada qual sentiu logo que o orador podia elevar-se ao verdadeiro patético, "e tocar os cora­ções com uma força desconhecida". Exprimia-se talvez menos correta­mente que Ipolit Kirílovitch, mas sem longas frases e com mais pre­cisão. Uma coisa desagradou às senhoras: curvava-se, sobretudo no começo, não para saudar, mas como para lançar-se na direção de seu auditório; dir-se-ia que seu longo dorso estava provido no meio de uma charneira e capaz de formar quase um ângulo reto. No início, falou como que desalinhavadamente, sem método, escolhendo os fatos ao acaso, para deles formar afinal um todo completo. Ter-se-ia podido dividir seu discurso em duas partes, a primeira constituindo uma crítica, uma refutação da acusação, por vezes mordaz e sarcástica. Mas na segunda, mudou de tom e de processos, elevou-se de súbito até o pa­tético; a sala parecia esperar por isso e fremiu de entusiasmo. Abor­dou diretamente o caso, declarando que, muito embora sua atividade se de­senrolasse em Petersburgo, ia muitas vezes à província defender acusados cuja inocência lhe parecia certa ou provável. "Aconteceu-me a mesma coisa desta vez", explicou. "Bastou-me a leitura dos jornais no começo, para que eu notasse algo de impressionante em favor do acusado. Meu interesse foi despertado por um fato bastante frequente na prática ju­diciária, mas que não se observa nunca, creio, em tal. grau e com parti­cularidades tão características como no presente processo. Deveria men­cionar esse fato somente na minha peroração, mas formularei meu pensamento desde o começo, tendo a franqueza de abordar o assunto diretamente, sem mascarar os efeitos nem poupar as impressões. Será tal­vez imprudente de minha parte, mas é sincero. Esse pensamento se formu­la da seguinte maneira: uma concordância esmagadora de fatos contra o réu e, ao mesmo tempo, nem um fato que suporte a crítica, se exa­minado isoladamente. Os boatos e os jornais tinham-me confirmado sempre mais nessa idéia, quando recebi de repente dos parentes do acusado a proposta para defendê-lo. Aceitei com entusiasmo e acabei de convencer-me aqui. Foi afinal para destruir essa funesta concordân­cia dos fatos, para demonstrar a inanidade de cada uma das acusações considerada isoladamente, que aceitei defender esta causa. "

Depois deste exórdio, o defensor prosseguiu:

"Senhores jurados, sou aqui um forasteiro, acessível a todas as impressões, sem partido preconcebido. O acusado, de caráter violento, de paixões desenfreadas, não me ofendeu anteriormente, como aconteceu a numerosas pessoas desta cidade, o que explica muitas das prevenções contra ele. Decerto, convenho que a opinião pública está indignada contra ele com razão: o réu é violento, incorrigível. Era, no entanto, recebido em toda parte; acolhiam-no mesmo festivamente na família de meu eminente contraditor. (Nota bene. Houve aqui entre o público algumas risadas, aliás logo reprimidas. Cada um sabia que o procurador recebia Mítia em sua casa contra a sua vontade, unicamente porque se interessava por ele sua mulher, senhora das mais respeitáveis, porém extravagante, e que gostava de teimar contra seu marido, sobretudo em detalhes. De resto, Mítia ia bastante raramente à casa deles. ) Não obstante, ouso admitir", prosseguiu o defensor, "que mesmo um espírito bastante independente e um caráter tão justo como meu contraditor tenha podido conceber contra meu constituinte certa prevenção errô­nea. Oh! é tão natural, o infeliz bem que o mereceu. O senso moral e sobretudo o senso estético são por vezes inexoráveis. Decerto, a elo­quente acusação nos apresentou uma análise rigorosa do caráter e dos atos do acusado, um ponto de vista estritamente crítico; testemunha profundeza psicológica, quanto à essência do caso, que não poderia ter sido atingida se o animasse apenas um preconceito contra a personali­dade do réu. Mas há coisas piores e mais funestas, em semelhante caso, que um preconceito hostil. Acontece, por exemplo, quando somos obsessionados por Uma necessidade de criação artística, de invenção romanesca, sobretudo com os ricos dons psicológicos que são nosso apanágio. Ainda em Petersburgo, tinham-me prevenido, aliás eu mesmo o sabia, que teria aqui como adversário um psicólogo profundo e sutil, que se assinalou desde muito tempo por essa qualidade no mundo judiciário. Mas a psicologia, senhores, embora sendo uma ciência notá­vel, assemelha-se a uma arma de dois gumes. Eis aqui um exemplo tomado ao acaso na acusação. O réu, de noite, no jardim, ao fugir, escala a paliçada, derruba com uma pancada de pilão o criado Gregório, que o agarrou pela perna. Logo depois, salta em terra, e durante cinco minutos fica ao lado de sua vítima para saber se a matou ou não. O acusador não quer por coisa alguma no mundo acreditar na sinceridade do acusado, que afirma ter agido por um sentimento de compaixão. Tal sensibilidade será possível em tal momento? Não é natural; o que ele quis precisamente foi assegurar-se de que a única testemunha de seu crime vivia ainda, provando assim que ele o havia cometido, porque não podia saltar dentro do jardim por outro motivo. ' Eis a psi­cologia, apliquemo-la por nossa vez ao caso, mas pela outra extremi­dade e será também perfeitamente verossímil. O assassino salta em terra por prudência, para assegurar-se de que a testemunha vive ainda, e, no entanto, acaba de deixar no escritório de seu pai, segundo o testemunho do próprio acusador, uma prova esmagadora, o envelope rasgado cujo sobrescrito indicava que continha ele 3 000 rublos. 'Se ele tivesse levado o envelope, ninguém no mundo teria sabido da existência desse dinheiro e, por conseguinte, do roubo cometido pelo réu. ' São os próprios termos da acusação. Mas admitamos a coisa; eis bem aqui a sutileza da psicologia, que me atribui em tais circunstâncias a fero­cidade e a vigilância da águia, e um instante depois a timidez e a cegueira da toupeira! Mas se levo a crueldade e o cálculo ao ponto de tornar a descer, unicamente para ver se a testemunha de meu crime vive ainda, por que ficar, solícito, cinco minutos junto daquela nova vítima, correndo o risco de atrair novas testemunhas? Por que estancar com meu lenço o sangue que corre do ferimento, para que esse lenço sirva em seguida de peça de convicção? Neste caso, não teria valido mais acabar a golpes de pilão com aquela testemunha incômoda? Ao mesmo tempo, deixa no local outra testemunha, o pilão, de que se apoderou na casa das duas mulheres que poderão sempre reconhecê-lo, atestar que o retirou de casa delas. E não o deixou cair na alameda, esque­cido por distração, no seu afobamento; não, atiramos fora nossa arma, encontrada a quinze passos do local onde Gregório tombou golpeado. Por que agir assim? — perguntarão. Foi o remorso de ter assassinado o velho criado, foi ele que nos fez atirar fora com uma maldição o instrumento fatal, não há outra explicação. Se podia sentir remorso desse assassinato, foi certamente porque estava inocente do de seu pai. Um parrícida, longe de se aproximar da vítima por compaixão, só teria pensado em salvar a pele. Pelo contrário, repito-o, em lugar de ir atendê-la, teria acabado de rebentar-lhe o crânio.. A piedade e os bons sentimentos supõem, previamente, uma consciência pura. Eis outra espécie de psicologia. É de propósito, senhores jurados, que recorro também eu à psicologia para demonstrar claramente que dela se pode tirar não importa o quê. Tudo depende daquele que opera. Quero falar dos excessos da psicologia, senhores jurados, do abuso que dela se faz. " Aqui se ouviram de novo, entre o público, risos aprovadores. Não re­produzirei por inteiro a defesa, limitando-me a citar-lhe as passagens es­senciais.

 

NEM DINHEIRO, NEM ROUBO

Houve uma passagem da defesa que surpreendeu todo mundo: foi a negativa formal da existência daqueles 3 000 rublos fatais e, por conseqüência, da possibilidade de um roubo.

"Senhores jurados, o que impressiona neste processo, a qualquer espírito não prevenido, é uma particularidade das mais características: a acusação de roubo e, ao mesmo tempo, a impossibilidade completa de indicar materialmente o que foi roubado. Pretende-se que 3 000 rublos desapareceram, mas ninguém sabe se existiram realmente. Julgai: em primeiro lugar, como viemos a saber da existência desses 3 000 rublos e quem os viu? Somente o criado Smierdiákov, que declarou que se encontravam eles num envelope subscritado. Falou disso antes do drama ao acusado e a seu irmão, Ivã Fiódorovitch. A Senhora Svietlova foi também informada. Mas essas três pessoas não viram o dinheiro e uma questão surge: se verdadeiramente ele existiu e Smierdiákov o viu, quando foi que o viu a derradeira vez? E se seu amo tivesse retirado esse dinheiro da cama para tornar a guardá-lo no cofre, sem lho dizer? Notai que, segundo Smierdiákov, estava ele oculto debaixo do colchão; o acusado deve tê-lo arrancado dali; ora, o leito estava intato, como está provado nos autos. Como pode ser isso, e sobretudo, por que os lençóis finos colocados expressamente naquela noite não ficaram manchados pelas mãos ensangüentadas do réu? Mas, dir-se-á, e o envelope rasgado sobre o soalho? Vale a pena falar disso. Ainda há pouco, fiquei um tanto surpreso por ouvir o próprio eminente acusador dizer a esse respeito, quando assinalava o absurdo da hipótese de ser Smierdiákov o assassino: 'Sem esse envelope, se ele não tivesse ficado no chão como uma prova e o ladrão o tivesse levado, ninguém no mundo teria sabido de sua existência e de seu conteúdo e, por conse­guinte, do roubo cometido pelo acusado'. Assim, pela própria confissão da acusação, é unicamente esse pedaço de papel rasgado, munido dum sobrescrito, que serve para culpar de roubo o réu, 'senão, ninguém teria sabido que houvera roubo e, talvez, que o dinheiro existisse'. Ora. o simples fato de achar-se no chão esse pedaço de papel basta para provar que continha dinheiro e que o roubaram? Mas, objeta-se, Smier­diákov viu-o no envelope. Quando o viu pela última vez? Eis o que eu pergunto. Conversei com Smierdiákov, disse-me tê-lo visto dois dias antes do drama! Mas por que não supor, por exemplo, que o velho Fió­dor Pávlovitch, trancado em seu quarto, na febril expectativa de sua bem-amada, teria, à toa, tirado e rasgado o envelope? 'Ela talvez não me acredite, mas quando eu lhe mostrar um maço de trinta cédulas, isto causará mais efeito, a água lhe virá à boca' — e rasga o envelope, retira dele o dinheiro e atira-o no chão, sem temer naturalmente com­prometer-se. Senhores jurados, não vale esta hipótese o mesmo que a outra? Que há nela de impossível? Mas neste caso a acusação de roubo cai por si mesma; não havendo dinheiro, não há roubo. Pretende-se que o envelope encontrado no chão prova a existência do dinheiro; não posso eu sustentar o contrário e dizer que ele estava caído vazio no soalho precisamente porque aquele dinheiro tinha sido dele retirado previamente pelo seu próprio dono? 'Mas, neste caso, onde foi parar o dinheiro, não o encontraram por ocasião da busca?' Em primeiro lugar, encontraram uma parte no seu cofrezinho; depois pôde ele reti­rá-lo de manhã ou mesmo na véspera, dispor dele, enviá-lo, mudar afi­nal completamente de idéia, sem julgar necessário dar disso parte a Smierdiákov. Ora, se esta hipótese é um tanto pouco verossímil, como se pode inculpar tão categoricamente o réu de assassinato seguido de roubo e afirmar que houve roubo? Entramos assim no domínio da novela. Para sustentar que uma coisa foi roubada, é preciso designar essa coisa ou pelo menos provar irrefutavelmente que ela existiu. Ora, ninguém nem mesmo a viu. Recentemente, em Petersburgo, um rapaz de dezoito anos, comerciante ambulante, entrou em pleno dia na casa de um cambista que ele matou a golpes de machado com uma audácia extraordinária, levando 1 500 rublos. Foi preso cinco horas depois; encontrou-se em seu poder a soma inteira, menos 15 rublos já gastos. Além disso, o caixeiro da vítima, que se havia ausentado, indicou à polícia não só o montante do roubo, mas o valor e o número das cédulas e das moedas de ouro de que se compunha a soma. Foi tudo encontrado de posse do assassino, que fez aliás confissões completas. Eis, senhores jurados, o que chamo eu uma prova! O dinhei­ro está ali, pode-se tocá-lo, impossível negar-lhe a existência. Dá-se o mesmo no caso que nos ocupa? No entanto, a sorte de um homem está em jogo, 'pois seja', dir-se-á, 'mas ele foi farrear naquela mesma noite e esbanjou dinheiro, e donde provêm os 1 500 rublos que foram encontrados em seu poder?' Mas precisamente o fato de só terem encon­trado 1 500 rublos, a metade da soma, prova que esse dinheiro não provi­nha talvez de modo algum do envelope. Calculando rigorosamente o tem­po, estabeleceu o inquérito que o acusado, depois de ter visto as criadas, se dirigiu diretamente à casa do funcionário Pierkhótin, pois não ficou só um instante, não tendo podido, pois, ocultar na cidade a metade dos 3 000 rublos. A acusação se baseia nisso para supor que o dinheiro está oculto em alguma parte na aldeia de Mókroie. Por que não nos subterrâneos do Castelo de Udolfo, senhores? Não é isto uma suposição fantástica e romanesca? E notai, basta afastar essa hipótese para que a acusação de roubo venha abaixo, porque que fim tiveram esses 1 500 rublos? Por meio de qual prodígio puderam desaparecer, se está demonstrado que o réu não foi a parte alguma? E é com semelhantes novelas que estamos prestes a destruir uma vida humana? 'No entanto', dir-se-á, 'não soube ele explicar a proveniência do dinheiro encontrado em seu poder, aliás, cada qual sabe que ele não o tinha antes. ' Mas quem o sabia? O acusado explicou claramente donde provinha o di­nheiro, e se quiserdes, senhores jurados, essa explicação é das mais verossímeis e concorda completamente com o caráter do réu. A acusação atém-se à sua própria novela: um homem de vontade fraca, tendo aceito 3 000 rublos de sua noiva em condições humilhantes, não pôde, dizem, retirar a metade e guardá-la num amuleto; pelo contrário, su­pondo-se que o houvesse feito, tê-lo-ia descosido cada dois dias para dele retirar, 100 rublos e nada teria restado ao fim de um mês. Deveis lembrar-vos de que tudo isso foi declarado num tom' que não sofria ob­jeção. Mas se as coisas se tivessem passado de outro modo e tivésseis criado outra personagem? Foi bem o que aconteceu. Objetar-se-á talvez: 'Testemunhas atestam que ele gastou de uma vez, na aldeia de Mó­kroie, os 3 000 rublos emprestados pela Senhorita Vierkhóvtseva, por conseguinte, não pôde retirar-lhes a metade'. Mas quais são essas tes­temunhas? Já se viu o crédito que merecem. Além do mais, um bolo na mão de outrem parece sempre maior. Nenhuma dessas teste­munhas contou as cédulas, todas as avaliaram de relance de olho. A testemunha Maksímov chegou a declarar que o réu tinha 20 000 rublos. Vede, senhores jurados, como a psicologia serve a duplo fim. Permiti-me aplicar aqui a contrapartida. Veremos o que resultará disso.

