Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS TRÊS MOSQUETEIROS
Volume II
PLANO DE CAMPANHA
D'Artagnan foi direito ao palácio do Sr. de Tréville. Reflectira que dentro de poucos minutos o cardeal seria avisado pelo maldito desconhecido que parecia ser seu agente, e pensava com razão que não havia um instante a perder.
O coração do jovem transbordava de alegria. Apresentava‑se‑lhe uma oportunidade onde havia ao mesmo tempo glória a conquistar e dinheiro a ganhar, e como primeiro encorajamento essa oportunidade acabava de o aproximar de uma mulher que adorava. O acaso fazia portanto por ele, quase desde o primeiro momento, mais do que se atreveria a pedir à Providência.
O Sr. de Tréville estava no seu salão com a sua habitual corte de gentis‑homens. D'Artagnan, conhecido como familiar da casa, foi direito ao gabinete do Sr. de Tréville e mandou‑o avisar de que o esperava por assunto importante.
D'Artagnan encontrava‑se no gabinete havia apenas cinco minutos quando o Sr. de Tréville entrou. À primeira vista e perante a satisfação que transparecia do rosto de d'Artagnan, o digno capitão compreendeu que se passava efectivamente algo de novo.
Durante todo o caminho, d'Artagnan perguntava a si próprio se se confiaria ao Sr. de Tréville ou se se limitaria a pedir‑lhe carta branca para tratar de um assunto secreto. Mas o Sr. de Tréville fora sempre tão correcto com ele, era tão dedicado ao rei e à rainha e detestava tão cordialmente o cardeal que o jovem resolveu contar‑lhe tudo.
‑ Mandou‑me chamar, meu jovem amigo? ‑ perguntou o Sr. de Tréville.
‑ Mandei, senhor ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ E espero que me perdoeis vir incomodar‑vos quando souberdes de que assunto importante se trata.
‑ Dizei, então. Escuto‑vos.
‑ Trata‑se nada mais, nada menos ‑ disse d'Artagnan, baixando a voz ‑, do que da honra e talvez da vida da rainha.
‑ Que dizeis? ‑ perguntou o Sr. de Tréville, olhando à sua volta para se certificar se estavam de facto sós, e voltando a fitar interrogadoramente d'Artagnan.
‑ Digo, senhor, que o acaso me pôs no conhecimento de um segredo...
‑ Que espero guardareis toda a vida.
‑ Mas que vos devo confiar, senhor, porque só vós me podeis ajudar na missão que acabo de receber de Sua Majestade.
‑ Esse segredo pertence‑vos?
‑ Não, senhor, pertence à rainha.
‑ Estais autorizado por Sua Majestade a confiar‑mo?
‑ Não, senhor; pelo contrário, recomendaram‑me a maior discrição.
‑ Nesse caso, por que quereis atraiçoar a confiança que depositaram em vós revelando‑me esse segredo?
‑ Porque, como vos disse, sem vós nada posso e porque receio que me recuseis a mercê que vos venho pedir se não souberdes com que fim a peço.
‑ Guardai o vosso segredo, rapaz, e dizei‑me o que desejais.
‑ Desejo que obtenhais para mim, do Sr. dos Essarts, uma licença de quinze dias.
‑ Quando?
‑ Esta mesma noite.
‑ Deixais Paris?
‑ Vou em missão.
‑ Podeis dizer‑me aonde?
‑ A Londres.
‑ Alguém tem interesse em que não chegueis ao vosso destino?
‑ Creio que o cardeal daria tudo no mundo para me impedir de lá chegar.
‑ E partis sozinho? ‑ Parto.
‑ Nesse caso, não passareis de Bondy, sou eu que vo‑lo digo, palavra de Tréville.
‑ Como assim?
‑ Mandar‑vos‑ão assassinar.
‑ Morrerei no cumprimento do meu dever.
‑ Mas a vossa missão não será cumprida.
‑ É verdade ‑ reconheceu d'Artagnan.
‑ Acreditai no que vos digo ‑ continuou Tréville ‑, nas empresas desse género são precisos quatro para chegar um.
‑ Tendes razão, senhor ‑ declarou d'Artagnan. ‑ Mas vós conheceis Athos, Porthos e Aramis e sabeis se posso dispor deles...
‑ Sem lhes confiardes o segredo que eu não quis saber?
‑ Jurámo‑nos para sempre confiança cega e dedicação a toda a prova. Além disso, podeis dizer‑lhes que tendes toda a confiança em mim e não se mostrarão mais incrédulos do que vós.
‑ Posso apenas conceder a cada um uma licença de quinze dias: a Athos, a quem o seu ferimento continua a fazer sofrer, para ir às águas de Forges; a Porthos e a Aramis, para acompanharem o amigo, que não querem abandonar em tão dolorosa situação.
A concessão da licença será a prova de que lhes autorizo a viagem.
‑ Obrigado, senhor, sois cem vezes bom.
‑ Ide então procurá‑los imediatamente, para que tudo fique pronto esta noite. Ah, mas primeiro escrevei‑me o vosso requerimento ao Sr. dos Essarts! Talvez tenhais algum espião à perna e a vossa visita, que nesse caso já é conhecida do cardeal, ficará assim justificada.
D'Artagnan formulou o pedido e o Sr. de Tréville garantiu‑lhe, ao recebê‑lo, que antes das duas horas da madrugada as quatro licenças estariam no domicílio respectivo dos viajantes.
‑ Tende a bondade de enviar a minha para casa de Athos ‑ pediu d'Artagnan. ‑ Receio ter algum mau encontro no caso de ir para casa.
‑ Ficai descansado. Adeus e boa viagem! A propósito ‑ disse o Sr. de Tréville, chamando‑o.
D'Artagnan voltou para trás.
‑ Tendes dinheiro?
D'Artagnan fez soar a bolsa que tinha na algibeira.
‑ Suficiente? ‑ perguntou o Sr. de Tréville.
‑ Trezentas pistolas.
‑ Vai‑se ao fim do mundo com isso; ide então.
D'Artagnan cumprimentou o Sr. de Tréville, que lhe estendeu a mão; d'Artagnan apertou‑lha com um respeito laivado de reconhecimento. Desde que chegara a Paris só tivera motivos da maior gratidão para com aquele excelente homem, que sempre achara digno, leal e grande.
A sua primeira visita foi para Aramis. Não voltara a casa do amigo desde a famosa noite em que seguira a Sr.a Bonacieux. Mais: mal vira o jovem mosqueteiro e de todas as vezes que o encontrara julgara notar‑lhe no rosto uma profunda tristeza.
Naquela noite, Aramis também velava, sombrio e sonhador. D'Artagnan fez‑lhe algumas perguntas acerca daquela profunda melancolia; Aramis esquivou‑se, desculpando‑se com um comentário do décimo oitavo capítulo de Santo Agostinho, que tinha de escrever em latim na semana seguinte e que o preocupava muito.
Quando os dois amigos conversavam havia alguns instantes, chegou um criado do Sr. de Tréville com um documento lacrado.
‑ Que é isto? ‑ perguntou Aramis.
‑ A licença que o senhor pediu ‑ respondeu o lacaio.
‑ Mas eu não pedi nenhuma licença! ...
‑ Calai‑vos e recebei‑a ‑ interveio d'Artagnan. ‑ E vós, meu amigo, aqui tendes meia pistola pelo vosso incómodo. Dizei ao Sr. de Tréville que o Sr. Aramis lhe agradece muito sinceramente. Ide.
O lacaio inclinou‑se até ao chão e saiu.
‑ Que significa isto? ‑ perguntou Aramis.
‑ Reuni o preciso para uma viagem de quinze dias e acompanhais‑me.
‑ Mas eu não posso deixar Paris neste momento, sem saber...
Aramis deteve‑se.
‑ Que lhe aconteceu, não é? ‑ acrescentou d'Artagnan.
‑ A quem? ‑ perguntou Aramis.
‑ À mulher que esteve aqui, à mulher do lenço bordado.
‑ Quem vos disse que esteve aqui uma mulher? ‑ perguntou Aramis, tornando‑se pálido como a morte.
‑ Vi‑a.
‑ E sabeis quem é?
‑ Desconfio, pelo menos.
‑ Escutai ‑ disse Aramis ‑, uma vez que sabeis tantas coisas, sabeis que foi feito dessa mulher?
‑ Presumo que voltou para Tours.
‑ Para Tours? Sim, é isso... Conhecei‑la... Mas como voltou para Tours sem me dizer nada?
‑ Com medo de ser presa.
‑ Por que não me escreveu?
‑ Por recear comprometer‑vos.
‑ D'Artagnan, restituis‑me a vida! ‑ exclamou Aramis. ‑ Julgava‑me desprezado, traído... Fiquei tão feliz quando a tornei a ver! Não podia acreditar que arriscasse a sua liberdade por mim, e no entanto por que motivo voltaria a Paris?
‑ Pelo mesmo motivo que hoje nos faz ir a Inglaterra.
‑ E que motivo é esse? ‑ perguntou Aramis.
‑ Sabê‑lo‑eis um dia, Aramis; mas de momento imitarei a discrição da sobrinha do doutor.
Aramis sorriu, pois lembrava‑se da história que contara certa noite aos amigos.
‑ Bom, uma vez que ela deixou Paris e que tendes a certeza disso, d'Artagnan, nada já me retém aqui e estou pronto a acompanhar‑vos. Dizeis que vamos?...
‑ De momento, a casa de Athos, e se quereis vir convido‑vos até a apressar‑vos, pois já perdemos muito tempo. A propósito, preveni Bazin.
‑ Bazin vai connosco? ‑ perguntou Aramis.
‑ Talvez. Em todo o caso, será bom que nos acompanhe a casa de Athos, por ora.
Aramis chamou Bazin e, depois de lhe ordenar que fosse ter consigo a casa de Athos, disse:
‑ Vamos!
Pegou na capa, na espada e nas três pistolas e abriu inutilmente três ou quatro gavetas, para ver se não estaria por lá alguma moeda perdida, e depois de estar bem certo de que semelhante busca era supérflua seguiu d'Artagnan, perguntando a si próprio como era possível que o jovem cadete dos guardas soubesse tão bem como ele quem era a mulher a que concedera hospitalidade e melhor do que ele o que acontecera a essa mulher.
Só à saída, Aramis pousou a mão no braço de d'Artagnan e perguntou ao jovem, olhando‑o fixamente:
‑ Não falaste dessa mulher a ninguém?
‑ A ninguém no mundo.
‑ Nem mesmo a Athos ou a Porthos?
‑ Não lhes disse absolutamente nada.
‑ Ainda bem.
E, tranquilo a respeito de tão importante ponto, Aramis continuou o seu caminho com d'Artagnan e não tardaram a chegar a casa de Athos.
Encontraram‑no segurando a sua licença com uma das mãos e uma carta do Sr. de Tréville com a outra.
‑ Podeis explicar‑me que significam esta licença e esta carta que acabo de receber? ‑ perguntou Athos, atónito.
Meu caro Athos:
Desejo, visto a vossa saúde o exigir absolutamente, que descanseis quinze dias. Ide pois tomar as águas de Forges ou quaisquer outras que vos convenham, e restabelecei‑vos prontamente.
Vosso dedicado,
Tréville.
‑ Bom, essa licença e esta carta significam que me deveis seguir, Athos.
‑ Às águas de Forges?
‑ Aí ou a outro lado.
‑ Ao serviço do rei?
‑ Do rei ou da rainha. Não estamos ao serviço de Suas Majestades? Neste momento entrou Porthos.
‑ Com a breca, aqui está uma coisa estranha! ‑ exclamou. ‑ Desde quando nos mosqueteiros concedem licenças às pessoas sem as pedirem?
‑ Desde que têm amigos que as pedem por elas ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Hum... parece‑me que há novidades por aqui!... ‑ observou Porthos.
‑ Pois há. Partamos ‑ interveio Aramis.
‑ Para que país? ‑ perguntou Porthos.
‑ Palavra que não sei absolutamente nada ‑ confessou Athos. ‑ perguntai a d'Artagnan.
‑ Para Londres, meus senhores ‑ informou d'Artagnan.
‑ Para Londres! ‑ exclamou Porthos. ‑ E que vamos fazer a Londres?
‑ Aí está o que não vos posso dizer, meus senhores; tendes de confiar em mim.
‑ Mas para ir a Londres ‑ acrescentou Porthos ‑ é preciso dinheiro, e eu não o tenho.
‑ Nem eu ‑ confessou Aramis.
‑ Nem eu ‑ declarou Athos.
‑ Tenho‑o eu ‑ tranquilizou‑os d'Artagnan, tirando o seu tesouro da algibeira e pondo‑o em cima da mesa. ‑ Essa bolsa contém trezentas pistolas; tiremos cada um setenta e cinco; é quanto basta para ir a Londres e voltar. De resto, estai tranquilos, pois não chegaremos todos a Londres.
‑ Porquê?
‑ Porque segundo todas as probabilidades alguns de nós ficarão pelo caminho.
‑ Mas então vamos entrar nalguma campanha?
‑ E das mais perigosas, previno‑vos.
‑ Lá por isso!... No entanto, uma vez que nos arriscamos a ser mortos, gostaria ao menos de saber porquê ‑ declarou Porthos.
‑ Não insistas que daí não levas nada! ‑ observou Athos.
‑ Mesmo assim, sou da opinião de Porthos ‑ disse Aramis.
‑ O rei tem porventura o hábito de vos dar contas? Não! Diz‑vos muito simplesmente: «Meus senhores, combate‑se na Gasconha ou na Flandres; ide bater‑vos.» E vós ides. Porquê? É coisa que nem sequer vos passa pela cabeça perguntar.
‑ D'Artagnan tem razão ‑ interveio Athos. ‑ Temos as nossas três licenças passadas pelo Sr. de Tréville, e temos trezentas pistolas vindas não sei de onde. Vamos fazer‑nos matar onde nos dizem para irmos. Valerá a pena o trabalho de fazer tantas perguntas? d'Artagnan, estou pronto a acompanhar‑te.
‑ E eu também ‑ disse Porthos.
‑ E eu ‑ acrescentou Aramis. ‑ De resto, não me custa nada deixar Paris; preciso de me distrair.
‑ Pois não vos faltarão distracções, meus senhores, podeis estar tranquilos ‑ redarguiu d'Artagnan.
‑ Quando partimos? ‑ perguntou Athos.
‑ Imediatamente ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Não há um minuto a perder.
‑ Olá, Grimaud, Planchet, Mousqueton, Bazin! ‑ gritaram os quatro jovens, chamando os seus lacaios. ‑ Engraxai‑nos as botas e ide buscar os cavalos à estalagem.
Com efeito, todos os mosqueteiros deixavam na estalagem geral, como se fosse um quartel, o seu cavalo e o do seu criado. Planchet, Grimaud, Mousqueton e Bazin saíram a correr.
‑ Agora tracemos o plano de campanha ‑ disse Porthos. ‑ Aonde vamos primeiro?
‑ A Calais ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ É a linha mais directa para chegar a Londres.
‑ Bom, se quereis saber a minha opinião... ‑ tornou Porthos.
‑ Dizei.
‑ Quatro homens viajando juntos tornar‑se‑iam suspeitos. D'Artagnan dará a cada um as suas instruções e eu partirei à frente pela estrada de Bolonha, a fim de explorar o caminho. Athos partirá duas horas depois pela estrada de Amiens e Aramis seguir‑nos‑á pela de Noyon. Quanto a d'Artagnan, partirá pela que quiser com as roupas de Planchet, enquanto Planchet nos seguirá como d'Artagnan e com o uniforme dos guardas.
‑ Meus senhores ‑ disse Athos ‑, a minha opinião é que não convém meter em nada lacaios num caso destes: um segredo pode por acaso ser revelado por gentis‑homens, mas é quase sempre vendido por lacaios.
‑ O plano de Porthos parece‑me impraticável ‑ disse d'Artagnan ‑, pois eu próprio ignoro que instruções vos posso dar. Sou portador de uma carta e mais nada. Não tenho nem posso tirar três cópias da carta, visto estar lacrada; portanto, na minha opinião, temos de viajar juntos. A carta está aqui, nesta algibeira ‑ e mostrou a algibeira onde estava a carta. ‑ Se for morto, um de vós guardá‑la‑á e continuareis a viagem; se esse for morto, será a vez de outro, e assim sucessivamente. Contanto que um chegue, é tudo quanto é preciso.
‑ Bravo, d'Artagnan! A tua opinião é a minha ‑ disse Athos. ‑ De resto, é preciso ser consequente: eu vou para águas e vós acompanhais‑me; em vez das águas de Forges, vou tomar as águas do mar; sou livre, posso escolher. Se nos quiserem deter, mostrarei a carta do Sr. de Tréville e vós mostrareis as vossas licenças; se nos atacarem, defender‑nos‑emos; se nos interrogarem, sustentaremos obstinadamente que a nossa única intenção era mergulhar certo número de vezes no mar; dominariam facilmente quatro homens isolados, mas quatro homens reunidos fazem um exército. Armaremos os quatro lacaios com pistolas e mosquetões; se mandarem um exército contra nós travaremos batalha e o sobrevivente, como disse d'Artagnan, levará a carta.
‑ Bom ‑ disse Aramis ‑, não falas muitas vezes, Athos, mas quando falas é como se falasse São João Boca de Ouro. Aprovo o plano de Athos. E tu, Porthos?
‑ Também, se agrada a d'Artagnan ‑ respondeu Porthos. ‑ D'Artagnan, portador da carta, é naturalmente o chefe da empresa; ele que decida e nós executaremos.
‑ Visto isso ‑ disse d'Artagnan ‑, decido que adoptemos o plano de Athos e que partamos dentro de meia hora.
‑ Aprovado! ‑ gritaram em coro os três mosqueteiros.
E cada um estendeu a mão para a bolsa, da qual tirou setenta e cinco pistolas, e foi fazer os seus preparativos para partir à hora combinada.
A VIAGEM
Às duas horas da madrugada os nossos quatro aventureiros saíram de Paris pela Barreira de Saint‑Denis. Enquanto foi de noite, conservaram‑se calados; a seu pesar, sofriam a influência da obscuridade e viam emboscadas por toda a parte.
Aos primeiros alvores do dia as línguas destravaram‑se‑lhes com o sol, a boa disposição voltou. Era como na véspera de um combate: o coração batia, os olhos riam; sentia‑se que a vida que talvez se fosse deixar era, no fim de contas, uma coisa boa.
O aspecto da caravana era dos mais formidáveis: os cavalos dos mosqueteiros, o seu ar marcial, o hábito do esquadrão que faz trotar regularmente esses nobres companheiros do soldado, trairiam o mais rigoroso incógnito.
Os criados iam armados até aos dentes.
Foi tudo bem até Chantilly, onde chegaram por volta das oito horas da manhã. Precisavam de tomar o pequeno‑almoço. Desmontaram diante de uma estalagem recomendada por uma tabuleta que representava São Martinho dando a metade da sua capa a um pobre. Recomendaram aos lacaios que não desselassem os cavalos e que estivessem prontos para partir à primeira voz.
Entraram na sala comum e sentaram‑se à mesa.
Um gentil‑homem que acabara de chegar pela estrada de Dammartin estava sentado a essa mesma mesa e tomava o pequeno‑almoço. Meteu conversa sobre o estado do tempo e os viajantes responderam; bebeu à sua saúde e os viajantes retribuíram‑lhe a delicadeza.
Mas no momento em que Mousqueton vinha anunciar que os cavalos estavam prontos e se levantavam da mesa, o desconhecido propôs a Porthos uma saúde ao cardeal. Porthos respondeu‑lhe que estava de acordo se por sua vez o desconhecido bebesse à saúde do rei. O desconhecido gritou que não conhecia outro rei além de Sua Eminência. Porthos chamou‑lhe bêbado; o desconhecido puxou da espada.
‑ Cometestes uma tolice ‑ disse Athos a Porthos. ‑ Paciência, agora já não é possível recuar: matai esse homem e juntai‑vos a nós o mais depressa que puderdes.
E todos três montaram e partiram a toda a brida, enquanto Porthos prometia ao seu adversário perfurá‑lo com todos os botes conhecidos na esgrima.
‑ Sempre há cada um! ‑ exclamou Athos, ao cabo de quinhentos passos.
‑ Mas por que seria que aquele homem se meteu com Porthos em vez de com qualquer outro? ‑ perguntou Aramis.
‑ Porque como Porthos falava mais alto do que nós o tomou pelo chefe ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Sempre disse que este cadete da Gasconha era um poço de sabedoria ‑ murmurou Athos.
E os viajantes continuaram o seu caminho.
Em Beauvais pararam duas horas, tanto para deixar descansar os cavalos como para esperar por Porthos. Passadas essas duas horas, como Porthos não chegasse nem houvesse qualquer notícia dele, puseram‑se novamente a caminho.
A uma légua de Beauvais, num sítio em que o caminho se encontrava apertado entre dois taludes, deram com oito ou dez homens que, dado o facto de a estrada não ser calcetada naquele sítio, pareciam estar ali a trabalhar, abrindo buracos nos trilhos lamacentos.
Receando sujar as botas naquele lamaceiro artificial, Aramis apostrofou‑os duramente. Athos quis chamá‑lo à razão, mas era demasiado tarde. Os operários desataram a troçar dos viajantes e com a sua insolência fizeram perder a cabeça até ao frio Athos, que lançou o cavalo contra um deles.
Então cada um dos homens recuou até à vala e pegou num mosquete que lá tinha escondido. Resultado: os nossos sete viajantes foram literalmente passados pelas armas. Aramis recebeu uma bala que lhe atravessou o ombro e Mousqueton outra bala que se lhe alojou nas partes carnudas que se prolongavam por baixo dos rins. Contudo, Mousqueton só caiu do cavalo, não por estar gravemente ferido, mas sim porque, como não podia ver o ferimento, julgou sem dúvida estar mais gravemente ferido do que na realidade estava.
‑ É uma emboscada! ‑ gritou d'Artagnan. ‑ Não percamos tempo a responder ao fogo; a caminho.
Por muito ferido que estivesse, Aramis agarrou‑se à crina do cavalo, que o levou com os outros. O de Mousqueton também se lhes juntara e galopava sozinho no seu lugar.
‑ Servir‑nos‑á de cavalo de reserva ‑ disse Athos.
‑ Preferia um chapéu ‑ declarou d'Artagnan. ‑ O meu foi levado por uma bala. Foi uma sorte, palavra, a carta de que sou portador não estar dentro dele.
‑ Se foi! Mas eles vão matar o pobre Porthos quando passar por lá ‑ lembrou Aramis.
‑ Se Porthos ainda se aguentasse nas pernas, já se nos teria juntado ‑ observou Athos. ‑ Mas parece‑me que no campo da honra o bêbado ficou sóbrio de um momento para o outro.
Galoparam durante mais duas horas, embora os cavalos estivessem tão cansados que era de recear que ficassem em breve incapacitados para prosseguir.
Os viajantes tinham metido por atalhos, esperando serem assim menos inquietados, mas em Crèvecoeur o pobre Aramis declarou que não podia ir mais longe. Com efeito, precisara de toda a sua coragem, que ocultava sob o seu aspecto elegante e sob as suas maneiras distintas, para chegar até ali.
A todo o momento empalidecia e tinham de o amparar no cavalo. Desmontaram‑no à porta de um botequim e deixaram‑lhe Bazin, que de resto, numa escaramuça, era mais incómodo do que útil, e voltaram a partir esperançados em irem dormir a Amiens.
‑ Com mil demónios ‑ exclamou Athos quando se viram na estrada reduzidos a dois amos e a Grimaud e Planchet ‑, com mil demónios, nunca mais me levarão à certa! Garanto‑vos que ninguém me fará abrir a boca nem puxar da espada daqui a Calais. Juro‑vos que...
‑ Não juremos ‑ atalhou d'Artagnan. ‑ Galopemos, se os nossos cavalos ainda o consentem.
E os viajantes cravaram as esporas no ventre dos cavalos que, energicamente estimulados, recuperaram forças. Chegaram a Amiens à meia‑noite e desmontaram na estalagem do Lis d'Or.
O estalajadeiro tinha o ar do mais honesto homem do mundo e recebeu os viajantes de vela numa mão e de barrete de algodão na outra. Quis instalar os viajantes nos seus melhores quartos, mas infelizmente cada um desses quartos ficava numa extremidade da estalagem. D'Artagnan e Athos recusaram; o estalajadeiro respondeu que não tinha outros dignos de Suas Excelências; mas os viajantes declararam que dormiriam na camarata comum, cada um numa enxerga posta no chão. O estalajadeiro insistiu, os hóspedes teimaram, e teve de se fazer como eles queriam.
Acabavam de fazer a cama no chão e de barricar a porta por dentro quando bateram ao postigo do pátio; perguntaram quem era, reconheceram a voz dos seus dois lacaios e abriram.
Eram, com efeito, Planchet e Grimaud.
‑ Grimaud chega para guardar os cavalos ‑ disse Planchet. ‑ Se os senhores quiserem, dormirei atravessado na porta; assim, ninguém os incomodará.
‑ E onde dormirás? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Nesta cama ‑ respondeu Planchet. E mostrou um fardo de palha.
‑ Está bem, entra ‑ concordou d'Artagnan. ‑ Tens razão, a cara do estalajadeiro não me agrada; é demasiado amável.
‑ Nem a mim ‑ disse Athos.
Planchet entrou pela janela e instalou‑se atravessado na porta, enquanto Grimaud se ia fechar na cavalariça, depois de informar que às cinco horas da manhã ele e os quatro cavalos estariam prontos.
A noite foi bastante sossegada. Por volta das duas da madrugada tentaram abrir a porta, mas como Planchet acordasse em sobressalto e gritasse: «Quem está aí?», responderam‑lhe que se tinham enganado e afastaram‑se.
Às quatro horas da manhã ouviu‑se grande barulho nas cavalariças. Grimaud quisera acordar os moços de estrebaria e estes tinham‑lhe caído em cima. Quando abriram a janela viram o pobre rapaz sem sentidos, com a cabeça rachada por uma cacetada com o cabo de uma forquilha.
Planchet desceu ao pátio e quis selar os cavalos; os cavalos estavam aguados. O de Mousqueton era o único que, por ter viajado sem cavaleiro durante cinco ou seis horas, na véspera, poderia continuar; mas por um erro inconcebível, o cirurgião‑veterinário que tinham mandado chamar, ao que parece para sangrar o cavalo do estalajadeiro, sangrara o de Mousqueton.
Aquilo começava a tornar‑se inquietante: todos aqueles acidentes sucessivos deviam‑se talvez ao acaso, mas também podiam ser fruto de uma conspiração. Athos e d'Artagnan saíram, enquanto Planchet se ia informar se não haveria três cavalos à venda nos arredores. À porta estavam dois cavalos completamente arreados, frescos e vigorosos. Era precisamente o que lhe convinha. Perguntou onde estavam os donos; responderam‑lhe que os donos tinham passado a noite na estalagem e estavam a fazer contas com o estalajadeiro.
Athos desceu para pagar a despesa, enquanto d'Artagnan e Planchet esperavam à porta da rua; o estalajadeiro estava num quarto baixo e recuado e pediu a Athos para entrar.
Athos entrou sem desconfiança e puxou de duas pistolas para pagar. O estalajadeiro estava sozinho e sentado à secretária, que tinha uma das gavetas entreaberta. Pegou no dinheiro que lhe apresentou Athos, virou‑o e revirou‑o nas mãos e de súbito, gritando que a moeda era falsa, declarou que o ia mandar prender, a ele e ao companheiro, como moedeiros falsos.
‑ Velhaco! ‑ gritou Athos correndo para ele. ‑ Vou‑te cortar as orelhas!
No mesmo instante, quatro homens armados até aos dentes entraram pelas portas laterais e atiraram‑se a Athos.
‑ Apanharam‑me! ‑ gritou Athos com toda a força dos seus pulmões. ‑ Foge, d'Artagnan! Dá de esporas! Dá de esporas! ‑ e disparou dois tiros de pistola.
D'Artagnan e Planchet não esperaram que Athos repetisse o aviso; desamarraram os dois cavalos que esperavam à porta, montaram‑nos, cravaram‑lhes as esporas no ventre e partiram a todo o galope.
‑ Sabes o que aconteceu a Athos? ‑ perguntou d'Artagnan a Planchet enquanto corriam.
‑ Ah, senhor, vi cair dois com os seus dois tiros e pareceu‑me, através da porta envidraçada, que esgrimia com os outros! ‑ respondeu Planchet.
‑ Bravo, Athos! ‑ murmurou d'Artagnan. ‑ E pensar que tive de o abandonar! Talvez nos espere o mesmo a dois passos daqui... Em frente, Planchet, em frente! És um excelente homem.
‑ Já vos tinha dito, senhor ‑ respondeu Planchet ‑, que os Picardos se reconhecem pelas obras. De resto, como estou na minha região, isso excita‑me.
Esporeando constantemente os cavalos, chegaram a Saint‑Omer numa só tirada. Em Saint‑Omer fizeram descansar os cavalos com as rédeas passadas pelos braços, com receio de algum acidente, e comeram qualquer coisa à pressa, de pé na rua, depois do que voltaram a partir.
A cem passos das portas de Calais, o cavalo de d'Artagnan caiu e não houve maneira de o levantar: o sangue saía‑lhe pelas ventas e pelos olhos; restava o de Planchet, mas esse parara e foi impossível obrigá‑lo a partir.
Felizmente, como dissemos, estavam a cem passos da cidade; deixaram as duas montadas na estrada real e correram para o porto. Planchet chamou a atenção do amo para um gentil‑homem que chegava com o seu criado e que os precedia apenas uns cinquenta passos.
Aproximaram‑se rapidamente do gentil‑homem, que parecia muito apressado. Tinha as botas cobertas de poeira e perguntava se não poderia atravessar imediatamente para Inglaterra.
‑ Nada mais fácil ‑ respondeu o patrão de um barco pronto para se fazer à vela ‑, mas esta manhã chegou uma ordem para não deixar partir ninguém sem licença expressa do Sr. Cardeal.
‑ Tenho essa licença ‑ respondeu o gentil‑homem, tirando um pedaço de papel da algibeira. ‑ Ei‑la.
‑ Fazei‑a visar pelo governador do porto e dai‑me a preferência ‑ disse o patrão.
‑ Onde poderei encontrar o governador?
‑ Na sua quinta.
‑ Pois sim, mas onde fica essa quinta?
‑ A um quarto de légua da cidade. Olhai, podeis vê‑la daqui, ao pé daquele cabeço, aquele telhado de ardósia.
‑ Óptimo! ‑ exclamou o gentil‑homem.
E seguido do lacaio tomou o caminho da casa de campo do governador.
D'Artagnan e Planchet seguiram o gentil‑homem a quinhentos passos de distância.
Uma vez fora da cidade, d'Artagnan estugou o passo e juntou‑se ao gentil‑homem quando este entrava num bosquezinho.
‑ Pareceis‑me muito apressado, senhor ‑ observou d'Artagnan.
‑ De facto, senhor, ninguém tem mais pressa do que eu.
‑ Sinto‑me desesperado ‑ disse d'Artagnan ‑, pois também tenho pressa e queria pedir‑vos um favor.
‑ Qual?
‑ Deixar‑me passar em primeiro lugar.
‑ Impossível ‑ respondeu o gentil‑homem. ‑ Percorri sessenta léguas em quarenta e quatro horas e tenho de estar amanhã ao meio‑dia em Londres.
‑ Pois eu percorri o mesmo caminho em quarenta horas e tenho de estar amanhã às dez horas da manhã em Londres.
‑ Desesperado, senhor; mas fui o primeiro a chegar e não passarei em segundo lugar.
‑ Desesperado, senhor; mas cheguei em segundo e passarei em primeiro.
‑ Serviço do rei! ‑ exclamou o gentil‑homem.
‑ Serviço meu! ‑ redarguiu d'Artagnan.
‑ Parece‑me que procurais provocar‑me...
‑ Por Deus, só agora o descobristes?
‑ Que desejais?
‑ Quereis saber?
‑ Certamente.
‑ Quero a ordem de que sois portador, atendendo a que não tenho nenhuma e preciso dela.
‑ Gracejais, presumo.
‑ Nunca gracejo.
‑ Deixai‑me passar!
‑ Não passareis.
‑ Meu pobre rapaz, vou estoirar‑vos os miolos. Olá, Lubin, as minhas pistolas.
‑ Planchet ‑ disse d'Artagnan ‑, encarrega‑te do criado que eu encarrego‑me do amo.
Planchet, estimulado pela primeira façanha, saltou sobre Lubin e, como era forte e vigoroso, derrubou‑o de costas e pôs‑lhe o joelho no peito.
‑ Tratei da vossa parte, senhor, que eu já tratei da minha ‑ informou Planchet.
Ao ver aquilo, o gentil‑homem desembainhou a espada e caiu sobre d'Artagnan; mas tinha pela frente um adversário de respeito.
Em três segundos, d'Artagnan aplicou‑lhe três estocadas, dizendo a cada uma:
‑ Uma por Athos, uma por Porthos, uma por Aramis.
À terceira estocada o gentil‑homem caiu como uma massa.
D'Artagnan julgou‑o morto, ou pelo menos desmaiado, e aproximou‑se para lhe tirar a ordem; mas no momento em que estendia o braço para o revistar, o ferido, que não largara a espada, vibrou‑lhe um bote de ponta no peito dizendo:
‑ Uma por vós!
‑ E uma por mim! Os últimos são sempre os primeiros! ‑ gritou d'Artagnan, furioso, pregando‑o ao chão com quarta estocada no ventre.
Desta vez o gentil‑homem fechou os olhos e perdeu os sentidos.
D'Artagnan revistou‑lhe a algibeira onde o vira guardar a ordem de passagem e tirou‑lha. Estava passada em nome do conde de Wardes.
Depois, deitando um derradeiro olhar ao belo jovem de vinte e cinco anos apenas, que deixara ali estendido, sem sentidos ou talvez morto, soltou um suspiro a propósito do estranho destino que levava os homens a destruírem‑se uns aos outros pelos interesses de pessoas que lhes são estranhas e que muitas vezes não sabem sequer que eles existem.
Mas não tardou a ser arrancado às suas reflexões por Lubin, que berrava a plenos pulmões por socorro.
Planchet pôs‑lhe a mão na garganta e apertou com toda a força, ao mesmo tempo que dizia:
‑ Senhor, enquanto o mantiver assim, não gritará, tenho absoluta certeza; mas assim que o largar, desatará outra vez a gritar. Reconheço‑o, é normando, e os Normandos são teimosos.
Com efeito, apesar de ter o gasganete bem apertado, Lubin ainda tentava emitir alguns sons.
‑ Espera! ‑ disse d'Artagnan.
E pegando no seu lenço amordaçou‑o.
‑ Agora ‑ disse Planchet ‑ amarremo‑lo a uma árvore.
A coisa foi feita conscienciosamente e depois arrastaram o conde de Wardes para junto do criado; e como começava a anoitecer e o amarrado e o ferido estavam alguns passos dentro do bosque, era evidente que ficariam ali até ao dia seguinte.
‑ E agora a casa do governador! ‑ disse d'Artagnan.
‑ Mas parece‑me que estais ferido ‑ observou Planchet.
‑ Não é nada, ocupemo‑nos do mais urgente; depois cuidaremos do meu ferimento, que de resto não me parece muito perigoso.
E dirigiram‑se ambos em grandes passadas para a quinta do digno funcionário.
Anunciaram o Sr. Conde de Wardes. D'Artagnan foi introduzido.
‑ Tendes uma ordem assinada pelo cardeal? ‑ perguntou o governador.
‑ Tenho, sim, senhor; ei‑la ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Óptimo, está em ordem e bem recomendada! ‑ disse o governador.
‑ Por um motivo muito simples ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Sou um dos seus mais fiéis.
‑ Parece que Sua Eminência quer impedir alguém de chegar a Inglaterra.
‑ Sim, um tal d'Artagnan, um gentil‑homem bearnês que partiu de Paris com três dos seus amigos na intenção de chegar a Londres.
‑ Conhecei‑lo pessoalmente? ‑ perguntou o governador.
‑ Quem?
‑ Esse d'Artagnan.
‑ De ginjeira!
‑ Nesse caso, dai‑me os seus sinais.
‑ Nada mais fácil.
E d'Artagnan deu traço por traço os sinais do conde de Wardes.
‑ Está acompanhado? ‑ perguntou o governador.
‑ Está; acompanha‑o um criado chamado Lubin.
‑ Estaremos de olho neles e se lhe pusermos a mão em cima Sua Eminência pode estar tranquilo que serão reconduzidos a Paris sob escolta.
‑ Se fizerdes isso, Sr. Governador, bem merecereis do cardeal ‑ disse d'Artagnan.
‑ Vê‑lo‑eis no vosso regresso, Sr. Conde?
‑ Sem dúvida nenhuma.
‑ Pois então dizei‑lhe, peço‑vos, que sou um seu dedicado servidor.
‑ Não me esquecerei.
E satisfeito com esta garantia, o governador visou o livre‑trânsito e entregou‑o a d'Artagnan.
D'Artagnan não perdeu o seu tempo com cumprimentos inúteis; saudou o governador, agradeceu‑lhe e partiu.
Uma vez cá fora, ele e Planchet desataram a correr e, dando uma grande volta, evitaram o bosque e entraram por outra porta.
O barco continuava pronto a partir e o patrão esperava no cais.
‑ Então? ‑ perguntou ao ver d'Artagnan.
‑ Aqui tem o meu passe visado ‑ respondeu o jovem.
‑ E o outro gentil‑homem?
‑ Não partirá hoje ‑ respondeu d'Artagnan ‑, mas estai tranquilo que pagarei a passagem dos dois.
‑ Nesse caso, partamos ‑ disse o patrão.
‑ Partamos! ‑ repetiu d'Artagnan.
E saltou com Planchet para o escaler. Cinco minutos depois estavam a bordo.
Era tempo: a cerca de meia légua da costa, d'Artagnan viu brilhar uma luz e ouviu uma detonação. Era o tiro de canhão que anunciava o encerramento do porto.
Chegara a altura de se ocupar do seu ferimento. Felizmente, como pensara d'Artagnan, não era dos mais perigosos: a ponta da espada encontrara uma costela e deslizara ao longo do osso; além disso, a camisa colara‑se imediatamente à ferida e esta mal vertera algumas gotas de sangue.
D'Artagnan estava morto de cansaço; estenderam‑lhe uma enxerga na coberta, deitou‑se e adormeceu.
No dia seguinte, ao amanhecer, encontrava‑se ainda a três ou quatro léguas da costa da Inglaterra; a brisa fora fraca toda a noite e o barco pouco avançara. Mas às dez horas ancorava no porto de Dover.
Às dez e meia, d'Artagnan punha pé em terra inglesa e exclamava:
‑ Enfim, cá estou!
Mas isso não era tudo: faltava chegar a Londres. Na Inglaterra a posta era bastante eficiente. D'Artagnan e Planchet pediram cada um seu garrano, um postilhão apressou‑se a servi‑los e em quatro horas chegaram às portas da capital.
D'Artagnan não conhecia Londres nem sabia uma palavra de inglês; mas escreveu o nome de Buckingham num papel e toda a gente lhe indicou o palácio do duque.
O duque andava à caça em Windsor, com o rei.
D'Artagnan perguntou pelo criado de quarto de confiança do duque, que, tendo‑o acompanhado em todas as suas viagens, falava perfeitamente francês, e disse‑lhe que vinha de Paris por causa de um assunto de vida ou de morte e que precisava de falar imediatamente com Buckingham.
A convicção com que d'Artagnan falava convenceu Patrice, pois assim se chamava aquele ministro do ministro. Mandou selar dois cavalos e encarregou‑se de acompanhar o jovem guarda. Quanto a Planchet, tinham‑no descido da sua montada, teso como um pau: o pobre rapaz estava exausto; d'Artagnan parecia de ferro.
Chegaram ao castelo; informaram‑se: o rei e Buckingham caçavam aves nos pântanos situados a duas ou três léguas dali.
Em vinte minutos chegaram ao local indicado. Patrice não tardou a ouvir a voz do amo, que chamava o seu falcão.
‑ Quem devo anunciar a milorde‑duque? ‑ perguntou Patrice.
‑ O jovem que uma noite o desafiou na Ponte Nova, diante da Samaritana.
‑ Singular apresentação.
‑ Vereis que vale tanto como qualquer outra.
Patrice meteu o cavalo a galope, alcançou o duque e anunciou‑lhe nos termos que dissemos que o esperava um mensageiro.
Buckingham reconheceu imediatamente d'Artagnan e, desconfiado de que alguma coisa se passava em França de que lhe trazia notícia, limitou‑se a perguntar onde estava o mensageiro; e tendo reconhecido ao longe o uniforme dos guardas, meteu o cavalo a galope e veio direito a d'Artagnan. Patrice, por discrição, manteve‑se afastado.
‑ Aconteceu alguma coisa à rainha? ‑ perguntou Buckingham, deixando transparecer todo o seu pensamento e todo o seu amor nesta interrogação.
‑ Não creio. Mas parece‑me que corre qualquer grande perigo de que só Vossa Graça a pode tirar.
‑ Eu?! ‑ exclamou Buckingham. ‑ Pois quê, serei bastante feliz para lhe poder ser útil nalguma coisa? Falai! Falai!
‑ Tomai esta carta ‑ disse d'Artagnan. Esta carta?... De quem vem esta carta?
‑ Creio que de Sua Majestade.
‑ De Sua Majestade! ‑ exclamou Buckingham, empalidecendo tanto que d'Artagnan julgou se sentisse maL.
Quebrou o lacre.
‑ Que rasgão é este? ‑ perguntou, mostrando a d'Artagnan um sítio onde a carta estava furada.
‑ Não tinha reparado nisso! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Foi a espada do conde de Wardes que fez esse buraco quando me furou o peito.
‑ Estais ferido? ‑ perguntou Buckingham, abrindo a carta.
‑ Oh, não é nada! ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Apenas um arranhão?
‑ Valha‑me Deus, que leio eu?! ‑ exclamou o duque. ‑ Patrice, fica aqui, ou antes, vai ter com o rei onde quer que se encontre, e diz a Sua Majestade que lhe suplico muito humildemente que me desculpe, mas que um assunto da mais alta importância me chama a Londres. Vinde, senhor, vinde.
E ambos retomaram a galope o caminho da capital.
A CONDESSA DE WINTER
Durante o percurso, o duque pôs‑se ao corrente, por intermédio de d'Artagnan, não de tudo o que se passara, mas sim do que d'Artagnan sabia. Conjugando o que ouvia da boca do jovem com as suas próprias recordações, pôde no entanto fazer ideia bastante exacta de uma situação cuja gravidade, de resto, a carta da rainha, por mais curta e pouco explícita que fosse, lhe dava a medida. Mas o que sobretudo o admirava era que o cardeal, interessado como estava em que o jovem não pusesse pé em Inglaterra, não tivesse conseguido detê‑lo na viagem. Foi então, e perante a manifestação dessa surpresa, que d'Artagnan lhe contou as precauções tomadas e como, graças à dedicação dos seus três amigos, que disseminara ensanguentados pelo caminho, conseguira chegar ali, apenas com o precalço da estocada que furara a carta da rainha e que ele retribuira ao Sr. de Wardes de forma tão terrível. Enquanto escutava este relato feito com a maior simplicidade, o duque olhava de vez em quando para o jovem, com ar atónito, como se não pudesse compreender que tanta prudência, coragem e dedicação estivessem de acordo com uma cara que ainda não indicava vinte anos.
Os cavalos voavam como o vento e em poucos minutos chegaram às portas de Londres. D'Artagnan julgara que quando chegassem à cidade o duque diminuísse o andamento da sua montada, mas não foi isso que aconteceu: continuou o seu caminho a todo o galope, pouco se preocupando com o derrube de quem se lhe atravessasse diante das patas do cavalo. Com efeito, ao atravessar a City aconteceram dois ou três acidentes desse género; mas Buckingham nem sequer virara a cabeça para ver o que acontecera aos atropelados. D'Artagnan seguia‑o no meio de gritos que se assemelhavam muito a maldições.
Mal entrou no pátio do palácio, Buckingham saltou do cavalo e, sem se preocupar mais com o animal, atirou‑lhe as rédeas para o pescoço e correu para a escadaria. D'Artagnan fez o mesmo, embora com um pouco mais de preocupação pelos animais, cujo mérito tivera ensejo de apreciar; mas teve a consolação de ver que três ou quatro criados vinham a correr das cozinhas e das cavalariças e tomavam imediatamente conta das montadas.
O duque caminhava tão rapidamente que d'Artagnan tinha dificuldade em segui‑lo. Atravessou sucessivamente várias salas, de uma elegância que os maiores fidalgos de França nem sequer faziam ideia, e chegou por fim a um quarto de dormir que era simultaneamente um milagre de bom gosto e riqueza. Na alcova do quarto havia uma porta aberta na própria parede que o duque abriu com uma chavinha de ouro que trazia ao pescoço suspensa por um fio do mesmo metal. Por discrição d'Artagnan ficara para trás; mas no momento em que Buckingham transpunha o limiar da porta virou‑se e, vendo a hesitação do jovem, disse‑lhe:
‑ Vinde e se tiverdes a felicidade de ser admitido à presença de Sua Majestade dizei‑lhe o que vistes.
Encorajado pelo convite, d'Artagnan seguiu o duque, que voltou a fechar a porta atrás de si.
Ambos se encontraram então numa capelinha toda forrada de seda da Pérsia e brocado dourado, profusamente iluminada por numerosas velas. Por cima de uma espécie de altar e por baixo de um dossel de veludo azul encimado por plumas brancas e vermelhas encontrava‑se um retrato em tamanho natural de Ana de Áustria, de semelhança tão flagrante que d'Artagnan soltou um grito de surpresa; dir‑se‑ia que a rainha ia falar.
No altar e debaixo do retrato estava o cofrezinho que encerrava as agulhetas de diamantes.
O duque aproximou‑se do altar e ajoelhou‑se como faria um padre diante de Cristo; depois abriu o cofre.
‑ Tomai ‑ disse, tirando do cofre um grande laço de fita azul todo cintilante de diamantes. ‑ Aqui tendes as preciosas agulhetas com as quais jurara ser enterrado. A rainha mas deu, a rainha mas tira: a sua vontade, como a de Deus, seja feita em todas as coisas.
Depois pôs‑se a beijar uma após outra as agulhetas de que se ia separar. Mas de súbito soltou um grito terrível.
‑ Que aconteceu? ‑ perguntou d'Artagnan, com inquietação. ‑ Que vos aconteceu, milorde?
‑ Está tudo perdido! ‑ gritou Buckingham, empalidecendo como um morto. ‑ Faltam duas agulhetas, só aqui estão dez.
‑ Milorde tê‑las‑á perdido ou julga que lhas roubaram?
‑ Roubaram‑mas ‑ respondeu o duque ‑ e foi obra do cardeal. Vede, as fitas que as prendiam foram cortadas à tesoura.
‑ Se milorde desconfiasse de quem cometeu o roubo... Talvez essa pessoa ainda as tenha em seu poder.
‑ Esperai, esperai! ‑ gritou o duque. ‑ A única vez que usei as agulhetas foi no baile do rei, há oito dias, em Windsor.
A condessa de Winter, com quem estava zangado, aproximou‑se de mim no baile. A reconciliação era uma vingança de mulher ciumenta. Desde esse dia não a tornei a ver. Essa mulher é um agente do cardeal.
‑ Mas então, tem‑nos no mundo inteiro! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Pois tem, pois tem ‑ confirmou Buckingham, apertando os dentes com cólera. ‑ Sim, é um terrível lutador. Mas quando é o baile?
‑ Na próxima segunda‑feira.
‑ Na próxima segunda‑feira! Daqui a cinco dias? É tempo mais do que suficiente. Patrice! ‑ chamou o duque abrindo a porta da capela. ‑ Patrice!
O seu criado de quarto de confiança apareceu.
‑ O meu joalheiro e o meu secretário!
O criado saiu com uma prontidão e um mutismo que demonstravam estar habituado a obedecer cegamente e sem réplica.
Mas embora o joalheiro tivesse sido chamado à frente, foi o secretário quem apareceu primeiro. Era muito simples: residia no palácio. Encontrou Buckingham sentado a uma mesa, no seu quarto de dormir a escrever algumas ordens pelo seu próprio punho.
‑ Sr. Jackson ‑ disse‑lhe o duque ‑, ide imediatamente a casa do lorde‑chanceler e dizei‑lhe que o encarrego da execução destas ordens. Desejo que sejam publicadas imediatamente.
‑ Mas, monsenhor, se o lorde‑chanceler me interrogar sobre os motivos que levaram Vossa Graça a tomar uma medida tão extraordinária, que responderei?
‑ Que tal foi a minha decisão e que não tenho de prestar contas a ninguém da minha vontade.
‑ Será essa a resposta que deverá transmitir a Sua Majestade ‑ insistiu, sorrindo o secretário ‑ se por acaso Sua Majestade tiver a curiosidade de saber por que motivo nenhum navio pode sair dos portos da Grã-Bretanha?
‑ Tendes razão, senhor ‑ respondeu Buckingham. ‑ Nesse caso diria ao rei que decidi a guerra e que esta medida é o meu primeiro acto de hostilidade contra a França.
O secretário inclinou‑se e saiu.
‑ Eis‑nos tranquilos por esse lado ‑ disse Buckingham, virando‑se para d'Artagnan. ‑ Se as agulhetas ainda não partiram para França, só lá chegarão depois de vós.
‑ Como assim?
‑ Acabo de decretar um embargo sobre todos os navios que se encontrem neste momento nos portos de Sua Majestade, e a não ser com licença especial nenhum se atreverá a levantar ferro.
D'Artagnan olhou com estupefacção aquele homem que colocava o poder ilimitado de que estava revestido pela confiança de um rei ao serviço dos seus amores. Buckingham notou a expressão do rosto do jovem e o que se passava no seu pensamento e sorriu.
‑ Sim, é verdade, Ana de Áustria é a minha verdadeira rainha; a uma palavra sua, traíria o meu país, traíria o meu rei, traíria o meu Deus. Pediu‑me que não enviasse aos protestantes de La Rochelle o socorro que lhes prometera, e assim fiz. Faltei à minha palavra, mas não importa, obedeci ao seu desejo. Não fui generosamente recompensado pela minha obediência, dizei? Porque é a essa obediência que devo o seu retrato.
D'Artagnan registou com admiração por que fios frágeis e desconhecidos estão por vezes suspensos os destinos de um povo e a vida dos homens.
Estava mergulhado profundamente nas suas reflexões quando o joalheiro entrou. Era um irlandês dos mais hábeis na sua arte e que confessava pessoalmente que ganhava cem mil libras por ano com o duque de Buckingham.
‑ Sr. O'Reilly ‑ disse‑lhe o duque, conduzindo‑o à capela ‑, examinai estas agulhetas de diamantes e dizei‑me quanto vale cada uma.
O joalheiro deitou uma única olhadela à forma elegante como estavam montadas, calculou em média o valor dos diamantes e respondeu sem qualquer hesitação:
‑ Mil e quinhentas pistolas cada uma.
‑ Quantos dias seriam precisos para fazer duas agulhetas como estas? Como vedes, faltam aqui.
‑ Oito dias, milorde.
‑ Pagarei três mil pistolas por cada uma, mas quero‑as depois de amanhã.
‑ Milorde tê‑las‑á.
‑ Sois um homem precioso, Sr. O'Reilly, mas não é tudo: estas agulhetas não podem ser confiadas a ninguém; portanto as outras têm de ser feitas neste palácio.
‑ Impossível, milorde: só eu as posso executar para que se não note a diferença entre as novas e as antigas.
‑ Por isso, meu caro Sr. O'Reilly, sois meu prisioneiro e se quisésseis sair agora do meu palácio não o conseguiríeis; decidi‑vos, pois. Indicai‑me quais os vossos ajudantes de que precisais, e os utensílios que devem trazer.
O joalheiro conhecia o duque e sabia que qualquer observação seria inútil; tomou portanto imediatamente a sua decisão.
‑ Ser‑me‑á permitido prevenir a minha mulher? ‑ perguntou.
‑ Oh, até vos será permitido vê‑la, meu caro Sr. O'Reilly! O vosso cativeiro será suave, estai tranquilo; e como todo o incómodo merece indemnização, aqui tendes, além do preço das duas agulhetas, um bónus de mil pistolas para vos fazer esquecer o transtorno que vos causo.
D'Artagnan não cabia em si da surpresa que lhe causava aquele ministro que assim dispunha a seu bel‑prazer dos homens e dos milhões.
Quanto ao joalheiro, escrevia à mulher, a quem mandava o bónus de mil pistolas e encarregava de lhe mandar em troca o seu mais hábil ajudante, um sortido de diamantes de que indicava o peso e a qualidade e as ferramentas constantes de uma lista que lhe eram necessárias.
Buckingham conduzia o joalheiro ao quarto que lhe fora destinado e que, passada meia hora, estava transformado em oficina. Em seguida colocou uma sentinela a cada porta, com ordem de não deixarem entrar quem quer que fosse, excepto o seu criado de quarto Patrice. Escusado será acrescentar que era absolutamente proibido ao joalheiro O'Reilly e ao seu ajudante sair do quarto fosse sob que pretexto fosse.
Resolvido este pormenor, o duque ocupou‑se de d'Artagnan.
‑ E agora, meu jovem amigo, a Inglaterra é nossa; que quereis, que desejais?
‑ Uma cama ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ De momento, confesso, é a coisa de que mais necessito.
Buckingham deu a d'Artagnan um quarto que comunicava com o seu. Queria ter o jovem constantemente à mão, não porque desconfiasse dele, mas sim para ter alguém com quem pudesse falar a todo o momento da rainha.
Uma hora depois foi publicada em Londres a ordem de não deixar sair dos portos nenhum navio mercante para França, nem mesmo o paquete do correio. Aos olhos de todos tratava‑se de uma declaração de guerra entre os dois reinos.
Dois dias depois, às onze horas, as duas agulhetas de diamantes estavam acabadas, tão exactamente iguais às outras, tão perfeitamente idênticas, que Buckingham foi incapaz de distinguir as novas das velhas, o que aliás também teria acontecido a outros mais experientes do que ele na matéria.
Mandou chamar imediatamente d'Artagnan.
‑ Aqui tendes as agulhetas de diamantes que viestes buscar e sede minha testemunha de que tudo o que o poder humano podia fazer foi feito.
‑ Ficai tranquilo, milorde: direi o que vi; mas Vossa Graça entrega‑me as agulhetas sem a caixa?
‑ A caixa estorvar‑vos‑ia. De resto, a caixa é‑me agora tanto mais preciosa quanto é certo ser a única coisa que me resta. Direis que a guardei.
‑ Transmitirei o que acabais de me dizer palavra por palavra, milorde.
‑ E agora ‑ prosseguiu Buckingham, olhando fixamente o jovem ‑ como me desobrigarei alguma vez para convosco?
D'Artagnan corou até à raiz dos cabelos. Viu que o duque procurava maneira de o fazer aceitar qualquer coisa e a ideia de o sangue dos seus companheiros e o seu serem pagos por ouro inglês repugnava‑lhe estranhamente.
‑ Entendamo‑nos, milorde ‑ respondeu d'Artagnan ‑, e pesemos bem os factos antecipadamente, para que não haja sombra de equívoco. - Estou ao serviço do rei e da rainha de França e faço parte da companhia de guardas do Sr. dos Essarts, o qual, assim como o seu cunhado, o Sr. de Trévílle, é muito especialmente dedicado a Suas Majestades. Fiz portanto tudo pela rainha e nada por Vossa Graça. Mais, talvez não tivesse dado um passo em tudo isto se não fosse para ser agradável a alguém que é tanto minha dama como a rainha é vossa.
‑ Sim ‑ disse o duque, sorrindo ‑ e creio até conhecer essa pessoa. É...
‑ Milorde, eu não disse quem era ‑ interrompeu‑o vivamente o jovem.
‑ Tendes razão ‑ admitiu o duque. ‑ É portanto a essa pessoa que devo estar reconhecido pela vossa dedicação.
‑ É como dizeis, milorde, porque precisamente neste momento, em que já estamos em guerra, confesso‑vos que só vejo em Vossa Graça um inglês, e por consequência um inimigo que ficaria mais encantado por encontrar no campo de batalha do que no parque de Windsor ou nos corredores do Louvre; o que, aliás, não me impedirá de cumprir ponto por ponto a minha missão e de me fazer matar, se for necessário, para a cumprir; mas repito a Vossa Graça: não tendes de me agradecer pessoalmente mais por isso, que faço por mim neste segundo encontro, do que já fiz por vós no primeiro.
‑ Nós costumamos dizer: «Orgulhoso como um escocês» ‑ murmurou Buckingham.
‑ E nós dizemos: «Orgulhoso como um gascão» ‑ redarguiu d'Artagnan. ‑ Os gascões são os Escoceses da França.
D'Artagnan saudou o duque e preparou‑se para partir.
‑ Então, ides assim sem mais nem menos? Por onde? Como?
‑ É verdade...
‑ Diabos me levem, os Franceses julgam‑se capazes de tudo!
‑ Esquecera‑me de que a Inglaterra é uma ilha da qual sois o rei.
‑ Dirigi‑vos ao porto, perguntai pelo brigue Sund e entregai esta carta ao comandante; ele vos levará a um portinho onde decerto vos não esperam e onde habitualmente só aportam barcos de pesca.
‑ Como se chama esse porto?
‑ Saint‑Valery. Mas atenção: chegado lá, entrareis numa estalagem miserável, sem nome nem tabuleta, uma verdadeira espelunca de marinheiros; não tendes que vos enganar, pois não há outra assim.
‑ E depois?
‑ Perguntareis pelo estalajadeiro e dir‑lhe‑eis: «Forward.»
‑ Que significa isso?
‑ «Em frente». É um santo‑e‑senha. Ele dar‑vos‑á um cavalo selado e indicar‑vos‑á o caminho que deveis seguir. Encontrareis assim quatro mudas no caminho. Se em cada uma delas quiserdes dar o vosso endereço em Paris os quatro cavalos ser‑vos‑ão lá entregues. Já conheceis dois e pareceu‑me que os apreciastes como amador; refiro‑me àqueles que montámos. Acreditai em mim: os outros não lhes são inferiores. Os quatro cavalos estão equipados para campanha.
Por muito orgulhoso que sejais, não recusareis decerto aceitar um e fazer aceitar os outros três pelos vossos companheiros; é para nos guerrearem, de resto. O fim justifica os meios, como vós, Franceses, dizeis, não é verdade?
‑ Está bem, milorde, aceito ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ E se aprouver a Deus faremos bom uso dos vossos presentes.
‑ Agora, a vossa mão, meu jovem amigo. Talvez nos encontremos brevemente no campo de batalha, mas entretanto espero que nos separemos como bons amigos.
‑ Sim, milorde, mas com a esperança de em breve nos tornarmos inimigos.
‑ Prometo‑vo‑lo, podeis estar tranquilo.
‑ Confio na vossa palavra, milorde.
D'Artagnan saudou o duque e dirigiu‑se rapidamente para o porto. Encontrou o navio indicado diante da torre de Londres, entregou a sua carta ao comandante, que a fez visar pelo governador do porto e aparelhou imediatamente.
Cinquenta navios estavam prontos para largar e esperavam.
