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OS TRÊS MOSQUETEIROS - Vol. III / Alexandre Dumas
OS TRÊS MOSQUETEIROS - Vol. III / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS TRÊS MOSQUETEIROS

Volume III

 

         O CERCO DE LA ROCHELLE

O cerco de La Rochelle foi um dos grandes acontecimentos políticos do reinado de Luís XIII e uma das maiores empresas militares do cardeal. É portanto interessante e até necessário que digamos algumas palavras a seu respeito; aliás, vários pormenores do cerco relacionaram‑se de forma demasiado importante com a história que nos propusemos contar para que os passemos em silêncio.

Os objectivos políticos do cardeal, quando empreendeu o cerco, eram consideráveis. Exponhamo‑los primeiro e passemos depois aos fins particulares, que talvez não tenham sobre Sua Eminência menos influência do que os primeiros.

Das cidades importantes dadas por Henrique IV aos huguenotes como lugares de segurança já só restava La Rochelle. Tratava‑se portanto de destruir o último bastião do calvinismo, germe perigoso a que se vinham constantemente juntar fermentos de revolta civil ou de guerra estrangeira.

Espanhóis, ingleses e italianos descontentes, aventureiros de todas as nações e soldados improvisados de todas as seitas acorriam à primeira chamada às fileiras dos protestantes e organizavam‑se como uma vasta associação cujos ramos divergiam à vontade sobre todos os pontos da Europa.

La Rochelle, que adquirira nova importância devido à ruína das outras cidades calvinistas, era portanto o foco das dissensões e das ambições. Mas havia mais: o seu porto era a última porta aberta aos Ingleses no reino de França; e fechando‑a à Inglaterra, nossa eterna inimiga, o cardeal concluía a obra de Joana d'Arc e do duque de Guise.

Por isso, Bossompierre, que era simultaneamente protestante e católico, protestante por convicção e católico como comendador do Espírito Santo; Bassompierre, que era alemão de nascimento e francês de coração; Bossompierre, enfim, que tinha um comando especial no cerco de La Rochelle, dizia, carregando à frente de vários outros fidalgos protestantes como ele:

‑ Verão, meus senhores, que seremos tão estúpidos que tomaremos La Rochelle!

E Bassompierre tinha razão: o canhoneio da ilha de Ré pressagiava‑lhe as dragonadas das Cévemies: a tomada de La Rochelle era o prefácio da revogação do edicto de Nantes.

Mas, como dissemos, a par destes objectivos do ministro nivelador e simplificador, e que pertencem à História, o cronista é forçado a reconhecer as pequenas intenções do homem apaixonado e do rival ciumento.

Richelieu, como todos sabem, apaixonara‑se pela rainha; se nele esse amor tinha um simples objectivo político ou era muito naturalmente uma dessas profundas paixões como as que inspirou Ana de Áustria àqueles que a rodeavam, não saberíamos dizer; mas em todo o caso, viu‑se, pelos acontecimentos anteriores desta história, que Buckingham lhe levara a melhor e que em duas ou três circunstâncias, especialmente na das agulhetas, fora, graças à dedicação dos três mosqueteiros e à coragem de d'Artagnam, cruelmente mistificado.

Tratava‑se portanto para Richelieu, não só de desembaraçar a França de um inimigo, mas também de se vingar de um rival; de resto, a vingança devia ser grande e dar brado, e em tudo digna de um homem que tinha na mão, por espada de combate, as forças militares de todo o reino.

Richelieu sabia que combatendo a Inglaterra combatia Buckingham, que triunfando da Inglaterra triunfava de Buckingham, enfim que humilhando a Inglaterra aos olhos da Europa humilhava Buckingham aos olhos da rainha.

Pela sua parte Buckingham, embora colocando à frente a honra da Inglaterra, era movido por interesses absolutamente semelhantes aos do cardeal; Buckingham também visava uma vingança particular: já que sob nenhum pretexto conseguira entrar em França como embaixador, queria lá entrar como conquistador.

E disto resultava que o verdadeiro prémio da partida, que os dois mais poderosos reinos jogavam por vontade de dois homens apaixonados, era um simples olhar de Ana de Áustria.

A primeira vantagem pertencera ao duque de Buckingham: chegado inopinadamente à vista da ilha de Ré com noventa navios e cerca de vinte mil homens, surpreendera o conde de Toiras, que comandava a ilha em nome do rei; depois de um combate sangrento, conseguira desembarcar.

Digamos de passagem que no combate morrera o barão de Chantal, que deixara órfã uma filhinha de dezoito meses.

Essa menina foi mais tarde a Sr.a de Sévigné.

O conde de Toiras retirou‑se para a Cidadela de Saint‑Martin com a guarnição e colocou uma centena de homens num pequeno forte chamado Forte de La Prée.

Este acontecimento apressara as resoluções do cardeal; e enquanto esperava que o rei e ele pudessem ir assumir o comando do cerco de La Rochelle, que estava decidido, fizera partir Monsieur para dirigir as primeiras operações e encaminhar para o teatro da guerra todas as tropas de que pudera dispor.

Era do destacamento enviado como guarda avançada que fazia parte o nosso amigo d'Artagnan.

Como dissemos, o rei devia partir logo que terminasse a sessão do Parlamento; mas ao levantar‑se da tribuna que lhe estava reservada, em 28 de Junho, sentira‑se febril; nem por isso quisera deixar de partir, mas como o seu estado piorara fora obrigado a deter‑se em Villeroi.

Ora, onde parava o rei paravam os mosqueteiros; e daí resultava que d'Artagnan, que pertencia pura e simplesmente às Guardas, se encontrava separado, pelo menos momentaneamente, dos seus bons amigos Athos, Porthos e Aramis. Tal separação, que não passava para ele de uma contrariedade, sem dúvida se transformaria em séria preocupação se pudesse adivinhar de que perigos desconhecidos se encontrava rodeado.

No entanto, não deixou de chegar sem incidente ao acampamento instalado diante de La Rochelle, por volta de 10 de Setembro de 1627.

Estava tudo na mesma: o duque de Buckingham e os seus ingleses, senhores da ilha de Ré, continuavam a cercar, mas sem êxito, a Cidadela de Saint‑Martin e o Forte de La Prée, e as hostilidades com La Rochelle tinham começado havia dois ou três dias, depois de concluída uma fortificação que o duque de Angoulême mandara construir perto da cidade.

Os guardas, sob o comando do Sr. dos Essarts, estavam alojados no Mínimos.

Mas, como sabemos, d'Artagnan, preocupado com a ambição de passar para os mosqueteiros, raramente fizera amizade com os seus camaradas; encontrava‑se portanto isolado e entregue às suas próprias reflexões.

Reflexões que não eram risonhas: havia um ano que chegara a Paris e se metera nos negócios públicos, e os seus negócios particulares não tinham avançado grande coisa, quer no amor, quer na fortuna.

No amor, a única mulher que amara fora a Sr.a Bonacieux, e a Sr.a Bonacieux desaparecera e ainda não conseguira descobrir o que lhe acontecera.

Na fortuna, tornara‑se, pobre de si, inimigo do cardeal, isto é, de um homem diante de quem tremiam os maiores do reino, a começar pelo rei.

Aquele homem podia esmagá‑lo, e no entanto não o fizera: para um espírito tão perspicaz como o de d'Artagnan, semelhante indulgência era uma luz que lhe permitia descortinar um futuro melhor.

Depois, arranjara ainda outro inimigo menos temível, pensava, mas que apesar disso sentia instintivamente não ser de desprezar; esse inimigo era Milady.

Em troca de tudo isso adquirira a protecção e a benevolência da rainha, mas a benevolência da rainha era, nos tempos que corriam, mais um motivo de perseguição; e a sua protecção, era sabido, protegia muito mal: testemunhas, Chalais e a Sr.a Bonacieux.

O que ganhara que se visse em tudo aquilo fora o diamante de cinco ou seis mil libras que trazia no dedo; e mesmo esse diamante, na hipótese de d'Artagnan, nos seus projectos ambiciosos, querer guardá‑lo para dispor um dia de um sinal de reconhecimento junto da rainha, não tinha entretanto, uma vez que se não podia desfazer dele, mais valor do que as pedras que pisava.

Dizemos do que as pedras que pisava porque d'Artagnan fazia estas reflexões passeando solitariamente por um bonito caminho que levava do acampamento à aldeia de Angoulins; ora estas reflexões tinham‑no conduzido mais longe do que imaginava, e o dia começava a morrer quando ao último raio do Sol poente lhe pareceu ver brilhar atrás de uma sebe o cano de um mosquete.

D'Artagnan tinha olho vivo e reflexos rápidos; compreendeu que o mosquete não viera ali ter sozinho e quem o trouxera não se escondera atrás de uma sebe com intenções amistosas. Resolveu portanto passar de largo, quando do outro lado do caminho, atrás de um rochedo, divisou a extremidade de segundo mosquete.

Era evidentemente uma emboscada.

O jovem deitou uma olhadela ao primeiro mosquete e viu com certa inquietação que se baixava na sua direcção; mas logo que viu o orifício do cano imóvel deitou‑se de bruços no chão. Ao mesmo tempo o tiro partiu e ouviu o silvo de uma bala passar‑lhe por cima da cabeça.

Não havia tempo a perder. D'Artagnan levantou‑se de um salto e ao mesmo tempo a bala do outro mosquete faz voar as pedras do próprio sítio do caminho onde o nosso amigo se deitara de bruços no chão.

D'Artagnan não era um desses homens inutilmente bravos que procuram uma morte ridícula para que não se diga que recuaram um passo; aliás, ali não se tratava de coragem, pois d'Artagnan caíra numa cilada.

«Se disparam terceiro tiro, sou um homem morto!», disse para consigo.

E dando imediatamente às de vila‑diogo, fugiu na direcção do acampamento com a velocidade da gente da sua terra, famosa pela sua agilidade; mas fosse qual fosse a rapidez da sua corrida, o primeiro que disparara tivera tempo de recarregar a arma e mandou‑lhe segundo tiro, desta vez tão bem apontado que a bala lhe atravessou o chapéu e fê‑lo voar a dez passos do nosso homem.

Contudo, como d'Artagnan não tinha outro chapéu, apanhou aquele sem deixar de correr, chegou esbaforido e muito pálido ao seu alojamento, sentou‑se sem dizer nada a ninguém e pôs‑se a reflectir.

O acontecimento podia ter três causas:

A primeira e a mais natural podia ser uma emboscada dos Rocheleses, que não se importassem de matar um dos guardas de Sua Majestade, não só porque seria um inimigo a menos, mas também porque esse inimigo podia ter uma bolsa bem recheada na algibeira.

D'Artagnan pegou no chapéu, examinou o buraco da bala e abanou a cabeça. A bala não era uma bala de mosquete, era uma bala de arcabuz; a certeza do tiro já lhe dera a ideia de ter sido disparado por uma arma especial: não fora portanto uma emboscada militar, porque a bala não era desse calibre.

Podia ser uma boa lembrança do Sr. Cardeal. Lembremo‑nos de que no preciso momento em que, graças àquele abençoado raio de sol, vira o cano da arma, estranhava a longanimidade de Sua Eminência a seu respeito.

Mas d'Artagnan abanou a cabeça. Quando se tratava de pessoas para as quais lhe bastava estender a mão, Sua Eminência raramente recorria a semelhantes meios.

Podia ser uma vingança de Milady.

Isso era mais provável.

Procurou inutilmente recordar‑se das feições ou da indumentária dos assassinos; afastara‑se deles tão depressa que não tivera tempo de reparar em nada.

‑ Ah, meus pobres amigos! ‑ murmurou d'Artagnan. ‑ Onde estais? E que falta me fazeis!

D'Artagnan passou uma noite péssima. Acordou três ou quatro vezes em sobressalto, imaginando que um homem se aproximava da sua cama para o apunhalar. No entanto, o dia nasceu sem que as trevas tivessem trazido qualquer incidente.

Mas d'Artagnan desconfiou que o que estava adiado não estava perdido.

Permaneceu todo o dia no seu alojamento, dando por desculpa a si próprio que o tempo estava mau.

Dois dias depois, às nove horas, tocou a reunir. O duque de Orleães visitava os postos. Os guardas correram às armas e d'Artagnan ocupou o seu lugar no meio dos seus camaradas.

Monsieur percorreu a frente de batalha; depois, todos os oficiais superiores se aproximaram dele para lhe fazer a corte, e o Sr. dos Essarts, o capitão dos guardas, como os outros.

Passado um instante, pareceu a d'Artagnan que o Sr. dos Essarts lhe fazia sinal para se aproximar dele. Esperou novo gesto do seu superior, receando ter‑se enganado, e como o gesto se repetisse saiu das fileiras e avançou para receber a ordem.

‑ Monsieur vai pedir homens de boa vontade para uma missão perigosa, mas que honrará quem a desempenhar, e fiz‑vos sinal para que estivésseis pronto.

‑ Obrigado, meu capitão! ‑ respondeu d'Artagnan, que não desejava mais nada do que distinguir‑se aos olhos do tenente‑general.

Com efeito, os rocheleses tinham feito uma surtida durante a noite e haviam retomado um bastião de que o Exército Real se apoderara dois dias antes; tratava‑se de proceder a um reconhecimento isolado para ver como o inimigo guardava o bastião.

Efectivamente, pouco depois Monsieur ergueu a voz e disse:

‑ Precisaria para esta missão de três ou quatro voluntários comandados por um homem de confiança!

‑ Quanto ao homem de confiança, tenho‑o à mão, Monsenhor, ‑ disse o Sr. des Essarts indicando d'Artagnan. ‑ E quanto aos quatro ou cinco voluntários só tem de dar a conhecer as suas intenções e os homens não lhe faltarão.

‑ Quatro homens de boa vontade para virem fazer‑se matar comigo! ‑ gritou d'Artagnan erguendo a espada.

Dois dos seus camaradas das Guardas acorreram imediatamente, aos quais se juntaram dois soldados, pelo que se considerou que o número era suficiente. D'Artagnan recusou portanto todos os outros, para não preterir os que tinham a prioridade.

Ignorava‑se se depois da tomada do bastião os rocheleses o tinham evacuado ou haviam lá deixado alguma guarnição; era preciso portanto examinar o local indicado de bastante perto para verificar o que de facto se passara.

D'Artagnan partiu com os seus quatro companheiros e entrou na trincheira; os dois guardas caminhavam a seu lado e os soldados vinham atrás.

Chegaram assim, a coberto dos revestimentos, até uma centena de passos do bastião! Aí, d'Artagnan virou‑se e verificou que os dois soldados tinham desaparecido.

Julgou que tivessem ficado para trás com medo e continuou a avançar.

Na volta de uma contra‑escarpa encontraram‑se a cerca de sessenta passos do bastião.

Não se via ninguém, o bastião parecia abandonado. Os três infantes isolados deliberam se deviam ir mais adiante, quando de súbito um cinto de fumo cingiu o gigante de pedra e uma dúzia de balas vieram assobiar à volta de d'Artagnan e dos seus dois companheiros.

Já sabiam o que queriam saber: o bastião estava guardado. Mais longa permanência naquele sítio perigoso seria portanto uma imprudência inútil; d'Artagnan e os dois guardas viraram as costas e começaram uma retirada que parecia uma fuga.

Quando chegaram à esquina da trincheira que ia servir‑lhes de parapeito um dos guardas caiu: uma bala atravessara‑lhe o peito. O outro, que estava são e salvo, continuou a correr para o acampamento.

D'Artagnan não quis abandonar assim o companheiro e inclinou‑se para o levantar e ajudar a alcançar as linhas; mas nesse momento ouviram‑se dois tiros de espingarda e uma bala desfez a cabeça do guarda já ferido e a outra foi‑se esmagar na rocha depois de passar a duas polegadas de d'Artagnan.

O jovem virou‑se vivamente, pois aquele ataque não podia vir do bastião, que estava oculto pela esquina da trincheira. A ideia dos dois soldados que o tinham abandonado acudiu‑lhe à memória e recordou‑se dos seus assassinos da antevéspera; resolveu portanto saber com quem estava metido e caiu sobre o corpo do seu camarada como se estivesse morto.

Viu imediatamente duas cabeças erguerem‑se acima de uma obra abandonada, situada a trinta passos dali: eram as dos nossos dois soldados. D'Artagnan não se enganara: aqueles dois homens tinham‑no seguido para o assassinar, esperando que a sua morte fosse atribuída ao inimigo.

Mas como podia estar apenas ferido e denunciar os criminosos, aproximaram‑se para o acabar. Felizmente, enganados pela astúcia de d'Artagnan, esqueceram‑se de recarregar as espingardas.

Quando chegaram a dois passos dele, d'Artagnan, que ao cair tivera o cuidado de não largar a espada, levantou‑se de repente e de um salto chegou junto deles.

Os assassinos compreenderam que se fugissem para o lado do acampamento sem terem matado o seu homem este os acusaria; por isso, a sua primeira ideia foi passarem‑se para o inimigo. Um deles pegou na espingarda pelo cano e serviu‑se dela como uma clava; desferiu uma pancada terrível contra d'Artagnan, que a evitou lançando‑se de lado; mas com esse movimento abriu passagem ao bandido, que correu imediatamente para o bastião. Como os rocheleses que o guardavam ignoravam com que intenção o homem ia para eles, fizeram fogo e ele caiu atingido por uma bala que lhe quebrou o ombro.

Entretanto, d'Artagnan atirara‑se ao segundo soldado e atacara‑o com a espada; a luta não foi longa, pois o miserável só tinha para se defender o arcabuz descarregado. A espada de d'Artagnan deslizou pelo cano da arma tornada inútil e foi atravessar a coxa do assassino, que caiu. D'Artagnan pôs‑lhe imediatamente a ponta do ferro na garganta.

‑ Oh, não me mateis! ‑ gritou o bandido. ‑ Misericórdia, misericórdia, meu oficial, e dir‑vos‑ei tudo!

‑ O teu segredo valerá ao menos a pena de te poupar a vida? ‑ perguntou o jovem, retendo o braço.

‑ Vale, se considerais que a existência seja alguma coisa quando se tem vinte e dois anos como vós e que se pode conseguir tudo sendo belo e bravo como vós sois.

‑ Miserável! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Vamos, fala depressa, quem te encarregou de me assassinar?

‑ Uma mulher que não conheço, mas a quem chamavam Milady.

‑ Mas se não conheces essa mulher como sabes o seu nome?

‑ O meu camarada conhecia‑a e chamava‑a assim; foi com ele que ela tratou e não comigo. Tem até na algibeira uma carta dessa pessoa que deve ter para vós grande importância, segundo lhe ouvi dizer.

‑ Mas como entraste a meias nesta cilada?

‑ Ele propôs‑me darmos ambos o golpe e eu aceitei.

‑ E quanto vos deu ela por essa bonita façanha?

‑ Cem luíses.

‑ Apre! ‑ exclamou o jovem, rindo. ‑ Até que enfim acha que valho alguma coisa: cem luíses! É muito dinheiro para dois miseráveis como vós. Por isso compreendo que tenhas aceitado, e poupo‑te, mas com uma condição!

‑ Qual? ‑ perguntou o soldado, inquieto, vendo que ainda não acabara tudo.

‑ Vais buscar‑me a carta que o teu camarada tem na algibeira.

‑ Mas isso é outra maneira de me matardes! ‑ gritou o bandido. ‑ Como quereis que vá buscar a carta debaixo do fogo do bastião?

‑ No entanto, tens de te decidir a ir buscá‑la, ou juro‑te que morrerás às minhas mãos!

‑ Misericórdia! Senhor, piedade, em nome dessa jovem dama que amais, que talvez julgueis morta, e que não o está! ‑ gritou o bandido, pondo‑se de joelhos e apoiando‑se na mão, pois começava a perder as forças juntamente com o sangue.

‑ E como sabes que existe uma mulher que eu amo e a quem julguei morta? ‑ perguntou d'Artagnan.

‑ Pela carta que o meu camarada tem na algibeira.

‑ Então, bem vês que preciso dessa carta ‑ retorquiu d'Artagnan.

‑ Portanto, nada de demoras, nada de hesitações, pois seja qual for a minha repugnância em mergulhar segunda vez a minha espada no sangue de um miserável como tu, juro‑te pela minha fé de homem honesto...

E ao dizer estas palavras d'Artagnan fez um gesto tão ameaçador que o ferido se levantou.

‑ Parai! Parai! ‑ gritou, recuperando coragem à força de terror.

‑ Eu vou... eu vou!...

D'Artagnan pegou no arcabuz do soldado, fê‑lo passar para a sua frente e empurrou‑o para o companheiro picando‑lhe os rins com a ponta da espada.

Era confrangedor ver o desgraçado, deixando no caminho que percorria um longo rasto de sangue, pálido como a sua morte próxima, procurando arrastar‑se sem ser visto até ao corpo do cúmplice, que jazia a vinte passos dali!

Tinha o terror de tal forma pintado na cara coberta de suor frio que d'Artagnan teve compaixão dele; e olhando‑o com desprezo disse‑lhe:

‑ Está bem, vou mostrar‑te a diferença que existe entre um homem de coração e um cobarde como tu; fica aqui que eu vou lá.

E num passo ágil e de olhar atento, observando os movimentos do inimigo e aproveitando todos os acidentes de terreno, d'Artagnan chegou ao segundo soldado.

Havia duas maneiras de conseguir o que pretendia: revistá‑lo ali mesmo, ou levá‑lo, fazendo um escudo com o seu corpo, e revistá‑lo na trincheira.

D'Artagnan preferiu a segunda e carregou o assassino às costas no preciso momento em que o inimigo fazia fogo.

Um leve estremecimento, o ruído abafado de três balas a perfurarem as carnes, um derradeiro grito, um frémito de agonia... provaram a d'Artagnan que aquele que o quisera assassinar acabava de lhe salvar a vida.

D'Artagnan regressou à trincheira e deitou o cadáver ao pé do ferido, tão pálido como um morto.

Procedeu imediatamente ao inventário: uma carteira de couro, uma bolsa onde se encontrava evidentemente parte do dinheiro que o bandido recebera, um copo e os respectivos dados constituíam o espólio do morto.

Deixou o copo e os dados onde tinham caído, atirou a bolsa ao ferido e abriu avidamente a carteira.

No meio de alguns papéis sem importância, encontrou uma carta, aquela que fora buscar com risco da vida:

 

Já que perdestes o rasto da mulher e que ela está agora em segurança nesse convento onde nunca devíeis tê‑la deixado chegar, procurai ao menos não falhar o homem; senão sabeis que tenho a mão comprida e que pagaríeis caro os cem luíses que vos dei.

 

Nenhuma assinatura. Contudo, era evidente que a carta provinha de Milady. Nesta conformidade, guardou‑a como peça de acusação e, em segurança atrás da esquina da trincheira, pôs‑se a interrogar o ferido. Este confessou que se encarregara com o seu camarada, o mesmo que acabava de ser morto, de raptar uma mulher que devia sair de Paris pela barreira de La Villette, mas que tendo‑se demorado a beber tinham chegado dez minutos depois da carruagem passar.

‑ Mas que faríeis depois da mulher? ‑ perguntou d'Artagnan, angustiado.

‑ Devíamos levá‑la para um palácio da Praça Royale ‑ respondeu o ferido.

‑ Sim, sim... ‑ murmurou d'Artagnan. ‑ É isso mesmo: para casa da própria Milady.

Então o jovem compreendeu, tremendo, que terrível sede de vingança impelia aquela mulher a perdê‑lo, assim como aqueles que o amavam, e como estava bem informada acerca do que se passava na corte, uma vez que descobrira tudo. Devia sem dúvida tais informações ao cardeal.

Mas no meio de tudo isto compreendeu também, com uma sensação de alegria bem real, que a rainha acabara por descobrir a prisão onde a pobre Sr.a Bonacieux expiava a sua dedicação e a tirara dessa prisão. Então, a carta que recebera da jovem e a sua passagem pela estrada de Chaillot ‑ passagem semelhante a uma aparição ‑ ficaram explicadas.

A partir daí, como Athos predissera, era possível reencontrar a Sr.a Bonacieux, e um convento não era inexpugnável.

Esta ideia acabou de lhe encher o coração de clemência. Virou‑se para o ferido, que seguia com ansiedade todas as diversas expressões do seu rosto, e disse‑lhe estendendo‑lhe o braço:

‑ Vamos, não quero abandonar‑te assim. Apoia‑te em mim e regressemos ao acampamento.

‑ Pois sim ‑ disse o ferido, que lhe custava a crer em tanta magnanimidade ‑, mas não é para me mandar enforcar?

‑ Tens a minha palavra ‑ redarguiu d'Artagnan. ‑ Dou‑te a vida pela segunda vez.

O ferido deixou‑se cair de joelhos e beijou de novo os pés do seu salvador; mas d'Artagnan, que já não tinha nenhum motivo para permanecer tão perto do inimigo, abreviou as demonstrações de reconhecimento.

O guarda que fugira à primeira descarga dos rocheleses, anunciara a morte dos seus quatro companheiros. Todos ficaram portanto muito admirados e satisfeitos no regimento quando viram aparecer o jovem são e salvo.

D'Artagnan atribuiu a espadeirada do companheiro a uma surtida que improvisara. Contou a morte do outro soldado e os perigos que tinham corrido. Conquistou assim um verdadeiro triunfo. Todo o Exército falou da expedição durante um dia e Monsieur dirigiu‑lhe as suas felicitações.

Além disso, como toda a boa acção traz consigo a sua recompensa, a boa acção de d'Artagnan teve como resultado restituir‑lhe a tranquilidade que perdera. Com efeito, d'Artagnan julgava poder estar tranquilo desde que dos seus inimigos um estava morto e o outro dedicava‑se aos seus interesses.

Essa tranquilidade provava uma coisa: que d'Artagnan ainda não conhecia Milady.

 

         O VINHO DE ANJOU

Depois das notícias quase desesperadas do rei, começava a espalhar‑se pelo acampamento a nova da sua convalescença; e como estava ansioso por chegar em pessoa ao cerco, dizia‑se que assim que pudesse montar a cavalo se poria a caminho.

Entretanto, Monsieur, que sabia ir ser substituído de um dia para o outro no seu comando, quer pelo duque de Angoulême, quer por Bassompierre ou por Schomberg, que disputavam um ao outro o comando, pouco fazia, perdia os dias em tacteamentos e não se atrevia a arriscar qualquer grande empresa para expulsar os Ingleses da ilha de Ré, onde continuavam a assediar a Cidadela de Saint‑Martin e o Forte de La Prée enquanto pelo seu lado os Franceses assediavam La Rochelle.

Como dissemos, d'Artagnan andava mais tranquilo, como sempre acontece depois de um perigo passado e quando o perigo parece desvanecido; só uma coisa o preocupava: não ter quaisquer notícias dos amigos.

Mas uma manhã, em princípios do mês de Novembro, tudo lhe foi explicado por esta carta datada de Villeroi:

 

           Sr. d'Artagnan:

Os Srs. Athos, Porthos e Aramis, depois de jogarem uma boa partida em minha casa, e de se terem divertido muito, fizeram tanto barulho que o preboste do castelo, homem muito rigoroso, os castigou com a pena de detenção por alguns dias; mas eu cumpri as ordens que me deram para vos mandar doze garrafas do meu vinho de Anjou, de que muito gostaram: querem que bebeis à sua saúde e com o seu vinho favorito.

Assim fiz e sou, senhor, com grande respeito, vosso servidor muito humilde e obediente,

       GoDEAU, Estalajadeiro dos Srs. Mosqueteiros.

 

‑ Até que enfim! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Pensam em mim nos seus prazeres como eu pensava neles no meu aborrecimento. Claro que beberei à sua saúde e com todo o gosto; mas não beberei sozinho.

E d'Artagnan correu ao alojamento de dois guardas com os quais estabelecera mais amizade do que com os outros, a fim de os convidar a beberem consigo o delicioso vinhinho de Anjou que acabava de chegar de Villeroi. Um dos dois guardas estava convidado para essa mesma noite e o outro para o dia seguinte; a reunião ficou portanto fixada para dali a dois dias.

No regresso, d'Artagnan mandou as doze garrafas de vinho para a cantina dos guardas e recomendou que lhas guardassem com cuidado. Depois, no dia da solenidade, como o almoço estava marcado para o meio‑dia, d'Artagnan mandou, às nove horas, Planchet preparar tudo.

Planchet, orgulhosíssimo de ser elevado à dignidade de mordomo, pensou em preparar tudo como um homem inteligente. Para isso, agregou a si o criado de um dos convivas do amo, chamado Fourreau, e o falso soldado que quisera matar d'Artagnan e que, como não pertencia a nenhum corpo de tropas, entrara ao seu serviço, ou antes ao de Planchet, desde que d'Artagnan lhe salvara a vida.

Chegada a hora do banquete, os dois convivas apresentaram‑se, sentaram‑se e as iguarias alinharam‑se na mesa. Planchet servia de guardanapo no braço, Fourreau abria as garrafas e Brisemont, assim se chamava o convalescente, transvasava para as garrafas de mesa o vinho que parecia ter criado depósito devido aos baldões da viagem. A primeira garrafa estava um pouco turva para o fim; Brisemont deitou esse resto num copo e d'Artagnan autorizou‑o a bebê‑lo, porque o pobre diabo não tinha ainda muitas forças.

Depois de comerem a sopa, os convivas iam levar o primeiro copo aos lábios quando de súbito o canhão ribombou no Forte Luís e no Forte Novo; julgando tratar‑se de algum ataque imprevisto, quer dos sitiados, quer dos Ingleses, os guardas saltaram imediatamente para as suas espadas. D'Artagnan, não menos lesto, fez como eles e todos os três saíram a correr a fim de se dirigirem para os seus postos.

Mas mal saíram da cantina descobriram a causa de tão grande barulho: os gritos de «Viva o rei!», «Viva o Sr. Cardeal!», ouviam‑se por todos os lados e os tambores rufavam em todas as direcções.

Com efeito, impaciente como dissemos, o rei acabava de percorrer duas etapas numa só e chegava naquele mesmo instante com toda a sua casa e um reforço de dez mil homens; os seus mosqueteiros precediam‑no e seguiam‑no. D'Artagnan, colocado em alas com a sua companhia, cumprimentou com um gesto expressivo os amigos, que lhe responderam com os olhos, e o Sr. de Tréville, que o reconheceu imediatamente.

Terminada a cerimónia da recepção, os quatro amigos não tardaram a cair nos braços uns dos outros.

‑ Caramba, não podiam chegar em melhor altura, pois as carnes ainda não tiveram tempo de arrefecer! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Não é verdade, meus senhores? ‑ acrescentou virando‑se para os dois guardas, que apresentou aos amigos.

‑ Ah, ah, parece que nos banqueteamos! ‑ exclamou Porthos.

‑ Espero que não haja mulheres no vosso almoço ‑ observou Aramis.

‑ E há vinho potável na vossa baiuca? ‑ perguntou Athos.

‑ Mas por Deus, há o vosso, caro amigo ‑ respondeu d'Artagnan.

‑ O nosso vinho? ‑ disse Athos, atónito.

‑ Sim, aquele que me mandastes.

‑ Nós mandámo‑vos vinho?

‑ Mas bem sabeis, esse vinhinho das encostas de Anjou...

‑ Sim, bem sei de que vinho falais.

‑ O vinho que preferis.

‑ Sem dúvida, quando não tenho nem champanhe nem chambertin.

‑ Pronto, à falta de champanhe e de chambertin, contentar‑vos‑eis com este.

‑ Mandámos portanto vir vinho de Anjou, apesar de sermos peritos na matéria? ‑ observou Porthos.

‑ Não, refiro‑me ao vinho que me mandaram da vossa parte.

‑ Da nossa parte? ‑ repetiram os três mosqueteiros.

‑ Fostes vós, Aramis, que mandastes o vinho? ‑ perguntou Athos.

‑ Não, e vós, Porthos?

‑ Não, e vós, Athos? ‑Não.

‑ Se não fostes vós, foi o vosso estalajadeiro ‑ disse d'Artagnan.

‑ O nosso estalajadeiro?

‑ Sim, o vosso estalajadeiro, Godeau, o estalajadeiro dos mosqueteiros.

‑ Irra! Que importa donde venha e para onde vá? ‑ atalhou Porthos. ‑ Provemo‑lo, e se for bom bebamo‑lo.

‑ Não, não bebemos vinho de origem desconhecida ‑ redarguiu Athos.

‑ Tendes razão, Athos ‑ concordou d'Artagnan. ‑ Nenhum de vós encarregou o estalajadeiro Godeau de me mandar vinho?

‑ Não! Mas mesmo assim ele mandou‑vo‑lo da nossa parte?

‑ Aqui está a carta! ‑ disse d'Artagnan. E apresentou o bilhete aos camaradas.

‑ Não é a sua letra! ‑ exclamou Athos. ‑ Conheço‑a, pois fui eu que, antes de partir, paguei as contas da comunidade.

‑ A carta é falsa: não fomos castigados ‑ acrescentou Porthos.

‑ D'Artagnan, como pudestes acreditar que tivéssemos armado zaragata? ‑ perguntou Aramis em tom de censura.

D'Artagnan empalideceu e um tremor convulsivo sacudiu‑lhe os membros.

‑ Assustas‑me ‑ declarou Athos, que só o tratava por tu nas grandes ocasiões. ‑ Que aconteceu?

‑ Corramos, corramos, meus amigos! ‑ gritou d'Artagnan. ‑ Acaba de me atravessar o espírito uma horrível suspeita! Seria mais uma vingança dessa mulher?

Dessa vez foi Athos quem empalideceu.

D'Artagnan correu para a cantina e os três mosqueteiros e os dois guardas seguiram‑no.