"Um mês antes do drama, 3 000 rublos foram confiados ao acusado pela Senhorita Vierkhóvtseva, para enviá-los, pelo correio, mas pode-se perguntar se foi em condições tão humilhantes como se proclamou ain­da há pouco. O primeiro depoimento da Senhorita Vierkhóvtseva a este respeito era bem diferente, o segundo transpirava cólera, vingança, um ódio muito tempo dissimulado. Mas o simples fato de não ter a testemunha dito a verdade, por ocasião de sua primeira versão, dá-nos o direito de concluir que o mesmo aconteceu na segunda. A acusação respeitou essa novela, imitarei sua reserva. Todavia, permitir-me-ei ob­servar que se uma pessoa tão pura e tão respeitável como a Senhorita Vierkhóvtseva se permite na audiência mudar de repente seu depoi­mento, no fim evidente de prejudicar o acusado, é também evidente que suas declarações estão maculadas de parcialidade. Negar-se-nos-ia o direito de concluir que uma mulher ávida de vingança pôde exagerar muitas coisas? Notadamente as condições humilhantes em que o di­nheiro foi oferecido. Pelo contrário, esse oferecimento deve ter sido feito duma maneira aceitável, sobretudo para um homem tão leviano quanto nosso constituinte, que contava aliás receber em breve de seu pai os 3 000 rublos devidos pelo acerto de contas. Era aleatório, mas sua leviandade mesma o persuadia de que iria obter satisfação e poderia por conseguinte desonerar-se de sua dívida para com a Senhorita Vierkhóvt­seva. Mas a acusação repele absolutamente a versão do amuleto: 'Esses sentimentos são incompatíveis com seu caráter'. No entanto, falastes vós mesmo dos dois abismos que Karamázov pode contemplar ao mesmo tempo. Com efeito, sua natureza bifronte é capaz de deter-se no meio da devassidão mais desenfreada, se sofre uma outra influência. Essa outra influência é o amor, esse novo amor que se inflamou nele como a pólvora, e para o qual é preciso dinheiro, mais ainda que para fazer a farra com aquela mesma bem-amada. Se ela lhe disser: "Sou tua, não quero Fiódor Pávlovitch', ele a agarrará, leva-la-á para longe, com a condição de ter os meios para isso. Isto se passa antes do bródio. Karamázov não se pode dar conta disso? Eis o que o atormentava; que há de inverossímil no ter ele reservado esse dinheiro para o que desse e viesse? Mas o tempo passa, Fiódor Pávlovitch não dá ao acusado os 3 000 rublos, pelo contrário, corre o boato de que os destina precisamente para seduzir sua bem-amada. 'Se Fiódor Pávlovitch não me der nada', pensa ele, 'passarei por um ladrão aos olhos de Catarina Ivânovna. ' Assim nasce a idéia de ir depositar diante de Catarina Ivâ­novna aqueles 1 500 rublos que continua a trazer consigo, no amuleto, di­zendo: 'Sou um miserável, mas não um ladrão". Eis, pois, uma dupla razão para conservar aquele dinheiro como a menina de seus olhos, em lugar de descoser o amuleto e dele retirar uma cédula após outra. Por que recusar ao acusado o sentimento da honra? Existe nele esse sentimento, mal compreendido talvez, muitas vezes errôneo, seja, mas real, levado até a paixão, provou-o ele. Mas a situação se complica, as torturas do ciúme atingem seu paroxismo, e essas duas questões, sempre as mesmas, obsedam cada vez mais o cérebro enfebrecido do acusado: 'Se eu reembolsar Catarina Ivânovna, com que dinheiro leva­rei Grúchenhka?' Se se embriagou, praticou loucuras e barulho nos botequins durante todo aquele mês, foi talvez precisamente porque estava cheio de amargura e sem força para suportar aquele estado de coisas. Essas duas questões tornaram-se finalmente tão irritantes que o reduziram ao desespero. Mandara seu irmão mais moço pedir uma derradeira vez aqueles 3 000 rublos a seu pai, mas, sem esperar a resposta, irrompeu em casa do velho e bateu-lhe diante de testemunhas. Depois disto, nada mais tinha a esperar. Naquela mesma noite, bate no alto do peito, precisamente no lugar daquele amuleto, e jura a seu irmão que tem um meio de apagar sua vergonha, mas que o manterá, porque se sente incapaz de recorrer a esse meio, sendo de caráter demasiado fraco. Por que recusa a acusação acreditar no depoi­mento de Alieksiéi Karamázov, tão sincero, tão espontâneo e plausível? Por que, ao contrário, impor a versão do dinheiro escondido numa fenda, nos subterrâneos do Castelo de Udolfo? Na mesma noite da conversa com seu irmão, escreveu o acusado aquela carta fatal, base principal da inculpação de roubo. 'Pedirei dinheiro a todo mundo, e, se mo recusarem, matarei meu pai e tirarei o dinheiro de sob o colchão, no envelope amarrado com uma fita côr-de-rosa, contanto que Ivã parta. ' Eis o programa completo do assassinato. Como não seria ele? Tudo se passou como ele o havia escrito!', exclama a acusação. Mas, em primeiro lugar, é uma carta de bêbado, escrita sob o império duma extrema irritação; em seguida, não fala do envelope senão por infor­mação de Smierdiákov, sem tê-lo ele próprio visto; em terceiro, se bem que a carta exista, como provar que os fatos a ela correspondem? Encontrou o réu o envelope sob o travesseiro? Continha ele dinheiro mesmo? Aliás, era atrás do dinheiro que corria o acusado, lembrai-vos? Não correu como um louco para roubar, mas somente para saber onde estava aquela mulher que o fizera perder a cabeça, por conse­guinte não de acordo com um plano, para um roubo premeditado, mas de improviso, num acesso de ciúme furioso! 'Sim, mas depois do crime, apoderou-se do dinheiro. ' Finalmente, matou, sim ou não? Repilo com indignação a acusação de roubo; só será possível, se se indicar exata­mente o objeto do roubo, é um axioma! Mas está demonstrado que ele matou, mesmo sem roubar. Não seria isso também uma novela?

 

NÃO HOUVE ASSASSINATO

"Não vos esqueçais, senhores jurados, de que se trata da vida de um homem. A prudência se impõe. Até o presente, a acusação hesitava em admitir a premeditação. Foi preciso para convecê-la aquela fatal carta de bêbado, apresentada hoje ao tribunal. 'Isto se passou como ele o havia escrito. ' Mas, repito-o, o acusado não correu à casa de seu pai senão para procurar sua amiga, saber onde ela estava. É um fato irrecusável. Se a tivesse encontrado em sua casa, longe de executar suas ameaças, não teria ido a parte alguma. Foi por acaso, de improviso, talvez sem se recordar de sua carta. 'Mas apoderou-se de um pilão', o qual, haveis de lembrar-vos, deu margem a considera­ções psicológicas. No entanto, vem-me ao espírito uma idéia bem simples: se esse pilão, em lugar de encontrar-se a seu alcance, estivesse no armário, o acusado, não o vendo, teria partido sem arma, de mãos vazias, e não teria talvez matado ninguém. Como se pode concluir desse incidente a premeditação? Sim, mas proferiu nos botequins ameaças de morte contra seu pai, e dois dias antes, na noite em que foi escrita essa carta de bêbado, estava calmo e brigou somente com um caixeiro, 'porque Karamázov não podia fazer de outro modo'. A isto, responderei que, se tivesse ele meditado em tal crime, segundo um plano traçado, teria certamente evitado essa briga e não teria talvez ido ao botequim, porque, em semelhante caso, a alma busca a calma e o isolamento, esforça-se por subtrair-se à atenção: 'Esquecei-me, se puderdes', e isto, não por cálculo somente, mas por instinto. Senhores jurados, a psicologia tem duplo fim e nós sabemos também compreendê-la. Quanto a essas ameaças vociferadas durante um mês nos botequins, ouvem-se muitos meninos disputar-se ou bêbados brigar, ao sair do botequim: 'Eu te matarei', mas isso não vai mais longe. E essa carta fatal, não foi também o produto da embriaguez e da cólera, o grito do bêbado que ameaça praticar uma desgraça? Por que não? Por que essa carta é fatal, em lugar de ser ridícula? Porque foi encon­trado assassinado o pai do réu, porque uma testemunha viu no jardim o acusado armado que fugia e foi ela mesma por ele abatida, por conseguinte tudo se passou como ele o havia escrito, eis por que essa carta não é ridícula, mas fatal. Deus seja louvado, eis-nos chegados ao ponto crítico. 'Uma vez que estava no jardim, matou, pois. ' Toda a acusação se atem a estas palavras: 'uma vez que' e 'pois'. E se este 'pois' não tivesse fundamento, malgrado as aparências? Oh! convenho que a concordância dos fatos, as coincidências, são bastante eloquentes. No entanto, considerai todos esses fatos isoladamente, sem vos deixar impressionar por seu conjunto; por que, por exemplo, recusa a acusação absolutamente acreditar na veracidade do réu, quando declara ele ter-se afastado da janela de seu pai? Lembrai-vos dos sarcasmos a respeito da deferência e dos sentimentos piedosos que o assassino teria de súbito experimentado. E se tivesse havido verdadeiramente aqui algo de seme­lhante, um sentimento de piedade, senão de deferência? 'Sem dúvida, minha mãe rezava por mim então', declara o réu no inquérito, e fugiu assim que verificou que a Senhora Svietlova não estava em casa de seu pai. 'Mas não podia verificá-lo pela janela', objeta-nos a acusação. Por que não? A janela abriu-se aos sinais feitos pelo acusado. Fiódor Pávlovitch pôde pronunciar uma palavra, deixar escapar um grito, revelando a ausência da Senhora Svietlova. Por que ater-se absoluta­mente a uma hipótese surgida da nossa imaginação? Na realidade, há mil possibilidades escapando à observação do romancista mais sutil. 'Sim, mas Gregório viu a porta aberta, por conseguinte, o acusado entrou certamente na casa, matou, pois. ' Quanto a essa porta, senhores jurados... Vede, não temos aqui senão o único testemunho de um indivíduo que se achava, aliás, num tal estado que... Mas seja, a porta estava aberta, admitamos que as negativas do acusado sejam uma mentira, ditada por um sentimento de defesa bem natural, admi­tamos que ele haja penetrado na casa. Então, por que se quer que ele haja matado, se entrou? Pôde ter entrado, percorrido os quartos, pôde empurrar seu pai para um lado, bater-lhe mesmo, mas depois de ter verificado a ausência da Senhora Svietlova, fugiu, feliz por não tê-la encontrado e ter-se poupado um crime. Eis justamente por que, um momento depois, tornou a descer para ir em socorro de Gregório, vítima de seu furor; foi porque era suscetível de experimentar um sentimento de piedade e de compaixão, porque escapara à tentação, porque sentia a alegria de um coração puro. Com uma eloqüência impressionante, a acusação nos descreve o estado de espírito do acusado na aldeia de Mókroie, quando o amor lhe apareceu de novo, chamando-o a uma vida nova, quando não lhe era mais possível amar, tendo atrás de si o cadáver ensangüentado de seu pai e, em perspectiva, o castigo. No entanto, o ministério público admitiu, o amor, explicando-o à sua ma­neira: A ebriedade, a trégua de que se beneficiava o criminoso, etc'. Mas não criastes uma nova personagem, senhor procurador, pergunto-vos novamente? O acusado é grosseiro e sem coração ao ponto de ter podido, num momento semelhante, pensar no amor e nos subterfúgios de sua defesa, tendo na verdade sobre a consciência o sangue de seu pai? Não, mil vezes não! Logo depois de ter descoberto que ela o ama, chama-o, promete-lhe a felicidade, estou persuadido de que teria ele experimentado uma necessidade imperiosa de suicidar-se e ter-se-ia tirado a vida, se tivesse tido atrás de si o cadáver de seu pai. Oh! não, decerto, não teria esquecido onde se encontravam suas pistolas! Conheço o acusa­do; a brutal insensibilidade que lhe atribuem é incompatível com seu cará­ter. Ter-se-ia matado, é certo, e não o fez precisamente porque 'sua mãe rezava por ele', e porque não havia vertido o sangue de seu pai. Du­rante aquela noite passada em Mókroie, atormentou-se somente por causa do velho que abatera, suplicando a Deus que o reanimasse para que pudesse escapar à morte e ele próprio ao castigo. Por que não admitir esta versão? Que prova decisiva temos nós de que o acusado mente? Mas irão de novo opor-nos o cadáver de seu pai! Ele fugiu sem matar, então quem é o assassino?