Ao passar junto de um deles, d'Artagnan julgou reconhecer a mulher de Meung, a mesma que o gentil‑homem desconhecido tratara por «milady» e que ele, d'Artagnan, achara tão bela; mas graças à corrente do rio e ao bom vento que soprava o seu navio ia tão depressa que pouco depois o outro ficou fora de vista.
No dia seguinte, cerca das nove horas da manhã, aportaram a Saint‑Valery.
D'Artagnan dirigiu‑se imediatamente para a estalagem indicada e reconheceu‑a pelos gritos que dela saíam: falava‑se de guerra entre a Inglaterra e a França como coisa próxima e indubitável e os marujos, satisfeitos, entregavam‑se a grande pândega.
D'Artagnan abriu caminho através da multidão, dirigiu‑se ao estalajadeiro e pronunciou a palavra Forward, O estalajadeiro fez‑lhe imediatamente sinal para o seguir, saiu com ele por uma porta que dava para o pátio, conduziu‑o à cavalariça onde o esperava um cavalo selado e perguntou‑lhe se precisava de mais alguma coisa.
‑ Preciso de conhecer o caminho que devo seguir ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Ide daqui a Blangy e de Blangy a Neufchâtel. Em Neufchâtel entrai na estalagem da Herse d'Or, dai o santo‑e‑senha ao estalajadeiro e encontrareis como aqui um cavalo selado.
‑ Devo alguma coisa? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Está tudo pago, e generosamente ‑ respondeu o estalajadeiro. ‑ Ide e que Deus vos acompanhe!
‑ Ámen! ‑ redarguiu o jovem, partindo a galope. Quatro horas mais tarde estava em Neufchâtel.
Seguiu à risca as instruções recebidas; em Neufchâtel, como em Saint‑Valery, encontrou à sua espera uma montada selada; quis levar as pistolas da sela que acabava de deixar para a sela que ia utilizar, mas os coldres estavam guarnecidos de pistolas idênticas.
‑ O vosso endereço em Paris?
‑ Quartel das Guardas, companhia do Sr. dos Essarts.
‑ Muito bem ‑ respondeu o homem.
‑ Que estrada devo seguir? ‑ perguntou por seu turno d'Artagnan.
‑ A de Ruão; mas deixareis a cidade à vossa direita. Parai na aldeiazinha de Ecouis, onde só há uma estalagem, o Écu de France. Não a julgueis pela aparência; terá nas suas cavalariças um cavalo tão bom como este.
‑ O mesmo santo‑e‑senha?
‑ Exactamente.
‑ Adeus, mestre!
‑ Boa viagem, gentil‑homem! Precisais de alguma coisa? D'Artagnan acenou com a cabeça que não e partiu a toda a brida.
Em Ecouis repetiu‑se a mesma cena: encontrou um estalajadeiro igualmente prevenido e um cavalo fresco e descansado; deixou o seu endereço, como fizera anteriormente, e partiu da mesma forma para Pontoise. Em Pontoise mudou pela última vez de montada e às nove horas entrava a todo o galope no pátio do palácio do Sr. de Tréville.
Percorrera cerca de sessenta léguas em doze horas.
O Sr. de Tréville recebeu‑o como se já o tivesse visto naquela mesma manhã; apenas ao apertar‑lhe a mão um pouco mais vivamente do que de costume anunciou‑lhe que a companhia do Sr. dos Essarts estava de guarda ao Louvre e podia ir ocupar o seu posto.
O BAILADO DA MERLAISON
No dia seguinte não se falava doutra coisa em todo o Paris a não ser no baile que os Srs. Almotacés da cidade davam em honra do rei e da rainha e no qual Suas Majestades deveriam dançar o famoso bailado da Merlaison, que era o bailado favorito do rei.
Com efeito, havia oito dias que se preparava tudo na Câmara Municipal para a solene soirée. O carpinteiro da cidade erguera estrados para as damas convidadas e o merceeiro guarnecera as salas com duzentas tochas de cera branca, o que era um luxo inaudito para a época; finalmente, tinham sido contratados vinte violinistas pelo dobro do preço habitual, atendendo, diz o documento a que nos reportamos, a que deviam tocar toda a noite.
Às dez horas da manhã, o Sr. de La Coste, porta‑bandeira das Guardas do rei, acompanhado de dois agentes da Polícia e de vários archeiros, foi pedir ao escrivão da cidade, chamado Clément, todas as chaves das portas, das salas e das repartições da Câmara. As chaves foram‑lhe imediatamente entregues; cada uma delas tinha uma etiqueta para ser reconhecida e a partir daquele momento o Sr. de La Coste ficou encarregado da guarda de todas as portas e de todos os acessos.
Às onze horas chegou por seu turno Duhallier, capitão das Guardas, trazendo consigo cinquenta archeiros que se distribuíram imediatamente pela Câmara Municipal, junto das portas que lhes tinham sido indicadas.
Às três horas chegaram duas companhias de guardas, uma francesa e outra suíça. A companhia de guardas franceses era constituída metade por homens do Sr. Duhallier e metade por homens do Sr. dos Essarts.
Às seis horas da tarde começaram a entrar os convidados. À medida que entravam eram instalados no salão, nos estrados preparados.
Às nove horas chegou a Sr.a Primeira‑Presidente. Como era, depois da rainha, a pessoa mais importante da festa, foi recebida por dignitários da cidade e instalada no camarote fronteiro àquele que devia ocupar a rainha.
Às onze horas preparou‑se a mesa de confeitos para o rei na salinha do lado da Igreja de Saint‑Jean e defronte do bufete de prata da cidade, guardado por quatro archeiros.
À meia‑noite ouviram‑se grandes gritos e numerosas aclamações: era o rei que vinha através das ruas que levavam do Louvre à Câmara Municipal, as quais estavam todas iluminadas com lanternas coloridas.
Imediatamente os Srs. Almotacés, envergando as suas túnicas de pano e precedidos pelos seis agentes da Polícia, cada um com a sua tocha na mão, foram ao encontro do rei, que encontraram nos degraus, onde o preboste dos mercadores o cumprimentou e lhe deu as boas‑ vindas, cumprimento a que Sua Majestade respondeu desculpando‑se de vir tão tarde, mas atribuindo a culpa ao Sr. Cardeal, que o retivera até às onze horas com os negócios do Estado.
Sua Majestade, em traje de cerimónia, era acompanhado de Sua Alteza Real Monsieur, do conde de Soissons, do prior‑mor, do duque de Longueville, do duque de Elbeuf, do conde de Harcourt, do conde de La Roche‑Guyon, do Sr. de Liancourt, do Sr. de Baradas, do conde de Cramail e do cavaleiro de Souveray.
Todos notaram que o rei estava triste e preocupado.
Fora preparado um gabinete para o rei e outro para Monsieur. Em cada um deles encontravam‑se trajes de máscaras. Procedera‑se de igual modo para com a rainha e a Sr.a Presidente. Os cavalheiros e as damas dos séquitos de Suas Majestades deveriam vestir‑se dois a dois em gabinetes preparados para o efeito.
Antes de entrar no gabinete o rei recomendou que o viessem imediatamente prevenir da chegada do cardeal.
Cerca de meia hora depois da entrada do rei ouviram‑se novas aclamações, estas anunciando a chegada da rainha.
Os almotacés procederam como já tinham procedido com o rei e, precedidos de sergentes, foram ao encontro da sua ilustre convidada.
A rainha entrou no salão: notou‑se que, como o rei, tinha um ar triste e sobretudo cansado.
Quando entrou, a cortina de uma tribunazinha que até ali estivera fechada abriu‑se e apareceu o rosto pálido do cardeal, vestido de fidalgo espanhol. Os seus olhos fixaram‑se nos da rainha e um sorriso de terrível satisfação passou‑lhe pelos lábios: a rainha não trazia as agulhetas de diamantes.
A rainha ficou algum tempo a receber os cumprimentos dos dignitários da cidade e a responder às saudações das damas.
De súbito, o rei apareceu com o cardeal a uma das portas da sala. O cardeal falava‑lhe baixinho e o rei estava muito pálido.
O rei abriu caminho através da multidão e sem máscara e com as fitas do gibão quase desatadas aproximou‑se da rainha e perguntou‑lhe com a voz alterada:
‑ Senhora, dizei‑me, por favor, por que motivo não trazeis as vossas agulhetas de diamantes, quando sabeis que gostaria de as ver?
A rainha olhou à sua volta e viu atrás do rei o cardeal sorrir diabolicamente.
‑ Sire, porque receei que no meio desta grande multidão lhes acontecesse alguma coisa ‑ respondeu a rainha.
‑ Pois fizestes mal, senhora! Se vos dei esse presente era para que o usásseis. Repito‑vos que fizestes mal.
E a voz do rei tremia de cólera. Todos olhavam e escutavam com espanto, sem compreenderem nada do que se passava.
‑ Sire, posso mandar buscá‑las ao Louvre, onde estão, e assim os desejos de Vossa Majestade serão satisfeitos ‑ sugeriu a rainha.
‑ Pois mandai, senhora, mandai, e depressa, porque dentro de uma hora o bailado vai começar.
A rainha inclinou‑se em sinal de submissão e seguiu as damas que deviam acompanhá‑la ao seu gabinete.
Pela sua parte o rei voltou para o seu.
Houve na sala um momento de alvoroço e confusão.
Toda a gente notara que se passara qualquer coisa entre o rei e a rainha; mas ambos haviam falado tão baixo que, como cada um por respeito se afastara alguns passos, ninguém ouvira nada. Os violinos tocavam ruidosamente, mas ninguém os escutava.
O rei foi o primeiro a sair do seu gabinete; estava em traje de caça, muito elegante, e Monsieur e os outros fidalgos vestiam como ele. Era o traje que melhor ficava ao rei; assim vestido parecia realmente o primeiro gentil‑homem do seu reino.
O cardeal aproximou‑se do rei e entregou‑lhe uma caixa. O rei abriu‑a e encontrou duas agulhetas de diamantes.
‑ Que quer isto dizer? ‑ perguntou ao cardeal.
‑ Nada ‑ respondeu este. ‑ Apenas que, se a rainha tiver as agulhetas, do que duvido, as deveis contar, Sire, e se não encontrardes mais de dez perguntai a Sua Majestade quem lhe roubou as duas agulhetas que estão aí.
O rei olhou o cardeal como se o fosse interrogar, mas não teve tempo de lhe dirigir nenhuma pergunta: um grito de admiração saiu de todas as bocas. Se o rei parecia o primeiro gentil‑homem do seu reino, a rainha era sem dúvida a mais bela mulher de França.
É certo que o seu traje de caçadora lhe ficava maravilhosamente. Trazia um chapéu de feltro com plumas azuis, uma sobreveste de veludo cinzento‑pérola presa com colchetes de diamantes e uma saia de cetim azul toda bordada a prata. No ombro esquerdo cintilavam as agulhetas, presas por um laço da mesma cor das plumas e da saia.
O rei estremeceu de alegria e o cardeal de cólera; todavia, distantes como estavam da rainha, não podiam contar as agulhetas; a rainha tinha‑as, mas tinha dez ou doze?
Neste momento os violinos deram o sinal para o bailado. O rei dirigiu‑se para a Sr.a Presidente, com quem devia dançar, e Sua Alteza Monsieur para a rainha. Tomaram as suas posições e o bailado começou.
O rei ocupava o lugar fronteiro ao da rainha e todas as vezes que passava junto dela devorava com a vista as agulhetas, cujo número ignorava. Um suor frio cobria a testa do cardeal.
O bailado durou uma hora; tinha dezasseis entradas.
O bailado terminou no meio dos aplausos de toda a sala e cada um reconduziu a sua dama ao seu lugar; mas o rei aproveitou o privilégio de poder deixar a sua onde se encontrava e dirigiu‑se rapidamente ao encontro da rainha.
‑ Agradeço‑vos, senhora ‑ disse‑lhe ‑, a deferência que mostrastes para com os meus desejos, mas creio que vos faltam duas agulhetas e trago‑vo‑las.
Ditas estas palavras, estendeu à rainha as duas agulhetas que lhe dera o cardeal.
‑ Como, Sire, dais‑me mais duas?! ‑ exclamou a jovem rainha, simulando surpresa. ‑ Mas assim fico com catorze...
Com efeito o rei contou‑as e encontrou doze agulhetas no ombro de Sua Majestade.
O rei chamou o cardeal.
‑ Que significa isto, Sr. Cardeal? ‑ perguntou‑lhe em tom severo.
‑ Significa, Sire ‑ respondeu o cardeal ‑, que desejava oferecer essas duas agulhetas a Sua Majestade, mas como não me atrevia a oferecer‑lhas eu próprio, recorri a este meio.
‑ E eu estou tanto mais reconhecida a Vossa Eminência ‑ respondeu Ana de Áustria com um sorriso que provava não se deixar iludir com tão engenhosa galanteria ‑ quanto é certo estar convencida de que essas duas agulhetas vos custaram tanto, elas só, como as doze que Sua Majestade me ofereceu.
Depois, saudou o rei e o cardeal e dirigiu‑se para o seu gabinete, onde devia mudar de roupa.
A atenção que fomos obrigados a dispensar no começo deste capítulo às personagens ilustres que nele introduzimos afastaram‑nos um instante daquele a quem Ana de Áustria devia o triunfo inaudito que acabava de obter sobre o cardeal, e que, embaraçado, ignorado, perdido no meio da multidão aglomerada a uma das portas, observava daí aquela cena compreensível apenas para quatro pessoas: o rei, a rainha, Sua Eminência e ele.
A rainha acabava de entrar no seu gabinete e d'Artagnan preparava‑se para se retirar quando sentiu tocarem‑lhe levemente no ombro; virou‑se e viu uma jovem fazer‑lhe sinal para a seguir. A jovem tinha o rosto coberto com uma mascarilha de veludo preto, mas apesar dessa precaução, de resto tomada mais por causa dos outros do que dele, d'Artagnan reconheceu imediatamente a sua guia habitual, a ágil e graciosa Sr.a Bonacieux.
Na véspera, tinham‑se visto apenas em casa do suíço Germain, onde d'Artagnan a mandara chamar; mas a pressa da jovem em levar à rainha a excelente notícia do feliz regresso do seu mensageiro não permitiu que os dois apaixonados trocassem mais do que algumas palavras. D'Artagnan seguiu, portanto a Sr.a Bonacieux movido por um duplo sentimento: o amor e a curiosidade. Durante todo o caminho, e à medida que os corredores se tornavam mais secretos, d'Artagnan quis deter a jovem, agarrá‑la, contemplá‑la, nem que fosse só um instante; mas esquiva como um passarinho ela deslizava‑lhe sempre por entre as mãos, e quando d'Artagnan tentava falar a jovem levava um dedo à boca num gesto imperioso cheio de encanto, recordando‑lhe que estava sob o domínio de um poder ao qual devia obedecer cegamente e que lhe proibia até o mais leve queixume. Por fim, depois de um minuto ou dois de voltas e contravoltas, a Sr.a Bonacieux abriu uma porta e introduziu d'Artagnan num gabinete completamente às escuras. Aí fez‑lhe novo sinal de mutismo e, abrindo segunda porta oculta por um reposteiro, através do qual penetrou de súbito uma luz viva, desapareceu.
D'Artagnan ficou um instante imóvel, perguntando a si mesmo onde estaria, mas em breve um raio de luz vindo do outro lado e o ar quente e perfumado que penetrava até ali, bem como a conversa de duas ou três mulheres em tom simultaneamente respeitoso e distinto e a palavra «Majestade» várias vezes repetida, lhe indicaram claramente que se encontrava num gabinete contíguo ao da rainha. O jovem esperou no escuro.
A rainha parecia alegre e feliz, e dava ideia que isso admirava grandemente as pessoas que a rodeavam e estavam, pelo contrário, habituadas a vê‑la quase sempre preocupada. A rainha atribuia a sua boa disposição à beleza da festa e ao prazer que lhe proporcionara o bailado, e como não era permitido contradizer uma rainha, quer ela sorrisse, quer ela chorasse, toda a gente louvava a forma como os Srs. Almotacés da cidade de Paris tinham sabido organizar as coisas.
Embora d'Artagnan não conhecesse a rainha, distinguiu a sua voz das outras vozes, primeiro devido a uma leve pronúncia estrangeira, depois graças a esse tom de domínio naturalmente impresso em todas as palavras soberanas. Ouviu‑a aproximar‑se e afastar‑se da porta entreaberta, e duas ou três vezes viu mesmo a sombra de um corpo interceptar a luz.
Por fim, de repente, uma mão e um braço adoráveis de forma e brancura passaram através do reposteiro. D'Artagnan adivinhou que era a sua recompensa: caiu de joelhos, pegou naquela mão e beijou‑a respeitosamente; depois a mão retirou‑se, deixando nas suas um objecto que reconheceu ser um anel. A porta fechou‑se imediatamente e d'Artagnan encontrou‑se na mais completa escuridão.
D'Artagnan meteu o anel no dedo e esperou de novo; era evidente que nem tudo terminara ainda. Depois da recompensa da sua dedicação viria a recompensa do seu amor. Aliás, o bailado terminara, mas a festa ainda mal começara. Ceava‑se às três horas e o relógio de Saint‑Jean havia já algum tempo que dera duas horas e três quartos.
Com efeito, pouco a pouco o barulho das vozes diminuiu no gabinete vizinho; depois, afastaram‑se; por fim a porta do gabinete onde estava d'Artagnan voltou a abrir‑se e a Sr.a Bonacieux entrou.
‑ Vós, finalmente! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Silêncio! ‑ recomendou‑lhe a jovem, colocando a mão nos lábios de d'Artagnan. ‑ Silêncio e ide‑vos por onde viestes!
‑ Mas onde e quando vos tornarei a ver? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Um bilhete que encontrareis em casa vo‑lo dirá. Ide, ide!
E ditas estas palavras a jovem abriu a porta do corredor e empurrou d'Artagnan para fora do gabinete.
D'Artagnan obedeceu como uma criança, sem resistência e sem qualquer objecção, o que prova que estava realmente apaixonado.
O ENCONTRO
D'Artagnan voltou para casa a correr, e, embora fossem mais de três horas da madrugada e tivesse de atravessar os piores bairros de Paris, não teve nenhum mau encontro. Como se sabe, há um deus que protege os bêbedos e os apaixonados.
Encontrou a porta do seu passadiço entreaberta, subiu a escada e bateu devagarinho e de forma convencionada entre ele e o seu lacaio.
Planchet, que mandara embora da Câmara Municipal duas horas antes, com a recomendação de o esperar, veio abrir‑lhe a porta.
‑ Alguém trouxe uma carta para mim? ‑ perguntou vivamente d'Artagnan.
‑ Ninguém trouxe nenhuma carta, senhor ‑ respondeu Planchet. ‑ Mas está cá uma que veio sozinha.
‑ Que queres dizer, imbecil?
‑ Quero dizer que quando entrei, embora tivesse a chave da vossa casa na algibeira e ela não me tivesse sido roubada, encontrei uma carta em cima do pano verde da mesa, no vosso quarto de dormir.
‑ E onde está essa carta?
‑ Deixei‑a onde estava, senhor. Não é natural que as cartas entrem assim em casa das pessoas. Se a janela estivesse aberta, ou mesmo apenas entreaberta, ainda compreendia; mas não, estava tudo hermeticamente fechado. Acautelai‑vos, senhor, pois há com toda a certeza alguma magia nisso.
Entretanto, o jovem correra para o quarto e abria a carta. Era da Sr.a Bonacieux e concebida nestes termos:
Tenho vivos agradecimentos a dar‑vos e a transmitir‑vos. Encontrai‑vos esta noite por volta das dez horas em Saint‑Cloud, defronte do pavilhão que se ergue à esquina da casa do Sr. de Estries.
Ao ler esta carta, d'Artagnan sentiu o coração dilatar‑se‑lhe e contrair‑se‑lhe nesse doce espasmo que tortura e acaricia o coração dos amantes.
Era o primeiro bilhete que recebia, era o primeiro encontro que lhe era concedido. O seu coração, intumescido pela embriaguez da alegria, sentia‑se prestes a desfalecer no limiar desse paraíso terrestre chamado amor.
‑ Então, senhor ‑ disse Planchet, ao ver o amo corar e empalidecer sucessivamente ‑, então? Não é verdade que adivinhei e que se trata de qualquer coisa desagradável?
‑ Enganas‑te, Planchet ‑ respondeu d'Artagnan ‑, e a prova é que tens aqui um escudo para beberes à minha saúde.
‑ Agradeço, senhor, o escudo que me dais e prometo‑vos seguir exactamente as vossas instruções; mas nem por isso é menos verdade que as cartas que entram assim nas casas fechadas...
‑ Caem do céu, meu amigo, caem do céu.
‑ Então o senhor está contente? ‑ perguntou Planchet.
‑ Meu caro Planchet, sou o mais feliz dos homens!
‑ E posso aproveitar a felicidade do senhor para me ir deitar?
‑ Podes, sim.
‑ Que todas as bênçãos do Céu caiam sobre o senhor, mas a verdade é que essa carta...
E planchet retirou‑se abanando a cabeça com ar de dúvida, um ar de dúvida que a liberalidade de d'Artagnan não conseguia apagar inteiramente.
Quando ficou só, d'Artagnan leu e releu o bilhete e depois beijou e tornou a beijar vinte vezes aquelas linhas traçadas pela mão da sua bela amada. Por fim deitou‑se, adormeceu e teve sonhos dourados.
Às sete horas da manhã levantou‑se e chamou Planchet, que ao segundo chamamento abriu a porta, com a cara ainda mal desanuviada das preocupações da véspera.
‑ Planchet ‑ disse d'Artagnan ‑, saio talvez durante todo o dia; estás portanto livre até às sete horas da noite; mas às sete horas da noite está pronto com dois cavalos.
‑ Pronto, parece que vamos outra vez fazer com que nos furem a pele em vários sítios! ‑ comentou Planchet.
‑ Não te esqueças do teu mosquetão e das tuas pistolas.
‑ Que dizia eu? ‑ tornou Planchet. ‑ Eu tinha a certeza! Maldita carta!
‑ Sossega, imbecil! ‑ Trata‑se simplesmente de um passeio.
‑ Sim, como as viagens de recreio do outro dia, em que choviam balas e não faltavam ciladas.
‑ Aliás, se tendes medo, Sr. Planchet ‑ acrescentou d'Artagnan ‑, irei sem vós; prefiro viajar sozinho a ter um companheiro que treme.
‑ O senhor insulta‑me ‑ redarguiu Planchet. ‑ No entanto, parece‑me que já viu do que sou capaz.
‑ Pois vi, mas julguei que tivesses gastado toda a tua coragem de uma só vez.
‑ O senhor verá que chegada a ocasião ainda me resta alguma. Só vos peço que não a esbanjeis demasiado se quereis que me dure bastante tempo.
‑ Achas que poderás despender um bocadinho dela esta noite?
‑ Espero que sim.
‑ Nesse caso, conto contigo.
‑ Estarei pronto à hora indicada; mas julgava que o senhor só tinha um cavalo na cavalariça dos guardas.
‑ Neste momento talvez só lá tenha um, mas esta noite terei lá quatro.
‑ Até parece que a nossa viagem foi uma viagem de remonta.
‑ É verdade ‑ concordou d'Artagnan.
E depois de fazer a Planchet uma última recomendação, saiu.
O Sr. Bonacieux estava à sua porta. A intenção de d'Artagnan era seguir o seu caminho sem falar ao digno retroseiro; mas este dirigiu‑lhe um cumprimento tão afável e benévolo que o seu locatário não teve outro remédio senão retribuir‑lho e meter conversa com ele.
Aliás, como não ser um pouco condescendente com o marido de uma mulher que nos concede um encontro na mesma noite em Saint‑Cloud, defronte do pavilhão do Sr. de Estrées? D'Artagnan aproximou‑se portanto com o ar mais amável que pôde tomar.
A conversa derivou naturalmente para a prisão do pobre homem. O Sr. Bonacieux, que ignorava que d'Artagnan ouvira a sua conversa com o desconhecido de Meung, contou ao seu jovem inquilino as perseguições de que fora vítima por parte do monstro do Sr. de Laffemas, como não cessou de o classificar durante toda a sua narrativa, bem como de lhe chamar carrasco do cardeal. Além disso, espraiou‑se longamente sobre a Bastilha, os ferrolhos, os postigos, os respiradouros, as grades e os instrumentos de tortura.
D'Artagnan escutou‑o com uma complacência exemplar; e quando o outro terminou perguntou‑lhe:
‑ E a Sr.a Bonacieux, já sabeis quem a raptou? Porque não esqueço que devo a essa circunstância desagradável a ventura de vos conhecer.
‑ Oh, eles tomaram o cuidado de não mo dizer, e pela sua parte a minha mulher jurou‑me por todos os santos da corte do Céu que não sabia! ‑ respondeu o Sr. Bonacieux. ‑ Mas vós próprio ‑ continuou num tom de perfeita bonomia ‑ onde estivestes durante todos estes dias? Não vos vi, nem a vós nem aos vossos amigos, e creio que não foi nas calçadas de Paris que acumulastes toda a poeira que Planchet vos limpava ontem das botas.
‑ Tendes razão, meu caro Sr. Bonacieux: os meus amigos e eu fizemos uma pequena viagem.
‑ Longe daqui?
‑ Oh, meu Deus, não! Apenas umas quarenta léguas; fomos levar o Sr. Athos às águas de Forges, onde os meus amigos ficaram.
‑ Mas vós regressastes, não é verdade? ‑ observou o Sr. Bonacieux, dando à fisionomia o seu ar mais malicioso. ‑ Um belo moço como vós não obtém longas dispensas da amante, e esperavam‑vos impacientemente em Paris, não é assim?...
‑ Confesso que sim, tanto mais, meu caro Sr. Bonacieux, que verifico não se pode esconder‑vos nada ‑ respondeu o jovem, rindo. ‑ É verdade, esperavam‑me com muita impaciência, garanto‑vos.
Uma leve nuvem passou pela testa de Bonacieux, mas foi tão leve que d'Artagnan nem deu por ela.
‑ E ides ser recompensado da vossa diligência? ‑ continuou o retroseiro, com uma ligeira alteração na voz, alteração que d'Artagnan não notou mais do que notara a nuvem momentânea que momentos antes nublara o rosto do digno homem.
‑ Estais hoje muito curioso! ‑ observou d'Artagnan, rindo.
‑ Não ‑ redarguiu Bonacieux ‑, pergunto isto apenas para saber se regressais tarde.
‑ Porquê essa pergunta, meu caro senhorio? Tencionais esperar‑me?
‑ Não. É que desde a minha prisão e do roubo cometido em minha casa, assusto‑me todas as vezes que ouço abrir uma porta, sobretudo de noite. Que quereis, não sou homem de espada!
‑ Seja como for, não vos assusteis se eu regressar à uma hora, às duas ou às três horas da madrugada; e também não vos assusteis se não regressar mesmo.
Desta vez, Bonacieux empalideceu tanto que d'Artagnan não pôde deixar de o notar e de lhe perguntar o que tinha.
‑ Nada ‑ respondeu Bonacieux ‑, nada. Desde as minhas desgraças sou sujeito a fraquezas que se apoderam de mim de repente e acabo de sentir um arrepio. Mas não vos preocupeis comigo; agora a vossa única preocupação deve‑se limitar a serdes feliz.
‑ Isso não me preocupa, pois sou‑o.
‑ Ainda não; lembrai‑vos de que dissestes «esta noite»...
‑ Oh, a noite chegará, graças a Deus! Talvez a espereis com tanta impaciência como eu; talvez esta noite a Sr.a Bonacieux visite o domicílio conjugal...
‑ A Sr.a Bonacieux não está livre esta noite ‑ respondeu gravemente o marido. ‑ Está retida no Louvre pelo seu serviço.
‑ Tanto pior para vós, meu caro senhorio, tanto pior. Já que sou feliz, gostaria que toda a gente o fosse também; mas parece que não é possível
E o jovem afastou‑se rindo às gargalhadas do gracejo que só ele, pensava, podia compreender.
‑ Diverti‑vos bem! ‑ exclamou Bonacieux em tom sepulcral. Mas d'Artagnan ia já demasiado longe para o ouvir, e se o tivesse ouvido, no estado de espírito em que se encontrava, não teria certamente ligado importância.
Dirigiu‑se para o palácio do Sr. de Tréville; a sua visita da véspera fora, recorde‑se, muito curta e muito pouco explicativa.
Encontrou o Sr. de Tréville alegre como um passarinho. O rei e a rainha tinham sido amabilissimos com ele no baile. É certo que o cardeal fora perfeitamente insuportável.
À uma hora da manhã retirara‑se, a pretexto de estar indisposto. Quanto a Suas Majestades, só tinham regressado ao Louvre às seis horas da manhã.
‑ Agora ‑ disse o Sr. de Tréville, baixando a voz e examinando com a vista todos os cantos do aposento para ver se não havia ali mais ninguém ‑, agora falemos de vós, meu jovem amigo, porque é evidente que o vosso feliz regresso contribuiu alguma coisa para a boa disposição do rei, para o triunfo da rainha e para a humilhação de Sua Eminência. Trata‑se de vos defender.
‑ Que tenho a temer enquanto tiver a ventura de fruir da protecção de Suas Majestades? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Tudo, acreditai‑me. O cardeal não é homem que esqueça uma mistificação enquanto não ajustar contas com o mistificador, e o mistificador tem todo o ar de ser certo gascão que conheço.
‑ Parece‑vos que o cardeal esteja tão adiantado como vós e saiba que fui eu que fui a Londres?
‑ Diabo, fostes a Londres! E foi de Londres que trouxestes o belo diamante que brilha no vosso dedo? Acautelai‑vos, meu caro d'Artagnan, não há nada pior do que o presente de um inimigo; existem até uns versos latinos a tal respeito... Esperai...
‑ Sim, decerto ‑ redarguiu d'Artagnan, que nunca conseguira meter na cabeça a primeira regra do rudimento e que, por ignorância, fora o desespero do seu preceptor. ‑ Sim, decerto, devem existir.
‑ Há pelo menos um, com certeza ‑ insistia o Sr. de Tréville, que tinha umas luzes de letras ‑, que o Sr. de Benserade me citava outro dia... Esperai... Ah, já me lembro! É assim:... timeo Danaos et dona férentes. O que significa: «Desconfiai do inimigo que vos dá presentes.»
‑ Este diamante não me foi dado por um inimigo, senhor ‑ esclareceu d'Artagnan ‑, foi‑me dado pela rainha.
‑ Pela rainha? Oh, oh! ‑ exclamou o Sr. de Tréville. ‑ Efectivamente, é uma verdadeira jóia real, que vale bem mil pistolas. Por que motivo vos mandou a rainha dar esse presente?
‑ Deu‑mo ela própria.
‑Sim?...
‑ No gabinete contíguo àquele onde mudou de roupa.
‑ E como?
‑ Dando‑me a mão a beijar.
‑ Beijastes a mão da rainha?! ‑ exclamou o Sr. de Tréville, fitando d'Artagnan.
‑ Sua Majestade deu‑me a honra de me conceder essa graça.
‑ E na presença de testemunhas? Imprudente, três vezes imprudente!
‑ Não, senhor, tranquilizai‑vos, ninguém a viu ‑ Redarguiu d'Artagnan.
E contou ao Sr. de Tréville como as coisas se tinham passado.
‑ Oh, as mulheres, as mulheres! ‑ exclamou o velho soldado. ‑ Conheço bem a sua imaginação romanesca; tudo o que cheira a mistério as encanta. Portanto, vistes o braço e mais nada; se encontrásseis a rainha não a reconheceríeis, e se ela vos encontrasse também não vos reconheceria.
‑ Não, mas graças a este diamante... ‑ insinuou o jovem.
‑ Escutai ‑ atalhou o Sr. de Tréville. ‑ Quereis que vos dê um conselho, um bom conselho, um conselho de amigo?
‑ Seria uma honra para mim, senhor ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Então, entrai no primeiro ourives que encontrardes e vendei‑lhe esse diamante pela importância que vos oferecer. Por muito judeu que seja, sempre obtereis pelo menos oitocentas pistolas. As pistolas não têm nome, meu rapaz, e esse anel tem um, terrível, que pode atraiçoar quem o usa.
‑ Vender este anel? Um anel que me deu a minha soberana? ‑ Nunca! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Nesse caso virai a pedra para dentro, pobre louco, pois toda a gente sabe que um filho segundo da Gasconha não encontra semelhantes jóias no escrínio da mãe.
‑ Achais de facto que tenho alguma coisa a temer? – perguntou d'Artagnan.
‑ Por outras palavras, meu rapaz: comparado convosco, aquele que dormir sobre uma mina com o rastilho aceso tem motivos para se considerar mais seguro do que vós.
‑ Demónio! ‑ exclamou d'Artagnan, a quem o tom convincente do Sr. de Tréville começava a abalar. ‑ Demónio, que devo fazer?
‑ Estar de pé atrás, sempre e antes de mais nada. O cardeal tem a memória tenaz e a mão comprida; acreditai em mim, pregar‑vos‑á qualquer partida.
‑ Mas qual?
‑ Sei lá! Não tem ao seu serviço todas as astúcias do Demónio? O menos que vos pode acontecer é prenderem‑vos.
‑ Como? Ousariam prender um homem ao serviço de Sua Majestade?
‑ Com a breca, bem se importaram de prender Athos! Mas seja como for, meu rapaz, acreditai num homem que vive na corte há trinta anos: não adormeçais confiado na vossa segurança ou estareis perdido. Muito pelo contrário, e sou eu quem vo‑lo digo, vede inimigos por toda a parte. Se vos provocarem, não vos deis por achado, ainda que a provocação provenha de uma criança de dez anos; se vos atacarem, de noite ou de dia, batei em retirada e sem vergonha; se atravessardes uma ponte, tacteai as pranchas, não vá alguma faltar‑vos debaixo dos pés; se passardes diante de um prédio em construção, olhai para o alto, não aconteça alguma pedra cair‑vos em cima; se recolherdes tarde, fazei‑vos acompanhar pelo vosso lacaio, e que o vosso lacaio esteja armado, isto se tiverdes confiança no vosso lacaio... Desconfiai de toda a gente: do vosso amigo, do vosso irmão, da vossa amante... sobretudo da vossa amante.
D'Artagnan corou.
‑ Da minha amante ‑ repetiu maquinalmente. ‑ E porquê mais dela do que doutrem?
‑ Porque a amante é um dos meios favoritos do cardeal, e de facto não há outro mais expedito: uma mulher vende‑nos por dez pistolas, como o prova Dalila. Conheceis as Escrituras, não é verdade?
D'Artagnan lembrou‑se do encontro que lhe marcara a Sr.a Bonacieux para aquela mesma noite; mas devemos dizer, em louvor do nosso herói, que a má opinião que o Sr. de Tréville tinha das mulheres em geral não lhe inspirou a mais pequena desconfiança contra a sua bonita senhoria.
‑ Mas a propósito, que é feito dos vossos três companheiros? ‑ perguntou o Sr. de Tréville.
‑ Ia perguntar‑vos se não tínheis recebido notícias deles.
‑ Nenhuma.
‑ É que fui‑os deixando pelo caminho: Porthos em Chantilly, a contas com um duelo; Aramis em Crèvecoeur, com uma bala no ombro, e Athos em Amiens, com uma acusação de moedeiro falso às costas.
‑ Vedes? ‑ observou o Sr. de Tréville. ‑ E vós, como conseguistes escapar?
‑ Por milagre, senhor, devo confessar, com uma estocada no peito e deixando espetado o Sr. Conde de Wardes nas imediações da estrada de Calais, como uma borboleta numa tapeçaria.
‑ Vedes?, vedes? ‑ insistiu o Sr. de Tréville. ‑ Wardes, um homem do cardeal, um primo de Rochefort. Olhai, meu caro amigo, tenho uma ideia.
‑ Dizei, senhor.
‑ No vosso lugar faria uma coisa. ‑ Qual?
‑ Enquanto Sua Eminência me mandava procurar em Paris, eu, Ia calado, tomava a estrada da Picardia e ia saber notícias dos meus três companheiros. Que diabo, eles merecem bem essa pequena atenção da vossa parte!
‑ O conselho é bom, senhor, e partirei amanhã.
‑ Amanhã! E por que não esta noite?
‑ Esta noite, senhor, estou retido em Paris por via de um assunto inadiável.
‑ Ah, rapaz, rapaz!... Alguma paixoneta? Tende cautela, repito‑vos: a mulher é que nos perdeu e há‑de ser ela que nos voltará a perder. Acreditai em mim, parti esta noite.
‑ Impossível, senhor!
‑ Destes a vossa palavra?
‑ Dei, senhor.
‑ Então é diferente; mas prometei‑me que se não fordes morto esta noite partireis amanhã.
‑ Prometo‑vos.
‑ Precisais de dinheiro?
‑ Ainda tenho cinquenta pistolas. Creio não precisar de mais.
‑ E os vossos companheiros?
‑ Penso que também não precisarão. Saímos de Paris levando cada um setenta e cinco pistolas na algibeira.
‑ Ver‑vos‑ei antes da vossa partida?
‑ Não, ao que penso, senhor, a menos que haja alguma novidade.
‑ Então, boa viagem!
‑ Obrigado, senhor.
E d'Artagnan despediu‑se do Sr. de Tréville, impressionado como
nunca pela sua solicitude tão paternal para com os seus mosqueteiros.
Passou sucessivamente por casa de Athos, de Porthos e de Aramis; nenhum deles regressara. Os seus lacaios também estavam ausentes e ninguém tinha notícias nem de uns nem de outros.
Ter‑se‑ia informado junto das suas amantes, mas não conhecia nem a de Porthos, nem a de Aramis; quanto a Athos, não tinha.
Ao passar diante do aquartelamento das Guardas deitou uma olhadela à cavalariça: dos quatro cavalos, três já tinham chegado. Planchet, muito admirado, estava a limpá‑los e já despachara dois deles.
‑ Ah, senhor, que prazer em ver‑vos! ‑ exclamou Planchet ao ver d'Artagnan.
‑ Porquê, Planchet? ‑ perguntou o jovem.
‑ Confiais no Sr. Bonacieux, nosso senhorio?
‑ Eu? Absolutamente nada.
‑ E fazeis muito bem, senhor.
‑ Mas a que propósito vem essa conversa?
‑ Enquanto conversáveis com ele, eu observava‑vos sem vos escutar; senhor, a cara dele mudou duas ou três vezes de cor.
‑Ora!...
‑ O senhor não notou isso porque estava preocupado com a carta que acabara de receber: mas eu, pelo contrário, a quem a forma estranha como a carta fora parar lá a casa pusera de sobreaviso, não perdi uma expressão da sua fisionomia.
‑ E achaste‑a?...
‑ Traiçoeira, senhor.
‑ Deveras?
‑ Além disso, assim que o senhor o deixou e desapareceu à esquina da rua, o Sr. Bonacieux pegou no chapéu, fechou a porta e meteu a correr pela rua oposta.
‑ Com efeito, tens razão, Planchet, tudo isso me parece muito suspeito, e podes estar tranquilo que não lhe pagaremos a renda enquanto a coisa não nos for categoricamente explicada.
‑ O senhor graceja, mas verá...
‑ Que queres, Planchet, o que tem de acontecer está escrito!
‑ O senhor não desiste portanto do seu passeio desta noite?
‑ Muito pelo contrário, Planchet, quantos mais motivos tenho para desconfiar do Sr. Bonacieux, mais acho que devo ir ao encontro que me marcaram nessa carta que tanto te preocupa.
‑ Então, se é essa a resolução do senhor...
‑ Inabalável meu amigo. Portanto, às nove horas está por aqui; virei buscar‑te.
Vendo que não havia nenhuma esperança de levar o amo a renunciar ao seu projecto, Planchet soltou um profundo suspiro e pôs‑se a escovar o terceiro cavalo.
Quanto a d'Artagnan, como no fundo era um rapaz cheio de prudência, em vez de ir para casa, foi almoçar com o padre gascão que num momento de penúria dos quatro amigos lhes oferecera um pequeno‑almoço de chocolate.
O PAVILHÃO
Às nove horas, d'Artagnan estava no aquartelamento das Guardas; encontrou Planchet armado e equipado. O quarto cavalo chegara.
Planchet estava armado com o seu mosquetão e uma pistola.
D'Artagnan tinha a sua espada, mas meteu duas pistolas no cinturão; depois, montaram a cavalo e saíram sem ruído. Era noite fechada e ninguém os viu sair. Planchet colocou‑se atrás do amo e cavalgou a dez passos de distância.
D'Artagnan atravessou os cais, saiu pela Porta da Conferência e seguiu então o caminho, bem mais belo naquela época do que hoje, que levava a Saint‑Cloud.
Enquanto estiveram na cidade, Planchet guardou respeitosamente a distância que se impusera; mas assim que o caminho começou a tornar‑se mais deserto e escuro, aproximou‑se devagarinho. Deste modo, quando entrou no bosque de Bolonha encontrou‑se muito naturalmente a cavalgar ao lado do amo. Com efeito, não devemos ignorar que a oscilação das grandes árvores e o reflexo do luar nas matas sombrias lhe causava viva inquietação. D'Artagnan adivinhou que se passava com o lacaio algo extraordinário e perguntou‑lhe:
‑ Então, Sr. Planchet, que tendes?
‑ Não vos parece, senhor, que os bosques são como as igrejas? ‑ Porquê, Planchet?
‑ Porque nem numas nem noutros as pessoas ousam falar alto.
‑ Por que não ousas falar alto, Planchet, porque tens medo?
‑ Sim, tenho medo de ser ouvido, senhor.
‑ Medo de ser ouvido! Mas a nossa conversa não tem nada de imoral, meu caro Planchet, e ninguém encontraria motivo para nos criticar.
‑ Ah, senhor ‑ respondeu Planchet, voltando à sua ideia fixa ‑, garanto‑vos que o Sr. Bonacieux tem qualquer coisa de dissimulado nos olhos e de desagradável na forma como mexe os lábios!
‑ Por que diabo pensas em Bonacieux?
‑ Senhor, as pessoas pensam no que podem e não no que querem.
‑ És um poltrão, Planchet!
‑ Senhor, não confundamos a prudência com a poltronice; a prudência é uma virtude.
‑ E tu és virtuoso, não é verdade, Planchet?
‑ Senhor, não é o cano de um mosquete que brilha ali adiante? Devíamos baixar a cabeça.
‑ Na verdade ‑ murmurou d'Artagnan, a quem as recomendações do Sr. de Tréville acudiam à memória ‑, na verdade, este animal acabará por me meter medo...
Pôs o cavalo a trote.
Planchet seguiu o movimento do amo exactamente como se fosse a sua sombra e encontrou‑se a trotar ao pé dele.
‑ Vamos cavalgar assim toda a noite, senhor? ‑ perguntou.
‑ Não, Planchet, porque tu chegaste.
‑ Cheguei como? e o senhor?
‑ Eu tenho de dar ainda mais uns passos.
‑ E o senhor deixa‑me aqui sozinho?
‑ Tens medo, Planchet?
‑ Não, mas quero apenas observar ao senhor que a noite será muito fria, que os resfriamentos provocam reumatismos e que um lacaio com reumatismo é um pobre servidor, sobretudo para um amo activo como o senhor.
‑ Bom, se tiveres frio, Planchet, entra num daqueles botequins que vês lá adiante e espera‑me amanhã de manhã, às seis horas, defronte da porta.
‑ Senhor, bebi e comi respeitosamente o escudo que me destes esta manhã, de modo que não me resta nem um mísero soldo para o caso de ter frio.
‑ Aqui tens uma pistola. Até amanhã.
D'Artagnan desceu do cavalo, atirou as rédeas para o braço de Planchet e afastou‑se rapidamente, envolto na sua capa.
‑ Meu Deus, estou cheio de frio! ‑ exclamou Planchet assim que perdeu o amo de vista; e com a pressa que tinha de se aquecer apressou‑se a ir bater à porta de uma casa com todos os atributos próprios de um botequim dos subúrbios.
Entretanto, d'Artagnan, que metera por um atalho, continuava o seu caminho e alcançava Saint‑Claud. Mas em vez de seguir pela rua principal, virou por detrás do palácio, foi dar a uma espécie de ruela bastante afastada e em breve se encontrou diante do pavilhão indicado, situado num ponto absolutamente deserto. Um grande muro, à esquina do qual ficava o pavilhão, ocupava um lado da ruela, e do outro uma sebe defendia dos transeuntes um jardinzinho ao fundo do qual se erguia uma modesta cabana.
Chegara ao ponto do encontro, e como lhe não tinham dito que anunciasse a sua presença por meio de algum sinal, esperou.
Não se ouvia nenhum ruído; dir‑se‑ia estar‑se a cem léguas da capital. D'Artagnan encostou‑se à sebe, depois de deitar uma olhadela para trás de si. Para lá da sebe, do jardim e da cabana, um nevoeiro denso envolvia a imensidade onde dormia Paris, vazia, hiante, imensidade onde brilhavam alguns pontos luminosos, estrelas fúnebres daquele inferno.
Mas para d'Artagnan todos os aspectos se revestiam de uma forma agradável, todas as ideias tinham um sorriso, todas as trevas eram diáfanas. A hora do encontro ia soar.
Com efeito, passados alguns instantes a torre sineira de Saint‑Cloud deixou cair lentamente dez badaladas da sua bocarra mugidora.
Havia qualquer coisa de lúgubre naquela voz de bronze que se lamentava assim no meio da noite.
Mas cada uma das horas que compunham a hora esperada vibrava harmoniosamente no coração do jovem.
Tinha os olhos fixos no pavilhãozinho situado à esquina da rua, com todas as janelas fechadas por persianas, excepto uma só, no primeiro andar.
Através dessa janela brilhava uma luz suave que prateava a folhagem trémula de duas ou três tílias que se erguiam, formando grupo, fora do parque. Evidentemente, atrás daquela janelinha tão graciosamente iluminada esperava‑o a bonita Sr.a Bonacieux.
Embalado por esta terna ideia, d'Artagnan esperou da sua parte cerca de meia hora, sem qualquer impaciência, de olhos postos no encantador pavilhão, de que distinguia parte do tecto de molduras douradas, que atestavam a elegância do resto do aposento.
Os sinos de Saint‑Cloud deram dez e meia.
Desta vez, sem que d'Artagnan compreendesse porquê, percorreu‑lhe as veias um arrepio. Talvez o frio começasse a invadi‑lo e tomasse por impressão moral uma sensação exclusivamente física.
Depois acudiu‑lhe a ideia de que talvez tivesse lido mal e o encontro fosse para as onze horas.
Aproximou‑se da janela, colocou‑se debaixo de um raio de luz, tirou a carta da algibeira e releu‑a. Não se enganara: o encontro era, de facto, às dez horas.
Voltou para o seu posto; começava a estar inquieto com aquele silêncio e aquela solidão.
Soaram onze horas.
D'Artagnan começou a temer que tivesse realmente acontecido alguma coisa à Sr.a Bonacieux.
Bateu três vezes as mãos, sinal habitual dos apaixonados; mas ninguém lhe respondeu, nem mesmo o eco.
Pensou então com certo despeito que talvez a jovem tivesse adormecido enquanto o esperava.
Aproximou‑se do muro e tentou subi‑lo; mas o muro estava rebocado de novo e d'Artagnan partiu inutilmente as unhas.
Reparou então nas árvores, cujas folhas continuavam a ser prateadas pela luz, e como uma delas se apresentava saliente em relação ao caminho pensou que do meio dos seus ramos o seu olhar poderia penetrar no pavilhão.
A árvore era fácil de trepar. De resto, d'Artagnan contava apenas vinte anos e por consequência lembrava‑se dos seus tempos de escola. Num instante encontrou‑se no meio dos ramos e através dos vidros transparentes os seus olhos mergulharam no interior do pavilhão.
Coisa estranha e que fez tremer d'Artagnan da planta dos pés à raiz dos cabelos: aquela luz suave, aquela calma lamparina, iluminava uma cena de desordem espantosa.
Um dos vidros da janela estava partido, a porta da sala fora arrombada e pendia dos gonzos semipartida; uma mesa que devia ter estado posta para uma ceia elegante jazia por terra; as garrafas estilhaçadas e os frutos esmagados juncavam o pavimento; tudo testemunhava naquela sala uma luta violenta e desesperada. d'Artagnan julgou mesmo reconhecer no meio daquela desordem estranha pedaços de roupas e algumas manchas de sangue na toalha e nos cortinados.
Apressou‑se a descer para a rua, com o coração a pulsar‑lhe horrivelmente; queria ver se não encontraria outros vestígios de violência.
A luzinha suave continuava a brilhar na noite calma. D'Artagnan verificou então, coisa que não notara ao princípio, porque nada o impelira a esse exame, que o solo, batido nuns lados e esburacado noutros, apresentava vestígios confusos de passos de homens e de patas de cavalos. Além disso, as rodas de uma carruagem que parecia ter vindo de Paris tinham deixado na terra mole sulcos profundos que não iam além do pavilhão e voltavam para Paris.
Por fim, d'Artagnan, prosseguindo nas suas buscas, encontrou junto do muro uma luva de mulher rasgada. Contudo essa luva, em todos os sítios onde não tocara na terra lamacenta, estava impecável. Era uma dessas luvas perfumadas que os apaixonados gostam de arrancar de uma bonita mão.
À medida que prosseguia as suas investigações, d'Artagnan sentia um suor mais abundante e gelado perlar‑lhe a testa, o coração apertar‑se‑lhe de horrível angústia e a respiração tornar‑se‑lhe arquejante; e entretanto dizia para consigo, a fim de se tranquilizar, que aquele pavilhão talvez não tivesse nada de comum com a Sr.a Bonacieux; que a jovem lhe marcara encontro diante do pavilhão e não no pavilhão; que podia ter sido retida em Paris pelo seu serviço, talvez pelo ciúme do marido.
Mas todos estes raciocínios caíam pela base ou eram destruídos, derrubados, por essa sensação de dor íntima que em certas ocasiões se apodera de todo o nosso ser e nos grita, através de tudo que em nós está destinado a ouvir, que uma grande desgraça paira sobre nós.
Então, d'Artagnan tornou‑se quase insensato: correu para a estrada, percorreu o mesmo caminho que já percorrera, dirigiu‑se para a barca e interrogou o barqueiro.
Por volta das sete horas da noite o barqueiro fizera atravessar uma mulher envolta numa capa preta, que parecia ter o maior interesse em não ser reconhecida; mas precisamente devido às precauções que tomava o barqueiro prestara‑lhe mais atenção e verificara que a mulher era nova e bonita.
Havia então, como ainda hoje há, muitas mulheres jovens e bonitas que vinham a Saint‑Cloud e tinham interesse em não ser vistas; contudo, d'Artagnan não duvidou um instante que fosse a Sr.a Bonacieux aquela em que reparara o barqueiro.
D'Artagnan aproveitou a lanterna acesa na cabana do barqueiro para reler mais uma vez o bilhete da Sr.a Bonacieux e assegurar‑se de que não se enganara, que o encontro era de facto em Saint‑Cloud e não noutro sítio, diante do pavilhão do Sr. de Estrèes e não noutra rua.
Tudo concorria para provar a d'Artagnan que os seus pressentimentos eram certos e que acontecera uma grande desgraça.
Voltou pelo caminho do palácio a correr; talvez durante a sua ausência tivesse acontecido algo de novo no pavilhão e o esperassem lá informações.
A ruela continuava deserta e a mesma luz calma e suave saía pela janela.
D'Artagnan pensou então na cabana cega e muda, mas que sem dúvida vira e talvez pudesse falar.
A cancela estava fechada, mas ele saltou por cima da sebe e apesar dos ladridos do cão acorrentado aproximou‑se da cabana.
Às primeiras pancadas que bateu ninguém respondeu.
Um silêncio de morte reinava na cabana, tal como no pavilhão; no entanto, como a cabana era o seu último recurso, insistiu.
Em breve lhe pareceu ouvir um ligeiro ruído interior, ruído receoso, que parecia temer ele próprio ser ouvido.
Então, d'Artagnan cessou de bater e pediu, num tom tão cheio de inquietação e promessas, de terror e cortesia, que dir‑se‑ia capaz de tranquilizar o mais medroso. Por fim abriu‑se um velho postigo carcomido, ou antes entreabriu‑se e voltou a fechar‑se assim que a luz de uma candeia miserável que ardia a um canto iluminou o boldrié, o punho da espada e as coronhas das pistolas de d'Artagnan. No entanto, por muito rápido que tivesse sido o movimento, d'Artagnan tivera tempo de entrever a cabeça de um velho.
‑ Em nome do Céu, escutai - me! ‑ suplicou. ‑ Esperava alguém que não vem e morro de inquietação. Ter‑lhe‑á acontecido algum mal nas imediações? Falai.
A janela tornou a abrir‑se lentamente e apareceu de novo a mesma cara: só que estava ainda mais pálida do que da primeira vez.
D'Artagnan contou ingenuamente a sua história, embora omitindo os nomes. Disse que tinha um encontro marcado com uma jovem diante do pavilhão e que, não a vendo chegar, trepara pela tília e à luz da lamparina vira a desordem da sala.
O velho escutou‑o atentamente, acenando em sinal de concordância; depois, quando d'Artagnan terminou, abanou a cabeça com um ar que não anunciava nada de bom.
‑ Que quereis dizer? ‑ perguntou d'Artagnan. ‑ Em nome do Céu, explicai‑vos!
‑ Não me pergunteis nada, senhor ‑ respondeu o velho. ‑ Porque se vos dissesse o que vi, com toda a certeza não me aconteceria nada de bom.
‑ Vistes portanto qualquer coisa? ‑ insistiu d'Artagnan. ‑ Nesse caso, por Deus ‑ continuou, dando‑lhe uma pistola ‑, dizei, dizei o que vistes e dou‑vos a minha palavra de gentil‑homem de que nem uma das vossas palavras me sairá da boca.
O velho leu tanta franqueza e dor no rosto de d'Artagnan que lhe fez sinal para escutar e lhe disse em voz baixa:
‑ Eram mais ou menos nove horas. Ouvira barulho na rua, tive curiosidade de saber o que seria, mas quando me aproximei da porta verifiquei que procuravam entrar. Como sou pobre e não tenho medo que me roubem, abri e vi três homens a poucos passos de mim. No escuro estava uma carruagem com cavalos atrelados e cavalos de montar. Os cavalos de montar pertenciam evidentemente aos três homens, que estavam vestidos de cavaleiros.
«‑Que desejais, meus bons senhores? ‑ perguntei.
»Tens uma escada? ‑ perguntou‑me o que parecia o chefe da escolta.
«Tenho, sim, senhor; aquela com que apanho a fruta.
»Dá‑no‑la e volta para casa. Aqui tens um escudo pelo incómodo que te causamos. Lembra‑te apenas de que, se disseres uma palavra a respeito do que vais ver e ouvir (porque verás e escutarás, tenho a certeza, por mais que te ameacemos), estarás perdido.»
‑ Depois destas palavras, atirou‑me um escudo, que apanhei, e levou‑me a escada.
«Efectivamente, depois de fechar a porta da sebe atrás deles, fingi entrar em casa, mas saí imediatamente pelas traseiras e, deslizando no escuro, alcancei aquele tufo de sabugueiro, do meio do qual podia ver tudo sem ser visto.
«Os três homens tinham feito avançar a carruagem sem nenhum ruído e dela tiraram um homenzinho gordo, baixo e grisalho, pobremente vestido de escuro, o qual subiu com precaução a escada, olhou sorrateiramente para dentro da sala, desceu com pezinhos de lã e informou em voz baixa:
«- É ela!»
«Imediatamente aquele que falara comigo se aproximou da porta do pavilhão, abriu‑a com uma chave que trazia consigo, fechou a porta e desapareceu; ao mesmo tempo, os outros dois homens subiram a escada. O velho baixinho permanecia à portinhola, o cocheiro mantinha preparados os cavalos da carruagem e um lacaio os cavalos de sela.
«De súbito, soaram grandes gritos no pavilhão, uma mulher correu Para a janela e abriu‑a como que para se atirar dela abaixo. Mas assim que viu os dois homens recuou e eles entraram na sala atrás dela.
»Então não vi mais nada, mas ouvi o barulho dos móveis a partirem‑se. A mulher gritava e pedia socorro, mas os seus gritos não tardaram a ser abafados. Os três homens aproximaram‑se da janela com a mulher nos braços; dois desceram pela escada e transportaram‑na para a carruagem, onde o velho baixinho entrou atrás dela. O que ficara no pavilhão fechou a janela, saiu pouco depois pela porta e assegurou‑se de que a mulher estava na carruagem. Os seus companheiros esperavam‑no já a cavalo e ele saltou também para a sela; o lacaio reocupou o seu lugar ao pé do cocheiro; a carruagem afastou‑se a galope, escoltada pelos três cavaleiros, e tudo acabou. A partir daí não vi nem ouvi mais nada.» Esmagado por tão terrível notícia, d'Artagnan ficou imóvel e mudo, enquanto todos os demónios da cólera e do ciúme bramiam no seu coração.
‑ Então, gentil‑homem ‑ procurou animá‑lo o velho, em quem aquele desespero mudo causava decerto mais efeito do que gritos e lágrimas ‑, então, não vos desoleis; eles não a mataram e isso é o essencial.
‑ Sabeis mais ou menos quem era o homem que comandava essa expedição infernal? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Não o conheço.
‑ Mas como vos falou pudestes vê‑lo...
‑ Ah! São os seus sinais o que me pedis? ‑Sim.
‑ Alto, magro, moreno, bigode e olhos pretos, ar de gentil‑homem.
‑ Exacto! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Outra vez ele, sempre ele! É o meu demónio, ao que parece! E o outro?
‑Qual?
‑ O baixinho.
‑ Oh, esse não era nenhum fidalgo, garanto‑vos! Aliás, não trazia espada e os outros tratavam‑no sem nenhuma consideração.
‑ Algum lacaio ‑ murmurou d'Artagnan. ‑ Pobre mulher! Pobre mulher, que te terão feito?
‑ Prometeste‑me segredo ‑ lembrou o velho.
‑ E renovo‑vos a promessa. Estai tranquilo, sou um gentil‑homem e um gentil‑homem só tem uma palavra; e eu dei‑vos a minha.
D'Artagnan retomou, abatido, o caminho da barca. Tão depressa não podia crer que fosse a Sr.a Bonacieux e esperava encontrá‑la no Louvre no dia seguinte, como temia que ela tivesse tido um namorico com qualquer outro e que um despeitado a tivesse surpreendido e mandado raptar. Hesitava, desolava‑se, desesperava.
«Oh, se tivesse cá os meus amigos, teria ao menos alguma esperança de a encontrar! Mas quem sabe o que aconteceu a eles próprios?», dizia para consigo.
Era cerca da meia‑noite; era preciso encontrar Planchet. D'Artagnan fez com que lhe abrissem sucessivamente todos os botequins em que divisou alguma luz; nos primeiros não encontrou Planchet.
No sexto, começou a pensar que a busca era de resultado problemático. D'Artagnan marcara encontro ao lacaio apenas às seis da manhã e para onde quer que tivesse ido Planchet estava no seu direito.