A primeira coisa em que d'Artagnan reparou ao entrar na sala de jantar foi em Brisemont, deitado no chão e rebolando‑se no meio de atrozes convulsões.

Planchet e Fourreau, pálidos como mortos, tentavam socorrê‑lo; mas era evidente que qualquer socorro seria inútil: todas as feições do moribundo estavam crispadas pela agonia.

‑ Ah! ‑ gritou ao ver d'Artagnan. ‑ Ah, é horrível, fingis perdoar‑me e envenenais‑me!

‑ Eu? Eu, desgraçado? Eu! ‑ protestou d'Artagnan. ‑ Que dizes tu?

‑ Digo que fostes vós que me deste o vinho, digo que fostes vós que me dissestes para o beber, digo que quisestes vingar‑vos de mim, digo que é horrível!

‑ Não digas isso, Brisemont, não digas isso ‑ protestou d'Artagnan. ‑ Juro‑te, garanto‑te...

‑ Oh, mas Deus existe! Ele vos castigará! Meu Deus, que ele sofra um dia o que eu sofro!

‑ Juro‑te sobre o Evangelho ‑ gritou d'Artagnan, precipitando‑se para o moribundo ‑, juro‑te que ignorava que o vinho estivesse envenenado e que ia bebê‑lo como tu.

‑ Não acredito! ‑ redarguiu o soldado.

E expirou no meio de redobradas torturas.

‑ Horrível! Horrível! ‑ murmurava Athos, enquanto Porthos partia as garrafas e Aramis dava ordens um pouco tardias para que se fosse buscar um padre.

‑ Oh, meus amigos, acabais de me salvar a vida mais uma vez, não só a mim, mas também a estes senhores! ‑ declarou d'Artagnan.

‑ Meus senhores ‑ continuou dirigindo‑se aos guardas ‑, peço‑vos que guardeis silêncio acerca de toda esta aventura; pode haver grandes personagens metidas no que vistes e o mal de tudo recairia sobre nós.

‑ Ah, senhor ‑ balbuciava Planchet, mais morto do que vivo ‑, ah, senhor, escapei de boa!

‑ Que dizes, velhaco, ias beber do meu vinho? ‑ barafustou d'Artagnan.

‑ Ia beber um copinho à saúde do rei, senhor, se Fourreau não me tivesse dito que me chamavam.

‑ Por sorte! ‑ exclamou Fourreau, cujos dentes batiam de terror. ‑ Queria afastá‑lo para beber sozinho!

‑ Meus senhores ‑ disse d'Artagnan dirigindo‑se aos guardas‑, como compreendeis, semelhante banquete só poderia ser muito triste depois do que acaba de acontecer; assim, recebei todas as minhas desculpas e adiemos a festa para outro dia, peço‑vos.

Os dois guardas aceitaram cortesmente as desculpas de d'Artagnan e, compreendendo que os quatro amigos desejavam ficar sós, retiraram‑se.

Quando o jovem guarda e os três mosqueteiros ficaram sem testemunhas, entreolharam‑se com um ar que queria dizer que cada um compreendia a gravidade da situação.

‑ Primeiro, saiamos daqui ‑ sugeriu Athos. ‑ Não há pior companhia do que um morto, morto de morte violenta.

‑ Planchet, recomendo‑te o cadáver desse pobre diabo ‑ disse d'Artagnan. ‑ Que seja enterrado em terra sagrada. Cometera um crime, é verdade, mas arrependera‑se dele.

E os quatro amigos saíram da sala, deixando a Planchet e a Fourreau o cuidado de prestarem as homenagens fúnebres a Brisemont.

O estalajadeiro deu‑lhes outra sala onde lhes serviu ovos quentes e água, que o próprio Athos foi buscar à fonte. Em poucas palavras, Porthos e Aramis foram postos ao corrente da situação.

‑ E é isto! ‑ exclamou d'Artagnan dirigindo‑se a Athos. ‑ Como vedes, caro amigo, é uma guerra de morte.

Athos abanou a cabeça.

‑ Sim, sim, bem vejo ‑ concordou. ‑ Mas acreditais que seja ela?

‑ Tenho a certeza.

‑ Pois confesso‑vos que ainda duvido.

‑ E a flor‑de‑lis no ombro?

‑ Alguma inglesa que cometeu algum crime em França e que a terão marcado por isso.

‑ Athos, é a vossa mulher, garanto‑vos ‑ insistia d'Artagnan. ‑ Lembrais‑vos de como os dois sinais se assemelhavam?

‑ Pois eu quase juraria que a outra estava morta; enforquei‑a com tanto cuidado...

Foi a vez de d'Artagnan abanar a cabeça.

‑ Mas, enfim, que fazer? ‑ perguntou.

‑ A verdade é que não podemos ficar assim com uma espada eternamente suspensa sobre a cabeça ‑ respondeu Athos. ‑ É preciso sair desta situação.

‑ Mas como?

‑ Escutai: procurai encontrar‑vos com ela e ter uma explicação. Dizei‑lhe: a paz ou a guerra! A minha palavra de gentil‑homem de nunca dizer nada de vós, de nunca fazer nada contra vós; do vosso lado, juramento solene de ficardes neutra a meu respeito. De contrário, vou procurar o chanceler, vou procurar o rei, denuncio‑vos como marcada, levo‑vos a julgamento e se vos absolverem... mato‑vos, palavra de gentil‑homem, em qualquer canto, como mataria um cão raivoso.

‑ Esse meio não me desagrada ‑ reconheceu d'Artagnan. ‑ Mas como encontrá‑la?

‑ O tempo, caro amigo, o tempo traz a oportunidade, e a oportunidade é a grande parada do homem: quanto mais se aposta, mais se ganha, quando se sabe esperar.

‑ Pois sim, mas esperar rodeado de assassinos e envenenadores...

‑ Ora! ‑ exclamou Athos. ‑ Deus que nos guardou até agora também nos guardará daqui em diante.

‑ Sim, nós; mas nós somos homens e no fim de contas o nosso dever é arriscar a vida. Mas ela? ‑ acrescentou a meia voz.

‑ Ela, quem? ‑ perguntou Athos.

‑ Constance.

‑ A Sr.a Bonacieux! Tendes razão, pobre amigo, esquecia‑me de que estais apaixonado ‑ confessou Athos.

‑ Mas então ‑ interveio Aramis ‑ não soubestes pela carta que encontrastes na algibeira do miserável morto que ela está num convento? Está‑se muito bem num convento, e assim que o cerco de La Rochelle terminar prometo‑vos que pela minha parte...

‑ Está bem, está bem ‑ atalhou Athos. ‑ Seja, meu caro Aramis! Bem sabemos que os vossos desejos tendem para a religião.

‑ Sou mosqueteiro apenas provisoriamente ‑ declarou humildemente Aramis.

‑ Parece que não recebe notícias da amante há muito tempo ‑ disse Athos, baixinho. ‑ Mas não ligueis importância, já sabemos o que isso é.

‑ Parece‑me que haveria um meio muito simples ‑ insinuou Porthos.

‑ Qual? ‑ perguntou d'Artagnan.

‑ Ela está num convento, não é o que dizeis? ‑ prosseguiu Porthos. ‑Está.

‑ Então, assim que o cerco terminar, raptamo‑la do convento.

‑ Mas ainda falta saber em que convento está.

‑ Exacto ‑ concordou Porthos.

‑ Mas, se me não engano, não fostes vós, caro d'Artagnan que di sestes que a rainha escolheu esse convento para ela? ‑ perguntou Athos.

‑ Sim, pelo menos é o que julgo.

‑ Nesse caso, Porthos ajudar‑nos‑á lá dentro.

‑ Como? quereis fazer o favor de me dizer?

‑ Por intermédio da vossa marquesa, da vossa duquesa, da vossa princesa, que deve ter o braço comprido.

‑ Caluda! ‑ pediu Porthos, pondo um dedo nos lábios. ‑ Creio que é cardinalista e portanto não deve saber de nada.

‑ Visto isso, eu me encarrego de saber notícias ‑ prometeu Aramis.

‑ Vós?! ‑ exclamaram os três amigos. ‑ E como?

‑ Por intermédio do capelão da rainha, com quem estou muito relacionado... ‑ respondeu Aramis, corando.

E depois desta promessa, os quatro amigos, que tinham acabado a sua modesta refeição, separaram‑se depois de combinarem voltar a encontrar‑se nessa mesma noite. D'Artagnan regressou aos Mínimos e os três mosqueteiros voltaram para o quartel do rei, onde tinham de tratar do seu alojamento.

 

         A ESTALAGEM DO POMBAL VERMELHO

Assim que chegou ao acampamento, o rei, que estava tão ansioso por se encontrar diante do inimigo, e que, com melhor direito do que o cardeal, compartilhava o seu rancor contra Buckingham, quis tomar todas as disposições, primeiro para expulsar os Ingleses da ilha de Ré e depois para abreviar o cerco de La Rochelle. Mas mal‑grado seu foi retardado pelas dissensões que rebentaram entre os Srs. de Bassompierre e Schomberg contra o duque de Angoulême.

Os Srs. de Bassompierre e de Schomberg eram marchais de França e reclamavam o seu direito de comandar o Exército sob as ordens do rei; mas o cardeal, que receava que Bassompierre, huguenote no fundo do coração, atacasse fracamente os Ingleses e os Rocheleses, seus irmãos em religião, insistia pelo contrário no duque de Angoulême, que o rei, por sua instigação, nomeara tenente‑general. Resultado: sob pena de ver os Srs. de Bassompierre e Schomberg desertarem do Exército, o rei viu‑se obrigado a dar a cada um o seu comando pessoal. Bassompierre tomou posições ao norte da cidade, desde La Leu até Dompierre; o duque de Angoulême a leste, desde Dompierre até Périgny, e o Sr. de Schomberg ao sul, desde Périgny até Angoulins.

Monsieur estava instalado em Dompierre.

O rei instalava‑se ora em Etré, ora em La Jarrie. Finalmente, o cardeal encontrava‑se instalado nas dunas, na Ponte de La Pierre, numa casa simples, sem nenhuma protecção.

Deste modo, Monsieur vigiava Bassompierre; o rei, o duque de Angoulême. e o cardeal, o Sr. de Schomberg.

Uma vez esta organização estabelecida, ocuparam‑se de expulsar os Ingleses da ilha.

A conjuntura era favorável: os Ingleses, que necessitam antes de mais nada de bons víveres para serem bons soldados, como só comiam carne salgada e ruins biscoitos, tinham muitos doentes no seu campo; além disso, o mar, agitadíssimo naquela época do ano em todas as costas do Atlântico, afundava todos os dias algum naviozinho; e a praia, desde a ponta do Aiguillon até à trincheira, ficava literalmente, todas as marés, coberta de destroços de lanchões, de roberges e de faluchos; logo, mesmo que as tropas reais permanecessem no seu campo, era evidente que mais dia menos dia Buckingham, que só se mantinha na ilha de Ré por teimosia, seria obrigado a levantar o cerco.

Mas como o Sr. de Toiras informasse de que tudo se preparava no campo inimigo para novo assalto, o rei achou que se devia acabar com aquilo e deu as ordens necessárias para um ataque decisivo.

Como a nossa intenção não é escrever um diário do cerco, mas pelo contrário relatar dele apenas os acontecimentos relacionados com a história que narramos, limitamo‑nos a dizer em duas palavras que a empresa foi bem sucedida, com grande espanto do rei e maior glória do Sr. Cardeal. Os Ingleses, repelidos passo a passo, batidos em todos os recontros, esmagados na passagem da ilha de Loix, foram obrigados a reembarcar, deixando no campo de batalha dois mil homens, entre os quais cinco coronéis, três tenentes‑coronéis, duzentos e cinquenta capitães e vinte gentis‑homens de qualidade, quatro canhões e sessenta bandeiras, que foram levadas para Paris por Claude de Saint‑Simon e suspensas com grande pompa das abóbadas de Notre‑Dame.

Cantaram‑se Te Deum no campo, e de lá espalharam‑se por toda a França.

O cardeal ficou portanto em condições de prosseguir com o cerco sem ter, pelo menos momentaneamente, nada a temer da parte dos Ingleses.

Mas como acabamos de dizer, o repouso era apenas momentâneo. Um enviado do duque de Buckingham, chamado Montaigu, fora capturado e adquirira‑se a prova de uma liga entre o Império, a Espanha, a Inglaterra e a Lorena.

Essa liga era dirigida contra a França.

Além disso, no alojamento de Buckingham, que fora obrigado a abandonar mais precipitadamente do que imaginara, tinham‑se encontrado documentos que confirmavam tal liga e que, ao que afirma o Sr. Cardeal nas suas Memórias comprometiam muito a Sr.a de Chevreuse e portanto a rainha.

Toda a responsabilidade pesava sobre o cardeal, pois não se é ministro absoluto sem se ser responsável; por isso, todos os recursos do seu vasto génio estavam em actividade noite e dia, ocupados a escutar o menor ruído que se elevasse de algum dos grandes reinos da Europa.

O cardeal conhecia a actividade e sobretudo o ódio de Buckingham. Se a liga que ameaçava a França triunfasse, toda a sua influência estaria perdida: a política espanhola e a política austríaca tinham os seus representantes no Gabinete do Luvre, onde só contavam partidários, ele, Richelieu, o ministro francês, o ministro nacional por excelência, es taria perdido. O rei, que lhe obedecia em tudo como uma criança, odiava‑o como uma criança odeia o seu mestre, e abandoná‑lo‑ia às vinganças reunidas de Monsieur e da rainha. Estaria perdido, e talvez a França com ele. Era preciso evitar tudo isso.

Viram‑se assim os correios, cada vez mais numerosos, sucederem‑se noite e dia na casinha da Ponte de La Pierre, onde o cardeal estabelecera a sua residência.

Eram frades que usavam tão mal o hábito que facilmente se reconhecia pertencerem à Igreja militante; mulheres um pouco constrangidas nos seus fatos de pajens e cujos largos calções não conseguiam dissimular as formas arredondadas; finalmente, camponeses de mãos enegrecidas, mas de perna fina e que cheiravam a homem de qualidade a uma légua de distância.

Havia ainda outras visitas menos agradáveis, pois duas ou três vezes ocorrera o boato de que o cardeal estivera prestes a ser assassinado.!

É certo que os inimigos de Sua Eminência diziam ser ele próprio que punha em campo os assassinos desajeitados, a fim de ter, se necessário, o direito de empregar represálias; mas não se deve acreditar nem no que dizem os ministros, nem no que dizem os seus inimigos.

O que aliás não impedia o cardeal, a quem os seus encarniçados detractores nunca contestaram a bravura pessoal, de fazer numerosas cavalgadas nocturnas, ora para se ir entender com o rei, ora para ir conferenciar com algum mensageiro que não queria que entrasse em sua casa.

Pela sua parte os mosqueteiros, que não tinham grande coisa que fazer no cerco, não estavam equipados rigorosamente e levavam vida alegre. Isso era tanto mais fácil, sobretudo aos nossos três companheiros, quanto é certo que sendo amigos do Sr. de Tréville obtinham facilmente dele autorização para recolher mais tarde e ficar fora depois do encerramento do campo com dispensas particulares.

Ora, uma noite em que d'Artagnan estava de serviço nas trincheiras e não os pudera acompanhar, Athos, Porthos e Aramis, montados nos seus cavalos de batalha e envoltos em capas de guerra, com a mão nas coronhas das pistolas, regressavam os três de uma cantina que Athos descobrira dois dias antes na estrada de La Jarrie e que se chamava o Pombal Vermelho, seguindo o caminho que levava ao acampamento, precavidos, como dissemos, com receio de alguma emboscada, quando julgaram ouvir, a cerca de um quarto de légua da aldeia de Boisnar, o tropel de uma cavalgada que vinha na sua direcção; imediatamente todos três pararam, encostados uns aos outros, e esperaram no meio da estrada.

Pouco depois, e como a Lua saísse precisamente de uma nuvem, viram aparecer numa curva do caminho dois cavaleiros que, ao vê‑los, pararam por seu turno, parecendo deliberar se deveriam continuar o seu caminho ou voltar para trás. Esta hesitação despertou algumas suspeitas aos três amigos, pelo que Athos deu alguns passos em frente e gritou na sua voz firme:

‑ Quem vem lá?

‑ Quem vem lá perguntamos nós ‑ respondeu um dos dois cavaleiros.

‑ Isso não é resposta! ‑ redarguiu Athos. ‑ Quem vem lá? Respondei ou carregamos.

‑ Vede o que ides fazer, senhores ‑ disse então uma voz vibrante, que parecia habituada a comandar.

‑ Deve ser algum oficial superior que anda na sua ronda nocturna ‑ disse Athos. ‑ Que quereis fazer, senhores?

‑ Quem sois? ‑ insistiu a mesma voz no mesmo tom de comando.

‑ Respondei ou a vossa desobediência acarretar‑vos‑á algum dissabor.

‑ Mosqueteiros do rei ‑ respondeu Athos, cada vez mais convencido de que quem os interrogava tinha esse direito.

‑ De que companhia?

‑ Companhia de Tréville.

‑ Avançai em ordem e vinde dar‑me conta do que fazeis aqui a esta hora.

Os três companheiros avançaram de orelha um pouco murcha, pois todos três estavam convencidos de que se encontravam perante alguém mais forte do que eles; por fim, deixaram a Athos o cuidado de falar.

Um dos dois cavaleiros, aquele que tomara a palavra em segundo lugar, estava a dez passos à frente do companheiro; Athos fez sinal a Porthos e Aramis para ficarem também para trás e avançou sozinho.

‑ Perdão, meu oficial, mas ignorávamos com quem estávamos a falar, e como vedes fazíamos boa guarda ‑ disse Athos.

‑ O vosso nome? ‑ perguntou o oficial, que cobria parte do rosto com a capa.

‑ E vós, senhor? ‑ redarguiu Athos, que começava a revoltar‑se contra aquele interrogatório. ‑ Dai‑nos, peço‑vos, a prova de que tendes o direito de me interrogar.

‑ O vosso nome? ‑ perguntou pela segunda vez o cavaleiro, deixando cair a capa de maneira a ficar com a cara descoberta.

‑ O Sr. Cardeal! ‑ exclamou o mosqueteiro, estupefacto.

‑ O vosso nome? ‑ pediu pela terceira vez Sua Eminência.

‑ Athos ‑ respondeu o mosqueteiro.

O cardeal fez um sinal ao escudeiro, que se aproximou.

‑ Estes três mosqueteiros acompanhar‑nos‑ão ‑ disse em voz baixa. ‑ Não quero que se saiba que saí do acampamento, e acompanhando‑nos teremos a certeza de que não o dirão a ninguém.

‑ Somos gentis‑homens, Monsenhor ‑ redarguiu Athos. ‑ Pedi‑nos portanto a nossa palavra e não vos preocupeis com mais nada. Graças a Deus, sabemos guardar um segredo.

O cardeal cravou os olhos penetrantes no seu atrevido interlocutor.

‑ Tendes bom ouvido, Sr. Athos ‑ observou. ‑ Mas agora escutai isto: não é por desconfiança que vos peço que me sigais, é para minha segurança. Sem dúvida os vossos dois companheiros são os Srs. Porthos e Aramis?

‑ Pois são, Eminência ‑ respondeu Athos, enquanto os dois mosqueteiros, que tinham ficado para trás se aproximavam de chapéu na mão.

‑ Conheço‑vos, senhores, conheço‑vos ‑ disse o cardeal. ‑ Sei que não sois inteiramente meus amigos, o que me desgosta, mas também sei que sois bravos e leais gentis‑homens e que se pode confiar em vós, Sr. Athos, dai‑me portanto a honra de me acompanhardes, vós e os VOssos dois amigos, e terei uma escolta de causar inveja a Sua Majestade se o encontrarmos.

Os três mosqueteiros inclinaram‑se até ao pescoço dos cavalos.

‑ Bom, pela minha honra, Vossa Eminência tem razão em levar‑nos consigo ‑ disse Athos. ‑ Deparámos na estrada com caras horríveis e até tivemos com quatro dessas caras uma disputa no Pombal Vermelho.

‑ Uma disputa, e porquê, senhores? ‑ perguntou o cardeal. ‑ Não gosto de disputas, como sabeis!

‑ É precisamente por isso que tenho a honra de prevenir Vossa Eminência do que acaba de acontecer; porque poderia sabê‑lo por ou tros em vez de por nós e, baseado num relatório falso, considerar‑nos culpados.

‑ E quais foram os resultados dessa disputa? ‑ perguntou o cardeal, franzindo o sobrolho.

‑ O meu amigo Aramis, aqui presente, recebeu uma pequena espadeirada no braço, mas isso não o impedirá, como Vossa Eminência poderá ver, de subir ao assalto amanhã, se Vossa Eminência ordenar a escalada.

‑ Mas vós não sois homens para deixar que vos dêem espadeiradas assim, sem mais nem menos ‑ observou o cardeal. ‑ Vamos, sede francos, senhores, com certeza vos desforrastes com algumas; confessai, bem sabeis que tenho o direito de dar a absolvição.

‑ Eu, Monsenhor, nem sequer empunhei a espada ‑ declarou Athos. ‑ Peguei pelo meio do corpo no que me calhou e atirei‑o pela janela; parece que quando caiu ‑ acrescentou Athos com alguma hesitação ‑, partiu uma perna.

‑ Oh! ‑ exclamou o cardeal. ‑ E vós, Sr. Portos?

‑ Eu, Monsenhor, sabendo que o duelo é proibido, peguei num banco e descarreguei num daqueles bandidos uma pancada que creio lhe partiu o ombro.

‑ Muito bem ‑ disse o cardeal. ‑ E vós, Sr. Aramis?

‑ Eu, Monsenhor, como sou de temperamento muito pacato e como, aliás, o que Monsenhor talvez não saiba, estou prestes a tomar ordens, quis separar os meus camaradas, mas um dos miseráveis deu‑me traiçoeiramente uma espadeirada que me atravessou o braço esquerdo. Então, perdi a paciência, desembainhei por minha vez a espada e quando ele voltou à carga creio ter sentido que ao lançar‑se sobre mim ele próprio se trespassou de lado a lado. Só o vi cair, mas parece‑me que o levaram com os seus dois companheiros.

‑ Diabo, senhores, três homens fora de combate por uma disputa de taberna, é caso para dizer que lhes chegaram bem! ‑ comentou o cardeal. ‑ E a que propósito foi a disputa?

‑ Os miseráveis estavam ébrios ‑ respondeu Athos ‑ e como sabiam que à noite chegara uma mulher à estalagem, queriam arrombar‑lhe a porta.

‑ Arrombar‑lhe a porta! ‑ exclamou o cardeal. ‑ E para quê?

‑ Para a violarem, sem dúvida ‑ respondeu Athos. ‑ Já tive a honra de dizer a Vossa Eminência que os miseráveis estavam ébrios.

‑ E a mulher era nova e bonita? ‑ perguntou o cardeal, com certa inquietação.

‑ Não a vimos, Monsenhor ‑ respondeu Athos.

‑ Não a vistes... Muito bem ‑ prosseguiu vivamente o cardeal. ‑ Fizestes bem em defender a honra de uma mulher, e como é à Estalagem do Pombal Vermelho que eu próprio vou, saberei se me dissestes a verdade.

‑ Monsenhor ‑ redarguiu orgulhosamente Athos ‑, somos gentis‑homens e para salvar a cabeça não mentiríamos.

‑ Por isso não duvido do que me dizeis, Sr. Athos, não duvido um só instante. Mas ‑ acrescentou para mudar de assunto ‑, essa dama estava sozinha?

‑ A dama tinha um cavalheiro fechado com ela ‑ respondeu Athos. ‑ Mas como, apesar do barulho, o tal cavalheiro não apareceu, é de presumir que seja um cobarde.

‑ Não julgueis temerariamente, diz o Evangelho ‑ replicou o cardeal.

Athos inclinou‑se.

‑ E agora, senhores ‑ continuou Sua Eminência ‑, já sei o que queria saber; segui‑me.

Os três mosqueteiros passaram para trás do cardeal, que envolveu de novo a cara na capa e pôs o cavalo em andamento, mantendo‑se oito a dez passos à frente dos seus quatro companheiros.

Em breve chegaram à estalagem, silenciosa e solitária; sem dúvida o estalajadeiro sabia que ilustre visitante esperava e, por conseguinte, mandara embora os importunos.

A dez passos da porta, o cardeal fez um sinal ao seu escudeiro e aos três mosqueteiros que parassem; um cavalo selado estava preso ao postigo, o cardeal bateu três pancadas de uma maneira especial.

Um homem embrulhado numa capa saiu imediatamente e trocou umas rápidas palavras com o cardeal; depois montou a cavalo e partiu na direcção de Surgères, que era a mesma de Paris.

‑ Avançai, senhores ‑ disse o cardeal. ‑ Vós dissestes‑me a verdade, meus gentis‑homens ‑ disse ele, dirigindo‑se aos três mosqueteiros ‑, não será por minha causa que o nosso encontro desta noite deixará de ser vantajoso para vós; entretanto, segui‑me.

O cardeal apeou‑se, os três mosqueteiros fizeram o mesmo; o cardeal lançou as rédeas do cavalo para as mãos do seu escudeiro, os três mosqueteiros prenderam as rédeas dos respectivos cavalos nos postigos.

O dono da estalagem estava à porta; para ele, o cardeal não passava de um oficial que vinha visitar uma dama.

‑ Tendes alguma sala no piso térreo onde estes senhores me possam esperar ao pé duma bela lareira? ‑ disse o cardeal.

O estalajadeiro abriu a porta de uma grande sala, em que justamente um fogão ruim acabava de ser substituído por uma grande e excelente lareira.

‑ Tenho esta sala ‑ respondeu ele.

‑ Está bem ‑ disse o cardeal. ‑ Entrai, senhores, e tende a bondade de esperar por mim; não demorarei mais de meia hora.

E, enquanto os três mosqueteiros entraram na sala do piso térreo, o cardeal, sem pedir mais amplas informações, subiu a escada como quem não precisa que lhe indiquem o caminho.

 

         DA UTILIDADE DAS CHAMINÉS

Era evidente que, sem saberem e movidos unicamente pelo seu carácter cavalheiresco e aventureiro, os nossos três amigos acabavam de prestar um serviço a alguém que o cardeal honrava com a sua protecção particular.

Afinal quem era esse alguém? Foi a pergunta que os três mosqueteiros começaram por fazer; depois, vendo que nenhuma das respostas que a sua inteligência lhes podia fornecer era satisfatória, Porthos chamou o dono da estalagem e pediu‑lhe uns dados.

Porthos e Aramis sentaram‑se a uma mesa e puseram‑se a jogar. Athos passeou, reflectindo.

Reflectindo e pensando, Athos passava e tornava a passar diante da chaminé do fogão, meio partida, cuja extremidade oposta dava para o quarto de cima, e, cada vez que passava e tornava a passar, ouvia um murmúrio de palavras que acabou por prender a sua atenção. Athos aproximou‑se e distinguiu algumas palavras que lhe pareceram merecer um interesse tão grande que fez sinal aos seus companheiros que se calassem, ficando por sua vez curvado e atento, à altura do orifício inferior.

‑ Escutai, Milady ‑ dizia o cardeal ‑, o caso é importante; sentai‑vos ali e conversemos.

‑ Milady! ‑ murmurou Athos.

‑ Escuto Vossa Eminência com a maior atenção ‑ respondeu uma voz de mulher que fez estremecer o mosqueteiro.

‑ Um pequeno navio com tripulação inglesa, cujo capitão é dos meus, espera‑vos na foz do Charente, no forte de La Pointe; far‑se‑á ao largo amanhã de manhã.

‑ Devo então dirigir‑me para lá esta noite?

‑ Agora mesmo, quer dizer, quando tiverdes recebido as minhas instruções. Dois homens que encontrareis à porta quando sairdes servir‑vos‑ão de escolta; deixar‑me‑eis sair primeiro; em seguida, meia hora depois de mim, saireis por vossa vez.

‑ Sim, Monsenhor. Agora voltemos à missão de que me quereis encarregar; e, como pretendo continuar a merecer a confiança de Vossa Eminência, dignai‑vos expô‑la em termos claros e precisos, para que eu não cometa nenhum erro.

Houve um instante de profundo silêncio entre os dois interlocutores; era evidente que o cardeal media antecipadamente os termos em que ia falar, e que Milady concentrava todas as suas faculdades intelectuais para compreender as coisas que ele ia dizer e para as gravar na memória quando fossem ditas.

Athos aproveitou este momento para dizer aos seus dois companheiros que fechassem a porta e para lhes fazer sinal que viessem escutar com ele.

Os dois mosqueteiros, que apreciavam o seu conforto, trouxeram uma cadeira para cada um deles, e uma cadeira para Athos. Então, os três sentaram‑se, aproximando as cabeças e prestando ouvidos.

‑ Ides partir para Londres ‑ continuou o cardeal. ‑ Quando chegardes a Londres, ireis ter com Buckingham.

‑ Observe Vossa Eminência ‑ disse Milady ‑ que, desde o caso das agulhetas de diamantes, pelo qual o duque suspeitou sempre de mim, Sua Graça desconfia de mim.

‑ Portanto, desta vez ‑ disse o cardeal ‑ já não se trata de captar a sua confiança, mas de se apresentar franca e lealmente perante ele como negociadora.

‑ Franca e lealmente ‑ repetiu Milady com uma indizível expressão de duplicidade.

‑ Sim, franca e lealmente ‑ tornou o cardeal no mesmo tom ‑; toda esta negociação deve ser feita a descoberto.

‑ Seguirei à letra as instruções de Sua Eminência, e aguardo que mas dê.

‑ Ireis ter com Buckingham da minha parte, e dir‑lhe‑eis que eu sei de todos os seus preparativos, mas que não me preocupo muito, pois, ao primeiro movimento que ele arriscar, perco a rainha.

‑ E ele acreditará que Vossa Eminência tem possibilidades de cumprir a ameaça que lhe faz?

‑ Sim, pois eu tenho provas.

‑ É preciso que eu possa apresentar essas provas à sua apreciação.

‑ Sem dúvida, e dir‑lhe‑eis que eu publico o relatório de Bois‑Robert e do marquês de Beautru sobre a entrevista que o duque teve com a rainha em casa da Sr.a Condestável, na noite em que esta deu um baile de máscaras; dir‑lhe‑eis, para que não duvide de nada, que ele compareceu com o traje do Grão Mongol que devia ser usado pelo Cavaleiro de Guise, e que ele lhe comprou por três mil pistolas.

‑ Muito bem, Monsenhor.

‑ Conheço todos os pormenores da sua entrada no Luvre e da sua saída durante a noite em que se introduziu no palácio vestido de adivinho italiano; dir‑lhe‑eis para que não duvide da autenticidade das minhas informações, que tinha sob a capa um amplo vestido branco semeado de lágrimas negras, de caveiras e de ossos cruzados, pois, em caso de surpresa, devia fazer‑se passar pelo fantasma da Dama Branca que, como todos sabem, volta ao Louvre sempre que está para realizar‑se um grande acontecimento.

‑ É tudo, Monsenhor?

‑ Dizei‑lhe que também sei todos os pormenores da aventura de Amiens, que mandarei fazer com eles um pequeno romance bem espirituoso, com um plano do jardim e os retratos dos principais actores dessa cena nocturna.

‑ Dir‑lhe‑ei isso.

‑ Dizei‑lhe ainda que eu tenho Montaigu na mão, que Montaigu está na Bastilha, que não se surpreendeu nenhuma carta na posse dele, é certo, mas que a tortura pode fazê‑lo dizer o que sabe, e até... o que não sabe.

‑ Perfeitamente.

‑ Enfim, acrescentai que Sua Graça, na precipitação com que abandonou a ilha de Ré, esqueceu nos seus aposentos uma certa carta da Sr.a de Chevreuse que compromete singularmente a rainha, provando não só que Sua Majestade pode amar os inimigos do rei mas também que conspira com os da França. Fixastes tudo o que vos disse, não é verdade?

‑ Vossa Eminência que o diga: o baile da Sr.a Condestável; a noite do Louvre; a noite de Amiens; a prisão de Montaigu; a carta da Sr.a de Chevreuse.

‑ É isso ‑ disse o cardeal ‑, é isso: tendes muito boa memória, Milady.

‑ Mas ‑ tornou aquela a quem o cardeal acabava de dirigir este elogio ‑, se, apesar de todas estas razões, o duque não se render e continuar a ameaçar a França?

‑ O duque está loucamente enamorado, ou melhor está tolamente enamorado ‑ prosseguiu Richelieu com profunda amargura ‑; como os antigos paladinos, empreendeu esta guerra unicamente para obter um olhar da sua amada. Se souber que esta guerra pode custar a honra e talvez a liberdade da dama dos seus pensamentos, como ele diz, garanto‑vos que pensará duas vezes.

‑ E contudo ‑ disse Milady com uma persistência que provava que queria tudo bem claro na missão de que ia ser encarregada ‑, contudo se ele persistir?

‑ Se ele persistir... ‑ disse o cardeal. ‑ Isso não é provável.

‑ É possível ‑ disse Milady.

‑ Se ele persistir... ‑ Sua Eminência fez uma pausa e continuou: ‑ Se persistir, pois bem!, depositarei as minhas esperanças num desses acontecimentos que modificam a face dos Estados.

‑ Se Sua Eminência quisesse citar‑me na história um desses acontecimentos ‑ disse Milady ‑, talvez eu partilhasse a sua confiança no futuro.