"Repito que é essa toda a lógica da acusação: quem matou, senão ele? Não há ninguém para pôr em seu lugar. Senhores jurados, será bem isso? É bem verdade que não se encontra ninguém mais? A acusação enumerou todos aqueles que estavam na casa ou a ela foram naquela noite. Encontraram-se cinco pessoas. Três dentre elas, convenho, estão inteiramente fora de causa: a vítima, o velho Gregório e sua mulher. Restam, pois, Karamázov e Smierdiákov. O senhor procurador exclama pateticamente que o acusado só designa Smierdiákov em desespero de causa, que se houvesse uma sexta pessoa, ou mesmo sua sombra, o acusado, tomado de vergonha, apressar-se-ia em denunciá-la. Mas, se­nhores jurados, por que não fazer o raciocínio inverso? Há dois indi­víduos em presença: o acusado e Smierdiákov, não posso eu dizer que só se acusa o meu constituinte em desespero de causa? E isto unica­mente porque, por prevenção, excluiu-se de antemão de toda suspeita Smierdiákov. Na verdade, Smierdiákov só é designado pelo réu, por seus dois irmãos e pela Senhora Svietlova. Mas há outros testemunhos: é a emoção confusa suscitada na sociedade por certa suspeita, percebe-se um vago rumor, sente-se uma espécie de expectativa. Enfim, prova disso é a conexão dos fatos, característica mesmo na sua impressão; em primeiro lugar, aquela crise de epilepsia sobrevinda precisamente no dia do drama, crise que a acusação teve de defender e de justificar o melhor que pôde. Depois esse repentino suicídio de Smierdiákov na vés­pera do julgamento. Em seguida, o depoimento não menos inopinado, em plenário, do irmão do acusado, que havia crido até então na sua culpabilidade e traz de repente o dinheiro declarando que Smierdiákov é o assassino. Oh! estou persuadido, tanto como o ministério público, de que Ivã Fiódorovitch está com febre nervosa, de que seu depoimento tenha podido ser uma tentativa desesperada, concebida no delírio, para salvar seu irmão, acusando o defunto. Não obstante, o nome de Smier­diákov foi pronunciado, tem-se de novo a impressão de um enigma. Dir-se-ia, senhores jurados, que há aqui algo de inexprimido, de ina­cabado. Talvez a luz se faça. Mas não antecipemos. O tribunal decidiu ainda há pouco prosseguir nos debates. Eu poderia, enquanto espero, apresentar algumas observações a respeito do caráter de Smierdiákov, traçado com um talento tão sutil pela acusação. Embora admirando-o, não posso subscrever seus traços essenciais. Estive com Smierdiákov, falei-lhe, causou-me uma impressão bem diversa. Era fraco de saúde, decerto, mas não de caráter, não era absolutamente a criatura fraca que a acusação imagina. Sobretudo não encontrei nele timidez, essa timidez que nos descreveram de maneira tão característica. Nenhuma in­genuidade, uma extrema desconfiança, dissimulada sob as aparências da simplicidade, um espírito capaz de muito meditar. Oh! foi por candura que a acusação o julgou fraco de espírito. Produziu em mim uma impressão precisa; parti persuadido de estar tratando com uma criatura visceralmente má, desmedidamente ambiciosa, vingativa e invejosa. Re­colhi certas informações; detestava sua origem, tinha vergonha dela e relembrava, rangendo os dentes, que provinha de uma fedorenta. Mos­trava-se desrespeitoso para com o criado Gregório e sua mulher, que haviam tomado conta dele na sua infância. Maldizendo a Rússia, dela zombava, sonhava partir para a França, tornar-se francês. Muitas vezes declarou, ainda antes, não poder fazê-lo por falta de recursos. Creio que não amava ninguém senão a si próprio e achava-se singularmente elevado... A cultura consistia para ele numa roupa decente, numa camisa limpa e em botas bem engraxadas. Crendo-se (há fatos em apoio) filho natural de Fiódor Pávlovitch, pôde criar ódio à sua situa­ção em relação com os filhos legítimos de seu amo; têm eles tudo e ele nada, para eles todos os direitos, herança, enquanto ele não passa de um cozinheiro. Contou-me que pusera o dinheiro no envelope com Fiódor Pávlovitch. O destino daquela soma — graças à qual teria po­dido abrir seu caminho — era-lhe evidentemente odioso. Além disso, viu 3 000 rublos em cédulas novas (perguntei-lhe de propósito). Oh! nunca mostreis a uma criatura invejosa e cheia de amor-próprio uma grossa soma de uma vez; ora, via ele pela primeira vez tal soma na mesma mão. Aquele maço de dinheiro pode ter deixado na sua imaginação uma impressão mórbida, sem outras conseqüências no co­meço. Meu eminente contraditor expôs, com uma sutileza notável, todas as hipóteses pró e contra a possibilidade de inculpar Smierdiákov de assassinato, insistindo nesta pergunta: que interesse tinha ele em simular uma crise? Sim, mas não simulou necessariamente, a crise pôde sobrevir muito naturalmente e passar da mesma forma, voltando o doente a si. Sem se restabelecer, terá retomado conhecimento, como acontece entre os epilépticos. 'Em que momento Smierdiákov cometeu seu crime?', pergunta a acusação. É muito fácil indicá-lo. Pode ter voltado a si e ter-se levantado, depois de ter dormido profundamente (porque as crises são sempre seguidas dum profundo sono), justamente no mo­mento em que o velho Gregório, tendo agarrado pela perna, sobre a paliçada, o acusado, que fugiu, vociferou: 'Parricida!' Esse grito incomum, no silêncio e nas trevas, pode ter despertado Smierdiákov, cujo sono era já talvez mais leve. Levanta-se e vai quase inconsciente­mente ver de que se trata. Ainda estremunhado, sua imaginação dor-mita, mas ei-lo no jardim, aproxima-se das janelas iluminadas, toma conhecimento da terrível notícia da boca de seu amo, evidentemente satisfeito com a presença dele. O velho, aterrorizado, conta-lhe tudo por­menorizadamente. Sua imaginação inflama-se. E, no seu cérebro pertur­bado, uma idéia toma corpo, idéia terrível, mas sedutora e duma lógica irrefutável: assassinar, apoderar-se dos 3 000 rublos e tudo atribuir depois ao filho do patrão. De quem se suspeitará agora, quem pode ser acusado senão ele? As provas existem, estava no local. A cupidez pode ter-se apo­derado dele, ao mesmo tempo que a consciência da impunidade. Oh! a tentação sobrevém por vezes em rajadas, sobretudo em criminosos que não suspeitavam, um minuto antes, de que queriam matar! Assim, Smier­diákov pôde entrar nos aposentos de seu amo e executar seu plano. Com que arma? Mas com a primeira pedra que terá apanhado no jardim. Por que, com qual fim? Mas 3 000 rublos são uma fortuna. Oh! não me contradigo; o dinheiro pode ter existido. Talvez mesmo somente Smierdiákov sabia onde encontrá-lo em casa de seu amo. 'Pois bem! E o envelope caído no chão, rasgado?' Ainda há pouco, ao ouvir a acusação insinuar sutilmente a este respeito que somente um ladrão novato, tal como precisamente Karamázov, podia agir assim, e em nenhum caso Smierdiákov, que não teria jamais deixado tal prova contra si, ainda há pouco, senhores jurados, reconheci de súbito um argumento dos mais familiares. Imaginei que essa hipótese relativa à maneira pela qual Karamázov devia ter procedido com o envelope, já a ouvira eu dois dias antes do próprio Smierdiákov, e isto para grande surpresa minha; parecia-me ele, com efeito, representar inge­nuidade e impor-me de antemão essa idéia para que eu tirasse dela a mesma conclusão, como se ele ma soprasse. Não agiu ele da mesma maneira no inquérito e impôs essa hipótese ao eminente representante da acusação? E a mulher de Gregório, dirão? Ouviu o doente gemer toda a noite. Seja, mas é este um argumento muito frágil. Conheci uma senhora que se queixava amargamente de ter estado acordada toda a noite por um fraldiqueiro que a impedia de dormir. No entanto, o pobre animal, como se soube, não latira senão duas ou três vezes. E é natural; uma pessoa que dorme ouve gemer, desperta resmungando, para tornar a adormecer logo. Duas horas depois, novo gemido, novo despertar seguido do sono, e ainda duas horas depois, três vezes ao todo. De manhã, a pessoa que dormia levanta-se queixando-se de ter estado acordada a noite inteira por causa de gemidos contínuos. Deve necessariamente ter essa impressão; os intervalos de duas horas, durante os quais dormiu, escapam-lhe, somente os minutos de vigília lhe voltam ao espírito, parece-lhe que a despertaram a noite inteira. Mas por que, exclama a acusação, não confessou Smierdiákov no bilhete escrito antes de morrer? 'Sua consciência não chegou até aí. ' Permiti; a consciência é já o arrependimento, talvez que o suicida não experimentasse arre­pendimento, mas apenas desespero. São duas coisas totalmente diver­sas. O desespero pode ser mau e irreconciliável, e o suicida, no momento de liquidar-se, podia detestar mais do que nunca aqueles de quem tivera inveja toda a sua vida. Senhores jurados, tomai cuidado em não cometer um erro judiciário! Que há de inverossímil em tudo quanto vos expus? Encontrai um erro em minha tese, encontrai nela uma impossibilidade, um absurdo! Mas se minhas conjeturas são pelo menos um pouco verossímeis, sede prudentes. Juro-o pelo que há de mais sagrado, creio absolutamente na versão do crime que acabo de apresentar-vos. O que me perturba sobretudo e me põe fora de mim é o pensamento de que, entre a massa de fatos acumulados pela acusação contra o réu, não há nem um só que seja seu tanto quanto exato e irrecusável. Sim, decerto, o conjunto é terrível; aquele sangue que goteja das mãos, de que está impregnada sua roupa última, aquela noite escura em que repercutiu o grito de 'Parrícida!', aquele que o lançou ao cair, com a cabeça partida, depois aquela massa de pala­vras, de depoimentos, de gestos, de gritos, oh! tudo isso pode falsear uma convicção, mas não a vossa, senhores jurados! Lembrai-vos de que vos foi dado um poder ilimitado de ligar e desligar. Mas quanto maior é esse poder, mais temível é o seu uso! Mantenho absolutamente tudo quanto acabo de dizer, mas seja, convenho por um instante com a acusação que meu infeliz constituinte sujou suas mãos com o sangue de seu pai. Não é senão uma suposição, repito-o, não duvido nem um minuto de sua inocência, no entanto, escutai-me, mesmo nesta hipótese. Tenho ainda alguma coisa a dizer-vos, porque pressinto em vossos corações um violento combate... Perdoai-me esta alusão, senhores, jurados, quero verdadeiramente ser verídico e sincero até o fim. Se­jamos todos sinceros!"

Nesse momento o defensor foi interrompido por aplausos bastante vivos. Com efeito, pronunciou as derradeiras palavras com uma voz tão emocionada que todo mundo sentiu que talvez houvesse verdadei­ramente alguma coisa a dizer, e alguma coisa de capital importância. O presidente ameaçou "mandar evacuar" a sala, se "semelhante mani­festação" se reproduzisse. Todos se calaram e Fietiukóvitch começou, com uma voz compenetrada, totalmente mudada.

 

UM SOFISTA

"Não é somente o conjunto dos fatos que acabrunha meu consti­tuinte, senhores jurados, não, o que o acabrunha, na realidade, é o fato apenas de terem encontrado seu pai assassinado. Se se tratasse de um simples crime, dada a dúvida que plaina sobre o caso, sobre cada um dos fatos considerados isoladamente, teríeis afastado a acusação ou pelo menos hesitado em condenar um homem unicamente por causa de uma prevenção, contra ele, ai! demasiado justificada! Mas estamos em presença de um parricídio. Isto se impõe a ponto de fortificar a fragili­dade mesma dos pontos principais de acusação, no espírito menos prevenido. Como absolver tal acusado? Se fosse culpado e escapasse ao castigo? Eis o sentimento instintivo de cada um. Sim, é uma terrível coisa derramar o sangue de seu pai, o sangue daquele que vos gerou, amou, o sangue daquele que prodigou sua vida por vós, que se afligiu com vossas doenças infantis, que sofreu para que fósseis felizes e não viveu senão pelas vossas alegrias e pelos vossos êxitos! Oh! o assassinato de tal pai, não se pode mesmo imaginá-lo! Senhores jurados, que é um pai verdadeiro, que majestade, que idéia grandiosa oculta esse nome? Acabamos de indicar em parte o que deve ser. Neste caso tão doloroso, o defunto, Fiódor Pávlovitch Karamázov, nada tinha de um pai, tal como nosso coração acaba de defini-lo. É desagradável. Sim, com efeito, há pais que se assemelham a uma calamidade. Exami­nemos as coisas de mais perto, não devemos recuar diante de nada, se­nhores jurados, diante da gravidade da decisão a tomar. Devemos sobre­tudo não ter medo agora nem afastar certas idéias, tais como crianças ou mulheres medrosas, de acordo com a feliz expressão do eminente representante da acusação. No decorrer de seu ardente libelo acusatório, o meu honrado adversário exclamou por várias vezes: 'Não, não aban­donarei a ninguém a defesa do acusado, nem mesmo ao defensor che­gado de Petesburgo, sou ao mesmo tempo acusador e defensor'. No en­tanto, esqueceu-se de mencionar que se esse temível acusado guardou por 23 anos tal gratidão por 1 libra de avelãs, com que o presenteou o único homem que, sendo ele menino, teve para com ele tal gesto em casa de seu pai, inversamente tal homem deveria lembrar-se, durante esses 23 anos, de como andava descalço em casa de seu pai, no quintal, 'as calças presas por um só botão', segundo a expressão de um homem de coração, o Doutor Herzenstube. Oh! senhores jurados, de que serve olhar de perto essa calamidade, repetir o que toda gente conhece! Que é que meu constituinte encontrou ao chegar à casa de seu pai? E por que o representar como um ser sem coração, um egoísta, um monstro? É impetuoso, é selvagem, violento, eis por que o julgam agora. Mas quem é o responsável pelo seu destino, de quem a culpa se, com ten­dências virtuosas, um coração sensível e grato, recebeu uma educação tão absurda? Desenvolveram-lhe a razão, instruíram-no, alguém lhe tes­temunhou um pouco de afeto na sua infância? Meu constituinte cresceu ao deus-dará, isto é, como um animal selvagem. Talvez tivesse ardente desejo de rever seu pai após aquela longa separação, talvez lembrando-se de sua infância, como através de um sonho, tenha afastado muitas vezes o fantasma odioso do passado, desejando de toda a sua alma absolver e abraçar seu pai! E então? Acolhem-no com zombarias cínicas, des­confiança, chicanas a respeito de sua herança; só ouve frases e máximas que enojam o coração, finalmente vê seu pai tentar arrebatar-lhe, com seu próprio dinheiro, a sua amiga. Oh! senhores jurados, é repugnante, é atroz! E aquele velho queixa-se a todo mundo de irreverência e da violência de seu filho, difama-o na sociedade, causa-lhe danos, calunia-o, compra suas promissórias para metê-lo na cadeia! Senhores jurados, as pessoas aparentemente duras, violentas, impetuosas, tais como meu constituinte, são bem muitas vezes corações ternos, somente não o mos­tram. Não riais de minha idéia! O senhor procurador zombou impiedo­samente de meu constituinte, apontando seu amor por Schiller e pelo sublime. Em seu lugar, não teria zombado. Sim, esses corações — oh! deixai-me defendê-los, tão raramente e tão mal compreendidos —, esses corações vivem muitas vezes sedentos de ternura, de beleza, de justiça, precisamente como por contraste consigo mesmos, com sua violência e sua dureza, e não suspeitam disso. Parecendo apaixonados e violentos, são capazes de amar até ao sofrimento, uma mulher, por exemplo, e certamente com um amor ideal e elevado. Repito-o, não riais, é o que acontece a maior parte das vezes com tais naturezas. Somente, não podem dissimular sua impetuosidade por vezes grosseira, eis o que fere a atenção, eis o que se nota, enquanto o íntimo permanece ignorado. Pelo contrário, suas paixões acalmam-se rapidamente, mas junto duma pessoa de sentimentos elevados, esse ser que parece grosseiro, violento, busca a regeneração, a possibilidade de emendar-se, de tornar-se nobre, honesto, 'sublime', por mais desacreditada que esteja esta palavra. Disse ainda há pouco que respeitaria o romance de meu constituinte com a Senhorita Vierfchóvtseva. Contudo, pode-se falar por palavras veladas; ouvimos, não um depoimento, mas apenas o grito de uma mulher exal­tada que se vinga e não cabe a ela censurar a ele sua traição, porque foi ela quem traiu! Se tivesse tido o tempo de entrar em si mesma, não teria dado semelhante testemunho. Oh! não a acrediteis, não, meu cons­tituinte não é um monstro, como o chamou ela. O Crucificado, que amava os homens, disse antes das angústias da Paixão: 'Eu sou o Bom Pastor, que dá sua vida pelas suas ovelhas, e nenhuma delas perecerá'. Não percamos, não, uma alma humana! Eu perguntava: que é um pai? É um nome nobre e precioso, exclamei. Mas é preciso usar lealmente o termo, senhores jurados, e me permito chamar as coisas pelo seu nome. Um pai tal como a vítima, o velho Karamázov, é indigno de se chamar assim. O amor filial não justificado é absurdo. Não se pode suscitar o amor com coisa nenhuma, somente Deus é quem tira alguma coisa do nada. Tais, não provoqueis a ira de vossos filhos', escreveu o apóstolo com um coração ardendo de amor. Não é para meu consti­tuinte que cito estas santas palavras, recordo-as para todos os pais. Quem me confiou o poder de instruí-los? Ninguém. Mas como homem, como cidadão, dirijo-me a eles: vivos voco![10] Não permanecemos muito tempo sobre a terra, nossas ações e nossas palavras são muitas vezes más. Por isso tratemos de aproveitar todos os momentos que passamos juntos para nos dirigir mutuamente uma boa palavra. É o que faço: aproveito da ocasião que me é oferecida. Não é por coisa nenhuma que esta tribuna nos foi concedida por uma vontade soberana, toda a Rússia nos ouve. Não falo somente para os pais que estão aqui, grito para todos: 'Pais, não provoqueis a ira de vossos filhos!' Pratiquemos em primeiro lugar nós mesmos o preceito do Cristo, e então somente po­deremos exigir alguma coisa de nossos filhos. Senão, não somos pais, mas inimigos para eles, não são nossos filhos, mas nossos inimigos, e isto por culpa nossa! 'E com a medida com que tiverdes medido, vos medi­rão também a vós', [11] não sou eu que o digo, é o Evangelho que o prescreve; medi com a mesma medida que vos é aplicada. Como acusar nossos filhos se eles nos retribuem o que fazemos com eles? Recente­mente, na Finlândia, suspeitou-se de que uma criada havia dado à luz clandestinamente. Espionaram-na e encontrou-se no celeiro, dissimulada por trás de tijolos, sua mala, que continha o cadáver de um recém-nas­cido, morto por ela. Descobriram-se igualmente os esqueletos de dois outros bebês, que ela confessou ter matado ao nascerem. Senhores jura­dos, é uma mãe uma mulher dessas? É certo que pôs filhos no mundo, mas qual de nós ousaria dar-lhe o santo nome de mãe? Sejamos ousa­dos, senhores jurados, sejamos mesmo temerários, devemos sê-lo neste momento e não temer certas palavras, certas idéias, como as vende­doras de Moscou, que temem o 'metal' e o 'enxofre'. Provemos, pelo contrário, que o progresso dos derradeiros anos influiu também no nosso desenvolvimento, e digamos francamente: não basta procriar para ser pai, é preciso ainda merecer esse título. Sem dúvida, a palavra pai tem outra significação, segundo a qual um pai, fosse ele um monstro, um inimigo jurado de seus filhos, ficará sempre pai, pelo simples fato de tê-los gerado. Mas é uma significação mística, por assim dizer, que es­capa à inteligência, que se pode admitir somente como artigo de fé, bem como muitas coisas incompreensíveis nas quais a religião nos obriga a crer. Mas, neste caso, deve permanecer isto fora do domínio da vida real. Neste domínio, que tem não somente seus direitos, mas impõe grandes deveres, se queremos ser humanos, cristãos enfim, somos obri­gados a aplicar somente idéias justificadas pela razão e pela experiência passadas no crisol da análise, em uma palavra, agir sensatamente e não com extravagância, como em sonho ou no delírio, para não prejudicar nosso semelhante, fazê-lo sofrer, causar sua perda. Faremos então obra de cristãos e não somente de místicos, uma obra sensata, verdadeira­mente filantrópica... "