Além disso, assaltou‑o a ideia de que permanecendo nas imediações do local onde o acontecimento se dera talvez obtivesse algum esclarecimento acerca do misterioso rapto. Portanto, no sexto botequim, como dissemos, d'Artagnan deteve‑se, pediu uma garrafa de vinho de primeira qualidade, encostou‑se ao canto mais escuro e decidiu‑se a esperar assim que amanhecesse. Mas mais uma vez a sua esperança foi lograda, pois embora escutasse atentamente não ouviu, no meio das pragas, das graçolas e das obscenidades que trocavam entre si os operários, os lacaios e os carreiros que constituíam a respeitável sociedade de que fazia parte, nada que o pudesse pôr na pista da pobre mulher raptada. Teve pois, uma vez bebida a garrafa, por não ter mais nada que fazer e para não despertar suspeitas, de procurar no seu canto a posição mais satisfatória possível e de dormir de qualquer maneira. Mas d'Artagnan tinha, não o esqueçamos, vinte anos, e nessa idade o sono tem direitos imprescindíveis que reclama imperiosamente, mesmo dos corações mais desesperados.
Por volta das seis da manhã, d'Artagnan acordou com esse mal‑estar que acompanha habitualmente o amanhecer depois de uma noite mal passada. Não perdeu tempo com abluções; apalpou‑se para saber se não teriam aproveitado o seu sono para o roubar, e tendo encontrado o seu diamante no dedo, a sua bolsa na algibeira e as suas pistolas à cintura, levantou‑se, pagou a sua garrafa e saiu para ver se teria mais sorte na procura do criado de manhã do que de noite. Com efeito, a primeira coisa que distinguiu através do nevoeiro húmido e acinzentado foi o honesto Planchet que, com os dois cavalos pela mão, o esperava à porta de uma taberna miserável, diante da qual d'Artagnan passara sem sequer suspeitar da sua existência.
PORTHOS
Em vez de se dirigir directamente para casa, d'Artagnan desmontou à porta do Sr. de Tréville e subiu rapidamente a escada. Desta vez estava disposto a contar‑lhe tudo o que se passara. Dar‑lhe‑ia sem dúvida os bons conselhos a respeito de todo aquele caso e depois, como o Sr. de Tréville via quase diariamente a rainha, talvez pudesse obter de Sua Majestade alguma informação acerca da pobre mulher a quem decerto faziam pagar a sua dedicação à ama.
O Sr. de Tréville escutou o relato do jovem com uma gravidade que provava ver outra coisa em toda aquela aventura que não uma intriga amorosa. Por isso, quando d'Artagnan acabou resmungou:
‑ Hum, tudo isso me cheira à légua a Sua Eminência!...
‑ Mas que fazer? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Nada, absolutamente nada, neste momento, a não ser deixar Paris, como já vos disse, o mais depressa possível. Falarei com a rainha e contar‑lhe‑ei os pormenores do desaparecimento dessa pobre mulher, que ela ignora sem dúvida: esses pormenores orientá‑la‑ão pelo seu lado e no vosso regresso talvez eu tenha já alguma boa notícia para vos dar. Confiai em mim.
D'Artagnan sabia que, apesar de gascão, o Sr. de Tréville não tinha o hábito de prometer, e que quando prometia fazia mais do que prometera. Despediu‑se portanto cheio de reconhecimento pelo passado e pelo futuro, e o digno capitão, que pela sua parte experimentava vivo interesse por aquele jovem tão bravo e resoluto, apertou‑lhe afectuosamente a mão e desejou‑lhe boa viagem.
Decidido a pôr imediatamente em prática os conselhos do Sr. de Tréville, d'Artagnan encaminhou‑se para a Rua dos Fossoyeurs, a fim de mandar preparar a sua bagagem. Ao aproximar‑se de casa, reconheceu o Sr. Bonacieux, de roupão, no limiar da sua porta. Tudo o que lhe dissera na véspera o prudente Planchet a respeito do carácter sinistro do senhorio acudiu então ao espírito de d'Artagnan, que o olhou mais atentamente do que até ali. Com efeito, além da sua palidez macilenta e doentia que indicava a infiltração da bílis no sangue e que de resto poderia ser apenas acidental, d'Artagnan notou qualquer coisa velhacamente pérfida no aspecto das rugas do seu rosto. Um tratante não ri da mesma maneira que um homem honesto, um hipócrita não chora as mesmas lágrimas que um homem de boa fé. Toda a falsidade é uma máscara, e por muito bem feita que seja essa máscara consegue‑se sempre, com um bocadinho de atenção, distingui‑la do rosto.
Pareceu portanto a d'Artagnan que o Sr. Bonacieux trazia uma máscara, e até que essa máscara era das mais desagradáveis à vista.
Consequentemente, dominado pela repugnância que experimentava pelo homem, ia a passar por ele sem lhe falar quando, como na véspera, o Sr. Bonacieux o interpelou.
‑ Então, então, parece que fazemos grandes noitadas, hem?... Sete horas da manhã, apre! Parece‑me que vos desviais um tanto dos hábitos inculcados e que entrais em casa à hora a que os outros saem.
‑ Ninguém vos fará a mesma censura, mestre Bonacieux; sois o modelo das pessoas ordenadas. É certo que quando se possui uma jovem e bonita mulher não há necessidade de correr atrás da felicidade: é a felicidade que vem ao nosso encontro. Não é verdade, Sr. Bonacieux?
Bonacieux tornou‑se pálido como a morte e esboçou um sorriso amarelo. Mas sempre foi dizendo:
‑ Oh, oh, sois um camarada pândego! Mas por onde diabo andastes esta noite, meu jovem amo? Parece que vos metestes por atalhos... i
D'Artagnan olhou para as botas, todas cobertas de lama; mas ao mesmo tempo olhou para os sapatos e para as meias do retroseiro, que dir‑se‑ia terem andado pelo mesmo lamaçal, pois uns e outras estavam cobertas de manchas absolutamente idênticas.
Então, uma ideia súbita atravessou o espírito de d'Artagnan: o homenzinho gordo, baixo e grisalho, aquela espécie de lacaio vestido de escuro, tratado sem consideração pelos espadachins que constituíam a escolta, era o próprio Bonacieux.
O marido presidira ao rapto da mulher.
Apoderou‑se de d'Artagnan uma terrível vontade de saltar à garganta do retroseiro e estrangulá‑lo; mas, como já dissemos, era um rapaz muito prudente e conteve‑se. No entanto, a modificação que se operara no seu rosto era tão visível que Bonacieux assustou‑se e tentou recuar um passo. Mas encontrava‑se precisamente diante do batente da porta que estava fechado e o obstáculo com que deparou obrigou‑o a conservar‑se no mesmo lugar.
‑ Sois um brincalhão, meu excelente amigo ‑ redarguiu d'Artagnan. ‑ Porque se as minhas botas estão precisadas de ser lavadas à esponja, as vossas meias e os vossos sapatos não o estão menos. Andastes às pegas, mestre Bonacieux? Diabo, isso seria imperdoável num homem da vossa idade e que ainda por cima tem uma mulher nova e bonita como a vossa!
‑ Meu Deus, não! ‑ protestou Bonacieux. ‑ É que ontem fui a Saint‑Mandé tirar informações acerca de uma criada sem a qual não posso de modo nenhum passar, e como os caminhos estavam maus apanhei toda esta lama que ainda não tive tempo de limpar.
A localidade que Bonacieux indicava como sendo aquela onde estivera foi uma nova prova em apoio das suspeitas concebidas por d'Artagnan. Bonacieux dissera Saint‑Mandé porque Saint‑Mandé ficava em direcção diametralmente oposta a Saint‑Cloud.
Esta probabilidade foi a sua primeira consolação. Se Bonacieux soubesse onde estava a mulher, seria sempre possível, empregando meios extremos, obrigar o retroseiro a abrir a boca e revelar o seu segredo. Tratava‑se apenas de transformar tal probabilidade em certeza.
‑ Desculpe, meu caro Sr. Bonacieux, se fui indelicado consigo ‑ disse d'Artagnan. ‑ Mas nada me irrita mais do que não dormir e além disso tenho uma sede dos diabos. Permiti‑me tomar um copo de água em vossa casa; como sabeis, é coisa que não se recusa entre vizinhos.
E sem esperar autorização do senhorio, d'Artagnan entrou rapidamente na casa e deitou uma olhadela à cama. A cama não estava desfeita. Bonacieux não se deitara. Regressara havia apenas uma ou duas horas; acompanhara a mulher até ao local para onde a tinham levado ou pelo menos até à primeira muda.
‑ Obrigado, mestre Bonacieux ‑ disse d'Artagnan, despejando o copo. ‑ Era tudo o que queria de vós. Agora vou para casa, para que Planchet me escove as botas, e quando ele acabar mandar‑vo‑lo‑ei, se quiserdes, para vos escovar os sapatos.
E deixou o retroseiro embasbacadíssimo com tão singular despedida e perguntando a si mesmo se não se teria metido ele próprio na boca do lobo.
D'Artagnan encontrou Planchet ao cimo da escada, muito agitado.
‑ Ah, senhor ‑ exclamou Planchet assim que viu o amo ‑, temos novidade e estava ansioso que chegásseis!
‑ Porquê? Que aconteceu? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Oh, dava‑vos um doce, senhor, se adivinhásseis a visita que recebi por vós na vossa ausência!
‑ Quando?
‑ Há cerca de meia hora, quando estáveis com o Sr. de Tréville.
‑ E quem foi que veio? Vamos, fala.
‑ O Sr. de Cavois.
‑ O Sr. de Cavois?
‑ Em pessoa.
‑ O capitão dos guardas de Sua Eminência?
‑ O próprio.
‑ Vinha prender‑me?
‑ Desconfio que sim, senhor, apesar do seu ar bajulador.
‑ Tinha ar bajulador, dizes tu?
‑ Quero dizer que era todo mel, senhor.
‑ Deveras?
‑ Vinha, disse, da parte de Sua Eminência, que vos desejava muitas felicidades, pedir‑vos que o acompanhásseis ao Palais‑Royal.
‑ E tu que lhe respondestes?
‑ Que era impossível, atendendo a que não estáveis em casa, como ele podia ver.
‑ E que disse ele?
‑ Que não deixásseis de passar por sua casa durante o dia. «Diz ao teu amo que Sua Eminência está muito contente com ele e que a sua fortuna talvez dependa desse encontro».
‑ A ratoeira é demasiado grosseira para o cardeal ‑ comentou o jovem, sorrindo.
‑ Foi também o que me pareceu e por isso respondi que ficaríeis desolado quando regressásseis.
«‑ Aonde foi ele? ‑ perguntou o Sr. de Cavois.»
‑ A Troyes, na Champanha ‑ respondi.»
‑ E quando partiu?»
‑ Ontem à noite.»
‑ Planchet, meu amigo ‑ interrompeu‑o d'Artagnan ‑, és realmente um homem precioso.
‑ Como compreendeis, senhor, pensei que seria sempre tempo de me desmentirdes, se desejásseis falar ao Sr. de Cavois, dizendo que não chegáreis a partir; nesse caso, seria eu quem teria mentido, e como não sou gentil‑homem posso mentir.
‑ Sossega, Planchet, que conservarás a tua reputação de homem verídico: partimos dentro de um quarto de hora.
‑ Era o conselho que vos ia dar, senhor. E aonde vamos, se não sou demasiado curioso?
‑ Meu Deus, vamos para o lado oposto àquele para onde disseste que Íamos. Aliás, não tens tanta pressa de ter notícias de Grimaud, de Mousqueton e de Bazin como eu de saber o que aconteceu a Athos, Porthos e Aramis?
‑ Tenho, sim senhor ‑ respondeu Planchet ‑, e partirei quando quiserdes; o ar da província é melhor para nós, do que o ar de Paris. Portanto...
‑ Portanto, faz a nossa trouxa, Planchet, e partamos; eu vou à frente, de mãos nas algibeiras, para que não desconfiem de nada. Tu vai ter comigo ao aquartelamento das Guardas. A propósito, Planchet, creio que tens razão a respeito do nosso senhorio e que se trata decididamente de um grande canalha.
‑ Acreditai sempre em mim, senhor, quando vos disser alguma coisa; sou fisionomista!
D'Artagnan desceu à frente, como se combinara; depois, para não ter nada de que se censurar, dirigiu‑se pela última vez a casa dos seus três amigos: não tinham recebido nenhuma notícia deles; apenas chegara para Aramis uma carta perfumadissima e de letra elegante e miúda. D'Artagnan encarregou‑se dela. Dez minutos depois, Planchet encontrava‑se com ele nas cavalariças do aquartelamento das Guardas. Para não perderem mais tempo, d'Artagnan já selara ele próprio o seu cavalo.
‑ E agora ‑ disse a Planchet quando este juntou o saco de sela ao equipamento‑, agora sela os outros três e partamos.
‑ Parece‑vos que iremos mais depressa cada um com dois cavalos? ‑ perguntou Planchet com o seu ar trocista.
‑ Não, senhor gracejador de mau gosto ‑ respondeu d'Artagnan ‑, mas com os nossos quatro cavalos poderemos trazer os nossos três amigos, se ainda os encontrarmos vivos.
‑ O que seria uma grande sorte ‑ observou Planchet. ‑ Mas enfim, não se deve desesperar da misericórdia de Deus.
‑ Ámen ‑ disse d'Artagnan, montando a cavalo.
Saíram ambos do aquartelamento das Guardas e afastaram‑se cada um por uma extremidade da rua. Um devia deixar Paris pela Barreira de Villette e outro pela Barreira de Montmartre, para se juntarem depois de Saint‑Denis, manobra estratégica que executada com igual pontualidade foi coroada dos mais felizes resultados. D'Artagnan e Planchet entraram juntos em Pierrefitte.
É preciso dizer que Planchet era mais corajoso de dia do que de noite.
Contudo, a sua prudência natural não o abandonava um só instante; não esquecera nenhum dos incidentes da primeira viagem e considerava inimigos todos aqueles que encontrava na estrada. Resultava daí andar constantemente de chapéu na mão, o que lhe valia severas reprimendas da parte de d'Artagnan, que receava que graças àquele excesso de polidez o tomassem pelo criado de um homem de baixa condição.
No entanto, fosse porque efectivamente os transeuntes se impressionassem com a urbanidade de Planchet, fosse porque desta vez ninguém se encontrasse postado no caminho do jovem, o certo é que os nossos dois viajantes chegaram a Chantilly sem acidente algum e desmontaram à porta da estalagem do Grand Saint Martin, a mesma em que tinham parado aquando da primeira viagem.
Ao ver um jovem acompanhado de um lacaio com dois cavalos à mão, o estalajadeiro veio respeitosamente à porta. E como já tinha percorrido onze léguas, d'Artagnan julgou a propósito deter‑se, quer Porthos estivesse, quer não estivesse na estalagem. Além disso, talvez não fosse prudente informar‑se logo de entrada do que acontecera ao mosqueteiro. Resultou destas reflexões que d'Artagnan, sem pedir qualquer notícia de quem quer que fosse, desmontou, recomendou os cavalos ao criado, entrou num compartimentozinho destinado a receber aqueles que desejavam estar sós e pediu ao estalajadeiro uma garrafa do seu melhor vinho e um pequeno‑almoço tão bom quanto possível, pedido que corroborou ainda mais a boa opinião que o estalajadeiro formara à primeira vista do seu viajante.
Por isso, d'Artagnan foi servido com celeridade miraculosa. O Regimento das Guardas recrutava os seus elementos entre os primeiros gentis‑homens do reino, e d'Artagnan, acompanhado de um lacaio e viajando com quatro cavalos magníficos, não podia, apesar da simplicidade do seu uniforme, deixar de causar sensação. O estalajadeiro quis servi‑lo pessoalmente; vendo isso, d'Artagnan mandou vir dois copos e encetou a seguinte conversa:
‑ Meu caro estalajadeiro ‑ disse d'Artagnan, enchendo os dois copos ‑, pedi‑vos o vosso melhor vinho e se me enganastes ides ser castigado porque pecastes, atendendo a que como detesto beber sozinho, ides beber comigo. Pegai pois nesse copo e bebamos. A que beberemos, para não ferir nenhuma susceptibilidade? Bebamos à prosperidade do vosso estabelecimento!
‑ Vossa Senhoria honra‑me ‑ respondeu o estalajadeiro ‑ e agradeço‑vos muito sinceramente os vossos bons desejos.
‑ Mas não vos iludais ‑ prosseguiu d'Artagnan ‑, pois talvez haja mais egoísmo do que pensais no meu brinde: não há como os estabelecimentos prósperos para se ser bem recebido; nos periclitantes, anda tudo ao deus‑dará e o viajante é vítima das dificuldades do estalajadeiro; ora eu, que viajo muito e sobretudo por esta estrada, gostaria de ver todos os estalajadeiros fazerem fortuna.
‑ Com efeito ‑ disse o estalajadeiro ‑, parece‑me não ser a primeira vez que tenho a honra de vos ver, senhor.
‑ Sim? De facto, talvez tenha passado dez vezes por Chantilly e dessas dez vezes detive‑me pelo menos três ou quatro em vossa casa. Ainda cá estive há dez ou doze dias, pouco mais ou menos, com uns amigos mosqueteiros, por tal sinal que um deles se envolveu em disputa com um estrangeiro, um desconhecido, um homem que discutiu com ele não sei porquê.
‑ Ah, sim, é verdade! ‑ exclamou o estalajadeiro. ‑ Recordo‑me perfeitamente. Não é ao Sr. Porthos que Vossa Senhoria se refere?
‑ Era precisamente esse o nome do meu companheiro de viagem. Meu Deus, meu caro estalajadeiro, dizei‑me: aconteceu‑lhe algum mal?
‑ Vossa Senhoria deve ter notado que ele não pôde continuar o seu caminho.
‑ Com efeito, prometera juntar‑se‑nos, mas nunca mais o vimos.
‑ Deu‑nos a honra de ficar aqui.
‑ Como? Deu‑vos a honra de ficar aqui?...
‑ Sim, senhor, nesta estalagem; estamos até muito preocupados.
‑ E com quê?
‑ Com certas despesas que tem feito...
‑ Bom, se tem feito despesas pagá‑las‑á!
‑ Ah, senhor, que peso me tirais de cima! Fizemos‑lhe grandes adiantamentos e ainda esta manhã o cirurgião nos declarava que se o Sr. Porthos lhe não pagasse era a mim que viria cobrar, visto ter sido eu quem o mandara chamar.
‑ Isso quer dizer que Porthos está ferido?
‑ Não vo‑lo saberia dizer, senhor.
‑ Como, não saberíeis dizer‑mo?... No entanto, deveríeis estar melhor informado do que ninguém!
‑ Pois sim, mas no nosso estado não dizemos tudo o que sabemos, senhor, sobretudo depois de nos prevenirem de que as nossas orelhas responderiam pela nossa língua.
‑ Posso ver Porthos?
‑ Certamente, senhor. Tomai a escada, subi ao primeiro andar e batei no nº 1. Mas preveni que sois vós...
‑ Por que hei‑de prevenir que sou eu?
‑ Porque poderia acontecer‑vos algum contratempo...
‑ E que contratempo, não me dizeis?
‑ O Sr. Porthos tomar‑vos por alguém da casa e, num gesto de cólera, trespassar‑vos com a espada ou dar‑vos um tiro na cabeça.
‑ Que lhe fizestes para isso?
‑ Pedimos‑lhe dinheiro...
‑ Oh, diabo, agora compreendo! É um pedido que Porthos recebe muito mal quando está sem fundos; mas neste caso sei que devia estar abonado...
‑ Era também o que pensávamos, senhor. Como a casa é muito pontual e tiramos as contas todas as semanas, ao fim de oito dias apresentámos‑lhe a dele; mas parece que aparecemos em má altura, pois à primeira palavra que pronunciámos a tal respeito mandou‑nos para o Inferno. É certo que jogara na véspera...
‑ Jogara na véspera?... E com quem?
‑ Oh, meu Deus, vá‑se lá saber! Com um fidalgo de passagem a quem desafiou para uma partida de lansquené.
‑ E, claro, o desgraçado perdeu tudo...
‑ Até o cavalo, senhor, porque quando o desconhecido se preparou para partir verificámos que o seu lacaio selava o cavalo do Sr. Porthos. Chamámos‑lhe a atenção para isso, mas respondeu‑nos que não nos metêssemos onde não éramos chamado e que o cavalo era dele. Prevenimos imediatamente o Sr. Porthos do que se passava, mas ele respondeu‑nos que éramos uns patifes por duvidar da palavra de um gentil‑homem e que se o outro dissera que o cavalo lhe pertencia é porque de facto assim era.
‑ Isso é mesmo dele ‑ murmurou d'Artagnan.
‑ Então ‑ continuou o estalajadeiro ‑, respondi‑lhe que uma vez que parecíamos destinados a não ouvir falar de pagamento, esperava que tivesse ao menos a bondade de conceder o favor da sua preferência ao meu colega o dono da Aigle d'Or, mas o Sr. Porthos respondeu‑me que a minha estalagem era melhor e preferia cá ficar.
Semelhante resposta era demasiado lisonjeira para que insistisse na sua partida. Limitei‑me portanto a pedir‑lhe que me deixasse o quarto, que é o mais bonito da estalagem, e se contentasse com um agradável gabinetezinho no terceiro andar. Mas a isto o Sr. Porthos respondeu que como esperava de um momento para o outro a sua amante, uma das maiores damas da corte, eu devia compreender que o quarto que me dava a honra de habitar em minha casa era ainda muito medíocre para semelhante pessoa.
«No entanto, embora reconhecendo a verdade do que dizia, julguei dever insistir; mas sem mesmo se dar ao incómodo de discutir comigo, pegou na pistola, pô‑la em cima da mesa‑de‑cabeceira e declarou que à primeira palavra que lhe dissessem acerca de se mudar, quer para o exterior, quer para o interior, estoiraria os miolos a quem fosse suficientemente imprudente para se meter num assunto que só a ele dizia respeito. Por isso, desde então, senhor, ninguém entra no seu quarto, a não ser o seu criado.»
‑ Mousqueton está portanto aqui?
‑ Está, sim, senhor; cinco dias depois de partir regressou de muito mau humor; parece que também teve contratempos na viagem. Infelizmente, é mais lépido do que o amo, o que o leva a, por causa dele, virar tudo do avesso, pois como pensa que se lhe pode recusar o que pede deita mão a tudo o que precisa sem pedir.
‑ Na verdade ‑ respondeu d'Artagnan ‑ sempre notei em Mousqueton uma dedicação e uma inteligência muito superiores.
‑ É possível, senhor; mas imaginai que se me acontecer deparar, só que seja quatro vezes por ano, com uma inteligência e uma dedicação semelhantes, sou um homem arruinado.
‑ Não, porque Porthos vos pagará.
‑ Hum! ‑ resmungou o estalajadeiro em tom de dúvida.
‑ É o favorito de uma grandíssima dama que não o deixará em apuros por uma miséria como a que vos deve.
‑ Se ousasse dizer o que creio a tal respeito...
‑ Que credes?
‑ Direi mais: que sei.
‑ Que sabeis?
‑ E até de que tenho a certeza.
‑ E de que tendes a certeza, vejamos?
‑ Diria que conheço essa grande dama. ‑Vós?
‑ Sim, eu.
‑ E como a conheceis?
‑ Oh, senhor, se tivesse a certeza de poder confiar na vossa descrição! ...
‑ Falai e, palavra de gentil‑homem, não vos arrependereis da vossa confiança.
‑ Pois bem, senhor: admitis que a preocupação leva a fazer muitas coisas...
‑ Que fizestes?
‑ Oh, nada a que um credor não tenha direito!
‑ Mas que foi?
‑ O Sr. Porthos entregou‑nos uma carta para essa duquesa e recomendou‑nos que a metêssemos no correio. O seu criado ainda não chegara. Como ele não podia sair do quarto, era mister que nos encarregássemos dos seus recados.
‑ E depois?
‑ Em vez de meter a carta no correio, o que nunca é muito seguro, aproveitei a oportunidade de um dos meus rapazes ir a Paris e ordenei‑lhe que a entregasse à própria duquesa. Era a melhor maneira de cumprirmos as ordens do Sr. Porthos, que tanto nos recomendara a carta, não é verdade?
‑ Mais ou menos.
‑ Pois, senhor, sabeis quem é essa grande dama?
‑ Não; só ouvi falar dela a Porthos, mais nada.
‑ Sabeis quem é essa pretensa duquesa?
‑ Repito‑vos que não a conheço.
‑ É uma velha procuradora do Châtelet, senhor, chamada Sr.a Coquenard, a qual tem pelo menos cinquenta anos e se dá ainda ares de ser ciumenta. Razão tinha eu quando achara deveras singular uma princesa morar na Rua dos Ursos.
‑ Como descobristes tudo isso?
‑ Porque ela perdeu a cabeça ao receber a carta, dizendo que o Sr. Porthos era um mulherengo e que fora novamente por causa de alguma mulher que recebera aquela estocada.
‑ Mas ele recebeu de facto alguma estocada?
‑ Oh, meu Deus que fui eu dizer!
‑ Dissestes que Porthos recebera uma estocada.
‑ Pois disse, mas ele proibira‑me tanto de o dizer!
‑ Porquê?
‑ Ora, senhor, porque se gabara de perfurar esse estrangeiro com o qual o deixastes a discutir, e foi o estrangeiro, pelo contrário, que, apesar de todas as suas bravatas, o deitou abaixo. Assim, como o Sr. Porthos è um homem muito presunçoso, excepto para com a duquesa, que julgara impressionar descrevendo‑lhe a sua aventura, não quer confessar a ninguém que recebeu uma estocada.
‑ Portanto é uma estocada que o retém na cama?
‑ E uma senhora estocada, garanto‑vos. É preciso que o vosso amigo tenha a alma muito agarrada ao corpo.
‑ Assististes ao duelo?
‑ Seguira‑os por curiosidade, senhor, de modo que vi o combate sem que os combatentes me vissem.
‑ E como foi que as coisas se passaram?
‑ Oh, não demorou muito, desde já vos digo! Puseram‑se em guarda; o estrangeiro fez uma finta e carregou; tudo tão rapidamente que quando o Sr. Porthos quis parar o bote já tinha três polegadas de ferro no peito. Caiu para trás. O estrangeiro colocou‑lhe imediatamente a ponta da espada na garganta, e o Sr. Porthos, vendo‑se à mercê do adversário, confessou‑se vencido. Depois o estrangeiro perguntou‑lhe como se chamava e ao saber que se chamava Porthos e não d'Artagnan ofereceu‑lhe o braço, acompanhou‑o até à estalagem, montou a cavalo e desapareceu.
‑ Portanto, era com o Sr. d'Artagnan que o estrangeiro pretendia bater‑se?
‑ Parece que sim.
‑ E sabeis que foi feito dele?
‑ Não; nunca o vira até ali e não o tornámos a ver depois.
‑ Muito bem, já sei o que queria saber. Agora, dizeis que o quarto de Porthos é no primeiro andar, número 1?
‑ Exacto, senhor; o mais bonito da estalagem! Um quarto que já teria tido dez oportunidades de alugar.
‑ Vamos, tranquilizai‑vos ‑ redarguiu‑lhe d'Artagnan, rindo. ‑Porthos pagar‑vos‑á com o dinheiro da duquesa Coquenard.
‑ Oh, senhor, alcoviteira ou duquesa, se abrisse os cordões à bolsa não teria importância! Mas respondeu categoricamente que estava farta das exigências e das infidelidades do Sr. Porthos e que não lhe mandaria um chavo.
‑ E destes essa resposta ao vosso hóspede?
‑ Deus nos livre! Ficaria a saber de que maneira nos tínhamos desempenhado da sua comissão.
‑ De modo que continua à espera do dinheiro?
‑ Oh, meu Deus, sim! Ontem voltou a escrever; mas desta vez foi o seu criado que meteu a carta no correio.
‑ E dizeis que a procuradora é velha e feia?
‑ Tem cinquenta anos, pelo menos, senhor, e não deve nada à beleza, segundo disse Pathaud.
‑ Nesse caso, estai tranquilo que ela se deixará comover; de resto, Porthos não vos pode dever grande coisa...
‑ Como não me pode dever grande coisa?! O seu débito anda já por umas vinte pistolas, sem contar com o médico. Oh, não se priva de nada, podeis crer! Vê‑se que está habituado a viver bem.
‑ Se a amante o abandonar, encontrará amigos, garanto‑vos. Portanto, meu caro estalajadeiro, não vos preocupais e continuai a dispensar‑lhe todos os cuidados que o seu estado exige.
‑ O senhor prometeu‑me não falar da procuradora nem dizer nada a respeito do ferimento...
‑ Está combinado; tendes a minha palavra.
‑ Oh, se ele soubesse matava‑me, podeis ter a certeza.
‑ Não tenhais medo; não é tão mau como parece.
Ditas estas palavras, d'Artagnan subiu a escada, deixando o estalajadeiro um pouco mais tranquilo a respeito das duas coisas que parecia prezar muito: o seu crédito e a sua vida.
Ao cimo da escada, na porta mais visível do corredor, estava traçado a tinta preta um número 1 gigantesco. D'Artagnan bateu e, correspondendo ao convite de entrar que recebeu de dentro, entrou.
Porthos estava deitado e jogava uma partida de lansquené com Mousqueton, para não perder a mão, enquanto um espeto carregado de perdizes girava diante do lume e a cada canto de uma grande chaminé ferviam em cima de dois fogareiros dois tachos donde se exalava um duplo cheiro a coelho e a caldeirada que deliciava o olfato. Além disso, o tampo de uma secretária e o mármore de uma cómoda estavam cobertos de garrafas vazias.
Ao ver o amigo, Porthos soltou um grande grito de alegria; e Mousqueton levantou‑se respeitosamente, cedeu‑lhe o lugar e foi dar uma olhadela aos dois tachos, cuja inspecção parecia estar‑lhe especialmente confiada.
‑ Meu Deus, sois vós! ‑ gritou Porthos a d'Artagnan. ‑ Sede bem‑vindo e desculpai‑me não ter ido ao vosso encontro. Mas ‑ acrescentou, olhando d'Artagnan com certa inquietação ‑ sabeis o que me aconteceu?
‑Não.
‑ O estalajadeiro não vos disse nada?
‑ Perguntei por vós e subi imediatamente. Porthos pareceu respirar mais livremente.
‑ Mas afinal que vos aconteceu, meu caro Porthos? ‑ continuou d'Artagnan.
‑ Aconteceu‑me que ao carregar sobre o meu adversário, a quem já brindara com três estocadas e com o qual queria acabar com a quarta, dei com o pé numa pedra e torci o joelho.
‑ Deveras?
‑ Palavra de honra! Felizmente para o patife, pois garanto‑vos que não o deixaria sair dali vivo.
‑ E que foi feito dele?
‑ Não sei; já estava bem aviado e pôs‑se ao fresco sem esperar pelo resto. E vós, meu caro d'Artagnan, que vos aconteceu?
‑ De modo ‑ continuou d'Artagnan ‑ que esse entorse, meu caro Porthos, vos retém no leito?
‑ Meu Deus, sim! Mas dentro de alguns dias já me poderei levantar.
‑ Nesse caso, por que não vos fizestes transportar para Paris? Deveis aborrecer‑vos cruelmente aqui.
‑ Era essa a minha intenção; mas, meu caro, tenho de vos confessar uma coisa.
‑Qual?
‑ Como me aborrecia cruelmente, como dizeis, e tinha na algibeira as setenta e cinco pistolas que me tínheis distribuído, convidei a subir ao meu quarto, para me distrair, um gentil‑homem que estava de passagem e ao qual propus jogarmos uma partida de dados. Ele aceitou e... as minhas setenta e cinco pistolas passaram da minha algibeira para a dele, sem contar com o meu cavalo, que também ganhou. Mas vós, meu caro d'Artagnan?
‑ Que quereis, meu caro Porthos, não se pode ser privilegiado de todas as maneiras ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Conheceis o provérbio: «Infeliz ao jogo, feliz no amor.» Sois demasiado feliz no amor para que o jogo não se vingue. Mas que vos importam os reveses da sorte? Não tendes, seu felizardo!, a vossa duquesa, que não pode deixar de vos valer neste aperto?
‑ Bom, meu caro d'Artagnan, como estava em maré de azar ‑ respondeu Porthos com o ar mais descontraído deste mundo ‑, escrevi‑lhe para que me enviasse uns cinquenta luízes de que tinha absoluta necessidade, dada a situação em que me encontrava...
‑ E então?
‑ E então... deve estar nas suas propriedades, porque não me respondeu.
‑ Deveras?
‑ Deveras. Por isso, escrevi‑lhe ontem segunda carta, ainda mais insistente do que a primeira. Mas deixemos isso, meu caro, e falemos de vós. Começava, confesso, a estar um pouco preocupado convosco.
‑ Mas o vosso estalajadeiro portou‑se bem para convosco, ao que parece, meu caro Porthos ‑ observou d'Artagnan, indicando ao doente os tachos cheios e as garrafas vazias.
‑ Assim‑assim, assim‑assim! ‑ respondeu Porthos. ‑ Há três ou quatro dias o impertinente veio‑me com a conta, mas pu‑lo fora da porta, a conta e ele; de modo que estou aqui como uma espécie de vencedor, como uma espécie de conquistador. Por isso, receando sempre ser atacado na posição, estou, como vedes, armado até aos dentes.
‑ No entanto, parece‑me que de vez em quando fazeis surtidas ‑ observou d'Artagnan, rindo.
E indicava com o dedo as garrafas e os tachos.
‑ Eu, não, infelizmente! ‑ redarguiu Porthos. ‑ Esta miserável entorse retém‑me na cama, mas Mousqueton bate o campo e fornece‑se de víveres. Mousqueton, meu amigo ‑ continuou Porthos ‑, como vedes recebemos reforços; precisamos de um suplemento de vitualhas.
‑ Mousqueton ‑ interveio d'Artagnan ‑, tendes de me fazer um favor.
‑ Qual, senhor?
‑ Dar a vossa receita a Planchet. É que poderei algum dia encontrar‑me também cercado e não seria mau que ele me proporcionasse as mesmas vantagens que proporcionais ao vosso amo.
‑ Meu Deus, senhor, nada mais fácil! ‑ respondeu Mousqueton com modéstia. ‑ É apenas preciso ser hábil. Fui criado no campo e o meu pai, nos seus momentos livres, era um pouco caçador furtivo.
‑ E no resto do tempo, que fazia?
‑ Praticava uma indústria que sempre achei excelente. ‑Qual?
‑ Como se estava no tempo das guerras entre católicos e huguenotes e ele via os católicos exterminar os huguenotes e os huguenotes exterminar os católicos, tudo em nome da religião, arranjou para seu uso uma crença mista, o que lhe permitia ser ora católico, ora huguenote. Habitualmente, passeava, de escopeta ao ombro, atrás das sebes que ladeiam os caminhos, e quando via aproximar‑se um católico sozinho a religião protestante apoderava‑se‑lhe imediatamente do espírito. Abaixava a escopeta na direcção do viajante; depois, quando estava a dez passos dele, encetava um diálogo que terminava quase sempre no abandono, por parte do viajante, da bolsa para salvar a vida. Escusado será dizer que quando via aproximar‑se um huguenote se sentia dominado por um zelo católico tão ardente que não compreendia como, um quarto de hora antes, pudera ter dúvidas sobre a superioridade da nossa santa religião. Como eu sou católico, meu pai, fiel aos seus princípios, fez o meu irmão mais velho huguenote.
‑ E como acabou esse digno homem? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Oh, da forma mais infeliz, senhor! Um dia, encontrou‑se num caminho escuso entre um huguenote e um católico com quem já tivera os seus dares e tomares e que o reconheceram; de modo que se aliaram contra ele e o enforcaram numa árvore. Depois, foram‑se gabar da excelente equipa que tinham feito no botequim da primeira aldeia que encontraram e onde estávamos a beber, o meu irmão e eu.
‑ E que fizestes? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Deixámo‑los falar ‑ respondeu Mousqueton. ‑ Depois, como à saída do botequim tomaram ambos por caminhos opostos, o meu irmão foi‑se emboscar no caminho do católico e eu no do protestante. Duas horas depois estava tudo acabado: cada um de nós tratara da saúde ao seu homem e admirava a previsão do nosso pobre pai, que tomara o cuidado de criar cada um de nós numa religião diferente.
‑ Com efeito, como dizeis, Mousqueton, o vosso pai parece‑me ter sido um figurão muito inteligente. E dizeis que nos seus tempos livres o excelente homem era caçador furtivo?
‑ É verdade, senhor, e foi ele que me ensinou a armar um laço e a colocar uma linha de fundo. Assim, quando vi que o velhaco do nosso estalajadeiro nos alimentava com carnes boas para labregos e que não caíam bem em estômagos tão delicados como os nossos, dediquei‑me um pouco à minha antiga profissão. Enquanto passeava no bosque do Sr. Príncipe, armei laços nas passagens de caça; enquanto me estiraçava sorrateiramente nos lagos de Sua Alteza, meti sorrateiramente linhas nos ditos. De modo que, graças a Deus, agora não nos faltam, como o senhor pode verificar, perdizes e coelhos, carpas e enguias, tudo alimentos leves e saudáveis, indicados para doentes.
‑ Mas o vinho, quem fornece o vinho? É o estalajadeiro? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Sim e não.
‑ Como, sim e não?
‑ Fornece‑o, é verdade, mas ignora que tem essa honra.
‑ Explicai‑vos, Mousqueton; as vossas palavras estão cheias de coisas instrutivas.
‑ Escutai, senhor. O acaso fez com que encontrasse nas minhas peregrinações um espanhol que vira muitos países, muitas terras, e entre elas o Novo Mundo.
‑ Que relação pode ter o Novo Mundo com as garrafas que estão em cima da secretária e da cómoda?
‑ Tende paciência, senhor; cada coisa virá a seu tempo.
‑ É justo, Mousqueton; confio em vós e escuto.
‑ O espanhol tinha ao seu serviço um lacaio que o acompanhara na sua viagem ao México. Esse lacaio era meu patrício, de modo que nos tornámos amigos tanto mais rapidamente quanto é certo haver entre nós grandes afinidades de carácter. Ambos gostávamos da caça mais do que tudo, de forma que ele contava‑me como nas planícies e pampas os naturais da região caçavam felinos e touros com simples nós corrediços que lançavam ao pescoço desses terríveis animais. Ao princípio não queria acreditar que se pudesse atingir esse grau de destreza, lançar a vinte ou trinta passos a extremidade de uma corda aonde se quisesse; mas perante a prova não tive remédio senão reconhecer que era verdade. O meu amigo colocava uma garrafa a trinta passos e de todas as vezes apanhava‑a pelo gargalo no nó corrediço. Dediquei‑me ao mesmo exercício e como a natureza me dotou de algumas faculdades hoje atiro o lazo tão bem como nenhum homem no mundo. E agora, compreendeis? O nosso estalajadeiro tem uma adega muito bem fornecida, mas de que não larga a chave; simplesmente, a adega tem um respiradouro. Ora eu atiro o lazo através do respiradouro e como sei agora onde está o bom vinho é aí que me abasteço. Aqui tendes, senhor, como o Novo Mundo se encontra relacionado com as garrafas que estão em cima dessa cómoda e dessa secretária. Agora, ides provar o nosso vinho e dizer‑nos, sem prevenção, que tal vos parece.
‑ Obrigado, meu amigo, obrigado; infelizmente, acabo de tomar o pequeno‑ almoço.
‑ Nesse caso, Mousqueton, põe a mesa e enquanto tomarmos o pequeno‑almoço d'Artagnan contar‑nos‑á o que se passou com ele desde que nos deixou há dez dias... ‑ sugeriu Porthos.
‑ Com muito prazer ‑ respondeu d'Artagnan.
Enquanto Porthos e Mousqueton tomavam o pequeno‑almoço com apetite de convalescentes e essa cordialidade de irmãos que aproxima os homens na desgraça, d'Artagnan contou como Aramis, ferido, fora obrigado a deter‑se em Crèvecoeur, como deixara Athos a debater‑se nas mãos de quatro homens que o acusavam de moedeiro falso e como ele, d'Artagnan, se vira forçado a passar sobre a barriga do conde de Wardes para chegar a Inglaterra.
Mas as confidências de d'Artagnan ficaram por aí; limitou‑se a anunciar que no seu regresso da Grã‑Bretanha trouxera quatro cavalos magníficos, dos quais um para si e os outros para os seus companheiros; e terminou anunciando a Porthos que o que lhe estava destinado já estava instalado na cavalariça da estalagem.
Neste momento entrou Planchet que vinha prevenir o amo de que os cavalos estavam suficientemente repousados e seria possível irem dormir a Clermont.
Como d'Artagnan estava mais ou menos tranquilizado acerca de Porthos e tinha pressa de ter notícias dos seus outros dois amigos, estendeu a mão ao doente e disse‑lhe que se ia pôr a caminho para continuar as buscas. De resto, como esperava regressar pela mesma estrada, se dali a sete ou oito dias Porthos ainda estivesse na estalagem do Grand Saint Martin, juntar‑se‑lhe‑ia na passagem.
Porthos respondeu que segundo todas as probabilidades o seu entorse lhe não permitiria afastar‑se nesse intervalo. Aliás, precisava de ficar em Chantilly à espera de uma resposta da sua duquesa.
D'Artagnan desejou‑lhe que essa resposta chegasse depressa e fosse boa; e depois de recomendar de novo Porthos a Mousqueton e de pagar a sua despesa na estalagem pôs‑se a caminho com Planchet, já desembaraçado de um dos seus cavalos de mão.
A TESE DE ARAMIS
D'Artagnan nada dissera a Porthos acerca do seu ferimento e da sua alcoviteira. Era um rapaz muito sensato, o nosso bearnês, apesar de jovem. Consequentemente, fingira acreditar em tudo o que lhe contara o presunçoso mosqueteiro, convencido de que não há amizade que resista a um segredo descoberto, sobretudo quando esse segredo está relacionado com o orgulho; depois, tem‑se sempre certa superioridade moral sobre aqueles de quem se conhece a vida.
Ora, nos seus projectos de intriga futura e decidido como estava a fazer dos seus três companheiros os instrumentos da sua fortuna, d'Artagnan não se importaria nada de reunir antecipadamente nas mãos os fios invisíveis com o auxílio dos quais contava manobrá‑los.
No entanto, enquanto seguia ao longo da estrada uma profunda tristeza apertava‑lhe o coração: pensava na jovem e bonita Sr.a Bonacieux, que deveria recompensá‑lo da sua dedicação; mas, apressamo‑nos a dizê‑lo, a sua tristeza devia‑se menos ao pesar da sua aventura perdida do que ao receio que experimentava em que acontecesse alguma desgraça à pobre mulher. Para si, não havia dúvida, ela era vítima de uma vingança do cardeal, e como se sabe as vinganças de Sua Eminência eram terríveis. Como tivera desculpa aos olhos do ministro, eis o que ele próprio ignorava e o que sem dúvida lhe teria revelado o Sr. de Cavois se o capitão dos guardas o tivesse encontrado em casa.
Não há nada que faça passar o tempo e abrevie uma viagem como um pensamento que absorve em si mesmo todas as faculdades daquele que pensa. A existência exterior assemelha‑se então a um sono de que esse pensamento é o sonho. Graças à sua influência, o tempo deixa de ter medida e o espaço distância. Parte‑se a um sítio e chega‑se a outro, mais nada. Do intervalo percorrido nada resta presente na memória, excepto uma vaga neblina na qual se diluem mil imagens confusas de árvores, montanhas e paisagens. Foi presa desta alucinação que d'Artagnan transpôs, à velocidade que quis o seu cavalo, as seis ou oito léguas que separam Chantilly de Crèvecoeur, sem que ao chegar a esta aldeia se recordasse de alguma das coisas que encontrara pelo caminho. Só lá a memória lhe voltou; sacudiu a cabeça, viu o botequim onde deixara Aramis e, metendo o cavalo a trote, parou à porta.
Desta vez não foi um estalajadeiro, mas sim uma estalajadeira quem o recebeu. D'Artagnan era fisionomista, envolveu num só olhar a gorda figura bonacheirona da dona da casa e compreendeu que não tinha necessidade de dissimular com ela, nem nada a temer da parte de tão risonha fisionomia.
‑ Minha boa senhora, poderíeis dizer‑me que foi feito de um dos meus amigos que fomos obrigados a deixar aqui há ums doze dias? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Um belo rapaz de vinte e três a vinte e quatro anos, de trato delicado, amável e simpático?
‑ E ferido num ombro.
‑ Exacto!
‑ Sabeis onde está?
‑ Continua aqui, senhor.
‑ Meu Deus, minha querida senhora, restituís‑me a vida! ‑ exclamou d'Artagnan, desmontando e atirando as rédeas do cavalo para o braço de Planchet. ‑ Onde está ele, esse querido Aramis, que o quero abraçar? Porque confesso que tenho pressa de o tornar a ver.
‑ Perdão, senhor, mas duvido que vos possa receber neste momento.
‑ Porquê? Está com alguma mulher?
‑ Jesus, que dizeis! Pobre rapaz! Não, senhor, não está com uma mulher.
‑ Com quem, então?
‑ Com o pároco de Montdidier e o superior dos Jesuítas de Amiens.
‑ Meu Deus! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ O pobre rapaz terá piorado?
‑ Não, senhor, pelo contrário; mas depois da sua doença a graça tocou‑o e resolveu ordenar‑se.
‑ Tem razão, tinha‑me esquecido que era mosqueteiro apenas provisoriamente ‑ disse d'Artagnan.
‑ O senhor continua a insistir em vê‑lo?
‑ Mais do que nunca.
‑ Então, só tem de subir a escada à direita no pátio, até ao segundo andar, número 5.
D'Artagnan correu na direcção indicada e encontrou uma dessas escadas exteriores como ainda hoje vimos nos pátios das antigas estalagens. Mas não se chegava assim junto do futuro abade; o acesso ao quarto de Aramis estava tão bem guardado como os jardins de Armida; Bazin, postado no corredor, barrou‑lhe a passagem com tanta mais intrepidez quanto era certo depois de muitos anos de provações ver‑se finalmente prestes a alcançar o resultado que toda a vida ambicionara.
Com efeito, o sonho do pobre Bazin sempre fora servir um homem de Igreja, e esperava com impaciência o momento constantemente entrevisto no futuro em que Aramis lançaria finalmente o uniforme às urtigas para envergar a sotaina. Só a promessa todos os dias renovada pelo jovem de que o momento não tardaria o retivera ao serviço de um mosqueteiro, serviço em que, dizia, não podia deixar de perder a alma.
Bazin não cabia portanto em si de contente. Segundo todas as probabilidades, desta vez o amo não se desdiria. A junção da dor física com a dor moral produzira o efeito tão longamente desejado: Aramis, sofrendo ao mesmo tempo do corpo e da alma, detivera enfim na religião os olhos e o pensamento, olhara como uma advertência do Céu o duplo acidente que lhe acontecera, isto é, o desaparecimento súbito da amante e o ferimento no ombro.
Compreende‑se que, na disposição em que se encontrava, nada pudesse ser mais desagradável a Bazin do que a chegada de d'Artagnan, o qual poderia tornar a lançar‑lhe o amo no turbilhão das ideias mundanas em que durante tanto tempo mergulhara. Resolveu, portanto defender bravamente a porta; e como, atraiçoado pela dona da estalagem, não pudesse dizer que Aramis estava ausente, tentou demonstrar ao recém‑chegado que seria o cúmulo da indiscrição incomodar o amo na piedosa conferência em que estava desde manhã e que, no dizer de Bazin, não terminaria antes da noite.
Mas D'Artagnan não teve em nenhuma conta o eloquente discurso de mestre Bazin, e como não estava disposto a envolver‑se numa polémica com o criado do amigo afastou‑o muito simplesmente com uma das mãos e com a outra girou a maçaneta da porta número 5.
A porta abriu‑se e d'Artagnan entrou no quarto.
Aramis, de sobreveste preta e com a cabeça coberta por espécie de toucado redondo e achatado, que lembrava um solidéu, estava sentado diante de uma mesa oblonga coberta de rolos de papel e de enormes infólios; à sua direita sentava‑se o superior dos Jesuítas e à sua esquerda o pároco de Montdidier. Os cortinados estavam semifechados e só deixavam penetrar uma claridade misteriosa que servia de pano de fundo a uma devota meditação. Todos os objectos mundanos susceptíveis de dar nas vistas quando se entra no quarto de um jovem, e sobretudo quando esse jovem é mosqueteiro, tinham desaparecido como que por encanto; e sem dúvida com receio de que a sua vista conduzisse o amo às ideias deste mundo, Bazin fizera mão baixa na espada, nas pistolas, no chapéu de plumas, nas bordaduras e nas rendas de todo o género e de toda a espécie.
Em seu lugar, D'Artagnan julgou distinguir num canto escuro como que o vulto de uma disciplina pendurada por um prego na parede.
Ao barulho que fez d'Artagnan ao abrir a porta, Aramis levantou a cabeça e reconheceu o amigo. Mas com grande espanto do recém‑chegado a sua vista não pareceu produzir grande impressão no mosqueteiro de tal modo o seu espírito estava alheado das coisas terrenas.
‑ Boas tardes, caro d'Artagnan ‑ disse Aramis. ‑ Acreditai que me sinto feliz por vos ver.
‑ E eu também ‑ respondeu d'Artagnan ‑, embora ainda não estar bem certo de ser a Aramis que falo.
‑ Ao próprio, meu amigo, ao próprio; que vos pôde levar a duvidar?
‑ Receei ter‑me enganado no quarto e ao princípio julguei entrar nos aposentos de algum homem de Igreja. Depois, incorri noutro erro ao encontrar‑vos na companhia desses senhores: supus que estivésseis gravemente doente.
Os dois homens vestidos de preto lançaram a d'Artagnan, cuja intenção compreenderam, um olhar quase ameaçador; mas d'Artagnan não se preocupou com isso.
‑ Talvez vos incomode, meu caro Aramis ‑ continuou d'Artagnan ‑, pois pelo que vejo sou levado a crer que vos confessais a esses senhores.
Aramis corou imperceptivelmente.
‑ Vós incomodar‑me? Muito pelo contrário, caro amigo, juro‑vo‑lo; e como prova do que digo permiti‑me que me regozije por vos ver são e salvo.
«Temos homem! O caso não está perdido...», pensou D'Artagnan.
‑ Porque esse senhor, que é meu amigo, acaba de escapar a um grande perigo ‑ continuou Aramis, com unção e indicando com a mão d'Artagnan aos dois eclesiásticos.
‑ Dai graças a Deus, senhor ‑ responderam os padres, inclinando‑se ao mesmo tempo.
‑ Não deixei de as dar, meus senhores ‑ respondeu o jovem, retribuindo‑lhes a saudação.
‑ Chegais a propósito, caro d'Artagnan ‑ disse Aramis ‑, e ides, tomando parte na discussão, esclarecê‑la com as vossas luzes. O Sr. Principal de Amiens, o Sr. Pároco de Montdidier e eu estávamos a argumentar sobre certas questões teológicas cujo interesse nos cativa há muito tempo; ficaria encantado se soubesse a vossa opinião.
‑ A opinião de um homem de espada carece em absoluto de peso ‑ respondeu d'Artagnan, que começava a inquietar‑se com a feição que as coisas tomavam ‑, e podeis a tal respeito confiar, creio eu, na ciência destes senhores.
Os dois homens inclinaram‑se novamente.
‑ Pelo contrário, a vossa opinião ser‑nos‑á preciosa ‑ insistiu Aramis. ‑ Eis do que se trata: O Sr. Principal acha que a minha tese deve ser sobretudo dogmática e didáctica.
‑ A vossa tese! Estais a fazer uma tese?
‑ Sem dúvida ‑ respondeu o jesuíta. ‑ No exame que precede a ordenação é indispensável uma tese.
‑ A ordenação! ‑ exclamou D'Artagnan, que não podia acreditar no que lhe tinham dito sucessivamente a estalajadeira e Bazin. ‑ A ordenação!
E passeava os olhos estupefactos pelas três personagens que tinha
diante de si.
‑ Ora ‑ continuou Aramis, tomando no seu cadeirão a mesma atitude graciosa que tomaria se estivesse numa reunião literária e examinando com prazer a sua mão branca e rechonchuda como a mão de uma mulher, que mantinha no ar para fazer descer o sangue ‑, ora, como ouvistes, d'Artagnan, O Sr. Principal desejaria que a minha tese fosse dogmática, enquanto eu gostaria que fosse ideal. Dai portanto o motivo por que o Sr. Principal me propunha este tema, que ainda não foi tratado, e no qual reconheço haver matéria para magníficos desenvolvimentos: Utraque manus in benedicendo clericis inferioribus necessária est.
D'Artagnan, cuja erudição conhecemos, não pestanejou mais ao ouvir esta citação do que pestanejara ao ouvir a que lhe fizera o Sr. de Tréville a propósito dos presentes que julgava que d'Artagnan recebera do Sr. de Buckingham.
‑ O que quer dizer ‑ acrescentou Aramis, para lhe dar todas as facilidades: «As duas mãos são indispensáveis aos clérigos das ordens inferiores para darem a bênção.»
‑ Admirável tema! ‑ exclamou o jesuíta.
‑ Admirável e dogmático! ‑ repetiu o pároco, que sendo mais ou menos tão forte em latim como d'Artagnan vigiava cuidadosamente o jesuíta para acertar o passo pelo dele e repetir as suas palavras como um eco.
Quanto a d'Artagnan, ficou perfeitamente indiferente ao entusiasmo dos dois homens vestidos de negro.
‑ Sim, admirável! Prorsus admirabile! ‑ continuou Aramis. ‑ Mas que exige um estudo aprofundado dos doutores da Igreja e das Escrituras. Ora, confessei a estes sábios eclesiásticos, com toda a humildade, que as sentinelas nos postos de guarda e o serviço do rei me tinham obrigado a descurar um pouco o estudo. Encontrar‑me‑ei portanto mais à vontade, faciltus natans, num tema à minha escolha, que seria para essas difíceis questões teológicas o que a moral é para a metafísica em filosofia.
D'Artagnan aborrecia‑se profundamente e o pároco também.
‑ Vede que exórdio! ‑ exclamou o jesuíta.
‑ Exordium ‑ repetiu o pároco para dizer qualquer coisa.
‑ Quemadmodum inter coelorum immensitatem.
Aramis deitou uma olhadela a d'Artagnan e viu que bocejava a ponto de quase deslocar os maxilares.
‑ Falemos em francês, meu padre ‑ disse ao jesuíta. ‑ O Sr. d'Artagnan apreciará mais vivamente as nossas palavras.
‑ Sim, estou cansado da viagem e todo esse latim me escapa ‑ declarou d'Artagnan.
‑ De acordo ‑ respondeu o jesuíta um pouco despeitado, enquanto o pároco, felicíssimo, deitava a d'Artagnan um olhar cheio de reconhecimento. ‑ Bom, vede o partido que se tiraria da glosa.
‑ Moisés, servo de Deus... Ele é apenas servo de Deus, não vos esqueçais! Pois Moisés abençoa com as mãos; faz com que lhe segurem nos dois braços enquanto os Hebreus batem os seus inimigos; portanto, abençoa com as duas mãos. Aliás, como diz o Evangelho: imponite ma‑nus, e não manun. Imponde as mãos, e não a mão.
‑ Imponde as mãos ‑ repetiu o pároco, fazendo um gesto.
‑ Com São Pedro, de quem os papas são sucessores, dá‑se o contrário ‑ continuou o jesuíta. ‑ Porríge dígitos. Apresentai os dedos. Percebestes agora?
‑ Sem dúvida ‑ respondeu Aramis, encantado. ‑ Mas a coisa é subtil
‑ Os dedos! ‑ insiste o jesuíta. ‑ São Pedro abençoa com os dedos. O papa abençoa portanto também com os dedos. E abençoa com quantos dedos? Com três, um pelo Pai, um pelo Filho e um pelo Espírito Santo.
Toda a gente se persigna; d'Artagnan crê dever imitar o exemplo.
‑ O papa é sucessor de São Pedro e representa os três poderes divinos; o resto, ordines inferiores da hierarquia eclesiástica, abençoa em nome dos santos arcanjos e dos anjos.
Os clérigos mais humildes, como os nossos diáconos e sacristãos, abençoam com os hissopes, que simulam um número indefinido de dedos abençoando. Eis o tema simplificado, argumentam omni denudatum ornamento. Com isto ‑ continuou o jesuíta ‑ escreveria dois volumes do tamanho deste.
E no seu entusiasmo batia no São Cristóvão in‑folio, que fazia vergar a mesa debaixo do seu peso.
D'Artagnan estremeceu.
‑ Claro que presto justiça às excelências dessa tese ‑ declarou Aramis ‑, mas ao mesmo tempo reconheço‑a esmagadora para mim. Eu escolhera este texto; dizei‑me, caro d'Artagnan, se vos agrada: Non inuti‑le est desiderium in oblatione, ou melhor ainda: um pouco de pesar não fica mal numa oferenda ao Senhor.
‑ Alto lá! ‑ exclamou o jesuíta. ‑ Essa tese roça a heresia. Existe uma proposição quase idêntica no Augustinus, do heresiarca Jansénio, cujo livro será mais tarde ou mais cedo queimado pelas mãos do carrasco. Acautelai‑vos, meu jovem amigo! Inclinais‑vos para as falsas doutrinas, meu jovem amigo; perder‑vos‑eis!
‑ Perder‑vos‑eis ‑ repetiu o pároco, abanando dolorosamente a cabeça.
‑ Tocais no famoso ponto do livre arbítrio, que é um escolho mortal. Abordais de frente as insinuações dos plagianos e dos semiplagianos.
‑ Mas, meu reverendo... ‑ começou Aramis, um tanto atordoado com a saraivada de argumentos que lhe caía sobre a cabeça.
‑ Como provareis ‑ continuou o jesuíta, sem lhe dar tempo de falar ‑, que se deve ter saudades do mundo quando se oferece a Deus? Escutai este dilema: Deus é Deus e o mundo é o Diabo. Ter saudades do mundo é ter saudades do Diabo; aqui tendes a minha conclusão.
‑ Que é também a minha ‑ declarou o pároco.
‑ Mas por favor!... ‑ protestou Aramis.
‑ Desideras diabolum, infortunado! ‑ exclamou o jesuíta.
‑ Tem pena do Diabo! Ah, meu jovem amigo ‑ acrescentou o pároco, gemendo ‑, não tenhais pena do Diabo, sou eu quem vo‑lo suplica!
D'Artagnan julgava enlouquecer; tinha a sensação de se encontrar num manicómio e de ir enlouquecer como aqueles que via. Contudo, era obrigado a calar‑se por não compreender patavina da língua que se falava na sua presença.
‑ Mas escutai‑me, peço‑vos ‑ insistiu Aramis com uma delicadeza sob a qual começava a transparecer um pouco de impaciência. ‑ Não digo que lamento; não, nunca pronunciarei essa palavra, que não seria ortodoxa...
O jesuíta ergueu os braços ao céu e o pároco fez o mesmo.
‑ Não, mas admiti ao menos que se tem o mau gosto de só oferecer ao Senhor aquilo de que está absolutamente farto. Não tenho razão, d'Artagnan?
‑ Por Deus, acho que sim! ‑ exclamou o interpelado. O pároco e o jesuíta deram um pulo na cadeira.