‑ Pois bem, aqui tendes! ‑ disse Richelieu. Por exemplo, quando em 1610, por uma causa muito semelhante à que move o duque, o rei Henrique IV, de gloriosa memória, ia invadir a Flandres e ao mesmo tempo a Itália para atacar a Áustria simultaneamente dos dois lados, ora bem!, não houve um acontecimento que salvou a Áustria? Por que não teria o rei de França a mesma sorte que o imperador?

‑ Vossa Eminência refere‑se à facada da Rua de la Ferronnerie?

‑ Justamente ‑ disse o cardeal.

‑ Vossa Eminência não receia que o suplício de Ravaillac assuste os que tivessem por um instante a ideia de imitá‑lo?

‑ Em todos os tempos e em todos os países, sobretudo se estes países estiverem divididos por questões religiosas, haverá fanáticos desejosos de se tornarem mártires. E vede, justamente ocorre‑me neste momento que os puritanos estão furiosos com o duque de Buckingham e que os seus pregadores o designam como o Anticristo.

‑ E então? ‑ perguntou Milady.

‑ Então ‑ continuou o cardeal com ar indiferente ‑, de momento, bastaria, por exemplo, encontrar uma mulher, bela, jovem, hábil, que tivesse de vingar‑se pessoalmente do duque. É possível encontrar essa mulher: o duque é um homem de aventuras galantes e, se despertou muitos amores com as suas promessas de constância eterna, também deve ter despertado muitos ódios com as suas eternas infidelidades.

‑ Sem dúvida ‑ disse friamente Milady ‑, é possível encontrar essa mulher.

‑ Então! Uma mulher como essa, que meteria a faca de Jacques Clément ou de Ravaillac nas mãos dum fanático, salvaria a França.

‑ Sim, mas seria cúmplice dum assassinato.

‑ Alguma vez se conhecerão os cúmplices de Ravaillac ou de Jacques Clément?

‑ Não, pois talvez estivessem muito alto para que se ousasse ir buscá‑los onde estavam: não se incendiaria o Palácio da Justiça por causa de toda a gente, Monsenhor.

‑ Pensais então que o incêndio do Palácio da Justiça não foi obra do acaso? ‑ perguntou Richelieu no tom que adoptaria para fazer uma pergunta sem nenhuma importância.

‑ Eu, Monsenhor ‑ respondeu Milady ‑, não penso nada, cito um facto e é tudo; apenas digo que, se me chamasse Menina de Montpensier ou rainha de Medíeis, tomaria menos precauções do que tomo, chamando‑me muito simplesmente Lady Clarick.

‑ É justo ‑ disse Richelieu ‑, e então o que desejaríeis?

‑ Desejaria uma ordem que ratificasse antecipadamente tudo o que me parecer que devo fazer para o bem da França.

‑ Mas, primeiro, seria preciso encontrar a mulher que eu disse, e que teria de vingar‑se do duque.

‑ Já foi encontrada ‑ disse Milady.

‑ Depois, seria preciso encontrar esse miserável fanático que servirá de instrumento à justiça de Deus.

‑ Havemos de encontrá‑lo.

‑ Pois bem! ‑ disse o duque. ‑ Então será altura de reclamar a ordem que há pouco pedíeis.

‑ Vossa Eminência tem razão ‑ disse Milady ‑, e eu fiz mal em ver na missão com que me honra uma coisa diferente daquilo que é na realidade, ou seja, anunciar a Sua Graça, da parte de Sua Eminência, que vós conheceis os diferentes disfarces graças aos quais ele conseguiu aproximar‑se da rainha durante a festa oferecida pela Sr.a Condestável; que tendes as provas da entrevista concedida no Louvre pela rainha a certo astrólogo italiano que não é senão o duque de Buckingham; que encomendastes um pequeno romance, dos mais espirituosos, sobre a aventura de Amiens, com o plano do jardim onde se passou essa aventura e retratos dos actores que nela figuraram; que Montaigu está na Bastilha, e que a tortura pode fazê‑lo dizer coisas de que se recorda e até coisas de que se teria esquecido; enfim, que possuís uma certa carta da Sr.a de Chevreuse, encontrada nos aposentos de Sua Graça, que compromete singularmente não só quem a escreveu mas também aquela em nome da qual foi escrita. Depois, se ele persistir apesar de tudo isto, como a minha missão se limita ao que acabo de dizer, só me restará pedir a Deus que faça um milagre para salvar a França. É isto mesmo, não é, Monsenhor, e não tenho outra coisa a fazer?

‑ É isso mesmo ‑ respondeu secamente o cardeal.

‑ E agora ‑ disse Milady sem dar mostras de perceber a mudança de tom do duque ‑, agora que recebi as instruções de Vossa Eminência a propósito dos seus inimigos, Monsenhor permite‑me dizer‑lhe duas palavras a propósito dos meus?

‑ Pois tendes inimigos? ‑ perguntou Richelieu.

‑ Sim, Monsenhor; inimigos contra os quais me deveis todo o vosso apoio, pois fi‑los ao serviço de Vossa Eminência.

‑ E quais são? ‑ replicou o duque.

‑ Primeiro, uma pequena intrigante de nome Bonacieux.

‑ Está na prisão de Mantes.

‑ Estava, quereis dizer ‑ retorquiu Milady ‑, mas a rainha surpreendeu uma ordem do rei, graças à qual a mandou transportar para um convento.

‑ Para um convento? ‑ disse o duque.

‑ Sim, para um convento.

‑ E para qual?

‑ Ignoro, o segredo foi bem guardado.

‑ Eu hei‑de saber!

‑ E Vossa Eminência dir‑me‑á em que convento se encontra essa mulher?

‑ Não vejo inconveniência nisso ‑ disse o cardeal.

‑ Muito bem; agora tenho outro inimigo muito mais temível para mim do que essa pequena Sr.a Bonacieux.

‑ E qual?

‑ O seu amante.

‑ Como se chama?

‑ Oh! Vossa Eminência conhece‑o muito bem ‑ exclamou Milady arrebatada pela cólera ‑, é o nosso génio mau; é aquele que numa rixa com os guardas de Vossa Eminência, decidiu a vitória a favor dos mosqueteiros do rei; é aquele que espetou três vezes a espada em Wardes, o vosso emissário, e que fez fracassar o caso das agulhetas; é aquele, enfim, que, sabendo que fora eu que raptara a Sr.a Bonacieux, jurou a minha morte.

‑ Ah! Ah! ‑ disse o cardeal. ‑ Já sei de quem falais.

‑ Falo desse miserável d'Artagnan.

‑ É um valente ‑ disse o cardeal.

‑ E é justamente por ser um valente que se torna mais temível.

‑ Seria necessário ‑ disse o duque ‑ ter uma prova dos seus contactos com Buckingham.

‑ Uma prova! ‑ exclamou Milady. ‑ Eu arranjarei dez.

‑ Pois bem, então é a coisa mais simples do mundo. Arranjai‑me essa prova e eu envio‑o para a Bastilha.

‑ Muito bem, Monsenhor! E depois?

‑ Quando se está na Bastilha não há e depois ‑ disse o cardeal com voz surda. ‑ Ah! Palavra ‑ continuou ‑, se me fosse tão fácil livrar‑me do meu inimigo como me é fácil livrar‑me dos vossos, e se fosse contra gente como essa que me pedísseis a impunidade!...

‑ Monsenhor ‑ retorquiu Milady ‑, troca por troca, vida por vida, homem por homem; dai‑me esse e eu dou‑vos o outro.

‑ Não sei o que quereis dizer ‑ respondeu o cardeal ‑, nem quero saber, mas desejo ser‑vos agradável e não vejo nenhum inconveniente em dar‑vos o que me pedis relativamente a uma criatura tão insignificante; tanto mais que, como me dizeis, esse pequeno d'Artagnan é um libertino, um duelista, um traidor.

‑ Um infame, Monsenhor, um infame!

‑ Dai‑me pois papel, uma pena e tinta ‑ disse o cardeal.

‑ Aqui tendes, Monsenhor.

Fez‑se um instante de silêncio que provava que o cardeal estava ocupado a procurar os termos em que devia ser escrito o bilhete, ou mesmo escrevê‑lo. Athos, que não perdera uma palavra da conversa, deu a mão a cada um dos seus companheiros e conduziu‑os ao outro canto da sala.

‑ Então ‑ disse Porthos ‑, que queres e por que não nos deixas escutar o fim da conversa?

‑ Chiu! ‑ disse Athos, falando em voz baixa. ‑ Já ouvimos tudo o que tínhamos de ouvir; de resto, não vos impeço de escutar o resto, mas eu tenho de sair.

‑ Tens de sair! ‑ disse Porthos. ‑ E se o cardeal te mandar chamar, que responderemos?

‑ Não espereis que me mande chamar, dizei‑lhe primeiro que eu parti como batedor porque certas palavras do nosso estalajadeiro me deram razões para pensar que o caminho não era seguro; primeiro direi duas palavras ao escudeiro do cardeal; o resto é comigo, não vos preocupeis.

‑ Sede prudente, Athos! ‑ disse Aramis.

‑ Ficai tranquilo ‑ respondeu Athos ‑, bem sabeis que tenho sangue‑frio.

Porthos e Aramis voltaram para o seu lugar junto da chaminé.

Quanto a Athos, saiu sem nenhum mistério, foi buscar o cavalo preso com o dos seus amigos nos torniquetes dos postigos, com quatro palavras convenceu o escudeiro da necessidade de uma guarda avançada para o regresso, examinou com afectação a escorva das pistolas, pôs a espada entre os dentes e seguiu, sozinho, a estrada que conduzia ao acampamento.

 

         CENA CONJUGAL

Como Athos previra, o cardeal não tardou a descer; abriu a porta da sala onde os três mosqueteiros tinham entrado, e encontrou Porthos jogando encarniçadamente os dados com Aramis. Num relance, vasculhou todos os cantos da sala, e viu que lhe faltava um dos seus homens.

‑ Que aconteceu ao Sr. Athos? ‑ perguntou.

‑ Monsenhor ‑ respondeu Porthos ‑, ele saiu como batedor por causa de uns dizeres do nosso estalajadeiro, que o fizeram crer que a estrada não era segura.

‑ E vós que fizestes, Sr. Porthos?

‑ Ganhei cinco pistolas a Aramis.

‑ E agora, podeis voltar comigo?

‑ Estamos às ordens de Vossa Eminência.

‑ Então, a cavalo, meus senhores, pois faz‑se tarde.

O escudeiro estava à porta, e segurava as rédeas do cavalo do cardeal. Um pouco mais longe, um grupo de dois homens e três cavalos aparecia na sombra; estes dois homens eram os que deviam conduzir Milady ao forte de La Pointe, e vigiar o seu embarque.

O escudeiro confirmou ao cardeal o que os dois mosqueteiros já lhe haviam dito a propósito de Athos. O cardeal fez um gesto de aprovação, e pôs‑se a caminho, rodeando‑se no regresso das mesmas precauções que tomara à partida.

Deixemo‑lo seguir o caminho do campo, protegido pelo escudeiro e pelos dois mosqueteiros, e voltemos a Athos.

Durante uma centena de passos, Athos seguira com o mesmo galope; mas, uma vez fora de vista, lançara o cavalo para a direita, fizera um desvio, e voltara uns vinte passos atrás, no talude, para espreitar a passagem do pequeno grupo; tendo reconhecido os chapéus debruados dos seus companheiros e a franja dourada da capa do Sr. Cardeal, esperou que os cavaleiros dobrassem a curva da estrada e, quando os perdeu de vista, voltou a galopar à estalagem, cuja porta lhe foi aberta sem dificuldade.

O estalajadeiro reconheceu‑o.

‑ O meu oficial ‑ disse Athos ‑ esqueceu‑se de fazer uma recomendação importante à dama do primeiro andar e enviou‑me para reparar o seu esquecimento.

‑ Subi ‑ disse o estalajadeiro ‑, ela ainda está no quarto.

Athos aproveitou a permissão, subiu a escada com o passo mais ligeiro que tinha, chegou ao patamar e, através da porta entreaberta, viu Milady, prendendo as fitas do chapéu.

Entrou no quarto e fechou a porta.

Ao ruído que ele fez correndo o ferrolho, Milady virou‑se para trás.

Athos estava de pé diante da porta, embrulhado na sua capa, com o chapéu caído sobre os olhos.

Ao ver esta figura muda e queda como uma estátua, Milady teve medo.

‑ Quem sois e que quereis? ‑ exclamou.

‑ É mesmo ela! ‑ murmurou Athos.

E, deixando cair a capa e reerguendo o chapéu de feltro, avançou para Milady.

‑ Reconheceis‑me, minha senhora?

Milady deu um passo em frente, depois recuou como se tivesse visto uma serpente.

‑ Vamos ‑ disse Athos ‑, está bem, vejo que me reconheceis.

‑ O conde de La Fere! ‑ murmurou Milady empalidecendo e recuando até que a parede a impediu de ir mais longe.

‑ Sim, Milady ‑ respondeu Athos ‑, o conde de La Fere em pessoa, que vem expressamente do outro mundo para ter o prazer de vos ver. Sentai‑vos, pois, e conversemos, como diz Monsenhor o cardeal.

Milady, dominada por um terror inexprimível, sentou‑se sem proferir uma palavra.

‑ Sois então um demónio enviado à terra? ‑ disse Athos. ‑ O vosso poder é grande, bem sei; mas vós também sabeis que, com a ajuda de Deus, os homens venceram muitas vezes os demónios mais terríveis. Já vos atravessastes no meu caminho, eu julgava que vos tinha vencido, minha senhora; mas, ou eu me enganava ou o inferno vos ressuscitou, i

Ao ouvir estas palavras que lhe traziam lembranças pavorosas, Milady baixou a cabeça com um gemido surdo.

‑ Sim, o inferno vos ressuscitou ‑ continuou Athos ‑, o inferno vos fez rica, o inferno vos deu outro nome, o inferno quase vos deu outro rosto; mas não apagou nem as máculas da vossa alma nem a baixeza do vosso corpo.

Milady ergueu‑se como que impelida por uma mola e os seus olhos lançaram chispas. Athos ficou sentado.

‑ Julgáveis‑me morto, não é verdade, como eu vos julgava morta? E o nome Athos escondera o conde de La Fere, como o nome milady Clarick escondera Anne de Breuil! Não era assim que vos chamáveis quando o vosso honrado irmão nos casou? A nossa situação é realmente estranha ‑ prosseguiu Athos a rir ‑, até agora um e outro apenas vivemos porque nos julgávamos mortos, e porque uma lembrança incomoda menos que uma criatura, embora, por vezes, seja uma coisa que devora!

‑ Mas, enfim ‑ disse Milady com voz surda ‑, que vos traz até mim? E que quereis de mim?

‑ Quero dizer‑vos que, embora permanecendo invisível para os vossos olhos, eu não vos perdi de vista!

‑ Sabeis o que fiz?

‑ Posso contar‑vos dia após dia as vossas acções, desde a vossa entrada ao serviço do cardeal até esta noite.

Um sorriso de incredulidade passou pelos lábios pálidos de Milady.

‑ Escutai: fostes vós que cortastes as duas agulhetas de diamantes do ombro do duque de Buckingham; fostes vós que mandastes raptar a Sr.a Bonacieux; fostes vós que, enamorada de De Wardes e julgando passar a noite com ele, abristes a vossa porta ao Sr. d'Artagnan; fostes vós que, pensando que De Wardes vos enganara, quisestes mandar o seu rival matá‑lo; fostes vós que, quando o seu rival descobriu o vosso infame segredo, quisestes mandar matá‑lo por sua vez, enviando dois assassinos em sua perseguição; fostes vós que, vendo que as balas haviam falhado o seu alvo, enviastes vinho envenenado com uma carta falsa, para fazer crer à vítima que esse vinho fora mandado pelos seus amigos; fostes vós, enfim, que viestes aqui, a este quarto, sentada nesta cadeira onde eu estou, assumir com o cardeal de Richelieu o compromisso de mandar assassinar o duque de Buckingham, em troca da promessa que ele vos fez de vos deixar assassinar d'Artagnan.

Milady estava lívida.

‑ Mas então vós sois Satã? ‑ disse ela.

‑ Talvez ‑ disse Athos ‑; mas, em todo o caso, escutai bem o seguinte: Assassinai ou mandai assassinar o duque de Buckingham, pouco me importa! Não o conheço: de resto, é um inglês; mas não toqueis num cabelo de d'Artagnan, que é um amigo fiel que eu estimo e defendo, ou, eu vos juro por meu pai, o crime que cometerdes será o último.

‑ O Sr. d'Artagnan ofendeu‑me cruelmente ‑ disse Milady com voz surda ‑, o Sr. d'Artagnan morrerá.

‑ Na verdade, é possível que vos ofendam, minha senhora? ‑ disse Athos a rir. ‑ Ele ofendeu‑vos e morrerá?

‑ Morrerá ‑ replicou Milady ‑, primeiro ela, depois ele.

Athos teve como que uma vertigem: a vista daquela criatura, que nada tinha duma mulher, trouxe‑lhe lembranças terríveis; pensou que, um dia, numa situação menos perigosa do que aquela em que se encontrava, já havia querido sacrificá‑la à sua honra; o seu desejo de assassínio voltou‑lhe, escaldante, e invadiu‑o como uma febre ardente: ergueu‑se por sua vez, levou a mão ao cinto, tirou uma pistola e engatilhou‑a.

Milady, pálida como um cadáver, quis gritar, mas a sua língua gelada só pôde proferir um som rouco que nada tinha da palavra humana e que parecia o arquejar dum bicho selvagem; colada à escura tapeçaria, ela surgia, com os cabelos espalhados, como a imagem pavorosa do terror.

Athos levantou lentamente a pistola, estendeu o braço de maneira que a arma quase tocasse a fronte de Milady, depois, com uma voz ainda mais terrível porquanto tinha a calma suprema duma inflexível resolução:

‑ Minha senhora ‑ disse ele ‑, ides entregar‑me neste mesmo instante o papel que o cardeal vos assinou, ou, pela minha alma, faço‑vos saltar os miolos.

Com outro homem, Milady poderia conservar algumas dúvidas, mas conhecia Athos; todavia, permaneceu imóvel.

‑ Tendes um segundo para vos decidirdes ‑ disse ele.

Pela contracção do seu rosto, Milady viu que o tiro ia ser disparado; levou vivamente a mão ao peito, tirou um papel e estendeu‑o a Athos.

‑ Aqui tendes ‑ disse ela ‑, e maldito sejais.

Athos pegou no papel, tornou a meter a pistola no cinto, aproximou‑se do candeeiro para se certificar de que era mesmo aquele e leu:

Foi por minha ordem e para bem do Estado que o portador da presente fez o que fez. 5 de Dezembro de 1627

         RICHELIEU

 

‑ E agora ‑ disse Athos, pegando na capa e pondo o chapéu na cabeça ‑, agora que te arranquei os dentes, víbora, morde se puderes.

E saiu do quarto sem olhar para trás.

À porta, encontrou os dois homens e o cavalo que seguravam.

‑ Meus senhores ‑ disse ele ‑, como sabeis, a ordem de Monsenhor é conduzir esta mulher, sem perda de tempo, ao forte de La Pointe e só a largar quando estiver a bordo.

Como estas palavras concordavam efectivamente com a ordem que haviam recebido, eles inclinaram a cabeça em sinal de assentimento.

Quanto a Athos, saltou para a sela e partiu a galope; porém, em vez de ir pela estrada, seguiu através dos campos esporeando vigorosamente o cavalo e parando de vez em quando para escutar.

Numa destas paragens, ouviu na estrada o passo de vários cavalos. Não duvidou de que fosse o cardeal e a sua escolta. Imediatamente tornou a avançar, esfregou o cavalo com urze e folhas de árvores, e foi atravessar‑se na estrada a cerca de duzentos passos do acampamento.

‑ Quem vem lá? ‑ gritou ele de longe quando avistou os cavaleiros.

‑ Creio que é o nosso bravo mosqueteiro ‑ disse o cardeal.

‑ Sim, Monsenhor ‑ respondeu Athos ‑, ele mesmo.

‑ Sr. Athos ‑ disse o cardeal ‑, recebei os meus agradecimentos pela boa guarda que me fizestes; meus senhores, eis‑nos chegados: entrai pela porta à esquerda, a senha é Rei e Ré.

Dizendo estas palavras, o cardeal saudou com a cabeça os três amigos, e virou à direita, seguido pelo seu escudeiro, pois, nessa noite, ele próprio pernoitava no acampamento.

‑ Pois bem! ‑ disseram em uníssono Porthos e Aramis quando o cardeal ficou fora do alcance da voz. ‑ Pois bem, ele assinou o papel que ela lhe pedia.

‑ Já sei ‑ disse tranquilamente Athos ‑, pois aqui o tenho.

E os três amigos não trocaram mais nenhuma palavra até ao quartel, excepto para darem a senha às sentinelas.

Contudo, mandaram Mousqueton dizer a Planchet que o seu amo, quando fosse rendido na trincheira, devia comparecer no mesmo instante nos aposentos dos mosqueteiros.

Por outro lado, como Athos previra, Milady, encontrando à porta os homens que a esperavam, não pôs dificuldade em os seguir; bem tivera, por um instante, vontade de se fazer conduzir à presença do cardeal e de lhe contar tudo, mas uma revelação da sua parte provocaria uma revelação da parte de Athos: ela diria que Athos a tinha enforcado, mas Athos diria que ela estava marcada; pensou que mais valia ficar calada, partir discretamente, cumprir com a sua habilidade usual a difícil missão de que se encarregara, depois, cumpridas todas as coisas de modo a satisfazer o cardeal, vir reclamar‑lhe a sua vingança.

Por conseguinte, depois de ter viajado toda a noite, às sete horas da manhã estava no forte de La Pointe, às oito tinha embarcado e às nove, o navio que, com as insígnias do cardeal, era suposto partir para Bayonne, levantava âncora e rumava para a Inglaterra.

 

         O BASTIÃO SAINT‑GERVAIS

Ao chegar junto dos seus três amigos, d'Artagnan encontrou‑os reunidos no mesmo quarto: Athos reflectia, Porthos frisava o bigode. Aramis rezava as suas orações por um encantador livrinho de Horas encadernado em veludo azul.

‑ Apre, meus senhores! ‑ disse ele. ‑ Espero que o que tendes para me dizer valha a pena, senão previno‑vos de que não vos perdoarei por me terdes feito cá vir, em vez de me deixardes descansar após uma noite passada a tomar e a desmantelar um bastião. Ah! Que pena que não estivésseis lá, meus senhores! Aquilo esteve quente!

‑ Estávamos noutro sítio, onde também não estava frio! ‑ respondeu Porthos, retorcendo o bigode de uma forma que lhe era peculiar.

‑ Chiu! ‑ disse Athos.

‑ Oh! Oh! ‑ exclamou d'Artagnan, compreendendo o ligeiro franzir de sobrolho do mosqueteiro. ‑ Parece que aqui há novidade.

‑ Aramis ‑ disse Athos ‑, anteontem foste almoçar à estalagem do Parpaillot, creio eu.

‑ Sim.

‑ E que tal?

‑ Comi bastante mal, anteontem era dia de jejum, e eles só tinham carne.

‑ O quê? ‑ disse Athos. ‑ Num porto de mar não têm peixe?

‑ Dizem ‑ continuou Aramis, voltando à sua piedosa leitura ‑ que o dique que o Sr. Cardeal mandou construir o afasta para o mar alto.

‑ Mas não era isso que vos perguntava. Aramis ‑ tornou Athos ‑, perguntava‑vos se estivestes à vontade e se ninguém vos incomodou.

‑ Parece‑me que não tivemos muitos importunos. Sim, de facto, quanto àquilo que quereis dizer, Athos, estaremos bem no Parpaillot.

‑ Então vamos ao Parpaillot ‑ disse Athos ‑, pois aqui as paredes são como folhas de papel.

D'Artagnan, que estava habituado às maneiras do seu amigo e que imediatamente reconhecia numa palavra, num gesto, num sinal da parte dele, que as circunstâncias eram graves, deu o braço a Athos e saiu com ele sem dizer nada; Porthos seguiu‑os, conversando com Aramis.

No caminho encontraram Grimaud, Athos fez‑lhe sinal para que o seguisse; Grimaud, como de costume, obedeceu em silêncio; o pobre rapaz quase acabara por não saber falar.

Chegaram à taberna do Parpaillot: eram sete horas da manhã, o dia começava a raiar; os três amigos mandaram vir o almoço, e entraram numa sala onde, como o estalajadeiro dizia, não deViam ser incomodados.

Infelizmente a hora era mal escolhida para um conciliábulo; acabava de tocar a alvorada, cada um sacudia o sono da noite, e, para afastar o ar húmido da manhã, vinha beber uma pinga na taberna: dragões, suíços, guardas, mosqueteiros, cavalaria ligeira sucediam‑se com uma rapidez que devia ser muito boa para o estalajadeiro, mas que não convinha nada aos quatro amigos. Assim, estes respondiam com muito mau humor aos cumprimentos, aos brindes e aos gracejos dos seus companheiros.

‑ Vamos! ‑ disse Athos. ‑ Ainda vamos provocar alguma querela e neste momento, isto não nos convém. D'Artagnan, contai‑me a vossa noite que depois vos contaremos a nossa.

‑ Com efeito ‑ disse um soldado da cavalaria ligeira que se bamboleava com um copo de aguardente na mão, saboreando‑o lentamente -, sim, com efeito, estáveis na trincheira esta noite, senhor guarda, e parece que tivestes contas a ajustar com os rocheleses.

D'Artagnan olhou para Athos, para saber se devia responder àquele intruso que se metia na conversa.

‑ Então ‑ disse Athos ‑, não estás a ouvir o Sr. de Busigny que te fez a honra de te dirigir a palavra? Conta o que se passou esta noite, já que estes senhores o desejam saber.

‑ Não tomastes um bastião? ‑ perguntou um suíço que tomava rum por uma caneca de cerveja.

‑ Sim senhor ‑ respondeu d'Artagnan, inclinando‑se ‑, tivemos essa honra e até, como deveis ter ouvido, introduzimos num dos ângulos um barril de pólvora que, ao rebentar, abriu uma linda brecha; sem contar que, como o bastião já não era novo, todo o resto do edifício ficou bastante abalado.

‑ E que bastião foi? ‑ perguntou um dragão que trazia espetado no sabre um ganso para assar.

‑ O bastião Saint‑Gervais ‑ respondeu d'Artagnan ‑, por trás do qual os rocheleses inquietavam os nossos trabalhadores.

‑ E a coisa esteve acesa?

‑ Esteve, esteve; perdemos cinco homens, e os rocheleses uns oito ou dez.

‑ Cos diabos! ‑ exclamou o suíço que, apesar da admirável colecção de pragas que a língua alemã possui, se habituara a praguejar em francês.

‑ Mas é provável ‑ disse o soldado de cavalaria ligeira ‑ que eles mandem esta manhã alguns pioneiros para reconstruírem o bastião.

‑ Sim, é possível ‑ disse d'Artagnan.

‑ Meus senhores ‑ disse Athos ‑, uma aposta!

‑ Ah! Sim! Uma aposta! ‑ disse o suíço.

‑ Qual? ‑ perguntou o soldado de cavalaria ligeira.

‑ Esperai ‑ disse o dragão, pousando o sabre como um espeto sóbre os dois grandes cães de ferro da chaminé ‑, já vou. Malvado estalajadeiro! Uma pingadeira imediatamente para eu não perder uma gota de gordura desta preciosa ave.

‑ Ele tem razão ‑ disse o suíço ‑, a gordura de ganso é muito boa com compotas.

‑ Pronto! ‑ disse o dragão. ‑ Agora vamos à aposta! Somos todos ouvidos, Sr. Athos!

‑ Sim, a aposta! ‑ disse o soldado de cavalaria ligeira.

‑ Ora bem! Sr. de Busigny, aposto convosco ‑ disse Athos ‑ que os meus três companheiros, senhores Porthos, Aramis, d'Artagnan e eu vamos almoçar no bastião Saint‑Gervais e que nos aguentamos lá dentro uma hora, faça o inimigo o que fizer para nos desalojar.

Porthos e Aramis entreolharam‑se; começavam a compreender.

‑ Mas ‑ disse d'Artagnan, debruçando‑se sobre o ouvido de Athos ‑, vais fazer que nos matem sem misericórdia.

‑ Bem mais mortos ficaremos ‑ respondeu Athos ‑ se não formos.

‑ Ah! Palavra! Meus sjnhores ‑ disse Porthos reclinando‑se na cadeira e frisando o bigode ‑, eis uma bela aposta, espero eu.

‑ Então aceito ‑ disse o Sr. de Busigny ‑; agora é preciso fixar o preço.

‑ Mas vós sois quatro, meus senhores ‑ disse Athos ‑, e nós somos quatro; um jantar à discrição para oito. De acordo?

‑ Perfeitamente ‑ respondeu o de Busigny.

‑ De acordo ‑ disse o suíço.

O quarto auditor que, durante toda a conversa, desempenhara um papel mudo, fez um sinal com a cabeça para mostrar que concordava com a proposta.

‑ O almoço dos senhores está pronto ‑ disse o estalajadeiro.

‑ Pois então trazei‑o ‑ disse Athos.

O estalajadeiro obedeceu. Athos chamou Grimaud, mostrou‑lhe um grande cesto que estava a um canto e fez o gesto de embrulhar nuns guardanapos as carnes que tinham sido trazidas.

‑ Mas onde ides comer o meu almoço? ‑ disse o estalajadeiro.

‑ Que vos importa ‑ disse Athos ‑ desde que vos paguem? E atirou majestosamente duas pistolas para cima da mesa.

‑ Devo dar‑vos o troco, meu oficial? ‑ disse o estalajadeiro.

‑ Não; junta só duas garrafas de vinho de Champagne, e a diferença fica para os guardanapos.

O estalajadeiro não fazia um negócio tão bom como a princípio julgara, mas compensou a coisa servindo à socapa aos quatro convivas duas garrafas de Anjou em vez das duas garrafas de vinho de Champagne.

‑ Senhor de Busigny ‑ disse Athos ‑, quereis acertar o vosso relógio pelo meu, ou permitir‑me que acerte o meu pelo vosso?

‑ Perfeitamente, senhor! ‑ disse o soldado de cavalaria ligeira, tirando do bolso um belo relógio rodeado de diamantes. ‑ Sete horas e meia ‑ disse ele.

‑ Sete horas e trinta e cinco minutos ‑ disse Athos ‑; ficamos a saber que eu avanço cinco minutos, senhor.

E, saudando os assistentes atónitos, os quatro jovens dirigiram‑se para o bastião Saint‑Gervais, seguidos por Grimaud, que levava o cesto, sem saber onde ia mas que, tendo‑se habituado com Athos à obediência passiva, nem sequer pensava em perguntar.

Enquanto estavam dentro do recinto do acampamento, os quatro amigos não trocaram uma palavra; aliás, eram seguidos por uns curiosos que, conhecendo a aposta feita, queriam saber como é que eles se iam arranjar.

Mas, logo que transpuseram a linha de circunvalação e que se acharam ao ar livre, d'Artagnan, que ignorava completamente do que se tratava, achou que era altura de pedir uma explicação.

‑ E agora, meu caro Athos ‑ disse ele ‑, tende a bondade de me dizer onde vamos.

‑ É como vedes ‑ disse Athos ‑, vamos para o bastião.

‑ E que vamos lá fazer?

‑ Bem sabeis, vamos almoçar.

‑ E por que não almoçámos no Parpaillot?

‑ Porque temos coisas muito importantes para dizer uns aos outros e era impossível conversar cinco minutos naquela estalagem com aqueles importunos todos que entram, saem, cumprimentam, acostam; aqui, ao menos ‑ continuou Athos, apontando para o bastião ‑, não nos virão importunar.

‑ Parece‑me ‑ disse d'Artagnan com aquela prudência que na sua pessoa se aliava tão bem e tão naturalmente a uma excessiva bravura ‑, parece‑me que podíamos ter encontrado algum lugar afastado nas dunas, à beira‑mar.

‑ Onde nos veriam conferenciar os quatro juntos, de modo que ao fim dum quarto de hora o cardeal seria prevenido pelos seus espiões de que tínhamos reunido conselho.

‑ Sim ‑ disse Aramis ‑, Athos tem razão: Animodvertuntur in dem senis.

‑ Um deserto não seria mau ‑ disse Porthos ‑, mas não se podendo encontrar nenhum.

‑ Não há deserto em que um pássaro não possa passar por cima da cabeça, em que um peixe não possa saltar fora d'água, em que um coelho não possa sair da sua toca, e eu acho que pássaro, peixe, coelho, tudo se fez espião do cardeal. Portanto mais vale prosseguir a nossa empresa, diante da qual já não podemos, aliás, recuar sem passarmos por uma vergonha; fizemos uma aposta, uma aposta que não podia ser prevista e cuja verdadeira causa eu desafio seja quem for a adivinhar: para a ganhar, vamos aguentar‑nos uma hora no bastião. Ou seremos atacados ou não seremos. Se não formos, teremos tempo para conversar e ninguém nos ouvirá, pois eu garanto que as paredes deste bastião não têm ouvidos; se formos, conversaremos na mesma, e além disso, defendemo‑nos, cobrir‑nos‑emos de glória. Bem vedes que só há vantagens.

‑ Sim ‑ disse d'Artagnan ‑, mas apanharemos indubitavelmente uma bala.

‑ Eh! Meu caro ‑ disse Athos ‑, bem sabeis que as balas mais temíveis não são as do inimigo.

‑ Mas parece‑me que para semelhante expedição devíamos ao menos levar os nossos mosquetes.

‑ Sois um ingénuo, amigo Porthos; por que nos havíamos de sobrecarregar com um fardo inútil?