Nesse momento, vivos aplausos partiram de diferentes pontos da sala, mas Fietiukóvitch fez um gesto, como para suplicar que não o interrom­pessem. Todos se acalmaram imediatamente. O orador prosseguiu:

"Pensais, senhores jurados, que tais questões possam escapar a nossos filhos, quando começam eles a refletir? Não, decerto, e não exigiremos deles uma abstenção impossível! A vista dum pai indigno, sobretudo comparado aos de outros meninos, seus condiscípulos, inspira, malgrado seu, a um jovem questões dolorosas. Respondem-lhe banalmente: 'Foi ele quem te gerou, és seu sangue, de modo que deves amá-lo'. O rapaz pensa, malgrado seu: 'Será que ele me amava quando me gerou', per­gunta ele, cada vez mais surpreso, 'foi por minha causa que ele me deu a vida? Ele não me conhecia, ignorava mesmo meu sexo, naquele minuto de paixão, talvez aquecido pelo vinho, e só me transmitiu uma inclinação pela bebida, eis todos os seus benefícios... Por que devo amá-lo, pelo simples fato de me ter gerado, a ele que nunca me amou?' Oh! estas perguntas parecem-vos talvez grosseiras, cruéis, mas não exi­jais dum espírito jovem uma abstenção impossível: 'Expulsai o natural pela porta e ele entrará pela janela', mas, sobretudo, não temamos o 'metal' e o 'enxofre' e resolvamos a questão como o prescrevem a razão e a humanidade, e não as idéias místicas. Como resolvê-la? Pois bem! que o filho venha perguntar seriamente a seu pai: 'Pai, dize-me por que devo amar-te, prova-me que é um dever', e se esse pai for capaz de responder-lhe e de provar-lhe, eis uma verdadeira família, normal, que não repousa unicamente sobre um preconceito místico, mas sobre bases racionais, rigorosamente humanas. Pelo contrário, se o pai não apresenta nenhuma prova, está liquidada essa família; o pai não é mais um pai para seu filho, este recebe a liberdade e o direito de considerá-lo como um estranho e até mesmo um inimigo.. Nossa tribuna, senhores jurados, deve ser a escola da verdade e das idéias sãs!"

Vivos aplausos interromperam o orador. Certamente não eram unâ­nimes, mas a metade da sala aplaudia, inclusive pais e mães. Gritos agudos partiam das tribunas ocupadas pelas senhoras. Gesticulava-se com os lenços. O presidente pôs-se a agitar a campainha com todas as suas forças. Estava visivelmente agastado com aquele tumulto, mas não ousou mandar evacuar a sala, como já havia ameaçado; até mesmo dignitários, velhos condecorados instalados por trás do tribunal, aplaudiam o orador, de sorte que, restabelecida a calma, contentou-se ele em reiterar sua ameaça, e Fietiukóvitch, triunfante e emocionado, prosseguiu seu discurso.

"Senhores jurados, vós vos lembrais daquela noite terrível, de que tanto se falou aqui, em que o filho introduziu-se por escalada em casa de seu pai e se encontrou face a face com o inimigo que lhe havia dado o dia. Insisto vivamente nisto: não era o dinheiro que o atraía; a acusação de roubo é um absurdo, como já o expus! E não foi para matar que ele forçou a porta; se tivesse premeditado um crime, ter-se-ia munido previamente de uma arma, mas pegou o pilão instintivamente, sem saber por quê. Admitamos que tenha enganado seu pai com os sinais e penetrado na casa, já disse que não creio um instante sequer nessa lenda, mas seja, suponhamo-la um minuto! Senhores jurados, juro pelo que há de mais sagrado, se Karamázov tivesse tido como rival um estranho, em lugar de seu pai, depois de ter verificado a ausência daquela mulher, ter-se-ia retirado precipitadamente, sem fazer-lhe mal, quando muito ter-lhe-ia batido, empurrado, sendo a única coisa que lhe importava encontrar sua amiga. Mas viu seu pai, seu perseguidor desde a infância, seu inimigo que se tornara um monstruoso rival; bastou isto para que um ódio irresistível se apoderasse dele, abolindo sua razão. Todos os seus agravos ressurgiram-lhe duma vez. Foi um acesso de demência, mas também um movimento da natureza, que vingava incons­cientemente a transgressão de suas leis eternas. No entanto, mesmo en­tão, o assassino não matou, afirmo-o, proclamo-o, não, brandiu somente o pilão num gesto de indignação e de desgosto, sem intenção de matar, sem saber que matava. Se não tivesse tido esse fatal pilão nas mãos, teria somente batido em seu pai, talvez, mas não o teria assassinado. E, ao fugir, ignorava se o velho por ele abatido estava morto. Tal crime não é crime, não é um parricídio. Não, a morte de tal pai não pode ser assemelhada a um parricídio senão por preconceito! Mas foi esse crime realmente cometido?, pergunto-vos ainda uma vez. Senhores ju­rados, vamos condená-lo e ele dirá a si mesmo: 'Essas pessoas nada fizeram por mim, para me elevar, me instruir, tornar-me melhor, fazer de mim um homem. Recusaram-me toda assistência e agora me man­dam para o presídio. Eis-me quite, não lhes devo nada, nem a ninguém. São más, cruéis. Sê-lo-ei também'. Eis o que ele dirá, senhores jurados! Juro-o: declarando-o culpado, vós não fareis senão pô-lo à vontade, aliviar sua consciência, maldirá o sangue por ele vertido, em lugar de sentir remorsos. Ao mesmo tempo, tomareis sua recuperação impos­sível, porque permanecerá mau e cego até o fim de seus dias. Quereis infligir-lhe o castigo mais terrível que se possa imaginar, ao mesmo tempo que regenerais sua alma para sempre? Se afirmativamente, es­magai-o com a vossa clemência! Vós o vereis estremecer. Sou digno dum tal favor, dum tal amor?, dirá a si mesmo. Há nobreza, senhores jura­dos, nessa natureza selvagem. Inclinar-se-á diante de vossa mansuetude, tem sede de um grande ato de amor, inflamar-se-á e ressuscitará defi­nitivamente. Certas almas são bastante mesquinhas para acusar o mundo inteiro. Mas cumulai essa alma de misericórdia, testemunhai-lhe amor e ela maldirá suas obras, porque os germes do bem nela proliferam. Sua alma expandir-se-á vendo a mansuetude divina, a bondade e a justiça humanas. Será tomada de arrependimento, a imensidão da dí­vida contraída a esmagará. Não dirá então: 'Estou quite', mas 'Sou cul­pado diante de todos e o mais indigno de todos'. Com lágrimas de en­ternecimento, exclamará: 'Os homens valem mais do que eu, porque quiseram salvar-me, em lugar de perder-me'. Oh! é-vos tão fácil usar de clemência, porque, na ausência de provas decisivas, ser-vos-ia demasiado penoso dar um veredicto de culpabilidade. Vale mais absolver dez culpa­dos que condenar um inocente. Ouvis a grande voz do século passado de nossa história nacional? Cabe a mim, mesquinho, lembrar-vos que a justiça russa não tem unicamente por fim castigar, mas também rege­nerar um ser perdido? Que os outros povos observem a letra da lei, e nós, o espírito e a essência, para a regeneração dos decaídos. E se é assim, então avante, Rússia! Não vos atemorizeis com as vossas tróicas em disparada, das quais os outros povos se afastam com repulsa! Não é uma tróica em disparada, é um carro majestoso, que roda solene­mente, tranqüilamente para o seu alvo. A sorte de meu constituinte está em vossas mãos, bem como os destinos do direito russo. Vós o salvareis, vós o defendereis, mostrando-vos à altura de vossa missão".

 

OS MUJIQUES MANTIVERAM-SE FIRMES

Assim concluiu Fietiukóvitch e o entusiasmo de seus ouvintes não conheceu mais limites. Não se devia pensar em reprimi-lo; as mulheres choravam, bem como muitos homens, houve mesmo dois dignítários que derramaram lágrimas. O presidente resignou-se e esperou antes de agitar a campainha. "Atentar contra semelhante entusiasmo teria sido uma profanação!", exclamaram mais tarde nossas damas. O próprio ora­dor parecia sinceramente emocionado. Foi nesse momento que nosso Ipolit Kirílovitch se levantou para replicar. Lançaram-lhe olhares carre­gados de ódio: "Como ousa ele replicar?", murmuravam as senhoras. Mas os murmúrios de todas as senhoras do mundo, tendo à frente sua esposa, não teriam detido o procurador. Estava pálido e tremia de emo­ção; suas primeiras frases foram mesmo incompreensíveis, ofegava, arti­culava mal, embaraçava-se. Aliás, conseguiu dominar-se logo. Não ci­tarei senão algumas frases desse segundo discurso.

"... Censuram-nos ter inventado novelas. Mas fez o defensor coisa diversa? Só faltavam versos. Fiódor Pávlovitch, à espera de sua bem-amada, rasga o envelope e atira-o no chão. Citam-se mesmo suas pala­vras na ocasião. Não é um poema? E onde está a prova de que ele tirou o dinheiro e quem ouviu o que ele dizia? O imbecil Smierdiákov, transformado numa espécie de herói romântico que se vinga da socie­dade por causa de seu nascimento ilegítimo, não é um poema ao gosto byroniano? E o filho que, tendo entrado intempestivamente em casa de seu pai, o mata sem matá-lo, não é mesmo nem mais uma novela, nem um poema, é uma esfinge propondo enigmas que ele próprio, decerto, não pode resolver. Se matou, é porque matou, como admitir que tenha matado sem ser um assassino, quem compreenderá isso? Em seguida, declara-se que nossa tribuna é a da verdade e a das idéias sãs e profere-se nela este axioma: que não passa de um preconceito qualificar de parricídio o assassinato de um pai. Mas se o parricídio é um precon­ceito e se cada menino pode perguntar a seu pai: 'Pai, por que devo amar-te?', que se tornarão as bases da sociedade, que se tornará a famí­lia? O parricídio, vede, é o 'enxofre' da vendedora moscovita. As mais nobres tradições da justiça russa são desnaturadas unicamente para obter ganho de causa, para obter a absolvição de quem não pode ser absol­vido. Cumulai-o de clemência, exclama o defensor, o criminoso mais não pede, ver-se-á amanhã o resultado! Aliás, não será por uma mo­déstia exagerada que ele pede apenas a absolvição do acusado? Por que não pedir a fundação duma bolsa que imortalizaria a façanha do parri­cídio aos olhos da posteridade e da jovem geração? Corrigem-se o Evan­gelho e a religião: tudo isso é misticismo, somente nós possuímos o ver­dadeiro cristianismo, já verificado pela análise da razão e das idéias sãs. Evoca-se diante de nós uma falsa imagem do Cristo! 'E com a me­dida com que tiverdes medido, vos medirão também a vós', exclama o defensor, concluindo logo que o Cristo ordenou medir com a mesma medida que nos é aplicada — eis o que se proclama da tribuna da ver­dade! Lemos o Evangelho somente na véspera de nossos discursos, para brilhar pelo conhecimento de uma obra bastante original por meio da qual pode-se produzir certo efeito na medida em que for necessário. Ora, o Cristo proibiu precisamente agir assim, porque é o que torna o mundo mau, e nós, longe de pagar o mal pelo mal, devemos oferecer a face e perdoar aqueles que nos ofenderam. Eis o que nos ensinou o nosso Deus e não que seja um preconceito proibir que os filhos matem seus pais. E não seremos nós que corrigiremos nesta tribuna o Evan­gelho de nosso Deus, que o defensor digna-se apenas em chamar 'o Crucificado que amava os homens', em oposição a toda a Rússia orto­doxa que o invoca: 'Porque tu és nosso Deus!... '"

Aqui, o presidente interveio e rogou ao orador que não exagerasse, que ficasse nos limites justos, etc, como fazem de hábito os presidentes em semelhante caso. A sala estava inquieta. O público agitava-se, pro­feria exclamações indignadas. Fietiukóvitch nem mesmo replicou, veio somente, de mãos sobre o coração, pronunciar num tom ofendido algu­mas palavras cheias de dignidade. Aflorou de novo, com ironia, as no­velas e a psicologia e achou meio de desfechar o seguinte dardo: "Jú­piter, não tens razão, pois que te zangas", o que causou risos no auditó­rio, porque Ipolit Kirílovitch não se assemelhava absolutamente a Jú­piter. Quanto à pretensa acusação de permitir à mocidade o parricídio, declarou Fietiukóvitch, com grande dignidade, que a ela não responderia. A respeito da falsa imagem do Cristo e do fato de não se ter ele dig­nado chamá-lo Deus, mas apenas "o Crucificado que amava os homens", o que é "contrário à ortodoxia e não podia ser dito na tribuna da ver­dade", falou Fietiukóvitch de "insinuação" e deu a entender que, vindo aqui, acreditava pelo menos aquela tribuna ao abrigo de acusações "pe­rigosas para sua pessoa como cidadão e fiel súdito... " Mas a estas pa­lavras o presidente também o deteve e Fietiukóvitch, inclinando-se, ter­minou sua tréplica, acompanhado pelo murmúrio aprovativo de toda a sala. Ipolit Kirílovitch, segundo a opinião de nossas damas, estava "con­fundido para sempre".