‑ O meu ponto de partida é um silogismo: o mundo não tem falta de atractivos; eu deixo o mundo; logo, faço um sacrifício. Ora a Escritura diz positivamente: «Fazei um sacrifício ao Senhor.»
‑ Lá isso é verdade ‑ admitiram os seus antagonistas.
‑ E depois ‑ continuou Aramis, beliscando uma orelha para a tornar rosada, tal como sacudia as mãos para as tornar brancas ‑, e depois compus certo rondo a tal respeito, de que dei conhecimento ao Sr. Voiture, o ano passado, e acerca do qual esse grande homem me dirigiu efusivos cumprimentos.
‑ Um rondo! ‑ exclamou desdenhosamente o jesuíta.
‑ Um rondo! ‑ exclamou maquinalmente o pároco.
‑ Dizei‑o, dizei‑o! ‑ pediu d'Artagnan. ‑ Sempre desanuviará um bocadinho o ambiente.
‑ Não, porque é religioso ‑ respondeu Aramis. ‑ Trata‑se de teologia em verso.
‑ Diabo! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Aí vai ‑ condescendeu Aramis com um arzinho modesto não isento de alguns laivos de hipocrisia:
Vós que chorais um passado cheio de encantos,
E que arrastais dias infortunados,
Vereis todos os vossos infortúnios terminados
Quando apenas a Deus oferecerdes as vossas lágrimas,
Vós que chorais.
D'Artagnan e o pároco pareceram deleitados, mas o jesuita persistiu na sua opinião.
‑ Acautelai‑vos do gosto profano no estilo teológico. Que diz Santo Agostinho? Severus sit clericorum sermo.
‑ Sim, que o sermão seja claro! ‑ traduziu o pároco.
‑ Ora ‑ apressou‑se a interromper o jesuíta ao ver que o seu acólito saía do bom caminho ‑, ora a vossa tese agradará às damas, e mais nada; terá o êxito de uma argumentação jurídica do Dr. Patru.
‑ Deus queira! ‑ exclamou Aramis, enlevado.
‑ Como vedes, o mundo fala ainda em vós em voz alta, em altíssima voce ‑ replicou o jesuita. ‑ Seguis o mundo, meu jovem amigo, e receio que a graça não seja eficaz.
‑ Tranquilizai‑vos, meu reverendo, respondo por mim.
‑ Presunção mundana!
‑ Conheço‑me, meu padre; a minha resolução é irrevogável.
‑ E obstinais‑vos a continuar com essa tese?
‑ Sinto‑me chamado a tratar deste tema e não doutro; vou portanto continuar e espero que amanhã fiqueis satisfeito com as correcções que farei de acordo com a vossa opinião.
‑ Trabalhai devagar ‑ aconselhou o pároco. ‑ Deixamo‑vos com excelentes disposições.
‑ Sim, o terreno está todo semeado ‑ disse o jesuíta ‑ e não temos de recear que parte da semente tenha caído na pedra, outra ao longo do caminho, e que as aves do céu tenham comido o resto: aves coeli come‑tjerunt illam.
‑ Que a peste te leve com o teu latim! ‑ resmungou d'Artagnan,
que já não podia mais.
‑ Adeus, meu filho ‑ disse o pároco. ‑ Até amanhã.
‑ Até amanhã, jovem temerário ‑ disse o jesuíta. ‑ Prometeis ser um dos luminares da Igreja. Queira Deus que essa luz não seja um fogo devorador!
D'Artagnan, que durante uma hora roera as unhas de impaciência começava a atacar a carne.
Os dois homens vestidos de negro levantaram‑se, cumprimentaram Aramis e d'Artagnan e dirigiram‑se para a porta. Bazin, que se mantivera de pé e escutara toda a controvérsia com piedoso júbilo, correu para eles, pegou no breviário do pároco e no missal do jesuíta e seguiu respeitosamente adiante deles para lhes indicar o caminho.
Aramis acompanhou‑os até ao fundo da escada e subiu imediatamente ao encontro de d'Artagnan, que ainda não estava em si.
Quando ficaram sós os dois amigos guardaram de início um silêncio embaraçado; no entanto, era mister que um deles fosse o primeiro a rompê‑lo e como d'Artagnan parecia decidido a deixar essa honra ao amigo este tomou a palavra:
‑ Como vedes ‑ disse Aramis ‑, encontrais‑me regressado às minhas ideias fundamentais.
‑ Sim, a graça eficaz tocou‑vos, como dizia há pouco aquele cavalheiro.
‑ Oh, estes planos de retirada estão formados há muito tempo, e já
me ouvistes falar deles, não é verdade?
‑ Sem dúvida, mas confesso que julguei que gracejáveis.
‑ Com esta espécie de coisas?... Oh, d'Artagnan!
‑ Com a breca, há quem brinque com a morte!
‑ Mas faz mal, d'Artagnan; porque a morte é a porta que conduz à perdição ou à salvação.
‑ De acordo. Mas se não vos importais, deixemo‑nos de teologizar, Aramis; já deveis ter o bastante para o resto do dia, e quanto a mim quase esqueci o pouco latim que nunca soube. Por último, confesso‑vos que não como nada desde as dez horas da manhã e que tenho uma fome de todos os diabos.
‑ Jantaremos daqui a pouco, caro amigo; mas não vos esqueçais que hoje é sexta‑feira e que neste dia não posso nem ver nem comer carne. Se quiserdes contentar‑vos com o meu jantar, compõe‑se de tetrágonos cozidos e fruta.
‑ Que entendeis por tetrágonos? ‑ perguntou d'Artagnan com inquietação.
‑ Espinafres ‑ respondeu Aramis ‑, mas para vós acrescentarei ovos, o que já é uma grave infracção à regra, porque os ovos são carne uma vez que é deles que nascem os pintos.
‑ O festim não é muito suculento, mas não importa; para ficar convosco resignar‑me‑ei.
‑ Agradeço‑vos o sacrifício ‑ disse Aramis. ‑ Mas se não aproveita ao vosso corpo, aproveitará, podeis estar certo disso, à vossa alma.
‑ Assim, decididamente, Aramis, entrais na religião. Que vão dizer os nossos amigos, que vai dizer o Sr. de Tréville? Considerar‑vos‑ão desertor, já vos previno.
‑ Não entro na religião, reentro. Foi da Igreja que desertei para o mundo, pois bem sabeis que vesti constrangido a farda de mosqueteiro.
‑ Não sei nada.
‑ Ignorais como deixei o seminário?
‑ Completamente.
‑ Então, aqui tendes a minha história. Aliás, as Escrituras dizem: «Confessai‑vos uns aos outros», e eu confesso‑me a vós, d'Artagnan.
‑ E eu dou‑vos antecipadamente a absolvição. Como vedes, sou bom homem...
‑ Não brinqueis com as coisas santas, meu amigo.
‑ Então, falai; estou pronto a escutar‑vos.
‑ Estava pois no seminário desde os nove anos, fazia vinte dali a três dias, ia ser abade e estava tudo dito. Uma noite, quando me encontrava, como de costume, numa casa que frequentava com prazer (que quereis, quando somos novos somos fracos!), um oficial que não me via com bons olhos ler As Vidas dos Santos à dona da casa, entrou de súbito sem ser anunciado. Precisamente naquela noite eu traduzira um episódio de Judith e acabava de recitar os meus versos à dama, que me dirigia toda a espécie de cumprimentos e, debruçada sobre o meu ombro, os relia comigo. A sua atitude que era um bocadinho abandonada, confesso, desagradou ao oficial. Ele não disse nada, mas quando sai, saiu atrás de mim e interpelou‑me:
«‑ Sr. Abade, gostais de bengaladas?
«‑ Não vo‑lo posso dizer, porque nunca ninguém ousou dar‑mas – respondi.
«‑ Nesse caso, escutai, Sr. Abade: se voltardes à casa onde vos encontrei esta noite, ousarei eu.
«Creio que tive medo, empalideci muito, senti as pernas faltarem‑me, procurei uma resposta que não encontrei e calei‑me.
«O oficial esperava essa resposta, e vendo que ela tardava desatou a rir, virou‑me as costas e reentrou na casa. Eu regressei ao seminário.
«Sou bom gentíl‑homem e tenho o sangue vivo, como já tivestes ensejo de verificar, meu caro d'Artagnan. O insulto era terrível e por muito ignorado que fosse do mundo sentia‑o viver e agitar‑se no fundo do meu coração. Declarei aos meus superiores que não me sentia suficientemente preparado para a ordenação e, a meu pedido, adiou‑se a cerimónia por um ano.
«Descobri o melhor mestre de armas de Paris, contratei com ele uma lição de esgrima por dia, e todos os dias, durante um ano, tomei essa lição. Depois, no dia do aniversário daquele em que fora insultado, pendurei a sotaina num prego, vesti um fato completo de cavalheiro e fui a um baile que dava uma senhora minha amiga e onde sabia que encontraria o meu homem. Era na Rua dos Francs‑Bourgeois, muito perto da Force.
«Com efeito, o meu oficial estava lá. Aproximei‑me dele quando cantava um lai de amor olhando ternamente para uma mulher e interrompi‑o no melhor da segunda copla.
«‑ Senhor ‑ disse‑lhe ‑, continua a desagradar‑vos que volte a certa casa da Rua Payenne e ainda me dareis bengaladas se me apetecer desobedecer‑vos?
«O oficial olhou‑me com espanto e depois disse:
«‑ Que me quereis, senhor? Não vos conheço.
«‑ Sou ‑ respondi‑lhe ‑ o abadezinho que lê As Vidas dos Santos e traduz Judith em verso.
«‑ Ah, ah, já me recordo! ‑ exclamou o oficial, zombando. ‑ Que me quereis?
«‑ Gostaria que vos désseis ao incómodo de vir dar uma voltinha comigo...
«‑ Amanhã de manhã, se quiserdes, e com o maior prazer.
«‑ Não, amanhã de manhã, não; se não vos importais, imediatamente.
«‑Se o exigis com muito empenho...
«‑Sim, exijo‑o.
«‑ Então, saiamos. Minhas senhoras ‑ disse o oficial ‑, não vos incomodeis. É só o tempo de matar este senhor e volto para vos acabar a última copla.
«Saímos.
«Levei‑o para a Rua Payenne, precisamente para o sítio onde um ano antes, hora por hora, ele me dirigira o cumprimento que vos referi. Estava um luar soberbo. Desembainhámos as espadas e ao primeiro bote mandei‑o desta para melhor.»
- Diabo! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Ora ‑ continuou Aramis ‑, como as damas não viram regressar o seu cantor e o encontraram na Rua Payenne com uma boa estocada a trespassar‑lhe o corpo, pensaram que fora eu quem o pusera naquele estado e a coisa causou escândalo. Fui portanto obrigado a renunciar à sotaina durante algum tempo. Athos, que conheci nessa altura, e Porthos, que me ensinara, fora das minhas lições de esgrima, alguns botes secretos, decidiram‑me a pedir uma farda de mosqueteiro. O rei fora muito amigo do meu pai, morto no cerco de Arras, e concedeu‑me essa farda. Deveis compreender portanto que hoje chegou para mim o momento de voltar ao seio da Igreja.
‑ E porquê hoje em vez de ontem ou de amanhã? Que vos aconteceu hoje que vos inspirou tão desagradáveis ideias?
‑ Este ferimento, meu caro d'Artagnan, foi para mim um aviso ao Céu.
‑ Esse ferimento? ‑ Ora, está quase curado e estou certo de que não é ele que mais vos faz sofrer!
‑ Que é, então? ‑ perguntou Aramis, corando.
‑ A ferida que tendes no coração, Aramis, mais viva e sangrenta, uma ferida feita por uma mulher.
Os olhos de Aramis cintilaram, malgrado seu.
‑ Não faleis dessas coisas ‑ redarguiu, dissimulando a emoção sob uma negligência fingida. ‑ Eu preocupo‑me com isso! Ter desgostos de amor!... Vanitas vanitatum! Portanto, na vossa opinião, eu teria perdido a cabeça, e por quem? Por alguma costureirinha, por alguma criada de quarto, a quem teria cortejado numa guarnição? Safa!
‑ Perdão, meu caro Aramis, mas julgava que tínheis vistas mais altas.
‑ Vistas mais altas?... E quem sou eu para ser tão ambicioso? Um pobre mosqueteiro sem eira nem beira e obscuro, que detesta as servidões e se encontra grandemente deslocado no mundo!
‑ Aramis, Aramis! ‑ exclamou d'Artagnan, olhando para o amigo com ar de dúvida.
‑ Pó, regresso ao pó. A vida está cheia de humilhações e dores ‑ continuou cada vez mais triste. ‑ Todos os fios que a ligam à felicidade se quebram um a um na mão do homem, sobretudo os fios de ouro. Meu caro d'Artagnan ‑ prosseguiu Aramis, dando à voz um leve matiz de amargura ‑, acreditai nisto que vos digo: ocultai bem as vossas feridas quando as tiverdes. O silêncio é a derradeira alegria dos infelizes; guardai‑vos de pôr quem quer que seja na pista dos vossos sofrimentos: os curiosos sugam as nossas lágrimas como as moscas o sangue de um gamo ferido.
‑ Por Deus, meu caro Aramis, acabais de descrever a minha própria história! ‑ exclamou d'Artagnan, soltando por seu turno um profundo suspiro.
‑ Como?...
‑ Sim, uma mulher que amava, que adorava, acaba de me ser arrebatada à força. Não sei onde está, para onde a levaram; talvez esteja presa, talvez esteja morta...
‑ Mas tendes ao menos a consolação de dizer para convosco que não vos deixou voluntariamente; que se não tendes notícias suas é porque toda a comunicação convosco lhe está vedada, enquanto...
‑ Enquanto...
‑ Nada ‑ respondeu Aramis ‑, nada.
‑ Portanto, renunciais para sempre ao mundo. Trata‑se de uma decisão definitiva, inabalável?
‑ Absolutamente definitiva. Hoje, sois meu amigo; amanhã, não sereis para mim mais do que uma sombra. Ou antes, não existireis. Quanto ao mundo, não passa de um sepulcro.
‑ Diabo, o que me acabais de dizer é muito triste!
‑ Que quereis, a minha vocação atrai‑me, arrebata‑me... D'Artagnan sorriu e não respondeu. Aramis continuou:
‑ Mas entretanto, enquanto ainda estou preso à terra, gostaria de vos falar de vós, dos vossos amigos.
‑ E eu ‑ redarguiu d'Artagnan ‑ gostaria de vos falar de vós mesmo, mas vejo‑vos tão desprendido de tudo... Os amores merecem‑vos apenas desdém, os amigos são sombras, o mundo é um sepulcro.
‑ Verificá‑lo‑eis por vós próprio ‑ declarou Aramis, com um suspiro.
‑ Bom, em vista do que dizeis o melhor é não falarmos mais disso e queimarmos esta carta que, sem dúvida vos anuncia alguma nova infidelidade da vossa costureirinha ou da vossa criada de quarto... ‑ disse d'Artagnan.
‑ Qual carta? ‑ perguntou vivamente Aramis.
‑ Uma carta que chegou a vossa casa na vossa ausência e que me entregaram para vo‑la trazer.
‑ Mas de quem é a carta?
‑ De alguma criada lacrimosa ou de alguma costureirinha desesperada... Talvez seja da criada de quarto da Sr.a de Chevreuse, obrigada a regressar a Tours com a ama, e que para se tornar atraente se serviu de papel perfumado e lacrou a sua carta com uma coroa de duquesa...
‑ Que dizeis?...
‑ Olha, querem ver que a perdi?... ‑ disse maliciosamente o jovem, fingindo procurá‑la. ‑ Felizmente que o mundo é um sepulcro, que os homens e por consequência as mulheres são sombras e que o amor é um sentimento para que vos estais nas tintas!
‑ Ah, d'Artagnan, d'Artagnan! ‑ exclamou Aramis. ‑ Tu matas‑me!
‑ Enfim, aqui está! ‑ anunciou d'Artagnan. E tirou a carta da algibeira.
Aramis deu um salto, pegou na carta e leu‑a, ou antes, devorou‑a; o seu rosto resplandecia.
‑ Parece que a criada tem um belo estilo ‑ observou negligentemente o mensageiro.
‑ Obrigado, d'Artagnan! ‑ exclamou Aramis quase em delírio. ‑ Foi obrigada a regressar a Tours, não me é infiel, continua a amar‑me. Anda cá, meu amigo, anda, deixa‑me abraçar‑te. A felicidade sufoca‑me!
E os dois amigos puseram‑se a dançar à roda do venerável São Crisóstomo, calcando sem cerimónia as folhas da tese que tinham caído para o chão.
Neste momento entrou Bazin com os espinafres e a omeleta.
‑ Foge, desgraçado! ‑ gritou Aramis, atirando‑lhe o solidéu à cara.
‑ Volta pelo mesmo caminho e leva esses horríveis legumes e essa detestável omeleta! Pede uma lebre recheada, um capão gordo, uma perna de cabrito assada e quatro garrafas de borgonha velho.
Bazin, que olhava o amo e não compreendia nada daquela mudança,
deixou cair melancolicamente a omeleta nos espinafres e os espinafres no chão.
‑ Chegou o momento de consagrardes a vossa existência ao Rei dos Reis ‑ disse d'Artagnan ‑, se quereis fazer‑lhe uma gentileza: Non inutíle desiderium in oblatione.
‑ Ide para o Diabo com o vosso latim! Meu caro d'Artagnan, bebamos, com a breca, bebamos muito, e contai‑me um pouco do que se tem passado em Paris.
A MULHER DE ATHOS
‑ Agora só falta saber notícias de Athos ‑ disse d'Artagnan ao fogoso Aramis, depois de o pôr ao corrente do que se passara na capital desde a sua partida e de um excelente jantar os ter feito esquecer a um a sua tese a outro a sua fadiga.
‑ Parece‑vos que lhe terá acontecido algum contratempo? ‑ perguntou Aramis. ‑ Athos é tão frio, tão bravo e maneja tão habilmente a espada.
‑ Sim, sem dúvida, e ninguém conhece melhor do que eu a coragem e a perícia de Athos, mas prefiro cruzar a minha espada com lanças em vez de com paus. Temo que Athos tenha sido espancado pela criadagem; os criados são gente que bate forte e não desiste às primeiras. É por isso, confesso‑vos, que gostaria de voltar a partir o mais depressa possível.
‑ Procurarei acompanhar‑vos ‑ disse Aramis ‑, embora me não sinta muito em estado de montar a cavalo. Ontem experimentei a disciplina que vedes naquela parede e a dor impediu‑me de continuar tão piedoso exercício.
‑ Também, meu caro amigo, nunca vi tentar curar um tiro de escopeta com um martinete. Mas vós estais doente e a doença torna a cabeça fraca, o que me leva a dispensar‑vos.
‑ Quando partis?
‑ Amanhã ao amanhecer. Descansai o melhor que puderdes esta noite e amanhã, se apesar de tudo estiverdes em condições de viajar, partiremos juntos.
‑ Até amanhã, portanto ‑ disse Aramis. ‑ Porque por muito de ferro que sejais deveis necessitar de repouso.
No dia seguinte, quando d'Artagnan entrou no quarto de Aramis encontrou‑o à janela.
‑ Que estais a ver daí? ‑ perguntou‑lhe d'Artagnan.
‑ Admito os três magníficos cavalos que os moços de estrebaria seguram pelas rédeas; deve ser um prazer de príncipe viajar em semelhantes montadas.
‑ Pois meu caro Aramis tereis esse prazer, porque um desses cavalos pertence‑vos.
‑ Sim?... E qual?
‑ Dos três o que preferirdes; não tenho preferência.
‑ E a rica gualdrapa que o cobre também é minha?
‑ Sem dúvida.
‑ Estais a brincar, d'Artagnan.
‑ Não brinco desde que falais francês.
‑ São para mim aquelas bolsas de sela douradas, aquela cobertura de veludo e aquela sela pregueada a prata?
‑ Exactamente, assim como o cavalo que piafa é meu e o que caracola é de Athos.
‑ Apre, são três animais soberbos.
‑ Ainda bem que gostais.
‑ Foi o rei quem vo‑lo ofereceu?
‑ O cardeal não foi, com certeza. Mas não vos preocupeis com a sua origem e pensai apenas que um dos três vos pertence.
‑ Fico com aquele que segura o criado ruivo.
‑ Óptimo!
‑ Viva Deus, aí está uma coisa que até me faz passar o resto da minha dor! ‑ exclamou Aramis. ‑ Montaria aquele bicho nem que tivesse trinta balas no corpo. Pela minha salvação, como é bom cavalgar! Olá, Bazin, vinde cá imediatamente!
Bazin apareceu, triste e arrastando os pés, no limiar da porta.
‑ Bruni a minha espada, endireitai o meu chapéu, escovai a minha capa e carregai as minhas pistolas! ‑ ordenou Aramis.
‑ Essa última recomendação é inútil ‑ interveio d'Artagnan. ‑ Há pistolas carregadas nos vossos coldres.
Bazin suspirou.
‑ Vamos, mestre Bazin, sossegai ‑ procurou animá‑lo d'Artagnan. ‑ Ganha‑se o reino dos céus em todas as condições.
‑ O senhor estava já tão bom teólogo! ‑ observou Bazin, quase a chorar. ‑ Seria bispo e talvez cardeal.
‑ Então, meu pobre Bazin, vamos, reflecte um pouco; de que serve ser homem de Igreja, não me dizeis? Nem por isso se evita ir à guerra. Bem vês que o cardeal vai fazer a primeira campanha com o pote na cabeça e a partazana na mão; e o Sr. de Nogaret de La Valette, não é também cardeal? Pergunta ao seu criado quantos pensos já lhe fez.
‑ Infelizmente assim é, senhor ‑ suspirou Bazin. ‑ Hoje está tudo virado do avesso neste mundo.
Entretanto, os dois jovens e o pobre lacaio desceram.
‑ Segura‑me no estribo, Bazin ‑ disse Aramis.
E Aramis saltou para a sela com a sua graça e ligeireza habituais; mas depois de algumas voltas e curvetes do nobre animal o seu cavaleiro sentiu dores de tal modo insuportáveis que empalideceu e cambaleou. D'Artagnan, que na previsão desse acidente o não perdera de vista, correu para ele, tomou‑o nos braços e levou‑o para o quarto.
‑ Pronto, meu caro Aramis, tratai‑vos que eu vou sozinho à procura de Athos.
‑ Sois um homem de bronze ‑ disse‑lhe Aramis.
‑ Não, tenho apenas sorte. Mas como ides passar o tempo enquanto me esperais? Nada de tese, nada de glosa sobre os dedos e as bênçãos, hem?...
Aramis sorriu.
‑ Farei versos ‑ declarou.
‑ Sim, versos perfumados como o bilhete da criada da Sr.a de Chevreuse. Ensinai também a prosódia a Bazin, para o animar. Quanto ao cavalo, montai‑o todos os dias um pouco, para vos habituardes às manobras.
‑ Oh, quanto a isso ide tranquilo! ‑ declarou Aramis. ‑ Encontrar‑me‑eis pronto a acompanhar‑vos.
Despediram‑se e dez minutos depois d'Artagnan, após ter recomendado o amigo a Bazin e à estalajadeira, trotava na direcção de Amiens.
Como encontraria Athos, se é que o encontraria?
A situação em que o deixara era crítica; podia muito bem ter sucumbido. Esta ideia assombrou‑lhe a fronte, arrancou‑lhe alguns suspiros e fê‑lo formular em voz baixa alguns juramentos de vingança. De todos os seus amigos, Athos era o mais velho e portanto aparentemente o menos próximo dos seus gostos e das suas simpatias.
Contudo, tinha por aquele gentil‑homem uma preferência acentuada. O ar nobre e distinto de Athos, os clarões de grandeza que brotavam de vez em quando da sombra onde se acolhera voluntariamente, o seu humor sempre inalteravelmente igual que o tornavam o mais fácil companheiro do mundo, a sua boa disposição forçada e mordaz, a sua bravura que dir‑se‑ia cega se não se devesse ao mais raro sangue‑frio ‑ tantas qualidades atraíam mais do que a estima, mais do que a amizade de d'Artagnan; atraíam a sua admiração.
Com efeito, considerado mesmo em relação ao Sr. de Tréville, o elegante e nobre cortesão, Athos, nos seus dias de bom humor, podia sustentar vantajosamente o confronto. Era de estatura mediana, mas tão admiravelmente vigorosa e tão bem proporcionada que por mais de uma vez, nas suas lutas com Porthos, fizera vergar o gigante cuja força física se tornara proverbial entre os mosqueteiros. A sua cabeça, os seus olhos penetrantes, nariz direito e queixo saliente como o de Bruto, possuía algo indefinível de grandeza e graça; as suas mãos, com as quais não se preocupava, eram o desespero de Aramis, que cuidava das suas com reiteradas aplicações de creme de amêndoas e de óleo perfumado; o som da sua voz era penetrante e ao mesmo tempo melodioso, e depois, o que havia de indefinível em Athos, que se fazia sempre obscuro e pequeno, era essa ciência do mundo e dos usos da mais brilhante sociedade, esse hábito de boa casa que transparecia sem ele querer nos seus mais pequenos actos.
Se se tratava de um banquete, Athos organizava‑o melhor do que qualquer outro homem e colocava cada conviva no lugar e na categoria que lhe tinham legado os seus antepassados ou que ele próprio conquistara. Se se tratava de ciência heráldica, Athos conhecia todas as famílias nobres do reino, a sua genealogia, as suas alianças, as suas armas e a origem dessas armas. A etiqueta não tinha minúcias que lhe fossem estranhas; sabia quais eram os direitos dos grandes proprietários, conhecia a fundo a montaria e a falconaria, e um dia, conversando dessa grande arte, espantara o rei Luís XIII, que no entanto era considerado um mestre na especialidade.
Como todos os grandes senhores da época, montava a cavalo e manejava as armas na perfeição. Mais, a sua educação fora tão pouco descurada, mesmo em relação aos estudos escolásticos, tão raros nessa época entre os gentis‑homens, que sorria ao ouvir os fragmentos de latim empregados por Aramis e que Porthos fingia compreender. Duas ou três vezes até, com grande espanto dos amigos, acontecera‑lhe, quando Aramis deixava escapar algum erro rudimentar, colocar um verbo no seu tempo e um substantivo no seu caso. Além disso, a sua probidade era inatacável num século em que os militares transigiam tão facilmente com a sua religião e a sua consciência, os amantes com a delicadeza rigorosa dos nossos dias e os pobres com o sétimo mandamento de Deus. Athos era portanto um homem deveras extraordinário.
E no entanto via‑se aquela natureza tão distinta, aquela criatura tão bela, aquela essência tão fina pender insensivelmente para a vida material como os velhos pendem para a imbecilidade física e moral Nas suas horas de privação, e essas horas eram frequentes, extinguia‑se em Athos toda a sua parte luminosa, e o seu lado brilhante desaparecia como numa noite profunda.
Então, eclipsado o semideus, ficava apenas um homem. De cabeça baixa, olhos no chão, a palavra difícil e penosa, Athos olhava durante longas horas quer a garrafa e o copo, quer Grimaud, que habituado a obedecer‑lhe por sinais lia no olhar átono do amo até o mais pequeno desejo, que satisfazia imediatamente. A reunião dos quatro amigos verificara‑se num desses momentos; uma palavra pronunciada com violento esforço era todo o contingente que Athos fornecia à conversação. Em contrapartida, só ele, Athos, bebia por quatro, e isso sem que se notasse a não ser por um franzir de sobrolho mais pronunciado e por uma tristeza mais profunda.
D'Artagnan, de quem conhecemos o espírito investigador e penetrante, ainda não conseguira descobrir, fosse qual fosse o interesse que tivesse em satisfazer a sua curiosidade, a causa daquele marasmo, nem notar‑lhe as coincidências. Athos nunca recebia cartas; Athos nunca dava um passo que não fosse conhecido de todos os seus amigos.
Não se podia dizer que fosse o vinho que lhe dava aquela tristeza; pois pelo contrário só bebia para combater essa tristeza, e tal remédio, como dissemos, tornava‑o ainda mais sombrio. Não se podia atribuir ao jogo aquele excesso de humor negro, porque, ao contrário de Porthos, que acompanhava com os seus cantos ou com as suas pragas todas as variações da sorte, Athos, quando ganhava, ficava tão impassível como quando perdia. No círculo dos mosqueteiros tinham‑no visto ganhar uma noite três mil pistolas e perdê‑las juntamente com o cinturão bordado a ouro dos dias de gala; voltar a ganhar tudo isso mais cem luíses e tal acontecer sem que as suas belas sobrancelhas negras subissem ou descessem meia linha, sem que as suas mãos perdessem a sua tonalidade nacarada, sem que a sua conversação, agradável naquela noite, deixasse de ser calma e agradável.
Também não era, como acontecia com os nossos vizinhos ingleses, uma influência atmosférica que lhe nublava o rosto, pois a sua tristeza tornava‑se mais intensa, geralmente, nas proximidades dos dias bonitos do ano. Junho e Julho eram os meses terríveis de Athos.
No presente nenhum desgosto o afligia e encolhia os ombros quando lhe falavam do futuro; o seu segredo pertencia portanto ao passado, como tinham dito vagamente a d'Artagnan.
Aquele véu de mistério que envolvia toda a sua pessoa tornava ainda mais interessante o homem de que nunca quer os olhos, quer a boca, mesmo no estado de embriaguez mais completo, tinham revelado fosse o que fosse a seu respeito, nem sequer quando habilmente interrogado.
‑ A verdade ‑ dizia d'Artagnan ‑ é que o pobre Athos talvez esteja morto a esta hora, e morto por minha culpa, pois fui eu que o meti naquela alhada, de que ignorava a origem, de que ignorara o resultado e de que não devia tirar nenhum proveito.
‑ Sem contar, senhor ‑ lembrou Planchet ‑, que lhe devemos provavelmente a vida. Lembrai‑vos como gritou: «Foge, d'Artagnan! Apanharam‑me!» E depois de descarregar as suas pistolas, que barulho terrível fazia com a espada! Dir‑se‑ia serem vinte homens, ou antes, vinte demónios enraivecidos!
Estas palavras redobravam o ardor de d'Artagnan, que incitava o cavalo, o qual, sem necessidade de ser incitado, levava o seu cavaleiro a galope.
Por volta das onze horas da manhã avistaram Amiens, e às onze e meia estavam à porta da estalagem maldita.
D'Artagnan imaginara muitas vezes contra o pérfido estalajadeiro uma dessas boas vinganças que consolam, ainda que só em mente. Entrou portanto na estalagem com o chapéu puxado para os olhos e a mão esquerda no botão do punho da espada, ao mesmo tempo que com a mão direita fazia silvar o chicote.
‑ Reconheces‑me? ‑ perguntou ao estalajadeiro, que se adiantava para o cumprimentar.
‑ Não tenho essa honra, monsenhor ‑ respondeu o interpelado, ainda deslumbrado com o brilho da equipagem com que d'Artagnan se apresentava.
‑ Com que então não me reconheceis?...
‑ Não, monsenhor.
‑ Pois bem, duas palavras para vos espevitarem a memória: que é feito do gentil‑homem a quem tiveste a audácia, há quinze dias pouco mais ou menos, de acusar de moedeiro falso?
O estalajadeiro empalideceu, porque d'Artagnan tomara uma atitude mais ameaçadora, e Planchet seguia as pisadas do amo.
‑ Ah, monsenhor, nem me faleis disso! ‑ exclamou o estalajadeiro no seu tom de voz mais lamuriento. ‑ Meu Deus, como me saiu caro esse pecado! Como sou infeliz!
‑ Dignai‑vos escutar‑me, monsenhor, e sede clemente. Sentai‑vos, por favor.
Mudo de cólera e de inquietação, d'Artagnan sentou‑se, ameaçador como um juiz. Planchet encostou‑se orgulhosamente ao seu cadeirão.
‑ Aqui tendes a história, monsenhor ‑ prosseguiu o estalajadeiro, muito trémulo. ‑ Estou a reconhecer‑vos agora: fostes vós que partistes quando tive aquele infeliz desaguisado com esse gentil‑homem de que falais.
‑ Sim, sou eu. Portanto bem vedes que não tendes misericórdia a esperar se não disserdes toda a verdade.
‑ Dignai‑vos escutar e sabê‑la‑eis toda inteira.
‑ Falai.
‑ Fora prevenido pelas autoridades de que um moedeiro falso muito célebre chegaria à minha estalagem com vários seus companheiros, todos disfarçados de guardas ou de mosqueteiros. Os vossos cavalos, os vossos lacaios, a vossa cara, tudo me foi descrito.
‑ E depois, e depois? ‑ atalhou d'Artagnan, que depressa adivinhou quem fornecera sinais tão completos.
‑ Tomei portanto, de acordo com as ordens das autoridades, que me enviaram um reforço de seis homens, as medidas que julguei urgentes para deitar mão aos pretensos moedeiros falsos...
‑ Adiante! ‑ gritou d'Artagnan, a quem a expressão «moedeiro falso» escaldava terrivelmente os ouvidos.
‑ Perdoai‑me, monsenhor, dizer tais coisas, mas elas são precisamente a minha desculpa. As autoridades tinham‑me assustado e bem sabeis que um estalajadeiro deve colaborar com as autoridades.
‑ Mais uma vez: onde está esse gentil‑homem? Que lhe aconteceu? Está morto? Está vivo?
‑ Paciência, monsenhor, já falta pouco. Aconteceu portanto o que sabeis, com a agravante de a vossa partida precipitada parecer autorizar as nossas suspeitas ‑ acrescentou o estalajadeiro com uma subtileza que não escapou a d'Artagnan.
‑ Esse gentil‑homem vosso defendeu‑se com desespero. O seu criado, que por uma infelicidade imprevista entrara em conflito com os agentes da autoridade disfarçados de moços de estrebaria...
‑ Ah, miserável! ‑ gritou d'Artagnan. ‑ Estáveis todos feitos e não sei que me contém que não vos extermine do primeiro ao último!
‑ Não, monsenhor, não estávamos todos feitos, como ides ver. O senhor vosso amigo (desculpai não o tratar pelo nome respeitável que sem dúvida usa, mas ignoramos esse nome), o senhor vosso amigo, depois de pôr fora de combate dois homens com os seus dois tiros de pistola, bateu em retirada defendendo‑se com a espada, com a qual estropiou ainda um dos meus homens e me aturdiu com uma pranchada.
‑ Maldito carrasco, nunca mais acabas?! ‑ gritou d'Artagnan. ‑ E Athos, que aconteceu a Athos.
‑ Batendo em retirada, como já disse a monsenhor, encontrou atrás de si a escada da adega, e como a porta estava aberta, fechou‑se e barricou‑se lá dentro. Como estávamos certos de que não saíria de lá, deixámo‑lo à vontade.
‑ Sim ‑ disse d'Artagnan ‑, interessava‑lhes mais aprisioná‑lo do que matá‑lo.
‑ Santo Deus! Aprisioná‑lo, monsenhor? Ele é que se aprisionou a si mesmo, juro‑vos. E depois de levar tudo adiante de si a ferro e fogo! Um homem morreu logo e outros dois ficaram gravemente feridos. O morto e os dois feridos foram levados pelos seus camaradas e nunca mais ouvi falar nem de uns, nem de outros. Eu próprio, quando recuperei os sentidos, fui procurar o Sr. Governador, a quem contei tudo o que se passara e perguntei o que devia fazer do prisioneiro. Mas o Sr. Governador pareceu cair das nuvens; disse‑me que ignorava completamente o que eu queria dizer, que as ordens que me tinham sido dadas não emanavam dele e que se me atrevesse a dizer a quem quer que fosse que ele tinha qualquer coisa a ver com semelhante empresa me mandaria prender e enforcar. Parece que me enganara, senhor, que tomara um por outro, e que aquele que devia ser preso estava a salvo.
‑ Mas Athos? ‑ tornou a gritar d'Artagnan, cuja impaciência redobrava perante o desinteresse com que as autoridades se tinham comportado. ‑ Athos, que foi feito dele?
‑ Como tinha pressa de reparar as minhas faltas para com o prisioneiro ‑ prosseguiu o estalajadeiro ‑, dirigi‑me para a adega a fim de o pôr em liberdade. Ah, senhor, já não era um homem, era um demónio! Ao ouvir a minha proposta de libertação, declarou que lhe queriam armar uma cilada e que antes de sair imporia as suas condições. Respondi‑lhe humildemente, pois bem sabia os maus lençóis em que me metera pondo a mão num mosqueteiro de Sua Majestade, que estava pronto a submeter‑me às suas condições.
«Primeiro ‑ disse ele, quero que me mandem o meu criado completamente armado.
«Apressámo‑nos a obedecer a esta ordem; porque como compreendeis, senhor, estávamos dispostos a fazer tudo o que o vosso amigo quisesse. O Sr. Grimaud (esse disse o nome, embora não fale muito), o Sr. Grimaud desceu portanto à adega, apesar de estar ferido. Então o seu amo, assim que o apanhou, voltou a barricar a porta e ordenou‑nos que permanecêssemos na loja.»
‑ Mas afinal onde está ele? ‑ insistiu d'Artagnan. ‑ Onde está Athos?
‑ Na adega, senhor.
‑ Como, desgraçado, retèm‑lo na adega há tanto tempo?!
‑ Valha‑me a bondade divina! Não, senhor. Nós retèmo‑lo na adega! Não sabeis portanto o que ele fez na adega?... Ah, se conseguísseis que ele saísse de lá, senhor, ficar‑vos‑ia reconhecido toda a minha vida, adorar‑vos‑ia como ao meu padroeiro!
‑ Então ele está lá, encontrá‑lo‑ei lá?
‑ Sem dúvida, senhor, porque teimou em lá ficar. Todos os dias lhe passamos pelo respiradouro pão na ponta de uma forquilha, e carne quando a pede; mas, meu Deus, não é pão e carne o que mais me consome! Uma vez tentei descer com dois dos meus rapazes, mas teve um terrível acesso de fúria. Ouvi o ruído das suas pistolas, que ele armava, e do seu mosquetão, que armava o criado. Depois, quando lhe perguntámos quais eram as suas intenções, o amo respondeu que ele e o seu lacaio dispunham de quarenta tiros e que os disparariam até ao último antes de permitirem que um só de nós pusesse os pés na adega. Então, senhor, queixei‑me ao governador, o qual me respondeu que eu só tinha o que merecia e que isto me ensinaria a não insultar os fidalgos respeitáveis que se hospedavam em minha casa.
‑ De modo que desde aí?... ‑ atalhou d'Artagnan, sem poder deixar de rir da cara lastimosa do estalajadeiro.
‑ De modo que desde aí, senhor ‑ continuou o homenzinho ‑, levamos a vida mais triste que se possa imaginar; porque, senhor, é mister que saibais que todas as nossas provisões estão na adega! Temos lá o nosso vinho engarrafado e o nosso vinho a granel, a cerveja, o azeite e as especiarias, o toucinho e os salsichões... e como estamos proibidos de lá entrar, somos forçados a recusar a bebida e a comida aos viajantes que nos procuram, de maneira que todos os dias a nossa estalagem se afunda. Mais uma semana com o vosso amigo na adega e estamos arruinados.
‑ E será bem feito, velhaco. Não se via bem pelo nosso aspecto que éramos pessoas de qualidade e não falsários, dizei?
‑ Sim, senhor; sim, tendes razão ‑ concordou o estalajadeiro. ‑ Mas também deveis reconhecer que já é de mais, que o vosso amigo está a abusar da situação.
‑ Porque decerto o incomodaram ‑ redarguiu d'Artagnan.
‑ E como é que não havíamos de o incomodar? ‑ barafustou o estalajadeiro. ‑ Acabam de nos chegar dois fidalgos ingleses!
‑ E depois?
‑ E depois, os Ingleses gostam do bom vinho, como sabeis, senhor, e estes pediram do melhor. Então, a minha mulher solicitou ao Sr. Athos licença para entrar na adega, a fim de podermos atender os cavalheiros ingleses, e ele recusou, como de costume. Ai, valha‑me a bondade divina, temos outra vez sarilho!
Com efeito, d'Artagnan ouviu grande barulho para os lados da adega. Levantou‑se e, precedido do estalajadeiro, que torcia as mãos, e seguido de Planchet, que empunhava um mosquetão carregado, aproximou‑se do local da cena.
Os dois fidalgos estavam exasperados; tinham feito uma longa viagem e morriam de fome e sede.
‑ Mas isto é uma tirania! ‑ gritavam em excelente francês, embora com pronúncia estrangeira. ‑ Não está certo que esse louco não permita a esta boa gente servir‑se do seu vinho. Vamos arrombar a porta e se se fizer fino... matamo‑lo!
‑ Mais devagarinho, meus senhores! ‑ interveio d'Artagnan, tirando as pistolas do cinturão. ‑ Por favor, não penseis em matar ninguém...
‑ Bom, bom ‑ dizia atrás da porta a voz calma de Athos ‑, deixem entrar esses mata‑mouros e veremos...
Por muito valentes que parecessem ser, os dois gentis‑homens ingleses entreolharam‑se hesitantes; dir‑se‑ia haver na adega um desses papões famélicos, gigantescos heróis das lendas populares, de quem ninguém forçava impunemente a caverna.
Reinou um momento de silêncio; mas por fim os dois ingleses tiveram vergonha de recuar e o mais ousado desceu os cinco ou seis degraus da escada e deu um pontapé na porta capaz de fender uma muralha.
‑ Planchet ‑ disse d'Artagnan armando as pistolas ‑, eu encarrego‑me do que está em cima, encarrega‑te tu do que está em baixo. Ah, meus senhores, quereis guerra?... Pois ides tê‑la!
‑ Meu Deus, parece‑me que estou a ouvir d'Artagnan ‑ gritou a voz cava de Athos.
‑ De facto, sou eu próprio, meu amigo! ‑ respondeu d'Artagnan, erguendo por sua vez a voz.
‑ Ah, bom, então vamos dar uma lição a esses arrombadores de portas! ‑ disse Athos.
Os gentis‑homens tinham desembainhado as espadas, mas encontravam‑se metidos entre dois fogos. Hesitaram ainda um instante. Mas como da primeira vez, o orgulho levou a melhor e um segundo pontapé rachou a porta de alto a baixo.
‑ Afasta‑te, d'Artagnan, afasta‑te! ‑ gritou Athos. ‑ Afasta‑te que vou disparar!
‑ Meus senhores ‑ disse d'Artagnan, a quem a reflexão nunca abandonava ‑, meus senhores, pensem bem. Tem paciência, Athos.
Metestes‑vos numa alhada donde saireis crivados de balas. Deste lado, o meu criado e eu, que vos brindaremos com três tiros; do lado da adega, a mesma coisa. Além disso, teremos ainda as nossas espadas que, garanto‑vos, o meu amigo e eu esgrimimos razoavelmente. Deixai‑me resolver os vossos problemas e os meus; não tardará muito que tenhais de beber, dou‑vos a minha palavra.
‑ Se ainda houver alguma coisa... ‑ resmungou a voz escarninha de Athos.
O estalajadeiro sentiu um suor frio correr‑lhe ao longo da espinha.
‑ Como se ainda houver alguma coisa?! ‑ murmurou.
‑ Que diabo, com certeza que haverá! ‑ impacientou‑se d'Artagnan. ‑ Sossegai, que os dois não devem ter bebido tudo o que havia na adega. Meus senhores, embainhai as vossas espadas.
‑ E vós metei as vossas pistolas no cinturão.
‑ Com muito prazer.
E d'Artagnan deu o exemplo. Depois, virou‑se para Planchet e fez‑lhe sinal para desarmar o mosquetão.
Convencidos, os ingleses embainharam as espadas, resmungando. Contaram‑lhes a história do aprisionamento de Athos. E como eram bons gentis‑homens, não deram razão ao estalajadeiro.
‑ E agora, meus senhores ‑ disse d'Artagnan ‑, subi aos vossos quartos e dentro de dez minutos providenciarei para que vos seja servido tudo o que desejardes.
Os ingleses saudaram e saíram.
‑ Agora que estou sozinho, meu caro Athos ‑ continuou d'Artagnan ‑, abri‑me a porta, peço‑vos.
‑ Imediatamente ‑ respondeu Athos.
Ouviu‑se então um grande barulho de toros de lenha a entrechocarem‑se e de vigas a rangerem: eram as contra‑escarpas e os bastiões de Athos, que o sitiado demolia pessoalmente.
Pouco depois a porta abriu‑se e apareceu o rosto pálido de Athos, que numa rápida vista de olhos explorou as imediações.
D'Artagnan saltou‑lhe ao pescoço e abraçou‑o efusivamente; depois, quis tirá‑lo daquele ambiente húmido, mas notou que Athos cambaleava.
‑ Estais ferido? ‑ perguntou‑lhe.
‑ Eu? Nem por sombras! Estou é a cair de bêbedo, e nunca nenhum homem fez tanto para isso como eu. Viva Deus, meu estalajadeiro, pois à minha parte bebi pelo menos cento e cinquenta garrafas!
‑ Misericórdia! ‑ gritou o estalajadeiro. ‑ Se o criado bebeu apenas metade do amo estou arruinado!
‑ Grimaud é um lacaio de boa casa que não se permitiria beber do mesmo vinho que eu; limitou‑se a beber do casco. Mas parece‑me que se esqueceu de pôr o batoque... Ouvistes? O vinho está a correr...
D'Artagnan soltou uma gargalhada que transformou o arrepio do estalajadeiro em febre alta.
Ao mesmo tempo, Grimaud apareceu por seu turno atrás do amo, de mosquetão ao ombro, a dar à cabeça como os sátiros ébrios dos quadros de Rubens. Estava ensopado por diante e por trás por um líquido espesso que o estalajadeiro reconheceu como o seu melhor azeite.
O cortejo atravessou a sala grande e foi‑se instalar no melhor quarto da estalagem, que d'Artagnan ocupou à força.
Entretanto, o estalajadeiro e a mulher precipitaram‑se com lanternas na adega que lhes estivera durante tanto tempo interdita e depararam com um espectáculo medonho.
Para lá das fortificações em que Athos abrira brecha para sair e que se compunham de toros de lenha, de tábuas e de barris vazios empilhados de acordo com todas as regras da arte estratégica, viam‑se aqui e ali, nadando em mares de azeite e vinho, os ossos de todos os presuntos comidos, enquanto uma pilha de garrafas partidas juncava todo o canto esquerdo da adega e um tonel, cuja torneira ficara aberta, perdia por essa abertura as derradeiras gotas do seu sangue. A imagem da devastação e da morte, como diz o poeta da Antiguidade, reinava ali como num campo de batalha.
De cinquenta salsichões pendurados nas vigas, restavam apenas dez.
Então os gritos do estalajadeiro e da estalajadeira atravessaram a abóbada da adega, tão lancinantes que o próprio d'Artagnan se comoveu. Athos nem sequer virou a cabeça.
Mas a dor sucedeu à raiva. O estalajadeiro armou‑se de um espeto e, no seu desespero, correu para o quarto onde os dois amigos se tinham recolhido.
‑ Vinho! ‑ pediu Athos ao ver o estalajadeiro.
‑ Vinho?! ‑ gritou o estalajadeiro, estupefacto. ‑ Vinho! Já bebestes vinho no valor de cem pistolas! Sou um homem arruinado, aniquilado, perdido!
‑ Que quereis, a sede não nos largava... ‑ desculpou‑se Athos.
‑ Se vos tivésseis limitado a beber, ainda vá, mas partistes todas as garrafas.
‑ Empurrastes‑me contra uma pilha que veio abaixo. A culpa é vossa.
‑ Todo o meu azeite perdido!
‑ O azeite é um bálsamo soberano para as feridas, e o pobre Grimaud tinha de tratar das que lhe fizestes.
‑ Todos os meus salsichões roídos!
‑ Há uma autêntica praga de ratos naquela adega.
‑ Ides pagar‑me tudo isso! ‑ gritou o estalajadeiro, exasperado.
‑ Triplo velhaco! ‑ redarguiu Athos, levantando‑se.
Mas voltou a cair imediatamente; acabava de dar a medida das suas forças. D'Artagnan foi em seu socorro, brandindo o chicote. O estalajadeiro recuou um passo e desatou a chorar.
‑ Isso ensinar‑vos‑á a tratar de forma mais cortês os hóspedes que Deus vos envia ‑ disse‑lhe d'Artagnan.
‑ Deus... Dizei antes o Diabo!
‑ Meu caro amigo ‑ atalhou d'Artagnan ‑, se continuais a moer‑nos o bicho do ouvido, fechar‑nos‑emos todos quatro na vossa adega e veremos se realmente o estrago é tão grande como dizeis.
‑ Está bem, senhores, a culpa é minha, confesso ‑ declarou o estalajadeiro ‑, mas todo o pecado tem perdão. Vós sois fidalgos e eu não passo de um pobre estalajadeiro; espero que tenhais piedade de mim.
‑ Se falas assim ‑ disse Athos ‑, partes‑me o coração e as lágrimas acabarão por correr‑me dos olhos como o vinho corria dos teus barris. Não somos tão diabos como parecemos. Aproxima‑te e conversemos.
O estalajadeiro aproximou‑se receoso.
‑ Anda, repito, e não tenhas medo ‑ continuou Athos. ‑ Quando te fui pagar, pousei a minha bolsa em cima da mesa.
‑ É verdade, monsenhor.
‑ Essa bolsa continha sessenta pistolas. Onde está ela?
‑ Depositada na secretaria do tribunal monsenhor; como diziam que o dinheiro era falso...
‑ Pois então que te restituam a minha bolsa e guarda as sessenta
pistolas.
‑ Mas, monsenhor, bem sabeis que a justiça nunca mais larga aquilo a que deita a mão. Se o dinheiro fosse falso, ainda haveria uma esperança; mas infelizmente é verdadeiro...
‑ Desenrasca‑te, meu bom homem; o caso já não é comigo, tanto mais que não tenho nem uma libra.
‑Vejamos, onde está o antigo cavalo de Athos? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Na cavalariça.
‑ Quanto vale?
‑ Cinquenta pistolas, no máximo.
‑ Vale oitenta; ficai com ele e assunto arrumado.
‑ Como, tu vendes o meu cavalo, vendes o meu Bajazet? ‑ protestou Athos. ‑ E em que montarei na campanha? E Grimaud?
‑ Trouxe‑te outro ‑ informou‑o d'Artagnan. ‑Outro?...
‑ E magnífico! ‑ exclamou o estalajadeiro.
‑ Então, se tenho outro mais bonito e mais novo, fica com o velho e toca a beber!
‑ De qual? ‑ perguntou o estalajadeiro, completamente tranquilizado.
‑Daquele que está ao fundo, ao pé dos sarrafos... Ainda restam vinte e cinco garrafas, todas as outras se partiram na minha queda. Traz seis.
‑ Que raio de homem! ‑ comentou o estalajadeiro para consigo.
- Se ficasse só que fosse quinze dias cá, e pagasse o que bebesse, endireitaria os meus negócios.
‑ E não vos esqueçais ‑ continuou d'Artagnan ‑ de levar quatro garrafas do mesmo aos dois fidalgos ingleses.
‑ Agora, enquanto esperamos que nos tragam o vinho, contai‑me, d'Artagnan, o que aconteceu aos outros ‑ pediu Athos.
D'Artagnan contou‑lhe como encontrara Porthos na cama com uma entorse e Aramis a uma mesa entre dois teólogos. Quando estava a terminar entrou o estalajadeiro com as garrafas pedidas e um presunto que, felizmente para ele, ficara fora da adega.
‑ Bom, bebamos por Porthos e Aramis ‑ disse Athos, enchendo o seu copo e o de d'Artagnan. ‑ E vós, meu amigo, que tendes e que vos aconteceu pessoalmente? Acho‑vos um ar sinistro...
‑ Por desgraça sou o mais infeliz de todos nós ‑ declarou d'Artagnan.
‑ Tu infeliz, d'Artagnan? ‑ admirou‑se Athos. ‑ Vejamos, infeliz como? Anda, diz‑me.
‑ Mais tarde ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Mais tarde?... E porquê mais tarde? Por que julgas que estou bêbedo, d'Artagnan? Fixa bem isto: nunca tenho as ideias mais claras do que quando estou bêbedo. Fala portanto, sou todo ouvidos.
D'Artagnan contou a sua aventura com a Sr.a Bonacieux. Athos escutou‑o sem pestanejar; depois, quando terminou:
‑ Ninharias, tudo isso não passa de ninharias! ‑ comentou Athos. Era a expressão preferida de Athos.
‑ Dizeis sempre ninharias, meu caro Athos ‑ protestou d'Artagnan. ‑ Apesar de nunca terdes amado, isso fica‑vos muito mal.
O olhar de Athos incendiou‑se de súbito; mas foi apenas um relâmpago, pois logo se tornou mortiço e vago como anteriormente.
‑ É verdade, nunca amei ‑ reconheceu sem se alterar.
‑ Bem vedes portanto, coração de pedra ‑ disse d'Artagnan ‑, que fazeis mal em ser duro para connosco, corações ternos.
‑ Corações ternos, corações trespassados ‑ sentenciou Athos.
‑ Que dizeis?
‑ Digo que o amor é uma lotaria em que aquele que ganha, ganha a morte! Tivestes muita sorte em perder, acreditai‑me, meu caro d'Artagnan. E se tenho um conselho a dar‑vos, é que percais sempre.
‑ Ela parecia amar‑me tanto!...
‑ Parecia...
‑ Oh, amava‑me!
‑ Criança! Não há nenhum homem que não tenha acreditado, como vós, que a sua amante o amava, assim como não há nenhum homem que não tenha sido enganado pela amante.
‑ Excepto vós, Athos, que nunca a tivestes.
‑ É verdade ‑ admitiu Athos, após um momento de silêncio ‑, nunca tive nenhuma. Bebamos!
‑ Mas então, como filósofo que sois, ensinai‑me, ajudai‑me ‑ pediu d'Artagnan. ‑ Necessito de saber e de ser confortado.
‑ Confortado de quê?
‑ Da minha infelicidade.
‑ A vossa infelicidade dá vontade de rir ‑ redarguiu Athos, encolhendo os ombros. ‑ Seria interessante saber que diríeis se vos contasse uma história de amor.
‑ Que vos aconteceu?
‑ Ou a um dos meus amigos, que importa!
‑ Dizei, Athos, dizei.
‑ Acho melhor bebermos.
‑ Bebei e contai.
‑ Pois sim ‑ concordou Athos, despejando e enchendo o seu copo. ‑ De facto, ambas as coisas ficam maravilhosamente juntas.
‑ Sou todo ouvidos ‑ disse d'Artagnan.
Athos concentrou‑se, e à medida que se concentrava d'Artagnan via‑o empalidecer; encontrava‑se no período de embriaguez em que os bebedores vulgares caem e adormecem. Ele devaneava em voz alta, sem dormir. Este sonambulismo da embriaguez tinha qualquer coisa de assustador.
‑ Quereis absolutamente que vos conte? ‑ perguntou.
‑ Suplico‑vos ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Faça‑se portanto como desejais. Um dos meus amigos... um dos meus amigos, ouvi bem, e não eu ‑ sublinhou Athos, interrompendo‑se com um sorriso sombrio ‑, um dos condes da minha província, isto é, Du Berry, nobre como um Dandolo ou um Montmorency, apaixonou‑se aos vinte e cinco anos por uma rapariga de dezasseis, bela como os amores. Através da ingenuidade da sua idade despontava um espírito ardente, um espírito não de mulher, mas sim de poeta; não agradava, inebriava. Vivia numa vilazinha com o irmão, que era padre. Ambos tinham chegado à região vindos ninguém sabia de onde; mas ao vê‑la tão bela e ao ver o irmão tão piedoso, ninguém pensava em perguntar‑lhes donde vinham. De resto, diziam‑nos de boa ascendência. O meu amigo, que era o senhor da região, poderia tê‑la seduzido ou tomado à força, como lhe apetecesse, pois era o senhor; quem levantaria um dedo em defesa de dois estranhos, de dois desconhecidos? Infelizmente, ele era um homem honesto e casou com ela. O parvo, o ingénuo, o imbecil!
‑ Mas porquê tudo isso, se a amava? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Esperai ‑ pediu Athos. ‑ Levou‑a para o seu palácio e fez dela a primeira dama da província; e deve‑se‑lhe prestar justiça, pois desempenhava perfeitamente o seu papel.
‑ E depois? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Depois, um dia, quando andava a caçar com o marido ‑ continuou Athos em voz baixa e falando muito depressa ‑, caiu do cavalo e perdeu os sentidos. O conde correu em seu socorro, e como ela sufocava nas suas roupas ele rasgou‑as com o punhal e descobriu‑lhe o ombro.
Adivinhais o que havia no ombro, d'Artagnan? ‑ perguntou Athos soltando uma grande gargalhada.
‑ Posso sabê‑lo? ‑ arriscou d'Artagnan.
‑ Uma flor‑de‑lis ‑ Respondeu Athos. ‑ Estava marcada. E Athos despejou de um só trago o copo que tinha na mão.
‑ Que horror! ‑ gritou d'Artagnan. ‑ Que me dizeis?...
‑ A verdade. Meu caro, o anjo era um demónio. A pobre rapariga roubara.
‑ E que fez o conde?
‑ O conde era um grande senhor, tinha nas suas terras direito de alta e baixa justiça. Acabou de rasgar as roupas da condessa, amarrou‑lhe as mãos atrás das costas e enforcou‑a numa árvore.
‑ Céus, Athos, um assassínio! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Sim, um assassínio, nem mais, nem menos ‑ admitiu Athos, pálido como a morte. ‑ Mas estou sem vinho, parece‑me...
E Athos agarrou o gargalo da última garrafa que restava, levou‑a à boca e despejou‑a de um só trago, como faria se fosse um copo vulgar.
Depois deixou cair a cabeça sobre as mãos; d'Artagnan ficou diante dele, dominado pelo espanto.
‑ Aquilo curou‑me de mulheres belas, poéticas e apaixonadas ‑ declarou Athos, levantando‑se e sem pensar já em continuar o apólogo do conde. ‑ Deus vos conceda o mesmo! Bebamos!
‑ Ela morreu, portanto? ‑ balbuciou d'Artagnan.
‑ É verdade ‑ respondeu Athos. ‑ Mas despejai o vosso copo. Presunto, tem piada, é que não podemos beber! ‑ gritou Athos.
‑ E o irmão? ‑ perguntou timidamente d'Artagnan.
‑ O irmão? ‑ repetiu Athos.
‑ Sim, o padre.
‑ Ah! Informei‑me a seu respeito, para o mandar enforcar também, mas ele tomara‑me a dianteira e deixara a sua paróquia na véspera.
‑ Soubestes ao menos quem era esse miserável?
‑ Era sem dúvida o primeiro amante e o cúmplice da bela, um digno homem que fingira ser padre para casar a amante e assegurar‑lhe o futuro. Espero que tenha sido esquartejado.
‑ Oh, meu Deus, meu Deus! ‑ exclamou d'Artagnan, aturdidissimo com a horrível aventura.
‑ Comei presunto, d'Artagnan; é excelente ‑ recomendou‑lhe Athos, cortando uma fatia que pôs no prato do jovem. ‑ Que pena só haver quatro como este na adega! Teria bebido mais cinquenta garrafas.
D'Artagnan já não podia suportar semelhante conversa; capaz de o enlouquecer; deixou cair a cabeça nas mãos e fingiu adormecer.