‑ Um bom mosquete de calibre, doze cartuchos e um polvorinho diante do inimigo não me parecem inúteis.

‑ Oh! ‑ disse Athos. ‑ Não ouvistes o que disse d'Artagnan?

‑ Que disse d'Artagnan? ‑ perguntou Porthos.

‑ D'Artagnan disse que no ataque desta noite houve uns oito ou dez franceses mortos e outros tantos rocheleses.

‑ E depois?

‑ Não tiveram tempo de os despojar, não é? Pois, de momento, tinham uma coisa mais urgente a fazer.

‑ E então?

‑ Então, vamos encontrar os seus mosquetes, os seus polvorinhos e os seus cartuchos, e, em vez de quatro mosquetes e de doze balas, teremos umas quinze espingardas e uma centena de tiros a disparar.

‑ Ó Athos ‑ disse Aramis. ‑ És realmente um grande homem! Porthos inclinou a cabeça em sinal de adesão.

Apenas d'Artagnan não parecia convencido.

Sem dúvida Grimaud partilhava as dúvidas do jovem, pois, vendo que continuavam a caminhar para o bastião, coisa de que até então duvidara, puxou uma ponta da casaca do seu amo.

‑ Onde vamos? ‑ perguntou por gestos. Athos mostrou‑lhe o bastião.

Grimaud poisou o cesto no chão e sentou‑se, abanando a cabeça.

Athos tirou uma pistola do cinto, verificou se estava bem escorvada, engatilhou‑a e aproximou o cano da orelha de Grimaud.

Grimaud pôs‑se de pé como uma mola.

Então Athos fez‑lhe sinal que pegasse no cesto e que caminhasse à frente.

Grimaud obedeceu.

Tudo o que o pobre moço ganhara com esta pantomina de um instante fora passar da retaguarda para a vanguarda.

Ao chegar ao bastião, os quatro amigos viraram‑se para trás.

Mais de trezentos soldados de todas as armas estavam aglomerados à porta do acampamento, e num grupo separado podia‑se distinguir o Sr. de Busigny, o dragão, o suíço e o quarto apostador.

Athos tirou o chapéu, pô‑lo na ponta da espada e agitou‑o no ar.

Todos os espectadores responderam à sua saudação, acompanhando esta cortesia com um grande hurra que chegou até eles.

Depois disto, os quatro desapareceram no bastião, onde Grimaud já os havia precedido.

 

         O CONSELHO DOS MOSQUETEIROS

Como Athos previra, o bastião estava ocupado unicamente por uma dúzia de mortos, tanto franceses como rocheleses.

‑ Meus senhores ‑ disse Athos, que assumira o comando da expedição ‑, enquanto Grimaud vai pôr a mesa, comecemos por recolher as espingardas e os cartuchos; podemos aliás conversar enquanto executamos esta tarefa. Estes senhores ‑ acrescentou, designando os mortos ‑, não nos escutam.

‑ Mas sempre os podíamos atirar para o fosso ‑ disse Porthos ‑, depois de termos verificado que não têm nada nos bolsos.

‑ Sim ‑ disse Aramis ‑, isso é com Grimaud.

‑ Ah, bom ‑ disse d'Artagnan. ‑ Então Grimaud que os reviste e que os atire das muralhas.

‑ Nem pensar nisso ‑ disse Athos ‑, podem ser‑nos úteis.

‑ Estes mortos podem ser‑nos úteis? ‑ disse Porthos. ‑ Ora essa! Endoideceis, caro amigo.

‑ Não julgueis temerariamente, dizem o Evangelho e o Sr. Cardeal ‑ respondeu Athos. ‑ Quantas espingardas, meus senhores?

‑ Doze ‑ respondeu Aramis.

‑ Quantos tiros a disparar?

‑ Uma centena.

‑ É quanto nos basta; carreguemos as armas.

Os quatro mosqueteiros meteram mãos à obra. Quando acabavam de carregar a última espingarda, Grimaud fez sinal de que o almoço estava servido.

Athos respondeu, sempre por gestos, que estava bem, e indicou a Grimaud uma espécie de guarita onde este compreendeu que devia pôr‑se de sentinela. Contudo, para suavizar o aborrecimento da facção, Athos permitiu‑lhe que levasse um pão, duas costeletas e uma garrafa de vinho.

‑ E agora para a mesa ‑ disse Athos.

Os quatro amigos sentaram‑se no chão, de pernas cruzadas como os turcos ou como os alfaiates.

‑ Ah! Agora ‑ disse d'Artagnan ‑ que já não tens medo de que te oiçam, espero que nos contes o teu segredo, Athos.

‑ Espero proporcionar‑vos ao mesmo tempo prazer e glória, meus senhores ‑ disse Athos. ‑ Fiz‑vos dar um passeio encantador; eis um almoço dos mais suculentos, e cinco pessoas além, como podeis ver através das seteiras, que nos tomam por uns doidos ou por uns heróis, duas classes de imbecis muito parecidas.

‑ E o segredo? ‑ perguntou d'Artagnan.

‑ O segredo ‑ disse Athos ‑ é que vi Milady ontem à noite.

D'Artagnan levava o copo aos lábios mas, ao ouvir este nome a mão tremeu‑lhe tanto que o pousou no chão para não derramar o conteúdo.

‑ Viste a tua mu...

‑ Chiu! ‑ interveio Athos. ‑ Esqueceis, meu caro, que estes senhores não foram iniciados como vós nos segredos das minhas questões domésticas; vi Milady.

‑ E onde? ‑ perguntou d'Artagnan.

‑ Mais ou menos a duas léguas daqui, na estalagem do Colombier‑Rouge.

‑ Nesse caso, estou perdido ‑ disse d'Artagnan.

‑ Não, ainda não totalmente ‑ disse Athos ‑, pois a estas horas ela deve ter deixado as costas da França.

D'Artagnan respirou fundo.

‑ Mas afinal ‑ perguntou Porthos ‑, quem é essa Milady?

‑ Uma mulher encantadora ‑ disse Athos, saboreando um copo de vinho espumante. ‑ O canalha do estalajadeiro! ‑ exclamou ele. ‑ Deu‑vos vinho de Anjou por vinho de Champagne, e julga que nos deixamos enganar! Sim ‑ continuou ‑, uma mulher encantadora que teve algumas condescendências com o nosso amigo d'Artagnan, que lhe fez não sei que maldade da qual ela tentou vingar‑se há um mês, querendo mandar matá‑lo a golpes de mosquete, há oito dias tentando envenená‑lo, e ontem pedindo a sua cabeça ao cardeal.

‑ O quê? Pedindo a minha cabeça ao cardeal? ‑ exclamou d'Artagnan, pálido de terror.

‑ Lá isso ‑ disse Porthos ‑ é verdade como o Evangelho; eu próprio o ouvi.

‑ Eu também ‑ disse Aramis.

‑ Então ‑ disse d'Artagnan, deixando cair o braço com desânimo ‑, é inútil continuar a lutar; o melhor é dar um tiro na cabeça e acabar com tudo!

‑ Isso é o último disparate a fazer ‑ disse Athos ‑, visto que é o único para o qual não há remédio.

‑ Mas eu nunca escaparei ‑ disse d'Artagnan ‑, com inimigos como esses. Primeiro o meu desconhecido de Meung; depois De Wardes, a quem dei três golpes de espada; depois Milady, cujo segredo eu surpreendi; enfim, o cardeal, cuja vingança fiz fracassar.

‑ Pois bem! ‑ disse Athos. ‑ São apenas quatro e nós somos quatro, um contra um. Coa breca! Se acreditamos nos sinais que nos faz Grimaud, vamos ter de nos ver com muito mais gente. Que há, Grimaud? Considerando a gravidade da circunstância, permito‑vos que faleis, meu amigo, mas sede lacónico, peço‑vos. Que vedes?

‑ Um grupo.

‑ De quantas pessoas?

‑ De vinte homens.

‑ Que homens?

‑ Dezasseis peões, quatro soldados.

‑ A quantos passos estão?

‑ A quinhentos passos.

‑ Bom, ainda temos tempo de acabar esta ave e de beber um copo de vinho à tua saúde, d'Artagnan!

‑ À tua saúde! ‑ repetiram Porthos e Aramis.

‑ Pois muito bem, à minha saúde! Embora não me pareça que os vossos votos me sirvam de muito.

‑ Ora! ‑ disse Athos. ‑ Deus é grande, como dizem os sectários de Maomé, e o futuro está nas suas mãos.

Depois, emborcando o conteúdo do seu copo, que pousou junto de si, Athos levantou‑se indolentemente, pegou na primeira espingarda e aproximou‑se duma seteira.

Porthos, Aramis e d'Artagnan fizeram o mesmo. Quanto a Grimaud, recebeu ordem de pôr‑se atrás dos quatro amigos a fim de recarregar as armas.

Passado um instante viram aparecer o grupo; seguia uma espécie de cotovelo da trincheira que estabelecia uma comunicação entre o bastião e a cidade.

‑ Palavra! ‑ disse Athos. ‑ Vale bem a pena incomodar‑nos por causa de uns vinte engraçados armados de picaretas, de enxadas e de pás! Bastava que Grimaud lhes tivesse feito sinal para se irem embora,; e estou convencido de que nos teriam deixado em paz.

‑ Duvido ‑ observou d'Artagnan ‑, pois avançam com bastante determinação deste lado. Aliás, vêm com os trabalhadores quatro soldados e um brigadeiro, armados de mosquetes.

‑ É porque não nos viram ‑ retorquiu Athos.

‑ Palavra de honra! ‑ disse Aramis. ‑ Confesso que sinto repugnância de atirar sobre esses pobres diabos burgueses.

‑ Mau sacerdote ‑ respondeu Porthos ‑, que tem pena dos hereges!

‑ Na verdade ‑ disse Athos ‑, Aramis tem razão. Vou preveni‑los.

‑ Que diabo fazeis? ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Ides fazer‑vos matar, meu caro.

Mas Athos não ligou ao aviso e, subindo para a fenda, com a espingarda numa das mãos e o chapéu na outra, gritou:

‑ Meus senhores ‑ disse ele, dirigindo‑se aos soldados e aos trabalhadores que, espantados com a sua aparição, estacavam a cerca de cinquenta passos do bastião, e saudando‑os cortesmente ‑, meus senhores, nós estamos, alguns amigos e eu, a almoçar neste bastião. Ora, vós sabeis que não há nada tão desagradável como ser incomodado durante o almoço; portanto, pedimo‑vos, se tendes absolutamente que fazer aqui, que espereis que terminemos a nossa refeição ou que passeis mais tarde, a menos que tenhais o salutar desejo de largar o partido da rebelião e de vir beber connosco à saúde do rei de França.

‑ Toma cautela, Athos! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Não vês que apontam para ti?

‑ Sim, sim ‑ disse Athos ‑, mas são uns burgueses que atiram muito mal, e que estão bem livres de me atingir.

Com efeito, no mesmo instante, quatro balas de espingarda foram disparadas, e as balas vieram cravar‑se à volta de Athos, mas nenhuma o atingiu.

Quatro tiros de espingarda responderam‑lhes quase ao mesmo tempo, mas eram melhor dirigidos que os dos agressores; três soldados caíram mortos, e um dos trabalhadores ficou ferido.

‑ Grimaud, outro mosquete! ‑ disse Athos, sempre na fenda. Grimaud obedeceu imediatamente. Por seu lado, os três amigos

tinham carregado as suas armas; uma segunda descarga seguiu a primeira: o brigadeiro e dois pioneiros caíram mortos e o resto do grupo desatou a fugir.

‑ Vamos, meus senhores, uma surtida ‑ disse Athos.

E os quatro amigos, lançando‑se fora do forte, chegaram ao campo de batalha, recolheram os quatro mosquetes dos soldados e a meia lança do brigadeiro; e, convencidos de que os fugitivos só iam parar na cidade, retomaram o caminho do bastião, trazendo os troféus da sua vitória.

‑ Recarregai as armas, Grimaud ‑ disse Athos ‑, e nós, meus senhores, recomecemos o nosso almoço e continuemos a nossa conversa. Onde íamos nós?

‑ Eu lembro‑me ‑ disse d'Artagnan, que se preocupava bastante com o itinerário que Milady devia seguir.

‑ Vai para Inglaterra ‑ respondeu Athos.

‑ E com que finalidade?

‑ Com a finalidade de assassinar ou mandar assassinar Buckingham.

D'Artagnan soltou uma exclamação de surpresa e de indignação.

‑ Mas isso é infame! ‑ exclamou.

‑ Oh! Quanto a isso ‑ disse Athos ‑, peço‑vos que acrediteis que me inquieto muito pouco. Agora que acabastes, Grimaud ‑ continuou Athos ‑, pegai na meia‑lança do nosso brigadeiro, amarrai‑lhe um guardanapo e espetai‑a no alto do nosso bastião, a fim de que esses rebeldes rocheleses vejam que somos bravos e leais soldados do rei.

Grimaud obedeceu sem responder. Passado um instante, a bandeira branca flutuava por cima da cabeça dos quatro amigos; uma trovoada de aplausos saudou o seu aparecimento; metade do acampamento estava nas barreiras.

‑ O quê? ‑ replicou d'Artagnan. ‑ Inquietas‑te muito pouco com o facto de que ela mate ou mande matar Buckingham? Mas o duque é nosso amigo.

‑ O duque é inglês, o duque combate contra nós; ela que faça o que quiser com o duque que eu me importo tanto com isso como com uma garrafa vazia.

E Athos atirou a quinze passos a garrafa que segurava e que acabava de verter até à última gota no seu copo.

‑ Um instante ‑ disse d'Artagnan ‑, eu não abandono Buckingham assim; ele tinha‑nos dado uns cavalos muito bons.

‑ E sobretudo umas ricas selas ‑ acrescentou Porthos, que, nesse preciso momento, trazia na capa o galão da sua.

‑ Além disso ‑ observou Aramis ‑, Deus quer a conversão e não a morte do pecador.

‑ Ámen ‑ disse Athos ‑, e se isso vos agrada, voltaremos a falar neste assunto mais tarde; mas o que, de momento, mais me preocupava, e estou certo de que tu compreenderás, d'Artagnan, era tirar a essa mulher uma espécie de assinatura em branco que ela extorquira ao cardeal, e graças à qual devia impunemente livrar‑se de ti e talvez de nós.

‑ E essa assinatura em branco ‑ disse d'Artagnan ‑, essa assinatura em branco ficou nas suas mãos?

‑ Não, passou para as minhas; não direi que foi sem dificuldade, por exemplo, pois estaria a mentir.

‑ Meu caro Athos ‑ disse d'Artagnan ‑, já não têm conta as vezes que me salvastes a vida.

‑ Então era para irdes ter com ela que nos deixastes? ‑ perguntou Aramis.

‑ Justamente.

‑ E tens essa carta do cardeal? ‑ disse d'Artagnan.

‑ Aqui está ‑ disse Athos.

E tirou o precioso papel do bolso da casaca.

D'Artagnan desdobrou‑o com mão cujo tremor nem sequer tentava dissimular e leu:

Foi por minha ordem e para bem do Estado que o portador da presente fez o que fez. 5 de Dezembro de 1627.

         RICHELIEU

 

‑ Com efeito ‑ disse Aramis ‑, é uma absolvição dentro das regras.

‑ Há que rasgar esse papel ‑ exclamou d'Artagnan, que parecia ler a sua sentença de morte.

‑ Nada disso ‑ disse Athos ‑, há que conservá‑lo preciosamente, e eu não daria este papel mesmo que o cobrissem de moedas de ouro.

‑ E que vai ela fazer agora? ‑ perguntou o mancebo.

‑ Mas ‑ disse negligentemente Athos ‑, vai provavelmente escrever ao cardeal, comunicando‑lhe que o maldito dum mosqueteiro chamado Athos lhe arrancou o seu salvo‑conduto; dar‑lhe‑á na mesma carta o conselho de se desembaraçar, ao mesmo tempo que dele, dos seus dois amigos Porthos e Aramis; o cardeal há‑de recordar‑se de que são os mesmos homens que encontra sempre no seu caminho; então, um belo dia, manda prender d'Artagnan e, para que ele não se aborreça sozinho, manda‑nos fazer‑lhe companhia na Bastilha.

‑ Ora essa! ‑ disse Porthos. ‑ Isso parece-me uma triste brincadeira, meu caro.

‑ Não estou a brincar ‑ respondeu Athos.

‑ Sabeis ‑ disse Porthos ‑ que torcer o pescoço a essa maldita Milady seria um pecado menor do que torcer o pescoço aos pobres diabos dos huguenotes, que jamais cometeram outros crimes além de cantarem em francês os salmos que nós cantamos em latim?

‑ Que diz o abade? ‑ perguntou calmamente Athos.

‑ Digo que sou da mesma opinião que Porthos ‑ respondeu Aramis.

‑ Então e eu! ‑ exclamou d'Artagnan.

‑ Felizmente que ela está longe ‑ observou Porthos ‑, pois confesso que muito me incomodaria se estivesse aqui.

‑ Incomoda‑me tanto em Inglaterra como em França ‑ disse Athos.

‑ A mim incomoda‑me em toda a parte ‑ continuou d'Artagnan.

‑ Mas já que a tínheis na mão ‑ disse Porthos ‑, por que não a afogastes, estrangulastes, enforcastes? Só os mortos não regressam.

‑ Acreditais nisso, Porthos? ‑ respondeu o mosqueteiro com um sorriso sombrio que só d'Artagnan compreendeu.

‑ Tenho uma ideia ‑ disse d'Artagnan.

‑ Vejamos ‑ disseram os mosqueteiros.

‑ Às armas! ‑ gritou Grimaud.

Os jovens levantaram‑se apressadamente e correram às espingardas.

Desta vez avançava um pequeno grupo composto de vinte ou vinte e cinco homens; mas já não eram trabalhadores, eram soldados da guarnição.

‑ E se voltássemos ao acampamento? ‑ disse Porthos. ‑ Parece‑me que a partida não é igual.

‑ É impossível, por três razões ‑ respondeu Athos. ‑ Primeiro: não acabámos de almoçar; segundo, ainda temos coisas importantes a dizer uns aos outros; terceiro: ainda faltam dez minutos para a hora combinada.

‑ Vejamos ‑ disse Aramis ‑, mesmo assim ainda temos de traçar um plano de batalha.

‑ É muito simples ‑ respondeu Athos ‑; assim que o inimigo estiver ao alcance do mosquete, abrimos fogo; se continuar a avançar, tornamos a fazer fogo, fazemos fogo enquanto tivermos espingardas carregadas; se o que restar do grupo ainda nos quiser assaltar, deixamos os sitiantes descer ao fosso, e então empurramos‑lhes para cima este troço da parede que já só se aguenta por um milagre de equilíbrio.

‑ Bravo! ‑ exclamou Porthos. ‑ Decididamente, Athos, tínheis nascido para serdes general, e o cardeal, que se julga um grande homem de guerra, é muito insignificante ao pé de vós.

‑ Meus senhores ‑ disse Athos ‑, peço‑vos que não façais repetições escusadas; que cada um de vós vise bem o seu homem.

‑ Eu já tenho o meu ‑ disse d'Artagnan.

‑ E eu o meu ‑ disse Porthos.

‑ E eu idem ‑ disse Aramis.

‑ Então, fogo! ‑ disse Athos.

Os quatro tiros de espingarda produziram uma única detonação, e quatro homens caíram.

Imediatamente rufou o tambor e o pequeno grupo avançou a passo de arremetida.

Então os tiros sucederam‑se sem regularidade, mas sempre disparados com a mesma precisão. Contudo, como se conhecessem a fraqueza numérica dos amigos, os rocheleses continuavam a avançar a passo de corrida.

Com os outros três tiros caíram dois homens; todavia a marcha dos que continuavam de pé não abrandava.

Ao chegarem ao bastião, os inimigos ainda eram doze ou quinze, uma última descarga os acolheu, mas não os fez parar; saltaram para o fosso e preparavam‑se para escalar a brecha.

‑ Vamos, meus amigos ‑ disse Athos ‑, acabemos com eles duma vez. À muralha! À muralha!

E os quatro amigos, secundados por Grimaud, puseram‑se a empurrar com a coronha das espingardas um enorme troço da parede, que se inclinou como se o vento o empurrasse, e que, desprendendo‑se da base, ! caiu com um estrondo horrível no fosso; depois ouviu‑se um grande grito, uma nuvem de pó subiu até ao céu, e foi tudo.

‑ Tê‑los‑íamos esmagado desde o primeiro até ao último? ‑ pergun tou Athos.

‑ Coa breca! Parece‑me que sim ‑ disse d'Artagnan.

‑ Não ‑ disse Porthos ‑, lá vão dois ou três a fugir todos estropiados.

Com efeito, três ou quatro desgraçados, cobertos de lama e de sangue, fugiam pelo caminho escavado e alcançavam a cidade; era tudo o que restava do pequeno grupo.

Athos olhou para o relógio.

‑ Meus senhores ‑ disse ele ‑, há uma hora que estamos aqui, e agora a aposta está ganha; mas devemos ser bons jogadores, de resto d'Artagnan não nos disse a sua ideia.

‑ A minha ideia? ‑ disse d'Artagnan.

‑ Sim, dizíeis que tínheis uma ideia ‑ replicou Athos.

‑ Ah! Já sei ‑ respondeu d'Artagnan ‑, passo‑me para a Inglaterra pela segunda vez, vou ter com o Sr. de Buckingham e aviso‑o do conluio tramado contra a sua vida.

‑ Não fareis tal coisa, d'Artagnan ‑ disse friamente Athos.

‑ E por que não? Não o fiz já uma vez?

‑ Sim, mas nessa época não estávamos em guerra; nessa época, o Sr. de Buckingham era um aliado e não um inimigo: o que quereis fazer seria considerado uma traição.

D'Artagnan compreendeu a força deste raciocínio e calou‑se.

‑ Mas ‑ disse Porthos ‑, parece‑me que eu por minha vez tenho uma ideia.

‑ Silêncio para a ideia do Sr. Porthos! ‑ disse Aramis.

‑ Peço uma folga ao Sr. de Tréville, sob um pretexto qualquer que vós achareis, eu cá não sou muito bom nisso. Milady não me conhece, aproximo‑me dela sem que me receie e, quando a encontrar, estrangulo‑a.

‑ Muito bem! ‑ disse Athos. ‑ Não estou muito longe de adoptar a ideia de Porthos.

‑ Ora essa! ‑ disse Aramis. ‑ Matar uma mulher! Não, esperai, eu tenho a verdadeira ideia.

‑ Vejamos a vossa ideia, Aramis! ‑ pediu Athos, que tinha uma grande deferência pelo jovem mosqueteiro.

‑ Há que prevenir a rainha.

‑ Ah! Sim, coa breca! ‑ exclamaram em uníssono Porthos e d'Artagnan. ‑ Acho que é a melhor maneira.

‑ Prevenir a rainha! ‑ disse Athos. ‑ E como? Acaso temos relações na corte? Acaso podemos enviar alguém a Paris sem que isso se saiba no acampamento? Daqui a Paris são cento e quarenta léguas; ainda a nossa carta não teria chegado a Angers, já nós estaríamos na cadeia.

‑ Quanto a entregar com segurança uma carta a Sua Majestade ‑ propôs Aramis, corando ‑, eu encarrego‑me disso; conheço em Tours uma pessoa hábil...

Aramis parou ao ver Athos sorrir.

‑ Então? Não adoptais esta maneira, Athos? ‑ disse d'Artagnan.

‑ Não a rejeito inteiramente ‑ disse Athos ‑, queria apenas observar a Aramis que ele não pode abandonar o acampamento; que outra pessoa além de nós não é segura; que duas horas depois de o mensageiro ter partido, todos os capuchinhos, todos os alguazis, todos os barretes negros do cardeal saberão a vossa carta de cor, e que vos prenderão a vós e à vossa hábil pessoa.

‑ Sem contar ‑ objectou Porthos ‑ que a rainha salvará o Sr. de Buckingham mas não nos salvará a nós.

‑ Meus senhores ‑ disse d'Artagnan ‑, o que Porthos objecta faz muito sentido.

‑ Ah! Ah! Então o que se passa na cidade? ‑ disse Athos.

‑ Tocam a rebate.

Os quatro amigos escutaram, e o rufar do tambor chegou efectivamente até eles.

‑ Vereis que nos vão enviar um regimento inteiro ‑ disse Athos.

‑ Não contais resistir contra um regimento inteiro, pois não? ‑ disse Portos.

‑ Por que não? ‑ disse o mosqueteiro. ‑ Sinto‑me em forma; resistiria diante de um exército, se ao menos tivéssemos tido a precaução de trazer mais uma dúzia de garrafas.

‑ Palavra que o tambor se aproxima ‑ disse d'Artagnan.

‑ Deixai‑o aproximar‑se ‑ disse Athos ‑, daqui até à cidade é um quarto de hora de caminho, e por conseguinte da cidade até aqui. É mais do que precisamos para traçarmos o nosso plano; se nos formos embora daqui, nunca mais encontramos um lugar tão conveniente, vede, justamente, meus senhores, eis que me surge a verdadeira ideia.

‑ Então dizei.

‑ Permiti que eu dê a Grimaud algumas ordens indispensáveis. Athos fez sinal ao criado para se aproximar.

‑ Grimaud ‑ disse Athos, designando os mortos que jaziam no bastião ‑, ides pegar nesses senhores, encostá‑los à muralha e pôr‑lhe o chapéu na cabeça e a espingarda na mão.

‑ Ó grande homem! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Estou a compreender‑te.

‑ Estais a compreender? ‑ disse Porthos.

‑ E tu, compreendes, Grimaud? ‑ perguntou Aramis. Grimaud fez sinal que sim.

‑ Não é preciso mais nada ‑ disse Athos ‑, voltemos à minha ideia.

‑ Mas eu queria compreender ‑ observou Porthos.

‑ É inútil.

‑ Sim, sim, a ideia de Athos ‑ disseram ao mesmo tempo d'Artagnan e Aramis.

‑ Essa Milady, essa mulher, essa criatura, esse demónio, tem cunhado, segundo me dissestes, creio eu, d'Artagnan.

‑ Sim, conheço‑o até muito bem, e até creio que não simpatiza muito com a cunhada.

‑ Isso não faz mal ‑ respondeu Athos ‑, se a detestasse ainda era melhor.

‑ Nesse caso estamos servidos.

‑ Contudo ‑ disse Porthos ‑, eu queria compreender o que fez Grimaud.

‑ Silêncio, Porthos! ‑ disse Aramis.

‑ Como se chama o tal cunhado?

‑ Lorde de Winter.

‑ Onde está ele agora?

‑ Voltou a Londres aos primeiros rumores da guerra.

‑ Ora bem! É precisamente o homem que nos falta ‑ disse Athos ‑, é esse que nos convém prevenir; mandar‑lhe‑emos dizer que a cunhada se prepara para assassinar alguém e pedir‑lhe‑emos que não a perca de vista. Deve haver em Londres, espero eu, um estabelecimento do género das Madelonnettes ou das Moças Arrependidas; ele manda lá meter a cunhada e nós ficamos sossegados.

‑ Sim ‑ disse d'Artagnan ‑, até que ela saia de lá.

‑ Ah! Que diabo! ‑ replicou Athos. ‑ Vós pedis de mais, d'Artagnan; dei‑vos o que tinha e previno‑vos de que esvaziei o saco.

‑ Eu acho que é o melhor ‑ disse Aramis ‑, preveniremos simultaneamente a rainha e lorde de Winter.

‑ Sim, mas por intermédio de quem mandaremos a carta para Tours e a carta para Londres?

‑ Eu respondo por Bazin ‑ disse Aramis.

‑ E eu por Planchet ‑ continuou d'Artagnan.

‑ Com efeito ‑ disse Porthos ‑, se nós não nos podemos ausentar do acampamento, os nossos lacaios podem.

‑ Sem dúvida ‑ disse Aramis ‑, e hoje mesmo escreveremos as cartas, damos‑lhes dinheiro e eles partem.

‑ Damos‑lhes dinheiro? ‑ tornou Athos. ‑ Então vós tendes dinheiro?

Os quatro amigos entreolharam‑se e uma nuvem passou pelas frontes que se tinham desanuviado por um instante.

‑ Alerta! ‑ gritou d'Artagnan. ‑ Vejo uns pontos negros e uns pontos vermelhos que se agitam além; que dizíeis vós dum regimento, Athos? É um verdadeiro exército.

‑ Sim, palavra ‑ disse Athos ‑, lá estão eles. Vedes os manhosos que vinham sem tambores nem cornetas? Ah! Ah! Já acabastes, Grimaud?

Grimaud fez que sim, e mostrou uma dúzia de mortos que tinha colocado nas atitudes mais pitorescas: uns apresentando armas, outros como se as apontassem, os outros de espada na mão.

‑ Bravo! ‑ exclamou Athos. ‑ Isso faz honras à tua imaginação.

‑ É a mesma coisa ‑ disse Porthos ‑, mas eu queria compreender.

‑ Primeiro vamos fugir ‑ interrompeu d'Artagnan ‑, depois compreendes.

‑ Um instante, meus senhores, um instante! Demos tempo a Grimaud para tirar a mesa.

‑ Ah! ‑ disse Aramis. ‑ Os pontos negros e os pontos vermelhos crescem a olhos vistos e eu sou da mesma opinião que d'Artagnan; acho que não temos tempo a perder para alcançarmos o nosso acampamento.

‑ Côa breca! ‑ disse Athos. ‑ Já não tenho nada contra a retirada: apostámos por uma hora e ficámos hora e meia; não há nada a dizer; partamos, meus senhores, partamos.

Grimaud já se tinha antecipado com o cesto e os sobejos. Os quatro amigos saíram atrás deles uns dez passos.

‑ Eh! ‑ exclamou Athos. ‑ Que diabo fazemos nós, meus senhores?

‑ Esquecestes alguma coisa? ‑ perguntou Aramis.

‑ E a bandeira, Côa breca! Não se deve deixar uma bandeira nas mãos do inimigo, mesmo quando não passa dum guardanapo.

E Athos correu ao bastião, subiu à plataforma e retirou a bandeira; porém, como os rocheleses tinham chegado ao alcance dos mosquetes, fizeram um fogo terrível sobre este homem que, como que por gosto, ia expor‑se aos tiros.

Mas parecia que Athos tinha um sortilégio agarrado à sua pessoa, as balas passaram a assobiar em volta dele, mas nenhuma o atingiu.

Athos agitou o seu estandarte, virando as costas à gente da cidade e saudando a gente do acampamento. Dos dois lados se ouviram altos gritos; dum lado gritos de cólera, do outro gritos de entusiasmo.

Uma segunda descarda seguiu a primeira, e três balas, esburacando‑o, fizeram realmente do guardanapo uma bandeira. Ouviram‑se clamores de todo o acampamento, que gritava:

‑ Descei! Descei!

Athos desceu; os seus camaradas, que o esperavam ansiosamente, viram‑no aparecer cheios de alegria.

‑ Vamos, Athos, vamos ‑ disse d'Artagnan ‑, apressemo‑nos, agora que encontrámos tudo, excepto o dinheiro, seria uma estupidez deixarmo‑nos matar.

Mas Athos continuava a andar majestosamente, apesar das observações que lhe faziam os seus companheiros, os quais, vendo que estas eram inúteis, regularam o passo pelo seu.

Grimaud e o seu cesto tinham tomado a dianteira e estavam já fora do alcance.

Passado um instante ouviu‑se o ruído dum tiroteio furioso.

‑ Que é aquilo? ‑ perguntou Porthos. ‑ Sobre o que é que atiram? Não ouço assobiar as balas e não vejo ninguém.

‑ Atiram sobre os nossos mortos ‑ respondeu Athos.

‑ Mas os nossos mortos não responderão.

‑ Justamente; então eles vão crer numa emboscada, vão deliberar e enviarão um parlamentar e, quando se aperceberem da brincadeira, nós estaremos fora do alcance das balas. É por isso que não vale a pena apanhar uma pleuresia apressando‑nos.

‑ Oh! Compreendo ‑ exclamou Porthos, encantado.

‑ Ainda bem! ‑ disse Athos, encolhendo os ombros.

Por seu lado, os franceses, vendo regressar os quatro amigos a pásso, davam gritos de entusiasmo.

Por fim ouviu‑se novo tiroteio, e desta vez as balas vieram cravar‑se nas pedras em volta dos quatro amigos e assobiar lugubremente aos seus ouvidos. Os rocheleses acabavam finalmente de se apoderar do bastião.

‑ São mesmo uns desajeitados ‑ disse Athos. ‑ Quantos matámos? Doze?

‑ Ou quinze.

‑ Quantos esmagámos?

‑ Oito ou dez.

‑ E em troca de tudo isso nem um arranhão? Ora esta! Que tendes vós na mão, d'Artagnan? Parece‑me sangue.

‑ Não é nada ‑ disse d'Artagnan.

‑ Uma bala perdida?

‑ Nem isso.

‑ Então o que é?

Como dissemos, Athos amava d'Artagnan como um filho, e este carácter sombrio e inflexível tinha por vezes com o mancebo solicitudes de pai.

‑ Um arranhão ‑ respondeu d'Artagnan ‑, entalei os dedos numas pedras, a da parede e a do meu anel, e arranhei a pele.

‑ É is o que se arranja quando se tem diamantes, meu senhor ‑ disse desdenhosamente Athos.

‑ Ora essa! ‑ exclamou Porthos. ‑ Há um diamante, com efeito, então por que diabo, se há um diamante, nos queixamos de não termos dinheiro?

‑ É verdade! ‑ disse Aramis.

‑ Em boa hora, Porthos; desta vez eis uma ideia.