Foi em seguida dada a palavra ao acusado. Mítia levantou-se, mas não disse grande coisa. Estava física e moralmente sem forças. O ar de independência e energia com que entrara pela manhã havia quase desa­parecido. Parecia ter atravessado naquela manhã uma crise decisiva que lhe ensinara e fizera compreender algo de muito importante, que antes ele não apreendera. Sua voz se enfraquecera, não gritava mais. Sentia-se em suas palavras a resignação e o acabrunhamento da derrota.

"Que posso dizer, senhores jurados? Vão julgar-me, sinto a mão de Deus sobre mim. É o fim de um homem transviado! Mas como se me confessasse a Deus, a vós também digo: 'Não derramei o sangue de meu pai!' Repito-o uma derradeira vez. Não fui eu quem matou! Era desregrado, mas amava o bem. Constantemente, aspirava a emendar-me, e vivi como um animal selvagem. Obrigado ao procurador, disse a meu respeito muitas coisas que eu ignorava, mas é falso que tenha eu ma­tado meu pai, o procurador se enganou! Obrigado igualmente a meu defensor: chorei ao ouvi-lo, mas é falso que eu tenha matado «meu pai, não se devia nem supô-lo! Não acrediteis nos médicos, estou em plena razão, somente sinto-me acabrunhado. Se me poupardes e me absolver­des, rezarei por vós. Tornar-me-ei melhor, dou minha palavra, dou-a diante de Deus. Se me condenardes, quebrarei eu próprio minha espada e beijar-lhe-ei os pedaços! Mas poupai-me, não me priveis de meu Deus, co­nheco-me: eu me revoltarei! Estou acabrunhado, senhores... poupai-me!"

Caiu quase no seu lugar, sua voz se partiu, a derradeira frase mal foi articulada. O tribunal redigiu em seguida os quesitos a propor e pediu suas conclusões às partes. Mas omito os detalhes. Enfim, os ju­rados retiraram-se para deliberar. O presidente estava extenuado, de modo que lhes dirigiu uma breve alocução: "Sede imparciais, não vos deixeis influenciar pela eloqüência da defesa, contudo pesai vossa decisão; lembrai-vos da alta missão de que estais revestidos", etc. Os ju­rados retiraram-se, foi suspensa a audiência. Pôde-se dar um giro, trocar impressões, fazer lanche no bufê. Era bastante tarde, cerca de 1 hora da madrugada, mas ninguém foi embora. Os nervos tensos impediam de pensar no repouso. Todo mundo aguardava com ansiedade o vere­dicto, exceto as damas, que, na sua impaciência febril, estavam tran­qüilizadas: "A absolvição é inevitável". Todas se preparavam para o mi­nuto emocionante do entusiasmo geral. Confesso que, entre os homens, muitos estavam certos da absolvição. Uns se regozijavam, outros fran­ziam a testa, alguns baixavam simplesmente o nariz; não queriam absol­vição! Fietiukóvitch mesmo estava certo do triunfo. Cercavam-no, feli­citavam-no complacentemente.

— Há — dizia ele num grupo, como se contou depois —, há fios invisíveis que ligam o defensor aos jurados. Formam-se e se pressen­tem já no curso da defesa. Senti-os, eles existem. Teremos ganho de causa, ficai tranqüilos.

— Que vão dizer agora os nossos mujiques? — proferiu um gordo senhor bexigoso, de ar carrancudo, proprietário nos arredores, aproxi­mando-se de um grupo.

— Não há somente mujiques. Há quatro funcionários.

— Ah! sim! os funcionários — disse um membro do ziémstvo.

— Conhece Nazáriev, Prokhor Ivânovitch, aquele comerciante que tem uma medalha? Faz parte do júri.

— E com isso?

— É um dos luminares da corporação.

— Mantém-se sempre em silêncio.

— Mantém o silêncio, pois tanto melhor. Não cabe ao petersburguês dar-lhe lições. Ele mesmo seria capaz de dá-las a toda Petersburgo. Doze filhos, imaginem só!

— Será possível que não o absolvam? — gritava num outro grupo um de nossos jovens funcionários.

— Será certamente absolvido — disse uma voz decidida.

— Seria uma vergonha não o absolver — exclamou o funcionário. — Admitamos que tenha matado, mas um pai como o dele! E, afinal, es­tava em tal exaltação... Pôde deveras ter assestado apenas uma pan­cada de pilão e o velho caiu. Mas erraram metendo o lacaio nisso. Não passa de um episódio burlesco. No lugar do defensor, teria eu dito re­dondamente: ele matou, mas não é culpado, que o diabo vos leve!

— Foi o que ele fez, somente não disse: que o diabo vos leve!

— Não, Mikhail Siemiônitch, ele quase o disse — declarou uma ter­ceira voz.

— Permiti, senhores, absolveram durante a Quaresma uma atriz que cortara a garganta da mulher de seu amante.

— Sim, ela, porém, não foi até o fim.

— Dá na mesma, tinha começado.

— E o que disse ele dos meninos! Foi admirável!

— Admirável.

— E sobre o misticismo, hein?

— Deixem o misticismo — exclamou outro —, considerem antes a sorte de Ipolit doravante! Amanhã, sua esposa o arranhará por causa de Mítia.

— Está aqui ela?

— Por que aqui? Se aqui estivesse, já o teria arranhado. Fica em casa, tem dor de dentes, eh! eh! eh!

— Eh! eh! eh!

Num terceiro grupo:

— Mítia poderia muito bem ser absolvido.

— Seria magnífico! Amanhã saqueará A Capital e passará dez dias na carraspana.

— Ah! sim, o diabo!

— Não se pôde passar sem o diabo, seu lugar estava bem indicado aqui.

— Senhores, a eloqüência é uma bela coisa. Mas não se pode reben­tar a cabeça de um pai impunemente. Senão, aonde iríamos parar?

— E aquilo do carro, do carro, lembram-se?

— Sim, fez ele duma carroça um carro.

— Amanhã o carro virará carroça de novo, "de acordo com as con­veniências".

— As pessoas tornaram-se espertas. A verdade existe ainda na Rússia, senhores, sim ou não?

Mas a campainha retiniu. Os jurados tinham deliberado uma hora exata. Profundo silêncio reinou, quando o público retomou seus lugares. Lembro-me da entrada do júri na sala. Afinal! Não citarei os quesitos por ordem, esqueci-os. Lembro-me somente da resposta ao primeiro que­sito, o principal: "O acusado matou para roubar com premeditação?" (esqueci o texto). O presidente do júri, aquele funcionário que era o mais jovem de todos, respondeu com uma voz nítida, em meio dum si­lêncio de morte:

— Sim, culpado.

Depois foi a mesma resposta a respeito de todos os pontos: culpado, sem a menor circunstância atenuante!

Ninguém esperava por isso, todos contavam pelo menos com a indul­gência do júri. O silêncio continuava, como se o auditório estivesse pe­trificado, tanto os partidários da condenação como os da absolvição. Mas foram apenas os primeiros minutos, aos quais sucedeu um terrível tumulto. Entre o público masculino, muitos estavam encantados. Outros chegavam mesmo a esfregar as mãos, sem dissimular sua alegria. Os descontentes tinham o ar acabrunhado, erguiam os ombros, cochicha­vam como se ainda não se dessem conta. Mas as nossas damas, meu Deus!, pensei que elas iam fazer um motim. A princípio, não quiseram acreditar em seus ouvidos. De repente, ruidosas exclamações ecoaram: "Que é isso? Por que isso?" Deixavam seus lugares. Certamente, ima­ginavam que se podia, no mesmo instante, mudar tudo aquilo e reco­meçar. Naquele momento, Mítia se levantou de repente e gritou com voz dilacerante, os braços estendidos para diante:

— Juro-o perante Deus e à espera do juízo final, não derramei o sangue de meu pai! Cátia, eu te perdôo! Irmãos, amigos, velai pela outra!

Não terminou e pôs-se a soluçar ruidosamente, com uma voz que não parecia a sua, como mudada, inesperada, vinda só Deus sabia don­de. Nas tribunas, num canto recuado, repercutiu um grito agudo: era Grúchenhka. Suplicara que a deixassem entrar e voltara para a sala antes dos discursos. Levaram Mítia. A sentença do julgamento ficou adiada para o dia seguinte. Todos se levantaram em grande tumulto, mas eu já não escutava mais. Lembro-me somente de algumas excla­mações no patamar da saída:

— Vai pegar não menos de vinte anos de trabalho nas minas.

— Nada menos!

— Sim, os nossos mujiques mantiveram-se firmes.

— E ajustaram suas contas com o nosso Mítia!

 

PROJETOS DE EVASÃO

No quinto dia após o julgamento de Mítia, cerca de 8 horas da ma­nhã, Aliócha dirigiu-se à casa de Catarina Ivanovna para se entender definitivamente com ela a respeito dum assunto importante; estava além disso encarregado dum recado. Mantinha-se ela no mesmo salão onde recebera Grúchenhka; na peça vizinha, Ivã Fiódorovitch, presa da fe­bre, jazia inconsciente. Logo depois da cena no tribunal, Catarina Iva­novna mandara transportar para sua casa Ivã Fiódorovitch, desmaiado, sem se incomodar com os comentários inevitáveis e a censura da so­ciedade. Uma das duas parentas que viviam com ela partira imediatamen­te para Moscou, a outra ficara. Mas, se as duas tivessem partido, isso não teria mudado a decisão de Catarina Ivanovna, resolvida a tratar ela mesma o doente e a velar por ele noite e dia. Era tratado pelos doutores Var­vínski e Herzenstube; o médico de Moscou regressara, recusando-se a pronunciar-se sobre o desenlace da doença. Os doutores, malgrado suas afirmativas tranqüilizadoras, não podiam dar ainda uma esperança firme. Aliócha visitava seu irmão duas vezes por dia, mas desta vez tratava-se de um assunto particularmente embaraçoso, pressentia a dificuldade que teria em falar dele, e apressava-se, devendo ir a outra parte para um outro assunto importante, naquela mesma manhã. Havia um quarto de hora que conversavam. Catarina Ivanovna estava pálida, extenuada, pre­sa duma agitação doentia: pressentia o objetivo da visita de Aliócha.

— Não se inquiete com a sua decisão — dizia ela com firmeza a Aliócha. — Duma maneira ou doutra, chegará ele a esta solução: é preciso evadir-se. Esse infeliz, esse herói da consciência e da honra — não ele, não Dimítri Fiódorovitch, mas o que está doente aqui e se sacrificou pelo seu irmão (acrescentou Cátia, de olhos cintilantes) — já desde muito tempo me comunicou todo o plano de evasão. Tinha mesmo dado passos... já lhe falei disso... Veja você, será, provavel­mente, na terceira etapa, quando se levar o comboio dos deportados para a Sibéria. Oh! é ainda longe. Ivã Fiódorovitch foi ver o chefe da terceira etapa. Mas não se sabe ainda quem comandará o comboio, aliás isto jamais é sabido com antecedência. Amanhã, talvez, lhe mostrarei o plano detalhado que Ivã Fiódorovitch me deixou na véspera do julga­mento, para o que desse e viesse... Você deve lembrar-se, discutíamos, quando você chegou; descia ele a escada, vendo você, obriguei-o a tor­nar a subir, recorda-se? Sabe a que respeito discutíamos?

— Não, não sei.

— Evidentemente, ele lhe ocultou: era precisamente a propósito des­se plano de evasão. Já me havia explicado o essencial três dias antes; foi a origem de nossas discussões durante aqueles três dias. Eis por quê: quando me declarou que se ele fosse condenado, Dimítri Fiódo­rovitch fugiria para o estrangeiro com aquela criatura, zanguei-me de repente; não lhe direi por qual razão, ignoro-a eu mesma. Oh! sem dúvida foi por causa dela e porque acompanharia Dimítri na sua fuga! — exclamou Catarina Ivânovna, com os lábios trêmulos de cólera. — Minha irritação contra aquela criatura fez que Ivã Fiódorovitch acre­ditasse que eu estava com ciúme dela e, por conseguinte, ainda enamo­rada de Dimítri. Eis a causa de nossa primeira discussão. Não quis dar explicação e não podia pedir perdão, era-me penoso que tal homem pudesse suspeitar que eu amasse como outrora aquele... E isso quan­do desde muito tempo lhe havia eu declarado com toda a franqueza que não amava Dimítri e que só a ele amava! Foi por simples animo­sidade contra aquela criatura que me zanguei com ele! Três dias mais tarde, justamente na noite em que você veio, trouxe-me ele um envelo­pe lacrado que eu deveria abrir no caso de acontecer-lhe alguma coisa. Oh! pressentia ele sua doença! Explicou-me que aquele envelope, con­tinha o plano detalhado da evasão, e que se ele morresse ou caísse pe­rigosamente doente deveria eu sozinha salvar Mítia. Deixou-me tam­bém dinheiro, quase 10 000 rublos, a soma à qual o procurador, tendo sabido que ele a mandara trocar, fez alusão no seu discurso. Fiquei estupefata ao ver que, malgrado seu ciúme, e persuadido de que eu amava Dimítri, Ivã Fiódorovitch não renunciara a salvar seu irmão e confiava em mim para isso! Oh! era um sacrifício sublime! Você não pode compreender a grandeza duma tal abnegação, Alieksiéí Fiódoro­vitch! Ia prostrar-me a seus pés, mas quando pensei de repente que ele atribuiria esse gesto unicamente à minha alegria de saber Mítia salvo (e ele o teria decerto acreditado!), a possibilidade duma tal injustiça de sua parte irritou-me tão fortemente que, em lugar de beijar-lhe os pés, fiz-lhe nova cena! Quanto sou infeliz! Que horrível gênio o meu! Você verá: agirei de tal maneira que ele me deixará por uma outra de mais fácil viver, como Dimítri, mas então... não, não o suportarei, matar-me-ei! No momento em que você chegou, naquela noite, e quando or­denei a Ivã que tornasse a subir, o olhar cheio de ódio e de desprezo que ele me lançou ao entrar pôs-me em tal cólera que — lembra-se? — gritei de repente que fora ele, somente ele, quem me assegurara que Dimítri era o assassino! Caluniava-o para feri-lo uma vez mais; ele nunca me assegurara tal coisa, pelo contrário, era eu quem lho afirma­va! A causa de tudo é a minha violência. Aquela abominável cena pe­rante o tribunal, fui eu que a provoquei! Queria ele provar-me a no­breza de seus sentimentos e que, malgrado meu amor por seu irmão, não o haveria de perder por vingança, por ciúme. Então prestou o de­poimento que você conhece... Sou a causa de tudo, sou eu a única culpada!