‑ Os jovens já não sabem beber ‑ comentou Athos, olhando‑o com compaixão ‑, e no entanto este é dos melhores.
REGRESSO
D'Artagnan ficara aturdido com a terrível confidência de Athos; no entanto, muitas coisas ainda lhe pareceram obscuras naquela semi‑revelação; em primeiro lugar, fora feita por um homem completamente bêbedo a um homem meio embriagado, e no entanto, apesar do vácuo que faz subir ao cérebro o vapor de duas ou três garrafas de borgonha. ao levantar‑se no dia seguinte, d'Artagnan tinha cada palavra de Athos tão presente na memória como se, à medida que lhe tinham saído da boca, se tivessem impresso no seu espírito. A dúvida, porém, só contribuiu para lhe avivar o desejo de chegar a uma certeza, e para isso passou pelo quarto do amigo com a intenção bem firme de reatar a conversa da véspera; mas encontrou Athos completamente calmo, isto é, mais senhor de si e impenetrável do que nunca.
De resto, o mosqueteiro, depois de trocar com ele um aperto de mão, foi o primeiro a ir ao encontro do seu pensamento.
‑ Apanhei uma grande bebedeira ontem, meu caro d'Artagnan ‑ começou. ‑ Verifiquei isso esta manhã: tinha a língua muito suja e o pulso ainda muito agitado. Aposto que disse mil extravagâncias...
E ao dizer estas palavras fitou o amigo com uma fixidez que o embaraçou.
‑ Não ‑ replicou d'Artagnan ‑, e se bem me recordo só dissestes coisas vulgarissimas.
‑ Surpreendeis‑me! Julgava ter‑vos contado uma história das mais lamentáveis.
E fitava o jovem como se quisesse ler‑lhe no mais fundo do coração.
‑ Palavra! ‑ disse d'Artagnan. ‑ Parece‑me que estava ainda mais bêbedo do que vós, pois não me lembro de nada.
Athos não se contentou com a palavra do amigo e insistiu:
‑ Deveis ter notado, meu caro, que cada um tem o seu género de embriaguez, triste ou alegre; eu tenho a embriaguez triste, e uma vez bêbedo a minha mania é contar histórias lúgubres que a minha estúpida ama me meteu na cabeça. É o meu defeito, o meu pecado; pecado capital, admito. Mas tirando isso sou bom bebedor.
Athos proferiu estas palavras de forma tão natural que d'Artagnan se sentiu abalado na sua convicção.
‑ Oh, é então disso, com efeito ‑ redarguiu o jovem, tentando não deixar fugir a verdade ‑, é então disso que me recordo, como de resto nos lembramos de um sonho: falámos de enforcados!
‑ Como vedes ‑ disse Athos, empalidecendo, mas ao mesmo tempo tentando sorrir ‑, tinha a certeza: os enforcados são o meu pesadelo.
‑ Sim, sim ‑ prosseguiu d'Artagnan ‑, estou a recordar‑me... Sim, tratava‑se... esperai... tratava‑se de uma mulher!
‑ Vedes? ‑ respondeu Athos, tornando‑se quase lívido. ‑ É a minha grande história da mulher loura, e quando a conto é porque estou bêbedo como um cacho.
‑ Sim, é isso ‑ concordou d'Artagnan ‑, a história da mulher loura, alta e bela, de olhos azuis.
‑ Sim, e enforcada.
‑ Pelo marido, que era um fidalgo vosso conhecido ‑ continuou d'Artagnan, olhando fixamente para Athos.
‑ Exacto! Mas vede como se pode comprometer um homem quando já não sabemos o que dizemos ‑ observou Athos, encolhendo os ombros, como se se compadecesse de si mesmo. Decididamente, vou deixar de me embebedar, d'Artagnan; é um péssimo hábito.
D'Artagnan guardou silêncio.
‑ A propósito, agradeço‑vos o cavalo que me trouxestes.
‑ Gostais dele? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Gosto, mas não é um cavalo resistente.
‑ Enganais‑vos; percorri com ele dez léguas em menos de hora e meia e não me parecia mais cansado do que se tivesse dado a volta à Praça de Saint‑Sulpice.
‑ Sendo assim, tendes de me lamentar.
‑ De vos lamentar?...
‑ Sim, porque me desfiz dele.
‑ Como assim?
‑ As coisas passaram‑se assim: esta manhã, acordei às seis da manhã, dormíeis como uma pedra e não sabia que fazer; ainda não estava recomposto da nossa pândega de ontem. Desci à sala principal e dei com um dos nossos ingleses a negociar um cavalo com um alquilador, pois o seu morrera ontem de congestão. Aproximei‑me dele e ao vê‑lo oferecer cem pistolas por um alazão escuro disse‑lhe:
«Por Deus, meu gentil‑homem, também tenho um cavalo para vender.
«E até muito belo ‑ redarguiu ele. ‑ Vi‑o ontem, quando o criado do vosso amigo o trazia pela mão.
«Achais que vale cem pistolas?
«Acho, e quereis vendê‑lo por esse preço?
«Não, mas jogo‑o.
«Jogai‑lo comigo?
«Jogo.
«A quê?
«Aos dados.
«Dito e feito, e perdi o cavalo. Ah, mas em compensação voltei a ganhar a gualdrapa! ‑ exclamou Athos».
D'Artagnan mostrou uma cara deveras aborrecida.
‑ Ficastes contrariado? ‑ perguntou‑lhe Athos.
‑ Fiquei ‑ confesso ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Esse cavalo devia servir para nos reconhecerem num dia de batalha; era uma prenda, uma recordação. Athos, não procedestes bem.
- Vamos, meu caro amigo, ponde‑vos no meu lugar ‑ desculpou‑se o mosqueteiro. ‑ Aborrecia‑me mortalmente e além disso, palavra de honra, não gosto de cavalos ingleses. Vejamos, se se trata apenas de ser reconhecido por alguém, bom, a sela bastará... E ela é deveras notável. Quanto ao cavalo, arranjaremos qualquer desculpa para justificar o seu desaparecimento. Que diabo, um cavalo é mortal! Digamos que o meu teve o mormo ou o laparão.
D'Artagnan não se conformava.
‑ Contraria‑me ‑ continuou Athos ‑ que pareceis querer tanto a esses animais, porque ainda não cheguei ao fim da minha história.
‑ Que mais fizestes?
‑ Depois de perder o meu cavalo, nove contra dez, vede o azar, lembrei‑me de jogar o vosso.
‑ Sim, mas ficastes por aí, espero?...
‑ Não, pus imediatamente a ideia em prática.
‑ Essa agora! ‑ exclamou d'Artagnan, inquieto.
‑ Joguei e perdi.
‑ O meu cavalo?
‑ O vosso cavalo; sete contra oito. Por um ponto... conheceis o provérbio.
‑ Athos, não estais no vosso juízo perfeito, juro‑vos!
‑ Meu caro, ontem, quando vos contava as minhas histórias idiotas é que me devíeis dizer isso, e não esta manhã. Perdi‑o com todos os equipamentos e arreios possíveis.
‑ Mas isso é horrível!
‑ Esperai que ainda não acabei... Seria um excelente jogador se não teimasse, mas teimo e acontece‑me o mesmo quando bebo. Portanto, teimei...
‑ Mas que mais pudestes jogar, se não vos restava mais nada?
‑ Restava, restava, meu amigo... Restava‑nos esse diamante que brilha no vosso dedo e que notara ontem.
‑ Este diamante?! ‑ gritou d'Artagnan, levando vivamente a mão ao anel
‑ E como sou conhecedor, pois já tive alguns, avaliei‑o em mil pistolas.
‑ Espero ‑ disse muito sério d'Artagnan, meio morto de terror ‑ que não tenhais arriscado o meu diamante...
‑ Pelo contrário, caro amigo! Como deveis compreender, esse diamante era o nosso último recurso; com ele podia voltar a ganhar os nossos arreios e os nossos cavalos e ainda o dinheiro para a viagem.
‑ Athos, fazeis‑me tremer! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Falei portanto do vosso diamante ao meu parceiro, que também reparara nele. Que diabo, meu caro, trazeis no dedo uma estrela do céu e não quereis que se veja! Impossível.
‑ Acabai, meu caro, acabai ‑ pediu d'Artagnan. ‑ Porque, palavra de honra, dais cabo de mim com o vosso sangue‑frio!
‑ Dividimos pois o diamante em dez partes de cem pistolas cada uma.
‑ Ah, quereis divertir‑vos e experimentar‑me, não é? ‑ disse d'Artagnan, a quem a cólera começava a puxar os cabelos, tal como Minerva puxa Aquiles na Ilíada.
‑ Não, não estou a brincar, com a breca! Gostaria de vos ver no meu lugar. Havia quinze dias que não via rosto humano e que me embrutecia a emborcar garrafas.
‑ Isso não era razão para jogardes o meu diamante! ‑ respondeu d'Artagnan, fechando a mão numa crispação nervosa.
‑ Mas ouvi o resto: dez partes de cem pistolas, cada uma em dez lances sem desforra. Em treze lances perdi tudo. Em treze lances! O número 13 sempre me foi fatal. Foi em 13 de Julho que...
‑ Com mil demónios! ‑ gritou d'Artagnan, levantando‑se da mesa, já sem querer saber da história da véspera, que a do dia lhe fizera esquecer.
‑ Paciência ‑ pediu Athos. ‑ A verdade é que eu tinha um plano: o inglês era um original, vira‑o de manhã a conversar com Grimaud, e Grimaud avisara‑me de que lhe propusera entrar ao seu serviço. Resolvi jogar Grimaud, o silencioso Grimaud, dividido em dez partes.
‑ Outra vez! ‑ exclamou d'Artagnan, desatando a rir sem querer.
‑ O próprio Grimaud, ouvistes? E com as dez partes de Grimaud, que não vale inteiro um ducado, voltei a ganhar o diamante. Dizei agora que a persistência não é uma virtude!
‑ Palavra que isso tem um piadão! ‑ exclamou d'Artagnan. satisfeito, rindo a bandeiras despregadas.
‑ Como compreendeis, sentindo‑me em maré de sorte, voltei a jogar imediatamente sobre o diamante.
‑ Oh, diabo! ‑ exclamou d'Artagnan, de novo preocupado.
‑ Ganhei os vossos arreios, depois o vosso cavalo, depois os meus arreios, depois o meu cavalo, e depois tornei a perder. Em resumo, recuperei o vosso arreio e depois o meu. É esta a situação actual. Foi um lance soberbo; por isso fiquei por aí.
D'Artagnan respirou como se lhe tivessem tirado a estalagem de cima do peito.
‑ Enfim, não perdi o diamante? ‑ perguntou timidamente.
‑ Está intacto, caro amigo! Mais os arreios do vosso Bucéfalo e do meu.
‑ Mas que faremos dos nossos arreios sem cavalos?
‑ Tenho uma ideia acerca deles.
‑ Athos, receio muito as vossas ideias.
‑ Escutai, não jogais há muito tempo, pois não, d'Artagnan?
‑ E não tenho nenhuma vontade de jogar.
‑ Isso é o que dizeis agora! Portanto, como não jogais há muito tempo, dizia eu, deveis ter boa mão...
‑ Sim, e depois?
‑ Depois, o inglês e o companheiro ainda cá estão. Notei que tinham muita pena de não ficar com os arreios... e vós pareceis interessado no vosso cavalo. No vosso lugar jogaria os vossos arreios contra o vosso cavalo.
‑ Mas ele não quererá só um arreio.
‑ Nesse caso, jogai os dois! Não sou um egoísta como vós.
‑ Faríeis isso? ‑ perguntou d'Artagnan, indeciso, de tal modo a confiança de Athos começava a influenciá‑lo, mal‑grado seu.
‑ Palavra de honra, e num só lance.
‑ Mas é que, já que perdi os cavalos, tenho enorme empenho em conservar os arreios.
‑ Então jogai o vosso diamante.
‑ Oh, isso é outra coisa! Nunca, nunca.
‑ Diabo! ‑ exclamou Athos. ‑ Propor‑vos‑ia que jogásseis Planchet, mas como isso já foi feito o inglês talvez não estivesse pelos ajustes.
‑ Decididamente, meu caro Athos, prefiro não arriscar nada ‑ declarou d'Artagnan.
‑ É pena ‑ redarguiu friamente Athos. ‑ O inglês está cheio de pistolas... Meu Deus, tentai um lance, um lance não custa nada.
‑ E se perco?
‑ Ganhareis.
‑ Mas se perco?
‑ Bom, entregareis os arreios.
‑ Arrisco um lance ‑ decidiu d'Artagnan.
Athos foi à procura do inglês e encontrou‑o na cavalariça a examinar os arreios com um olhar cobiçoso. A ocasião era boa. Athos apresentou as suas condições: os dois arreios contra um cavalo ou cem pistolas, a escolher. O inglês fez um cálculo rápido: os dois arreios valiam trezentas pistolas; aceitou.
D'Artagnan deitou os dados a tremer e tirou o três; a sua palidez assustou Athos, que se limitou a dizer:
‑ Mau lance, companheiro; tereis os cavalos completamente arreados, senhor.
O inglês, triunfante, nem sequer se deu ao trabalho de agitar os dados, atirou‑os para cima da mesa sem olhar, de tal modo estava seguro da vitória; d'Artagnan virara‑se para ocultar o seu mau humor.
‑ Vede, vede, vede ‑ disse Athos com a sua voz tranquila. ‑ Este lance de dados é extraordinário e só o vi quatro vezes na minha vida: dois ases!
O inglês olhou e ficou espantado, d'Artagnan olhou e ficou contente.
‑ Sim, continuou Athos, apenas quatro vezes: uma vez em casa do Sr. de Créquy; outra vez em minha casa, no campo, no meu castelo de... quando tinha um castelo; a terceira vez em casa do Sr. de Tréville, onde ele nos surpreendeu a todos, e finalmente a quarta vez num botequim, onde me calhou a mim e perdi no lance cem luíses e uma ceia.
‑ Então o senhor recupera o seu cavalo ‑ disse o inglês.
‑ Exacto ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ Não há desforra?
‑ As nossas condições diziam: «Sem desforra.» Lembrais‑vos?
‑ É verdade; o cavalo vai ser entregue ao vosso criado, senhor.
‑ Um momento ‑ atalhou Athos. ‑ Com vossa licença, senhor, peço para dizer uma palavra ao meu amigo.
‑ Dizei.
Athos afastou‑se com d'Artagnan.
‑ Que mais queres de mim, tentador? ‑ perguntou‑lhe d'Artagnan. ‑ Queres que jogue, não é?
‑ Não, quero que reflictais.
‑ Em quê?
‑ Ides recuperar o cavalo, não é verdade?
‑ Sem dúvida.
‑ Fazeis mal; eu preferiria as cem pistolas. Como sabeis, jogastes os arreios contra o cavalo ou cem pistolas, à vossa escolha.
‑ Pois joguei.
‑ Eu optaria pelas cem pistolas.
‑ E eu opto pelo cavalo.
‑ Fazeis mal, repito‑vos. Que faremos com um cavalo para os dois? Não posso montar na garupa, pareceríamos dois filhos de Aymon que tivessem perdido os irmãos, e vós não me podeis humilhar cavalgando junto de mim nesse magnífico corcel. Eu não hesitava um instante: optava pelas cem pistolas; necessitamos de dinheiro para regressar a Paris.
‑ Quero aquele cavalo, Athos.
‑ E fazeis mal, meu amigo, insisto. Um cavalo tem uma distensão muscular, um cavalo tropeça e arranja joalheiras, um cavalo come numa manjedoura onde comeu um cavalo mormoso, e aí está um cavalo... ou antes, aí estão cem pistolas perdidas. O dono de um cavalo tem de o alimentar, enquanto, pelo contrário, cem pistolas alimentam o seu dono.
‑ Mas como regressaremos?
‑ Nos cavalos dos nossos lacaios, com a breca! Toda a gente verá perfeitamente, pelo nosso aspecto, que somos pessoas de condição.
‑ Teremos um rico aspecto montados em garranos, enquanto Aramis e Porthos se caracoleiam nos seus cavalos!
‑ Aramis! Porthos! ‑ exclamou Athos, e desatou a rir.
‑ Que quereis dizer? ‑ perguntou d'Artagnan, que não compreendia nada da hilaridade do amigo.
‑ Bem, bem, continuemos ‑ disse Athos.
‑ Portanto, na vossa opinião...
- Devemos optar pelas cem pistolas, d'Artagnan; com as cem pistolas podemos banquetear‑nos até ao fim do mês; suportámos muitas canseiras, como sabeis, e precisamos de descansar um pouco.
‑ Eu descansar? Oh, não, Athos, assim que chegar a Paris vou procurar aquela pobre mulher!
‑ E julgais que o vosso cavalo vos será tão útil nisso como bons luíses de ouro? Optai pelas cem pistolas, meu amigo, optai pelas
cem pistolas.
D'Artagnan só precisava de um motivo para se render, e aquele pareceu‑lhe excelente. Aliás, se resistisse mais tempo receava parecer egoísta aos olhos de Athos. Aquiesceu pois e optou pelas cem pistolas, que o inglês lhe entregou imediatamente.
Depois só pensaram em partir. A assinatura da paz com o estalajadeiro custou seis pistolas mais o velho cavalo de Athos; d'Artagnan e Athos montaram nos cavalos de Planchet e Grimaud e os dois criados puseram‑se a caminho a pé, com as selas à cabeça.
Por muito mal montados que os dois amigos fossem não tardaram a adiantar‑se aos criados e a chegar a Crèvecoeur. De longe viram Aramis melancolicamente encostado à janela, a ver, como a minha irmã Anne, o pó levantar‑se no horizonte.
‑ Olá! Eh, Aramis, que diabo fazeis aí?! ‑ gritaram os dois amigos.
‑ Ah, sois vós, d'Artagnan, e vós, Athos! ‑ exclamou o jovem. ‑ Pensava com que rapidez se vão os bens deste mundo, e o meu cavalo inglês, que se afastava e acaba de desaparecer no meio de uma nuvem de poeira, era para mim a imagem viva da fragilidade das coisas terrenas. A própria vida pode‑se resolver em três palavras: Erat, est, fuit
‑ Isso quer dizer no fundo?... ‑ perguntou d'Artagnan, que começava a suspeitar a verdade.
‑ Quer dizer que acabo de fazer um mau negócio: sessenta luíses por um cavalo que, pela maneira como corre, pode percorrer a trote cinco léguas por hora.
D'Artagnan e Athos desataram a rir.
‑ Meu caro d'Artagnan ‑ disse Aramis ‑, não fiqueis muito aborrecido comigo, peço‑vos; a necessidade faz lei; aliás, sou o primeiro castigado, pois aquele infame alquilador roubou‑me pelo menos cinquenta luíses. Vós é que sabeis fazer as coisas: vindes nos cavalos dos vossos lacaios e fazeis conduzir os vossos cavalos de luxo à mão, devagarinho, em pequenas jornadas.
No mesmo instante um carroção que havia instantes surgira na estrada de Amiens parou e saíram dele Grimaud e Planchet com as selas à cabeça. O carroção regressava vazio a Paris e os dois lacaios tinham‑se comprometido, mediante o seu transporte, a dar de beber ao carroceiro ao longo de toda a estrada.
‑ Que é aquilo? ‑ perguntou Aramis, vendo o que se passava. ‑ Só
trazem as selas?
‑ Compreendeis agora? ‑ tornou‑lhe Athos.
‑ Meus amigos, estão exactamente como eu: também conservei os arreios por instinto. Olá, Bazin! Colocai os meus arreios novos ao pé dos destes senhores.
‑ E que fizestes dos padres? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Meu caro, convidei‑os para jantar no dia seguinte ‑ respondeu Aramis. ‑ Há por cá um vinho excelente, diga‑se de passagem, e embebedei‑os de caixão à cova. Então o pároco proibiu‑me de deixar a farda e o jesuíta rogou‑me que o ajudasse a ser admitido como mosqueteiro.
‑ Sem tese! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Sem tese! Exijo a supressão da tese!
‑ Desde então ‑ continuou Aramis ‑ vivo agradavelmente. Comecei um poema em versos de uma sílaba e é bastante difícil, mas em todas as coisas o mérito reside na dificuldade. O tema é galante. Ler‑vos‑ei o primeiro canto: tem quatrocentos versos e dura um minuto.
‑ Meu caro Aramis ‑ disse d'Artagnan, que detestava quase tanto os versos como o latim ‑, juntai ao mérito da dificuldade o da brevidade e pelo menos tereis a certeza de que o vosso poema possuirá dois méritos.
‑ Depois ‑ continuou Aramis ‑ respira paixões honestas, como vereis... E agora, meus amigos, regressamos a Paris? Bravo, estou pronto! Ainda bem que vamos tornar a ver esse bom Porthos. Talvez não acrediteis, mas sinto a falta desse grande simplório. Porthos não trocaria o seu cavalo nem por um reino. Tomara já vê‑lo montado no seu belo animal na sua sela... Estou certo de que parecerá o Grão‑MongoL.
Fez‑se um alto de uma hora para descanso dos cavalos; depois Aramis pagou a sua conta, colocou Bazin no carroção com os seus camaradas e meteram‑se a caminho ao encontro de Porthos.
Encontraram‑no de pé, menos pálido do que o vira d'Artagnan na sua primeira visita, e sentado a uma mesa onde, embora estivesse sozinho, havia um jantar para quatro pessoas. O jantar compunha‑se de carnes excelentemente cozinhadas, de vinhos escolhidos e de frutos soberbos.
‑ Por Deus! ‑ exclamou levantando‑se. ‑ Chegais na melhor altura, meus senhores! Ia justamente na sopa e ides jantar comigo.
‑ Oh, oh! ‑ interveio d'Artagnan. ‑ Com certeza que não foi Mousqueton quem apanhou a lazo, como as garrafas, esse fricandó recheado e esse lombo de vaca...
‑ Estou a restabelecer‑me ‑ declarou Porthos. ‑ Estou a restabelecer‑me. Não há nada que enfraqueça tanto como os malditos entorses. Já tivestes entorses, Athos?
‑ Nunca! Mas recordo‑me de que na nossa escaramuça da Rua Férou recebi uma estocada que ao cabo de quinze ou dezoito dias me produziu exactamente o mesmo efeito.
‑ Mas este jantar não era só para vós, meu caro Porthos? ‑ perguntou Aramis.
‑ Não ‑ respondeu Porthos. ‑ Esperava alguns gentis‑homens das vizinhanças que acabam de me mandar dizer que não virão; substitui‑los‑eis e não perderei com a troca. Olá, Mousqueton, trazei assentos e o dobro das garrafas!
‑ Sabeis o que estamos a comer? ‑ perguntou Athos ao cabo de dez minutos.
‑ Meu Deus, eu estou a comer vitela recheada com alcachofras e miolos! ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ E eu lombo de cordeiro ‑ disse Porthos.
‑ E eu peito de galinha ‑ disse Aramis.
‑ Estais enganados, meus senhores ‑ respondeu Athos. ‑ O que comeis é carne de cavalo.
‑ Ora adeus! ‑ redarguiu d'Artagnan, incrédulo.
‑ Cavalo! ‑ exclamou Aramis, com uma careta de repugnância. Só Porthos não disse nada.
‑ Sim, carne de cavalo! Não é verdade, Porthos, que estamos a comer carne de cavalo? Se calhar até com as gualdrapas!
‑ Não, meus senhores, guardei os arreios ‑ respondeu Porthos.
‑ Palavra que estamos uns para os outros ‑ comentou Aramis. ‑ Até parece que passámos palavra.
‑ Que quereis, o cavalo envergonhava os meus visitantes e não os quis humilhar ‑ desculpou‑se Porthos.
‑ E a vossa duquesa continua nas termas, não é verdade? ‑ insinuou d'Artagnan.
‑ Pois continua ‑ respondeu Porthos. ‑ Por outro lado, o governador da província, um dos gentis‑homens que esperava hoje para jantar, pareceu‑me desejá‑lo tanto que lho dei.
‑ Destes‑lho?! ‑ exclamou d'Artagnan.
‑ Meu Deus, sim, dei‑lho, é essa a palavra ‑ respondeu Porthos. ‑ Porque ele valia decerto cento e cinquenta luíses e o sovina só me pagou oitenta.
‑ Sem a sela? ‑ perguntou Aramis.
‑ Sim, sem a sela.
‑ Como vedes, senhores, foi ainda Porthos quem fez o melhor negócio de nós todos ‑ observou Athos.
Seguiu‑se uma gargalhada geral que deixou o pobre Porthos sem saber o que pensar; mas assim que lhe explicaram o motivo de tamanha hilaridade compartilhou‑a ruidosamente, conforme o seu costume.
‑ Excepto eu ‑ disse Athos. ‑ Achei o vinho de Espanha de Aramis tão bom que mandei carregar umas sessenta garrafas no carroção dos lacaios, o que me deixou sem cheta.
‑ E eu ‑ disse Aramis ‑ imaginai como estaria de dinheiro se tenho dado até ao meu último soldo à igreja de Montdidier e aos jesuítas de Amiens, e se além disso tenho assumido compromissos que teria agora de cumprir, como encomendar missas por mim e por vós que a serem ditas, senhores, não duvido nos fossem muito úteis.
‑ E eu ‑ disse Porthos ‑, julgais que o meu entorse não me custou nada? Sem contar com o ferimento de Mousqueton, que me obrigou a mandar vir o cirurgião duas vezes por dia, o qual me fez pagar as visitas a dobrar, a pretexto de o imbecil do Mousqueton se ter feito balear num sítio que habitualmente só se mostra aos boticários. Mas eu recomendei‑lhe que nunca mais se deixasse ferir aí.
‑ Vamos, vamos ‑ disse Athos, trocando um sorriso com d'Artagnan e Aramis ‑, vejo que vos comportastes generosamente com o pobre rapaz, como é próprio de um bom amo.
‑ Em resumo ‑ continuou Porthos ‑, paga a minha despesa, restar‑me‑ao uns trinta escudos.
‑ E a mim uma dezena de pistolas ‑ disse Aramis.
‑ Apre, até parece que somos os Cresos da sociedade! Quanto vos resta das vossas cem pistolas, d'Artagnan?
‑ Das minhas cem pistolas? Em primeiro lugar, dei‑vos cinquenta... ‑Sim?...
‑ Ora essa!
‑ Ah, é verdade, já me lembro!...
‑ Depois, paguei seis ao estalajadeiro.
‑ Que animal, esse estalajadeiro! Por que lhe destes seis pistolas?
‑ Vós è que me dissestes para lhas dar.
‑ Não há dúvida que sou demasiado bom. Em resumo, quanto resta?
‑ Vinte e cinco pistolas ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ E eu ‑ disse Athos, tirando uns trocos da algibeira ‑, eu ...
‑ Vós, nada.
‑ De facto, é tão pouca coisa que não vale a pena ir para o monte.
‑ Agora, calculemos quanto possuímos ao todo. Porthos!
‑ Trinta escudos.
‑ Aramis!
‑ Dez pistolas.
‑ E vós, d'Artagnan?
‑ Vinte e cinco.
‑ Isso faz ao todo? ‑ perguntou Athos.
‑ Quatrocentas e setenta e cinco libras! ‑ respondeu d'Artagnan, que contava como Arquimedes.
‑ Quando chegarmos a Paris ainda devemos ter quatrocentas, mais os arreios ‑ disse Porthos.
‑ Mas os nossos cavalos de esquadrão? ‑ lembrou Aramis.
‑ Bom, dos quatro cavalos dos lacaios faremos dois de amo que tiraremos à sorte; com as quatrocentas libras arranjaremos uma pileca para um dos desmontados e entregaremos os restos das algibeiras a d'Artagnan, que tem boa mão, para os ir jogar na primeira tavolagem que encontrar.
‑ Entretanto jantemos, antes que a comida arrefeça ‑ disse Porthos.
Os quatro amigos, agora mais tranquilos quanto ao seu futuro, fizeram honras ao repasto, cujos restos foram deixados para os Srs. Mousqueton, Bazin, Planchet e Grimaud.
Quando chegou a Paris, d'Artagnan encontrou uma carta do Sr. de Tréville comunicando‑lhe que, a seu pedido, o rei acabava de lhe conceder a mercê de entrar para os mosqueteiros.
Como era tudo o que d'Artagnan anbicionava no mundo, à parte, evidentemente, o desejo de reencontrar a Sr.a Bonacieux, correu satisfeitíssimo para junto dos seus camaradas, de quem se separara havia cerca de meia hora, e que encontrou muito tristes e preocupados. Estavam reunidos em conselho em casa de Athos, o que indicava sempre circunstâncias de certa gravidade.
O Sr. de Tréville acabava de os mandar avisar de que, como o rei estava firmemente decidido a abrir a campanha no dia 1 de Maio, deviam preparar incontinente os seus equipamentos.
Os quatro filósofos entreolharam‑se preocupadissimos: o Sr. de Tréville não era para brincadeiras no tocante a disciplina.
‑ E enquanto avaliais os equipamentos? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Oh, fizemos as contas com uma economia espartana e falta‑nos a cada um mil e quinhentas libras! ‑ informou Aramis.
‑ Quatro vezes mil e quinhentas libras são seis mil libras ‑ acrescentou Athos.
‑ A mim parece‑me que com mil libras cada um... Verdade seja que não falo como espartano, mas sim como procurador... ‑ insinuou d'Artagnan.
‑ Tenho uma ideia! ‑ exclamou Porthos, de súbito.
‑ Já é alguma coisa, pois nem sequer tenho a sombra de uma ‑ declarou friamente Athos. ‑ Mas quanto a d'Artagnan, meus senhores, a felicidade de ser de futuro dos nossos pô-lo louco. Mil libras! Declaro que só para mim preciso de duas mil!
‑ Quatro vezes dois são oito ‑ disse então Aramis. ‑ Precisamos portanto de oito mil libras para os nossos equipamentos, embora, valha a verdade, desses equipamentos já tenhamos as selas.
‑ Mais ‑ disse Athos, esperando que d'Artagnan que ia agradecer ao Sr. de Tréville, fechasse a porta ‑, mais o belo diamante que brilha no dedo do nosso amigo... Que diabo, é demasiado bom camarada para deixar irmãos em apuros quando traz no dedo médio o resgate de um rei!
A CAÇA AO EQUIPAMENTO
O mais preocupado dos quatro amigos era sem dúvida nenhuma d'Artagnan, embora d'Artagnan na sua qualidade de guarda, fosse muito mais fácil de equipar do que os Srs. Mosqueteiros, que eram fidalgos. Mas o nosso cadete da Gasconha era, como já tivemos ensejo de verificar, uma pessoa previdente e quase avara e por isso (explicai os contrários) quase mais presunçosa ainda do que Porthos. À preocupação com a sua vaidade, d'Artagnan juntava naquele momento uma inquietação menos egoísta. As poucas informações que conseguira obter acerca da Sr.a Bonacieux não lhe tinham proporcionado nenhuma novidade. O Sr. de Tréville falara à rainha; a rainha ignorava onde estava a jovem retroseira e prometera mandar procurá‑la. Mas tal promessa era muito vaga e não tranquilizava nada d'Artagnan.
Athos não saía do seu quarto; estava resolvido a não arriscar um passo para se equipar.
‑ Ainda temos quinze dias ‑ dizia aos amigos. ‑ Se passados esses quinze dias não tiver arranjado nada, ou antes, se nada me tiverem arranjado, como sou demasiado bom católico para estoirar a cabeça com um tiro de pistola, procurarei uma boa zaragata com quatro guardas de Sua Eminência ou oito ingleses e bater‑me‑ei até um me matar, o que, dada a sua quantidade não pode deixar de me acontecer. Dir‑se‑á então que morri pelo rei, de modo que terei feito o meu serviço sem necessidade de me equipar.
Porthos continuava a passear, de mãos atrás das costas, meneando a cabeça de alto a baixo e dizendo:
‑ Prosseguirei com a minha ideia. Aramis, preocupado não dizia nada.
É fácil ver por estes pormenores funestos que a desolação reinava na comunidade.
Os lacaios, pela sua parte, como os vassalos de Hipólito, partilhavam a triste pena dos amos. Mousqueton fazia provisão de restos; Bazin, que sempre tivera queda para a devoção, não saía das igrejas; Planchet entretinha‑se a ver voar as moscas, e Grimaud, a quem a tristeza geral não conseguia levar a romper o silêncio imposto pelo amo, soltava suspiros capazes de comover as pedras.
Os três amigos ‑ porque como dissemos Athos jurara não dar um passo para se equipar ‑, os três amigos saíam de manhã muito cedo e entravam tardissimo. Vagueavam pelas ruas de olhos postos no chão, não tivesse alguma das pessoas que por ali passara antes deles terem perdido a bolsa. Dir‑se‑ia que seguiam pistas, tamanha era a atenção com que olhavam para o chão nos sítios por onde passavam. Quando se encontravam, trocavam olhares desolados que queriam dizer: «Encontraste alguma coisa?»
No entanto, como Porthos fora o primeiro a ter uma ideia e a seguira com persistência, foi o primeiro a agir. Era um homem de acção, o digno Porthos. D'Artagnan viu‑o um dia dirigir‑se para a Igreja de Saint‑Leu e seguiu‑o instintivamente. Porthos entrou no lugar santo depois de erguer as guias do bigode e alisar a pêra, o que denotava sempre da sua parte as intenções mais conquistadoras. Como d'Artagnan tomava algumas precauções para se dissimular, Porthos julgou não ser visto. D'Artagnan entrou atrás dele e Porthos foi‑se encostar do lado de um pilar; d'Artagnan, sempre despercebido encostou‑se do outro.
Precisamente naquele dia havia um sermão e por isso a igreja tinha muita gente. Porthos aproveitou a circunstância para deitar o olho às mulheres. Graças aos bons cuidados de Mousqueton, o seu exterior estava longe de deixar transparecer a miséria que ia lá por dentro. O chapéu estava um bocadinho coçado, a pluma um pouco desbotada, os bordados um tanto baços e as rendas algo rotas, mas à meia luz ninguém reparava em tais ninharias e Porthos não deixava de ser o belo Porthos. D'Artagnan notou no banco mais próximo do pilar a que Porthos e ele estavam encostados uma espécie de beleza madura, um pouco deslavada, um pouco seca, mas muito direita e altiva debaixo da sua touca negra. Os olhos de Porthos baixavam‑se furtivamente sobre a dama e depois divagava ao longo da nave.
Pela sua parte, a dama, que de vez em quando corava, lançava com a rapidez do relâmpago um olhar ao volúvel Porthos, e imediatamente os olhos de Porthos divagavam pela igreja. Era evidente tratar‑se de um manejo que impressionava a dama de touca preta, pois ela mordia os lábios até sangrarem, coçava a ponta do nariz e mexia‑se desesperadamente no seu lugar.
Vendo isto, Porthos torceu de novo o bigode, alisou pela segunda vez a pêra e pôs‑se a fazer sinais a outra dama, que estava perto do coro, e que não só era uma bela dama, mas também uma grande dama sem dúvida, pois tinha atrás de si um pretinho que trouxera a almofada em que estava ajoelhada e uma criada que segurava na bolsa brasonada onde guardava o livro de missa.
A dama de touca preta seguia através de todos os seus meandros o olhar de Porthos, até que descobriu que ele se detinha na dama da almofada de veludo, do pretinho e da criada.
Entretanto, Portos jogava pelo seguro: eram piscadelas de olho, dedos pousados nos lábios, sorrizinhos assassinos, que realmente assassinavam a bela desdenhada.
Soltou por isso, em forma de mea culpa e batendo no peito um «Hum!» de tal modo sonoro que toda a gente, incluindo a dama da almofada vermelha se virou no seu lugar. Porthos manteve‑se firme: embora tivesse ouvido bem. Fez de surdo.
A dama da almofada vermelha produziu sensação, pois era de facto muito bela, e impressionou a dama de touca preta, que viu nela uma rival realmente temível. Também impressionou grandemente Porthos que a achou mais bonita do que a dama de touca preta, e igualmente d'Artagnan, que reconheceu a dama de Meung, de Calais e de Dover que o seu perseguidor, o homem da cicatriz, cumprimentara tratando‑a por Milady.
Sem perder de vista a dama da almofada vermelha, d'Artagnan continuou a seguir os manejos de Porthos, que achava divertidissimos; julgou adivinhar que a dama da touca preta era a procuradora da Rua dos Ursos, tanto mais que a Igreja de Saint‑Leu não ficava muito longe dessa rua.
Adivinhou então por indução que Porthos procurava desforrar‑se da sua derrota de Chantilly, quando a procuradora se mostrara tão recalcitrante a respeito da bolsa.
Mas no meio de tudo aquilo, d'Artagnan notou também que ninguém correspondia aos galanteios de Porthos. Não passava tudo de quimeras e ilusões; mas para um amor verdadeiro, para um ciúme autêntico, haverá outra realidade além das ilusões e das quimeras?
O sermão terminou. A procuradora dirigiu‑se para a pia da água benta: Porthos antecipou‑se‑lhe e, em vez de um dedo, meteu a mão toda. A procuradora sorriu, julgando que era por ela que Porthos fazia aquilo tudo; mas foi pronta e cruelmente desenganada: quando não estava a mais de três passos dele, Porthos virou a cabeça e fixou invariavelmente os olhos na dama da almofada vermelha, que se levantava e se aproximava seguida do seu pretinho e da criada.
Quando a dama da almofada vermelha chegou junto de Porthos, este tirou a mão a escorrer da pia da água benta; a bela devota tocou com a sua mão afilada a manápula de Porthos, fez sorrindo o sinal da cruz e saiu da igreja.
Foi de mais para a procuradora; não duvidou mais de que aquela dama e Porthos se entendiam. Se fosse uma grande dama, teria desmaiado: mas como não passava de uma procuradora, limitou‑se a dizer ao mosqueteiro, com furor concentrado:
‑ Então, Sr. Porthos, não me ofereceis água benta?
Ao ouvir‑lhe a voz, Porthos teve um sobressalto digno de um homem que acordasse depois de um sono de cem anos.
‑ Se... senhora! ‑ exclamou. ‑ Sois de facto vós? Como está o vosso marido, esse caro Sr. Coquenard? Continua a ser tão sovina como era? Onde tinha eu os olhos que nem sequer vos vi durante as duas horas que durou o sermão?
‑ Estava a dois passos de vós, senhor ‑ respondeu a procuradora. ‑ Mas não me vistes porque só tínheis olhos para a bela dama a quem acabais de dar água benta.
Porthos fingiu‑se embaraçado.
‑ Ah, notastes!... ‑ murmurou.
‑ Só quem fosse cego não via.
‑ Tendes razão ‑ reconheceu negligentemente Porthos. ‑ É uma duquesa minha amiga com a qual tenho muita dificuldade em me encontrar por causa dos ciúmes do marido, e que me mandara avisar de que viria hoje, apenas para me ver, a esta mísera igreja nos confins deste bairro perdido.
‑ Sr. Porthos, quereis ter a bondade de me oferecer o braço durante cinco minutos para ter o prazer de conversar convosco? ‑ perguntou a procuradora.
‑ Por que não, senhora? ‑ redarguiu Porthos, piscando o olho a si mesmo, como um jogador que ri da partida que vai pregar.
Neste momento, d'Artagnan passava na cola de Milady; olhou de esguelha para Porthos e viu‑lhe a piscadela de olho triunfante.
«Oh, oh!», disse para consigo, raciocinando de acordo com a moral estranhamente fácil daquela época galante, «ali está um que talvez se consiga equipar dentro do prazo marcado.»
Entretanto, Porthos, cedendo à pressão do braço da procuradora como um barco cede ao leme, chegou ao claustro de Saint‑Magloire, passagem pouco frequentada e encerrada por molinetes nas duas extremidades. De dia só se viam por ali mendigos a comer ou garotos a brincar.
‑ Ah, Sr. Porthos! ‑ exclamou a procuradora, depois de se assegurar de que nenhuma pessoa estranha à população habitual do local os podia ver nem ouvir. ‑ Ah, Sr. Porthos, sois um grande vencedor, ao que parece!
‑ Eu, senhora? ‑ disse Porthos empertigando‑se. ‑ Mas porquê?
‑ Então os sinais de há bocado, e a água benta?... É pelo menos uma princesa, aquela dama com o seu pretinho e a sua criada de quarto!
‑ Enganais‑vos; meu Deus, não, é simplesmente uma duquesa ‑ respondeu Porthos.
‑ E o batedor que esperava à porta, e a carruagem com um cocheiro em libré de gala que esperava no seu lugar?
Porthos não vira nem o batedor nem a carruagem; mas com o seu olhar de mulher ciumenta a Sr.a Coquenard vira tudo.
Porthos lamentou não ter feito logo de início a dama da almofada vermelha princesa.
‑ Sois o menino bonito das belas, Sr. Porthos! ‑ prosseguiu, suspirando, a procuradora.
‑ Como deveis compreender, com o físico com que a natureza me dotou não me podiam faltar aventuras galantes ‑ redarguiu Porthos.
‑ Meu Deus, como os homens esquecem depressa! ‑ exclamou a procuradora, erguendo os olhos ao céu.
‑ Menos depressa do que as mulheres, parece‑me ‑ respondeu Porthos. ‑ Porque enfim, eu, senhora, posso dizer que fui vossa vítima, quando ferido, moribundo, me vi abandonado pelos cirurgiões. Eu, o descendente de uma família ilustre, que confiara na vossa amizade, estive quase a morrer dos meus ferimentos, primeiro, e de fome, depois, numa má estalagem de Chantilly, sem que vos dignásseis responder uma só vez às cartas ardentes que vos escrevi.
‑ Mas, Sr. Porthos... ‑ murmurou a procuradora, que sentia, a julgar pelo comportamento das maiores damas da época, que não procedera bem.
‑ Eu que sacrifiquei por vós a condessa de Penaflor...
‑ Bem sei.
‑ A baronesa de...
‑ Sr. Porthos, não me acabrunheis mais.
‑ A duquesa de...
‑ Sr. Porthos, sede generoso!
‑ Tendes razão, senhora, não vos incomodarei mais.
‑ Mas é o meu marido que não quer ouvir falar de emprestar.
‑ Sr.a Coquenard ‑ respondeu Porthos ‑, lembrai‑vos da primeira carta que me escrevestes e que conservo gravada na memória.
A procuradora soltou um gemido.
‑ Além disso, a quantia que pedíeis emprestada era bastante avultada...
‑ Sr.a Coquenard, dei‑vos a preferência. Bastou‑me escrever à duquesa de... Não digo o seu nome, porque sou incapaz de comprometer uma mulher; mas a verdade é que bastou‑me escrever‑lhe para que me enviasse mil e quinhentas.
A procuradora verteu uma lágrima.
‑ Sr. Porthos, juro‑vos que me castigastes exemplarmente e que se no futuro vos encontrardes em semelhante apuro não tereis mais do que dirigir‑vos a mim.
‑ Então, senhora, não falemos de dinheiro, por favor, que é um assunto humilhante! ‑ redarguiu Porthos, como que revoltado.
‑ Portanto já não me amais... ‑ disse lenta e tristemente a procuradora.
Porthos guardou um silêncio majestoso.
‑ É assim que me respondeis? Infelizmente, compreendo!
‑ Lembrai‑vos da ofensa que me fizestes, senhora. Tenho‑a aqui ‑ disse Porthos, pousando a mão no coração e carregando com força.
‑ Eu a repararei. Vamos, meu caro Porthos!...
‑ De resto, que vos pedia eu? ‑ prosseguiu Porthos, com um encolher de ombros cheio de bonomia. ‑ Um empréstimo e mais nada. No fim de contas, sou um homem comedido. Sei que não sois rica, Sr.a Coquenard, e que o vosso marido é obrigado a sugar os pobres litigantes para lhes arrancar alguns míseros escudos. Oh, se fôsseis condessa, marquesa ou duquesa, seria diferente e não vos perdoaria!
A procuradora sentiu‑se ofendida.
‑ Pois ficai sabendo, Sr. Porthos ‑ volveu‑lhe ‑, que o meu cofre, apesar de ser o cofre de uma procuradora, talvez esteja melhor recheado do que o de todas as vossas lambisgóias arruinadas!
- Nesse caso, ofendestes‑me duplamente ‑ replicou Porthos, tirando o braço da procuradora debaixo do seu. ‑ Porque se sois rica, Sr.a Coquenard, então a vossa recusa já não tem desculpa.
‑ Quando digo que sou rica ‑ recuou a procuradora, ao ver que se deixara levar demasiado longe ‑, não é para que se tome a palavra à letra. Não sou precisamente rica, vivo com desafogo.
‑ Olhai, senhora, não falemos mais a tal respeito, peço‑vos ‑ redarguiu Porthos. ‑ Ofendestes‑me; toda a simpatia se extinguiu entre nós.
‑ Sois um ingrato!
‑ Só tendes que vos queixar de vós... ‑ tornou‑lhe Porthos.
‑ Ide então ter com a vossa bela duquesa! Não vos retenho mais.
‑ Não preciso que me mandeis.
‑ Vejamos, Sr. Porthos, mais uma vez, a última: ainda me amais?
‑ infelizmente, senhora, quando vamos entrar em campanha, numa campanha onde os meus pressentimentos me dizem que serei morto... ‑ respondeu Porthos, no tom mais melancólico que conseguiu arranjar.
‑ Oh, não digais semelhantes coisas! ‑ exclamou a procuradora,
rompendo em soluços.
‑ Qualquer coisa mo diz ‑ continuou Porthos, em tom cada vez
mais melancólico.
‑ Dizei antes que tendes um novo amor.
‑ Não, e falo‑vos francamente. Nenhuma outra mulher me interessa, e até sinto aqui, no fundo do coração, qualquer coisa por vós. Mas dentro de quinze dias, como sabeis ou como não sabeis, começa a fatal campanha. Vou estar horrivelmente preocupado com o meu equipamento; depois, farei uma viagem a casa da minha família, nos confins da Bretanha, para arranjar o dinheiro necessário à minha partida.
Porthos notou um derradeiro combate entre o amor e a avareza.
‑ E como ‑ prosseguiu ‑ a duquesa que acabais de ver na igreja tem as suas terras perto das minhas, faremos a viagem juntos. Como sabeis, as viagens parecem sempre muito menos longas quando são feitas a dois...
‑ Não tendes nenhum amigo em Paris, Sr. Porthos? ‑ perguntou a
procuradora.
‑ Julguei ter ‑ respondeu Porthos, retomando o seu ar melancólico ‑, mas bem vi que me enganava.
‑ Tendes, sim, Sr. Porthos, tendes ‑ redarguiu a procuradora, num impulso que a ela própria surpreendeu. ‑ Ide amanhã lá a casa. Sois filho da minha tia, meu primo, portanto; vindes de Noyon, na Picardia, tendes diversos processos em Paris e não tendes procurador. Retereis bem tudo isto?
‑ Perfeitamente, senhora.
‑ Ide à hora do jantar.
‑ Muito bem.
‑ E aguentai firme diante do meu marido, que é finório, apesar dos seus setenta e seis anos.
‑ Setenta e seis anos! Apre, que bonita idade! ‑ exclamou Porthos
‑ Que idade avançada, deveis dizer, Sr. Porthos. O pobre homem pode deixar‑me viúva de um momento para o outro ‑ continuou a procuradora, deitando um olhar significativo a Porthos. ‑ Felizmente, pelo contrato de casamento deixámos tudo um ao outro.
‑ Tudo? ‑ perguntou Porthos.
‑ Tudo.
‑ Sois uma mulher cautelosa, bem vejo, minha querida Sr.a Coquenard ‑ insinuou Porthos, apertando ternamente a mão da procuradora.
‑ Estamos portanto reconciliados, caro Sr. Porthos? ‑ perguntou ela, requebrando‑se.
‑ Por toda a vida! ‑ respondeu Porthos no mesmo tom.
‑ Adeus, meu traidor...
‑ Adeus, minha esquecida.
‑ Até amanhã, meu anjo!
‑ Até amanhã, chama da minha vida.
MILADY
D'Artagnan seguira Milady sem ser notado por ela. Viu‑a subir para a sua carruagem e ouviu‑a dar ao cocheiro ordem de seguir para Saint‑Germain.
Era inútil tentar seguir a pé uma viatura levada a trote por dois cavalos vigorosos. D'Artagnan regressou pois à Rua Férou.
Na Rua de Seine encontrou Planchet parado diante da loja de um pasteleiro e como que extasiado diante de um brioche deveras apetitoso.
Mandou‑o ir selar dois cavalos às cavalariças do Sr. de Tréville, um para ele, d'Artagnan, outro para ele, Planchet, e de ir ter consigo a casa de Athos (o Sr. de Tréville pusera definitivamente as suas cavalariças às ordens de d'Artagnan).
Planchet encaminhou‑se para a Rua do Colombier e d'Artagnan para a Rua Férou. Athos estava em casa e despejava tristemente uma das garrafas do famoso vinho de Espanha que trouxera da sua viagem à Picardia. Fez sinal a Grimaud para trazer um copo para d'Artagnan, e Grimaud obedeceu como de costume.
D'Artagnan contou então a Athos tudo o que se passara na igreja entre Porthos e a procuradora e como o seu camarada estava provavelmente, àquela hora, em vias de se equipar.
‑ Quanto a mim ‑ respondeu Athos, depois de ouvir a história ‑, posso estar tranquilo, pois não serão as mulheres que pagarão o meu arnês.
‑ E no entanto, simpático, cortês e grande senhor como sois, meu caro Athos, não haveria princesas, nem rainhas que resistissem aos vossos galanteios.
‑ Como este d'Artagnan é novo! ‑ exclamou Athos, encolhendo os ombros.
E fez sinal a Grimaud para trazer segunda garrafa.
Neste momento Planchet meteu timidamente a cabeça pela porta entreaberta e anunciou ao amo que os dois cavalos estavam ali.
‑ Quais cavalos? ‑ perguntou Athos.
‑ Dois que o Sr. de Tréville me emprestou para dar uma volta e com os quais vou dar uma volta por Saint‑Germain.
‑ E que ides fazer a Saint‑Germain? ‑ voltou a perguntar Athos. Então d'Artagnan contou‑lhe o encontro que tivera na igreja e como reconhecera a mulher que, com o fidalgo da capa preta e da cicatriz junto da têmpora, era a sua permanente preocupação.
‑ Quer dizer, estais apaixonado por ela como estivestes pela Sr.a Bonacieux ‑ concluiu Athos, encolhendo desdenhosamente os ombros, como se se compadecesse da fraqueza humana.
‑ Eu? De modo nenhum! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Tenho apenas curiosidade de desvendar o mistério em que se envolve. Não sei porquê, imagino que essa mulher, por mais desconhecida que seja e por mais desconhecido que eu lhe seja, tem qualquer influência sobre a minha vida.
‑ Bem vistas as coisas, tendes razão ‑ declarou Athos. ‑ Não conheço nenhuma mulher que valha a pena procurar, uma vez perdida. A Sr.a Bonacieux perdeu‑se, tanto pior para ela! Que se encontre!
‑ Não, Athos, não, enganais‑vos ‑ redarguiu d'Artagnan. ‑ Amo a minha pobre Constance mais do que nunca e se soubesse onde ela está, ainda que fosse no cabo do mundo, iria arrancá‑la das mãos dos seus inimigos; mas ignoro‑o, todas as minhas buscas foram inúteis. Que quereis, alguma coisa tenho de fazer para me distrair.
‑ Distraí‑vos então com Milady, meu caro d'Artagnan; desejo‑o de todo o coração, se isso for capaz de vos divertir.
‑ Escutai, Athos: em vez de estardes fechado aqui, como se estivésseis preso, montai a cavalo e vinde passear comigo a Saint‑Germain ‑ sugeriu d'Artagnan.
‑ Meu caro ‑ replicou Athos ‑, monto os meus cavalos quando os tenho, senão vou a pé.
‑ Pois eu ‑ respondeu d'Artagnan, sorrindo da misantropia de Athos, que noutro o teria certamente ofendido ‑, eu que sou menos orgulhoso do que vós, monto o que encontro. Portanto, até à vista, meu caro Athos.
‑ Até à vista ‑ disse o mosqueteiro, fazendo sinal a Grimaud para abrir a garrafa que acabava de trazer. D'Artagnan e Planchet saltaram para as selas e puseram‑se a caminho de Saint‑Germain.
Durante todo o caminho o que Athos dissera acerca da Sr.a Bonacieux não saiu da cabeça do jovem. Embora d'Artagnan não fosse muito sentimental, a bonita retroseira produzira uma impressão sincera no seu coração. Como dizia, estava pronto a ir ao cabo do mundo para a procurar. Mas o mundo tem muitos cabos, precisamente por ser redondo, de modo que não sabia para que lado se virar.
Entretanto, ia procurar saber quem era Milady. Milady falara com o homem da capa preta; portanto, conhecia‑o. Ora, no espírito de d'Artagnan fora o homem de capa preta quem raptara a Sr.a Bonacieux da segunda vez, exactamente como a raptara da primeira. D'Artagnan só mentia pois metade, o que è mentir muito pouco, quando dizia que procurando Milady procurava ao mesmo tempo Constance.
Entregue a estes pensamentos e esporeando de vez em quando o cavalo, d'Artagnan chegara a Saint‑Germain. Acabava de seguir ao longo do pavilhão onde dez anos mais tarde deveria nascer Luís XIV. Atravessava uma rua quase deserta, olhando para a direita e para a esquerda a ver se descobria algum vestígio da sua bela inglesa, quando no rés‑do‑chão de uma bonita casa, que de acordo com o uso da época não tinha nenhuma janela para a rua, viu aparecer uma cara conhecida. Essa cara passeava numa espécie de terraço guarnecido de flores. Planchet foi o primeiro a reconhecê‑la.
‑ Eh, senhor! ‑ exclamou dirigindo‑se a d'Artagnan. ‑ Não vos lembrais daquela cara de parvo?
‑ Não ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ E no entanto estou certo de que não é a primeira vez que a vejo...
‑ Sem dúvida nenhuma ‑ disse Planchet. ‑ É o pobre Lubin, o lacaio do conde de Wardes, aquele de quem vos livrastes tão bem há um mês em Calais, na estrada da casa de campo do governador.
‑ Ah, sim, sim!... ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Reconheço‑o agora. Achas que te terá reconhecido?
‑ Oh, senhor, ele estava tão transtornado que duvido que tenha guardado de mim uma lembrança muito nítida!
‑ Nesse caso, vai falar com o moço e informa‑te durante a conversa se o amo morreu ‑ ordenou d'Artagnan.
Planchet saltou do cavalo, foi direito a Lubin, que de facto o não reconheceu, e os dois lacaios puseram‑se a conversar na melhor harmonia do mundo, enquanto d'Artagnan levava os dois cavalos para uma ruela e, contornando uma casa, vinha assistir ao paleio atrás de uma sebe de aveleiras.
Ao cabo de um instante de observação atrás da sebe, ouviu o ruído de uma viatura e viu parar defronte de si a carruagem de Milady. Não havia erro possível: Milady vinha lá dentro. D'Artagnan deitou‑se sobre o pescoço do cavalo, a fim de ver tudo sem ser visto.
Milady deitou a cabeça loura fora da portinhola e deu umas ordens à sua criada de quarto.
Esta, uma linda rapariga de vinte a vinte e dois anos, esperta e viva, autêntica criada ladina de grande dama, saltou do estribo, em que vinha sentada segundo o costume da época, e dirigiu‑se para o terraço onde d'Artagnan vira Lubin.
D'Artagnan seguiu a criadita com os olhos e viu‑a encaminhar‑se para o terraço. Mas por acaso uma ordem do interior chamara Lubin, de modo que Planchet ficara sozinho, a olhar para todos os lados a ver se descobria por que caminho desaparecera d'Artagnan.
A criada de quarto aproximou‑se de Planchet, que tomou por Lubin, e disse‑lhe, estendendo‑lhe um bilhetinho:
‑ Para o vosso amo.
‑ Para o meu amo? ‑ repetiu Planchet, atónito.
‑ Sim e com muita urgência. Ide pois depressa.
Em seguida correu para a carruagem, que entretanto dera a volta e ficara virada para o lado donde viera; saltou para o estribo e a carruagem voltou a partir.
Planchet virou e revirou o bilhete; depois, habituado à obediência passiva, saltou do terraço, meteu pela ruela e encontrou ao fim de vinte passos d'Artagnan, que tendo visto tudo vinha ao seu encontro.
‑ Para vós, senhor ‑ disse Planchet, apresentando o bilhete ao jovem.
‑ Para mim? ‑ estranhou d'Artagnan. ‑ Tens a certeza?
‑ Se tenho a certeza, meu Deus! A criada disse: «Para o vosso amo.» Como não tenho outro amo a não serdes vós... Um brinquinho de rapariga, palavra, aquela criadita!
D'Artagnan abriu a carta e leu estas palavras:
Uma pessoa que se interessa por vós mais do que o pode dizer gostaria de saber em que dia estareis em estado de passear na floresta. Amanhã, na estalagem do Champ du Drap d'Or, um lacaio vestido de preto e vermelho esperará a vossa resposta.
‑ Oh, oh, aqui está uma coisa curiosa! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Parece que Milady e eu nos preocupamos com a saúde da mesma pessoa. Dize‑me, Planchet, como está esse bom Sr. de Wardes? Não morreu?
‑ Não, senhor, e está tão bem quanto pode estar com quatro estocadas no corpo, aquelas que com toda a limpeza destes a esse digno gentil‑homem. Encontra‑se ainda muito fraco, pois perdeu quase todo o sangue. Como disse ao senhor, Lubin não me reconheceu e contou‑me toda a aventura de uma ponta à outra.
‑ Muito bem, Planchet, és o rei dos lacaios; agora, monta a cavalo e apanhemos a carruagem.
Não tiveram de correr muito; ao cabo de cinco minutos viram a carruagem parada à beira da estrada; um cavaleiro ricamente vestido estava à portinhola.
A conversa entre Milady e o cavaleiro era tão animada que d'Artagnan parou do outro lado da carruagem sem que ninguém, além da bonita criadita, desse pela sua presença.
Falavam em inglês, língua que d'Artagnan não compreendia; mas pelo tom o jovem julgou adivinhar que a bela inglesa estava muito encolerizada. Ela terminou com um gesto que não deixou quaisquer dúvidas acerca da natureza do diálogo: uma pancada de leque aplicada com tal força que o pequeno artefacto feminino voou em mil pedaços.
O cavaleiro soltou uma gargalhada que pareceu exasperar Milady.
D'Artagnan achou que era o momento de intervir; aproximou‑se da outra portinhola e disse, descobrindo‑se respeitosamente:
‑ Senhora, permitis que vos ofereça os meus serviços? Parece‑me que este cavalheiro vos irritou. Dizei uma palavra, senhora, e encarrego‑me de o castigar pela sua falta de cortesia.
Milady virara‑se ao ouvir as primeiras palavras e olhara o jovem com espanto. Quando ele terminou, respondeu‑lhe em excelente francês:
‑ Senhor, com muito prazer me colocaria sob a vossa protecção se a pessoa que discute comigo não fosse meu irmão.
‑ Ah, desculpai‑me então! ‑ redarguiu d'Artagnan. ‑ Mas como compreendeis ignorava isso, senhora.
‑ Que quer este intrometido? ‑ perguntou, baixando‑se à altura da portinhola, o cavaleiro que Milady designara como seu parente. ‑ Por que não segue o seu caminho?