‑ Sem dúvida ‑ disse Porthos, inchado com o elogio de Athos ‑, se há um diamante, vamos vendê‑lo.

‑ Mas ‑ disse d'Artagnan ‑ este diamante é da rainha.

‑ Mais uma razão ‑ continuou Athos ‑, a rainha salva o Sr. de Buckingham, seu amante, nada mais justo; a rainha salva‑nos a nós, seus amigos, nada mais moral: vendamos o diamante. Que pensa o Sr. Abade? Não peço a opinião de Porthos, que já a emitiu.

‑ Mas eu penso ‑ disse Aramis, corando ‑ que, como o seu anel não provém duma amante e por conseguinte não é uma prova de amor, d'Artagnan pode vendê‑lo.

‑ Meu caro, falais como a teologia em pessoa. Portanto, a vossa opinião é...

‑ Vender o diamante ‑ respondeu Aramis.

‑ Muito bem ‑ disse alegremente d'Artagnan ‑, vendamos o diamante e não falemos mais nisso.

O tiroteio continuou, mas os amigos estavam fora do alcance e os rocheleses já só atiravam por descargo de consciência.

‑ Apre ‑ disse Athos ‑ não foi sem tempo que Porthos teve essa ideia; eis‑nos no acampamento. Portanto, meus senhores, nem mais uma palavra sobre este assunto. Observam‑nos, vêm ao nosso encontro, vamos ser levados em triunfo.

Com efeito, como dissemos, todo o acampamento estava emocionado; mais de duas mil pessoas tinham assistido, como a um espectáculo, à feliz proeza dos quatro amigos, proeza cujo verdadeiro motivo estavam bem longe de adivinhar. Só se ouvia o grito: Vivam os guardas! Vivam os mosqueteiros! O Sr. de Busigny fora o primeiro a vir apertar a mão de Athos e a reconhecer que tinha perdido a aposta. O dragão e o suíço tinham‑no seguido, todos os camaradas tinham seguido o dragão e o suíço. Eram felicitações, apertos de mão, abraços que nunca mais acabavam, gargalhadas inextinguíveis relativas aos rocheleses; enfim, um tumulto tão grande que o Sr. Cardeal julgou haver um motim e enviou La Houdinière, o seu capitão das guardas, informar‑se do que se passava.

Contaram o caso ao mensageiro com todo o entusiasmo.

‑ Então? ‑ perguntou o cardeal ao ver La Houdinière.

‑ Então, Monsenhor ‑ disse este ‑ foram três mosqueteiros e um guarda que fizeram a aposta com o Sr. de Busigny de irem almoçar no bastião Saint‑Gervais, e que, enquanto almoçavam, resistiram ali duas horas contra o inimigo, e mataram não sei quantos rocheleses.

‑ Informastes‑vos do nome desses três mosqueteiros?

‑ Sim, Monsenhor.

‑ Como se chamam?

‑ São os senhores Athos, Porthos e Aramis.

‑ Outra vez os meus três valentes! ‑ murmurou o cardeal. ‑ E o guarda?

‑ Sr. d'Artagnan.

‑ Outra vez o meu engraçado! Decididamente tenho de ter esses quatro homens na mão.

Na mesma noite o cardeal falou ao Sr. de Tréville da façanha daquela manhã, que era o assunto das conversas de todo o acampamento. O Sr. de Tréville, que tinha ouvido contar a aventura aos próprios heróis da mesma, contou‑a com todos os pormenores a Sua Eminência, sem esquecer o episódio do guardanapo.

‑ Muito bem, Sr. de Tréville ‑ disse o cardeal ‑, mandai‑me entregar esse guardanapo, se fazeis o favor. Mandarei bordar três flores de lis de ouro, e farei dele o estandarte da vossa companhia.

‑ Monsenhor ‑ disse o Sr. de Tréville ‑, será uma injustiça para os guardas: o Sr. d'Artagnan não é dos meus, mas do Sr. des Essarts.

‑ Pois bem! Ficai com ele ‑ disse o cardeal. ‑ Não é justo que, se esses quatro bravos militares se estimam tanto, não sirvam na mesma companhia.

Na mesma noite, o Sr. de Tréville anunciou esta boa notícia aos três mosqueteiros e a d'Artagnan, convidando os quatro para almoçar no dia seguinte.

D'Artagnan não cabia em si de contente. Como se sabe, o sonho da sua vida era ser mosqueteiro.

Os três amigos estavam muito contentes.

‑ Apre! ‑ disse d'Artagnan a Athos. ‑ Tiveste uma ideia triunfal, e, como disseste, cobrimo‑nos de glória e pudemos travar uma conversa da mais alta importância.

‑ Que agora poderemos recomeçar sem que ninguém desconfie; pois, com a graça de Deus, passaremos doravante por cardinalistas.

Na mesma noite d'Artagnan foi apresentar as suas homenagens ao Sr. des Essarts e participar‑lhe a promoção que obtivera.

O Sr. des Essarts, que estimava muito d'Artagnan, ofereceu‑lhe então os seus préstimos: aquela mudança de corpo acarretava despesas de equipamento.

D'Artagnan recusou mas, achando propícia a ocasião, pediu‑lhe que mandasse avaliar o diamante, que lhe entregou, e com o qual desejava realizar dinheiro.

No dia seguinte, às oito da manhã, o criado do Sr. Des Essarts, entrou no quarto de d'Artagnan e entregou‑lhe um saco de ouro contendo sete mil libras.

Era o preço do diamante da rainha.

 

         QUESTÃO FAMILIAR

Athos encontrara a expressão: questão familiar. Uma questão familiar não era submetida à investigação do cardeal; uma questão familiar não concernia ninguém; uma pessoa podia ocupar‑se duma questão familiar diante de toda a gente.

Assim, Athos encontrara a expressão: uma questão familiar. Aramis encontrara a ideia: o lacaio.

Porthos encontrara a maneira: o diamante.

Só d'Artagnan não encontrara nada, ele que era geralmente o mais inventivo dos quatro; mas há que dizer também que o simples nome de Milady o paralisava.

Ah! Sim, estamos enganados: encontrara um comprador para o diamante.

O almoço com o Sr. de Tréville foi de uma alegria encantadora. D'Artagnan já tinha o seu uniforme; como era praticamente da mesma altura que Aramis e como Aramis, generosamente bem pago, como vos deveis lembrar, pelo livreiro que lhe comprara o seu poema, fizera tudo a dobrar, cedera ao seu amigo um equipamento completo.

D'Artagnan estaria no auge da felicidade se não tivesse visto despontar Milady como uma nuvem carregada no horizonte.

Depois do almoço combinaram reunir‑se à noite nos aposentos de Athos, e ali acabarem de resolver a questão.

D'Artagnan passou o dia a exibir o seu fato de mosqueteiro em todas as ruas do acampamento.

À noite, à hora combinada, os quatro amigos reuniram‑se; só faltava decidir três coisas:

O que iam escrever ao irmão de Milady.

O que iam escrever à tal pessoa hábil de Tours.

E quem seriam os lacaios que levariam as cartas.

Cada qual oferecia o seu: Athos falava da discrição de Grimaud, que só falava quando o amo lhe desselava os lábios; Porthos gabava a força de Mousqueton, que era capaz de sovar quatro homens de compleição normal; Aramis, confiante na habilidade de Bazin, fazia um elogio pomposo do seu candidato; enfim, d'Artagnan tinha a maior fé na bravura de Planchet, e lembrava a maneira como este se comportara no espinhoso caso de Boulogne.

Estas quatro virtudes disputaram por muito tempo o prémio, e deram lugar a magníficos discursos, que não reproduziremos, para não nos alongarmos.

‑ Infelizmente ‑ disse Athos ‑, seria preciso que o nosso enviado possuísse as quatro qualidades reunidas.

‑ Mas onde encontrar semelhante lacaio?

‑ Impossível! ‑ disse Athos. ‑ Eu bem sei: mandai Grimaud.

‑ Mandai Mousqueton.

‑ Mandai Bazin.

‑ Mandai Planchet; Planchet é bravo e habilidoso: já são duas das quatro qualidades.

‑ Meus senhores ‑ disse Aramis ‑, o principal não é saber quais dos nossos quatro lacaios é o mais discreto, o mais forte, o mais hábil ou o mais bravo; o principal é saber qual deles gosta mais de dinheiro.

‑ Aramis tem toda a razão ‑ observou Athos ‑, há que especular sobre os defeitos das pessoas e não sobre as suas qualidades: Sr. Abade, sois um grande moralista!

‑ Sem dúvida ‑ replicou Aramis ‑, pois precisamos de ser bem servidos não só para alcançarmos êxito, mas também para não fracassarmos; em caso de fracasso, está em risco a cabeça, não para os lacaios...

‑ Mais baixo, Aramis! ‑ disse Athos.

‑ Tendes razão, não para os lacaios ‑ retomou Aramis ‑ mas para o amo, e até para os amos! Os nossos criados são suficientemente dedicados para arriscarem a vida por nós? Não.

‑ Palavra ‑ disse d'Artagnan ‑ eu quase responderia por Planchet.

‑ Pois bem, meu caro amigo, acrescentai à sua natural dedicação uma boa quantia que lhe proporcione um certo bem‑estar, e então, em vez de responderdes uma vez por ele, respondei duas.

‑ Eh! Meu Deus! Mesmo assim sereis enganados ‑ disse Athos, que era optimista quando se tratava das coisas e pessimista quando se tratava dos homens. ‑ Prometerão tudo para receberem o dinheiro e, a caminho, o medo impedi‑los‑á de agir. Uma vez apanhados, apertam‑nos e eles, apertados, confessam. Que diabo! Não somos nenhumas crianças! Para ir a Inglaterra ‑ Athos baixou a voz ‑ é preciso atravessar a França inteira, semeada de espiões e de criaturas do cardeal; é preciso um passe para embarcar; é preciso saber inglês para perguntar o caminho em Londres. Quereis saber? Eu vejo a coisa muito difíciL.

‑ Mas nada disso ‑ disse d'Artagnan, muito interessado em que a coisa se realizasse ‑, eu vejo‑a fácil, pelo contrário. Não é preciso dizer, que diabo!, que se escrevermos contando a lorde de Winter coisas incríveis, horrores sobre o cardeal...

‑ Mais baixo! ‑ disse Athos.

‑ Intrigas e segredos de Estado ‑ continuou d'Artagnan, conformando‑se com a recomendação ‑, não é preciso dizer que seremos todos supliciados; mas, por Deus, não esqueçais, como vós mesmo dissestes, Athos, que lhe escrevemos por uma questão de família; que lhe escreveremos apenas para que impossibilite Milady, logo que esta chegar a Londres, de nos prejudicar, Portanto, vou escrever‑lhe uma carta mais ou menos nestes termos:

‑ Vamos ‑ disse Aramis, assumindo antecipadamente uma expressão de crítico.

‑ «Senhor e caro amigo...»

‑ Ah, sim! Caro amigo, a um inglês ‑ interrompeu Athos ‑, começais bem! Bravo d'Artagnan! Só com essa palavra sereis esquartejado em vez de serdes supliciado.

‑ Pois bem! Então direi apenas Senhor.

‑ Podeis até dizer Milorde ‑ replicou Athos, muito agarrado às conveniências.

‑ «Milorde, recordais‑vos do pequeno cercado das cabras no Luxemburgo?»

‑ Bom! Agora o Luxemburgo! Parece uma alusão à rainha mãe! Muito engenhoso ‑ disse Athos.

‑ Pois bem, então pomos simplesmente: «Milorde, recordais‑vos de certo pequeno cercado em que vos salvaram a vida?»

‑ Meu caro d'Artagnan ‑ disse Athos ‑, nunca passareis de um mau redactor: «Onde vos salvaram a vida!» Ora essa! Isso não é digno. Não se lembram esses favores a um homem galante. Lembrar um favor é fazer uma ofensa.

‑ Ah, meu caro! ‑ disse d'Artagnan. ‑ Sois insuportável, e se é preciso escrever sob a vossa censura, palavra que desisto.

‑ E fazeis bem. Manejai o mosquete e a espada, meu caro, fazeis galantemente esses dois exercícios; mas passai a pena ao Sr. Abade, isso é com ele.

‑ Ah, sim! De facto ‑ disse Porthos. ‑ Passai a pena a Aramis, que escreve teses em latim.

‑ Pois bem, seja! ‑ disse d'Artagnan. ‑ Redigi‑nos essa nota, Aramis; mas, pelo santo Padre!, sede conciso, pois previno‑vos de que vou depenar‑vos por minha vez.

‑ É o que desejo ‑ disse Aramis com essa ingénua confiança que todo o poeta tem em si mesmo ‑, mas deveis pôr‑me ao corrente: ouvi dizer aqui que essa tal cunhada era uma malvada, e até tive a prova disso escutando a sua conversa com o cardeal.

‑ Mais baixo, Côa breca! ‑ disse Athos.

‑ Mas ‑ continuou Aramis ‑, os pormenores escapam‑me.

‑ E a mim também ‑ disse Porthos.

D'Artagnan e Athos entreolharam‑se algum tempo em silêncio. Por fim, Athos, depois de se ter recolhido e tornando‑se mais pálido do que de costume, fez um sinal de adesão, e d'Artagnan compreendeu que podia falar.

‑ Pois bem, eis o que é preciso dizer ‑ continuou d'Artagnan: ‑ «Milorde, a vossa cunhada é uma celerada que vos quis mandar matar para receber a vossa herança. Mas não podia casar‑se com o vosso irmão, pois já era casada em França e tinha sido...»

D'Artagnan parou como se procurasse a palavra, olhando para Athos.

‑ Renegada pelo marido ‑ disse Athos.

‑ Porque tinha sido marcada ‑ continuou d'Artagnan.

‑ Ora! ‑ exclamou Porthos. ‑ Impossível! Quis mandar matar o cunhado?

‑ Sim.

‑ Era casada? ‑ perguntou Aramis.

‑ Sim.

‑ E o marido apercebeu‑se de que ela tinha uma flor‑de‑lis no ombro? ‑ exclamou Athos.

‑ Sim.

Estes três sins tinham sido pronunciados por Athos, cada um numa entoação mais sombria.

‑ E quem viu essa flor‑de‑lís? ‑ perguntou Aramis.

‑ D'Artagnan e eu, ou melhor, para observar a ordem cronológica, eu e d'Artagnan ‑ respondeu Athos.

‑ E o marido dessa horrível criatura ainda é vivo? ‑ disse Aramis.

‑ Ainda é vivo.

‑ Tendes a certeza?

‑ Tenho.

Houve um instante de frio silêncio durante o qual cada um se sentiu impressionado segundo a sua natureza.

‑ Desta vez ‑ recomeçou Athos, interrompendo o silêncio ‑, d'artagnan deu‑nos um excelente programa, e é isso que se deve escrever primeiro.

‑ Diabo! Tendes razão, Athos ‑ recomeçou Aramis ‑, e a redacção é espinhosa. O próprio Sr. Chanceler ficaria embaraçado se tivesse de redigir uma epístola dessas, e contudo, o Sr. Chanceler redige bem um auto. Não importa! Calai‑vos que escrevo.

Aramis, com efeito, pegou na pena, reflectiu alguns instantes, pôs‑se a escrever oito ou dez linhas com uma encantadora letrinha de mulher, depois, com voz doce e lenta, como se cada palavra fosse escrupulosamente pesada, leu o seguinte:

 

 

         Milorde.

A pessoa que vos escreve estas linhas teve a honra de cruzar a espada convosco num pequeno cercado da Rua de VEnfer. Como depois disso vos dignastes várias vezes declarar‑vos amigo dessa pessoa, ela deve reconhecer essa amizade com um bom aviso. Por duas vezes estivestes para ser vítima duma parente chegada que julgáveis vossa herdeira por ignorardes que, antes de contrair matrimónio em Inglaterra, ela já era casada em França. Mas, da terceira vez, que é esta, podeis sucumbir‑lhe. A vossa parente partiu de La Rochelle para Inglaterra durante a noite. Vigiai a sua chegada pois tem grandes e terríveis projectos. Se quereis absolutamente saber do que ela é capaz, lede o seu passado no seu ombro esquerdo.

 

‑ Muito bem! Uma maravilha ‑ disse Athos ‑, e tendes uma pena de secretário de Estado, meu caro Aramis. Lorde de Winter passará a ter cuidado, se receber o aviso; e, ainda que este caísse nas mãos de Sua Eminência em pessoa, não ficaríamos comprometidos. Mas como o criado que partirá nos poderá fazer crer que foi a Londres e parar em Châtelleraud, demos‑lhe com a carta apenas metade da quantia, prometendo‑lhe a outra metade em troca da resposta. Tendes o diamante? ‑ continuou Athos.

‑ Tenho melhor que isso, tenho a quantia.

E d'Artagnan atirou o saco para cima da mesa; ao som do ouro, Aramis ergueu os olhos, Porthos estremeceu; quanto a Athos, ficou impassível.

‑ Quanto dinheiro tem esse saquinho? ‑ perguntou ele.

‑ Sete mil libras em luíses de doze francos.

‑ Sete mil libras! ‑ exclamou Porthos. ‑ Esse diamantezinho de nada valia sete mil libras?

‑ Parece ‑ disse Athos ‑, pois estão aqui; não presumo que o nosso amigo d'Artagnan tenha posto dinheiro seu.

‑ Mas, meus senhores, em tudo isso ‑ disse d'Artagnan ‑ nós não pensámos na rainha. Cuidemos um pouco da saúde do seu caro Buckingham. É o mínimo que lhe devemos.

‑ É justo ‑ disse Athos ‑, mas isso é com Aramis.

‑ Muito bem ‑ respondeu este, corando ‑, que devo fazer?

‑ Mas ‑ replicou Athos ‑ é muito simples: redigir uma segunda carta para a vossa hábil pessoa que mora em Tours.

Aramis voltou a pegar na pena, pôs‑se de novo a reflectir e escreveu as seguintes linhas, que submeteu imediatamente à aprovação dos seus amigos:

 

 

Minha cara prima...

 

‑ Ah! ‑ disse Athos. ‑ Essa hábil pessoa é vossa parente!

‑ É minha prima germana ‑ disse Aramis.

‑ Está bem, pronto! Aramis continuou:

 

Minha cara prima, Sua Eminência o Cardeal, que Deus conserva para a felicidade da França e a confusão dos inimigos do reino, está prestes a acabar com os rebeldes heréticos de La Rochelle: é provável que o socorro da frota inglesa não chegue sequer à vista da praça; ouso até dizer que o Sr. de Buckingham será impedido de partir por algum grande acontecimento. Sua Eminência é o mais ilustre político dos tempos passados, do tempo presente e provavelmente dos tempos vindouros. Apagaria o Sol se o Sol o incomodasse. Dai estas boas notícias à vossa irmã, minha cara prima. Sonhei que esse maldito inglês estava morto. Não me lembro se foi pelo ferro ou pelo veneno, apenas tenho a certeza de que sonhei que estava morto e, como sabeis, os meus sonhos nunca me enganam. Podeis, pois, estar certa de que me vereis regressar em breve.

 

‑ Perfeitamente! ‑ exclamou Athos. ‑ Sois o rei dos poetas; meu caro Aramis, vós falais como o Apocalipse e sois verdadeiro como o Evangelho. Agora só vos resta pôr o endereço nessa carta.

‑ Isso é muito fácil ‑ disse Aramis.

Dobrou galantemente a carta, pegou nela e escreveu:

 

Para a Menina Marie Michon, roupeira em Tours.

 

Os três amigos entreolharam‑se a rir: tinham sido apanhados.

‑ Agora ‑ disse Aramis ‑ compreendereis, meus senhores, que só Bazin pode levar esta carta a Tours; a minha prima só conhece Bazin e tem confiança nele: qualquer outro faria fracassar a empresa. Aliás, Bazin é ambicioso e sábio; Bazin leu a história, meus senhores, e sabe que Sixto Quinto foi papa depois de ter guardado porcos; ora bem, como ele conta entrar para o serviço da Igreja ao mesmo tempo que eu, não perde a esperança de vir a ser papa ou pelo menos cardeal: COM preendeis que um homem que tem essas ambições não se deixará apanhar ou, se for apanhado, sofrerá o martírio mas não falará.

‑ Bom, bom ‑ disse d'Artagnan ‑, passo‑vos Bazin de boa vontade, mas passai‑me Planchet: um dia Milady pô‑lo na rua à paulada; ora Planchet tem boa memória, e, garanto‑vos que, se considerar a possibilidade duma vingança, preferirá deixar‑se moer de pancada a desistir. Se os vossos assuntos de Tours são convosco, Aramis, os de Londres são comigo. Peço, pois, que escolhais Planchet, que aliás já foi comigo a Londres e sabe dizer correctamente: London, sir, if you please e my mas ter lord d'Artagnan; e ficai tranquilos, pois ele fará o caminho de ida e volta.

‑ Nesse caso ‑ disse Athos ‑, é preciso que Planchet receba setecentas libras para ir e setecentas libras para vir, e Bazin trezentas libras para ir e trezentas libras para vir; isto reduzirá a quantia a cinco mil libras; ficamos com mil libras para as gastarmos onde nos parecer necessário e deixaremos um fundo de mil libras, que o abade guardará para os casos extraordinários ou as necessidades comuns. Convém‑vos?

‑ Meu caro Athos ‑ disse Aramis ‑, vós falais como Nestor, que, como todos sabem, era o mais sábio dos gregos.

‑ Pois bem! Fica assente ‑ recomeçou Athos ‑, Planchet e Bazin partirão; vendo bem, não me importo de conservar Grimaud: está acostumado às minhas maneiras e eu não quero perdê‑lo; o dia de ontem já o deve ter abalado e essa viagem seria o seu fim.

Mandaram chamar Planchet, e deram‑lhe instruções; já fora prevenido por d'Artagnan que, à primeira, lhe anunciara a glória, depois o dinheiro e em seguida o perigo.

‑ Levarei a carta no forro da minha casaca ‑ disse Planchet ‑, e se me apanharem, engulo‑a.

‑ Mas nesse caso não poderás fazer o recado ‑ disse d'Artagnan.

‑ Dar‑me‑eis uma cópia esta noite que eu saberei de cor amanhã.

D'Artagnan olhou para os amigos como quem diz:

«Então? Que vos tinha prometido?»

‑ Agora ‑ continuou ele, dirigindo‑se a Planchet ‑, tens oito dias, para chegares junto a lorde de Winter, tens mais oito dias para voltares aqui, são dezasseis dias ao todo; se, no décimo sexto dia a contar da tua

partida, às oito da noite, não tiveres chegado, não recebes o dinheiro, ainda que sejam oito e cinco.

‑ Então, senhor ‑ disse Planchet ‑, comprai‑me um relógio.

‑ Toma este ‑ disse Athos, dando‑lhe o seu com despreocupada generosidade ‑, e sê bom rapaz. Lembra‑te de que, se falares, se conversares, se perderes tempo a passear, fazes cortar o pescoço ao teu amo, que tem tanta confiança na tua fidelidade que nos respondeu por ti. Mas lembra‑te também de que, se por tua causa acontecer algum mal a d'Artagnan, eu encontrar‑te‑ei onde quer que estejas e será para te abrir a barriga.

‑ Oh! Meu senhor! ‑ disse Planchet, humilhado com a suspeita e sobretudo apavorado com o ar calmo do mosqueteiro.

‑ E eu ‑ disse Porthos, revirando os olhos ‑, lembra‑te de que te esfolo vivo.

‑ Ah! Meu senhor!

‑ E eu ‑ continuou Aramis com a sua voz doce e melodiosa ‑, lembra‑te de que te asso a fogo lento como um selvagem.

‑ Ah! Meu senhor!

E Planchet pôs‑se a chorar; não ousaríamos dizer se foi de terror, por causa das ameaças que lhe faziam, ou de ternura por ver os quatro amigos tão estreitamente unidos.

D'Artagnan pegou‑lhe na mão e abraçou‑o.

‑ Estás a ver, Planchet ‑ disse‑lhe ele ‑, estes senhores dizem‑te tudo isto por causa da ternura que sentem por mim, mas no fundo estimam‑te.

‑ Ah, meu senhor! ‑ disse Planchet. ‑ Ou serei bem sucedido ou me cortarão em quatro partes, mas podeis estar certo de que, ainda que me cortem em quatro partes, nenhuma delas falará.

Decidiu‑se que Planchet partiria no dia seguinte às oito da manhã, para que, como ele dissera, pudesse decorar a carta durante a noite. Ganhou precisamente doze horas com este arranjo; devia estar de volta no décimo sexto dia às oito da noite.

De manhã, no momento em que ia montar a cavalo, d'Artagnan, que lá no fundo tinha um fraco pelo duque, chamou Planchet à parte.

‑ Escuta ‑ disse‑lhe ‑, quando entregares a carta a lorde de Winter e quando este a tiver lido, dizes‑lhe ainda: «Velai por Sua Graça Lorde Buckingham, pois querem‑no assassinar.» Mas, Planchet, vê tu que isto é tão grave e tão importante que nem quis confessar aos meus amigos que te confiaria este segredo e que, nem por uma comissão de capitão, quereria escrevê‑lo.

‑ Ficai sossegado, senhor ‑ disse Planchet ‑, vereis se se pode ou não contar comigo.

E, montado num excelente cavalo, que devia largar a vinte léguas para tomar a posta, Planchet partiu a galope, com o coração um pouco apertado com a tripla promessa que os três mosqueteiros lhe tinham feito, mas de resto nas melhores disposições do mundo.

Bazin partiu no dia seguinte de manhã para Tours, e teve oito dias para fazer o seu recado.

Como se compreende, durante estas duas ausências, os quatro amigos tinham mais que nunca os olhos à espreita, o nariz ao vento e os ouvidos à escuta. Passavam os dias a tentar surpreender o que se dizia, a espreitar as atitudes do cardeal e a farejar os correios que chegavam. Mais de uma vez os assaltou um tremor invencível, quando os chamaram para algum serviço inesperado. Aliás, tinham de ter cuidado por uma questão de segurança pessoal. Milady era um fantasma que quando aparecia uma vez às pessoas, não as deixava dormir sossegadas.

Na manhã do oitavo dia Bazin, sempre fresco e sorridente como era seu hábito, entrou na taberna de Parpaillot quando os quatro amigos almoçavam, dizendo, segundo o combinado:

‑ Sr. Aramis, eis a resposta da vossa prima.

Os quatro amigos trocaram um olhar de alegria: estava cumprida metade da tarefa, embora fosse a mais curta e a mais fácil.

Corando sem querer, Aramis pegou na carta, escrita com uma letra grosseira e sem ortografia.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou ele a rir. ‑ Decididamente perco as esperanças, a pobre Michon nunca escreverá como o Sr. Voiture.

‑ Que é que isso quer dizer, a pobre Michon? ‑ perguntou o suíço que conversava com os quatro amigos quando a carta chegou.

‑ Oh, meu Deus! Quase nada ‑ disse Aramis ‑, uma pequena roupeira encantadora de quem eu gostei muito e a quem pedi umas linhas escritas pelo seu punho como recordação.

‑ Apre! ‑ disse o suíço. ‑ Se é tão senhora como a sua letra, tenDes muita sorte, camarada!

Aramis leu a carta e passou‑a a Athos.

‑ Vede o que ela me escreve, Athos ‑ disse ele.

Athos passou os olhos pela epístola e, para fazer desvanecer todas as suspeitas que podiam ter surgido, leu em voz alta:

 

«Meu primo, minha irmã e eu adivinhamos muito bem os sonhos, e temos até muito medo deles; mas eu espero que se possa dizer do vosso: todo o sonho é mentira. Adeus! Saúde e dai‑nos notícias de vez em quando.

                     Marie MICHON.

 

‑ E a que sonho se refere? ‑ perguntou o dragão, que se aproximara durante a leitura.

‑ Sim, de que sonho? ‑ disse o suíço.

‑ Eh, apre! ‑ disse Aramis. ‑ É muito simples, a um sonho que eu tive e que lhe contei.

‑ Ah, sim, por Deus! Contar um sonho é bem simples, mas eu nunca sonho.

‑ Tendes muita sorte ‑ disse Athos levantando‑se ‑, e eu bem gostaria de poder dizer o mesmo.

‑ Nunca! ‑ disse o suíço, encantado por um homem como Athos lhe invejar alguma coisa. ‑ Nunca! Nunca!

D'Artagnan, vendo que Athos se levantava, fez o mesmo, deu‑lhe o braço e saiu.

Porthos e Aramis ficaram para enfrentarem as graçolas do dragão e do suíço.

Quanto a Bazin, foi deitar‑se em cima de um feixe de palha, e, como tinha mais imaginação que o suíço, sonhou que o Sr. Aramis, feito papa, o faria cardeal.

Mas, como dissemos, com o seu feliz regresso, Bazin apenas aliviara em parte a inquietação dos quatro amigos. Os dias de espera custam a passar, e sobretudo d'Artagnan teria apostado que os dias tinham agora quarenta e oito horas. Esquecia as demoras da navegação, exagerava o poder de Milady. Atribuía a esta mulher, que lhe surgia semelhante a um demónio, auxiliares sobrenaturais como ela; imaginava, ao menor ruído, que o vinham prender, e que traziam Planchet para o confrontar com ele e com os seus amigos. Mais ainda: a sua confiança no digno picardiano, outrora tão grande, diminuía de dia para dia. Esta inquietação era tão grande que contagiava Porthos e Aramis. Só Athos permanecia impassível, como se nenhum perigo se agitasse à sua volta, e ele respirasse a sua atmosfera de todos os dias.

No décimo sexto dia sobretudo estes sinais de agitação eram tão visíveis em d'Artagnan e nos seus dois amigos que não podiam estar quietos e erravam como sombras no caminho em que Planchet devia voltar.

‑ De facto ‑ dizia‑lhes Athos ‑, não sois homens, sois umas crianças, para que uma mulher vos meta tanto medo! E afinal de que se trata? De sermos presos! Muito bem! Mas hão‑de tirar‑nos da prisão: não tiraram a Sr.a Bonacieux? De sermos decapitados? Mas todos os dias nas trincheiras nos expomos a pior do que isso, pois uma bala pode partir‑nos uma perna, e tenho a certeza de que um cirurgião nos faz sofrer mais ao cortar‑nos a coxa do que um carrasco ao cortar‑nos a cabeça. Ficai, pois, sossegados: daqui a duas, a quatro, a seis horas, o mais tardar, Planchet estará aqui: prometeu que estaria, e eu tenho muita fé nas promessas de Planchet, que me parece muito bom rapaz.

‑ E se ele não chegar? ‑ disse d'Artagnan.

‑ Pois bem, se não chegar, é porque se atrasou, e pronto. Pode ter caído do cavalo, pode ter feito uma cabriola por cima da ponte, pode ter corrido tão depressa que tenha tido uma fluxão pulmonar. Eh! Meus senhores! Examinemos os acontecimentos. A vida é um rosário de pequenas misérias que o filósofo desafia a rir. Sede filósofos como eu, meus senhores, sentai‑vos à mesa e bebamos; o futuro nunca parece tão cor‑de‑rosa como quando é visto através dum copo de chambertin.

‑ Muito bem ‑ respondeu d'Artagnan ‑, mas estou cansado de temer, quando bebo, que o vinho tenha saído das caves de Milady.

‑ Sois muito exigente ‑ disse Athos ‑, uma mulher tão bela!

‑ Uma mulher de marca! ‑ disse Porthos com o seu forte riso. Athos estremeceu, passou a mão pela testa para limpar o suor, levantou‑se por sua vez com um movimento nervoso que não pôde reprimir.

Contudo, o dia passou‑se e a noite veio lentamente, mas acabou por vir; as tabernas encheram‑se de fregueses; Athos, que tinha arrecadado a sua parte do diamante, já não saía do Parpaillot. Tinha encontrado no Sr. de Busigny, que, de resto, lhes oferecera um magnífico jantar, um parceiro digno dele. Jogavam, pois, um com o outro, como de costume, quando deram as sete horas: ouviram‑se passar as patrulhas que iam reforçar os postos; às sete e meia tocou a recolher.

‑ Estamos perdidos ‑ disse d'Artagnan ao ouvido de Athos.

‑ Quereis dizer que perdemos ‑ disse tranquilamente Athos, tirando quatro pistolas do bolso e lançando‑as sobre a mesa. ‑ Vamos, meus senhores ‑ continuou. Toca a recolher, vamo‑nos deitar.

E Athos saiu do Parpaillot, seguido de d'Artagnan. Aramis vinha atrás, dando o braço a Porthos. Aramis mastigava uns versos, e Porthos, de vez em quando, arrancava uns pêlos do bigode, em sinal de desespero.

Mas eis que, subitamente, no escuro, se desenha uma sombra cuja forma é familiar a d'Artagnan, e que uma voz bem conhecida lhe diz:

‑ Senhor, trago‑vos a vossa capa pois a noite está fresca.

‑ Planchet! ‑ exclamou d'Artagnan, doido de alegria.

‑ Planchet! ‑ repetiram Porthos e Aramis.

‑ Muito bem! Sim, Planchet ‑ disse Athos ‑, que tem isso de espantoso? Ele tinha prometido estar de volta às oito horas e estão a dar as oito horas. Bravo, Planchet! Sois um rapaz de palavra e, se alguma vez largardes o vosso amo, tendes um lugar ao meu serviço.

‑ Oh! Não, nunca ‑ disse Planchet ‑, nunca deixarei o Sr. d'Artagnan.

Ao mesmo tempo d'Artagnan sentiu que Planchet lhe introduzia um bilhete na mão.

D'Artagnan tinha vontade de abraçar Planchet no regresso como o abraçara à partida, mas receou que esta prova de efusão dada ao seu lacaio no meio da rua parecesse extraordinária a quem por ali passasse e conteve‑se.