Jamais fizera Cátia tais confissões a Aliócha. Compreendeu ele que chegara ela aquele grau de sofrimento intolerável em que o coração mais orgulhoso abdica de toda altivez e se confessa vencido pela dor. Aliócha conhecia outra causa para o pesar da moça, se bem que ela lha dissimulasse desde a condenação de Mítia, mas isto lhe teria cau­sado demasiada pena, se ela se humilhasse a ponto de falar-lhe disso ela mesma, agora. Sofría por causa de sua "traição" na audiência e pres­sentia que sua consciência a impelia a acusar-se precisamente diante dele, Aliócha, numa crise de lágrimas, batendo com a testa no chão. Te­mia ele aquele instante é queria poupar-lhe o sofrimento. Mas por isso seu recado se tornava mais difícil de dar. Voltou a falar de Mítia.

— Não receie nada por ele — continuou obstinadamente Cátia — sua decisão é passageira, fique certo de que ele consentirá em evadir-se: Aliás, não será imediatamente, terá ainda tempo para se decidir a isso. Ivã Fiódorovitch já estará curado na ocasião e ocupar-se-á de tudo, de sorte que não terei de meter-me nisso. Não se inquiete, Dimítri con­sentirá em evadir-se. Aliás, poderá ele renunciar aquela criatura? Ora, não a admitiriam no presídio, de modo que, como não fugir? Sobre­tudo, ele o teme, receia sua censura do ponto de vista moral, mas você deve permitir-lhe magnânimamente que fuja, já que sua sanção é tão necessária — acrescentou Cátia com ironia.

Calou-se um instante, sorriu e continuou:

— Ele fala de hinos, de cruz a carregar, dum certo dever, lembro-me. Ivã Fiódorovitch relatou-me tudo isso... Se soubesse você como ele falava a respeito! — exclamou de súbito Cátia, com um ímpeto irresistível. — Se você soubesse quanto ele amava aquele desgraçado, no momento em que me contava isso, e quanto, talvez, o odiava ao mesmo tempo! E eu o escutava, eu o via chorar com um sorriso altivo! Oh! criatura! vil criatura que eu sou! Fui eu que o fiz enlouquecer! Mas o outro, o condenado, está pronto a sofrer — concluiu Cátia com irri­tação. — Será capaz? Os seres como ele ignoram o sofrimento!

Uma espécie de ódio e de desgosto transparecia através de suas pa­lavras. Entretanto, havia-o traído. "Pois bem! é talvez porque se sinta culpada para com ele que o odeia por momentos", pensou Aliócha. Te­ria querido que só fosse por momentos. Sentira um desafio nas derra­deiras palavras de Cátia, mas não lhe deu importância.

— Pedi-lhe que viesse hoje para que você me prometa convencê-lo. Mas talvez, segundo você também, seria desleal e vil evadir-se, ou co­mo dizer... não cristão? — acrescentou Cátia com uma provocação ainda mais acentuada.

— Não, não é nada. Dir-lhe-ei tudo... — murmurou Aliócha. — Ele lhe pede que vá hoje — continuou ele, bruscamente, olhando-a bem no rosto.

Ela estremeceu e fez um leve movimento de recuo.

— Eu... é possível? — disse ela, empalidecendo.

— É possível e é um dever! — declarou Aliócha num tom firme e com animação. — Você lhe é mais necessária do que nunca. Não a teria atormentado prematuramente a esse respeito sem necessidade. Ele está doente, está como louco, pede que vá vê-lo, constantemente. Não é para uma reconciliação que quer vê-la, mostre-se somente no limiar de seu quarto. Está bem mudado desde aquele dia e compreende toda a extensão de seus agravos a você. Não é o seu perdão que ele quer: "Não posso ser perdoado", diz ele. Quer somente vê-la no limiar...

— Você de repente me... — murmurou Cátia. — Pressentia nes­tes dias que você viria aqui com esse fito... — Sabia bem que ele me mandaria chamar!... Ê impossível!

— Impossível, seja, mas faça-o. Lembre-se de que, pela primeira vez, está ele consternado por havê-la assim ofendido, pela primeira vez, jamais antes compreendeu suas faltas tão profundamente! Diz ele: "Se ela recusar vir, serei sempre infeliz". Entende? Um condenado a vinte anos de trabalhos forçados sonha ainda com a felicidade. Não causa isto compaixão? Pense que vai você ver uma vítima inocente — disse Aliócha, com um ar de desafio. — Suas mãos estão limpas de sangue.

Em nome de todos os sofrimentos que o esperam, vá vê-lo agora! Vá, conduza-o nas trevas, mostre-se somente no limiar... Deve, deve fazê-lo — concluiu Aliócha, insistindo com energia na palavra "deve".

— Devo... mas não posso... — gemeu Cátia. — Ele me olhará... não posso...

— Vossos olhares devem reencontrar-se. Como poderá você viver doravante, se recusa agora?

— Antes sofrer toda a minha vida.

— Deve ir, é preciso — insistiu de novo Aliócha inflexível.

— Mas por que hoje, por que imediatamente?... Não posso aban­donar o doente...

— Por um momento poderá, não demorará muito. Se você não fôr, Dimítri terá delírio esta noite. Não lhe estou mentindo, tenha piedade!

— Tenha piedade de mim! — disse com amargor Cátia, e desatou a chorar.

— Então você irá! — proferiu firmemente Aliócha, vendo-a chorar. — Vou dizer-lhe que você irá agora mesmo.

— Não, por coisa alguma do mundo, não lhe fale disso! — excla­mou Cátia com terror. — Irei, mas não lhe diga de antemão, porque talvez eu não entre... Não sei ainda..

Sua voz partiu-se. Respirava com dificuldade. Aliócha levantou-se para sair.

— E se eu encontrasse alguém? — disse ela, de repente, empalide­cendo de novo.

— Por isso é que é preciso ir imediatamente, não haverá ninguém, fique tranqüila. Nós a esperaremos — concluiu ele com firmeza, e saiu.

 

POR UM INSTANTE A MENTIRA TORNA-SE VERDADE

Apressou-se em seguir para o hospital onde se achava Mítia no mo­mento. Dois dias depois do julgamento, tendo contraído febre nervosa, haviam-no transportado para o hospital, na divisão dos detidos. Mas o Doutor Varvínski, a pedido de Aliócha, da Senhora Khokhlakova, de Lisa e de outras pessoas, mandou colocar Mítia num quarto à parte, o ocupado outrora por Smierdiákov. Na verdade, no fundo do corredor estacionava uma sentinela e a janela era gradeada; Varvínski podia pois estar tranqüilo a respeito dos resultados dessa complacência um tanto ilegal. Bom e compassivo, compreendia quanto era duro para Mítia entrar sem transição na sociedade dos malfeitores e que lhe era preciso a princípio habituar-se a isso. As visitas eram autorizadas secretamente pelo doutor, pelo diretor e mesmo pelo isprávnik, mas somente Aliócha e Grúchenhka iam ver Mítia. Por duas vezes, Rakítin tentara introduzir-se, mas Mítia pediu insistentemente a Varvínski que não o deixasse entrar.

Aliócha encontrou seu irmão sentado num divã, com roupão de quar­to; tinha um pouco de febre, a cabeça enrolada num guardanapo mo­lhado com água e vinagre. Lançou a Aliócha um olhar vago em que transparecia uma espécie de terror.

Em geral, desde sua condenação, tornara-se pensativo. Por vezes, ficava uma meia hora sem dizer nada, parecendo entregar-se a uma meditação dolorosa, esquecendo seu interlocutor. Se saía de seu devaneio, era sempre de improviso e para falar de outra coisa diferente do assunto em conversa. Por vezes, olhava seu irmão com compaixão, parecia menos à vontade com ele do que com Grúchenhka. Na verdade, nunca falava com esta, mas assim que ela entrava seu rosto se ilumi­nava. Aliócha sentou-se em silêncio ao lado dele. Dimítri esperava-o com ansiedade, contudo não ousava interrogá-lo. Achava impossível que Cátia consentisse em vir, enquanto sentia que, se ela não viesse, seria intolerável. Aliócha compreendia seus sentimentos.

— Parece que Trifon Borísovitch quase demoliu sua hospedaria — disse febrilmente Mítia. — Levanta as pranchas do parquete, arranca tábuas; desmontou toda a sua galeria, pedaço por pedaço, na esperança de encontrar um tesouro, os 1 500 rublos que o procurador pretende ter eu escondido lá. Logo de volta, dizem que se pôs ele à obra. Bem feito para o velhaco. Soube-o ontem por um guarda que é de lá.

— Escuta — disse Aliócha —, ela virá, não sei quando, talvez hoje, ou dentro de algumas horas, ignoro-o. Mas virá, é certo. — Mítia es­tremeceu, teria querido falar, mas manteve silêncio. Aquela notícia per­turbava-o. Via-se que estava ansioso por conhecer os detalhes da con­versa, enquanto temia perguntá-los. Uma palavra cruel ou desdenhosa de Cátia teria sido para ele, naquele momento, igual a uma martelada na cabeça.

— Ela disse, entre outras coisas, que te tranqüilizasse a consciência a respeito da evasão. Se Ivã não estiver curado naquela ocasião, ela é quem se ocupará disso.

— Já me falaste disto — observou Mítia.

— E tu, tu o repetiste a Grucha.

— Sim — confessou Mítia. — Ela não virá esta manhã — olhou timidamente para seu irmão —, só virá à noite. Quando eu lhe disse que Cátia trataria do assunto, calou-se a princípio, com os lábios con­traídos, depois murmurou: "Pois seja!" Compreendeu que era grave. Não ousei fazer-lhe perguntas. Agora parece ela compreender que não é a mim que Cátia ama, mas a Ivã.

— Deveras?

— Talvez não. Em todo caso, Grucha não virá esta manhã. Encar­reguei-a dum recado... Escuta, nosso irmão Ivã é um espírito superior, ele é que deve viver e não nós. Curar-se-á.

— Imagina que Cátia, malgrado seus alarmas, quase não duvida de sua cura..

— Então é que ela está persuadida de que ele morrerá. Ê o pavor que lhe inspira essa convicção.

— Ivã é de constituição robusta. Eu também espero sua cura — disse Aliócha, apreensivo.

— Sim, ele se curará. Mas tem ela a convicção de que ele morrerá. Deve sofrer muito...

Reinou silêncio. Mítia estava atormentado por uma grave preocupação.

— Aliócha, eu amo apaixonadamente Grucha — disse ele de repente, com voz trêmula, em que havia lágrimas.

— Não a deixarão contigo, lá.

— Queria dizer-te ainda — prosseguiu Mítia com uma voz vibrante —, se me baterem em caminho ou lá, não o suportarei, matarei e fu­zilar-me-ão. E serão vinte anos! Aqui, os guardas já me tuteiam. Esta noite toda refleti. Pois bem, não estou pronto! É acima de minhas forcas! Eu, que queria cantar um hino, não posso suportar o tuteio dos guardas. Tudo haveria de suportar por amor de Grucha, tudo... exceto as pancadas... Mas não a deixarão entrar lá.

Aliócha sorriu mansamente.

— Escuta, meu irmão, uma vez por todas. Eis minha opinião a este respeito. Sabes que não minto. Não estás preparado para semelhante cruz, não é feita para ti. Mais ainda, não tens necessidade duma pro­vação tão dolorosa. Se houvesses matado teu pai, lamentaria que repe­lisses a expiação. Mas és inocente e essa cruz é demasiado pesada para ti. Uma vez que querias regenerar-te pelo sofrimento, guarda sempre presente, em qualquer parte em que viveres, esse ideal da regeneração. Isso bastará. O fato de te teres furtado a essa terrível prova servirá somente para fazer-te sentir um dever maior ainda, e esse sentimento contínuo contribuirá talvez mais para tua regeneração do que se fosses para lá. Porque não suportarias os sofrimentos do presídio, revoltar­te-ias, talvez acabasses dizendo: "Estou quite". O advogado disse a ver­dade nesse sentido. Todos não suportam fardos pesados; há criaturas que sucumbem... Eis minha opinião, se desejas tanto conhecê-la. Se tua evasão devesse custar caro a outros, oficiais e soldados, não te per­mitiria que te evadisses. — Aliócha sorriu. — Mas assegura-se (o pró­prio chefe de condução disse-o a Ivã) que não haverá sanções severas, sabendo-se arranjar as coisas, e que eles se safarão de complicações sem mais nada. Decerto é desonesto corromper consciências, mesmo neste caso, mas aqui abster-me-ei de julgar, porque se, por exemplo, Ivã e Cátia me tivessem confiado um papel nesse negócio, não teria hesitado em empregar a corrupção: devo dizer-te toda a verdade. Assim, não cabe a mim julgar tua maneira de agir. Mas sabe que não te condenarei jamais. Aliás, é estranho, como poderei eu ser teu juiz neste caso? Está bem! creio ter examinado tudo.

— Em compensação, serei eu que me condenarei! — exclamou Mí­tia. — Evadir-me-ei Já estava decidido: será que Mítia Karamázov po­de não fugir? Mas me condenarei e passarei minha vida a expiar essa falta. É bem assim que falam os jesuítas? Como o estamos fazendo agora, hein?

— Com efeito — disse alegremente Aliócha.

— Eu te amo porque dizes sempre a verdade completa, sem nada ocultar! — disse Mítia, radiante. — Portanto, apanhei Aliócha em flagrante delito de jesuitismo! Merecerias que te beijassem por isso, de­veras! Pois bem! escuta o resto, vou acabar de expandir-me. Eis o que imaginei e resolvi. Se conseguir evadir-me com dinheiro e um passa­porte e se chegar à América, serei reconfortado por essa idéia de que não é para viver feliz que o faço, mas para sofrer um presídio que talvez seja igual a este! Asseguro-te, Alieksiéi, que um vale o outro! Que o diabo leve essa América! Já a odeio. Grucha me acompanhará, seja, mas olha-a: tem ela o ar duma americana? Ela é russa, russa até a medula dos ossos, sofrerá a saudade de sua terra, e sem cessar vê-la-ei sofrer por causa de mim, carregando uma cruz que não mereceu. E eu, suportarei os pulhas de lá, mesmo que todos valessem mais do que eu? Já a detesto, a essa América! Pois bem! muito embora sejam eles lá técnicos fora do comum ou outra coisa, leve-os o diabo, não são a minha gente! Amo a Rússia, Alieksiéi, amo o Deus russo, por mais vil que eu seja! Sim. rebentarei lá! — exclamou ele, com os olhos de repente cintilantes. Sua voz tremia.