‑ Intrometido sois vós ‑ redarguiu d'Artagnan, baixando‑se por seu turno sobre o pescoço do cavalo e respondendo do seu lado através da portinhola. ‑ Não sigo o meu caminho porque me apraz parar aqui.
O cavaleiro dirigiu algumas palavras em inglês à irmã.
‑ Falei‑vos em francês ‑ interveio d'Artagnan. ‑ Dai‑me portanto o prazer, peço‑vos, de me responder na mesma língua. Sois irmão da senhora; seja! Mas não sois meu, felizmente.
Julgar‑se‑ia que Milady, medrosa como è habitualmente uma mulher, se fosse interpor neste começo de provocação, a fim de impedir que a questão fosse mais longe; mas, muito pelo contrário, recostou‑se na carruagem e gritou friamente ao cocheiro:
‑ Para o palácio!
A bonita criadinha lançou um olhar inquieto a d'Artagnan, cujo rosto simpático parecia ter produzido o seu efeito sobre ela.
A carruagem partiu e deixou os dois homens diante um do outro, sem que qualquer obstáculo material os separasse.
O cavaleiro fez um movimento para seguir a carruagem; mas d'Artagnan, cuja cólera já a ferver aumentara ainda mais ao reconhecer no inglês aquele que em Amiens lhe ganhara o cavalo e quase ganhara a Athos o seu diamante, saltou‑lhe às rédeas e deteve‑o.
‑ Então, senhor, pareceis com mais pressa de vos irdes embora do que eu, como se não houvesse entre nós uma pequena questão a resolver.
‑ Ah, ah! ‑ exclamou o inglês. ‑ Quereis então dar‑me lições? Pelos vistos, tendes sempre de desempenhar um papel...
‑ É verdade, e isso recorda‑me que tenho uma desforra a tirar.
Veremos, meu caro senhor, se manejais tão habilmente a espada como o copo de dados.
‑ Bem vedes que não trago espada ‑ declarou o inglês. ‑ Quereis armar em valente contra um homem sem armas?
‑ Espero que as tenhais em casa ‑ replicou d'Artagnan. ‑ Em todo o caso, tenho duas e se quiserdes emprestar‑vos‑ei uma.
‑ Inútil ‑ recusou o inglês. ‑ Estou suficientemente fornecido dessa espécie de utensílios.
‑ Então, meu digno gentil‑homem ‑ prosseguiu d'Artagnan ‑ escolhei a mais comprida e vinde mostrar‑ma esta tarde.
‑ Onde, por favor?
‑ Atrás do Luxemburgo há um sítio encantador para os passeios do género do que vos proponho.
‑ Está bem, seja aí.
‑ A vossa hora?
‑ Seis horas.
‑ A propósito, também tendes provavelmente um ou dois amigos?
‑ Tenho três que se sentirão muito honrados em jogar a mesma partida que eu.
‑ Três? Maravilhoso! Que coincidência, é precisamente a minha conta! ‑ declarou d'Artagnan.
‑ Agora, quem sois? ‑ perguntou o inglês.
‑ Sou o Sr. d'Artagnan, gentil‑homem gascão em serviço nas Guardas, companhia do Sr. dos Essarts. E vós?
‑ Eu sou Lorde Winter, barão de Sheffield.
‑ Sou um vosso criado, Sr. Barão, embora tenhais nomes muito difíceis de reter ‑ disse d'Artagnan.
E esporeando o cavalo meteu‑o a galope e retomou o caminho de Paris.
Como era seu hábito em semelhantes ocasiões, d'Artagnan foi direito a casa de Athos.
Encontrou Athos deitado num grande canapé, onde esperava, como dissera, que o seu equipamento o viesse procurar.
Contou a Athos tudo o que acabava de se passar, excepto a carta do Sr. de Wardes.
Athos ficou encantado quando soube que se ia bater contra um inglês. Já dissemos que esse era o seu sonho.
Mandaram chamar imediatamente Porthos e Aramis pelos lacaios e puseram‑nos ao corrente da situação.
Porthos desembainhou a espada e pôs‑se a esgrimir contra a parede, recuando de vez em quando e flectindo os joelhos como um bailarino. Aramis, que continuava a trabalhar no seu poema, fechou‑se no gabinete de Athos e pediu que não o incomodassem antes do momento de desembainhar.
Athos pediu por sinais uma garrafa a Grimaud.
Quanto a d'Artagnan traçou só para consigo um planozinho, que veremos mais tarde em execução, e que lhe prometia alguma aventura engraçada, como se podia deduzir pelos sorrisos que de vez em quando lhe passavam pelo rosto, cujo devaneio iluminavam.
INGLESES E FRANCESES
À hora combinada dirigiram‑se com os quatro lacaios para trás do Luxemburgo, um recinto abandonado às cabras. Athos deu uma moeda ao cabreiro para que se retirasse. Os lacaios foram encarregados de montar sentinela.
Não tardou a aproximar‑se do recinto um grupo silencioso, que entrou e se juntou aos mosqueteiros; depois, de acordo com os hábitos de além‑mar, sucederam‑se as apresentações.
Os ingleses eram todos pessoas da mais alta categoria, para quem os nomes extravagantes dos seus adversários foram motivo não só de surpresa, mas também de inquietação.
‑ Mas assim ‑ declarou Lorde de Winter, depois de os três amigos se apresentarem ‑ Não sabemos quem sois e não nos bateremos com semelhantes nomes; isso são nomes de pastores!
‑ Por isso, como muito bem calculastes, milorde, são nomes falsos ‑ respondeu Athos.
‑ O que só contribuirá para que tenhamos um grande prazer em conhecer os vossos verdadeiros nomes ‑ redarguiu o inglês.
‑ Jogastes contra nós sem nos conhecerdes ‑ lembrou Athos ‑, o que vos não impediu de ganhardes os nossos dois cavalos...
‑ É certo, mas nesse caso arriscávamos apenas as nossas pistolas; desta vez, arriscamos o nosso sangue: joga‑se com toda a gente, só se luta com iguais.
‑ É justo ‑ admitiu Athos.
Chamou à parte aquele dos quatro ingleses com quem se devia bater e disse‑lhe o seu nome em voz baixa. Porthos e Aramis fizeram outro tanto.
‑ Basta‑vos? ‑ perguntou Athos ao seu adversário. ‑ Achais‑me suficiente grande senhor para me concederdes a mercê de cruzar a espada comigo?
‑ Sim, senhor ‑ respondeu o inglês, inclinando‑se.
‑ E agora quereis que vos diga uma coisa? ‑ perguntou Athos, friamente.
‑ Qual? ‑ volveu‑lhe o inglês.
‑ Que teríeis feito bem em não exigir que me desse a conhecer.
‑ Porquê?
‑ Porque me julgam morto, porque tenho razões para desejar que se não saiba que estou vivo e porque vou ser obrigado a matar‑vos para que o meu segredo não seja revelado.
O inglês olhou Athos, julgando que este gracejava; mas Athos não gracejava de forma alguma.
‑ Senhores ‑ disse dirigindo‑se simultaneamente aos seus companheiros e aos seus adversários ‑, estais prontos?
‑ Estamos ‑ responderam em uníssono ingleses e franceses.
‑ Então, em guarda ‑ comandou Athos.
Imediatamente oito espadas brilharam aos raios do sol poente e o combate começou com um encarniçamento muito natural entre pessoas duas vezes inimigas.
Athos esgrimia com tanta calma e método como se estivesse numa sala de armas.
Porthos, emendado sem dúvida da sua excessiva confiança desde a sua aventura de Chantilly, aplicava‑se com muita finura e prudência.
Aramis, que tinha o terceiro canto do seu poema para acabar, despachava‑se como homem cheio de pressa.
Athos, o primeiro a acabar, matou o seu adversário: vibrou‑lhe apenas uma estocada, mas, como o prevenira, foi uma estocada mortal; a espada atravessou‑lhe o coração.
Porthos, o segundo, estendeu o seu na erva, com uma estocada numa coxa; e como o inglês, sem opor mais resistência, lhe entregou a espada, Porthos tomou‑o nos braços e levou‑o para a sua carruagem.
Aramis atacou o seu tão energicamente que depois de recuar uns cinquenta passos o inglês acabou por se pôr em fuga, com tanta rapidez quanta lhe permitiam as pernas, e por desaparecer, no meio da assuada dos lacaios.
Quanto a d'Artagnan, entregara‑se pura e simplesmente a um jogo defensivo; depois, quando vira o seu adversário bem cansado, fizera‑lhe saltar a espada com um vigoroso golpe de ilharga. Vendo‑se desarmado, o barão deu dois ou três passos à retaguarda; mas escorregou e caiu de costas.
D'Artagnan caiu sobre ele num só salto, colocou‑lhe a espada na garganta e disse ao inglês:
‑ Poderia matar‑vos, senhor, pois estais completamente nas minhas mãos, mas concedo‑vos a vida por amor da vossa irmã.
D'Artagnan não cabia em si de contente; acabava de pôr em prática o plano que imaginara antecipadamente e cujo desenvolvimento lhe fizera despontar no rosto os sorrisos de que falámos.
Encantado por ter lutado com um gentil‑homem tão compreensivo, o inglês abraçou d'Artagnan, cumulou de amabilidades os três mosqueteiros e como o adversário de Porthos estava já instalado na carruagem e o de Aramis dera às de vila‑diogo, pensou‑se apenas no defunto. Como Porthos e Aramis o despissem, na esperança de que o ferimento não fosse mortal, caiu‑lhe do cinturão uma volumosa bolsa. D'Artagnan apanhou‑a e estendeu‑a a Lorde de Winter.
‑ Que diabo quereis que faça disso? ‑ perguntou o inglês.
‑ Entregai‑a à sua família ‑ respondeu d'Artagnan.
‑ A família não se interessa por essa miséria, herda quinze mil luízes de rendimento. Guardai a bolsa para os vossos lacaios.
D'Artagnan meteu a bolsa na algibeira.
‑ E agora, meu jovem amigo, porque espero que me permitais dar‑vos este título ‑ disse Lorde de Winter ‑, esta noite, se quiserdes, apresentar‑vos‑ei a minha irmã, Lady Clarick. Quero que vos tome sob a sua protecção e como não é totalmente destituída de coração talvez no futuro uma palavra dita por ela vos seja útil...
D'Artagnan corou de prazer e inclinou‑se em sinal de assentimento. Entretanto, Athos aproximara‑se de d'Artagnan.
‑ Que tencionais fazer dessa bolsa? ‑ perguntou‑lhe ao ouvido.
‑ Tencionava entregar‑vo‑la, meu caro Athos.
‑ A mim? Porquê?
‑ Demónio, fostes vós que o matastes: são os despojos opimos.
‑ Eu, herdeiro de um inimigo?! ‑ redarguiu Athos. ‑ Por quem me tomais?
‑ É o costume na guerra ‑ lembrou d'Artagnan. ‑ Por que não há‑de ser o costume num duelo?
‑ Mesmo no campo de batalha, nunca fiz isso ‑ respondeu Athos. Porthos encolheu os ombros. Aramis, com um trejeito de lábios,
aprovou Athos.
‑ Então ‑ disse d'Artagnan ‑, demos o dinheiro aos lacaios, como Lorde Winter nos disse que fizéssemos.
‑ Sim ‑ concordou Athos ‑, demos a bolsa, não aos nossos lacaios, mas sim aos lacaios ingleses.
Athos pegou na bolsa e atirou‑a para a mão do cocheiro:
‑ Para vós e para os vosos camaradas.
Esta grandeza de maneiras num homem inteiramente carecido de meios impressionou o próprio Porthos, e semelhante generosidade francesa, espalhada por Lorde de Winter e pelo amigo, teve por toda a parte um grande êxito, excepto junto dos Srs. Grimaud, Mousqueton, Planchet e Bazin.
Ao despedir‑se de d'Artagnan, Lorde de Winter deu‑lhe o endereço da irmã; morava na Praça Royale, que era então o bairro da moda, no número 6. Aliás comprometeu‑se a vir buscá‑lo para o apresentar. D'Artagnan marcou‑lhe encontro às oito horas, em casa de Athos.
Ser apresentado a Milady era coisa que não saía da cabeça do nosso gascão. Recordara‑se de que forma estranha aquela mulher estivera até ali relacionada com o seu destino. Segundo a sua convicção, tratava‑se de alguma criatura do cardeal, e no entanto sentia‑se irresistivelmente atraído para ela, por um desses sentimentos de que não nos damos conta.
O seu único receio era que Milady reconhecesse nele o homem de Meung e de Dover. Saberia então que era amigo do Sr. de Tréville e por conseguinte que pertencia de corpo e alma ao rei, o que desde logo lhe faria perder parte das suas vantagens, uma vez que, conhecido de Milady como ela o conhecia, jogaria com ela de igual para igual. Quanto àquele começo de intriga entre ela e o conde de Wardes, o nosso presunçoso pouco se preocupava com isso, embora o conde fosse jovem, belo, rico e estivesse a caminho de se tornar deveras benquisto do cardeal O que não quer dizer nada para quem conta vinte anos, e sobretudo para quem nasceu em Tarbes.
D'Artagnan começou por ir para casa vestir‑se a preceito; depois, regressou a casa de Athos e, conforme o seu costume, contou‑lhe tudo. Athos escutou‑lhe os projectos; em seguida, abanou a cabeça e recomendou‑lhe prudência com uma espécie de amargura.
‑ Homessa! ‑ observou‑lhe. ‑ Acabais de perder uma mulher que dizíeis boa, encantadora, perfeita e já correis atrás doutra?
D'Artagnan sentiu quanto esta censura era verdadeira.
‑ Amava a Sr.a Bonacieux com o coração, ao passo que amo Milady com a cabeça ‑ respondeu. ‑ Entrando em sua casa procuro sobretudo esclarecer‑me acerca do papel que desempenha na corte.
‑ O papel que desempenha, meu Deus! Não é difícil de adivinhar depois de tudo o que me dissestes. É alguma emissária do cardeal; uma mulher que vos atrairá a uma cilada onde certamente deixareis a cabeça.
‑ Diabo, meu caro Athos, vedes as coisas muito pelo lado negro, parece‑me!
‑ Meu caro, desconfio das mulheres... Que quereis, tenho motivos para isso! E sobretudo das mulheres louras. Ora, Milady é loura, não foi o que me dissestes?
‑ Tem os cabelos do mais belo louro que se possa imaginar.
‑ Ah, meu pobre d'Artagnan! ‑ exclamou Athos.
‑ Escutai, quero elucidar‑me; quando souber o que desejo saber, afastar‑me‑ei.
‑ Pois sim, elucidai‑vos ‑ concluiu fleumaticamente Athos. Lorde de Winter chegou à hora marcada, mas Athos, prevenido a
tempo, passou para a segunda divisão. Encontrou portanto d'Artagnan sozinho e como eram cerca de oito horas saiu imediatamente com o jovem.
Esperava‑os em baixo uma carruagem elegante, e como estava atrelada a dois excelentes cavalos chegaram num instante à Praça Royale.
Milady Clarick recebeu graciosamente d'Artagnan. O seu palácio era de uma sumptuosidade notável; e embora a maioria dos ingleses, expulsos pela guerra, deixassem a França ou estivessem prestes a deixá‑la, Milady acabava de mandar fazer novos melhoramentos, o que provava que a medida geral que expulsava os ingleses a não atingia.
‑ Aqui tendes ‑ disse Lorde de Winter apresentando d'Artagnan à irmã ‑, um jovem gentil‑homem que teve a minha vida nas suas mãos e não quis abusar das suas vantagens, embora fôssemos duplamente inimigos, quer por ter sido eu que o insultei, quer porque sou inglês. Agradecei‑lhe portanto, senhora, se tendes alguma amizade por mim. Milady franziu levemente o sobrolho; uma nuvem quase invisível passou‑lhe pela testa e apareceu‑lhe nos lábios um sorriso de tal modo estranho que o jovem, ao ver aquele triplo matiz, teve como que um arrepio.
O irmão não viu nada; virara‑se para brincar com o macaco favorito de Milady, que o puxava pelo gibão.
‑ Sede bem‑vindo, senhor ‑ disse Milady numa voz cuja doçura singular contrastava com os sinais de mau humor que d'Artagnan acabava de notar. ‑ Adquiristes hoje direitos eternos ao meu reconhecimento.
O inglês virou‑se então e contou o combate sem omitir nenhum pormenor. Milady escutou‑o com a maior atenção; no entanto, via‑se facilmente o esforço que fazia para ocultar as suas impressões e que o relato lhe não era agradável. O sangue subia‑lhe à cara e o seu pezinho agitava‑se impacientemente debaixo do vestido.
Lorde de Winter não reparou em nada. Quando acabou aproximou‑se de uma mesa onde estavam servidos numa bandeja uma garrafa de vinho de Espanha e copos. Encheu dois e com um sinal convidou d'Artagnan a beber.
D'Artagnan sabia que a melhor maneira de ofender um inglês era recusar beber com ele. Aproximou‑se portanto da mesa e pegou no segundo copo. Contudo, não perdeu de vista Milady e notou no vidro a mudança que se operara no seu rosto. Agora que julgava não ser vista, animava‑lhe a fisionomia um sentimento muito semelhante à ferocidade e mordia o lenço com raiva.
Entrou então a bonita criadinha que d'Artagnan já vira; disse algumas palavras em inglês a Lorde de Winter e este pediu imediatamente licença a d'Artagnan para se retirar, desculpando‑se com a urgência do assunto que o chamava e encarregando a irmã de obter o seu perdão. D'Artagnan trocou um aperto de mão com Lorde de Winter e voltou para junto de Milady. O rosto da mulher, dotado de uma mobilidade surpreendente, recuperara a sua expressão graciosa; apenas algumas manchazinhas vermelhas espalhadas pelo lenço indicavam que mordera os lábios até sangrarem.
Eram uns lábios magníficos, que dir‑se‑iam de coral. A conversa tomou cariz animado. Milady parecia ter‑se recomposto por completo. Contou que Lorde de Winter era apenas seu cunhado e não seu irmão. Ela casara com um filho segundo que a deixara viúva com um filho. Esse filho era o único herdeiro de Lorde de Winter, desde que Lorde de Winter se não casasse. Tudo isto revelava a d'Artagnan um véu que envolvia qualquer coisa, mas que ainda não distinguia o que fosse.
De resto, passada meia hora de conversa, d'Artagnan estava convencido de que Milady era sua compatriota: falava o francês com uma pureza e uma elegância que não deixavam nenhuma dúvida a tal respeito.
D'Artagnan desfez‑se em tiradas galantes e em protestos de dedicação. Milady sorriu com benevolência de todas as tolices que escaparam ao nosso gascão. Chegou a hora de se retirar. D'Artagnan despediu‑se de Milady e saiu do salão o mais feliz dos homens.
Na escada encontrou a bonita criadinha, que roçou por ele levemente e, corada até à raiz dos cabelos, lhe pediu perdão por lhe ter tocado, numa voz tão meiga que o perdão lhe foi concedido imediatamente.
D'Artagnan voltou no dia seguinte e foi recebido ainda melhor do que na véspera. Lorde de Winter não estava e foi Milady quem lhe fez desta vez todas as honras da noite. Pareceu tomar grande interesse por ele, perguntou‑lhe donde era, quem eram os seus amigos e se não pensara nenhuma vez em entrar ao serviço do Sr. Cardeal.
D'Artagnan, que como sabemos era bastante prudente para um rapaz de vinte anos, recordou‑se então das suas suspeitas acerca de Milady; fez‑lhe um grande elogio de Sua Eminência e disse‑lhe que não deixaria de entrar para as guardas do cardeal, em vez de entrar para as do rei, se tivesse conhecido, por exemplo, o Sr. de Cavois em vez de conhecer o Sr. de Tréville.
Milady mudou de assunto sem afectação alguma e perguntou a d'Artagnan, da forma mais descontraída do mundo, se nunca fora a Inglaterra.
D'Artagnan respondeu que fora lá mandado pelo Sr. de Tréville para tratar de uma remonta de cavalos e que até trouxera quatro como amostra.
No decurso da conversa, Milady contraiu duas ou três vezes os lábios: enfrentava um gascão que jogava com a cabeça.
D'Artagnan retirou‑se à mesma hora da véspera. No corredor voltou a encontrar a bonita Ketty ‑ assim se chamava a criadita ‑, que o olhou com uma expressão de misteriosa benevolência, uma expressão que não enganava ninguém. Mas d'Artagnan estava tão preocupado com a ama que não tinha olhos para mais ninguém.
D'Artagnan voltou a casa de Milady no dia seguinte e dois dias depois, e de todas as vezes Milady lhe dispensou acolhimento mais gracioso.
Todas as vezes também, quer na antecâmara, quer no corredor, quer na escada, encontrou a bonita criadinha.
Mas como já dissemos d'Artagnan não prestava nenhuma atenção à persistência da pobre Ketty.
UM JANTAR DE PROCURADOR
Entretanto, o duelo em que Porthos tivera papel tão brilhante não lhe fizera esquecer o jantar para que o convidara a mulher do procurador. No dia seguinte, por volta da uma hora e depois de uma última escovadela de Mousqueton, dirigiu‑se para a Rua dos Ursos com o passo de um homem duplamente afortunado.
O seu coração palpitava, mas não era, como o de d'Artagnan, de juvenil e impaciente amor. Não, um interesse mais material fustigava‑lhe o sangue: ia finalmente transpor o limiar misterioso, subir a escada desconhecida que tinha trepado um a um os velhos escudos de mestre Coquenard.
Ia ver da realidade certo cofre cuja imagem vira vinte vezes nos seus sonhos; cofre de forma comprida e profunda, fechado a cadeado, aferrolhado, pregado ao chão; cofre que ouvira tantas vezes falar e que as mãos um pouco magras, é certo, mas não sem elegância da procuradora iam abrir aos seus olhos admiradores.
E depois ele, o homem errante sobre a terra, o homem sem fortuna, o homem sem família, o soldado habituado às estalagens, aos botequins, às tabernas, às pousadas, o gastrónomo obrigado na maior parte das vezes a contentar‑se com a comida das casas de pasto de acaso, ia provar comida caseira, desfrutar um interior confortável e beneficiar desses pequenos cuidados que, quanto mais duros somos, mais nos agradam, como dizem os velhos soldados.
Vir como primo sentar‑se todos os dias a uma boa mesa, desenrugar a fronte pálida e franzida do velho procurador, depender um pouco os jovens amanuenses ensinando‑lhes a bassette, o passadez e o lansquené nas suas mais finas práticas, e ganhando‑lhes como se fossem honorários, pela lição que lhes daria numa hora, as suas economias de um mês, tudo isto sorria enormemente a Porthos.
O mosqueteiro lembrava‑se bem de ter ouvido aqui e ali as palavras nada abonatórias que corriam na época acerca dos procuradores, e que lhes sobreviveram ‑a sovinice, o mau passadio, os dias de jejum‑, mas como no fim de contas, exceptuando alguns acessos de economia que Porthos achara sempre muito intempestivos, encontrara a procuradora bastante liberal (para uma procuradora, bem entendido), esperou deparar com uma casa razoavelmente abastada.
No entanto, à porta, o mosqueteiro teve algumas dúvidas, pois o ambiente não tinha nada que atraísse as pessoas: patamar malcheiroso e escuro, escada mal iluminada por janelas gradeadas através das quais se coava a claridade baça de um pátio vizinho; no primeiro andar, uma porta baixa e guarnecida de pregos enormes, como a porta principal do Grand‑Châtelet.
Porthos bateu com o dedo; um amanuense alto e pálido, escondido numa floresta de cabelos virgens, veio abrir e cumprimentou‑o com o ar de um homem obrigado a respeitar ao mesmo tempo noutro a alta estatura que indica força, o uniforme que indica o estado e o rosto rubicundo que indica o hábito de viver bem.
Outro amanuense mais pequeno atrás do primeiro, outro amanuense maior atrás do segundo, moço de cartório de doze anos atrás do terceiro.
Ao todo, três amanuenses e meio; o que para a época denotava um cartório dos mais afreguesados.
Embora o mosqueteiro só devesse chegar à uma hora, desde o meio‑dia que a procuradora andava de olho à espreita e contava com o coração, e talvez também com o estômago, do seu adorador para o levar a antecipar a chegada.
A Sr.a Coquenard chegou portanto pela porta do apartamento quase ao mesmo tempo que o seu convidado chegava pela porta da escada, e a aparição da digna senhora tirou‑o de um grande embaraço. Os amanuenses tinham olhos curiosos, e ele, não sabendo muito bem que dizer àquela escala ascendente e descendente, permanecia mudo e quedo.
‑ É o meu primo! ‑ exclamou a procuradora. ‑ Entrai, entrai, Sr. Porthos.
O nome de Porthos produziu o seu efeito sobre os amanuenses, que desataram a rir; mas Porthos virou‑se e todas as caras recuperaram a sua gravidade.
Chegaram ao gabinete do procurador depois de atravessarem a antecâmara onde estavam os amanuenses e o cartório onde deveriam estar. Esta última divisão era uma espécie de sala negra recheada de papelada. Saindo do cartório deixaram a cozinha à direita e entraram na sala de recepção.
Todas estas divisões, que comunicavam umas com as outras, não inspiraram a Porthos boas ideias. As palavras deviam ouvir‑se longe através de todas aquelas portas abertas; depois, ao passar, deitara um olhar rápido e investigador à cozinha, e confessava para consigo mesmo, para vergonha da procuradora e seu grande pesar, que não vira o fogo, a animação, o movimento que na altura de uma boa refeição reinam habitualmente nesse santuário da gastronomia.
O procurador fora sem dúvida prevenido da visita, porque não demonstrou nenhuma surpresa ao ver Porthos, que foi ao seu encontro com ar bastante descontraído e o cumprimentou cortesmente.
‑ Somos primos, ao que parece, não é verdade, Sr. Porthos? ‑ disse o procurador, levantando‑se à força de braços do seu cadeirão de cana.
O velho, metido num grande gibão preto onde se lhe perdia o corpo franzino, tinha rosto macilento e magro; mas os seus olhinhos cinzentos brilhavam como carbúnculos e pareciam, com a sua boca escarninha, a única parte da cara donde a vida lhe não fugira. Infelizmente, as pernas começavam a recusar servir toda aquela carga de ossos. Desde que havia cinco ou seis meses aquele enfraquecimento se fizera sentir, o digno procurador tornara‑se pouco a pouco escravo da mulher.
O primo foi aceite com resignação e mais nada. Noutras circunstâncias, mestre Coquenard teria declinado qualquer parentesco com o Sr. Porthos.
‑ Sim, senhor, somos primos ‑ confirmou Porthos, sem se desconcertar, e que de resto nunca esperara ser recebido pelo marido com entusiasmo.
‑ Pelo lado das mulheres, creio? ‑ acrescentou maliciosamente o procurador.
Porthos não notou a zombaria e tomou‑a por uma ingenuidade de que riu por baixo do seu bigode farfalhudo. Mas a Sr.a Coquenard, que sabia que procuradores ingénuos eram uma variedade muitíssimo rara na espécie, sorriu um pouco e corou muito.
Desde a chegada de Porthos que mestre Coquenard olhava com inquietação para um grande armário colocado defronte da sua secretária de carvalho. Porthos adivinhou que aquele armário, embora não correspondesse pela forma ao que vira nos seus sonhos, devia ser o ditoso cofre e congratulou‑se por a realidade ter mais seis pés de altura do que o sonho.
Mestre Coquenard não levou mais longe as suas investigações genealógicas, mas desviando o olhar inquieto do armário para Porthos limitou‑se a dizer:
‑ Antes de partir para o campo, o senhor nosso primo conceder‑nos‑á a mercê de jantar uma vez connosco, não é verdade, Sr.a Coquenard?...
Desta feita, Porthos recebeu o golpe em pleno estômago e sentiu‑o; e parece que da sua parte a Sr.a Coquenard também lhe não ficou insensível, pois acrescentou:
‑ O meu primo não voltará se achar que o tratamos mal; mas no caso contrário, tem tão pouco tempo para passar em Paris e consequentemente para nos ver que mal nos ficaria não lhe pedirmos que passasse connosco quase todos os instantes de que possa dispor até à sua partida.
‑ Oh, as minhas pernas, as minhas pobres pernas! Onde estais? ‑ murmurou Coquenard.
E tentou sorrir.
O auxílio que recebera no momento em que vira atacadas as suas esperanças gastronómicas inspirou ao mosqueteiro muito reconhecimento para com a sua procuradora.
Não tardou a chegar a hora do jantar. Passaram à sala respectiva, grande divisão escura situada defronte da cozinha.
Os amanuenses que, segundo parecia, tinham sentido na casa perfumes inacostumados, eram de uma pontualidade militar e seguravam nas mãos os seus bancos, prontinhos para se sentarem. Entretanto, movimentavam os maxilares com intenções aterradoras.
«Meu Deus», pensou Porthos, deitando uma olhadela aos três famintos, porque o moço de cartório não era, como se calcula, admitido às honras da mesa magistral; «meu Deus, no lugar do meu primo não conservaria semelhantes comilões. Parecem náufragos que não comem há seis semanas!»
Mestre Coquenard entrou, empurrado na sua cadeira de rodas pela Sr.a Coquenard, a quem Porthos se apressou a ajudar a levar o marido até à mesa.
Mal entrou, agitou o nariz e os maxilares, a exemplo dos seus amanuenses.
‑ Oh, oh! ‑ exclamou. ‑ Aqui está uma sopa tentadora! «Que diabo acharão eles de extraordinário na sopa?», perguntou Porthos aos seus botões, perante o aspecto de um caldo magro, abundante mas perfeitamente intragável, no qual boiavam algumas côdeas tão raras como as ilhas de um arquipélago.
A Sr.a Coquenard sorriu e a um sinal seu toda a gente se sentou apressadamente.
Mestre Coquenard foi o primeiro a ser servido e depois Porthos; em seguida, a Sr.a Coquenard encheu o seu prato e distribuiu as côdeas sem caldo pelos amanuenses impacientes.
Neste momento a porta da sala de jantar abriu‑se por si mesma, chiando, e através dos batentes entreabertos Porthos viu o moço de cartório que, não podendo participar no festim, comia o pão com o duplo cheiro da cozinha e da sala de jantar.
Depois da sopa a criada trouxe uma galinha cozida, magnificência que dilatou as pálpebras dos convivas, de tal forma que pareciam prestes a rasgar‑se.
‑ Vê‑se que gostais da vossa família, Sr.a Coquenard ‑ comentou o procurador com um sorriso quase trágico. ‑ Trata‑se sem dúvida de uma cortesia que tendes para com o vosso primo.
Mas a pobre galinha era magra e estava revestida de uma dessas grossas peles arrepiadas que os ossos nunca conseguem furar, apesar dos seus esforços. Deviam‑na ter procurado durante muito tempo antes de a encontrarem no poleiro para onde se retirara a fim de morrer de velhice.
«Diabo, que coisa tão triste!», pensou Porthos. «Respeito a velhice, mas ligo‑lhe pouca importância cozida ou assada.»
Olhou à sua volta para ver se a sua opinião era compartilhada; mas ao contrário do que acontecia consigo só viu olhos chamejantes, que devoravam antecipadamente a sublime galinha alvo do seu desprezo.
A Sr.a Coquenard puxou a travessa para si e trinchou habilmente as duas grandes patas negras, que colocou no prato do marido; cortou o pescoço, que pôs de parte, juntamente com a cabeça, para si mesma; tirou uma asa para Porthos, e entregou à criada que acabara de o trazer, o animal quase intacto, que voltou para a cozinha antes de o mosqueteiro ter tempo de examinar as variações que a decepção provoca nos rostos, consoante os caracteres e os temperamentos daqueles que a experimentam.
Em vez da galinha, veio de volta uma travessa de favas, travessa enorme na qual alguns ossos de carneiro, que à primeira vista se poderia crer acompanhados de carne, fingiam mostrar‑se.
Mas os amanuenses não se deixaram cair no logro e os rostos lúgubres transformaram‑se em caras resignadas.
A Sr.a Coquenard distribuiu este «manjar» aos jovens com a moderação de uma boa dona de casa.
Chegou a vez do vinho. Mestre Coquenard deitou de uma garrafinha de barro a terça parte de um copo a cada um dos rapazes, serviu‑se a si mesmo de quantidade idêntica e a garrafa passou imediatamente para o lado de Porthos e da Sr.a Coquenard.
Os amanuenses deitavam dois terços de água no terço de vinho e depois de beberem metade do copo voltavam a enchê‑lo de água, e assim sucessivamente, o que os levava, no fim da refeição, a tomar uma bebida que da cor do rubi passara para a do topázio queimado.
Porthos comeu timidamente a sua asa de galinha e estremeceu quando sentiu por baixo da mesa o joelho da procuradora, que acabava de encontrar o dele. Bebeu também meio copo daquele vinho tão parcamente distribuído, que reconheceu ser da horrível colheita de Montreuil, o terror dos paladares requintados.
Mestre Coquenard viu‑o beber o seu vinho puro e suspirou.
‑ Quereis favas, primo Porthos? ‑ perguntou a Sr.a Coquenard, no tom de quem quer dizer: «Acreditai em mim, não comais.»
‑ Macacos me mordam se lhes puser o dente! ‑ murmurou Porthos.
E depois, em voz alta:
‑ Obrigado, prima, mas já não tenho fome.
Fez‑se silêncio. Porthos não sabia que atitude tomar. O procurador repetiu várias vezes:
‑ Ah, Sr.a Coquenard, dou‑vos os meus cumprimentos, o vosso jantar foi um autêntico festim! Meu Deus, o que eu comi!
Mestre Coquenard comera a sua sopa, as patas negras da galinha e chupara o único osso de carneiro onde havia um pouco de carne.
Porthos julgou que o mistificavam e começou a cofiar o bigode e a franzir o sobrolho; mas o joelho da Sr.a Coquenard veio muito suavemente aconselhar‑lhe paciência.
O silêncio e a interrupção do serviço, ininteligíveis para Porthos, tinham pelo contrário um significado terrível para os amanuenses: a um olhar do procurador, acompanhado de um sorriso da Sr.a Coquenard, levantaram‑se lentamente da mesa, dobraram os guardanapos mais lentamente ainda, cumprimentaram e saíram.
‑ Ide, rapazes, ide fazer a digestão trabalhando ‑ disse gravemente o procurador.
Assim que os amanuenses saíram, a Sr.a Coquenard levantou‑se e tirou de um aparador um bocado de queijo, marmelada e um bolo que ela própria fizera com amêndoas e mel.
Mestre Coquenard franziu o sobrolho, porque já lhe parecia demasiada comida; Porthos contraiu os lábios, pois verificava que não havia afinal com que jantar.
Olhou a ver se a travessa de favas ainda estava na mesa, mas a travessa das favas desaparecera.
‑ Um festim, decididamente! ‑ exclamou mestre Coquenard, agitando‑se na cadeira. ‑ Um autêntico festim, epulae epularum; Lúculo janta em casa de Lúculo.
Porthos olhou a garrafa, que estava perto de si, e pensou que com vinho, pão e queijo jantaria; mas não havia vinho, a garrafa estava vazia, e nem o Sr. nem a Sr.a Coquenard pareceram dar por isso.
«Bom, estou prevenido....., disse Porthos para consigo.
Passou a língua por uma colherzinha de marmelada e enviscou os dentes na massa peganhenta do bolo da Sr.a Coquenard.
«Pronto, está consumado o sacrifício», pensou. «Ah, se não fosse a esperança de ver com a Sr.a Coquenard o que contém o armário do marido!...»
Depois das delícias de semelhante repasto, a que chamava um excesso, mestre Coquenard experimentou a necessidade de dormir a sua soneca. Porthos esperava que a coisa fosse imediata e ali mesmo; mas o maldito procurador não esteve pelos ajustes: foi preciso conduzi‑lo ao seu quarto e não se calou enquanto o não puseram diante do seu armário, no rebordo do qual, para melhor precaução, colocou os pés.
A procuradora levou Porthos para um quarto contíguo e começou a estabelecer as bases da reconciliação.
‑ Podeis vir jantar três vezes por semana ‑ disse a Sr.a Coquenard.
‑ Obrigado, mas não gosto de abusar ‑ respondeu Porthos. ‑ De resto, tenho de tratar do meu equipamento.
‑ É verdade... ‑ gemeu a procuradora. ‑ Maldito equipamento!
‑ A quem o dizeis! ‑ secundou‑a Porthos.
‑ Mas de que se compõe o equipamento da vossa unidade, Sr. Porthos?
‑ De muitas coisas. Como sabeis, os mosqueteiros são soldados de elite e precisam de muitos objectos inúteis aos guardas e aos suíços.
‑ Pois sim, mas pormenorizai‑o.
‑ Ao todo pode ir a... ‑ começou Porthos, que preferia discutir o total em vez das parcelas.
‑ A quanto? ‑ interrompeu‑o ela. ‑ Espero que não exceda... Deteve‑se; faltavam‑lhe as palavras.
‑ Oh, não, não excede duas mil e quinhentas libras! ‑ redarguiu Porthos. ‑ Creio até que com alguma economia me chegarão duas mil libras.
‑ Meu Deus, duas mil libras! ‑ exclamou a mulher. ‑ Mas é uma fortuna!
Porthos fez uma careta das mais significativas; a Sr.a Coquenard compreendeu‑a.
‑ Pedi que pormenorizásseis o equipamento porque como tenho muitos parentes e clientes no comércio estou quase certa de obter as coisas por cem por cento menos do que vós próprio pagaríeis.
‑ Ah! ah! ‑ exclamou Porthos. ‑ Era então isso que queríeis dizer...
‑ Sim, caro Sr. Porthos. Em primeiro lugar, não precisais de um cavalo?
‑ É verdade, preciso de um cavalo.
‑ Pois tenho justamente o que vos convém.
‑ Portanto, quanto a cavalo, estamos arrumados! ‑ exclamou Porthos, radiante. ‑ Em seguida preciso de um equipamento completo, que se compõe de objectos que só um mosqueteiro pode comprar e que não irá além, aliás, de trezentas libras.
‑ Trezentas libras... Púnhamos então trezentas libras ‑ acedeu a procuradora, suspirando.
Porthos sorriu: o leitor lembra‑se de que tinha a sela que recebera de Buckingham; eram portanto trezentas libras que contava meter sorrateiramente na algibeira.
‑ Depois ‑ continuou ‑, há o cavalo do meu lacaio e a minha mala. Quanto às armas, escusais de vos preocupar: tenho‑as.
‑ Um cavalo para o vosso lacaio?... ‑ repetiu, hesitante, a procuradora. ‑ Mas isso é coisa de grande senhor, meu amigo!
‑ E então, senhora, sou por acaso algum labrego? ‑ redarguiu orgulhosamente Porthos.
‑ Não! Queria apenas dizer‑vos que às vezes um bonito macho tem tão bom aspecto como um cavalo, e que me parece que se vos arranjassem um bonito macho para Mousqueton...
‑ Seja então um bonito macho ‑ concordou Porthos. ‑ Tendes razão: já vi grandíssimos fidalgos espanhóis com todo o séquito montado em machos. Mas cuidado, Sr.a Coquenard, que seja um macho com penachos e guizos...
‑ Ficai tranquilo ‑ respondeu a procuradora.
‑ Resta a mala ‑ lembrou Porthos.
‑ Oh, não vos preocupeis com isso! ‑ exclamou a Sr.a Coquenard. ‑ O meu marido tem cinco ou seis malas; escolhereis a melhor. Há sobretudo uma que ele preferia nas suas viagens, em que cabe tudo e mais alguma coisa.
‑ E está vazia, a vossa mala? ‑ perguntou ingenuamente Porthos.
‑ Claro que está vazia ‑ respondeu também ingenuamente a procuradora.
‑ Ah!... Mas a mala de que preciso é uma mala bem fornecida, minha cara.
A Sr.a Coquenard voltou a suspirar. Molière ainda não escrevera O Avarento; a Sr.a Coquenard tem portanto precedência sobre Harpagão.
Enfim, o resto do equipamento foi sucessivamente debatido da mesma maneira; e o resultado da negociação foi que a procuradora pediria ao marido um empréstimo de oitocentas libras em prata e forneceria o cavalo e o macho que teriam a honra de levar à glória Porthos e Mousqueton.
Assentes as condições e estipulados os juros, assim como o prazo de pagamento, Porthos despediu‑se da Sr.a Coquenard. Esta bem o quis reter deitando‑lhe olhares ternos; mas Porthos pretextou as exigências do serviço e a procuradora não teve remédio senão ceder o passo ao rei. O mosqueteiro regressou a casa cheio de fome e de muito mau humor.
CRIADITA E AMA
Entretanto, como dissemos, apesar dos protestos da sua consciência e dos sábios conselhos de Athos, d'Artagnan estava de hora para hora mais apaixonado por Milady. Por isso ia todos os dias fazer‑lhe uma corte à qual o aventuroso gascão estava convencido de que ela não deixaria de corresponder mais tarde ou mais cedo.
Uma noite, quando chegava de cabeça erguida, ligeiro como um homem que espera uma chuva de ouro, encontrou a criadita ao portão; mas desta vez a bonita Ketty não se limitou a sorrir‑lhe de passagem, pegou‑lhe meigamente na mão.
«Bom», pensou d'Artagnan, «está encarregada de me transmitir algum recado da ama; vai marcar‑me algum encontro que não ousou dizer‑me de viva voz...»
E olhou a linda rapariga com o ar mais triunfante que conseguiu arranjar.
‑ Gostaria de vos dizer duas palavras, Sr. Cavaleiro... ‑ balbuciou a criadita.
‑ Fala, minha filha, fala ‑ animou‑a d'Artagnan. ‑ Escuto‑te.
‑ Aqui é impossível: o que tenho para vos dizer é demasiado longo e sobretudo demasiado secreto.
‑ Ah, bom!... Mas nesse caso, como há‑de ser?
‑ Se o Sr. Cavaleiro me quisesse acompanhar... ‑ disse timidamente Ketty.
‑ Aonde quiserdes, minha bela criança.
‑ Então, vinde.
E Ketty, que não largara a mão de d'Artagnan, arrastou‑o por uma escadinha de caracol escura e, depois de o fazer subir uns quinze degraus, abriu uma porta.
‑ Entrai, Sr. Cavaleiro. Aqui estaremos sós e poderemos conversar.
‑ De quem é este quarto, minha bela criança? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ É meu, Sr. Cavaleiro, e comunica com o da minha ama por esta porta. Mas estai tranquilo que ela não poderá ouvir o que dissermos; nunca se deita antes da meia‑noite.
D'Artagnan olhou à sua volta. O quartito era encantador, de bom gosto e asseio; mas mal‑grado seu os olhos de d'Artagnan fixaram‑se na porta que Ketty lhe dissera comunicar com o quarto de Milady.
Ketty adivinhou o que se passava no espírito do jovem e suspirou.
‑ Amais muito a minha ama, Sr. Cavaleiro? ‑ observou.
‑ Oh, muito mais do que posso dizer! Estou louco por ela! Ketty voltou a suspirar.
‑ Infelizmente, senhor, é pena...
‑ Que diabo vês nisso tão digno de lástima? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ É que, senhor, a minha ama não vos ama nem um bocadinho ‑ respondeu Ketty.
‑ O quê?! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Ter‑te‑á encarregado de mo dizeres?...
‑ Oh, não, senhor! Fui eu que, no vosso interesse, tomei a resolução de vos prevenir.
‑ Obrigado, minha boa Ketty, mas apenas pela intenção, porque a confidência, como concordarás, não é nada agradável.
‑ Quereis dizer que não acreditais em nada do que vos disse, não é verdade?
‑ Temos sempre dificuldade em acreditar em semelhantes coisas, minha bela criança, quanto mais não seja por amor‑próprio.
‑ Portanto, não me acreditais?
‑ Confesso que enquanto me não deres algumas provas do que dizes...
‑ Que dizeis a isto?
E Ketty tirou do seio um bilhetinho.
‑ Para mim? ‑ perguntou d'Artagnan, apoderando‑se vivamente do bilhete.
‑ Não, para outro.
‑ Para outro? ‑Sim.
‑ O seu nome, o seu nome! ‑ gritou d'Artagnan.
‑ Vede o endereço.
‑ Sr. Conde de Wardes.
A recordação da cena de Saint‑Germain surgiu imediatamente no espírito do presunçoso gascão. Num gesto rápido como o pensamento, rasgou o sobrescrito, apesar do grito que soltou Ketty ao ver o que ele ia fazer, ou antes o que fazia.
‑ Meu Deus, Sr. Cavaleiro, que fazeis?!
‑ Eu? Nada! ‑ respondeu d'Artagnan, e leu:
Não respondestes ao meu primeiro bilhete; estais doente ou tereis esquecido os olhos que me deitastes no baile da Sr.a de Guise? Chegou a ocasião, conde! Não a deixeis escapar.
D'Artagnan empalideceu; estava ferido no seu amor‑próprio e julgou‑se ferido no seu amor.
‑ Pobre caro Sr. d'Artagnan! ‑ disse Ketty numa voz cheia de compaixão e apertando de novo a mão do jovem.
‑ Lamentas‑me, boa pequena? ‑ murmurou d'Artagnan.
‑ Oh, sim, de todo o coração! Porque sei o que é o amor!
‑ Sabes o que é o amor? ‑ inquiriu d'Artagnan, olhando‑a pela primeira vez com certa atenção.
‑ Infelizmente, sei.
‑ Nesse caso, em vez de me lamentares farias muito melhor se me ajudasses a vingar‑me da tua ama.
‑ E que espécie de vingança pretendeis tirar?
‑ Desejo triunfar dela, suplantar o meu rival.
‑ Nunca vos ajudarei nisso, Sr. Cavaleiro! ‑ respondeu vivamente Ketty.
‑ E porquê? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Por duas razões.
‑ Quais?
‑ A primeira é que a minha ama nunca vos amará.
‑ Que sabes disso?
‑ Feriste‑a no coração.
‑ Eu? Em que a posso ter ferido se desde que a conheço vivo a seus pés como um escravo? Fala, suplico‑te.
‑ Só o direi ao homem... que for capaz de ler até ao fundo da minha alma!
D'Artagnan olhou Ketty pela segunda vez. A jovem era de uma frescura e de uma beleza que muitas duquesas não hesitariam em trocar pela sua coroa.
‑ Ketty, lerei até ao fundo da tua alma quando quiseres; não seja esse o obstáculo, minha querida filha.
E deu‑lhe um beijo que deixou a pobre criança corada como uma cereja.
‑ Oh, não! ‑ exclamou Ketty. ‑ Vós não me amais! Quem amais é a minha ama, ainda há pouco o dissestes.
‑ E isso impede‑te de me dizeres a segunda razão?
‑ A segunda razão, Sr. Cavaleiro ‑ respondeu Ketty, animada pelo beijo e pela expressão dos olhos do rapaz ‑, é que no amor cada um por si!
Só então d'Artagnan se lembrou das olhadelas lânguidas de Ketty quando se encontravam na antecâmara, na escada ou no corredor, os seus leves toques de mão e os seus suspiros abafados. Absorvido porém pelo desejo de agradar à grande dama, desdenhara a criadita: quem caça águias não perde tempo com pardais.
Mas desta vez o nosso gascão viu num relance de olhos todo o partido que se podia tirar daquele amor que Ketty acabava de confessar de forma tão ingénua ou tão impudente: intercepção das cartas dirigidas ao conde de Wardes, cumplicidades na praça, entrada a toda a hora no quarto de Ketty, contíguo ao da ama... O pérfido, como se vê, sacrificava já em pensamento a pobre rapariga para ter Milady a bem ou a mal.
‑ Pois bem, queres que te dê, minha querida Ketty, uma prova deste amor de que duvidas? ‑ perguntou â jovem.
‑ De que amor? ‑ quis ela saber.
‑ Do que estou pronto a sentir por ti.
‑ E qual é essa prova?
‑ Queres que esta noite passe contigo o tempo que passo habitualmente com a tua ama?
‑ Claro que quero! ‑ exclamou Ketty, batendo as mãos. ‑ Com todo o prazer.
‑ Nesse caso, minha querida filha ‑ disse d'Artagnan, sentando‑se num cadeirão ‑, vem cá para que te diga que és a mais bonita criadinha que jamais vi!
E disse‑lho tão convincentemente que a pobre criança, que não queria senão acreditá‑lo, o acreditou... No entanto, com grande surpresa de d'Artagnan, a bonita Ketty sabia defender‑se com certa resolução.
O tempo passa depressa quando se passa em ataques e defesas.
Deu meia‑noite e ouviu‑se quase ao mesmo tempo tocar a campainha‑no quarto de Milady.
‑ Meu Deus, a minha ama está a chamar‑me! ‑ exclamou Ketty. ‑ Ide‑vos embora, depressa!
D'Artagnan levantou‑se e pegou no chapéu como se tencionasse obedecer; mas depois abriu rapidamente a porta de um grande armário, em vez de abrir a da escada, e escondeu‑se lá dentro, no meio dos vestidos e dos penteadores de Milady.
‑ Que fazeis? ‑ perguntou Ketty.
D'Artagnan, que se apoderara rapidamente da chave, fechou‑se no armário sem responder.
‑ Então? ‑ gritou Milady com vós áspera. ‑ Estais a dormir, para não virdes quando toco?
E d'Artagnan ouviu abrir‑se violentamente a porta de comunicação.
‑ Aqui estou, Milady, aqui estou! ‑ apressou‑se a responder Ketty, correndo ao encontro da ama.
Ambas entraram no quarto de dormir e como a porta de comunicação ficou aberta, d'Artagnan pôde ouvir ainda durante algum tempo Milady ralhar à criada. Por fim acalmou‑se e a conversa recaiu nele, enquanto Ketty cuidava da ama.
‑ Não vi o nosso gascão esta noite ‑ disse Milady.
‑ Como, senhora, não veio? Seria capaz de ser infiel antes de ser feliz? ‑ observou Ketty.
‑ Oh, não! Deve ter sido impedido pelo Sr. de Tréville ou pelo Sr. dos Essarts. Sei o que valho, Ketty; aquele está pelo beicinho.
‑ Que fareis dele, senhora?
‑ Que farei dele?... Estai tranquila, Ketty, há entre esse homem e mim uma coisa que ele ignora... Esteve quase a fazer‑me perder o meu crédito junto de Sua Eminência... mas hei‑de vingar‑me!
‑ Julguei que a senhora o amasse...
‑ Eu. amá‑lo? Detesto‑o! Um parvo que tem a vida de Lorde de Winter nas mãos e não o mata, fazendo‑me assim perder trezentas mil libras de rendimento!
‑ É verdade ‑ disse Ketty ‑, o vosso filho era o único herdeiro do tio e até à sua maioridade teríeis o usufruto da sua fortuna.
D'Artagnan arrepiou‑se até à medula dos ossos ao ouvir aquela suave criatura censurá‑lo, naquela voz estridente que tinha tanta dificuldade em disfarçar quando conversava, por não ter matado um homem que vira cumulá‑la de amizade.
‑ Por isso ‑ continuou Milady ‑, já me teria vingado nele mesmo se. não sei porquê, o cardeal me não tivesse recomendado que o poupasse.
‑ Ah, sim?... Mas a senhora não tem poupado aquela mulherzinha que ele amava.
‑ Quem. a retroseira da Rua dos Fossoyeurs? Não se esqueceu já de que ela existia? Que bela vingança, palavra!
Um suor frio escorria pela testa de d'Artagnan: aquela mulher era um monstro.
Continuou a escutar, mas infelizmente a toilette acabara.
‑ Pronto ‑ disse Milady ‑, ide‑vos deitar e amanhã procurai ter uma resposta à carta que vos dei.
‑ Para o Sr. de Wardes? ‑ perguntou Ketty.
‑ Evidentemente, para o Sr. de Wardes.
‑ Aí está um ‑ observou Ketty ‑ que tem o ar de ser absolutamente o contrário do pobre Sr. d'Artagnan.
‑ Saí, menina ‑ ordenou Milady. ‑ Não gosto de comentários.
D'Artagnan ouviu a porta fechar‑se e depois o ruído de dois ferrolhos que Milady corria, a fim de se encerrar no seu quarto; pela sua parte, mas o mais devagarinho possível, Ketty deu uma volta à chave na fechadura. Só então d'Artagnan empurrou a porta do armário.
‑ Meu Deus, que tendes? Como estais pálido! ‑ disse Ketty, baixinho.
‑ Abominável criatura! ‑ murmurou d'Artagnan.
‑ Silêncio! Silêncio! Saí ‑ pediu Ketty. ‑ Há apenas uma parede fina entre o meu quarto e o de Milady e ouve‑se num tudo o que se diz no outro.
‑ É justamente por isso que não sairei ‑ redarguiu d'Artagnan.
‑ Como? ‑ murmurou Ketty, corando.
‑ Ou pelo menos sairei... mais tarde.
E puxou Ketty para si. Não havia maneira de resistir; a resistência faz tanto barulho!... Por isso Ketty cedeu.
Era um gesto de vingança contra Milady. D'Artagnan achou que se tinha razão para dizer que a vingança é o prazer dos deuses. Assim, se tivesse um pouco de coração, ter‑se‑ia contentado com aquela nova conquista; mas d'Artagnan só tinha ambição e orgulho.
Todavia, deve‑se dizer em seu abono, que o primeiro emprego que fez da sua influência sobre Ketty foi tentar saber o que acontecera à Sr.a Bonacieux; mas a pobre rapariga jurou sobre o crucifixo a d'Artagnan que o ignorava completamente, pois a sua ama nunca a deixava penetrar mais de metade dos seus segredos. Apenas julgava poder responder que não morrera.
Quanto à causa que estivera quase a fazer Milady perder o seu crédito junto do cardeal, Ketty não sabia nada; mas desta vez, d'Artagnan estava mais adiantado do que ela; como vira Milady num navio detido no momento em que ele próprio deixava a Inglaterra, desconfiou que dessa vez se tratava das agulhetas de diamantes.
Mas o mais claro no meio daquilo tudo era que o ódio autêntico, o ódio profundo, o ódio arraigado de Milady lhe vinha de não ter matado o cunhado.
d'Artagnan voltou no dia seguinte a casa de Milady. Ela estava de muito mau humor e d'Artagnan desconfiou que era a falta de resposta do Sr. de Wardes que a irritava assim. Ketty entrou, mas Milady recebeu‑a muito duramente. Um olhar que lançou a d'Artagnan queria dizer: «Bem vedes o que sofro por vós.»
Todavia, para o fim da noite a bela leoa amansou; escutou sorrindo as palavras ternas de d'Artagnan e até lhe deu a mão a beijar.
D'Artagnan saiu sem saber que pensar; mas como era um rapaz a quem não se fazia facilmente perder a cabeça, enquanto cortejava Milady traçara mentalmente um planozinho.
Encontrou Ketty à porta, e como na véspera subiu ao seu quarto para saber novidades. Ketty apanhara uma grande descompostura e tinham‑na acusado de negligência. Milady não compreendia o silêncio do conde de Wardes e ordenara‑lhe que fosse ao seu quarto às nove da manhã para lhe dar terceira carta.
D'Artagnan obrigou Ketty a prometer‑lhe que lhe levaria a carta a sua casa no dia seguinte de manhã; a pobre rapariga prometeu tudo o que quis o amante: estava louca.
As coisas passaram‑se como na véspera: d'Artagnan fechou‑se no armário, Milady chamou, fez a sua toilette, despediu Ketty e trancou a
porta. Também como na véspera, d'Artagnan só regressou a casa às cinco da manhã.
Às onze horas viu chegar Ketty; trazia na mão nova carta de Milady. Desta vez, a pobre criança nem sequer tentou disputá‑la a d'Artagnan; deixou‑o apoderar‑se dela. Pertencia de corpo e alma ao seu belo soldado. D'Ar tagnan abriu a carta e leu o seguinte:
É a terceira vez que vos escrevo para vos dizer que vos amo. Cuidado, não tenha de vos escrever quarta vez para vos dizer que vos detesto.
Se estiverdes arrependido da forma como procedestes para comigo, a rapariga que vos entregará esta carta dir‑vos‑á de que maneira um homem galante pode obter o seu perdão.
D'Artagnan corou e empalideceu várias vezes ao ler o bilhete.
‑ Oh, vós continuais a amá‑la! ‑ exclamou Ketty, que não desviara um instante os olhos do rosto do jovem.
‑ Não, Ketty, enganas‑te, já não a amo; mas quero vingar‑me dos
seus desdéns.
‑ Sim, conheço a vossa vingança; dissestes‑me qual era.
‑ Que te importa, Ketty? Bem sabes que é só a ti que amo!
‑ Como posso sabê‑lo?
‑ Pela forma como a desprezarei. Ketty suspirou.
D'Artagnan pegou numa pena e escreveu:
Senhora, até aqui duvidara que fosse de facto a mim que os vossos dois primeiros bilhetes eram dirigidos, de tal modo me considerava indigno de semelhante honra; aliás, estava tão doente que em qualquer dos casos, hesitaria em responder.
Mas hoje tenho de me render à evidência e acreditar na excessiva bondade com que me tratais, pois não só a vossa carta, mas também a vossa criada, me afirmam que tenho a honra de ser
amado por vós.
Ela não necessita de me dizer de que maneira um homem galante pode obter o seu perdão. Irei pedir‑vos o meu esta noite, às onze horas. Tardar um dia, seria agora a meus olhos fazer‑vos nova ofensa.
Aquele que tornastes o mais feliz dos homens,
Conde de Wardes.
Este bilhete começava por ser uma mentira e acabava por ser uma indelicadeza; era também, do ponto de vista dos nossos costumes actuais, qualquer coisa como uma infâmia. Mas ligava‑se então menos importância a tais coisas do que se liga hoje. Aliás, d'Artagnan sabia Milady culpada, pelas suas próprias confissões, de traição a cânones mais importantes e nutria por ela uma estima deveras insignificante. E no entanto, apesar dessa pouca estima, sentia uma paixão insensata por aquela mulher. Paixão ébria de desprezo, mas paixão ou sede, como se queira.
A intenção de d'Artagnan era bem simples: através do quarto de Ketty alcançava o da ama; aproveitava o primeiro momento de surpresa, de pudor, de pânico, para a subjugar; talvez fosse mal sucedido, mas era preciso deixar qualquer coisa ao acaso. A campanha começava dali a oito dias e tinha de partir; não havia portanto tempo para estar com meias medidas.
‑ Toma, entrega esta carta a Milady; é a resposta do Sr. de Wardes ‑ disse a Ketty, entregando‑lhe a carta lacrada.
A pobre Ketty tornou‑se mortalmente pálida; suspeitava o que continha a carta.
‑ Ouve, minha querida filha ‑ disse‑lhe d'Artagnan ‑, como deves compreender, isto tem de acabar de uma maneira ou de outra. Milady pode descobrir que entregaste o primeiro bilhete ao meu criado, em vez de o entregares ao criado do conde; que fui eu que abri os outros, que deviam ser abertos pelo Sr. de Wardes; então, Milady põe‑te na rua e tu, que a conheces, sabes que não é mulher para deixar por aí a sua vingança.
‑ Infelizmente! ‑ suspirou Ketty. ‑ Mas por quem me expus a tudo isso?
‑ Por mim, bem sei, minha linda ‑ respondeu o jovem ‑, mas também te estou muito reconhecido, juro‑te.
‑ Mas afinal que contém o vosso bilhete?
‑ Milady to dirá.