‑ Já tenho o bilhete ‑ disse ele a Athos e aos seus amigos.

‑ Está bem ‑ disse Athos ‑, vamos lê‑lo nos nossos aposentos.

O bilhete escaldava na mão de d'Artagnan, que queria acelerar

o passo. Mas Athos pegou‑lhe no braço, enfiou‑o no seu, e o jovem teve de acertar o passo pelo do seu amigo.

Por fim entraram na tenda, acenderam um candeeiro, e enquanto Planchet ficava à porta para que os quatro amigos não fossem surpreendidos, d'Artagnan, com mão trémula, quebrou o selo e abriu a tão esperada carta.

Esta continha meia linha, escrita com letra bem britânica e com uma concisão bem espartana:

 

«Thank you, be easy.»

 

O que queria dizer:

 

«Obrigado, ficai descansado.»

 

Athos tirou a carta das mãos de d'Artagnan, aproximou‑a do candeeiro, ateou‑lhe fogo e não a largou enquanto não se reduziu a cinzas.

Depois, chamando Planchet:

‑ Agora, meu rapaz ‑ disse‑lhe ‑, podes reclamar as tuas setecentas libras, mas não arriscavas grande coisa com um bilhete como aquele.

‑ Nem por isso inventei muitas maneiras de o esconder ‑ disse Planchet.

‑ Ora bem ‑ disse d'Artagnan ‑, conta lá isso.

‑ Apre! Isso é coisa para levar muito tempo, meu senhor.

‑ Tens razão, Planchet ‑ disse Athos ‑, aliás, já tocou a recolher e nós daríamos nas vistas se ficássemos com a luz acesa até mais tarde que os outros.

‑ Bom ‑ disse d'Artagnan ‑, vamo‑nos deitar. Dorme bem, Planchet!

‑ Irra, meu senhor! Será a primeira vez desde há dezasseis dias.

‑ E eu também! ‑ disse d'Artagnan.

‑ E eu também! ‑ repetiu Porthos.

‑ E eu também! ‑ repetiu Aramis.

‑ Muito bem! Quereis que vos confesse a verdade? Eu também! ‑ disse Athos.

 

         FATALIDADE

Contudo, Milady, cega de raiva, rugindo na coberta do navio como uma leoa ao ser embarcada, sentira‑se tentada a atirar‑se ao mar para voltar à costa, pois não conseguia admitir a ideia de que fora insultada por d'Artagnan, ameaçada por Athos e que deixava a França sem se vingar deles. Em breve esta ideia tornara‑se tão insuportável que, com o risco do que lhe poderia acontecer de terrível a si mesma, ela suplicara ao capitão que a levasse à costa; mas o capitão, cheio de pressa de escapar da sua falsa posição entre os cruzadores franceses e ingleses, como o morcego entre os ratos e os pássaros, tinha toda a urgência de chegar a Inglaterra e recusou‑se obstinadamente a obedecer àquilo que considerava um capricho feminino, prometendo à sua passageira, que lhe fora aliás muito recomendada pelo cardeal, que a desembarcaria, se o mar e os franceses o permitissem, num dos portos da Bretanha, quer em Lorient quer em Brest, mas entretanto o vento era contrário, o mar estava mau, o navio andava à bolina. Nove dias depois de saírem do Charente, Milady, muito pálida com os seus desgostos e a sua raiva, só via aparecerem as costas azuladas do Finisterra.

Calculou que, para atravessar aquele canto da França e chegar junto do cardeal, precisava de pelo menos três dias; mais um dia para o desembarque e eram quatro; juntando estes quatro dias aos outros nove, eram treze dias perdidos, treze dias durante os quais se podiam passar tantos acontecimentos importantes em Londres. Pensou que certamente o cardeal ficaria furioso com o seu regresso e que, por conseguinte, se inclinaria mais a escutar as queixas que lhe fariam contra ela do que as acusações que ela faria contra os outros. Portanto deixou passar Lorient e Brest sem insistir com o capitão que, por seu lado, também não lhe chamou a atenção. Milady prosseguiu, pois, o seu caminho e, no mesmo dia em que Planchet embarcava em Portsmouth para a França, a mensageira de Sua Eminência entrava, triunfante, no porto.

Toda a cidade estava agitada por um movimento extraordinário: quatro grandes navios recentemente construídos acabavam de ser lançados ao mar; de pé no molhe, coberto de ouro, cintilante, como habitualmente, de diamantes e de pedrarias, com o chapéu de feltro ornado duma pluma branca que lhe tombava sobre o ombro, via‑se Buckingham, rodeado por um estado‑maior quase tão brilhante como ele.

Era um desses belos e raros dias de Inverno em que a Inglaterra se lembra de que o sol existe. O astro pálido, mas contudo ainda esplêndido, punha‑se no horizonte, purpurejando o céu e o mar com faixas de fogo e lançando sobre as torres e as casas velhas da cidade um derradeiro raio de ouro que fazia brilhar as vidraças como o reflexo dum incêndio.

Milady, respirando aquele ar do Oceano mais vivo e mais balsâmico com a proximidade da terra, contemplando todo o poder daqueles preparativos que estava encarregada de destruir, todo o poder daquela armada que devia combater sozinha ‑ ela, uma mulher ‑ com uns sacos de ouro, comparou‑se mentalmente a Judite, a terrível judia, quando esta penetrou no acampamento dos assírios e viu a enorme massa de carros, de cavalos, de homens e de armas que um gesto da sua mão podia dissipar como uma nuvem de fumo.

Entraram na baía; mas, quando se preparavam para lançar a âncora, um pequeno cúter formidavelmente armado aproximou‑se do navio mercante, apresentando‑se como guarda costeiro, e lançou o seu bote ao mar, o qual se dirigiu para a escada. Neste bote vinham um oficial, um contramestre e oito remadores; só o oficial subiu a bordo, onde foi recebido com toda a deferência que o uniforme inspira.

O oficial conversou alguns instantes com o patrono, deu‑lhe a ler um papel de que era portador e, por ordem do capitão do navio mercante, toda a tripulação do mesmo, marinheiros e passageiros, foi chamada à coberta.

Feita esta espécie de apelo, o oficial indagou em voz alta quais haviam sido o ponto de partida do brigue, a sua rota, as suas paragens, e, a todas as perguntas, o capitão respondeu sem hesitação nem dificuldade. Então o oficial começou a passar revista a todas as pessoas, uma a uma, e, detendo‑se em Milady, considerou‑a com grande cuidado, mas não lhe dirigiu uma única palavra.

Depois voltou junto do capitão, disse‑lhe mais algumas palavras, e, como se dali em diante o navio lhe devesse obedecer, comandou uma manobra, que a tripulação imediatamente executou. Então o navio tornou a rumar, sempre escoltado pelo pequeno cúter, que vogava encostado a ele, ameaçando‑lhe o flanco com a boca dos seus seis canhões, enquanto a barca seguia no sulco do navio, como um pontinho ao pé da enorme massa.

Durante o exame que o oficial fizera de Milady, esta, naturalmente, devorara‑o com os olhos. Mas, embora esta mulher de olhos de chamas estivesse muito habituada a ler no coração daqueles cujos segredos precisava de adivinhar, desta vez encontrou um rosto de uma tal impassibilidade que a sua investigação não conduziu a nenhuma descoberta. O oficial que parara diante dela e que a estudara silenciosamente e com tanto cuidado podia ter vinte e cinco ou vinte e seis anos, tinha um rosto branco com os olhos azuis‑claros um pouco encovados; a sua boca, fina e bem desenhada, permanecia imóvel nas suas linhas correctas; o seu queixo, vigorosamente acusado, denotava essa força de vontade que, no tipo vulgar britânico geralmente não passa de obstinação; uma testa pequena, como convém aos poetas, aos entusiásticos e aos soldados, era levemente sombreada por uma cabeleira curta e rala que, como a barba que lhe cobria a parte inferior do rosto, era de uma bela cor castanho‑escura.

Quando entraram no porto já era noite. A bruma tornava a escuridão ainda mais espessa e formava em torno dos fanais e das lanternas do molhe um círculo semelhante ao que envolve a lua quando o tempo ameaçava chuva. O ar que se respirava era triste, húmido e frio.

Milady, essa mulher tão forte, sentia‑se a tremer.

O oficial mandou que lhe indicassem a bagagem de Milady e que a levassem para o bote; e, realizada esta operação, convidou‑a a descer por sua vez, estendendo‑lhe a mão.

Milady olhou para este homem e hesitou.

‑ Quem sois, senhor ‑ perguntou ela ‑, vós que tendes a bondade de vos ocupardes de mim de maneira tão especial?

‑ Deveis ver, minha senhora, pelo meu uniforme; sou oficial da marinha inglesa ‑ respondeu o rapaz.

‑ Mas, enfim, será costume os oficiais da marinha inglesa porem‑se às ordens dos seus compatriotas quando estes abordam um porto da Grã‑Bretanha e levarem a galantaria ao ponto de os conduzirem a terra?

‑ Sim, Milady, é costume, não por galantaria mas por prudência, em tempo de guerra os estrangeiros serem conduzidos a uma estalagem designada, a fim de que enquanto não se tiverem todas as informações sobre eles fiquem sob a vigilância do governo.

Estas palavras foram pronunciadas com a mais exacta cortesia e com a mais perfeita calma. Porém não tiveram o dom de convencer Milady.

‑ Mas eu não sou estrangeira, senhor ‑ disse ela com a pronúncia mais pura que jamais se ouviu de Portsmouth a Manchéster ‑, chamo‑me Lady Clarick e essa medida...

‑ Essa medida é geral, Milady, e seria inútil tentardes subtraír‑vos.

‑ Nesse caso, sigo‑vos, senhor.

E, aceitando a mão do oficial, começou a descer a escada em baixo da qual a esperava o bote. O oficial seguiu‑a; na popa estava estendida uma grande capa, o oficial disse‑lhe que se sentasse em cima da capa e sentou‑se ao seu lado.

‑ Remai ‑ disse ele aos marinheiros.

Os oito remos caíram na água com um único som, com uma única pancada, e o bote pareceu voar à tona d'água. Passado cinco minutos estavam em terra. O oficial saltou para o cais e ofereceu a mão a Milady. Um carro esperava.

‑ Este carro é para nós? ‑ perguntou Milady.

‑ Sim, minha senhora ‑ respondeu o oficial.

‑ Então a estalagem fica longe?

‑ Do outro lado da cidade.

‑ Vamos ‑ disse Milady. E, resoluta, entrou no carro.

O oficial verificou se prendiam bem as malas na bagageira e, terminada esta operação, sentou‑se ao lado de Milady e fechou a portinhola.

Imediatamente, sem que fosse dada alguma ordem e sem que fosse preciso indicar‑lhe o caminho, o cocheiro partiu a galope e embrenhou ‑se nas ruas da cidade.

Uma recepção tão estranha devia dar muito que pensar a Milady; assim, vendo que o jovem oficial não parecia nada disposto a entabular conversa, encostou‑se a um canto do carro e passou em revista, uma a uma, todas as suposições que lhe ocorriam.

Contudo, passado um quarto de hora, admirada por o percurso ser tão longo, debruçou‑se da portinhola para ver onde a levavam. Já não se viam casas; as árvores apareciam nas trevas como grandes fantasmas negros correndo uns atrás dos outros.

Milady arrepiou‑se.

‑ Mas já não estamos na cidade, senhor ‑ disse ela. O jovem oficial guardou silêncio.

‑ Não irei mais longe se não me disserdes onde me conduzis; previno‑vos, senhor!

Esta ameaça não obteve nenhuma resposta.

‑ Oh! Isto é de mais! ‑ exclamou Milady. ‑ Socorro! Socorro! Nenhuma voz lhe respondeu, o carro continuou a andar rapidamente; o oficial parecia uma estátua.

Milady fitou o oficial com uma dessas expressões terríveis típicas do seu rosto e que raramente falhavam o seu efeito; a cólera fazia‑lhe brilhar os olhos na penumbra.

O jovem permaneceu insensível.

Milady quis abrir a portinhola e atirar‑se.

‑ Tomai cautela, minha senhora ‑ disse friamente o mancebo ‑, pois, se saltardes, matar‑vos‑ei.

Milady tornou a sentar‑se, furiosa; o oficial debruçou‑se, fitou‑a por sua vez e pareceu surpreendido por ver aquele rosto, antes tão belo, alterado pela raiva e tornado quase medonho. A astuciosa criatura compreendeu que se perdia deixando ver a sua alma daquela maneira; serenou o rosto e gemeu:

‑ Por amor de Deus, senhor! Dizei‑me se é a vós, ao vosso governo, ou a um inimigo que devo atribuir esta violência que me fazem!

‑ Não vos fazem nenhuma violência, minha senhora, e o que vos acontece é o resultado duma medida bem simples que somos obrigados a tomar com todos os que desembarcam em Inglaterra.

‑ Então não me conheceis, senhor?

‑ É a primeira vez que tenho a honra de vos ver.

‑ E por vossa honra, não tendes nenhum motivo para me odiardes?

‑ Nenhum, juro‑vos.

Havia tanta serenidade, sangue‑frio e até doçura na voz do mancebo que Milady sossegou.

Por fim, após uma hora de marcha aproximadamente, o carro parou diante dum portão de ferro no fim dum caminho que conduzia a um castelo de forma severa, maciço e isolado. Então, quando o carro rolava sobre areia fina, Milady ouviu um vasto mugido que reconheceu como o som do mar quebrando‑se numa costa escarpada.

‑ Em todo o caso ‑ disse Milady, olhando em redor e pregando os olhos no jovem oficial, com o mais gracioso sorriso ‑ sou prisioneira; mas tenho a certeza de que não será por muito tempo ‑ acrescentou ‑; garantem‑mo a minha consciência e a vossa cortesia, senhor.

Por mais lisonjeiro que fosse o cumprimento, o oficial não respondeu, mas, tirando do cinto um assobio de prata semelhante ao que usam os contramestres nos vasos de guerra, assobiou três vezes, em três sons diferentes; então apareceram vários homens que desatrelaram os cavalos esbaforidos e levaram o carro para um alpendre.

Depois o oficial, sempre com a mesma cortesia calma, convidou a sua prisioneira a entrar na casa. Esta, sempre com o mesmo rosto sorridente, deu‑lhe o braço e entrou com ele por uma porta baixa e em arco que, através duma abóbada apenas iluminada ao fundo, conduzia a uma escadaria de pedra que subia em caracol; depois pararam diante duma porta maciça que, depois de introduzida na fechadura uma chave que o jovem trazia, rolou pesadamente nos gonzos e deu passagem a um quarto destinado a Milady.

Com um olhar, a prisioneira abraçou o aposento nos mínimos pormenores.

Era um quarto cujo mobiliário era ao mesmo tempo próprio para uma prisão e bastante severo para um aposento de homem livre: todavia, as grades nas janelas e os ferrolhos do lado de fora da porta decidiam a questão a favor da prisão.

Por um instante toda a força de alma desta criatura, que contudo se temperara nas fontes mais vigorosas, abandonou‑a; caiu numa poltrona, cruzando os braços, baixando a cabeça e esperando a cada instante ver surgir um juiz para a interrogar.

Mas ninguém entrou, salvo dois ou três soldados da marinha que trouxeram as malas, as puseram a um canto e se retiraram sem dizer nada.

O oficial presidia a todos estes pormenores com a mesma calma que Milady vira constantemente, não pronunciando uma palavra e fazendo‑se obedecer com um gesto ou com um assobio.

Dir‑se‑ia que, entre aquele homem e os seus subordinados, a língua falada não existia ou tornava‑se inútil.

Por fim, Milady não aguentou e rompeu o silêncio:

‑ Por amor de Deus, senhor! ‑ exclamou. ‑ Que quer tudo isto dizer? Esclarecei as minhas dúvidas; eu tenho coragem para todo o perigo que prevejo, e para toda a desgraça que compreendo. Onde estou e que faço aqui? Se sou livre, porquê estas grades e estas portas? Se sou prisioneira, que crime cometi?

‑ Estais no aposento que vos foi destinado, minha senhora, recebi ordens para vos ir buscar no mar e para vos conduzir a este castelo; i creio que cumpri essa ordem com toda a rigidez dum soldado, mas tambem com toda a cortesia dum gentil‑homem. Aqui termina, pelo menos por agora, a missão que eu devia cumprir junto de vós; o resto é com outra pessoa.

‑ E quem é essa pessoa? ‑ perguntou Milady. ‑ Não podeis dizer‑me o seu nome?...

Neste momento ouviu‑se nas escadas um grande alarido de esporas; algumas vozes passaram e extinguiram‑se, e o som dum passo isolado aproximou‑se da porta.

‑ Eis aqui essa pessoa, minha senhora ‑ disse o oficial, abrindo passagem e pondo‑se em atitude de respeito e de submissão.

Ao mesmo tempo a porta abriu‑se, e um homem apareceu no limiar. Estava descoberto, trazia a espada ao lado e amachucava um lenço entre os dedos.

Milady julgou reconhecer esta sombra na sombra; apoiou a mão no braço da poltrona, e avançou a cabeça como que para ir ao encontro duma certeza.

Então o estranho avançou lentamente; e, à medida que avançava entrando no círculo de luz projectada pelo candeeiro, Milady recuou involuntariamente.

Depois, quando já não teve dúvidas:

‑ O quê? O meu irmão! ‑ exclamou no auge da estupefacção. ‑ Sois vós?

‑ Sim, bela dama! ‑ respondeu lorde de Winter, fazendo uma saudação meio cortês, meio irónica. ‑ Eu mesmo.

‑ Mas então, este castelo?

‑ É meu.

‑ Este quarto?

‑ É vosso.

‑ Então sou vossa prisioneira?

‑ Praticamente.

‑ Mas isso é um abuso de força!

‑ Não exagereis; sentemo‑nos e conversemos tranquilamente, como convém entre um irmão e uma irmã.

Depois, virando‑se para a porta e vendo que o jovem oficial aguardava as suas últimas ordens:

‑ Está bem ‑ disse ele ‑, agradeço‑vos; agora, deixai‑nos, Sr. Felton.

 

         CONVERSA DUM IRMÃO COM A SUA IRMÃ

Enquanto lorde de Winter fechava a porta, empurrava um postigo e aproximava uma cadeira da poltrona da cunhada, Milady, sonhadora, mergulhou o olhar nas profundezas da possibilidade e descobriu toda a trama que não podia sequer ter entrevisto enquanto ignorava em que mãos tinha caído. Conhecia o cunhado como um bom gentil‑homem, caçador franco, jogador intrépido, empreendedor com as mulheres, mas de uma força inferior à sua para a intriga. Como teria descoberto a sua chegada? Como a tinha mandado apanhar? Por que a retinha?

Athos dissera‑lhe algumas palavras que provavam que a conversa que ela tivera com o cardeal caíra em ouvidos alheios, mas não podia admitir que tivessem podido abrir uma contramina tão pronta e tão ousada.

Receou mais que as suas precedentes operações em Inglaterra houvessem sido descobertas. Buckingham podia ter adivinhado que fora ela que cortara as duas agulhetas, e vingar‑se daquela pequena traição; mas Buckingham era incapaz de algum excesso contra uma mulher, sobretudo se supunha que agira por um sentimento de ciúme.

Esta suposição pareceu‑lhe a mais provável; achou que queriam vingar‑se do passado e não ir ao encontro do futuro. Porém, e em todo o caso, congratulou‑se por ter caído nas mãos do cunhado, ao qual contava levar a melhor, em vez de ter caído nas mãos dum inimigo directo e inteligente.

‑ Sim, conversemos, meu irmão ‑ disse ela com uma espécie de prazer, decidida como estava a tirar da conversa, apesar de toda a dissimulação que lorde de Winter pudesse usar, os esclarecimentos de que precisava para determinar a atitude a tomar.

‑ Então decidiste‑vos a voltar a Inglaterra ‑ disse lorde de Winter ‑, apesar da resolução que tantas vezes me havíeis manifestado em Paris de nunca mais pisardes o território da Grã‑Bretanha?

Milady respondeu à pergunta com outra pergunta.

‑ Antes de mais ‑ disse ela ‑ dizei‑me como me mandastes espiar tão severamente que fostes prevenido não só da minha chegada mas também do dia, da hora e do porto em que eu chegava.

Lorde de Winter adoptou a mesma táctica que Milady, pensando que, se a sua cunhada a empregava, devia ser a táctica certa.

‑ Mas dizei‑me vós mesma, minha cara irmã ‑ tornou ele ‑, que vindes fazer a Inglaterra?

‑ Mas venho ver‑vos ‑ respondeu Milady sem saber que com esta resposta agravava as suspeitas que a carta de d'Artagnan fizera nascer no espírito do cunhado, e querendo apenas captar a benevolência do seu auditor com uma mentira.

‑ Ah! Ver‑me? ‑ disse dissimuladamente lorde de Winter.

‑ Sem dúvida, ver‑vos. Que tem isso de espantoso?

‑ E, vindo a Inglaterra, não tendes outra finalidade além de me verdes?

‑ Não.

‑ Então foi só por minha causa que vos destes ao trabalho de atravessar a Mancha?

‑ Só por vossa causa.

‑ Apre! Que ternura, minha irmã!

‑ Mas não sou a vossa parente mais próxima? ‑ perguntou Milady com a mais comovente ingenuidade.

‑ E até a minha única herdeira, não é? ‑ disse por sua vez lorde de Winter, pregando os olhos nos de Milady.

Por maior que fosse o poder que tivesse sobre si própria, Milady não pôde deixar de estremecer e como, ao pronunciar as últimas palavras que dissera, lorde de Winter pousara a mão no braço da irmã, este estremecimento não lhe escapou.

Com efeito, o golpe era directo e profundo. A primeira ideia que ocorreu a Milady foi que tinha sido traída por Ketty, e que esta contara ao barão a aversão interesseira que ela manifestara imprudentemente diante da sua aia; lembrou‑se também da saída furiosa e imprudente que tivera contra d'Artagnan quando este salvara a vida do seu cunhado.

‑ Não compreendo, Milorde ‑ disse ela para ganhar tempo e fazer falar o seu adversário. ‑ Que quereis dizer? E há algum sentido oculto sob as vossas palavras?

‑ Oh, não, meu Deus! ‑ disse lorde de Winter com aparente bonomia. ‑ Vós desejais ver‑me e vindes a Inglaterra. Eu tomo conhecimento desse desejo, ou melhor, adivinho que o sentis, e a fim de vos poupar todos os incómodos duma chegada nocturna a um porto, todas as fadigas dum desembarque, envio um dos meus oficiais ao vosso encontro; ponho um carro às vossas ordens, o qual vos traz aqui a este castelo, de que sou governador, onde venho todos os dias, em que, para o nosso duplo desejo de nos vermos seja satisfeito, vos mando preparar um quarto. Que há em tudo o que digo de mais espantoso do que naquilo que me dissestes?

‑ Não, o que me parece espantoso foi terdes sido prevenido da minha chegada.

‑ Contudo isso é o mais simples, minha cara irmã: não vistes que o capitão do vosso pequeno navio tinha, ao entrar na baía, enviado à frente e a fim de obter a sua entrada no porto, um pequeno bote portador do seu livro de bordo e do seu registo da tripulação? Eu sou comandante do porto, trouxeram‑me esse livro e reconheci o vosso nome. O meu coração ditou‑me aquilo que a vossa boca me acaba de confiar, ou seja, com que finalidade vos expúnheis aos perigos dum mar tão perigoso ou pelo menos tão fatigante neste momento, e enviei o meu cúter ao vosso encontro. O resto já sabeis.

Milady compreendia que lorde de Winter mentia e ficou ainda mais assustada.

‑ Meu irmão ‑ continuou ela ‑, não foi milorde Buckingham que vi no molhe, à noite, quando cheguei?

‑ Ele mesmo. Ah! Compreendo que vos tenha impressionado ‑ retorquiu lorde de Winter ‑, vindes dum país em que se deve falar muito nele, e sei que os seus armamentos contra a França preocupam muito o vosso amigo cardeal.

‑ O meu amigo cardeal! ‑ exclamou Milady, vendo que, tanto nesse ponto como em qualquer outro, lorde de Winter parecia saber de tudo.

‑ Não é vosso amigo? ‑ continuou negligentemente o barão. ‑ Ah, perdão! Julgava. Mas voltaremos a falar de milorde‑duque mais tarde, não nos afastemos do tom sentimental que a conversa tinha tomado. Vós dizíeis que vínheis para me ver?

‑ Sim.

‑ Muito bem! Respondi‑vos que seríeis servida conforme os vossos desejos e que nos veríamos todos os dias.

‑ Devo então permanecer eternamente aqui? ‑ perguntou Milady assustada.

‑ Acaso vos sentis mal instalada, minha irmã? Pedi o que vos falta que me apressarei a mandar‑vo‑lo.

‑ Mas não tenho nem as minhas aias nem os meus criados...

‑ Tereis tudo isso, minha senhora; dizei‑me de que modo o vosso primeiro marido montara a vossa casa. Embora eu seja apenas o vosso cunhado, montar‑vos‑ei uma igual.

‑ O meu primeiro marido! ‑ exclamou Milady, fitando lorde de Winter com um olhar alucinado.

‑ Sim, o vosso marido francês; não falo do meu irmão.

De resto, como ainda é vivo, eu poderia escrever‑lhe e ele mandar‑me‑ia informações a esse respeito.

Um suor frio perlou a fronte de Milady.

‑ Troçais de mim ‑ disse ela com voz surda.

‑ Parece‑vos? ‑ perguntou o barão, levantando‑se e dando um pásso atrás.

‑ Ou melhor, insultais‑me ‑ continuou ela, fincando as mãos crispadas nos braços da poltrona e firmando‑se nos pulsos para se levantar.

‑ Insultar‑vos, eu! ‑ disse lorde de Winter com desprezo. ‑ Na verdade, minha senhora, achais que isso é possível?

‑ Na verdade, senhor ‑ disse Milady ‑, estais embriagado ou louco. Saí e enviai‑me uma mulher.

‑ As mulheres são muito indiscretas, minha irmã? Não poderei eu servir‑vos de aia? Desse modo os nossos segredos ficariam em família.

‑ Insolente! ‑ exclamou Milady e, como que impelida por uma mola, atirou‑se ao barão, que a esperou com impassibilidade, mas com a mão na da espada.

‑ Eh! Eh! ‑ disse ele. ‑ Já sei que tendes o hábito de assassinar as pessoas, mas eu defender‑me‑ei, previno‑vos, ainda que seja contra vós.

‑ Oh! Tendes razão ‑ disse Milady. ‑ E pareceis‑me suficientemente cobarde para levantar a mão contra uma mulher.

‑ Talvez sim; aliás, teria uma desculpa: a minha mão não seria a primeira mão de homem que teria pousado em vós, imagino.

E o barão apontou com um gesto lento e acusador o ombro esquerdo de Milady, quase tocando‑o com o dedo.

Milady soltou um rugido surdo, e recuou até ao canto do quarto, í como uma pantera que quer encurralar‑se para ganhar impulso.

‑ Oh! Rugi tanto quanto quiserdes! ‑ exclamou lorde de Winter ‑, mas não tenteis morder, pois previno‑vos de que isso vos prejudicaria: aqui não há procuradores que resolvem as sucessões por antecipação, não há nenhum cavaleiro errante que me venha provocar uma querela por causa de uma bela dama que tenho prisioneira; mas tenho juízes que poderão dispor duma mulher bastante desavergonhada para se introduzir, bígama, no leito de lorde de Winter, meu irmão mais velho, e previno‑vos de que esses juízes vos enviarão a um carrasco que vos fará os dois ombros iguais.

Os olhos de Milady lançavam tais chispas que, embora fosse homem e estivesse armado diante duma mulher desarmada, ele sentiu o frio deslizar até ao fundo da sua alma; mas nem por isso deixou de continuar com uma fúria crescente:

‑ Sim, compreendo, depois de terdes herdado de meu irmão, gostaríeis de herdar de mim; mas sabei desde já que me podeis matar ou mandar matar, já tomei as minhas precauções e nem um penny daquilo que possuo passará para as vossas mãos. Não sois já suficientemente rica, vós que possuis quase um milhão, e não podíeis caminhar na vossa caminhada fatal, se não fizésseis o mal senão pelo prazer infinito e supremo de fazer o mal? Oh! Digo‑vos que, se a memória de meu irmão não fosse sagrada para mim, iríeis apodrecer num cárcere do Estado ou saciar em Tyburn a curiosidade dos marinheiros; eu calar‑me‑ei, mas vós, suportai tranquilamente o vosso cativeiro; daqui a quinze ou vinte dias parto para La Rochelle com a armada mas, na véspera da minha partida, um navio virá buscar‑vos, um navio que eu verei partir e que vos conduzirá às colónias do Sul; e, podeis ficar descansada pois mandarei convosco um companheiro que vos meterá uma bala na cabeça à primeira tentativa que fizerdes para voltar a Inglaterra ou ao continente.

Milady escutava com uma atenção que lhe ditava os olhos inflamados.

‑ Sim, mas por enquanto ‑ continuou lorde de Winter ‑, ficareis neste castelo: as muralhas são espessas, as portas são fortes, as grades são sólidas; aliás, a vossa janela é a pique sobre o mar; os homens da minha tripulação, que me são dedicados para a vida e para a morte, montam guarda em volta deste aposento e vigiam todas as passagens que conduzem ao pátio; depois, se chegásseis ao pátio, ainda tínheis de atravessar três portões. As ordens são precisas: um passo, um gesto, uma palavra que simule evasão, e fazem fogo sobre vós; se vos matarem, a justiça inglesa fica‑me a dever o favor, espero eu, de lhe ter poupado esse trabalho. Ah! Pareceis mais calma, mais segura: Quinze dias. vinte dias, dizeis vós, ora!, daqui até lá, tenho um espírito inventivo e há‑de ocorrer‑me alguma ideia; tenho um espírito infernal, hei‑de encontrar alguma vítima. Daqui a quinze dias, dizeis vós, estarei fora daqui. Ah, ah! Tentai!

Vendo que lhe adivinhavam os pensamentos, Milady cravou as unhas na carne para dominar todo o movimento susceptível de dar à sua fisionomia algum significado, além da angústia.

Lorde de Winter continuou:

‑ O oficial que comanda aqui sozinho na minha ausência, que já vistes e portanto já conheceis, sabe, como vedes, observar uma ordem, pois eu bem vos conheço e sei que não viestes de Portsmouth até aqui sem terdes tentado fazê‑lo falar. Que dizeis? Uma estátua de mármore teria sido mais impassível e mais muda? Já experimentastes o poder da vossa sedução com muitos homens e, infelizmente, fostes sempre bem sucedida; mas tentai com esse, co a breca!, se conseguirdes fazê‑lo vergar, declaro‑vos o demónio em pessoa.

Dirigiu‑se para a porta e abriu‑a bruscamente.

‑ Chamai o Sr. Felton ‑ disse ele. ‑ Esperai mais um instante, vou recomendar‑vos a esse homem.

Estabeleceu‑se entre estes dois personagens um estranho silêncio, durante o qual se ouviu o som dum passo lento e regular que se aproximava; em breve, na sombra do corredor, viu‑se desenhar uma forma hu mana e o jovem tenente com o qual já travámos conhecimento parou no limiar, aguardando as ordens do barão.

‑ Entrai, meu caro John ‑ disse lorde de Winter ‑, entrai e fechai a porta.

O jovem oficial entrou.

‑ Agora ‑ disse o barão ‑, olhai para esta mulher: é jovem, é bela, tem todas as seduções da terra. Ora bem! Ela é um monstro que, aos vinte e cinco anos, se tornou culpada de tantos crimes quantos os que podeis ler num ano nos arquivos dos nossos tribunais; a sua voz abona em seu favor, a sua beleza serve de engodo às vítimas, o seu próprio corpo paga aquilo que ela prometeu, justiça lhe seja feita; tentará seduzir‑vos; até talvez tente matar‑vos. Eu tirei‑vos da miséria, Felton, fiz‑vos tenente, salvei‑vos a vida uma vez, sabeis em que ocasião; sou para vós não só um protector mas também um amigo, não só um benfeitor mas também um pai; esta mulher voltou a Inglaterra a fim de conspirar contra a minha vida; tenho esta serpente nas minhas mãos; pois bem, mando‑vos chamar e digo‑vos: Amigo Felton, John, meu filho, defende‑me e sobretudo defende‑te contra esta mulher; jura pela tua salvação que a conservarás para o castigo que ela mereceu. John, Felton, eu confio na tua palavra; John Felton, eu confio na tua lealdade.

‑ Milorde ‑ disse o jovem oficial, carregando o seu olhar puro de todo o ódio que pôde encontrar no coração ‑, milorde, juro‑vos que se fará como desejais.

Milady recebeu este olhar como vítima designada: era impossívell ver uma expressão mais submissa e mais doce que a que reinava no seu belo rosto. O próprio lorde de Winter mal reconheceu a leoa que momentos antes se preparava para combater.

‑ Jamais sairá deste quarto, ouvis, John? ‑ continuou o barão. ‑ Não se corresponderá com ninguém, só falará convosco, se acaso quiserdes dar‑lhe a honra de lhe dirigir a palavra.

‑ Basta, milorde, já jurei.

‑ E agora, minha senhora, tratai de fazer as pazes com Deus, pois sois julgada pelos homens.

Milady deixou cair a cabeça como se se sentisse esmagada por este juízo. Lorde de Winter saiu, fazendo um gesto a Felton, que saiu atrás dele e fechou a porta.

Passado um instante ouvia‑se no corredor o passo pesado dum soldado da marinha de sentinela, com o machado à cinta e o mosquete na mão.