— Pois bem! eis o que decidi, Alieksiéi, escuta! — prosseguiu, logo que se acalmou. — Assim que lá chegar, com Grucha, pôr-nos-emos a trabalhar na lavoura, a trabalhar na solidão, entre os ursos, bem longe. Lá também há recantos perdidos. Dizem que ainda existem peles-ver­melhas. Pois bem! será para essa região que iremos, entre os derradeiros moicanos. Estudaremos imediatamente a gramática, eu e Grucha. Ao fim de três anos, saberemos o inglês a fundo. Então, adeus Amé­rica! Voltaremos à Rússia, como cidadãos americanos. Não tenhas receio, não voltaremos para esta cidadezinha, ocultar-nos-emos em al­guma parte, ao norte ou ao sul. Estarei mudado, ela também; manda­rei fazer para mim na América uma barba postiça, furarei um olho, senão usarei uma barba grisalha de 1 archin (a nostalgia da pátria enve­lhecer-me-á depressa), talvez não me reconheçam. Se for reconhecido, que me deportem, tanto pior, era meu destino! Na Rússia também, traba­lharemos num canto perdido e far-me-ei sempre passar por americano. Em compensação, morreremos na terra natal. Eis meu plano. É irre­vogável. Tu o aprovas?

— Sim — disse Aliócha para não o contradizer. Mítia calou-se um instante e declarou de repente:

— Viste como me trataram na audiência? Quanta má vontade!

— Mesmo sem isso, terias sido condenado — disse Aliócha suspi­rando.

— Sim, estão fartos de mim, aqui! Que Deus lhes perdoe, mas é duro! — gemeu Mítia. Novo silêncio.

— Aliócha, executa-me agora mesmo: virá ela ou não agora? Fala! Que disse ela?

— Prometeu vir, mas não sei se será hoje. É-lhe penoso! Aliócha fitou timidamente seu irmão.

— Concordo! Concordo! Aliócha, eu ficarei louco! Grúchenhka não cessa de fitar-me. Ela compreende. Meu Deus! acalma-me, que peço eu? Cátia! Será que compreende o que estou pedindo? Eis aqui a tal impe­tuosidade dos Karamázovi! Não, não sou capaz de sofrer! Não passo de um miserável!

— Ei-la! — exclamou Aliócha.

Nesse momento, Cátia apareceu no limiar. Parou um instante e olhou para Mítia com um ar desvairado. Mítia levantou-se vivamente, pálido de terror, mas logo um sorriso tímido, súplice, desenhou-se em seus lábios e, de repente, num movimento irresistível, estendeu seus braços para Cátia, que correu para ele. Ela agarrou-lhe as mãos, fê-lo sentar-se no leito, sentou-se também, sem largar-lhe as mãos, que apertava convulsivamente. Por várias vezes, ambos quiseram falar, mas se con­tiveram, olhando-se em silêncio, com um sorriso estranho, como que presos um ao outro; dois minutos assim se passaram.

— Perdoaste? — perguntou por fim Mítia e logo, voltando-se ra­diante para Aliócha, gritou-lhe:

— Ouves o que peço, ouves?

— Eu te amo, porque teu coração é generoso! — disse Cátia. — Não tens necessidade de meu perdão, nem eu tampouco do teu. Que me perdoes ou não, a lembrança de cada um de pós ficará como uma ferida na alma do outro, isto deve ser... — Deteve-se para tomar alento. — Por que vim? — prosseguiu ela, febrilmente. — Para beijar teus pés, apertar tuas mãos até doerem, lembras-te? como em Moscou, para dizer-te ainda que és meu deus, minha alegria, para dizer-te que te amo loucamente — gemeu ela, num soluço. Pousou os lábios ávi­dos na mão de Mítia. Corriam-lhes lágrimas pelas faces. Aliócha man­tinha-se silencioso e desconcertado. Não esperava aquela cena.

— O amor desapareceu, Mítia — continuou ela —, mas o passado é-me dolorosamente querido. Fica-o sabendo para sempre. Agora, por um instante, suponhamos verdadeiro o que teria podido ser — mur­murou ela, com um sorriso crispado, fixando-o de novo com alegria.

— Agora, amamos cada um para nosso lado, no entanto, amar-te-ei sem­pre, e tu também sabia-lo? Ouve, ama-me, ama-me toda a tua vida! — suspirou ela, com uma voz trêmula em que havia leve tom de ameaça.

— Sim, eu te amarei e... sabes, Cátia — disse Mítia, parando a cada palavra —, sabes que há cinco dias, naquela noite, eu te amava... Quando caíste desmaiada e te levaram... Toda a minha vida! Será assim, para todo o sempre.

Assim trocavam eles essas frases quase absurdas e exaltadas, menti­rosas talvez mas eram sinceros e tinham em si uma confiança absoluta.

— Cátia — exclamou, de repente, Mítia —, acreditas que eu matei? Sei que agora não o crês, mas naquela ocasião... quando depunhas... tu o acreditavas verdadeiramente?

— Jamais o acreditei, mesmo então! Eu te detestava e persuadi-me, por um instante... Ao depor, estava convencida... mas, logo imedia­tamente depois, deixei de crê-lo. Fica-o sabendo. Esquecia-me de que vim aqui para penitenciar-me! — disse ela, com uma expressão toda nova, que não lembrava em nada as ternas frases de ainda há pouco.

— Como isto é horrível para ti, mulher! — disse, de repente, Mítia.

— Deixa-me — murmurou ela —, eu voltarei, agora não posso mais. Levantara-se, mas de súbito lançou um grito e recuou.

No quarto havia entrado bruscamente, embora sem ruído, Gruchen­hka. Ninguém a esperava. Cátia lançou-se para a porta, mas parou diante de Gruchenhka, tornou-se duma palidez de cera e murmurou, num sus­piro:

— Perdoe-me!

A outra fitou-a e, ao fim dum instante, disse-lhe, em voz amarga, carregada de ódio:

— Somos más todas duas! Como haveremos de perdoar uma à outra? Mas salva-o e, em compensação, eu rezarei por ti toda a mi­nha vida.

— E tu recusas perdoar-lhe? — gritou Mítia, num tom de viva censura.

— Fica tranqüila, eu o salvarei — apressou-se em dizer Cátia, que saiu apressada.

— Pudeste recusar-lhe teu perdão, quando ela mesma to pedia? — exclamou de novo Mítia com amargura.

— Não a censures, Mítia, não tens o direito! — interveio com viva­cidade Alíócha.

— Era o seu orgulho e não o seu coração que falava — disse com desgosto Gruchenhka. — Se ela te libertar, perdoar-lhe-ei tudo...

Calou-se, como se reprimisse alguma coisa e não pudesse ainda sere­nar-se. Chegara ali totalmente por acaso, não suspeitando de nada e sem esperar aquele encontro. -

— Aliócha, corre atrás dela! — disse Mítia, ansioso, a seu irmão. — Dize-lhe... não sei o quê... não a deixes partir assim!

— Virei ver-te antes do anoitecer! — gritou Aliócha, que correu para alcançar Cátia. Alcançou-a, de fato, já fora do hospital. Ia depressa e lhe disse rapidamente:

— Não, é-me impossível humilhar-me diante daquela mulher. Quis beber o cálice até o fim, por isso lhe pedi perdão. Ela recusou... Amo-a por isso! — disse Cátia com voz alterada e seus olhos brilha­vam cheios de ódio feroz.

— Meu irmão não esperava por isso — balbuciou Aliócha. — Estava persuadido de que ela não viria...

— Sem dúvida. Deixemos isso — interrompeu ela. — Escute: não posso acompanhá-lo ao enterro. Enviei-lhes flores para o caixão. De­vem ter ainda dinheiro. Se for preciso, diga-lhes que para o futuro não os abandonarei jamais. E agora, deixe-me, deixe-me, rogo-lhe. Você já está atrasado, está tocando para a derradeira missa... Deixe-me, por favor!

 

ENTERRO DE ILIÚCHA. ALOCUÇÃO PERTO DA PEDRA

Estava atrasado, com efeito. Esperavam-no e tinham mesmo já de­cidido levar sem ele para a igreja o pequeno ataúde ornado de flores. Era o de Iliúcha, o pobre menino. Morrera dois dias depois da sen­tença do julgamento. Ainda no portão, foi Aliócha acolhido pelos gritos dos rapazes, camaradas de Iliúcha. Tinha vindo uma dúzia, com suas sacolas escolares nas costas. "Papai chorará, fiquem com ele", dissera-lhes Iliúcha, ao morrer, e os meninos lembravam-se disso. À frente de­les achava-se Kólia Krasótkin.

— Como estou contente. pela sua vinda, Karamázov! — exclamou ele, estendendo a mão a Aliócha. — Aqui, está horrível! Na verdade, causa dó ver. Snieguiriov não está bêbado, temos certeza de que não bebeu hoje, mas tem ar de embriagado... Mantenho-me firme, mas é horrível. Karamázov, se não o demoro, far-lhe-ei apenas uma per­gunta antes de entrar.

— Que há, Kólia? — Aliócha parou.

— Seu irmão é inocente ou culpado? Foi ele quem matou seu pai ou foi o lacaio? Acreditarei no que o senhor disser. Há quatro noites que não durmo pensando nessa idéia.

— Foi o lacaio o assassino, meu irmão está inocente — respondeu Aliócha.

— É também minha opinião!... — exclamou de repente o jovem Smúrov.

— De modo que sucumbe ele como uma vítima inocente pela ver­dade? — exclamou Kólia. — Sucumbindo, é feliz! Estou pronto a invejá-lo!

— Como pode você dizer isso e por quê? — disse Aliócha, surpreso.

— Oh! se eu pudesse um dia sacrificar-me pela verdade! — declarou Kólia com entusiasmo.

— Mas não num caso com esse, não com tal opróbio em circuns­tâncias tão horríveis! — disse Aliócha.

— Certamente... quereria morrer pela humanidade inteira e, quanto à vergonha, pouco importa: pereçam nossos nomes. Respeito seu irmão!

— Eu também! — exclamou de modo completamente inesperado o mesmo menino que pretendera outrora saber quem fundara Tróia. Co­mo então, ficou vermelho como uma peônia.

Aliócha entrou. No ataúde azul, enfeitado com tiras brancas, estava Iliúcha deitado, as mãos juntas, os olhos fechados. Os traços de seu rosto emagrecido mal haviam mudado e, coisa estranha, o cadáver qua­se não exalava fétido. A expressão era séria e como que pensativa. As mãos sobretudo eram belas, como talhadas em mármore. Tinham posto flores nelas. O ataúde inteiro, por dentro e por fora, estava ornado de flores enviadas de manhã cedo por Lisa Khokhlakova. Mas tinham vindo outras da parte de Catarina Ivânovna, e quando Aliócha abriu a porta, o capitão, com um buquê nas mãos trêmulas, desmanchava-o so­bre seu querido filho. Mal olhou para o recém-chegado; aliás, não pres­tava atenção a ninguém, nem mesmo à sua mulher, a mamacha demente e chorosa, que se esforçava por se erguer sobre suas pernas doentes, para ver de mais perto seu filho morto. Quanto a Nínotchka, os me­ninos tinham-na levado, com sua cadeira, para bem perto do caixão. Apoiara a cabeça nele e devia estar chorando mansamente. Snieguiriov tinha o ar animado, mas como que perplexo e ao mesmo tempo sel­vagem. Havia loucura em seus gestos, nas palavras que lhe fugiam. "Meu pequeno, meu querido pequeno!", exclamava ele a cada instante, olhando Iliúcha.

— Pápotchka, dá-me também flores, toma da mão dele aquela flor branca e dá-ma! — pediu, soluçando, a mamacha louca. Fosse que a rosinha branca que estava nas mãos de Iliúcha lhe agradasse muito, ou quisesse ela guardá-la como lembrança dele, agitava-se, com os braços estendidos para a flor.

— Não darei nada a ninguém! — respondeu duramente Snieguiriov. — São dele as flores e não tuas. Tudo é dele, nada de ti!

— Papai, dê uma flor a mamãe! — disse Nínotchka, mostrando seu rosto úmido de lágrimas.

— Não darei nada, sobretudo a ela! Ela não o amava. Tirou-lhe seu canhãozinho — disse o capitão com um soluço, lembrando-se de como Iliúcha tinha então cedido o canhão à sua mãe. A pobre louca pôs-se a chorar, ocultando o rosto nas mãos. Os meninos, vendo afinal que o pai não saía de junto do caixão, e que era tempo de levá-lo à igreja, cercaram-no compactamente e puseram-se a levantá-lo.

— Não quero enterrá-lo no cemitério! — clamou de súbito Sniegui­riov. — Enterrá-lo-ei perto da pedra, de nossa pedra! Era a vontade de Iliúcha. Não deixarei que o levem!

Havia três dias que ele falava em enterrá-lo perto da pedra; mas Aliócha e Krasótkin intervieram, bem como a locadora, sua irmã e todos os meninos.

— Que idéia essa de enterrá-lo perto de uma pedra impura, como um renegado? — disse severamente a velha. — No cemitério, a terra é abençoada. Será mencionado nas orações. Ouvem-se os cantos da igre­ja, o diácono tem uma voz tão sonora e tudo chegará até ele, como se fosse ali mesmo, junto de sua sepultura.

O capitão teve um gesto de lassidão, como para dizer: "Façam o que quiserem!" Os meninos ergueram o caixão, mas, ao passar perto da mãe, detiveram-se um instante para que ela pudesse dizer adeus a Iliú­cha. Vendo, de repente, de perto aquele rosto querido, que ela havia três dias não tinha contemplado senão a certa distância, pôs-se ela a balançar sua cabeça grisalha.

— Mamãe, abençoe-o, beije-o — gritou-lhe Nínotchka. Mas a velha, como um autômato, continuou a menear a cabeça e, sem nada dizer, com o rosto crispado pela dor, bateu no peito com o punho. Levaram o caixão para mais longe. Nínotchka pousou um derradeiro beijo nos lábios de seu irmão. Aliócha, ao sair, rogou à locadora que velasse pe­las duas mulheres: ela não o deixou acabar.

— Conhecemos nosso dever, ficarei junto delas, nós também somos cristãs.

A velha chorava ao dizer isso. A igreja estava a pouca distância, uns trezentos passos quando muito. Fazia um tempo claro e ameno, com um pouco de geada. Os sinos ainda dobravam. Snieguiriov, apressado e desorientado, acompanhava o ataúde, metido no seu velho sobretudo, demasiado leve para a estação, segurando na mão seu chapéu de feltro de largas abas. Presa de inexplicável inquietação, ora queria sustentar a cabeceira do caixão, o que só fazia atrapalhar os que o carregavam, ora esforçava-se por andar ao lado. Tendo uma flor caído na neve, pre­cipitou-se para apanhá-la, como se aquilo tivesse uma grande importância.

— O pão, esqueceram o pão! — exclamou ele, de repente, com ter­ror. Mas os meninos lhe lembraram logo que ele acabava de pegar um pedaço de pão e trazia-o no bolso. Tirou-o è acalmou-se ao vê-lo.

— É Iliúcha que o quer — explicou ele a Alíócha. — Uma noite, em que estava eu à sua cabeceira, disse-me de repente: "Pápotchka, quando me enterrarem, esmigalhe pão em cima de minha cova, para atrair os pardais. Eu os ouvirei e me causará prazer o não me sentir só".

— Está muito bem-— disse Aliócha. — Será preciso trazer pão mui­tas vezes.

— Todos os dias, todos os dias! — murmurou o capitão como que reanimado.