‑ Oh, não me amais! ‑ exclamou Ketty. ‑ Sou tão infeliz!
Para esta censura existe uma resposta com que sempre se enganam as mulheres; d'Artagnan respondeu de maneira que Ketty conservasse as suas maiores ilusões.
Mesmo assim chorou muito antes de se decidir a entregar a carta a Milady, mas por fim resolveu‑se, como desejava d'Artagnan.
Aliás, ele prometeu‑lhe que à noite saíria cedo dos aposentos de Milady, e que assim que deixasse esta subiria ao quarto dela.
Esta promessa acabou de convencer a pobre Ketty.
ONDE SE TRATA DO EQUIPAMENTO DE ARAMIS E DE PORTHOS
Desde que os quatro amigos andavam, cada um por seu lado, à caça do seu equipamento, que não se reuniam regularmente. Comiam uns sem os outros, onde se encontravam, ou antes, onde podiam. O serviço, por seu turno, tomava‑lhes também parte do tempo precioso, que bem pouco era, de que dispunham e que passava a correr. Apenas tinham combinado encontrar‑se uma vez por semana, por volta da uma hora, em casa de Athos, atendendo a que este, conforme jurara, estava resolvido a não transpor o limiar da sua porta.
Precisamente no dia em que Ketty fora a casa de d'Artagnan era dia de reunião,
Por isso, assim que Ketty saiu, d'Artagnan dirigiu‑se para a Rua Férou.
Encontrou Athos e Aramis a filosofarem. Aramis ainda não perdera as veleidades de tornar a vestir a sotaina. Athos, como era seu costume, não o dissuadia nem o encorajava. Athos entendia que se devia deixar a cada um o seu livre arbítrio. Nunca dava conselhos que lhe não pedissem. Mesmo assim, era preciso pedir‑lhos duas vezes.
«Em geral, ninguém pede conselhos para os seguir», dizia ele; «ou então só os seguem para terem alguém a quem censurar por os ter dado.»
Porthos chegou pouco depois de d'Artagnan. Os quatro amigos encontravam‑se pois reunidos.
Os quatro rostos exprimiam quatro sentimentos diferentes: o de Porthos, a tranquilidade; o de d'Artagnan, a esperança; o de Aramis, a preocupação, e o de Athos, a indiferença.
Pouco depois de iniciada a conversa, durante a qual Porthos deixou entrever que uma pessoa altamente colocada se dignara encarregar‑se de o tirar de apuros, Mousqueton entrou.
Vinha pedir a Porthos que fosse a sua casa, onde, dizia ele com ar muito compumgido, a sua presença era urgente.
‑ Chegou o meu equipamento? ‑ perguntou Porthos.
‑ Sim e não ‑ respondeu Mousqueton.
‑ Que queres dizer com isso?...
‑ Vinde, senhor.
Porthos levantou‑se, despediu‑se dos amigos e seguiu Mousqueton. Um instante depois, Bazin apareceu no limiar da porta.
‑ Que me quereis, meu amigo? ‑ perguntou Aramis com a suavidade de linguagem que se notava nele sempre que as suas ideias se viravam para a Igreja...
‑ Está um homem à espera do senhor lá em casa ‑ respondeu Bazin.
‑ Um homem? Que homem?
‑ Um mendigo.
‑ Dai‑lhe esmola, Bazin, e dizei‑lhe que reze por um pobre pecador.
‑ O mendigo quer à viva força falar‑vos e afirma que tereis muito prazer em o ver.
‑ Mas não disse nada de especial para mim?
‑ Efectivamente, disse assim: «Se o Sr. Aramis hesitar em vir falar comigo, dizei‑lhe que venho de Tours.»
‑ De Tours?! ‑ exclamou Aramis. ‑ Mil perdões, meus senhores, mas sem dúvida o homem traz‑me notícias que esperava.
Levantou‑se imediatamente e saiu apressado. Ficaram Athos e d'Artagnan.
‑ Creio que esses velhacos resolveram o seu problema. Que vos parece, d'Artagnan? ‑ perguntou Athos.
‑ Sei que Porthos estava no bom caminho ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Quanto a Aramis, para ser franco nunca estive seriamente preocupado. Mas vós, meu caro Athos, que tão generosamente distribuíste as pistolas do inglês, que eram a vossa legítima riqueza, que ides fazer?
‑ Estou satisfeito por ter matado o sujeito, meu filho, pois nos tempos que correm é quase uma obra de caridade matar um inglês; mas se tivesse embolsado as suas pistolas elas pesar‑me‑iam como um remorso.
‑ Meu caro Athos, tendes realmente ideias inconcebíveis!
‑ Adiante, adiante! É verdade o que me disse ontem o Sr. de Tréville, que me deu a honra de me visitar, que andais com esses ingleses suspeitos protegidos do cardeal?
‑ Não é bem isso, apenas visito uma inglesa, aquela de quem vos falei.
‑ Ah, sim, a mulher loura, a respeito de quem vos dei conselhos que naturalmente vos abstivestes de seguir! ...
‑ Dei‑vos as minhas razões.
‑ Pois destes: esperais arranjar lá o vosso equipamento, segundo deduzi das vossas palavras.
‑ De modo nenhum! Adquiri a certeza de que a mulher está por algum motivo relacionada com o rapto da Sr.a Bonacieux.
‑ Compreendo: para encontrardes uma mulher, fazeis a corte a outra; é o caminho mais longo, mas mais divertido.
D'Artagnan esteve quase a contar tudo a Athos, mas houve um pormenor que o deteve: Athos era um gentil‑homem severo em questões de honra, e havia, em todo o planozinho que o nosso apaixonado traçara em relação a Milady, certas coisas que, estava antecipadamente certo, não obteriam a aprovação de um puritano. Preferiu portanto guardar silêncio, e como Athos era o homem menos curioso do mundo as confidências de d'Artagnan não foram mais longe.
Pela nossa parte, deixamos os dois amigos, que não tinham nada muito importante a dizer um ao outro, para seguir Aramis.
Vimos com que rapidez, ao ouvir dizer que o homem que lhe queria falar vinha de Tours, Aramis seguiu, ou antes, tomou a dianteira a Bazin e foi num salto da Rua Fêrou à Rua de Vaugirard.
Quando entrou em casa, encontrou efectivamente um homem baixo, de olhos inteligentes, mas coberto de andrajos.
‑ Fostes vós que perguntastes por mim? ‑ inquiriu o mosqueteiro.
‑ Perguntei pelo Sr. Aramis; sois vós?
‑ Eu próprio. Tendes alguma coisa para me entregar?
‑ Tenho, se me mostrardes certo lenço bordado...
‑ Imediatamente ‑ respondeu Aramis, tirando uma chave do peito e abrindo um cofrezinho de ébano incrustado de madrepérola. ‑ Ei‑lo, vede.
‑ Muito bem ‑ disse o mendigo. ‑ Mandai sair o vosso lacaio. Com efeito, Bazin, curioso de saber o que o mendigo queria do amo,
regulara o passo dele e chegara quase ao mesmo tempo que Aramis. Mas tal celeridade não lhe adiantou grande coisa; a pedido do mendigo, o amo fez‑lhe sinal para se retirar e não teve outro remédio senão obedecer.
Assim que Bazin saiu, o mendigo deitou um olhar rápido à sua volta, a fim de ter a certeza de que ninguém o podia ver nem ouvir, e, abrindo a véstia esfarrapada, mal apertada por um cinto de couro, pôs‑se a descoser a parte de cima do gibão, donde tirou uma carta.
Aramis soltou um grito de alegria ao ver o sinete, beijou a caligrafia em que vinha escrito o endereço e, com um respeito quase religioso, abriu a carta, que dizia o seguinte:
Amigo, quer o destino que estejamos separados mais algum tempo; mas os belos dias da juventude não se perderão sem recompensa. Cumpri o vosso dever na guerra; eu cumpro o meu noutro lado. Aceitai o que o portador vos entregará e fazei a campanha como bom gentil‑homem, pensando em mim que beijo ternamente os vossos olhos negros.
Adeus, ou antes, até à vista!
Entretanto o mendigo continuava a descoser o gibão, donde tirou uma a uma cento e cinquenta pistolas duplas de Espanha, que alinhou em cima da mesa. Depois, abriu a porta, saudou e saiu antes de o jovem, estupefacto, ter tempo de lhe dirigir a palavra.
Aramis releu então a carta e verificou que tinha um post‑scriptum.
‑ Sonhos dourados! ‑ exclamou Aramis. ‑ Oh, a bela vida! Sim, somos jovens! Sim, teremos ainda dias felizes! Oh, a ti, meu amor, meu sangue, minha vida, tudo, tudo, tudo, minha linda amada!
E beijava a carta com paixão, sem sequer olhar o ouro que cintilava em cima da mesa.
Bazin bateu à porta; Aramis já não tinha motivo para o manter afastado; permitiu‑lhe a entrada.
Bazin ficou estupefacto ao ver o ouro e esqueceu‑se de que vinha anunciar d'Artagnan, o qual, curioso de saber quem era o mendigo, deixara Athos para vir a casa de Aramis.
Ora, como d'Artagnan não fazia cerimónia com Aramis, vendo que Bazin se esquecia de o anunciar, anunciou‑se a si mesmo.
‑ Demónio, meu caro Aramis ‑ comentou d'Artagnan ao ver o dinheiro ‑, se são essas as ameixas que nos mandam de Tours, apresentai os meus cumprimentos ao pomareiro que as apanhou.
‑ Enganai‑vos, meu caro ‑ respondeu Aramis, sempre discreto ‑, o meu editor é que acaba de me enviar os direitos de autor daquele poema em versos de uma sílaba que comecei a escrever em Amiens.
‑ Deveras? ‑ disse d'Artagnan. ‑ Nesse caso, o vosso editor é generoso, meu caro Aramis, é tudo o que vos posso dizer.
‑ Como, senhor, um poema vende‑se tão caro?... ‑ estranhou Bazin. ‑ É incrível! Oh, senhor, já que fazeis tudo o que quereis, podeis tornar‑vos igual ao Sr. de Voiture e ao Sr. de Bensarade! Também gosto disso. Um poeta é quase um abade. Ah, Sr. Aramis, fazei‑vos poeta, suplico‑vos!
‑ Bazin, meu amigo ‑ observou Aramis ‑, parece‑me que vos estais a meter na conversa...
Bazin compreendeu que se excedera; baixou a cabeça e saiu.
‑ Com a breca, vendeis as vossas produções a peso de ouro ‑ comentou d'Artagnan. ‑ Tendes muita sorte, meu amigo; mas cuidado, ou ainda acabais por perder essa carta que sai da vossa sobreveste e que sem dúvida também é do vosso editor...
Aramis corou até à raiz dos cabelos, guardou melhor a carta e abotoou o gibão.
‑ Meu caro d'Artagnan, se estais de acordo, vamos procurar os nossos amigos; e uma vez que estou rico, recomecemos hoje a jantar juntos enquanto não sois rico também.
‑ Com o maior prazer, palavra! ‑ aprovou d'Artagnan. ‑ Há muito tempo que não comemos um jantar conveniente; e como projecto para esta noite uma expedição um pouco arriscada, não me importaria, confesso, de me alegrar com algumas garrafas de velho borgonha.
‑ Concordo com o velho borgonha; também não desgosto dele ‑ respondeu Aramis, a quem a vista do ouro fizera esquecer as suas ideias de retirada.
E depois de meter na algibeira três ou quatro pistolas duplas para fazer face às necessidades de momento, guardou as outras no cofre de ébano incrustado de madrepérola, onde estava já o famoso lenço que lhe servira de talismã.
Os dois amigos dirigiram‑se primeiro para casa de Athos, que, fiel ao juramento que fizera de não sair, se encarregou de mandar vir o jantar; e como ele era profundo conhecedor das coisas gastronómicas, d'Artagnan e Aramis não tiveram nenhuma dificuldade em confiar‑lhe tão importante missão.
Dirigiam‑se para casa de Porthos quando à esquina da Rua do Bac encontraram Mousqueton, que com ar abatido tocava diante de si", um macho e um cavalo.
D'Artagnan soltou um grito de surpresa, não isento de um misto de alegria.
‑ O meu cavalo amarelo! ‑ exclamou. ‑ Aramis, olhai para aquele cavalo...
‑ Que horrível pileca! ‑ respondeu Aramis.
‑ Pois meu caro, foi naquele cavalo que vim para Paris ‑ declarou d'Artagnan.
‑ Como, o senhor conhece este cavalo? ‑ admirou‑se Mousqueton.
‑ Tem uma cor original ‑ observou Aramis. ‑ Nunca vi nenhum com semelhante pelagem.
‑ Acredito ‑ concordou d'Artagnan. ‑ Por isso o vendi por três escudos, pela pelagem, pois a carcaça não vale com certeza dezoito libras. Mas como se encontra esse cavalo em teu poder, Mousqueton?
‑ Nem me faleis disso, senhor! ‑ pediu o criado. ‑ Foi uma horrível partida do marido da nossa duquesa!
‑ Como assim, Mousqueton?
‑ Sim, somos vistos com muito bons olhos por uma mulher de categoria, a duquesa de... Oh, perdão, mas o meu amo recomendou‑me que fosse discreto! Ela tinha‑nos obrigado a aceitar uma pequena lembrança, um magnífico ginete espanhol e um macho andaluz que davam gosto ver; mas o marido soube da coisa, confiscou no caminho os dois magníficos animais que nos enviavam e substituiu‑os por estes horríveis bichos!
‑ Que tu lhe devolves? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Justamente! ‑ respondeu Mousqueton. ‑ Como compreendeis não podemos aceitar semelhantes montadas em troca daqueles que nos prometeram.
‑ Não, claro, embora tivesse gostado de ver Porthos montado no meu Botão de Ouro, para ter uma ideia da figura que eu próprio fiz ao chegar a Paris ‑ declarou d'Artagnan. ‑ Mas não te detemos mais, Mousqueton; vai desempenhar‑te da comissão que o teu amo te encarregou, vai. Ele está em casa?
‑ Está, sim, senhor ‑ respondeu Mousqueton ‑, mas muito aborrecido.
E continuou o seu caminho para o Cais dos Grands‑Augustins, enquanto os dois amigos iam tocar à porta do infortunado Porthos. Este, que os vira atravessar o pátio, decidira não abrir. Por isso, tocaram em vão.
Entretanto, Mousqueton continuava o seu caminho e, depois de atravessar a Ponte Nova, sempre tocando adiante de si as duas pilecas, chegou à Rua dos Ursos. Uma vez chegado, prendeu, consoante as ordens do amo, cavalo e macho à aldraba da porta do procurador; depois, sem se preocupar com a sua sorte futura, voltou para casa e anunciou a Porthos que a sua comissão estava cumprida.
Passado certo tempo, os dois pobres animais, que não comiam desde manhã, fizeram tal barulho levantando e deixando cair a aldraba da porta que o procurador ordenou ao moço do cartório que se fosse informar na vizinha a quem pertenciam o cavalo e o macho.
A Sr.a Coquenard reconheceu o seu presente e ao princípio não compreendeu a que se devia aquela devolução; mas em breve a visita de Porthos a esclareceu. A cólera que brilhava nos olhos do mosqueteiro, apesar da contenção que ele se impunha, assustou a sensível amante. Com efeito, Mousqueton não ocultara ao amo que encontrara d'Artagnan e Aramis e que d'Artagnan reconhecera no cavalo amarelo o garrano bearnês em que viera para Paris e que vendera por três escudos.
Porthos saiu depois de marcar encontro à procuradora no Convento de Saint‑Magloire. O procurador, ao ver que Porthos se retirava, convidou‑o para jantar, convite que o mosqueteiro recusou com um ar cheio de majestade.
A Sr.a Coquenard dirigiu‑se muito trémula para o Convento de Saint‑Magloire, pois já adivinhava as censuras que a esperavam; mas estava fascinada pelos grandes ares de Porthos.
Tudo o que um homem ferido no seu amor‑próprio pode deixar cair, em imprecações e censuras, sobre a cabeça de uma mulher, deixou Porthos cair sobre a cabeça curvada da procuradora.
‑ Procedi com a melhor das intenções ‑ desculpou‑se a mulher. ‑ Um dos nossos clientes é negociante de cavalos, devia dinheiro ao cartório e mostrava‑se recalcitrante. Comprei‑lhe o macho e o cavalo pelo que nos devia; ele prometera‑me duas montadas reais.
‑ Pois, senhora, se vos devia mais de cinco escudos o vosso alquilador é um ladrão ‑ volveu‑lhe Porthos.
‑ Não é proibido procurar comprar barato, Sr. Porthos ‑ redarguiu a procuradora, tentando desculpar‑se.
‑ Não, senhora; mas aqueles que procuram comprar barato devem permitir aos outros procurar amigos mais generosos.
E Porthos deu meia volta e em seguida um passo para se retirar.
‑ Sr. Porthos! Sr. Porthos! ‑ gritou a procuradora. ‑ Procedi mal confesso, não devia ter regateado quando se trata de equipar um cavaleiro como vós!
Sem responder, Porthos deu segundo passo para se retirar.
A procuradora julgou vê‑lo numa nuvem cintilante, todo rodeado de duquesas e marquesas que lhe lançavam bolsas de ouro aos pés.
‑ Esperai, em nome do Céu, Sr. Porthos! Esperai e conversemos.
‑ Conversar convosco dá‑me azar ‑ redarguiu Porthos.
‑ Mas, dizei‑me, que quereis?
‑ Nada, pois aconteceria o mesmo se vos pedisse alguma coisa.
A procuradora pendurou‑se no braço de Porthos e dominada pela sua dor confessou:
‑ Sr. Porthos, eu não percebo nada dessas coisas. Sei porventura que é um cavalo? Sei porventura o que são arneses?
‑ Devíeis ter recorrido a mim, que sou entendido na matéria, senhora; mas quisestes poupar e por consequência emprestar com usura.
‑ Foi um erro, Sr. Porthos, mas dou‑vos a minha palavra de honra de que o repararei.
‑ Como? ‑ perguntou o mosqueteiro.
‑ Escutai. Esta noite o Sr. Coquenard vai a casa do Sr. Duque de Chaulnes, que o mandou chamar para uma consulta que demorará pelo menos duas horas. Vinde, estaremos sós e faremos as nossas contas.
‑ Até que enfim! Isso é que é falar, minha querida!
‑ Perdoais‑me?
‑ Veremos... ‑ respondeu majestosamente Porthos. E separaram‑se dizendo um ao outro:
‑ Até logo!
«Diabo, parece‑me que me aproximo finalmente do cofre de mestre Coquenard...», pensou Porthos enquanto se afastava.
DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS
A noite, esperada tão impacientemente por Porthos e d'Artagnan chegou por fim.
Como de costume, d'Artagnan apresentou‑se por volta das nove horas em casa de Milady. Encontrou‑a de um humor encantador; nunca o recebera tão bem. O nosso gascão viu à primeira vista de olhos que o seu bilhete fora entregue e produzia o seu efeito.
Ketty entrou com sorvetes. A ama mostrou‑lhe uma expressão encantadora e sorriu‑lhe com o seu mais gracioso sorriso; mas a pobre rapariga estava tão triste que nem sequer reparou na benevolência de Milady.
D'Artagnan olhava uma após outra as duas mulheres e era forçado a confessar que a natureza se enganara ao formá‑las: dera à grande dama uma alma venal e vil e à criadita o coração de uma duquesa.
Às dez horas, Milady começou a parecer inquieta e d'Artagnan compreendeu o que isso significava. Ela olhava o relógio, levantava‑se, tornava a sentar‑se e sorria a d'Artagnan com um ar que queria dizer: «Sois muito amável, sem dúvida, mas seríeis um amor se vos fôsseis embora!»
D'Artagnan levantou‑se e pegou no chapéu; Milady deu‑lhe a mão a beijar. O jovem sentiu que ela lha apertava e compreendeu que o não fazia por um sentimento de garridice, mas sim de reconhecimento por ele se ir embora.
‑ Ama‑o endiabradamente ‑ murmurou.
Depois saiu.
Desta vez, Ketty não o esperava em parte alguma, nem na antecâmara, nem no corredor, nem no portão. D'Artagnan teve de encontrar sozinho a escada do quartito.
Ketty estava sentada, com o rosto escondido nas mãos e chorava.
Ouviu entrar d'Artagnan, mas não levantou a cabeça. O jovem foi ao seu encontro e pegou‑lhe nas mãos; então ela rompeu em soluços.
Como d'Artagnan presumira, Milady, ao receber a carta, tinha, no delírio da sua alegria, contado tudo à criada; depois, como recompensa da maneira como dessa vez se desempenhara da sua comissão, dera‑lhe uma bolsa. Mas Ketty, ao regressar ao seu quarto, atirara a bolsa para um canto, onde ficara aberta e espalhara três ou quatro moedas de ouro no tapete.
Ao ouvir a voz de d'Artagnan a pobre rapariga levantou a cabeça. Ele próprio ficou assustado ao ver‑lhe o rosto transtornado. Ketty juntou as mãos com ar suplicante, mas sem ousar dizer palavra.
Por pouco sensível que fosse o coração de d'Artagnan, sentiu‑se comovido ao ver aquela dor muda; mas prezava demasiado os seus projectos, e sobretudo aquele, para alterar fosse no que fosse o programa que traçara antecipadamente. Não deu portanto a Ketty nenhuma esperança de ceder, apenas lhe apresentou a sua acção como uma simples vingança.
Vingança de resto tanto mais fácil quanto era certo que Milady, sem dúvida para ocultar o seu rubor ao amante, recomendara a Ketty que apagasse todas as luzes dos seus aposentos, mesmo do quarto. O Sr. de Wardes devia sair antes de amanhecer, sempre no escuro.
Pouco depois ouviram Milady entrar no seu quarto. D'Artagnan meteu‑se imediatamente no armário. Mal se escondeu a campainha tocou.
Ketty entrou no quarto da ama, mas não deixou a porta aberta. No entanto, a parede era tão delgada que se ouvia quase tudo o que as duas mulheres diziam.
Milady parecia ébria de alegria e obrigava Ketty a repetir os mil pequenos pormenores da pretensa conversa da criadita com Wardes: como recebera a sua carta, como respondera, qual era a expressão do seu rosto, se parecia muito apaixonado... E a todas as perguntas a pobre Ketty, obrigada a manter a presença de espírito, respondia com voz
abafada, na qual nem sequer notava o acento doloroso, de tal modo a felicidade é egoísta.
Por fim, como se aproximasse a hora do seu encontro com o conde, Milady mandou apagar todas as luzes do quarto e ordenou a Ketty que voltasse para o seu e introduzisse Wardes assim que ele chegasse.
A espera de Ketty não foi longa. Logo que d'Artagnan viu através do buraco da fechadura do armário que se encontrava tudo mergulhado na obscuridade, saiu do seu esconderijo no preciso momento em que Ketty fechava a porta de comunicação.
‑ Que barulho é esse? ‑ perguntou‑lhe Milady.
‑ Sou eu ‑ respondeu d'Artagnan a meia voz. ‑ Eu, o conde de
Wardes.
‑ Oh, meu Deus, meu Deus! ‑ murmurou Ketty. ‑ Nem sequer esperou pela hora que ele próprio fixara!
‑ Então, por que não entrais? ‑ perguntou Milady, com voz trémula. ‑ Conde, conde ‑ acrescentou ‑, bem sabeis que vos espero!
Perante este apelo, d'Artagnan afastou suavemente Ketty e entrou no quarto de Milady.
Se a raiva e a dor podem torturar uma alma, é a do amante que recebe sob um nome que não é o seu os protestos de amor que se dirigem ao seu feliz rival.
D'Artagnan encontrava‑se numa situação dolorosa que não previra: o ciúme mordia‑lhe o coração e sofria quase tanto como a pobre Ketty, que chorava naquele momento no quarto contíguo.
‑ Sim, conde ‑ dizia Milady na sua voz mais terna, apertando‑lhe carinhosamente a mão nas suas ‑, sim, sinto‑me feliz pelo amor que os vossos olhos e as vossas palavras me exprimiram todas as vezes que nos encontrámos. Também vos amo. Oh, amanhã quero qualquer penhor vosso que me prove que pensais em mim, e para que me não esqueçais, tomai!
E passou um anel do seu dedo para o de d'Artagnan.
O jovem lembrou‑se de ter visto aquele anel na mão de Milady; era uma safira magnífica rodeada de brilhantes.
O primeiro movimento de d'Artagnan foi de lho restituir, mas Milady acrescentou:
‑ Não, não; guardai esse anel por amor de mim. Aliás, aceitando‑o, prestais‑me um serviço muito maior do que poderíeis imaginar ‑ acrescentou em tom comovido.
«Esta mulher está cheia de mistérios...», disse d'Artagnan para consigo.
Neste momento esteve quase a revelar tudo. Abriu a boca para dizer a Milady quem era e com que intenções vingativas estava ali, mas ela acrescentou:
‑ Pobre anjo, que esse monstro gascão quase matou! O monstro era ele.
‑ Os vossos ferimentos ainda vos fazem sofrer? ‑ continuou Milady.
‑ Sim, muito ‑ respondeu d'Artagnan, sem saber que dizer.
‑ Estai tranquilo que eu vos vingarei, e cruelmente! ‑ murmurou Milady.
«Irra, o momento das confidências ainda não chegou!», disse d'Artagnan para consigo.
O jovem precisou de algum tempo para se recompor deste pequeno diálogo; mas todas as ideias de vingança que trouxera se tinham desvanecido por completo. Aquela mulher exercia sobre ele um poder incrível, odiava‑a e adorava‑a ao mesmo tempo, nunca imaginara que dois sentimentos tão contrários pudessem habitar no mesmo coração e, confundindo‑se, formar um amor estranho e de certo modo diabólico.
Entretanto, acabava de dar uma hora; tinham de se separar. No momento de deixar Milady, d'Artagnan sentiu apenas um vivo pesar, e na despedida apaixonada que se dirigiram reciprocamente combinaram encontrar‑se de novo na semana seguinte. A pobre Ketty esperava poder trocar algumas palavras com d'Artagnan quando ele passasse pelo seu quarto, mas Milady acompanhou‑o pessoalmente na obscuridade e só o deixou na escada.
No dia seguinte de manhã, d'Artagnan correu para casa de Athos. Estava metido numa aventura singular e queria pedir‑lhe conselho. Contou‑lhe tudo; Athos franziu várias vezes o sobrolho.
‑ A vossa Milady ‑ declarou ‑ parece‑me uma criatura infame, mas nem por isso procedestes menos mal enganando‑a. Agora, eis‑vos de uma maneira ou de outra com uma inimiga terrível nos braços.
Enquanto falava, Athos olhava com atenção a safira rodeada de diamantes que tomara no dedo de d'Artagnan o lugar do anel da rainha, cuidadosamente guardado num estojo.
‑ Olhais este anel? ‑ perguntou o gascão, muito orgulhoso de exibir aos olhos dos amigos tão rico presente.
‑ Olho ‑ respondeu Athos. ‑ Recorda‑me uma jóia de família.
‑ É belo, não é verdade? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Magnífico! ‑ respondeu Athos. ‑ Não supunha que houvesse duas safiras de tão bela água. Trocaste‑a pelo vosso diamante?
‑ Não ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ É um presente da minha bela inglesa, ou antes, da minha bela francesa, porque embora lho não tenha perguntado estou convencido de que nasceu em França.
‑ Esse anel foi‑vos dado por Milady? ‑ inquiriu Athos, num tom de voz em que era fácil distinguir uma grande emoção.
‑ Pessoalmente. Deu‑mo esta noite.
‑ Mostrai‑me esse anel ‑ pediu Athos.
‑ Aqui o tendes ‑ respondeu d'Artagnan, tirando‑o do dedo. Athos examinou‑o e pôs‑se muito pálido; depois experimentou‑o no
anelar da mão esquerda: ficava nesse dedo como se tivesse sido feito
para ele. Uma nuvem de cólera e de vingança passou pela fronte habitualmente calma do gentil‑homem.
‑ É impossível que seja o mesmo ‑ murmurou. ‑ Como iria este anel parar às mãos de Lady Clarick? E no entanto é muito difícil que haja entre duas jóias tal semelhança.
‑ Conheceis esse anel? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Julguei reconhecê‑lo, mas sem dúvida enganei‑me ‑ respondeu Athos.
E restituiu‑o a d'Artagnan, sem deixar no entanto de o olhar.
‑ Por favor ‑ disse passado um instante ‑, tirai esse anel do dedo ou virai o engaste para dentro; traz‑me à memória tão cruéis recordações que não teria cabeça para conversar convosco. Não viestes pedir‑me conselho? Não me dissestes que estáveis embaraçado, sem saber o que devíeis fazer?... Mas esperai... dai‑me essa safira: aquela a que me referi tinha uma das faces lascada devido a um acidente.
D'Artagnan tirou de novo o anel do dedo e entregou‑o a Athos. Este estremeceu:
‑ Tomai ‑ disse. ‑ Vede, não é estranho?
E mostrava a d'Artagnan a falha que se lembrava dever existir.
‑ Mas de quem recebestes esta safira, Athos?
‑ Da minha mãe, que a recebera da mãe dela. Como vos disse, trata‑se de uma velha jóia... que nunca devia sair da família.
‑ E vós... vendeste‑a? ‑ perguntou d'Artagnan, hesitante.
‑ Não ‑ respondeu Athos, com um sorriso singular. ‑ Dei‑a durante uma noite de amor, como vos foi dada a vós.
D'Artagnan ficou por sua vez pensativo; parecia‑lhe ver na alma de Milady abismos de profundezas sombrias e desconhecidas. Em vez de meter o anel no dedo, guardou‑o na algibeira.
‑ Escutai ‑ disse‑lhe Athos, pegando‑lhe na mão. ‑ Sabeis que vos amo, d'Artagnan; se tivesse um filho, não o amaria mais do que a vós. Pois bem, acreditai‑me, renunciai a essa mulher. Não a conheço, mas uma espécie de intuição diz‑me que é uma criatura perdida e que há algo fatal nela.
‑ E tendes razão ‑ disse d'Artagnan. ‑ Por isso a vou deixar; confesso‑vos que essa mulher também me assusta.
‑ Tereis essa coragem? ‑ perguntou Athos.
‑ Terei ‑ respondeu d'Artagnan ‑, e imediatamente.
‑ Ainda bem, meu filho, que assim pensais ‑ disse o gentil‑homem, apertando a mão ao gascão quase paternalmente. ‑ Deus queira que essa mulher, que ainda mal entrou na vossa vida, não deixe nela um rasto funesto!
E Athos despediu d'Artagnan com uma inclinação de cabeça, como um homem que deseja dar a entender que não se importa de ficar só com os seus pensamentos.
Quando chegou a casa, d'Artagnan encontrou Ketty à sua espera.
Um mês de febre não teria modificado mais a pobre criança do que aquela noite de insónia e dor.
Era enviada pela ama ao falso Wardes. Milady estava louca de amor, ébria de alegria; queria saber quando o conde lhe concederia segundo encontro. E a pobre Ketty, pálida e trémula, esperava a resposta de d'Artagnan.
Athos tinha grande influência sobre o jovem. Os conselhos do amigo juntamente com os protestos do seu próprio coração tinham‑no decidido, agora que o seu orgulho estava salvo e a sua vingança satisfeita, a não tornar a ver Milady. Pegou portanto na pena e escreveu a seguinte carta:
Não conteis comigo, senhora, para o próximo encontro: desde a minha convalescença tenho tantas ocupações desse género que preciso de lhes dar certa ordem. Quando chegar a vossa vez, terei a honra de vos informar.
Beijo‑vos as mãos.
Conde de Wardes.
A respeito da safira nem uma palavra. Quereria o gascão conservar uma arma contra Milady? Ou, sejamos francos, não conservaria a safira como último recurso para comprar o equipamento?
Seria incorrecto julgar as acções de uma época do ponto de vista doutra época. O que hoje seria olhado como uma desonra para um homem galante era naquele tempo coisa muito simples e muito natural, e os filhos mais novos das melhores famílias eram em geral mantidos pelas amantes.
D'Artagnan entregou a carta aberta a Ketty, que a leu, primeiro sem a compreender, e que quase enlouqueceu de alegria ao lê‑la segunda vez.
Ketty não podia acreditar em tamanha felicidade e d'Artagnan teve de lhe renovar de viva voz as garantias que a carta lhe dava por escrito. E fosse qual fosse, dado o temperamento exaltado de Milady, o perigo que corresse a pobre criança em entregar semelhante bilhete à ama, nem por isso deixou de regressar tão depressa quanto as pernas lho permitiram à Praça Royale.
O coração da melhor das mulheres é implacável para com os sofrimentos de uma rival.
Milady abriu a carta com uma pressa igual à que Ketty pusera em trazer‑lha; mas à primeira palavra que leu pôs‑se lívida. Depois amarrotou o papel; em seguida virou‑se para Ketty com os olhos a relampejar.
‑ Que carta é esta? ‑ perguntou.
‑ Mas... é a resposta à da senhora ‑ respondeu Ketty, toda trémula.
‑ Impossível! ‑ gritou Milady. ‑ É impossível que um gentil‑homem tenha escrito a uma mulher semelhante carta!
Depois, de súbito, estremecendo:
‑ Meu Deus, ter‑se‑á dado o caso de... E deteve‑se.
Rangia os dentes e estava cor de cinza. Quis dar um passo para a janela, a fim de tomar ar, mas só conseguiu estender os braços; as pernas faltaram‑lhe e caiu num cadeirão.
Ketty julgou que se sentisse mal e precipitou‑se para lhe desapertar o corpete. Mas Milady endireitou‑se vivamente.
‑ Que me queres? ‑ perguntou. ‑ Por que me tocas?
‑ Pensei que a senhora estivesse indisposta e quis socorrê‑la ‑ respondeu a criada, assustadíssima com a expressão terrível que adquirira o rosto da ama.
‑ Indisposta eu, eu? Tomas‑me por uma mulherzinha fraca? Quando me insultam, não fico indisposta, vingo‑me, entendes?
E fez sinal com a mão a Ketty para sair.
SONHO DE VINGANÇA
À noite, Milady deu ordem para introduzirem o Sr. d'Artagnan assim que chegasse, conforme o seu hábito. Mas ele não veio.
No dia seguinte, Ketty procurou de novo o jovem e contou‑lhe tudo o que se passara na véspera. D'Artagnan sorriu: a cólera ciumenta de Milady era a sua vingança.
À noite, Milady, ainda mais impaciente do que na véspera, renovou a ordem relativa ao gascão; mas como na véspera esperou‑o inutilmente.
No dia seguinte, Ketty apresentou‑se em casa de d'Artagnan, já não alegre e viva como nos dois dias anteriores, mas pelo contrário tristíssima.
D'Artagnan perguntou à pobre rapariga o que tinha; mas ela, como única resposta, tirou uma carta da algibeira e entregou‑lha.
Era uma carta do punho de Milady; apenas desta vez estava endereçada a d'Artagnan e não ao Sr. de Wardes. Abriu‑a e leu o que se segue:
Caro Sr. d'Artagnan: Não está certo abandonar assim os seus amigos, sobretudo no momento em que os vai deixar por tanto tempo. O meu cunhado e eu esperámo‑lo ontem e anteontem inutilmente. Acontecerá o mesmo esta noite?
Sua muito reconhecida,
Lady Clarick.
‑ É muito simples ‑ disse d'Artagnan ‑ e já esperava esta carta. O meu crédito sobe à medida que baixa o do conde de Wardes.
‑ Ireis? ‑ perguntou Ketty.
‑ Escuta, minha querida filha ‑ disse o gascão, que procurava desculpar‑se a seus próprios olhos de faltar à promessa que fizera a Athos ‑, não compreendes que seria impolítico não corresponder a um convite tão positivo? Não me vendo voltar, Milady não compreenderia a interrupção das minhas visitas, poderia desconfiar de qualquer coisa, e quem pode dizer até onde iria a vingança de uma mulher da sua têmpera?
‑ Oh, meu Deus, sabeis apresentar as coisas de uma forma que tendes sempre razão! ‑ protestou Ketty. ‑ Mas ides novamente fazer‑lhe a corte; e se desta vez lhe agradásseis sob o vosso verdadeiro nome e sob o vosso verdadeiro rosto, seria muito pior do que da primeira vez!
O instinto permitia adivinhar à pobre rapariga o que ia acontecer.
D'Artagnan tranquilizou‑a o melhor que pôde e prometeu‑lhe ficar insensível às seduções de Milady.
Mandou dizer que estava reconhecidissimo pelas suas atenções e que iria receber as suas ordens; mas não ousou escrever‑lhe com receio de não conseguir disfarçar suficientemente a sua letra a olhos tão experientes como os de Milady.
Ao darem nove horas, d'Artagnan estava na Praça Royale. Era evidente que os criados que esperavam na antecâmara estavam prevenidos, pois logo que d'Artagnan apareceu, ainda antes de perguntar se Milady estava visível, um deles correu a anunciá‑lo.
‑ Que entre ‑ disse Milady numa voz breve, mas tão penetrante que d'Artagnan a ouviu na antecâmara.
Introduziram‑no.
‑ Não estou para ninguém ‑ disse Milady ao criado. ‑ Ouvistes? Para ninguém.
O lacaio saiu.
D'Artagnan deitou um olhar curioso a Milady: estava pálida e tinha os olhos mortiços, quer por ter chorado, quer por não ter dormido. Intencionalmente tinham diminuído o número habitual de luzes, mas mesmo assim a jovem não conseguia esconder os vestígios da febre que a devorara durante dois dias.
D'Artagnan aproximou‑se dela com a sua galanteria habitual; Milady fez então um esforço supremo para lhe corresponder, mas nunca fisionomia mais transtornada desmentiu sorriso mais amável.
Às perguntas que d'Artagnan lhe dirigiu acerca da sua saúde respondeu:
‑ Má, muito má.
‑ Mas então ‑ disse d'Artagnan ‑ sou importuno; tendes necessidade de repouso, sem dúvida, e vou‑me retirar.
‑ Não ‑ opôs‑se Milady. ‑ Pelo contrário, ficai, Sr. d'Artagnan; a vossa amável companhia distrair‑me‑á.
«Oh, oh, nunca foi tão encantadora! Desconfiemos...», pensou d'Artagnan.
Milady tomou o ar mais afectuoso que lhe foi possível e imprimiu ao diálogo todo o brilho que pôde. Ao mesmo tempo, a febre que a abandonara um instante voltava a restituir‑lhe o fulgor aos olhos, as cores às faces e o carmim aos lábios. D'Artagnan reencontrou a Circe que já o envolvera nos seus encantamentos. O seu amor, que julgava extinto mas que estava apenas adormecido, acordou no seu coração. Milady sorria e d'Artagnan sentia que se perderia por aquele sorriso.
Houve um momento em que sentiu qualquer coisa como um remorso do que fizera àquela mulher.
Pouco a pouco, Milady tornou‑se mais comunicativa. Perguntou a d'Artagnan se tinha alguma amante.
‑ Meu Deus ‑ respondeu d'Artagnan com o ar mais sentimental que conseguiu tomar ‑, como podeis ser tão cruel que me façais semelhante pergunta, a mim que desde que vos vi só vivo e suspiro para vós e por vós?...
Milady sorriu estranhamente.
‑ Amais‑me, portanto...
‑ Terei necessidade de vo‑lo dizer, ainda o não notastes?
‑ Decerto. Mas como sabeis quanto mais orgulhosos são os corações mais difíceis de conquistar.
‑ Oh, as dificuldades não me assustam! ‑ redarguiu d'Artagnan. ‑ Só as impossibilidades me metem medo.
‑ Nada é impossível a um verdadeiro amor ‑ observou Milady.
‑ Nada, senhora?
‑ Nada ‑ repetiu Milady.
«Demónio, a nota mudou!», comentou d'Artagnan para consigo. «Ter‑se‑á apaixonado por mim por acaso, a caprichosa, e estará disposta a dar‑me outra safira igual à que me deu tomando‑me por Wardes?»
D'Artagnan aproximou vivamente a sua cadeira da de Milady.
‑ Vejamos, que faríeis para provar esse amor de que falais? ‑ perguntou ela.
‑ Tudo o que se exigisse de mim. Haja quem ordene e estou pronto.
‑ Para tudo?
‑ Para tudo! ‑ exclamou d'Artagnan, que sabia antecipadamente não arriscar grande coisa em semelhante compromisso.
‑ Bom, conversemos um pouco... ‑ sugeriu Milady, aproximando também o seu cadeirão da cadeira de d'Artagnan.
‑ Escuto‑vos, senhora.
Milady ficou um instante concentrada e como que indecisa; depois, pareceu tomar uma resolução e disse:
‑ Tenho um inimigo.
‑ Vós, senhora?! ‑ exclamou d'Artagnan, fingindo‑se surpreendido. ‑ Será possível, meu Deus? Bela e boa como sois...
‑ Um inimigo mortal.
‑ Deveras?
‑ Um inimigo que me insultou tão cruelmente que existe entre ele e mim uma guerra de morte. Posso contar convosco como auxiliar?
D'Artagnan compreendeu acto contínuo aonde a vingativa criatura queria chegar.
‑ Podeis, senhora ‑ respondeu com ênfase. ‑ O meu braço e a minha vida pertencem‑vos como o meu amor.
‑ Sendo assim, já que sois tão generoso como estais apaixonado... Deteve‑se.
‑ Que devo fazer? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Deixar, a partir de hoje, de falar de impossibilidades ‑ respondeu Milady após um momento de silêncio.
‑ Não me mateis de felicidade! ‑ exclamou d'Artagnan, precipitando‑se de joelhos e cobrindo de beijos as mãos que lhe abandonavam.
‑ Vinga‑me desse infame Wardes ‑ murmurou Milady entre dentes ‑ e eu saberei desembaraçar‑me de ti em seguida, duplo parvo, lâmina de espada viva!
«Cai‑me voluntariamente nos braços, depois de me terdes escarnecido tão afrontosamente, hipócrita e perigosa mulher, e rir‑me‑ei de ti com aquele que queres matar por minha mão», pensava d'Artagnan.
Em seguida levantou a cabeça e disse:
‑ Estou pronto.
‑ Ainda bem que me compreendestes, caro Sr. d'Artagnan ‑ declarou Milady.
‑ Adivinharia um dos vossos olhares.
‑ Portanto poreis ao meu serviço o vosso braço, que já adquiriu tanta nomeada?
‑ Imediatamente.
‑ Mas como pagarei semelhante serviço? Conheço os apaixonados, são pessoas que não fazem nada desinteressadamente...
‑ Sabeis a única resposta que desejo ‑ redarguiu d'Artagnan ‑, a única que é digna de vós e de mim!
E puxou‑a suavemente para si.
Ela quase não resistiu; disse apenas, sorrindo:
‑ Interesseiro!...
‑ Oh! ‑ exclamou d'Artagnan, verdadeiramente arrebatado pela paixão que aquela mulher tinha o dom de despertar no seu coração. ‑ Oh, é como se a minha felicidade me parecesse inverosímil, e como, tendo sempre medo de a ver evolar‑se como um sonho, tivesse pressa de a transformar em realidade!
‑ Mereceis sem dúvida essa pretensa felicidade.
‑ Estou às vossas ordens ‑ declarou d'Artagnan.
‑ De certeza? ‑ perguntou Milady, com uma derradeira dúvida.
‑ Indicai‑me o infame que foi capaz de fazer chorar os vossos belos olhos.
‑ Quem vos disse que chorei?
‑ Pareceu‑me...
‑ As mulheres como eu não choram.
‑ Tanto melhor! Vamos, dizei‑me como se chama.
‑ Lembrai‑vos de que o seu nome é todo o meu segredo.
‑ No entanto, é necessário que eu o conheça.
‑ Sim, é necessário; e será uma prova de que tenho confiança em vós...
‑ Encheis‑me de alegria. Como se chama?
‑ Conhecei‑lo...
‑ Deveras? ‑Sim.
‑ Não é nenhum dos meus amigos? ‑ perguntou d'Artagnan, fingindo hesitação para fazer crer na sua ignorância.
‑ Se fosse um dos vossos amigos hesitaríeis ‑ perguntou Milady. E um relâmpago de ameaça passou‑lhe pelos olhos.
‑ Não. Nem que fosse meu irmão! ‑ exclamou d'Artagnan, como que arrebatado pelo entusiasmo.
O nosso gascão avançava sem se arriscar; porque sabia aonde queria
chegar.
‑ Aprecio a vossa dedicação ‑ declarou Milady.
‑ Meu Deus, e não apreciais mais nada em mim? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Também vos aprecio ‑ acrescentou ela, pegando‑lhe na mão.
E a ardente pressão fez tremer d'Artagnan, como se, pelo simples facto de lhe tocar, a febre que queimava Milady se lhe transmitisse.
‑ Quereis dizer que me amais? ‑ perguntou ansioso. ‑ Oh, se fosse verdade seria motivo para perder a razão!
E envolveu‑a nos braços. Ela não tentou afastar os lábios dos dele, quando a beijou; apenas não lhe correspondeu.
Os seus lábios estavam frios; pareceu a d'Artagnan que acabava de beijar uma estátua.
Mas nem por isso ficou menos ébrio de alegria, menos electrizado de amor; quase acreditava no amor de Milady; quase acreditava no crime de Wardes. Se o tivesse naquele momento ao alcance da mão, matá‑lo‑ia.
Milady aproveitou a oportunidade.
‑ Chama‑se... ‑ começou.
‑ Wardes! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Já sabia que era ele.
‑ E como o sabíeis? ‑ perguntou Milady, pegando‑lhe nas mãos e tentando ler‑lhe através dos olhos até ao fundo da alma.
D'Artagnan sentiu que se excedera e cometera um erro.
‑ Dizei, dizei; vá, dizei! ‑ repetia Milady. ‑ Como sabíeis?
‑ Como sabia?...
‑ Sim.
‑ Sabia‑o porque ontem, num salão onde me encontrava, Wardes mostrou um anel que disse ter‑lhe sido dado por vós.
‑ Miserável! ‑ gritou Milady.
O epíteto, como muito bem se compreende, repercutiu‑se até ao fundo do coração de d'Artagnan. ‑ E então?
‑ Então, vingar‑vos‑ei desse miserável ‑ declarou d'Artagnan, dando‑se ares de D. Jafeth da Arménia.
‑ Obrigada, meu bravo amigo! ‑ exclamou Milady. ‑ E quando serei vingada?
‑ Amanhã... imediatamente... quando quiserdes.
Milady ia gritar: «Imediatamente!», mas reflectiu que semelhante precipitação seria pouco agradável para d'Artagnan.
Aliás, tinha mil precauções a tomar, mil conselhos a dar ao seu defensor, para que evitasse explicações com o conde diante de testemunhas. Mas uma palavra de d'Artagnan tudo resolveu:
‑ Amanhã estareis vingada ou eu estarei morto.
‑ Não! Vingar‑me‑eis, mas não morrereis: é um cobarde.
‑ Com as mulheres, talvez; mas com os homens, não. Sei alguma coisa a esse respeito.
‑ Mas parece‑me que na vossa luta com ele não tivestes de vos queixar da sorte.
‑ A sorte é uma cortesã: favorável ontem, pode trair‑me amanhã.
‑ O que quer dizer que hesitais agora...
‑ Não, não hesito, Deus me defenda; mas seria justo deixares‑me ir para uma morte possível sem me terdes dado ao menos um pouco mais do que esperança?...
Milady respondeu com um olhar que queria dizer: «Só isso? Dizei.» Depois, acompanhando o olhar de palavras explicativas, disse ternamente:
‑ É justíssimo.
‑ Oh, sois um anjo! ‑ exclamou o jovem.
‑ Portanto, está tudo combinado?
‑ Excepto o que vos pedi, querido amor!
‑ Mas se vos digo que podeis confiar na minha ternura...
‑ Não tenho amanhã para esperar.
‑ Silêncio! Ouço o meu irmão; é inútil que vos encontre aqui. Tocou; Ketty apareceu.
‑ Saí por essa porta ‑ disse, empurrando uma portinha disfarçada ‑ e voltai às onze horas para acabarmos a nossa conversa. Ketty introduzir‑vos‑á no meu quarto.
A pobre criança pensou cair redonda no chão ao ouvir estas palavras.
‑ Que fazeis aí, menina, imóvel como uma estátua? Vamos, acompanhai o cavaleiro ‑ ordenou‑lhe Milady. ‑ E vós, às onze horas, como ouvistes!
«Parece que os seus encontros amorosos são todos às onze horas», pensou d'Artagnan. «Deve ser um hábito adquirido...»
Milady estendeu‑lhe a mão, que ele beijou ternamente.
«Cautela», disse para consigo enquanto se retirava sem quase responder às censuras de Ketty, «cautela, não sejamos parvos! Decididamente, esta mulher é uma grande celerada e todo o cuidado é pouco.»
O SEGREDO DE MILADY
D'Artagnan saíra do palácio em vez de subir imediatamente ao quarto de Ketty, apesar dos pedidos insistentes da jovem, e isso por duas razões: a primeira, porque assim evitava as censuras, as recriminações e as súplicas; a segunda, porque queria analisar um pouco as suas ideias e, se possível, as daquela mulher.
Tudo o que havia de mais claro no caso era que d'Artagnan amava Milady como um louco e que ela o não amava absolutamente nada. Por instantes, d'Artagnan concluiu que o melhor que tinha a fazer era voltar para casa e escrever a Milady uma longa carta confessando‑lhe que ele e Wardes eram até ali uma e a mesma pessoa e que portanto não podia comprometer‑se, sob pena de suicídio, a matar Wardes. Mas também o espicaçava um feroz desejo de vingança que o levava a desejar possuir aquela mulher sob o seu próprio nome; e como tal vingança lhe parecia conter certa doçura, não queria de modo algum renunciar a ela. Deu cinco ou seis vezes a volta à Praça Royale, virando‑se de dez em dez passos para olhar a luz dos aposentos de Milady, que se distinguia através das gelosias. Era evidente que daquela vez a jovem tinha menos pressa do que da primeira em recolher ao seu quarto. Por fim a luz desapareceu.
E com ela extinguiu‑se a última irresolução no coração de d'Artagnan. Recordou‑se dos pormenores da primeira noite e, com o coração aos pulos e a cabeça em fogo, voltou a entrar no palácio e precipitou‑se para o quarto de Ketty.
A jovem, pálida como a morte e tremendo como varas verdes, quis deter o amante; mas Milady, de ouvido à escuta, ouvira o barulho que fizera d'Artagnan e abriu a porta. ‑ Vinde ‑ disse.
Tudo aquilo era de tão incrível impudência, de tão monstruoso descaramento, que d'Artagnan mal podia acreditar no que via e ouvia. Julgava‑se envolvido em qualquer dessas intrigas fantásticas que só acontecem em sonhos.
Mas nem por isso correu menos para Milady, cedendo à atracção que o íman exerce sobre o ferro. A porta fechou‑se atrás deles.
Ketty lançou‑se por seu turno contra a porta.
O ciúme, o furor, o orgulho ofendido, todas as paixões, enfim, que assaltam o coração de uma mulher apaixonada a impeliam para uma revelação; mas estaria perdida se confessasse ter contribuído para semelhante maquinação; e sobretudo d'Artagnan estaria perdido para ela. Este último pensamento amoroso aconselhou‑lhe também aquele derradeiro sacrifício.
Pelo seu lado, d'Artagnan atingira o cúmulo de todos os seus desejos: já não era um rival que se amava em si, era a ele mesmo que se fingia amar. Uma voz íntima dizia‑lhe bem no fundo do coração que não passava de um instrumento de vingança que se acarinhava enquanto se esperava que cumprisse a sua missão de morte; mas o orgulho, o amor‑próprio, a loucura, faziam calar essa voz, abafavam esse murmúrio. Depois o nosso gascão, com a dose de confiança que lhe conhecemos, comparava‑se a Wardes e perguntava‑se por que motivo, no fim de contas, o não amariam também por si mesmo.
Abandonou‑se pois por completo às sensações do momento. Milady deixou de ser para ele a mulher de intenções fatais que por momentos o assustara para se tornar numa amante ardente e apaixonada que se abandonava por completo a um amor que ela própria parecia experimentar. Passaram‑se assim cerca de duas horas.
Entretanto, os transportes de dois amantes acalmaram‑se; Milady, que não tinha os mesmos motivos que d'Artagnan para esquecer, foi a primeira a regressar à realidade e perguntou ao jovem se as medidas que deveriam conduzir no dia seguinte a um duelo entre ele e Wardes estavam já bem planeadas no seu espírito.
Mas d'Artagnan, cujas ideias tinham tomado outro curso e esquecera como um tolo o assunto, respondeu galantemente que era muito tarde para se ocupar de duelos e estocadas.
Semelhante desinteresse pela única coisa que a preocupava assustou Milady, cujas perguntas se tornaram mais insistentes.
Então, d'Artagnan, que nunca pensara seriamente em semelhante duelo, quis mudar de assunto, mas não o conseguiu.
Milady conteve‑o nos limites que traçara antecipadamente com o seu espírito irresistível e a sua vontade de ferro.
D'Artagnan julgou‑se muito espirituoso aconselhando a Milady que renunciasse, perdoando a Wardes, aos projectos loucos que traçara.
Mas às primeiras palavras que disse a jovem estremeceu e afastou‑se.
‑ Tereis medo, querido d'Artagnan? ‑ perguntou numa voz aguda e escarninha que ecoou estranhamente na obscuridade.
‑ Nem penseis nisso, querida! ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Mas enfim, se o pobre conde de Wardes fosse menos culpado do que imaginais?
‑ De qualquer modo ‑ redarguiu gravemente Milady ‑, enganou‑me, e uma vez que me enganou merece a morte.
‑ Que morra então, visto o condenardes! ‑ declarou d'Artagnan em tom tão firme que pareceu a Milady a expressão de uma dedicação a toda a prova.
E aproximou‑se imediatamente dele.
‑ Não poderíamos dizer quanto tempo durou a noite para Milady; mas d'Artagnan julgava estar junto dela havia apenas duas horas quando o dia rompeu por entre as fendas das gelosias e em breve invadiu o quarto com a sua claridade macilenta.
Então Milady, vendo que d'Artagnan a ia deixar, recordou‑lhe a promessa que fizera de a vingar de Wardes.
‑ Estou pronto ‑ respondeu d'Artagnan ‑, mas primeiro gostaria de ter a certeza de uma coisa.
‑ Qual? ‑ perguntou Milady.
‑ De que me amais.
‑ Parece‑me que vo‑lo provei.
‑ Sim, e por isso vos pertenço de corpo e alma.
‑ Obrigada, meu bravo amante! Mas assim como vos provei o meu amor, provar‑me‑eis também o vosso, não é verdade?
‑ Certamente. No entanto, se me amais como dizeis ‑ continuou d'Artagnan ‑, não receais um pouco por mim?
‑ Que posso recear?
‑ Que seja ferido gravemente, morto mesmo.
‑ Impossível ‑ declarou Milady. ‑ Sois um homem tão valente e uma tão fina espada...
‑ Não preferíeis portanto ‑ insistiu d'Artagnan ‑ um meio que vos vingaria da mesma maneira tornando inútil o combate?...
Milady olhou o amante em silêncio; a claridade baça dos primeiros raios de luz dava aos seus olhos uma expressão estranhamente funesta.
‑ Na verdade ‑ disse ela ‑, agora estou convencida de que hesitais.
‑ Não, não hesito; mas é que esse pobre conde de Wardes me mete realmente pena desde que já não o amais, e parece‑me que um homem é tão cruelmente punido só por perder o vosso amor que não precisa doutro castigo.
‑ Quem vos disse que o amei? ‑ perguntou Milady.
‑ Pelo menos posso crer agora sem demasiada fatuidade que amais outro ‑ respondeu o jovem em tom acariciador ‑, e além disso, repito‑vos, interesso‑me pelo conde.
‑ Vós? ‑ perguntou Milady.
‑ Sim, eu.
‑ E porquê?
‑ Porque só eu sei...
‑ O quê?
‑ Que está longe de ser, ou antes, de ter sido tão culpado para convosco como parece.
- Deveras? ‑ inquiriu Milady, com ar inquieto. ‑ Explicai‑vos, porque não sei realmente o que quereis dizer.
E fitava d'Artagnan, que a tinha abraçada, com olhos que pareciam inflamar‑se pouco a pouco.
‑ Bom, sou um homem que assume a responsabilidade dos seus actos ‑ respondeu d'Artagnan, decidido a acabar com aquilo ‑ e uma vez que o vosso amor me pertence, que estou bem certo de o possuir... porque o possuo, não é verdade?
‑ Todo inteiro. Continuai.
‑ Enfim, sinto‑me como que deslumbrado e pesa‑me uma confissão.
‑ Uma confissão?
‑ Se duvidasse do vosso amor não a faria; mas amais‑me, minha bela amante, não é verdade que me amais?
‑ Sem dúvida.
‑ Então, se por excesso de amor me tivesse tornado culpado para convosco, perdoar‑me‑íeis?
‑ Talvez...
D'Artagnan tentou, com o mais terno sorriso que conseguiu esboçar, aproximar os lábios dos de Milady, mas ela afastou‑o.
‑ Essa confissão... ‑ disse, empalidecendo ‑ que confissão é essa?
‑ Tínheis marcado encontro a Wardes na última quinta‑feira, neste mesmo quarto, não é verdade?
‑ Não, isso não é verdade! ‑ respondeu Milady num tom de voz tão firme e com um ar tão impassível que, se d'Artagnan não tivesse absoluta certeza do que dizia, duvidaria.
‑ Não mintais, meu belo anjo ‑ disse d'Artagnan, sorrindo ‑, pois seria inútil.
‑ Como assim? Falai! Matais‑me!
‑ Oh, sossegai, não sois de modo algum culpada para comigo, pois já vos perdoei!
‑ E depois, e depois?
‑ Wardes não pode vangloriar‑se de nada.
‑ Porquê? Vós próprio me dissestes que o anel...
‑ O anel, meu amor, sou eu que o tenho. O conde de Wardes de quinta‑feira e o d'Artagnan de hoje são a mesma pessoa.
O imprudente esperava uma surpresa laivada de pudor, uma tempestadezinha que se desfaria em lágrimas; mas enganava‑se redondamente e o seu erro não foi longe.
Pálida e terrível, Milady endireitou‑se e, repelindo d'Artagnan com um violento soco no peito, saltou da cama.
O dia já nascera então quase por completo.
D'Artagnan segurou‑a pelo penteador, de fino pano da índia, para implorar o seu perdão; mas ela, num gesto brusco e resoluto, tentou fugir. Então, a cambraia de linho rasgou‑se, deixando‑lhe os ombros a descoberto, e num desses belos ombros torneados e brancos, d'Artagnan, com espanto inexprimível, reconheceu a flor‑de‑lis, a marca indelével impressa pela mão infamante do carrasco.
‑ Grande Deus! ‑ exclamou d'Artagnan, largando o penteador. E ficou mudo, imóvel e siderado na cama.
Milady sentiu‑se denunciada pelo próprio espanto de d'Artagnan. Sem dúvida ele vira tudo e conhecia agora o seu segredo, segredo terrível, que toda a gente ignorava, excepto ele.
Virou‑se não já como uma mulher furiosa, mas sim como uma pantera ferida.
‑ Ah, miserável, traíste‑me cobardemente e além disso conheces o meu segredo! Morrerás!