Milady permaneceu uns minutos na mesma posição, pois pensou que talvez a examinassem através da fechadura; depois, lentamente, ergueu a cabeça, que ganhara uma expressão formidável de ameaça e de desafio, correu a escutar à porta, olhou pela janela e, voltando a enterrar‑se numa vasta poltrona, ficou a pensar.

 

         OFICIAL

Contudo, o cardeal esperava notícias de Inglaterra, mas não chegavam nenhumas, a não ser desagradáveis e ameaçadoras.

La Rochelle foi atacada, o êxito parecia certo, graças às precauções tomadas e, sobretudo, graças ao dique que já não deixava penetrar nenhum barco na cidade sitiada; contudo, o bloqueio ainda podia durar muito tempo, e isso era uma grande afronta para as armas do rei e um grande incómodo para o Sr. Cardeal, que já não tinha que indispor Luís XIII com Ana de Áustria, é certo, pois a coisa estava feita, mas sim que reconciliar o Sr. de Bassompierre, que estava indisposto com o duque de Angoulême.

Quanto ao rei, que começara o cerco, deixava ao cardeal o encargo de o terminar.

A cidade, apesar da incrível perseverança do alcaide, tentara uma espécie de amotinação para se render; o alcaide mandara enforcar os amotinados. Esta execução acalmou os mais teimosos, que então se decidiram a deixar‑se morrer de fome. Esta morte sempre lhes parecia mais lenta e menos segura que morrerem estrangulados.

Por seu lado, de tempos a tempos, os sitiantes capturavam os mensageiros que os rocheleses enviavam a Buckingham ou os espiões que Buckingham enviava aos rocheleses. Em ambos os casos o processo era rápido. O Sr. Cardeal dizia apenas a palavra: Enforcado! Convidavam o rei a vir assistir ao enforcamento. O rei vinha languidamente, escolhia um bom lugar para poder ver todos os pormenores da operação; aquilo sempre o distraía um pouco e dava‑lhe paciência para suportar o cerco, mas não o impedia de se aborrecer muito, de estar sempre a falar em voltar a Paris, de modo que, se acaso faltassem os mensageiros e os espiões, Sua Eminência, apesar de toda a sua imaginação, ficaria muito embaraçada.

Contudo, o tempo passava e os rocheleses não se rendiam; o último espião que tinham capturado era portador duma carta. Esta dizia a Buckingham que a cidade estava nas últimas mas, em vez de acrescentar: «Se o vosso socorro não chegar dentro de quinze dias, rendemo‑nos», acrescentava muito simplesmente: «Se o vosso socorro não chegar dentro de quinze dias, estaremos todos mortos de fome quando chegar». Assim, os rocheleses só tinham esperanças em Buckingham; Buckingham era o seu Messias. Era evidente que, se um dia tivessem a certeza de que já não podiam contar com Buckingham, a sua coragem desvanecer‑se‑ia com a esperança.

O cardeal esperava, pois, com grande impaciência notícias de Inglaterra que deviam anunciar que Buckingham não viria.

A questão de tomar a cidade à força, muitas vezes debatida no conselho do rei, fora sempre posta de parte; primeiro La Rochelle parecia inexpugnável, depois o cardeal, por mais que tivesse dito, sabia muito bem que o horror do sangue derramado nessa confrontação em que franceses deviam combater contra franceses era um movimento retrógrado de sessenta anos imprimido à política, e o cardeal era naquela época aquilo a que hoje se chama um homem de progresso. Com efeito, o saque de La Rochelle, o assassinato de três ou quatro mil huguenotes que se tivessem deixado matar seria muito semelhante, em 1628, ao massacre de São Bartolomeu em 1572; e depois, acima de tudo, esse meio extremo, que não repugnava ao rei, bom católico, encalhava sempre neste argumento dos generais sitiantes: La Rochelle é inexpugnável, excepto pela fome.

O cardeal não podia afastar do espírito o receio que a sua terrível emissária lhe causava, pois também ele compreendera as estranhas proporções daquela mulher, ora serpente ora leão. Traíra‑o? Estava morta? Em todo o caso, conhecia‑a o suficiente para saber que, agindo por ele ou contra ele, amiga ou inimiga, ela não permaneceria imóvel senão por grandes impedimentos. E isso era o que ele não podia saber.

De resto, contava, e com razão, com Milady: adivinhara no passado desta mulher coisas terríveis que só o seu manto vermelho podia cobrir, e sentia que, por uma causa ou por outra, esta mulher lhe pertencia, só nele podendo encontrar um apoio superior ao perigo que a ameaçava.

Resolveu, portanto, fazer a guerra sozinho e apenas esperar todo o acontecimento externo como se espera uma hipótese feliz. Continuou a mandar construir o famoso dique que devia causar a fome a La Rochelle; entretanto, lançava os olhos àquela pobre cidade, que encerrava tanta miséria profunda e tantas virtudes heróicas, e, recordando as palavras de Luís XI, seu precursor político como ele mesmo era o precursor de Robespierre, murmurou esta máxima do comparsa de Tristão: «Dividir para reinar.»

Henrique IV, sitiando Paris, atirava das muralhas pão e víveres; O cardeal mandou atirar bilhetinhos em que mostrava aos rocheleses como a atitude dos seus chefes era injusta, egoísta e bárbara; estes chefes tinham trigo em abundância, e não o partilhavam; adoptavam a máxima, pois eles também tinham máximas, de que pouco importava que morressem as mulheres, as crianças e os velhos, desde que os homens que deviam defender as suas muralhas continuassem fortes e saudáveis. Até ali, quer por dedicação quer por impotência para reagir contra ela, esta máxima, embora não sendo adoptada na generalidade, havia contudo passado da teoria à prática; mas os bilhetes vieram pô‑la ainda mais em causa. Estes bilhetes lembravam aos homens que aquelas crianças, aquelas mulheres e aqueles velhos que eles deixavam morrer eram os seus filhos, as suas esposas e os seus pais; que seria mais justo que cada um ficasse reduzido à miséria comum, a fim de que uma posição comum fizesse tomar resoluções unânimes.

Estes bilhetes produziram todo o efeito que aquele que os escrevera podia esperar, pois determinavam um grande número de habitantes a abrir negociações particulares com o exército régio.

Mas no momento em que o cardeal já via frutificar o seu expediente e se congratulava por o ter posto em prática, um habitante de La Rochelle, que conseguira atravessar as linhas do rei, sabe Deus como, tão grande era a vigilância de Bassompierre, de Schomberg e do duque de Angoulême, que por sua vez eram vigiados pelo cardeal, um habitante de La Rochelle, dizíamos, entrou na cidade, vindo de Portsmouth e dizendo que vira uma frota magnífica pronta para navegar dali a menos de oito dias. Além disso, Buckingham anunciava ao presidente que finalmente ia ser declarada a grande liga contra a França e que o reino ia ser invadido simultaneamente pelas armadas inglesas, imperiais e espanholas. Esta carta foi lida publicamente em todas as praças, afixaram‑se cópias nas esquinas, e os mesmos que tinham começado a travar negociações interromperam‑nas, resolvidos a esperar este socorro tão pomposamente anunciado.

Esta circunstância inesperada devolveu a Richelieu as suas primitivas inquietações, e forçou‑o a virar de novo os olhos para o outro lado do mar.

Entretanto, isento das inquietações do seu único e verdadeiro chefe, o exército real divertia‑se; os víveres não faltavam no acampamento, nem tão‑pouco o dinheiro; todos os corpos rivalizavam em audácia e boa disposição. Apanhar espiões e mandar enforcá‑los, fazer expedições arrojadas no dique ou no mar, imaginar loucuras, executá‑las friamente, tal era o passatempo que fazia o exército achar curtos aqueles dias tão longos, não só para os rocheleses, roídos de fome e de ansiedade, mas também para o cardeal, que os bloqueava tão vivamente.

Por vezes, quando o cardeal, sempre cavalgando como o último guarda do exército, passeava o seu olhar pensativo pelas obras, tão lentas para os seus desejos, que construíam por sua ordem os engenheiros que mandava vir de todos os cantos do reino de França, se encontrava algum mosqueteiro da companhia de Tréville, aproximava‑se dele, olhava‑o de maneira singular e, não reconhecendo nele um dos nossos quatro companheiros, desviava o seu olhar profundo e o seu vasto pensamento.

Um dia em que, roído de um tédio mortal, sem esperança nas negociações com a cidade, sem notícias de Inglaterra, o cardeal saíra só por sair, acompanhado apenas de Cahusac e de La Houdinière, percorrendo os areais e confundindo a imensidão dos seus sonhos com a imensidão do oceano, chegou a passo a uma colina do alto da qual avistou por trás duma sebe, deitados na areia e apanhando à passagem um desses raios de sol tão raros naquela época do ano, sete homens rodeados de garrafas vazias. Quatro eram mosqueteiros que se preparavam para escutar a leitura duma carta que um deles acabava de receber. Esta carta era tão importante que fizera abandonar em cima dum tambor as cartas de jogar e os dados.

Os outros três tratavam de abrir um enorme garrafão de vinho de Collioure; eram os lacaios daqueles senhores.

O cardeal, como dissemos, estava de humor sombrio e, quando estava com esse espírito, não havia nada que aumentasse tanto a sua indisposição como a alegria dos outros. Tinha, aliás, uma preocupação estranha: achava sempre que a causa da sua tristeza excitava a alegria dos estranhos. Fazendo sinal a La Houdinière e a Cahusac para pararem, apeou‑se do cavalo e aproximou‑se dos folgazões suspeitos, esperando que, graças à areia que abafaria os seus passos e à sebe que ocultaria o seu avanço poderia ouvir algumas palavras daquela conversa que lhe parecia tão interessante; apenas a dez passos da sebe reconheceu o palavreado gascão de D'Artagnan e, como já sabia que aqueles homens eram mosqueteiros, não duvidou de que os outros fossem os chamados inseparáveis, ou seja, Athos, Porthos e Aramis.

Bem se vê que o seu desejo de ouvir a conversa cresceu com esta descoberta; os seus olhos ganharam uma expressão estranha e, com um passo de gato bravo, o cardeal avançou para a sebe, mas ainda não tinha podido captar mais do que umas sílabas vagas e sem nenhum sentido positivo quando um grito sonoro e breve o fez estremecer e chamou a atenção dos três mosqueteiros.

‑ Oficial! ‑ gritou Grimaud.

‑ Creio que falais, seu engraçado ‑ disse Athos, soerguendo‑se num cotovelo e fascinando Grimaud com o seu olhar chamejante.

Portanto Grimaud não acrescentou uma palavra, contentando‑se em estender o dedo indicador na direcção da sebe denunciando com este gesto o cardeal e a sua escolta.

Com um salto os quatro mosqueteiros puseram‑se em pé e cumprimentaram respeitosamente.

O cardeal estava furioso.

‑ Parece que os senhores mosqueteiros se fazem guardar! ‑ disse ele. ‑ Será que o Inglês vem por terra, ou será que os mosqueteiros se consideram oficiais superiores?

‑ Monsenhor ‑ respondeu Athos, pois no meio do susto geral só ele conservava a calma e o sangue‑frio de grande senhor que nunca o abandonavam ‑, Monsenhor, os mosqueteiros, quando não estão de serviço ou quando o seu serviço terminou, bebem e jogam os dados, e são oficiais muito superiores para os seus lacaios.

‑ Lacaios! ‑ resmungou o cardeal. ‑ Lacaios que têm ordem de avisar os seus amos quando alguém passa não são lacaios, são sentinelas.

‑ Sua Eminência, contudo, vê perfeitamente que, se não tivéssemos tomado essa precaução, estaríamos expostos a deixá‑lo passar sem lhe apresentarmos os nossos respeitos nem lhe oferecermos os nossos agradecimentos pelo favor que nos fez de nos reunir. D'Artagnan ‑ continuou Athos ‑, vós que há pouco pedíeis esta ocasião de exprimir a vossa gratidão a Monsenhor, aqui a tendes. Aproveitai.

Estas palavras foram pronunciadas com a fleuma imperturbável que distinguia Athos nas horas de perigo, e com a excessiva polidez que fazia dele em certos momentos um rei mais majestoso que os próprios reis.

D'Artagnan aproximou‑se e balbuciou algumas palavras de gratidão que em breve expiraram sob o olhar carregado do cardeal.

‑ Não importa, meus senhores ‑ continuou o cardeal, sem parecer ter‑se desviado da sua primitiva intenção por causa do incidente que Athos provocara. ‑ Não importa, meus senhores, não me agrada que uns simples soldados, por terem a vantagem de servir num corpo privilegiado, se arvorem assim em grandes senhores, e a disciplina é igual para todos.

Athos deixou o cardeal concluir perfeitamente a sua frase e, inclinando‑se em sinal de assentimento, disse por sua vez:

‑ Espero, Monsenhor, que de modo algum tenhamos esquecido a disciplina. Não estamos em serviço e pensámos que, não estando de serviço, podíamos dispor do nosso tempo como nos apetecesse. Se temos a felicidade de Sua Eminência ter alguma ordem particular a transmitir‑nos, estamos prontos a obedecer‑lhe. Monsenhor bem vê ‑ continuou Athos, franzindo o sobrolho pois esta espécie de interrogatório começava a impacientá‑lo ‑, que para estarmos prontos para o menor alerta, saímos com as nossas armas.

E mostrou ao cardeal os quatro mosquetes agrupados junto do tambor, em cima do qual estavam as cartas e os dados.

‑ Creia, Vossa Eminência ‑ acrescentou Athos ‑, que teríamos ido ao seu encontro se pudéssemos supor que era ela que vinha ter connosco em tão pequena companhia.

O cardeal mordiscava os bigodes e um pouco os lábios.

‑ Sabeis o que pareceis, sempre juntos como estais, armados e guardados pelos vossos lacaios? ‑ disse o cardeal. ‑ Pareceis quatro conspiradores.

‑ Oh! Quanto a isso, Monsenhor, é verdade ‑ disse Athos ‑, e nós conspiramos, como Vossa Eminência pôde ver na outra manhã, mas contra os rocheleses.

‑ Eh! Senhores políticos ‑ continuou o cardeal franzindo por sua vez o sobrolho ‑, talvez se encontrasse nos vossos cérebros o segredo de muitas coisas que se ignoram, se se pudesse ler neles como vós líeis nessa carta que escondestes quando me vistes chegar.

Athos corou, e deu um passo na direcção de Sua Eminência.

‑ Dir‑se‑ia que suspeitais realmente de nós, Monsenhor, e que somos submetidos a um verdadeiro interrogatório; se assim é, que Vossa Eminência se digne explicar‑se e ao menos saberemos do que se trata.

‑ E se fosse um interrogatório? ‑ respondeu o cardeal. ‑ Outros já foram submetidos a interrogatório, Sr. Athos, e responderam.

‑ Por isso, Monsenhor, eu disse a Vossa Eminência que era só perguntar e que estávamos prontos para responder.

‑ Que carta era essa que íeis ler, Sr. Aramis, e que vós escondestes?

‑ Era a carta duma mulher, Monsenhor.

‑ Oh! Compreendo ‑ disse o cardeal ‑, há que ser discreto com esse género de cartas;, contudo, é possível mostrá‑las a um confessor e, como sabeis, eu fui ordenado.

‑ Monsenhor ‑ disse Athos com uma calma ainda mais terrível porquanto arriscava a cabeça ao dar esta resposta ‑, a carta é duma mulher, mas não está assinada nem Marion de Lorme nem M.me d'Aiguillon.

O cardeal pôs‑se pálido como um morto, um brilho feroz brotou dos seus olhos; virou‑se como que para dar uma ordem a Cahusac e a La Houdinière. Athos viu o movimento; deu um passo para os três mosquetes, nos quais os três amigos tinham os olhos postos como quem não está disposto a deixar‑se prender. O cardeal era o terceiro; os mosqueteiros, contando com os lacaios, eram sete; achou que a partida seria desigual, que Athos e os seus companheiros conspiravam realmente e, com uma daquelas reviravoltas que tinha sempre à sua disposição,, toda a sua cólera se fundiu num sorriso.

‑ Vamos, vamos! ‑ disse ele. ‑ Vós sois uns valentes, orgulhosos à luz do dia e fiéis na escuridão; não há nenhum mal em guardar‑me a mim quando se guardam tão bem os outros; meus senhores, eu não esqueci a noite em que me servistes de escolta para ir ao Colombier‑Rouge; se houvesse algum perigo na estrada que vou seguir, pedir‑vos‑ia que me acompanhásseis, mas, como não há, ficai onde estais, acabai as vossas garrafas, a vossa partida e a vossa carta. Adeus, meus senhores.

E, montando no cavalo que Cahusac trouxera, saudou‑os e afastou‑se.

Os quatro jovens, de pé e imóveis, seguiram‑no com os olhos sem dizer uma palavra, até que ele desapareceu.

Depois entreolharam‑se.

Todos tinham um ar consternado, pois, apesar da despedida amigável de Sua Eminência, compreendiam que o cardeal partia furioso.

Apenas Athos sorria com um ar de poder e desdém. Quando o cardeal ficou fora do alcance da voz e da vista:

‑ Esse Grimaud gritou muito tarde! ‑ disse Porthos, desejoso de descarregar o seu mau humor em alguém.

Grimaud ia responder para se desculpar. Athos ergueu o dedo e Grimaud calou‑se.

‑ Teríeis entregado a carta, Aramis? ‑ disse d'Artagnan.

‑ Eu estava decidido ‑ disse Aramis com a sua voz mais aflautada ‑, se ele tivesse exigido que lhe entregássemos a carta, apresentava‑lha com uma das mãos e com a outra enfiava‑lhe a espada no corpo.

‑ Era o que eu esperava ‑ disse Athos ‑, por isso me lancei entre vós e ele. Na verdade esse homem é muito imprudente falando assim a outros homens; dir‑se‑ia que nunca lidou senão com mulheres e crianças.

‑ Meu caro Athos ‑ disse d'Artagnan ‑, eu admiro‑vos. Contudo, afinal, nós estávamos errados.

‑ Como! Errados? ‑ respondeu Athos. ‑ Então a quem pertence o ar que respiramos? A quem pertence este oceano sobre o qual se estendem os nossos olhos? A quem pertence a areia em que estávamos deitados? A quem pertence a carta da vossa amante?

Ao cardeal? Palavra de honra, esse homem imagina que o mundo lhe pertence; vós estáveis ali, balbuciante, estupefacto, aniquilado; dir‑se‑ia que a Bastilha se erguia perante vós e que a gigantesca Medusa vos transformava em pedra. Estar apaixonado acaso é conspirar? Estais apaixonado por uma mulher que o cardeal mandou encarcerar, quereis tirá‑la das mãos do cardeal; é uma partida que vós jogais com Sua Eminência: essa carta é o vosso jogo; por que mostraríeis o jogo ao vosso adversário? Isso não se faz. Ele que o adivinhe quando puder! Nós adivinhamos o dele!

‑ De facto ‑ disse d'Artagnan ‑, o que dizeis tem muito sentido,

Athos.

‑ Nesse caso, que não se fale mais no que acaba de passar‑se, e que Aramis recomece a carta da prima no ponto em que o Sr. Cardeal a interrompeu.

Aramis tirou a carta do bolso, os três amigos aproximaram‑se dele, e os três lacaios de novo se agruparam à volta do garrafão.

‑ Só tínheis lido uma ou duas linhas ‑ disse d'Artagnan. ‑ Recomeçai a carta a partir do princípio.

‑ De acordo ‑ disse Aramis.

Meu caro primo, creio que me decidirei a partir para Stenay, onde minha irmã fez entrar a nossa criadinha no convento das Carmelitas; a pobre moça resignou‑se, sabe que não pode viver noutro sítio sem que a salvação da sua alma esteja em perigo. Contudo, se os negócios da nossa família se resolverem como desejamos, creio que ela correrá o risco de se perder e que voltará para junto daqueles de quem tem saudades, tanto mais que sabe que continuam a pensar nela. Entretanto, não se sente muito infeliz: tudo o que deseja é uma carta do seu pretendente. Sei que esse género de mercadorias dificilmente passam pelas grades; mas, afinal, como já vos dei provas, meu caro primo, eu não sou muito inábil e encarregar‑me‑ei do vosso recado. Minha irmã agradece‑vos a vossa boa e eterna lembrança. Teve um instante de grande inquietação; mas enfim, agora está um pouco mais tranquila, pois mandou para lá o seu enviado a fim de que não se passe nada de imprevisto.

Adeus, meu caro primo, dai‑nos notícias sempre que puderdes, ou seja, sempre que achardes que podeis fazê‑lo com segurança. Um abraço.

               MARIE MICHON

 

‑ Oh! Quanto vos devo, Aramis! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Cara Constance! Finalmente tenho notícias suas. Está viva, está em segurança num convento, está em Stenay! Onde fica Stenay, Athos?

‑ Mas a poucas léguas das fronteiras; uma vez levantado o cerco, poderemos dar uma vista de olhos por esses lados.

‑ E é de esperar que isso não tarde ‑ disse Porthos ‑, pois esta manhã enforcaram um espião que declarou que os rocheleses já estavam reduzidos ao couro dos sapatos. Suponho que depois de comerem o couro comem a sola, não vejo o que lhes restará, a menos que se comam uns aos outros.

‑ Pobres tolos! ‑ disse Athos, esvaziando um copo de excelente vinho de Bordeaux que, não tendo naquela época a reputação que tem actualmente, nem por isso a merecia menos. ‑ Pobres tolos! Como se a religião católica não fosse a mais vantajosa e a mais agradável das religiões! É a mesma coisa ‑ prosseguiu, depois de ter dado um estalo com a língua ‑, é boa gente. Mas que diabo fazeis, Aramis? ‑ continuou Athos. ‑ Meteis a carta no bolso?

‑ Sim ‑ disse d'Artagnan ‑, Athos tem razão, temos de queimá‑la, E mesmo assim, quem sabe se o Sr. Cardeal não tem um segredo para interrogar as cinzas...

‑ Deve ter algum ‑ disse Athos.

‑ Mas que quereis fazer com essa carta? ‑ perguntou Porthos.

‑ Vinde cá, Grimaud ‑ disse Athos. Grimaud levantou‑se e obedeceu.

‑ Para vos castigar por terdes falado sem autorização, meu amigo, ides comer este pedaço de papel; depois, para vos recompensar do serviço que nos fizestes, bebereis um copo deste vinho. Primeiro a carta, mastigai com energia.

Grimaud sorriu e, com os olhos postos no copo que Athos acabava de encher até aos bordos, mastigou o papel e engoliu‑o.

‑ Bravo, mestre Grimaud! ‑ disse Athos. ‑ E agora tomai isto; bom, dispenso‑vos de agradecer.

Grimaud engoliu silenciosamente o copo de vinho de Bordeaux, mas, enquanto a doce operação durou, os seus olhos erguidos para o céu falavam uma linguagem que, por ser muda, não era menos expressiva.

‑ E agora ‑ disse Athos ‑, a menos que o Sr. Cardeal tenha a engenhosa ideia de mandar abrir a barriga a Grimaud, creio que podemos ficar mais ou menos sossegados.

Entretanto, Sua Eminência continuava o seu passeio melancólico, murmurando por entre os bigodes:

‑ Decididamente, tenho de apanhar aqueles quatro.

 

         PRIMEIRO DIA DE CATIVEIRO

Voltemos a Milady, que um olhar lançado às costas da França nos fizera perder de vista um instante.

Encontrá‑la‑emos na posição desesperada em que a deixámos, cavando um abismo de reflexões sombrias, sombrio inferno à porta do qual quase deixou a esperança, pois pela primeira vez, ela duvida, pela primeira vez tem medo.

Em duas ocasiões a sua sorte faltou‑lhe, em duas ocasiões viu‑se descoberta e traída, e nessas duas ocasiões foi contra o génio fatal certamente enviado pelo Senhor para a combater que ela fracassou: d'Artagnan venceu‑a, a ela, invisível poder do mal.

Ele iludiu‑a no seu amor, humilhou‑a no seu orgulho, enganou‑a na sua ambição, e agora eis que a perde na sua fortuna, que a atinge na sua liberdade, que a ameaça até na sua vida. Mais ainda, levantou uma ponta da sua máscara, égide com que ela se cobre e que a tornara tão forte.

D'Artagnan desviou de Buckingham, que ela odeia, como odeia tudo o que amou, a tempestade com que o ameaçava Richelieu na pessoa da rainha. D'Artagnan fez‑se passar por De Wardes, para o qual ela tinha uma dessas fantasias de leoa, indomáveis como as que têm as mulheres desse carácter. D'Artagnan conhece o terrível segredo que ela jurou que ninguém conheceria sem morrer. Enfim, no momento em que ela acaba de obter uma assinatura em branco com a qual vai vingar‑se do seu inimigo, a assinatura em branco é‑lhe arrancada das mãos e é d'Artagnan que a tem prisioneira, que a vai enviar para alguma imunda Botany‑Bay, para algum Tyburn infame do oceano Índico.

Pois certamente que tudo isso provém de d'Artagnan; de quem proviriam tantos opróbrios acumulados sobre a sua cabeça, senão dele? Só ele pôde transmitir a lorde de Winter todos aqueles horríveis segredos, que descobriu um a seguir ao outro por uma espécie de fatalidade. Ele conhece o seu cunhado, deve ter‑lhe escrito.

Quanto ódio ela destila! Ali, imóvel, e com os olhos ardentes e fixos no seu aposento deserto, como o estrépido dos seus rugidos surdos, que por veses lhe escapam com a respiração do fundo do peito, acompanham bem o ruído da ondulação que sobe, rosna, muge e vem quebrar‑se, como um desespero eterno e impotente, contra os rochedos sobre os quais se ergue este castelo sombrio e orgulhoso! Como, à luz dos relâmpagos que a sua cólera tempestuosa lhe faz brilhar no espírito, ela concebe contra a Sr.a Bonacieux, contra Buckingham, e sobretudo contra d'Artagnan, magníficos projectos de vingança, perdidos nas lonjuras do futuro!

Sim, mas para se vingar é preciso ser livre e, para ser livre quando se está preso, é preciso abrir um buraco numa parede, desprender as grades, furar um soalho; e tudo isso são coisas que um homem paciente e forte pode fazer, mas perante as quais devem fracassar as irritações febris duma mulher. De resto para fazer tudo isso, é preciso ter tempo, meses, anos, e ela... ela tem dez ou doze dias, foi o que lhe disse lorde de Winter, o seu fraterno e terrível carcereiro.

Contudo, se fosse um homem, tentaria tudo isso e talvez conseguisse. Por que se enganou o céu, pondo esta alma viril neste corpo frágil e delicado!

Assim, os primeiros momentos de cativeiro foram terríveis; algumas convulsões de raiva que não pôde vencer pagaram esta dívida da fraqueza feminina à natureza. Mas a pouco e pouco superou os ímpetos da sua cólera insensata, os frémitos nervosos que agitaram o seu corpo desapareceram, e agora enroscou‑se como uma serpente fatigada que repousa.

‑ Vá, vá; era louca arrebatando‑me assim ‑ disse ela, mergulhando no espelho, que reflete nos seus olhos o seu olhar escaldante, através do qual parece interrogar‑se a si mesma. ‑ Violência não; a violência é uma prova de fraqueza. Primeiro, nunca consegui nada dessa maneira; talvez, se usasse a minha força contra as mulheres, tivesse a sorte de as achar ainda mais fracas do que eu, e por conseguinte de as vencer; mas é contra os homens que luto, e eu não passo de uma mulher para eles. Lutemos como mulher, a minha força reside na minha fraqueza.

Então, como que para mostrar a si mesma as modificações que podia impor à sua fisionomia tão expressiva e móvel, fê‑la tomar simultaneamente todas as expressões, desde a cólera que lhe crispava os traços até ao mais doce, afectuoso e sedutor sorriso. Depois as suas sábias mãos deram aos cabelos as ondulações que achou que podiam aumentar os encantos do seu rosto. Por fim murmurou, satisfeita com a sua pessoa:

‑ Vá, nada está perdido. Continuo a ser bela.

Eram aproximadamente oito horas da noite. Milady viu uma cama; pensou que o repouso de umas horas lhe refrescaria não só a cabeça e as ideias mas também a tez. Contudo, antes de se deitar, teve uma ideia melhor. Ouvira falar no jantar. Já estava há uma hora naquele quarto, não podiam tardar a trazer‑lhe a sua refeição. A prisioneira não quis perder tempo, e resolveu fazer logo nessa noite uma tentativa para sondar o terreno, estudar o carácter das pessoas a quem havia sido confiada a sua guarda.

Uma luz apareceu sob a porta; essa luz anunciava o regresso dos seus carcereiros. Milady, que se tinha levantado, atirou‑se vivamente para a poltrona, com a cabeça para trás, os seus belos cabelos soltos e espalhados, o colo seminu sob as rendas amarrotadas, uma das mãos no peito e a outra caída.

Abriram os ferrolhos, a porta rangeu nos gonzos, ecoaram passos no quarto, que se aproximaram.

‑ Pousai em cima dessa mesa ‑ disse uma voz que a prisioneira reconheceu como a de Felton.

A ordem foi executada.

‑ Ides trazer umas tochas e mandar render a sentinela ‑ continuou

Felton.

Esta dupla ordem que o jovem tenente deu aos mesmos indivíduos provou a Milady que os seus servidores eram os mesmos homens que os seus guardas, ou seja, eram soldados.

Aliás, as ordens de Felton eram executadas com uma rapidez silenciosa que dava uma ideia do estado florescente em que ele mantinha a

disciplina.

Por fim, Felton, que ainda não tinha encontrado o olhar de Milady, voltou‑se para ela.

‑ Ah, Ah! ‑ disse ele. ‑ Está a dormir. Bom, quando acordar, janta.

E deu uns passos para sair.

‑ Mas, meu tenente ‑ disse um soldado menos estóico que o seu chefe e que se tinha aproximado de Milady ‑, esta mulher não está a dormir.

‑ O quê? Não está a dormir? ‑ disse Felton. ‑ Então que está a fazer?

‑ Desmaiou; tem o rosto muito pálido e, por mais que eu escute, não lhe ouço a respiração.

‑ Tendes razão ‑ disse Felton, depois de ter observado Milady do lugar em que estava e sem dar um passo na direcção dela ‑, ide prevenir lorde de Winter de que a sua prisioneira está desmaiada pois eu não sei o que fazer, dado que o caso não foi previsto.

O soldado saiu para obedecer às ordens do seu oficial; Felton sentou‑se num cadeirão que encontrou por acaso junto da porta e esperou sem dizer uma palavra, sem fazer um gesto. Milady possuía a grande arte, tão estudada pelas mulheres, de ver através das suas longas pestanas sem parecer abrir as pálpebras: viu Felton de costas, continuou a fitá‑lo durante cerca de dez minutos e, durante estes dez minutos, o impassível guarda não se virou uma única vez.

Então, ela pensou que lorde de Winter ia vir e dar, com a sua presença, nova força ao carcereiro: a primeira tentativa estava perdida, ela decidiu‑se como uma mulher que conta com os seus recursos e, por conseguinte, ergueu a cabeça, abriu os olhos e suspirou suavemente. Ao ouvir este suspiro, Felton virou‑se finalmente.

‑ Ah! Eis‑vos acordada, minha senhora! ‑ disse ele. ‑ Nesse caso, já não tenho nada que fazer aqui. Se precisardes dalguma coisa, chamareis.

‑ Oh! Meu Deus, meu Deus! Que mal me senti! ‑ murmurou Milady com aquela voz harmoniosa que, como a das antigas feiticeiras, cativava todos os que ela queria perder.

E, erguendo‑se da poltrona, pôs‑se numa posição ainda mais graciosa e abandonada do que tinha quando estava estendida. Felton levantou‑se.

‑ Sereis servida três vezes por dia, minha senhora ‑ disse ele.

‑ De manhã às nove horas, durante o dia à uma hora, e à noite, às oito horas. Se não vos convém, podeis indicar as vossas horas em substituição das que vos proponho, e nesse ponto conformar‑nos‑emos com os vossos desejos.

‑ Então vou ficar sozinha neste grande e triste quarto? ‑ perguntou Milady.

‑ Uma mulher das redondezas foi prevenida, amanhã estará no castelo e virá sempre que desejardes a sua presença.

‑ Agradeço‑vos, senhor ‑ disse humildemente a prisioneira.

Felton fez uma ligeira saudação e dirigiu‑se para a porta. No momento em que ia transpor o limiar, lorde de Winter apareceu no corredor, seguido do soldado que lhe fora dar a notícia do desmaio de Milady. Trazia na mão um frasco de sais.

‑ Então, que foi? E que se passa aqui? ‑ disse com voz irónica vendo a sua prisioneira de pé e Felton prestes a sair. ‑ Então a morta já ressuscitou? Apre, Felton, meu filho, não viste que te tomavam por um novato e que te representavam o primeiro acto duma comédia de que certamente teremos o prazer de seguir todos os desenvolvimentos?

‑ Pensei nisso, Milorde ‑ disse Felton ‑, mas enfim, como afinal a prisioneira é uma mulher, quis ter a consideração que qualquer homem bem‑nascido deve a uma mulher, se não por ela ao menos por si mesmo.

Milady estremeceu. Estas palavras de Felton eram como gelo para as suas veias.

‑ Então ‑ retomou De Winter a rir ‑, estes belos cabelos sabiamente espalhados, esta pele branca e este olhar lânguido ainda não te seduziram, coração de pedra?

‑ Não, Milorde ‑ respondeu o impassível rapaz ‑, e podeis crer que para me corromper é preciso mais do que manobras e garridices de mulher.