Chegaram por fim à igreja e o ataúde foi colocado no meio dela. Os meninos cercaram-no e portaram-se exemplarmente durante a ce­rimônia. A igreja era antiga e bastante pobre, muitos ícones não tinham molduras, mas em igrejas assim se sente a gente mais à vontade para rezar. Durante a missa, Sníeguiriov pareceu acalmar-se um pouco, se bem que a mesma preocupação inconsciente reaparecesse por momentos nele; ora se aproximava do caixão para arranjar o pano fúnebre, ou o vientchk[12], ora, quando uma vela caía do candelabro, corria a recolocá-la, demorando-se nisso infindavelmente. Depois tranqüilizou-se e ficou à frente, com ar preocupado e como que perplexo. Depois da epístola, cochichou a Aliócha que não a haviam lido como era devido, sem ex­plicar seu pensamento. Pôs-se a cantar o hino querúbico, depois proster­nou-se, com a cabeça contra as lajes, antes que ele terminasse, e assim ficou durante muito tempo. Por fim, foi dada a absolvição e distribuí­ram-se as velas. O pai, precipitado, ia de novo agitar-se, mas a unção e a majestade do canto fúnebre o transtornaram. Pareceu encolher-se e se pôs a soluçar a curtos intervalos, a princípio abafando sua voz, de­pois, para o fim, ruidosamente. No momento dos adeuses, quando se ia fechar o caixão, abraçou-se com ele como se quisesse a isso opor-se e começou a cobrir de beijos os lábios de seu filho. Exortaram-no a afas­tar-se e já havia ele descido o degrau, quando de repente estendeu vi­vamente os braços e tirou algumas flores do caixão. * Contemplou-as e nova idéia pareceu absorvê-lo, de modo que esqueceu, por um instante, o essencial. Pouco a pouco, tombou no devaneio e não fez nenhuma resistência quando levaram o caixão.

O túmulo, situado bem perto da igreja, no cemitério, custara caro. Pagara-o Catarina Tvânovna. Após o rito usual, os coveiros desceram o caixão. Sníeguiriov, com suas flores na mão, inclinava-se de tal ma­neira por cima da cova aberta que os meninos amedrontados agarraram-lhe o sobretudo e puxaram-no para trás. Mas ele parecia não compreen­der bem o que se passava. Quando encheram a cova, pôs-se a desenhar, com ar preocupado, na terra que se amontoava, e começou mesmo a falar, mas ninguém compreendeu nada: aliás, não tardou a calar-se. Lembraram-lhe então que era preciso reduzir o pão a migalhas: moveu-se, tirou o pão do bolso e espalhou-o em migalhas sobre o túmulo: "Venham, passarinhos, venham, gentis pardais!", murmurava ele, solícito. Um dos meninos fez-lhe ver que suas flores o atrapalhavam e que de­veria confiá-las a alguém. Mas ele recusou, pareceu mesmo aterroriza­do, como se quisessem tomá-las dele, e depois de haver-se assegurado com um olhar de que tudo estava realizado e o pão reduzido a miga­lhas, voltou-se e seguiu tranqüilamente para sua casa. ' Mas pouco a pou­co apressou o passo, corria quase. Os meninos e Aliócha seguiam-no de perto.

— Flores para mamacha, flores para mamacha! Ofenderam a ma­macha! — exclamou ele, de repente. Alguém lhe gritou que pusesse o chapéu, que estava fazendo frio. Como que irritado com tais pala­vras, atirou-o na neve, dizendo: "Não quero chapéu, não quero!" O jo­vem Smúrov apanhou o chapéu e segurou-o. Todos os meninos choravam, sobretudo Kólia e o rapaz que havia descoberto Tróia. Malgrado suas lágrimas, achou Smúrov meio de apanhar um pedaço de tijolo que aparecia vermelho entre a neve, para visar no vôo um bando de pardais. Não acertou neles, naturalmente, e continuou a correr, chorando. A meio caminho, Snieguiriov parou, de súbito, estacionou um instante como impressionado por alguma coisa, depois, voltando-se para o lado da igreja, encaminhou-se para o túmulo deixado só. Mas os meninos o agarraram em um piscar de olhos, aferrando-se a ele por todos os lados. Sem forças, dominado, rolou sobre a neve, debateu-se soluçando, e se pôs a gritar: "Iiiúcha, meu querido filhinho!" Aliócha e Kólia levantaram-no. suplicaram-lhe que se mostrasse razoável.

— Capitão, basta, um homem corajoso deve suportar tudo — bal­buciou Kólia.

— O senhor está estragando as flores — disse Aliócha. — A ma­macha as espera, está chorando porque o senhor lhe recusou as flores de Iliúcha. O leito de Iliúcha ainda está lá.

— Sim, sim, vamos ver a mamacha — lembrou-se, de súbito, Snie­guiriov. — Vão levar o leito! — acrescentou, como se temesse verda­deiramente que o levassem. Levantou-se e correu à casa, mas não se estava longe e todo mundo chegou ao mesmo tempo. Snieguiriov abriu vivamente a porta, gritou para sua mulher, para com a qual se mostrara tão duro:

— Querida mamacha, eis flores que Iliúcha te envia. Tens dores nos pés?

Estendeu-lhe as flores, geladas e machucadas, quando havia rolado na neve. Naquele momento, percebeu a um canto, diante do leito, os sapatos de Iliúcha que a locadora acabara de arrumar, velhos sapatos que se haviam tornado vermelhos, encoscorados, remendados. Vendo-os, ergueu os braços, avançou, caiu de joelhos, agarrou um dos sapatos, que cobriu de beijos, gritando:

— Iliúcha, meu querido filhinho, onde estão teus pés?

— Para onde o levaste? Para onde o levaste? — exclamou a louca, com uma voz dilacerante. Nínotchka também se pôs a soluçar. Kólia saiu correndo, seguido pelos meninos. Aliócha fez o mesmo.

— Deixemo-lo chorar — disse ele a Kólia. — É impossível consolá-los. Voltaremos daqui a pouco.

— Sim, não há nada a fazer, é horrível — aprovou Kólia. — Sabe, Karamázov? — disse ele, baixando a voz para não ser ouvido. — Tenho muito pesar e para ressuscitá-lo daria tudo no mundo!

— Eu também — disse Aliócha.

— Que pensa o senhor, Karamázov, será preciso vir esta noite? Ele vai embriagar-se.

— É bem possível. Viremos somente nós dois, e basta, passar uma hora com ele, com a mamãe e Nínotchka. Se viéssemos todos, serviria para lembrar-lhes tudo — aconselhou Aliócha.

— A locadora vai preparar a mesa para a comemoração[13], virá o pope. Será preciso voltar para lá agora, Karamázov?

— Absolutamente.

— É estranho tudo isso, Karamázov. Tal dor e pastéis; como tudo é estranho na nossa religião!

— Haverá salmão — disse o rapaz que havia descoberto Tróia.

— Peço-lhe seriamente, Kartachov, que não intervenha com suas bobagens, sobretudo quando não se está falando com você e que se quer mesmo ignorar sua existência — disse Kólia, com irritação. O rapaz corou, mas não ousou responder. Entretanto, todos seguiam len­tamente a vereda e Smúrov exclamou de repente:

— Eis a pedra de Iliúcha, sob a qual queriam enterrá-lo.

Todos pararam, silenciosos, ao lado da pedra. Aliócha olhava, e a cena que lhe havia contado outrora Snieguiriov, de como Iliúcha, cho­rando e abraçando seu pai, exclamava: "Pápotchka, pápotchka, como ele te humilhou!", aquela cena lhe voltou repentinamente à memória. A emoção dominou-o. Olhou com ar sério todos aqueles rostos gentis de escolares, camaradas de Iliúcha, e lhes disse:

— Meus amigos, quereria dizer algumas palavras, aqui mesmo. Os meninos cercaram-no e fitaram nele olhares de expectativa.

— Meus amigos, vamos separar-nos. Ficarei ainda algum tempo com meus irmãos, dos quais um vai ser deportado e o outro está moribundo. Mas deixarei em breve esta cidade, talvez por muito tempo. Vamos, pois, separar-nos. Convenhamos aqui, diante da pedra de Iliúcha, que jamais o esqueceremos e nos lembraremos uns dos outros. E, aconteça o que acontecer mais tarde na vida, ainda mesmo que fiquemos vinte anos sem nos vermos, lembrar-nos-emos de como enterramos o pobre menino, contra o qual eram atiradas pedras perto do passadiço, deveis lembrar-vos, e que foi depois amado por todos. Era um menino amá­vel, bom e corajoso, tendo o sentimento da honra e da amarga ofensa sofrida por seu pai, contra a qual se voltou. Assim nos lembraremos dele toda a nossa vida. E mesmo se estivermos ocupados com negócios da mais alta importância e tenhamos alcançado honras ou caído no infortúnio, mesmo então não esqueçamos jamais como nos foi doce, aqui, comungar uma vez em um bom sentimento que nos tornou, enquanto amávamos o pobre menino, talvez melhores do que somos na realidade. Meus pombinhos, deixai que vos chame assim, porque vos assemelhais todos àqueles encantadores pássaros, enquanto fito os vossos rostos amáveis, meus queridos meninos, talvez não compreen­dais o que vou dizer-vos, porque nem sempre sou claro, mas havereis de lembrar-vos e mais tarde me dareis razão. Sabei que não há nada de mais nobre, de mais forte, de mais são e de mais útil na vida que uma boa recordação, sobretudo provindo da juventude, da casa pa­terna. Falam-vos muito de vossa educação; ora, uma recordação santa, conservada desde a infância, é talvez a melhor educação. Sc fazemos provisão de tais recordações para a vida, salvamo-nos definitivamente. E mesmo se só guardarmos no coração uma boa recordação, isto pode­rá servir um dia para nos salvar. Talvez nos tornemos mesmo maus, mais tarde, incapazes de nos abstermos duma má ação, rirmos das lá­grimas de nossos semelhantes, dos que dizem, como Kólia exclamou ainda há pouco: "quero sofrer por todos", talvez zombemos deles mal­dosamente. Mas, por piores que nos tornemos, do que Deus nos pre­serve, quando nos lembrarmos de como enterramos Iliúcha, de como o amamos nos seus derradeiros dias, e das conversas que mantivemos cordialmente em redor dessa pedra, o mais duro e o mais zombeteiro dentre nós, se assim nos tornarmos, não ousará zombar, no seu foro íntimo, dos bons sentimentos que experimenta neste momento! Mais ainda, talvez que precisamente essa recordação apenas o impeça de agir mal; fará um exame de consciência e dirá: "Sim, eu era bom então, ousado, honesto". Que ria mesmo consigo mesmo, pouco importa, a gente zomba muitas vezes do que é bom e belo; é somente por levian­dade, mas asseguro-vos que, logo depois de ter rido, dirá a si mesmo em seu coração: "Fiz mal em rir-me, porque não devemos rir dessas coisas!"

— Será absolutamente assim, Karamázov, eu o compreendo! — ex­clamou Kólia, de olhos brilhantes. Os meninos agitaram-se e queriam também gritar alguma coisa, mas contiveram-se e fixaram no orador olhares emocionados.

— Disse isto para o caso em que nos tornarmos maus — prosse­guiu Aliócha. — Mas por que nos tornarmos maus, não é, meus amigos? Seremos antes de tudo bons, depois honestos, enfim, não nos esqueceremos jamais uns dos outros. Insisto nisto. Dou-vos minha palavra, meus amigos, de que não esquecerei nenhum de vós: cada rosto que me olha agora, dele me lembrarei, mesmo daqui a trinta anos. Ainda há pouco, Kólia disse a Kartachov que queríamos ignorar sua existência. Posso eu esquecer que Kartachov existe, que não cora mais como quando descobriu Tróia, mas me olha alegremente com seus belos olhos? Meus caros amigos, sejamos todos generosos e corajosos como Iliúcha, inteligentes, corajosos e generosos como Kólia (que se tornará bem mais inteligente ao crescer), sejamos modestos, porém amáveis como Kartachov. Mas por que só falar desses dois? Todos vós me sois caros doravante, todos tendes um lugar em meu coração e reclamo um no vosso! Poi bem! quem nos reuniu neste bom senti­mento, do qual queremos guardar para sempre a lembrança, senão Iliúcha. aquele bom, aquele gentil menino, que nos será sempre que­rido? Nós não o esqueceremos, boa e eterna recordação dele em nossos corações, agora e para todo o sempre!

— É isto, é isto, lembrança eterna! — gritaram todos os meninos com suas vozes sonoras e com ar comovido.

— Nós nos lembraremos de seu rosto, de sua roupa, de seus pobres sapatinhos, de seu, ataúde, de seu desgraçado pai, e de como tomou a defesa dele, sozinho contra toda a classe.

— Nós nos lembraremos dele! Era bravo, era bom!

— Ah! como eu o amava! — exclamou Kólia.

— Meus meninos, meus queridos amigos, não temais a vida! Ela é tão bela quando se pratica o bem e a verdade!

— Sim, sim! — repetiram os meninos entusiasmados.

— Karamázov, nós o amamos! — ecoou uma voz, provavelmente a de Kartachov.

— Nós o amamos, nós o amamos! — repetiram em coro. Muitos tinham lágrimas nos olhos.

— Viva Karamázov! — proclamou Kólia.

— E lembrança eterna para o pobre menino! — acrescentou de novo Aliócha, com emoção.

— Lembrança eterna!

— Karamázov! — exclamou Kólia. — É verdade o que diz a reli­gião, que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos tornaremos a ver uns e outros, e todos e Iliúcha?

— Decerto ressuscitaremos, tornaremos a ver-nos, contaremos uns aos outros alegremente tudo quanto se passou — respondeu Aliócha, meio risonho, meio entusiasta.

— Oh! como será bom! — disse Kólia.

— E agora, já falamos muito. Vamos ao jantar fúnebre. Não vos perturbeis pelo fato de comermos pastéis. É uma velha tradição que tem seu lado bom — disse Aliócha, sorrindo. — Pois bem! vamos agora, de mãos dadas.

— E sempre assim, a vida inteira, de mãos dadas! Viva Karamázov! — repetiu Kólia com entusiasmo, e sua aclamação foi repetida por todos os meninos.



 

[1] Nome forjado. Derivado de sviet, luz, claridade.

[2] Passear, em alemão

[3] Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo.

[4] Pão e circo (Sátiras, X, 81). Expressão de desprezo com que Juvenal, célebre poeta satírico latino, fustiga os romanos da decadência, que só pediam trigo no Fórum e espetáculos gratuitos no circo.

[5] Obra-prima.

[6] Gógol, em As Almas Mortas.

[7] Nome forjado pelo autor. De sobako, cão.

[8] "Depois de mim o dilúvio. " Frase atribuída a Luís XV por uns, e à Mme. Pompadour, por outros.

[9] Porto e forte militar numa ilha, no fundo do golfo da Finlândia, junto à foz do rio Nievá.

[10] Convoco os vivos.

[11] Mateus, C. VII, v. 2.

[12] Tira de cetim ou de papel, na qual se colocavam imagens de Cristo, da Virgem e de São João Crisóstomo.

[13] O costume de "comemorar" os mortos com um jantar era, tanto na Rússia como noutros países nôrdicos, sobrevivência dos ágapes fune­rários dos primeiros tempos do cristianismo.

 

                                                                                            Dostoiévski

 

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