E correu para um cofre com embutidos colocado em cima do toucador, abriu‑o com mão febril e trémula, tirou dele um punhalzinho de cabo de ouro e lâmina aguçada e fina, dirigiu‑se de novo para a cama e saltou sobre d'Artagnan, seminu.
Embora o jovem fosse valente, como sabemos, ficou apavorado com aquele rosto transtornado, aquelas pupilas horrivelmente dilatadas, aquelas faces pálidas e aqueles lábios cruéis. Recuou até ao espaço entre a cama e a parede, como faria à aproximação de uma serpente que rastejasse na sua direcção, deu com a mão molhada de suor na espada e desembainhou‑a.
Mas sem se preocupar com a espada, Milady tentou subir de novo para a cama a fim de o ferir e só se deteve quando sentiu a ponta aguçada da espada na garganta.
Tentou então agarrar a espada com as mãos; mas d'Artagnan gorou‑lhe os intentos e, ameaçando feri‑la ora nos olhos, ora no peito, deixou‑se escorregar para debaixo da cama e procurou, para bater em retirada, a porta que comunicava com o quarto de Ketty.
Entretanto, Milady procurava atirar‑se a ele, praguejando horrivelmente e rugindo como uma fera.
Pareciam ambos empenhados num duelo, mas d'Artagnan tornava‑se pouco a pouco senhor da situação.
‑ Pronto, bela dama, pronto! Acalmai‑vos por Deus, acalmai‑vos, ou desenho‑vos segunda flor‑de‑lis no outro ombro...
‑ Infame! Infame! ‑ bramia Milady.
Mas d'Artagnan, continuando a procurar a porta, mantinha‑se na defensiva.
Ao ouvir o barulho que faziam, ela derrubando os móveis para se aproximar dele e ele abrigando‑se atrás desses mesmos móveis para se defender dela, Ketty abriu a porta. D'Artagnan, que manobrara constantemente para se aproximar daquela porta, encontrava‑se apenas a três passos dela. Num único salto passou do quarto de Milady para o da criada e, rápido como um relâmpago, fechou a porta, à qual se encostou com todo o seu peso, enquanto Ketty corria os ferrolhos.
Então Milady tentou derrubar a divisória que a separava do outro quarto, empregando para isso forças muito superiores às de uma mulher, mas quando verificou que isso era impossível crivou a porta de punhaladas, algumas das quais atravessaram a espessura da madeira.
Cada punhalada era acompanhada de uma imprecação terrível.
‑ Depressa, depressa. Ketty ‑ disse d'Artagnan a meia voz, uma vez os ferrolhos corridos. ‑ Faz‑me sair do palácio, pois se lhe dermos tempo para isso mandar‑me‑á matar pelos criados.
‑ Mas não podeis sair assim ‑ observou Ketty. ‑ Estais completamente nu!
‑ É verdade ‑ reconheceu d'Artagnan, que só então reparou no estado em que se encontrava. ‑ É verdade... Veste‑me como puderes, mas despachemo‑nos; é uma questão de vida ou de morte, compreendes?
Ketty não compreendia muito bem; mas num abrir e fechar de olhos meteu‑o num vestido às flores e cobriu‑o com uma grande touca e com um mantelete; deu‑lhe pantufas para se calçar e depois arrastou‑o pelos degraus. Era tempo: Milady já tocara e acordara todo o palácio. O porteiro abriu o portão à ordem de Ketty, no preciso momento em que Milady, seminua, gritava da janela:
‑ Não abras!
COMO SEM SE INCOMODAR, ATHOS ARRANJOU O SEU EQUIPAMENTO
O jovem fugiu enquanto ela o ameaçava ainda, num gesto impotente. Assim que o perdeu de vista, Milady caiu sem sentidos no seu quarto.
D'Artagnan estava de tal modo transtornado que, sem se preocupar com o que aconteceria a Ketty, atravessou metade de Paris, sempre a correr, e só parou diante da porta de Athos. A desorientação do seu espírito, o terror que o esporeava, os gritos de algumas patrulhas que o perseguiam e a assuada de alguns transeuntes que, apesar da hora matinal, iam à sua vida, só contribuíram para que corresse ainda mais.
Atravessou o pátio, subiu os dois andares de Athos e bateu à porta estrepitosamente.
Grimaud veio abrir, com os olhos inchados de sono. D'Artagnan precipitou‑se com tanta força na antecâmara que quase o deitou ao chão.
Apesar do mutismo habitual do pobre rapaz, desta vez a palavra acudiu‑lhe aos lábios.
‑ Eh lá, eh lá!... ‑ gritou. ‑ Que queres daqui, galdéria? Que pretendes, rameira?
D'Artagnan tirou a touca e libertou as mãos do mantelete. Ao ver aqueles bigodes e aquela espada nua, o pobre diabo verificou que estava diante de um homem.
Julgou então tratar‑se de algum assassino e desatou a berrar:
‑ Socorro! Quem me acode!
‑ Cala‑te, desgraçado! ‑ ordenou‑lhe o jovem. ‑ Sou d'Artagnan, não me reconheces? Onde está o teu amo?
‑ Vós, o Sr. d'Artagnan?... ‑ duvidou Grimaud, apavorado. ‑ Impossível!
‑ Grimaud ‑ disse Athos, saindo do seu quarto em roupão ‑,
parece‑me que vos permitistes falar.
‑ Ah, senhor, é que... ‑ Silêncio!
Grimaud contentou‑se com indicar d'Artagnan ao amo, com o dedo.
Athos reconheceu o seu camarada e por mais fleumático que fosse soltou uma gargalhada, aliás perfeitamente justificada pela mascarada estranha que tinha diante dos olhos: touca às três pancadas, saias caídas sobre as pantufas, mangas arregaçadas e bigodes eriçados de emoção.
‑ Não riais, meu amigo ‑ pediu d'Artagnan. ‑ Não riais, por Deus, porque juro‑vos pela salvação da minha alma que não há nada para rir.
E pronunciou estas palavras com um ar tão solene e com um pânico tão sincero que Athos pegou‑lhe imediatamente nas mãos e perguntou:
‑ Fostes ferido, meu amigo? Estais tão pálido!
‑ Não, mas acaba de me acontecer uma coisa terrível. Estais só,
Athos?
‑ Por Deus, quem quereis que esteja em minha casa a esta hora?
‑ Está bem, está bem.
E d'Artagnan precipitou‑se para o quarto de Athos.
‑ Eh, falai! ‑ pediu o dono da casa, fechando a porta e correndo o ferrolho para não serem incomodados. ‑ O rei morreu? Matastes o Sr. Cardeal? Estais muito perturbado. Vamos, vamos, falai, pois sinto‑me realmente morrer de inquietação.
‑ Athos ‑ disse d'Artagnan, desembaraçando‑se das suas roupas femininas e aparecendo em camisa ‑, preparai‑vos para ouvir uma história incrível e inaudita.
‑ Vesti primeiro este roupão ‑ disse o mosqueteiro ao amigo.
‑ D'Artagnan vestiu o roupão, mas trocou uma manga por outra, de tal modo estava ainda desorientado.
‑ Então? ‑ incitou‑o Athos.
‑ Então?... ‑ respondeu d'Artagnan, inclinando‑se para o ouvido de Athos e baixando a voz. ‑ Então, Milady está marcada com uma flor‑de‑lis no ombro.
‑ Ah! ‑ gritou o mosqueteiro, como se tivesse recebido uma bala
no coração.
‑ Vejamos, estais seguro de que a outra se encontra bem morta?
‑ A outra? ‑ disse Athos em voz abafada, tão abafada que d'Artagnan mal a ouviu.
‑ Sim, aquela de quem me falastes um dia em Amiens.
Athos soltou um gemido e deixou cair a cabeça nas mãos.
‑ Esta ‑ continuou d'Artagnan ‑ é uma mulher de vinte e seis a vinte e oito anos.
‑ Loura, não é verdade? ‑ disse Athos. ‑Sim.
‑ De olhos azuis‑claros, de uma luminosidade estranha, pestanas e sobrancelhas negras?
‑ Sim.
‑ Alta, bem feita? Falta‑lhe um dente canino no maxilar superior...
‑ Sim.
‑ A flor‑de‑lis é pequena, de cor arroxeada e quase se não vê debaixo das camadas de creme que lhe aplica.
‑ Sim.
‑ Contudo, dizeis que é inglesa!
‑ Tratam‑na por Milady, mas deve ser francesa. Lorde de Winter é apenas seu cunhado.
‑ Quero vê‑la, d'Artagnan.
‑ Cuidado, Athos, cuidado! Quisestes matá‑la e ela é mulher para vos pagar na mesma moeda e não falhar.
‑ Não ousará dizer nada, pois isso equivaleria a denunciar‑se a si mesma.
‑ Ela é capaz de tudo! Nunca a vistes furiosa?
‑ Não ‑ respondeu Athos.
‑ É pior do que um tigre, do que uma pantera! Ah, meu caro Athos, receio muito ter atraído sobre nós dois uma vingança terrível!
D'Artagnan contou então tudo: a cólera insensata de Milady e as suas ameaças de morte.
‑ Tendes razão e, pela salvação da minha alma, trocaria a minha vida por um cabelo ‑ declarou Athos. ‑ Felizmente, deixamos Paris depois de amanhã. Seguimos, segundo todas as probabilidades, para La Rochelle, e depois de partirmos...
‑ Seguir‑vos‑á até ao fim do mundo, Athos, se vos reconhecer. Deixai portanto o seu ódio exercer‑se apenas sobre mim.
‑ Que me importa que ela me mate, meu caro? ‑ redarguiu Athos. ‑ Acaso julgais que estou agarrado à vida?
‑ Há qualquer horrível mistério em tudo isto, Athos! Aquela mulher é espia do cardeal, tenho a certeza!
‑ Nesse caso, acautelai‑vos. Se o cardeal não nutre por vós grande admiração depois do caso de Londres, em contrapartida deve ter‑vos um ódio de morte; mas como no fim de contas não vos pode censurar nada ostensivamente, o remédio para satisfazer o seu ódio, e convém não esquecer que se trata do ódio de um cardeal, é recorrer a meios escusos. Portanto, acautelai‑vos! Se sairdes, não deveis sair sozinho;
quando comerdes, tomai as vossas precauções... Desconfiai de tudo, enfim, mesmo da vossa sombra.
‑ Felizmente ‑ observou d'Artagnan ‑, trata‑se de escapar sem contratempos apenas até depois de amanhã à noite, porque uma vez no Exército só teremos, assim espero, homens a temer.
‑ Entretanto ‑ declarou Athos ‑, renuncio à minha reclusão e vou acompanhar‑vos por toda a parte. Tendes de regressar à Rua dos Fossoyeurs; vou convosco.
‑ O pior é que por muito perto que a minha casa fique daqui não posso regressar neste estado ‑ lembrou d'Artagnan.
‑ É verdade ‑ concordou Athos. E tocou à campainha. Grimaud entrou.
Athos fez‑lhe sinal para ir a casa de d'Artagnan buscar‑lhe roupas. Grimaud respondeu por outro sinal que compreendia perfeitamente
e saiu.
‑ O pior é que nada disto contribui para resolvermos o problema do equipamento, antes pelo contrário, meu caro amigo ‑ observou Athos. ‑ Porque se não me engano deixastes tudo o que tínheis em casa de Milady, que sem dúvida não terá a atenção de vos devolver o vosso espólio. Felizmente, tendes a safira.
‑ A safira pertence‑vos, meu caro Athos! Não me dissestes que era um anel de família?
‑ Sim, o meu pai comprou‑o por dois mil escudos, segundo me disse uma vez; fazia parte das prendas de noivado que deu a minha mãe; é um anel magnífico. A minha mãe deu‑mo e eu, louco, em vez de o guardar como uma relíquia sagrada, dei‑o por minha vez a essa miserável.
‑ Então, meu caro, recuperai o anel, que em meu entender só a vós pertence.
‑ Eu recuperar o anel que já passou pelas mãos dessa infame? Nunca! Esse anel está emporcalhado, d'Artagnan.
‑ Nesse caso, vendei‑o.
‑ Vender uma jóia que foi da minha mãe? Confesso‑vos que consideraria isso uma profanação.
‑ Então empenhai‑a; com certeza que vos emprestarão muito mais do que um milhar de escudos. Com esse dinheiro resolvereis os vossos problemas, e depois, com o primeiro numerário que obtiverdes, desempenhá‑la‑eis expurgada das suas antigas máculas, visto ter passado pelas mãos dos usurários.
Athos sorriu.
‑ Sois um excelente companheiro, meu caro d'Artagnan; animais com a vossa eterna boa disposição os pobres espíritos aflitos. Seja, empenharemos o anel, mas com uma condição!
‑ Qual?
‑ Serão quinhentos escudos para vós e quinhentos escudos para mim.
‑ Que dizeis, Athos? Só preciso de um quarto dessa importância, visto ser das Guardas, e vendendo a minha sela arranjá‑la‑ei. Que mais preciso? Um cavalo para Planchet, apenas. Além disso, esqueceis‑vos de que também tenho um anel.
‑ A que tendes ainda mais apego, parece‑me, do que tenho ao meu; pelo menos foi o que julguei notar.
‑ Sim, porque numa circunstância extrema nos pode tirar não só de qualquer grande apuro, mas também de algum grande perigo; trata‑se não apenas de um diamante precioso, mas igualmente de um talismã encantado.
‑ Não vos compreendo, mas acredito no que me dizeis. Voltemos porém ao meu anel, ou antes, ao vosso; ficareis com metade da importância que nos derem sobre ele ou lançá‑lo‑ei ao Sena, e duvido que como a Policrates haja algum peixe tão complacente que no‑lo restitua.
‑ Pronto, aceito! ‑ declarou d'Artagnan.
Neste momento, Grimaud entrou, acompanhado de Planchet. Este, inquieto a respeito do amo e curioso de saber o que lhe acontecera, aproveitara a oportunidade e trazia ele próprio as roupas.
D'Artagnan vestiu‑se e Athos fez outro tanto; depois, quando ambos estiveram prontos para sair, Athos fez a Grimaud o sinal de um homem que leva uma espingarda à cara. Grimaud despendurou imediatamente o seu mosquetão e aprestou‑se para acompanhar o amo.
Athos e d'Artagnan, seguidos dos seus criados, chegaram sem incidente à Rua dos Fossoyeurs. Bonacieux estava à porta e olhou d'Artagnan com ar trocista.
‑ Eh, meu inquilino, apressai‑vos! ‑ exclamou. ‑ Tendes uma linda rapariga à vossa espera em casa, e as mulheres, como sabeis, não gostam que as façam esperar!
‑ É Ketty! ‑ exclamou d'Artagnan. E correu para o passadiço.
Efectivamente, no patamar que levava ao seu quarto e encostada à porta, encontrou a pobre criança toda trémula, a qual, assim que o viu começou a dizer:
‑ Prometestes‑me a vossa protecção; prometestes‑me livrar‑me da sua cólera; lembrai‑vos de que fostes vós que me perdestes!
‑ Sim, sem dúvida ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Tranquilizai‑vos, Ketty. ‑ Mas que aconteceu depois da minha partida?
‑ Não sei ‑ respondeu Ketty. ‑ Os criados acorreram aos seus gritos; ela estava louca de cólera. Tudo o que existe de imprecações bolçou contra vós. Pensei então que se recordaria de que fora pelo meu quarto que tínheis entrado no dela e me consideraria vossa cúmplice. Peguei no pouco dinheiro que tinha, nas minhas coisas mais preciosas e fugi.
‑ Pobre criança! Mas que hei‑de fazer de ti? Parto depois de amanhã...
‑ Tudo o que quiserdes, Sr. Cavaleiro; fazei‑me sair de Paris, tirai‑me de França.
‑ Não te posso levar comigo para o cerco de La Rochelle ‑ disse d'Artagnan.
‑ Pois não, mas podeis colocar‑me na província, em casa de alguma dama vossa conhecida; na vossa terra, por exemplo.
‑ Ah!, minha querida amiga, na minha terra as damas não têm criadas de quarto! Mas espera, tenho uma ideia. Planchet, vai‑me buscar Aramis; que venha imediatamente. Temos uma coisa importantíssima para lhe dizer.
‑ Compreendo ‑ disse Athos. ‑ Mas por que não Porthos? Parece‑me que a sua marquesa...
‑ A marquesa de Porthos faz‑se vestir pelos amanuenses do marido ‑ redarguiu d'Artagnan, rindo. ‑ Aliás, Ketty não gostaria de morar na Rua dos Ursos, não é verdade, Ketty?
‑ Morarei onde quiserem ‑ respondeu Ketty ‑, desde que esteja bem escondida e ninguém saiba onde estou.
‑ Agora que nos vamos separar, Ketty, e portanto já não tens ciúmes de mim...
‑ Sr. Cavaleiro, de longe ou de perto, amar‑vos‑ei sempre ‑ atalhou Ketty.
‑ Onde diabo se havia de ir aninhar a constância... ‑ murmurou Athos.
‑ Também eu ‑ apressou‑se a dizer d'Artagnan ‑, também eu te amarei sempre, podes estar certa. Mas vejamos, responde‑me. Agora atribuo grande importância à pergunta que te vou fazer: nunca ouvistes falar de uma jovem dama raptada certa noite?
‑ Esperai... Oh, meu Deus, Sr. Cavaleiro, também amais essa mulher?!
‑ Não, quem a ama é um dos meus amigos. Olha, é Athos, aqui presente.
‑ Eu?! ‑ exclamou Athos, no tom de voz de um homem que descobre ter pisado uma cobra.
‑ Evidentemente! ‑ redarguiu d'Artagnan, apertando a mão de Athos. ‑ Bem sabeis o interesse que nos merece a todos a pobre Sr.a Bonacieux. De resto, Ketty não dirá nada; não é verdade, Ketty? Compreendes, minha filha ‑ continuou d'Artagnan ‑, é a mulher do horrível macaco que viste lá em baixo à entrada.
‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Ketty. ‑ Lembrais‑me o meu medo; oxalá me não tenha reconhecido!
‑ Reconhecer‑te como? Já tinhas visto aquele homem?
‑ Foi duas vezes a casa de Milady.
‑ É isso... Mais ou menos quando?
‑ Há quinze ou dezoito dias, pouco mais ou menos.
‑ Exactamente...
‑ E ontem à noite voltou.
‑ Ontem à noite?...
‑ Sim, pouco antes de vós próprio chegardes.
‑ Meu caro Athos, estamos cercados por uma rede de espiões! E achas que ele te reconheceu, Ketty?
‑ Baixei a touca, ao vê‑lo, mas talvez demasiado tarde.
‑ Descei, Athos, pois ele desconfia menos de vós do que de mim, e vede se continua à porta.
Athos desceu e tornou a subir pouco depois.
‑ Foi‑se embora e a casa está fechada ‑ informou.
‑ Foi fazer o seu relatório e dizer que os pombos estão neste momento todos no pombal.
‑ Nesse caso, levantemos voo e deixemos aqui apenas Planchet, para nos transmitir as notícias ‑ sugeriu Athos.
‑ Um momento! E Aramis, que mandámos buscar?
‑ É verdade ‑ reconheceu Athos. ‑ Esperemos por Aramis. Neste momento, Aramis entrou.
Expuseram‑lhe o caso e disseram‑lhe como era urgente que entre todos os seus altos conhecimentos arranjasse um lugar para Ketty. Aramis reflectiu um instante e perguntou corando:
‑ Será realmente um grande favor para vós, D'Artagnan?
‑ Tão grande que vos ficarei reconhecido toda a minha vida.
‑ Bom, a Sr.a de Bois‑Tracy pediu‑me, creio que para uma das suas amigas que reside na província, uma criada de quarto de confiança. Se podeis, meu caro d'Artagnan, responder‑me por esta menina...
‑ Oh, senhor ‑ interveio Ketty ‑, serei completamente dedicada, podeis estar certo, à pessoa que me proporcione os meios de deixar Paris!
‑ Então, está tudo resolvido ‑ disse Aramis.
Sentou‑se a uma mesa e escreveu um bilhetinho, que lacrou com um anel, e deu o bilhete a Ketty.
‑ Agora, minha filha ‑ disse d'Artagnan ‑, bem sabes que nem para nós nem para ti convém permanecermos aqui. Portanto, separemo‑nos. Encontrar‑nos‑emos de novo em melhores dias.
‑ Mas seja qual for o tempo que não nos vejamos e seja qual for o lugar onde esteja ‑ disse Ketty ‑, encontrar‑me‑eis amando‑vos tanto como vos amo hoje.
‑ Juramento de jogador ‑ comentou Athos, enquanto d'Artagnan acompanhava Ketty à escada.
Pouco depois os três jovens separaram‑se, depois de combinarem encontrar‑se às quatro horas em casa de Athos, e deixaram Planchet de guarda à casa.
Aramis regressou a sua casa e Athos e d'Artagnan foram tratar de empenhar a safira.
Como previra o nosso gascão, obtiveram facilmente trezentas pistolas pelo anel. Além disso, o judeu declarou que se lho quisessem vender, como emparceirava maravilhosamente com uns brincos, daria até quinhentas pistolas.
Com a actividade de dois soldados e a ciência de dois peritos, Athos
e d'Artagnan gastaram apenas três horas a comprar todo o equipamento do mosqueteiro. Aliás, Athos era condescendente e grande senhor até à ponta das unhas. Quando uma coisa lhe agradava pagava o preço pedido sem sequer tentar obter um desconto. D'Artagnan bem desejaria fazer a tal respeito algumas observações, mas Athos punha‑lhe a mão no ombro sorrindo e d'Artagnan compreendia que estava bem para si, pequeno fidalgo gascão, regatear, mas não para um homem que tinha ares de príncipe.
O mosqueteiro arranjou um soberbo cavalo andaluz, negro como o azeviche, de narinas de fogo e pernas finas e elegantes, dos seus seis anos. Examinou‑o e não lhe encontrou nenhum defeito. Pediram‑lhe por ele mil libras.
Talvez lho vendessem por menos; mas enquanto d'Artagnan discutia o preço com o alquilador, Athos contava as cem pistolas na mesa.
Grimaud teve um cavalo picardo, atarracado e forte, que custou trezentas libras.
Mas depois de comprar a sela para o cavalo do criado e as armas para Grimaud, Athos verificou que não lhe restava um soldo das suas cento e cinquenta pistolas. D'Artagnan ofereceu ao amigo parte do quinhão que lhe coubera, dizendo‑lhe que mais tarde lhe pagaria o que lhe emprestasse. Mas Athos, como única resposta, limitou‑se a encolher os ombros.
‑ Quanto dava o judeu pela safira para ficar com ela definitivamente? ‑ perguntou.
‑ Quinhentas pistolas.
‑ Quer dizer, mais duzentas pistolas; cem pistolas para vós, cem pistolas para mim. Mas é uma autêntica fortuna, meu amigo! Voltemos a casa do judeu.
‑ Como, quereis...
‑ Decididamente, aquele anel trar‑me‑á à memória recordações demasiado tristes; depois, nunca teremos trezentas pistolas para o resgatar, de modo que perderíamos duas mil libras no negócio. Ide dizer‑lhe que o anel é dele, d'Artagnan, e voltai com as duzentas pistolas.
‑ Reflecti, Athos.
‑ O dinheiro à vista está caro nos tempos que correm e é preciso saber fazer sacrifícios. Ide, d'Artagnan, ide; Grimaud acompanhar‑vos‑á com o seu mosquetão.
Cerca de meia hora depois, d'Artagnan regressou com as duas mil libras e sem que lhe tivesse acontecido nenhum acidente.
E foi assim que Athos se encontrou de posse de recursos com que não contava.
UMA VISÃO
Às quatro horas os quatro amigos estavam reunidos em casa de Athos. As suas preocupações acerca do equipamento tinham desaparecido por completo e cada rosto conservava apenas a expressão das suas próprias e íntimas inquietações; porque por detrás de toda a ventura presente esconde‑se um temor futuro.
De súbito, Planchet entrou com duas cartas dirigidas a d'Artagnan.
Uma era um bilhetinho delicadamente dobrado ao comprido, com um bonito selo de cera verde representando uma pomba com um ramo de oliveira no bico.
A outra era uma grande carta quadrada, onde brilhavam as armas terríveis de Sua Eminência o cardeal‑duque.
Perante a cartinha, o coração de d'Artagnan deu um pulo, pois o jovem reconhecera a letra de quem a escrevera; e embora só tivesse visto aquela letra uma vez, fixara‑lhe o talhe no mais profundo do seu coração.
Pegou pois na carta e abriu‑a vivamente. Dizia:
Passeai na próxima quarta‑feira, das seis às sete horas da tarde, na estrada de Chaillot, e observai com atenção as carruagens que passarem, mas se prezais a vossa vida e a das pessoas que vos amam não digais uma palavra nem façais um gesto que possa revelar que reconhecestes a que se expõe a tudo para vos ver um instante.
Nenhuma assinatura.
‑ É uma cilada ‑ disse Athos. ‑ Não vades, d'Artagnan.
‑ No entanto, estou certo de reconhecer a letra ‑ observou d'Artagnan.
‑ Talvez seja falsa ‑ redarguiu Athos. ‑ Às seis ou sete horas, neste tempo, a estrada de Chaillot está completamente deserta; seria o mesmo que irdes passear na floresta de Bondy.
‑ E se fôssemos todos? ‑ sugeriu d'Artagnan. ‑ Que diabo, com certeza não devorarão os quatro! Mais quatro lacaios, mais os cavalos, mais as armas...
‑ Além disso, seria uma oportunidade de mostrarmos os nossos equipamentos ‑ adiantou Porthos.
‑ Mas se é uma mulher que escreve e essa mulher não deseja ser vista, lembrai‑vos que a comprometeis, d'Artagnan, o que não fica bem a um gentil‑homem ‑ observou Aramis.
‑ Nós ficaremos para trás e só ele avançará ‑ sugeriu Porthos.
‑ Pois sim, mas um tiro de pistola é fácil de disparar de uma carruagem a galope.
‑ Ora, não me acertarão! ‑ contrapôs d'Artagnan. ‑ E se isso acontecer apanharemos a carruagem e exterminaremos quem lá for dentro. Serão uns inimigos a menos.
‑ Ele tem razão ‑ disse Porthos. ‑ Lutar! De resto, precisamos de experimentar as nossas armas.
‑ Pronto, proporcionemo‑nos esse prazer! ‑ exclamou Aramis, com o seu ar suave e descontraído.
‑ Como quiserdes ‑ declarou Athos.
‑ Meus senhores ‑ disse d'Artagnan ‑, são quatro e meia e temos apenas o tempo necessário para estarmos às seis horas na estrada de Chaillot.
‑ Além disso, se sairmos demasiado tarde, ninguém nos verá, o que seria uma pena ‑ lembrou Porthos. ‑ Preparemo‑nos portanto, meus senhores.
‑ Esqueceis‑vos da segunda carta ‑ observou Athos. ‑ No entanto, a julgar pelo selo, parece‑me que merece bem ser aberta... Por mim declaro‑vos. meu caro d'Artagnan, que me preocupa muito mais do que o bilhetinho que acabais de guardar suavemente junto do coração...
D'Artagnan corou:
‑ Bom, meus senhores ‑ disse depois ‑, vejamos o que me quer
Sua Eminência!
E d'Artagnan abriu a carta e leu:
O Sr. d'Artagnan, guarda do rei, companhia de Essarts, é esperado no Palais‑Cardinal esta noite às oito horas.
La Houdinière, Capitão dos Guardas.
‑ Diabo! ‑ exclamou Athos. ‑ Aqui está uma entrevista muito mais inquietante do que a outra.
‑ Irei à segunda no regresso da primeira ‑ disse d'Artagnan. ‑ Uma é às sete horas, a outra às oito; haverá tempo para tudo.
‑ Hum!... Eu não iria ‑ declarou Aramis. ‑ Um cavaleiro cortês não pode faltar a um encontro marcado por uma dama; mas um gentil‑homem prudente pode dispensar‑se de ir a casa de Sua Eminência, sobretudo quando tem motivos para crer que não é para o cumprimentarem.
‑ Sou da opinião de Aramis ‑ disse Porthos.
‑ Meus senhores ‑ interveio d'Artagnan ‑, já uma vez, por intermédio do Sr. de Cavois, recebi um convite idêntico de Sua Eminência, não lhe liguei importância e no dia seguinte aconteceu‑me uma grande desgraça: Constance desapareceu. Seja o que for que me possa acontecer, irei.
‑ Se estais decidido, ide ‑ disse Athos.
‑ E a Bastilha? ‑ lembrou Aramis.
‑ Ora, tirar‑me‑eis de lá! ‑ volveu‑lhe d'Artagnan.
‑ Sem dúvida! ‑ redarguiram Aramis e Porthos, com uma descontracção admirável e como se fosse a coisa mais simples deste mundo. ‑ Sem dúvida que vos tiraremos. Mas entretanto, como devemos partir depois de amanhã, faríeis melhor não vos arriscando a ir lá parar.
‑ Façamos outra coisa ‑ sugeriu Athos. ‑ Não o deixemos esta noite, esperemo‑lo cada um a uma porta do palácio com três mosqueteiros atrás de nós e se virmos sair qualquer carruagem fechada e meio suspeita cair‑lhe‑emos em cima. Há muito tempo que não ajustamos contas com os guardas do Sr. Cardeal e o Sr. de Tréville deve julgar‑nos mortos.
‑ Decididamente, Athos, nascestes para ser general de exército ‑ declarou Aramis. ‑ Que dizeis do plano, senhores?
‑ Admirável! ‑ exclamaram em coro.
‑ Bom ‑ disse Porthos ‑, eu corro ao quartel e previno os nossos camaradas para estarem prontos às oito horas. O encontro será na Praça do Palais‑Cardinal. Entretanto, mandai os criados selar os cavalos.
‑ Mas eu não tenho cavalo ‑ disse d'Artagnan. ‑ Não faz mal, mando buscar um ao palácio do Sr. de Tréville.
‑ É inútil, montareis um dos meus ‑ contrapôs Aramis.
‑ Quantos tendes? ‑ perguntou d'Artagnan.
‑ Três ‑ respondeu Aramis, sorrindo.
‑ Meu caro sois sem dúvida o poeta melhor montado de França e Na varra! ‑ exclamou Athos.
‑ Escutai, meu caro Aramis, com certeza não sabeis que fazer de três cavalos, não é verdade? Nem sequer compreendo para que comprastes três cavalos...
‑ A verdade é que só comprei dois ‑ respondeu Aramis.
‑ E o terceiro caiu‑vos do céu?
‑ Não, o terceiro foi‑me trazido esta manhã por um criado sem libré que não quis dizer‑me a quem pertencia e que me afirmou ter recebido a ordem do seu amo...
‑ Ou da sua ama ‑ interrompeu d'Artagnan.
‑ Isso não vem para o caso ‑ observou Aramis, corando. ‑ E que me afirmou, dizia eu, ter recebido ordem da sua ama, que o encarregou de meter o cavalo na minha cavalariça sem me dizer da parte de quem vinha.
‑ Só aos poetas é que essas coisas acontecem ‑ comentou gravemente Athos.
‑ Bom, nesse caso, façamos melhor ‑ disse d'Artagnan. ‑ Qual dos dois cavalos montareis: o que comprastes ou o que vos deram?
‑ O que me deram, indubitavelmente. Compreendeis, d'Artagnan, que não posso fazer essa injúria...
‑ Ao ofertante desconhecido ‑ concluiu d'Artagnan.
‑ Ou à ofertante misteriosa ‑ acrescentou Athos.
‑ O que comprastes tornou‑se‑vos portanto inútil?
‑ Mais ou menos.
‑ Escolheste‑o vós próprio?
‑ E com o maior cuidado. A segurança do cavaleiro depende, como sabeis, quase sempre do seu cavalo.
‑ Então, cedei‑mo pelo preço que vos custou.
‑ Ia oferecer‑vo‑lo, meu caro d'Artagnan, dando‑vos todo o tempo que vos fosse necessário para me pagardes essa ninharia.
‑ Quanto vos custou?
‑ Oitocentas libras.
‑ Aqui estão quarenta pistolas duplas, meu caro amigo ‑ disse d'Artagnan, tirando o dinheiro da algibeira. ‑ Sei que é a moeda em que vos pagam os vossos poemas...
‑ Pelos vistos não vos falta dinheiro... ‑ observou Aramis.
‑ Estou rico, riquíssimo, meu caro!
E d'Artagnan fez soar na algibeira o resto das suas pistolas.
‑ Mandai a vossa sela para o quartel dos mosqueteiros e virão trazer‑vos o vosso cavalo aqui, juntamente com os nossos.
‑ Muito bem. Mas são quase cinco horas; despachemo‑nos.
Um quarto de hora depois, Porthos apareceu ao fundo da Rua Férou montado num ginete magnífico; Mousqueton seguia‑o num cavalo da Auvérnia, pequeno, mas sólido. Porthos resplandecia de satisfação e orgulho.
Ao mesmo tempo, Aramis apareceu na outra extremidade da rua montado num soberbo corcel inglês; Bazin seguia‑o num cavalo ruço, trazendo pela rédea um vigoroso macklemburguês: era a montada de d'Artagnan.
Os dois mosqueteiros encontraram‑se à porta; Athos e d'Artagnan observavam‑nos da janela.
‑ Demónio, tendes aí um soberbo cavalo, meu caro Porthos! ‑ disse Aramis.
‑ Pois tenho ‑ respondeu Porthos. ‑ Era o que me deviam ter enviado primeiro se uma brincadeira de mau gosto do marido da minha dama o não tivesse substituído por outro; mas o marido foi castigado e eu obtive todas as satisfações.
Planchet e Grimaud apareceram então por seu turno, trazendo pela mão as montadas dos seus amos. D'Artagnan e Athos desceram, montaram juntamente com os seus companheiros e todos quatro se puseram a caminho: Athos no cavalo que devia à mulher, Aramis no cavalo que devia à amante, Porthos no cavalo que devia à procuradora e d'Artagnan no cavalo que devia à sua boa fortuna, a melhor amante que se pode desejar.
Os criados seguiam‑nos.
Como previra Porthos, a cavalgada produziu bom efeito; e se a Sr.a Coquenard se encontrasse no caminho de Porthos e pudesse ver que grande ar ele tinha montado no seu belo ginete espanhol, não lamentaria a sangria que fizera ao cofre‑forte do marido.
Perto do Louvre, os quatro amigos encontraram o Sr. de Tréville que regressava de Saint‑Germain e os deteve para os cumprimentar pelo seu equipamento, o que num instante reuniu à sua volta algumas centenas de basbaques.
D'Artagnan aproveitou a oportunidade para falar ao Sr. de Tréville da carta com o grande selo vermelho e as armas ducais; claro está que a respeito da outra não disse nada.
O Sr. de Tréville aprovou a resolução que ele tomara e garantiu‑lhe que se no dia seguinte não tivesse reaparecido, ele, Tréville, se encarregaria de o encontrar, onde quer que estivesse.
Neste momento o relógio da Samaritana deu seis horas; os quatro amigos desculparam‑se com um encontro e despediram‑se do Sr. de Tréville.
Um tempo de galope levou‑os à estrada de Chaillot; o dia começava a declinar, as carruagens passavam e repassavam; d'Artagnan, guardado a poucos passos de distância pelos amigos, mergulhava os olhos até ao fundo das carruagens e não via nenhuma cara conhecida.
Por fim, depois de um quarto de hora de espera e de o crepúsculo cair por completo, surgiu uma carruagem vinda a todo o galope pela estrada de Sèvres. Um pressentimento disse antecipadamente a d'Artagnan que vinha naquela carruagem a pessoa que lhe marcara o encontro, e ele próprio se admirou muito de sentir o coração bater tão violentamente. Quase no mesmo instante uma cabeça de mulher destacou‑se da portinhola, com dois dedos na boca, como que para recomendar silêncio ou enviar um beijo; d'Artagnan soltou um gritinho de alegria: aquela mulher, ou antes, aquela aparição, porque a carruagem passara com a rapidez de uma visão, era a Sr.a Bonacieux.
Num gesto involuntário, e apesar da recomendação feita, d'Artagnan lançou o cavalo a galope e em pouco tempo apanhou a carruagem; mas o vidro da portinhola estava hermeticamente fechado: a visão desaparecera.
D'Artagnan recordou‑se então desta recomendação: «Se prezais a vossa vida e a das pessoas que vos amam, permanecei imóvel e como se não tivésseis visto nada.»
Deteve‑se, pois, tremendo não por si, mas sim pela pobre mulher, que evidentemente se expusera a um grande perigo marcando‑lhe aquele encontro.
A carruagem continuou o seu caminho sempre em grande velocidade, entrou em Paris e desapareceu.
D'Artagnan ficara interdito no mesmo lugar e sem saber que pensar. Se era a Sr.a Bonacieux e se ela regressava a Paris, porquê aquele encontro fugaz, porquê aquela simples troca de um olhar, porquê aquele beijo isolado? Por outro lado, se não era ela, o que também era muito possível, porque a pouca luz que restava tornava o erro fácil; se não era ela, não seria o começo de um golpe de mão montado contra ele com o engodo da mulher pela qual se conhecia o seu amor?
Os três companheiros aproximaram‑se dele. Todos tinham visto perfeitamente uma cabeça de mulher aparecer à portinhola, mas nenhum deles, excepto Athos, conhecia a Sr.a Bonacieux. Na opinião de Athos, era de facto ela, mas menos preocupado do que d'Artagnan com o bonito rosto feminino, Athos julgara ver segunda cabeça, uma cabeça de homem, no fundo da viatura.
‑ Sendo assim ‑ disse d'Artagnan ‑, transportam‑na sem dúvida de uma prisão para outra. Mas que pretenderão da pobre criatura e quando a tornarei a ver?
‑ Amigo ‑ disse gravemente Athos ‑, lembrai‑vos de que os mortos são os únicos que não estamos expostos a encontrar na terra. Sabeis qualquer coisa parecida a meu respeito, não é verdade? Ora, se a vossa amante não está morta, se foi ela que acabámos de ver, encontrá‑la‑eis mais dia menos dia. E talvez, meu Deus ‑ acrescentou no tom misantrópico que lhe era próprio ‑, talvez mais cedo do que desejais?
Deram sete e meia; a carruagem viera atrasada cerca de vinte minutos em relação à hora marcada. Os amigos de d'Artagnan recordaram‑lhe que tinha de fazer uma visita, embora lhe observassem que estava ainda a tempo de desistir.
Mas d'Artagnan era ao mesmo tempo obstinado e curioso. Metera na cabeça que iria ao Palais‑Cardinal e saberia o que queria dele Sua Eminência. Nada seria capaz de o fazer mudar de resolução.
Chegaram à Rua de Saint‑Honoré e à Praça do Palais‑Cardinal, onde encontraram os doze mosqueteiros convocados, que passeavam de um lado para o outro à espera dos seis camaradas. Só então lhes explicaram de que se tratava.
D'Artagnan era conhecidissimo no respeitável corpo de mosqueteiros do rei, onde se sabia que entraria um dia; consideravam‑no portanto já como um camarada. Por tudo isto, todos aceitaram da melhor vontade a missão para que os convidaram; tratava‑se, de resto, segundo todas as probabilidades, de pregar uma partida ao Sr. Cardeal e à sua gente, e para tais expedições os dignos gentis‑homens estavam sempre prontos.
Athos dividiu‑os em três grupos, tomou o comando de um, deu o segundo a Aramis e o terceiro a Porthos, e depois cada grupo foi‑se emboscar defronte de uma saída.
Pela sua parte, d'Artagnan entrou resolutamente pela porta principal.
Embora se sentisse bem apoiado, o jovem não subiu sem grande inquietação a grande escadaria. O seu comportamento com Milady assemelhava‑se de certo modo a uma traição e d'Artagnan suspeitava das relações políticas existentes entre aquela mulher e o cardeal; além disso, Wardes, que tão mal colocara, era um dos fiéis de Sua Eminência, e d'Artagnan sabia que se Sua Eminência era terrível com os seus inimigos também era muito dedicado aos seus amigos.
«Se Wardes contou tudo o que se passou entre nós e o cardeal, o que é quase certo, e me reconheceu, o que é provável, posso considerar‑me um homem condenado», dizia d'Artagnan para consigo, abanando a cabeça. «Mas porque esperou ele até hoje? É muito simples: Milady deve ter‑se queixado de mim, com aquela hipócrita dor que a torna tão interessante, e o meu último crime terá feito transbordar a taça... Felizmente», acrescentou, «os meus bons amigos estão lá em baixo e não me deixarão levar sem me defender. No entanto, a companhia de mosqueteiros do Sr. de Tréville não pode fazer sozinha a guerra ao cardeal, que dispõe das forças de toda a França e perante o qual a rainha não tem poder e o rei não tem vontade. D'Artagnan, meu amigo, és valente, possuis excelentes qualidades, mas as mulheres perder‑te‑ão!»
Chegara a esta triste conclusão quando entrou na antecâmara. Entregou a sua carta ao porteiro de serviço, que o mandou entrar para a sala de espera e penetrou no interior do palácio.
Na sala de espera estavam cinco ou seis guardas do Sr. Cardeal que reconheceram d'Artagnan, e sabendo que fora ele quem ferira Jussac o olharam sorrindo de modo singular.
Tal sorriso pareceu a d'Artagnan de mau agoiro; mas como o nosso gascão não era fácil de intimidar, ou antes, como graças a um grande orgulho natural nas pessoas da sua terra não deixava ver facilmente o que lhe ia na alma, quando o que lá ia se assemelhava ao medo, colocou‑se orgulhosamente diante dos guardas e esperou com a mão na anca, numa atitude a que não faltava majestade.
O porteiro regressou e fez sinal a d'Artagnan para o seguir. Pareceu ao jovem que os guardas cochichavam uns com os outros ao verem‑no afastar‑se.
Seguiu por um corredor, atravessou um grande salão, entrou numa biblioteca e encontrou‑se diante de um homem sentado a uma secretária a escrever.
O porteiro introduziu‑o e retirou‑se sem dizer palavra. D'Artagnan julgou ao princípio estar perante algum juiz que examinasse o seu processo, mas verificou que o homem da secretária escrevia, ou antes, corrigia linhas de comprimento desigual, medindo as palavras pelos dedos, e concluiu que estava na presença de um poeta. Ao cabo de um instante o poeta fechou o seu manuscrito, na capa do qual estava escrito: «MIRAME, tragédia em cinco actos», e levantou a cabeça.
D'Artagnan reconheceu o cardeal.
O CARDEAL
O cardeal apoiou o cotovelo no manuscrito, a face na mão e olhou um instante o jovem. Ninguém possuía olhar mais perscrutador do que o cardeal de Richelieu, e d'Artagnan sentiu esse olhar percorrer‑lhe as veias como uma febre.
No entanto, permaneceu impávido, de chapéu na mão, à espera das ordens de Sua Eminência, sem demasiado orgulho, mas também sem excessiva humildade.
‑ Senhor, sois um dos d'Artagnans do Béarn? ‑ perguntou‑lhe o cardeal.
‑ Sou, sim, Monsenhor ‑ respondeu o jovem.
‑ Há vários ramos de d'Artagnans, em Tarbes e nos arredores ‑ disse o cardeal. ‑ A qual pertenceis?
‑ Sou filho daquele que fez as guerras de religião com o grande rei Henrique, pai de Sua Graciosa Majestade.
‑ Exacto. Fostes vós que partistes, há cerca de sete ou oito meses, da vossa terra, para vir procurar fortuna na capital?
‑ Fui, sim, Monsenhor.
‑ Viestes por Meung, onde vos aconteceu qualquer coisa, já me não lembro o quê, mas enfim, qualquer coisa...
‑ Monsenhor, eis o que me aconteceu... ‑ começou d'Artagnan.
‑ É inútil, é inútil ‑ atalhou o cardeal, com um sorriso que indicava que conhecia a história tão bem como aquele que lha queria contar. ‑ Vínheis recomendado ao Sr. de Tréville, não é verdade?
‑ Vinha, sim, Monsenhor; mas precisamente nesse malfadado caso de Meung...
‑ A carta perdeu‑se ‑ concluiu Sua Eminência. ‑ Sim, sei isso. Mas o Sr. de Tréville é um hábil fisionomista que conhece os homens à primeira vista e colocou‑vos na companhia do cunhado, o Sr. dos Essarts, deixando‑vos na esperança de que mais dia menos dia passaríeis para os mosqueteiros.
‑ Monsenhor está perfeitamente informado ‑ disse d'Artagnan.
‑ Desde então, aconteceram‑vos muitas coisas: passeastes por detrás do Convento dos Cartuxos num dia em que mais valia terdes ido para outro lado; depois, fizestes com os vossos amigos uma viagem às termas de Forges: eles ficaram pelo caminho, mas vós continuastes a viagem, simplesmente porque tínheis que fazer em Inglaterra...
‑ Monsenhor ‑ atalhou d'Artagnan, muito confuso ‑, eu ia...
‑ À caça, a Windsor ou a outro lado, o que não é da conta de ninguém. Sei isso, porque tenho obrigação de saber tudo. No vosso regresso fostes recebido por uma augusta pessoa, e vejo com prazer que conservastes a recordação que vos deu.
D'Artagnan levou a mão ao diamante que lhe dera a rainha e virou vivamente o engaste para dentro; mas era demasiado tarde.
‑ No dia seguinte a esse, recebestes a visita de Cavois ‑ prosseguiu o cardeal. ‑ Ia pedir‑vos que passásseis pelo palácio; não fizestes essa visita e procedestes mal.
‑ Monsenhor, receava ter incorrido no desagrado de Vossa Eminência.
‑ E porquê, senhor? Por terdes cumprido as ordens dos vossos superiores com mais inteligência e coragem do que qualquer outro não era caso para incorrerdes no meu desagrado, mas sim para serdes felicitado! Quem castigo são as pessoas que não obedecem, e não aqueles que, como vós, obedecem... demasiado bem... E a prova... Recordai‑vos da data em que vos mandei dizer que me visitásseis e procurai na vossa memória o que aconteceu nessa noite...
Fora nessa noite que tinham raptado a Sr.a Bonacieux. D'Artagnan estremeceu, e recordou‑se que meia hora antes a pobre mulher passara perto de si, sem dúvida ainda levada pelo mesmo poder que a fizera desaparecer.
‑ Enfim ‑ continuou o cardeal ‑, como não ouvia falar de vós há algum tempo, quis saber o que fazíeis. Aliás, deveis‑me algum reconhecimento: decerto notastes que fostes poupado em todas as circunstâncias...
D'Artagnan inclinou‑se com respeito.
‑ Isso deveu‑se ‑ continuou o cardeal ‑ não só a um sentimento de equidade natural, mas também a um plano que tracei a vosso respeito.
D'Artagnan estava cada vez mais espantado.
‑ Queria expor‑vos esse plano no dia em que recebestes o meu primeiro convite; mas não viestes... Felizmente, nada se perdeu com o atraso, e hoje ides ouvi‑lo. Sentai‑vos aqui, diante de mim, Sr. d'Artagnan: sois bastante bom gentil‑homem para não ouvir de pé.
E o cardeal indicou com o dedo uma cadeira ao jovem, que estava tão atónito com o que se passava que, para obedecer, esperou segundo sinal do seu interlocutor.
‑ Sois valente, Sr. d'Artagnan ‑ continuou a Eminência ‑, e sois prudente, o que ainda é melhor. Gosto dos homens de cabeça e coração; não vos admireis ‑ disse sorrindo ‑, pois por homens de coração entendo homens de coragem. Mas apesar de muito jovem e de mal terdes entrado na sociedade, já tendes inimigos poderosos que, se não vos acautelardes, vos perderão!
‑ Infelizmente, Monsenhor ‑ respondeu o jovem ‑, consegui‑lo‑ão com facilidade, sem dúvida, porque são fortes e estão bem apoiados ao passo que eu estou sozinho!
‑ Sim, é verdade; mas por mais só que estejais já fizestes muito, e fareis ainda mais, não duvido. Entretanto, creio que tendes necessidade de ser guiado na aventurosa carreira que empreendestes; porque se não me engano viestes a Paris com a ambiciosa ideia de fazer fortuna.
‑ Estou na idade das esperanças loucas, Monsenhor ‑ disse d'Artagnan.
‑ Só os tolos têm esperanças loucas, senhor, e vós sois um homem inteligente. Vejamos, que diríeis a uma bandeira nas minhas guardas e a uma companhia depois da campanha?
‑ Ah, Monsenhor!...
‑ Aceitais, não é verdade?
‑ Monsenhor... ‑ murmurou d'Artagnan, com ar embaraçado.
‑ Como, recusais?! ‑ exclamou o cardeal, atónito.
‑ Estou nas guardas de Sua Majestade, Monsenhor, e não tenho motivo para estar descontente.
‑ Mas parece‑me ‑ observou a Eminência ‑ que os meus guardas também são guardas de Sua Majestade, e que desde que se sirva num corpo francês, serve‑se o rei.
‑ Monsenhor, Vossa Eminência compreendeu mal as minhas palavras.
‑ Quereis um pretexto, não é? Compreendo. Pois esse pretexto já o tendes. A promoção, a campanha que vai começar, a oportunidade que vos ofereço, são um bom pretexto para os outros; para vós, a necessidade de protecções seguras. Porque é bom que saibais, Sr. d'Artagnan, que tenho recebido queixas graves contra vós e consta‑me que não dedicais exclusivamente os vossos dias e as vossas noites ao serviço do rei.
D'Artagnan corou.
‑ De resto ‑ continuou o cardeal, pousando a mão num maço de papéis ‑, tenho aqui um processo completo a vosso respeito; mas antes de o ler quis conversar convosco. Sei que sois um homem decidido e que os vossos serviços, bem orientados, em vez de vos levarem por mau caminho, poderiam render‑vos muito. Vamos, reflecti e decidide‑vos.
‑ A vossa bondade confunde‑me, Monsenhor ‑ respondeu d'Artagnan ‑, e reconheço em Vossa Eminência uma grandeza de alma que me torna pequeno como um verme da terra; mas enfim, uma vez que Monsenhor me permite falar francamente...
D'Artagnan deteve‑se.
‑ Sim, falai.
‑ Bom... direi a Vossa Eminência que todos os meus amigos estão nos mosqueteiros e nas guardas do rei, e que todos os meus inimigos, por uma fatalidade inconcebível, estão com Vossa Eminência; seria portanto mal recebido aqui e mal visto pelos meus amigos se aceitasse o que Monsenhor me oferece.
‑ Tereis já a orgulhosa ideia de que não vos ofereço o que valeis, senhor? ‑ perguntou o cardeal, com um sorriso desdenhoso.
‑ Monsenhor, Vossa Eminência é cem vezes demasiado bom para mim, e pelo contrário, penso não ter ainda feito o bastante para ser digno das suas bondades. O cerco de La Rochelle vai começar, Monsenhor; servirei sob as vistas de Vossa Eminência, e se tiver a sorte de me comportar de forma a merecer a vossa atenção... Pois bem, depois terei pelo menos por mim alguma acção brilhante que justifique a protecção com que vos digneis honrar‑me. Todas as coisas devem ser feitas a seu tempo. Monsenhor, talvez mais tarde tenha o direito de me dar, ao passo que neste momento pareceria vender‑me.
‑ Quer dizer que recusais servir‑me, senhor ‑ disse o cardeal, num tom de despeito em que transparecia no entanto uma espécie de estima. ‑ Permanecei portanto livre e conservai os vossos ódios e as vossas simpatias.
‑ Monsenhor...
‑ Bem, bem, não vos quero mal ‑ atalhou o cardeal. ‑ Mas como compreendeis devemos defender os nossos amigos e recompensá‑los, e não dever nada aos nossos inimigos. Mesmo assim, dou‑vos um conselho: acautelai‑vos, Sr. d'Artagnan, porque no momento em que vos retirar a minha protecção não darei nada pela vossa vida.
‑ Procurarei que isso não aconteça, Monsenhor ‑ respondeu o gascão, com nobre confiança.
‑ Mais tarde, se em dado momento vos acontecer algum contratempo ‑ disse Richelieu com intenção ‑, lembrai‑vos de que fui eu que vos procurei e de que fiz o que pude para que esse contratempo não vos acontecesse.
‑ Seja o que for que me aconteça ‑ disse d'Artagnan pondo a mão no peito e inclinando‑se ‑, guardarei eterno reconhecimento a Vossa Eminência pelo que fez por mim neste momento.
‑ Pronto, Sr. d'Artagnan! Como dissestes, ver‑nos‑emos durante a campanha e ter‑vos‑ei debaixo do olho. Porque eu estarei lá ‑ acrescentou o cardeal, mostrando com o dedo a d'Artagnan uma magnífica armadura que mandara fazer ‑, e no nosso regresso... bom, conversaremos!
‑ Ah, Monsenhor, poupais‑me o peso do vosso desagrado! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Permanecei neutro, Monsenhor, e vereis que procedi como um homem de bem.
‑ Meu rapaz ‑ redarguiu Richelieu ‑, se puder dizer‑vos outra vez o que vos disse hoje, prometo que vo‑lo direi.
Esta última declaração de Richelieu exprimia uma dúvida terrível e consternou mais d'Artagnan do que se lhe tivessem feito uma ameaça, pois era uma advertência. O cardeal procurava portanto preservá‑lo de qualquer desgraça que o ameaçava. Abriu a boca para responder, mas com um gesto altivo o cardeal despediu‑o.
D'Artagnan saiu; mas à porta o coração esteve prestes a fraquejar‑lhe e por pouco não voltou atrás. Apareceu‑lhe porém o rosto grave e severo de Athos; se firmasse com o cardeal o pacto que este lhe propunha, Athos não lhe estenderia mais a mão, Athos renegá‑lo‑ia.
Foi esse receio que o deteve, de tal forma é poderosa a influência de um carácter verdadeiramente nobre sobre tudo o que o rodeia.
D'Artagnan desceu pela mesma escada que subira e encontrou diante da porta Athos e os quatro mosqueteiros que esperavam o seu regresso e começavam a inquietar‑se. Com uma palavra, d'Artagnan tranquilizou‑os e Planchet correu a prevenir os outros postos de que era inútil montar mais longa guarda, pois o seu amo saíra são e salvo do Palais‑Cardinal.
Regressados a casa de Athos, Aramis e Porthos quiseram saber o motivo daquela estranha audiência; mas d'Artagnan limitou‑se a dizer‑lhes que o Sr. de Richelieu o chamara para lhe propor entrar para as suas guardas com o posto de comandante de bandeira e que ele recusara.
‑ E fizestes bem! ‑ exclamaram em uníssono Porthos e Aramis. Athos caiu em profunda meditação e não disse nada. Mas quando ficou sozinho com d'Artagnan disse‑lhe:
‑ Fizestes o que devíeis fazer, d'Artagnan, mas talvez tenhais feito mal.
D'Artagnan suspirou; porque aquela voz correspondia a uma voz íntima da sua alma que lhe dizia que grandes perigos o esperavam.
O dia seguinte passou‑se em preparativos de partida; d'Artagnan foi despedir‑se do Sr. de Tréville. Naquela altura ainda se julgava que a separação dos guardas e dos mosqueteiros seria momentânea, pois o rei reuniria o seu conselho no mesmo dia e partiria no dia seguinte. O Sr. de Tréville limitou‑se portanto a perguntar a d'Artagnan se precisava de alguma coisa dele, ao que d'Artagnan respondeu que tinha tudo o que precisava.
À noite reuniram‑se todos os camaradas da companhia de guardas do Sr. dos Essarts e da companhia dos mosqueteiros do Sr. de Tréville, que se tinham tornado amigos. Separavam‑se para só se tornarem a ver quando aprouvesse a Deus e se aprouvesse a Deus. A noite foi pois das mais ruidosas, como se pode imaginar, porque em casos semelhantes só se pode combater a extrema preocupação com a extrema despreocupação.
No dia seguinte, ao primeiro toque dos clarins, os amigos separaram‑se: os mosqueteiros correram para o palácio do Sr. de Tréville e os guardas para o do Sr. dos Essarts. Cada um dos capitães conduziu imediatamente a sua companhia para o Louvre, onde o rei lhes passaria revista.
O rei estava triste e parecia doente, o que lhe diminuía um pouco a majestade. Com efeito, na véspera a febre atacara‑o no meio do conselho, quando presidia aos trabalhos. Mas nem por isso estava menos decidido a partir naquela mesma noite; e, apesar das observações que lhe haviam feito, quisera passar a revista, esperando que aquela primeira demonstração de energia lhe permitisse vencer a doença que começava a dominá‑lo.
Passada a revista, os guardas puseram‑se sozinhos em marcha, pois os mosqueteiros deveriam partir apenas com o rei, o que permitiu a Porthos ir dar uma volta pela Rua dos Ursos na sua soberba montada.
A procuradora viu‑o passar no seu uniforme novo, montado no seu belo cavalo. Amava demasiado Porthos para o deixar partir assim; por isso, fez‑lhe sinal para desmontar e ir ter com ela. Porthos estava magnífico: as suas esporas telintavam, a sua couraça brilhava, e a espada batia‑lhe orgulhosamente nas pernas. Desta vez os amanuenses não tiveram nenhuma vontade de rir, de tal modo Porthos tinha o ar de um cortador de orelhas.
O mosqueteiro foi introduzido junto do Sr. Coquenard, cujos olhinhos cinzentos brilharam de cólera quando viu o primo tão flamante. No entanto, uma coisa o consolou intimamente: toda a gente dizia que a campanha seria dura e por isso esperava no fundo do coração, pacientemente, que Porthos fosse morto.
Porthos apresentou os seus cumprimentos a mestre Coquenard e despediu‑se dele; mestre Coquenard desejou‑lhe toda a espécie de prosperidades. Quanto à Sr.a Coquenard, não conseguiu reter as lágrimas, mas ninguém interpretou maldosamente a sua dor, pois sabiam‑na muito dedicada aos seus parentes, por causa dos quais tivera sempre grandes discussões com o marido.
Mas as verdadeiras despedidas realizaram‑se no quarto da Sr.a Coquenard e foram pungentes.
Enquanto a procuradora pôde seguir com os olhos o amante, agitou um lenço debruçada da janela, a ponto de se poder recear que quisesse precipitar‑se dela abaixo. Porthos recebeu todos esses sinais de ternura como homem habituado a semelhantes demonstrações. Só ao dobrar da esquina da rua tirou o chapéu e o agitou em sinal de despedida.
Pela sua parte, Aramis escrevia uma longa carta. A quem? Ninguém sabia. No quarto contíguo, Ketty, que devia partir naquela mesma tarde para Tours, esperava essa carta misteriosa.
Athos bebia aos golinhos a última garrafa do seu vinho de Espanha.
Entretanto, d'Artagnan desfilava com a sua companhia.
Ao chegar ao Arrabalde de Santo António virou‑se para olhar alegremente a Bastilha; mas como só olhava para a Bastilha, não viu Milady que, montada num cavalo isabel, o indicava com o dedo a dois homens de má catadura, que se aproximaram imediatamente das fileiras para o reconhecer. A uma interrogativa deles com a vista, Milady respondeu com um sinal de que era ele. Depois, certa de que não poderia haver equívoco na execução das suas ordens, esporeou o cavalo e desapareceu.
Os dois homens seguiram então a companhia e, à saída do Arrabalde de Santo António, montaram em cavalos já preparados que os esperavam, seguros à mão e por um criado sem libré.
Alexandre Dumas
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