‑ Nesse caso, meu bravo tenente, deixemos Milady procurar outra coisa e vamos jantar. Ah! Fica descansado, ela tem uma imaginação fecunda, e o segundo acto da comédia não tardará a seguir o primeiro.

E, dizendo estas palavras, lorde de Winter enfiou o braço no de Felton e levou‑o a rir.

‑ Oh! Eu hei‑de encontrar o que precisas ‑ murmurou Milady entredentes. ‑ Fica descansado, pobre monge falhado, pobre soldado convertido que talhaste o uniforme num hábito.

‑ A propósito ‑ retomou De Winter, parando no limiar da porta ‑, este fracasso não deve tirar‑vos o apetite, Milady. Provai este frango e este peixe que eu não mandei envenenar, palavra de honra. Dou‑me muito bem com o meu cozinheiro e, como não deve herdar de mim, tenho toda a confiança nele. Fazei como eu faço. Adeus, cara irmã! Até ao vosso próximo desmaio.

Era tudo o que Milady podia suportar: as suas mãos crisparam‑se na poltrona, os seus dentes rangeram surdamente, os seus olhos seguiram o movimento da porta que se fechava atrás de lorde de Winter e de Felton; e, quando se viu sozinha, teve uma nova crise de desespero; lançou os olhos sobre a mesa, viu brilhar uma faca, correu e pegou nela; mas o seu desapontamento foi cruel: a lâmina estava embotada e era de prata flexível.

Ouviu‑se uma gargalhada atrás da porta mal fechada, e a porta abriu‑se novamente.

‑ Ah! Ah! ‑ exclamou lorde de Winter. ‑ Ah, ah, ah! Estás a ver, meu bravo Felton? Estás a ver o que te tinha dito? Esta faca era para ti; meu filho, ela matava‑te; estás a ver? É uma das suas manias, desembaraçar‑se assim, duma forma ou doutra, das pessoas que a incomodam. Se eu te tivesse dado ouvidos, a faca seria pontiaguda e de aço, então adeus Felton, ela degolava‑te, e depois toda a gente. Estás a ver, Felton, como ela sabe segurar a faca?

Com efeito, Milady ainda segurava a arma ofensiva na mão crispada, mas estas últimas palavras, este supremo insulto descontraíram‑lhe as mãos, as forças e até a vontade.

A faca caiu no chão.

‑ Tendes razão, Milorde ‑ disse Felton num tom de profundo pesar que ecoou até ao fundo do coração de Milady ‑, tendes razão. Eu é que estava errado.

E os dois saíram de novo.

Mas desta vez Milady prestou mais atenção do que da primeira vez e ouviu os seus passos afastarem‑se e extinguirem‑se no fundo do corredor.

‑ Estou perdida ‑ murmurou ‑, eis‑me em poder de pessoas sobre as quais tenho menos poder que sobre estátuas de bronze ou de granito; conhecem‑me de cor e estão couraçados contra todas as minhas armas.

«Contudo é impossível que isto termine como eles decidiram.»

Com efeito, como esta última reflexão indicava, este retorno instintivo à esperança, nesta alma profunda o temor e os sentimentos fracos não sobrenadaram por muito tempo. Milady sentou‑se à mesa, comeu de vários pratos, bebeu um pouco de vinho de Espanha e sentiu voltar‑lhe toda a sua resolução.

Antes de se deitar já tinha comentado, analisado, virado sob todas as suas faces, examinado sob todos os pontos, as palavras, os passos, os gestos, os sinais e até o silêncio dos seus carcereiros, e deste estudo profundo, hábil e sábio resultara que Felton era o mais vulnerável dos seus dois perseguidores.

Uma palavra, sobretudo, vinha constantemente ao espírito da prisioneira:

‑ Se eu te tivesse dado ouvidos ‑ dissera lorde de Winter a Felton. Portanto Felton falara a seu favor, pois lorde de Winter não quisera

dar ouvidos a Felton.

‑ Fraca ou forte ‑ repetia Milady ‑, este homem tem pois uma luzinha de piedade na alma; desta luz eu farei um incêndio que o há‑de devorar.

«Quanto ao outro, conhece‑me, tem medo de mim e sabe o que pode esperar se eu escapar das suas mãos, portanto não vale a pena tentar alguma coisa com ele. Mas Felton é outra coisa; é um jovem ingénuo, puro e que parece virtuoso; a esse, há maneira de o perder.

E Milady deitou‑se e adormeceu com um sorriso nos lábios; quem a visse a dormir diria que era uma mocinha a sonhar com a coroa de flores que usaria na próxima festa.

 

         SEGUNDO DIA DE CATIVEIRO

Milady sonhava que finalmente tinha apanhado d'Artagnan, que assistia ao seu suplício, e era a vista do seu sangue odioso, derramado sob o machado do carrasco, que lhe desenhava este encantador sorriso nos lábios.

Dormia como dorme um prisioneiro embalado pela sua primeira esperança.

No dia seguinte, quando entraram no quarto, ainda estava deitada. Felton estava no corredor: trazia a mulher de que lhe falara na véspera e que acabava de chegar; esta entrou e aproximou‑se da cama de Milady para lhe oferecer os seus préstimos.

Habitualmente Milady estava pálida; portanto, a sua tez podia iludir quem a visse pela primeira vez.

‑ Tenho febre ‑ disse ela ‑, não dormi um instante toda a noite,', que foi tão longa, estou muito mal: sereis vós mais humana do que ontem foram comigo? De resto, só peço permissão para ficar deitada.

‑ Quereis que chame um médico? ‑ perguntou a mulher. Felton escutava este diálogo sem dizer uma palavra.

Milady pensava que quanto mais gente a rodeasse, mais gente teria de encher de compaixão e mais aumentaria a vigilância de lorde de Winter; de resto, o médico poderia declarar que a doença era fingida e Milady, depois de ter perdido a primeira partida, não queria perder a segunda.

‑ Ir buscar um médico ‑ disse ela ‑, para quê? Ontem estes senhores declararam que o meu mal era uma comédia, e hoje seria certamente a mesma coisa pois, desde ontem à noite, tiveram tempo de prevenir o doutor.

‑ Então ‑ disse Felton impacientando‑se ‑, dizei vós mesma, minha senhora, que tratamento quereis seguir.

‑ Eh! E eu sei? Meu Deus! Sinto que estou doente, é tudo, pouco me importa que me dêem o que quiserem.

‑ Ide buscar lorde de Winter ‑ disse Felton, cansado destas eternas lamúrias.

‑ Oh! Não, não! ‑ exclamou Milady. ‑ Não, senhor, não o chameis, conjuro‑vos, eu estou bem, não preciso de nada, não o chameis.

Pôs uma veemência tão prodigiosa, uma eloquência tão empolgante nesta exclamação que Felton, empolgado, deu alguns passos no quarto.

‑ Está emocionado ‑ pensou Milady.

‑ Contudo, minha senhora ‑ disse Felton ‑, se estais realmente enferma, mandaremos chamar um médico e, se nos enganais, pois bem!, pior para vós, mas ao menos, por nosso lado, não teremos de nos censurar.

Milady não respondeu mas, reclinando a cabeça na almofada, desatou a chorar e a soluçar.

Felton contemplou‑a um instante com a sua habitual impassibilidade; depois, vendo que a crise ameaçava prolongar‑se, saiu; a mulher seguiu‑o. Lorde de Winter não apareceu.

‑ Creio que começo a perceber ‑ murmurou Milady com uma alegria selvática, enterrando‑se nos lençóis para esconder este ímpeto de satisfação interior a quem pudesse espreitá‑la.

Passaram‑se duas horas.

‑ Já é altura de parar com o mal‑estar ‑ disse ela ‑, levantemo‑nos e obtenhamos algum êxito a partir de hoje; só tenho dez dias, e esta noite terão passado dois.

Ao entrar de manhã no quarto de Milady tinham‑lhe trazido o pequeno‑almoço; ora ela pensava que não tardariam a vir tirar a mesa e que nesse momento veria Felton.

Milady não se enganava. Felton reapareceu e, sem verificar se Milady tocara ou não na refeição, fez um sinal para que tirassem a mesa, que geralmente traziam já posta.

Felton ficou para o fim, tinha um livro na mão.

Milady, estendida numa poltrona junto da chaminé, bela, pálida e resignada, parecia uma virgem santa aguardando o martírio.

Felton aproximou‑se dela e disse:

‑ Lorde de Winter, que é católico como vós, minha senhora, pensou que a privação dos ritos e das cerimónias da vossa religião vos pode ser penosa: consente‑vos, pois, ler todos os dias o ordinário da vossa missa, e aqui tendes um livro que contém o ritual.

Notando o ar com que Felton pousou o livro na mesinha junto de Milady, o tom com que pronunciou as palavras a vossa missa, o sorriso desdenhoso com que as acompanhou, Milady levantou a cabeça e olhou mais atentamente o oficial.

Então, no penteado severo, no trajo de uma simplicidade exagerada, na fronte polida como mármore, mas dura e impenetrável como o mesmo, ela reconheceu um desses sombrios puritanos que muitas vezes encontrara tanto na corte do rei Jaime como na do rei de França onde, mal‑grado a recordação de São Bartolomeu, vinham por vezes procurar refúgio.

Teve pois uma dessas inspirações súbitas como só as pessoas de génio recebem nas grandes crises, nos momentos supremos que devem decidir a sua fortuna ou a sua vida.

As palavras a vossa missa e um simples olhar lançado a Felton, tinham‑lhe, com efeito, revelado toda a importância da resposta que ia dar.

Mas com a rapidez da inteligência que lhe era peculiar, esta resposta já formulada, brotou‑lhe dos lábios:

‑ Eu! ‑ disse ela com um tom de desdém em uníssono com o que notara na voz do jovem oficial. ‑ Eu, senhor, a minha missa! Lorde de Winter, o católico corrupto, sabe muito bem que eu não pertenço à sua religião, e isso é uma armadilha que ele me quer armar!

‑ E a que religião pertenceis, minha senhora? ‑ perguntou Felton com um espanto que, apesar do seu domínio, não pôde ocultar inteiramente.

‑ Hei‑de dizê‑lo ‑ exclamou Milady com falsa exaltação ‑, no dia em que tiver sofrido o bastante pela minha fé!

O olhar de Felton revelou a Milady toda a extensão do espaço que ela acabava de abrir com esta simples palavra.

Contudo o jovem oficial permaneceu mudo e imóvel, só o seu olhar havia falado.

‑ Estou nas mãos dos meus inimigos ‑ continuou ela no tom entusiástico que sabia familiar aos puritanos. ‑ Pois bem, que o meu Deus me salve ou que eu pereça pelo meu Deus! Eis a resposta que eu vos peço para transmitirdes a lorde de Winter. E quanto a esse livro ‑ acrescentou mostrando o ritual com o dedo, mas sem lhe tocar como se isso a maculasse ‑, podeis levá‑lo para vos servirdes dele, pois deveis ser duplamente cúmplice de lorde de Winter, cúmplice na sua perseguição, cúmplice na sua heresia.

Felton nada respondeu, pegou no livro com o mesmo sentimento de repugnância que já tinha manifestado, e retirou‑se pensativo. Lorde de Winter veio por volta das cinco da tarde; durante todo o dia Milady tivera tempo de traçar o seu plano de acção; recebeu‑o como quem já recuperou todas as suas vantagens.

‑ Parece ‑ disse o barão, sentando‑se numa poltrona diante de Milady e estendendo despreocupadamente os pés para a lareira ‑, parece que fizemos uma pequena apostasia!

‑ Que quereis dizer, senhor?

‑ Quero dizer que, desde a última vez que nos vimos, mudámos de religião; acaso tereis tido um terceiro marido protestante?

‑ Explicai‑vos, Milorde ‑ respondeu a prisioneira com majestade‑, pois declaro‑vos que ouço as vossas palavras e não as compreendo.

‑ Então é porque não tendes nenhuma religião. Antes isso ‑ respondeu lorde de Winter sarcasticamente.

‑ É certo que está mais de acordo com os vossos princípios ‑ replicou friamente Milady.

‑ Oh! Confesso‑vos que me é perfeitamente indiferente.

‑ Oh! Ainda que não confessásseis essa indiferença religiosa, Milorde, a vossa devassidão e os vossos crimes fariam fé.

- O quê? Falais de devassidão, Sr.a Messalina, falais de crimes, lady Macbeth? Ou ouvi mal ou, por Deus, sois muito imprudente.

‑ Falais assim porque sabeis que nos escutam, senhor ‑ respondeu friamente Milady ‑, e porque quereis pôr os vossos carcereiros e os vossos carrascos contra mim.

‑ Os meus carcereiros! Os meus carrascos! Ora, minha senhora, adoptais um tom poético, e esta noite a comédia de ontem dá em tragédia. De resto, daqui a oito dias estareis onde deveis estar e a minha tarefa estará cumprida.

‑ Tarefa infame! Tarefa ímpia! ‑ replicou Milady com a exaltação da vítima que provoca o seu juiz.

‑ Palavra de honra ‑ disse De Winter, erguendo‑se ‑, creio que esta mulher enlouquece. Vá, vá, acalmai‑vos, senhora puritana ou mando‑vos para as masmorras. Apre! É o meu vinho de Espanha que vos sobe à cabeça, não é? Mas ficai descansada, essa bebedeira não é perigosa e não terá consequências.

E lorde de Winter retirou‑se praguejando, o que naquela época era um hábito cavalheiresco.

Felton estava, de facto, atrás da porta e não perdera uma palavra de toda a cena.

Milady tinha adivinhado.

‑ Sim, vai! Vai ‑ disse ela ao cunhado. ‑ As consequências aproximam‑se, pelo contrário, mas tu não as verás, imbecil, senão quando já não as puderes evitar.

Restabeleceu‑se o silêncio, passaram‑se duas horas; trouxeram o jantar e encontraram Milady ocupada a recitar as suas orações em voz alta, orações que aprendera com um velho criado do segundo marido, puritano dos mais austeros. Parecia em êxtase e nem sequer deu mostras de prestar atenção ao que se passava à sua volta. Felton fez sinal que não a incomodassem e, quando tudo ficou pronto, saiu sem ruído com os seus soldados.

Milady sabia que a podiam espiar, portanto continuou as suas orações até ao fim, e pareceu‑lhe que o soldado que estava de sentinela à porta já não caminhava com o mesmo passo e parecia escutar.

Por enquanto era o que ela queria, levantou‑se, sentou‑se à mesa, comeu pouco e só bebeu água.

Uma hora depois vieram tirar a mesa, mas Milady notou que, desta vez, Felton não acompanhava os seus soldados.

Portanto, receava vê‑la muitas vezes.

Ela virou‑se para a parede a fim de sorrir, pois havia neste sorriso uma tal expressão de triunfo que este sorriso a denunciaria.

Deixou passar mais meia hora e como nesse momento tudo estava em silêncio no velho castelo, como só se ouvia o eterno murmúrio das ondas, a imensa respiração do oceano, da sua voz pura, harmoniosa e vibrante, ela começou a primeira estrofe deste salmo que nessa época era muito apreciado pelos puritanos:

 

       Seigneur, si tu nous abandonnes,

       C'est pour voir si nous sommes forts,

       Mais ensuite c'est toi qui donnes

       De ta celeste main la plame à nos efforts.(1)

 

Estes versos não eram excelentes, nem de longe; mas, como se sabe, os protestantes não se preocupavam muito com a poesia.

Enquanto cantava, Milady escutava: o soldado de guarda à porta tinha parado como se se tivesse transformado em pedra. Milady pôde, portanto, apreciar o efeito que tinha produzido.

Então continuou o seu canto com um fervor e um sentimento inexprimíveis; pareceu‑lhe que os sons se estendiam ao longe sob as abóbadas e iam adoçar o coração dos seus carcereiros como um sortilégio. Contudo, parece que o soldado de sentinela, certamente um católico zeloso, sacudiu o encanto, pois disse através da porta:

‑ Calai‑vos, minha senhora, a vossa canção é triste como um De Profundis e se, além do prazer de estar de guarda aqui, tenho de ouvir tais coisas, não aguento.

‑ Silêncio! ‑ disse então uma voz mais grave que Milady reconheceu como a voz de Felton. ‑ Que tendes a ver com isso, seu engraçado? Acaso vos ordenaram que impedísseis esta mulher de cantar? Não. Disseram‑vos que a guardásseis, que atirásseis sobre ela se tentasse fugir. Guardai‑a; se fugir, matai‑a; mas não modifiqueis as ordens.

Uma expressão de alegria indizível iluminou o rosto de Milady, mas essa expressão foi fugaz como o reflexo dum relâmpago e, parecendo que não ouvira o diálogo de que não perdera uma palavra, continuou, dando à sua voz todo o encanto, toda a amplitude, toda a sedução que o demónio nela depositara:

 

       Pour tant de pleurs et de misère,

       Pour mon exil et pour mes fers,

       J'ai ma jeunesse, ma prière,

       Et Dieu, qui comptera les maux que j'ai soufferts!(2)

 

  1. Senhor, se nos abandonas,/É para veres se somos fortes,/Mas depois és tu que dás/Com a tua celeste mão a palma dos nossos esforços. (N. da T.)

2 Para tantas lágrimas e miséria,/Para o meu exílio e para os meus ferros,/Tenho a minha juventude, a minha prece,/E Deus, que contará os males que sofri. (N. da T.)

 

Esta voz, de uma amplitude inaudita e de uma paixão sublime, dava à poesia rude e inculta destes salmos uma magia e uma expressão que os puritanos mais exaltados raramente encontravam nos cânticos dos seus irmãos, e que eram forçados a enfeitar com todos os recursos da sua imaginação: Felton julgou ouvir cantar o anjo que consolava os três hebreus na fornalha.

Milady continuou:

 

       Mais le jour de la délivrance

       Viendra pour nous, Dieu juste e fort;

       Et s'il trompe notre esperance,

       Il nous reste toujours le martyre et la mort.(1)

 

Esta estrofe, na qual a terrível feiticeira se esforçou por pôr toda a sua alma, acabou de lançar a desordem no coração do jovem oficial; este abriu bruscamente a porta e Milady viu‑o aparecer, pálido como sempre, mas com os olhos ardentes e quase alucinados.

‑ Por que cantais assim ‑ disse ele ‑, e com essa voz?

‑ Perdão, senhor ‑ disse Milady com doçura ‑, esquecia que os meus cânticos não são próprios para esta casa. Certamente ofendi as vossas crenças; mas foi sem querer, eu vos juro. Perdoai‑me, pois, um erro que talvez seja grande, mas que é certamente involuntário.

Milady era tão bela neste momento, o êxtase religioso em que parecia mergulhada dava uma tal expressão à sua fisionomia, que Felton, ofuscado, julgou ver o anjo que há pouco julgava apenas ouvir.

‑ Sim, sim ‑ respondeu ele ‑, sim: vós perturbais, agitais as pessoas que habitam este castelo.

E o pobre louco nem sequer se apercebia da incoerência dos seus discursos, enquanto Milady lhe mergulhava os seus olhos de lince nas profundezas do coração.

‑ Calar‑me‑ei ‑ disse Milady, baixando os olhos e com toda a doçura que pôde dar à voz, com toda a resignação que pôde impor à sua atitude.

‑ Não, não, minha senhora ‑ disse Felton ‑, cantai apenas mais baixo, sobretudo à noite.

E, ao dizer estas palavras, sentindo que não podia conservar por muito tempo a severidade que devia ter com a prisioneira, saiu apressadamente do quarto.

‑ Fizestes bem, tenente ‑ disse o soldado ‑‑, esses cânticos abalam a alma. No entanto a gente acaba por habituar‑se: a voz é tão bela!

 

*1. Afãs o dia da libertação/Virá para nós, Deus justo e forte;/E se ele enganar a nossa esperança,/Resta‑nos sempre o martírio e a morte. (N. da T.)

 

         TERCEIRO DIA DE CATIVEIRO

Felton tinha vindo, mas ainda faltava dar um passo: era preciso retê‑lo, ou melhor, era preciso que ele ficasse por sua vontade, e Milady ainda não via claramente como chegar a esse resultado.

Era preciso ainda mais: era preciso fazê‑lo falar, a fim de lhe falar também, pois Milady bem sabia que a sua maior sedução era a voz, que percorria tão habilmente toda a gama dos tons, desde a palavra humana até à linguagem celeste.

E contudo, apesar de toda esta sedução, Milady podia fracassar, pois Felton estava prevenido contra o mínimo acaso. A partir daí, vigiou todas as suas acções, todas as suas palavras, até ao mais simples relance dos seus olhos, até ao seu gesto, até à sua respiração, que podia ser interpretada como um suspiro. Enfim, estudou tudo, como um hábil comediante a quem acabam de conceder um novo papel que não está habituado a desempenhar.

Em relação a lorde de Winter, o seu comportamento era mais fácil; deste modo, já o havia decidido desde a véspera. Permanecer muda e digna na sua presença, de vez em quando irritá‑lo com um desdém fingido, com uma palavra despreziva, levá‑lo a ameaças e violências que contrastassem com a sua resignação, tal era o seu projecto. Felton veria, talvez não dissesse nada, mas veria.

De manhã, Felton veio como de costume, mas Milady deixou‑o presidir a todos os preparativos do almoço sem lhe dirigir a palavra. No momento em que ele ia retirar‑se, teve um lampejo de esperança, pois julgou que era ele que ia falar, mas os seus lábios mexeram‑se sem produzirem nenhum som e, fazendo um esforço, fechou no coração as palavras que iam escapar‑se dos seus lábios, e saiu. Cerca do meio‑dia lorde de Winter entrou.

Era um bonito dia de Inverno, e um raio do pálido sol de Inglaterra que ilumina mas não aquece passava através das grades da prisão. Milady olhava pela janela e fingiu que não ouviu abrir a porta.

‑ Ah! Ah! ‑ disse lorde de Winter. ‑ Depois da comédia, depois da tragédia, temos a melancolia.

A prisioneira não respondeu.

‑ Sim, sim ‑ continuou lorde de Winter ‑, eu compreendo. Queríeis estar em liberdade nessa costa; queríeis num bom navio, sulcar as ondas desse mar verde como uma esmeralda; queríeis, quer na terra quer no oceano, armar‑me uma dessas emboscadazinhas que sabeis tramar. Paciência, paciência! Daqui a quatro dias a costa ser‑vos‑á permitida, o mar ser‑vos‑á aberto, mais aberto do que querereis, pois daqui a quatro dias a Inglaterra ficará livre de vós.

Milady juntou as mãos e, erguendo os seus lindos olhos para o céu:

‑ Senhor! Senhor! ‑ disse ela com uma angélica suavidade de gesto e de entoação. ‑ Perdoai a este homem, como eu mesma lhe perdoo.

‑ Sim, reza, maldita ‑ exclamou o barão ‑, a tua prece é generosa, pois juro‑te que estás em poder dum homem que não perdoará.

E saiu.

No momento em que saía, um olhar penetrante atravessou a porta entreaberta e ela viu Felton, que se desviava rapidamente para não se deixar ver.

Então ajoelhou‑se e pôs‑se a rezar.

‑ Meu Deus! Meu Deus! ‑ disse ela. ‑ Vós sabeis a santa causa por que eu sofro, dai‑me força para sofrer.

A porta abriu‑se suavemente; a bela suplicante fez que não ouviu e continuou com a voz embargada pelas lágrimas:

‑ Deus vingador! Deus de bondade! Deixareis vós realizarem‑se os horríveis projectos deste homem?

Só então fingiu ouvir o som dos passos de Felton e, erguendo‑se rápida como o pensamento, corou como se tivesse vergonha de ser surpreendida de joelhos.

‑ Não gosto de incomodar os que rezam, minha senhora ‑ disse gravemente Felton ‑, não vos incomodeis por minha causa, peço‑vos.

‑ Como sabeis que eu rezava? Senhor. - disse Milady com a voz sufocada pelos soluços. ‑ Estais enganado, senhor, eu não rezava.

‑ Pensais, minha senhora ‑ respondeu Felton com a mesma voz grave, embora num tom mais doce ‑, que eu me julgo no direito de impedir uma criatura de se prostrar diante do seu Criador? A Deus não prouvera! De resto, arrepender‑se fica bem aos culpados; aos pés de Deus, um culpado é sagrado para mim, seja qual for o crime que tenha

cometido.

‑ Eu, culpada! ‑ disse Milady com um sorriso que desarmaria o anjo do Juízo Final. ‑ Culpada! Meu Deus, tu o sabes! Dizei que sou condenada, senhor. Mas vós sabeis, Deus, que ama os mártires, consente por vezes que se condenem os inocentes.

‑ Se sois condenada, se sois uma mártir ‑ respondeu Felton ‑, mais uma razão para orardes, e eu mesmo vos ajudarei com as minhas orações.

‑ Oh! Vós sois um justo ‑ exclamou Milady, lançando‑se aos seus pés. ‑ Eu não aguento muito tempo, pois receio que me faltem as forças no momento de lutar e de confessar a minha fé; escutai, pois, a súplica duma mulher desesperada. Enganam‑vos, senhor, mas a questão não é essa, só vos peço um favor e, se mo concederdes, hei‑de bendizer‑vos neste mundo e no outro.

‑ Falai com o Senhor, minha senhora ‑ disse Felton. ‑ Felizmente eu não estou encarregado nem de perdoar nem de punir, e foi a quem está acima de mim que Deus entregou essa responsabilidade.

‑ A vós, só a vós. Escutai‑me, em vez de contribuirdes para a minha perdição, em vez de contribuirdes para a minha ignomínia.

‑ Se merecestes essa vergonha, minha senhora, se incorrestes nessa ignomínia, tendes de suportá‑la, oferecendo‑a a Deus.

‑ Que dizeis? Oh! Vós não me compreendeis! Quando falo de ignomínia julgais que falo dalgum castigo, da prisão ou da morte! Tomara! Que me importam a mim a morte ou a prisão?

‑ Sou eu que já não vos compreendo, minha senhora.

‑ Ou que fazeis que já não me compreendeis, senhor ‑ respondeu a prisioneira com um sorriso de dúvida.

‑ Não, minha senhora, pela honra dum soldado, pela fé dum cristão!

‑ Como! Ignorais os desígnios de lorde de Winter a meu respeito?

‑ Ignoro.

‑ Impossível. Vós, o seu confidente!

‑ Eu nunca minto, minha senhora.

‑ Oh! Contudo ele pouco se dissimula para que não os adivinhem.

‑ Não procuro adivinhar nada, minha senhora; espero que me confiem e, à parte o que me disse diante de vós, lorde de Winter não me confiou nada.

‑ Mas ‑ exclamou Milady com um incrível tom de veracidade ‑, então não sois o seu cúmplice, então não sabeis que ele me destina a uma vergonha cujo horror todos os castigos da terra não podem igualar?

‑ Estais enganada, minha senhora ‑ disse Felton corando ‑, lorde de Winter não é capaz de semelhante crime.

«Bom», disse Milady para consigo, «ele chama‑lhe crime sem saber o que é!»

Depois, em voz alta:

‑ O amigo do infame é capaz de tudo.

‑ A quem chamais infame? ‑ perguntou Felton.

‑ Então existem em Inglaterra dois homens aos quais esse nome possa convir?

‑ Falais de George Villers? ‑ disse Felton com o olhar inflamado.

‑ A quem os pagãos, os gentios e os infiéis chamam duque de Buckingham ‑ respondeu Milady ‑; não pensava que houvesse um inglês em toda a Inglaterra que precisasse duma explicação tão longa para reconhecer aquele a que me refiro!

‑ A mão do Senhor estende‑se sobre ele ‑ disse Felton ‑, e ele não escapará ao castigo que merece.

Felton limitava‑se a exprimir a respeito do duque o sentimento de execração que todos os ingleses tinham votado àquele a que os próprios católicos chamavam o exactor, o concussionário, o devasso, e que os puritanos designavam simplesmente por Satã.

‑ Oh, meu Deus! Meu Deus! ‑ exclamou Milady. ‑ Quando vos suplico que envieis a esse homem o castigo que lhe é devido, bem sabeis que não é a minha própria vingança que desejo, mas a libertação dum povo inteiro que imploro.

‑ Então conheceis esse homem? ‑ perguntou Felton. «Finalmente interroga‑me», disse Milady para consigo, toda satisfeita por ter alcançado tão depressa um resultado tão grande.

‑ Oh! Se conheço! Oh, sim! Para minha desgraça, para minha eterna desgraça.

E Milady torceu os braços como se tivesse chegado ao paroxismo da dor. Felton sentiu talvez intimamente que as suas forças o abandonavam, e fez alguns passos em direcção à porta; a prisioneira, que não o perdia de vista, correu atrás dele e deteve‑o.

‑ Senhor! ‑ exclamou ela. ‑ Sede bom, sede clemente, escutai a minha súplica: a faca que a fatal prudência do barão me tirou, porque sabe como eu a utilizaria; oh! Escutai‑me até ao fim! Devolvei‑me essa faca apenas por um minuto, por favor, por piedade! Abraço‑vos os joelhos; vede, fechareis a porta, não é a vós que quero mal; Deus! Querer‑vos mal, a vós, o único ser justo, bom e compadecido que encontrei! A vós, talvez o meu salvador! Um minuto, a faca só um minuto e entrego‑vo‑la pela abertura da porta; só um minuto, Felton, e salvareis a minha honra!

‑ Matar‑vos! ‑ exclamou Felton aterrado, esquecendo‑se de retirar as mãos das mãos da prisioneira. ‑ Matar‑vos!

‑ Eu já disse, senhor ‑ murmurou Milady, baixando a voz e deixando‑se cair sem forças no chão ‑, já disse o meu segredo! Ele sabe tudo! Meu Deus, estou perdida!

Felton permanecia de pé, imóvel e indeciso.

«Ainda duvida», pensou Milady, «não fui suficientemente autêntica. Ouviu‑se caminhar no corredor; Milady reconheceu o passo de lorde de Winter. Felton também o reconheceu e avançou para a porta. Milady correu.

‑ Oh! Nem uma palavra ‑ disse com voz concentrada ‑, nem uma palavra a esse homem do que vos disse, ou estou perdida, e sois vós...

Depois, como os passos se aproximavam, calou‑se com medo de que lhe ouvissem a voz, tapando a boca de Felton com um gesto de infinito terror. Felton repeliu docemente Milady, que foi cair num canapé.

Lorde de Winter passou diante da porta sem parar, e ouviu‑se o som dos seus passos que se afastavam.

Felton, pálido como a morte, ficou alguns segundos à escuta, depois, quando o ruído se extinguiu completamente, respirou fundo como se saísse dum sonho e lançou‑se para fora do quarto.

‑ Ah! ‑ disse Milady, escutando por sua vez o som dos passos de Felton que se afastavam na direcção oposta aos de lorde de Winter. ‑ Finalmente estás nas minhas mãos!

Depois a sua fronte carregou‑se.

‑ Se ele falar ao barão ‑ disse ela ‑, estou perdida, pois o barão, que sabe muito bem que eu não me matarei, põe‑me uma faca nas mãos na sua presença e ele verá que este grande desespero não passava dum jogo.

E foi pôr‑se diante do espelho para se mirar; nunca fora tão bela. ‑ Oh, sim! ‑ disse, sorrindo. ‑ Mas ele não lhe falará. À noite, lorde de Winter acompanhou o jantar.

‑ Senhor ‑ disse‑lhe Milady ‑, a vossa presença é um acessório obrigatório do meu cativeiro e não poderíeis poupar‑me mais esta tortura que as vossas visitas me causam?

‑ Como, cara irmã? ‑ disse de Winter. ‑ Não me anunciastes sentimentalmente, com essa linda boca hoje tão cruel para mim, que vínheis a Inglaterra só para me ver à vossa vontade, prazer cuja privação, dizíeis, vos custava tanto que arriscastes tudo por causa dele: enjoo, tempestade, cativeiro! Pois bem! Aqui me tendes, podeis ficar satisfeita. De resto, desta vez a minha visita tem um motivo.

Milady estremeceu, julgou que Felton tinha falado; nunca na vida talvez esta mulher, que tinha sentido tantas emoções fortes e opostas, sentira o coração bater com tanta violência.

Estava sentada; lorde de Winter puxou uma cadeira e sentou‑se a seu lado, depois, tirando do bolso um papel que desdobrou lentamente:

‑ Aqui está ‑ disse ele ‑, queria mostrar‑vos esta espécie de passaporte que eu mesmo redijo e que doravante vos servirá de número de ordem na vida que consinto deixar‑vos.

Depois, tirando os olhos de Milady e pondo‑os no papel, leu:

‑ Ordem de conduzir a... O nome está em branco ‑ interrompeu De Winter; ‑ se tendes alguma preferência, indicar‑me‑eis; e desde que seja a mil léguas de Londres, o vosso pedido será satisfeito. Portanto recomeço: Ordem de conduzir a... a chamada Charlotte Backson, marcada pela justiça do reino de França, mas libertada após castigo; permanecerá nesta residência sem nunca se afastar mais de três léguas. Em caso de tentativa de evasão, ser‑lhe‑á aplicada a pena de morte. Receberá cinco xelins por dia para o alojamento e a alimentação.

‑ Essa ordem não me concerne ‑ respondeu friamente Milady ‑, pois é em nome doutra pessoa.

‑ Um nome! Acaso tendes algum?

‑ Tenho o nome de vosso irmão.

‑ Enganais‑vos, meu irmão não passa do vosso segundo marido, e o primeiro ainda é vivo. Dizei‑me o seu nome para que o ponha no lugar do nome de Charlotte Backson. Não?... Não quereis?... Guardais o silêncio? Muito bem! Sereis inscrita com o nome de Charlotte Backson.

Milady ficou calada; desta vez não era por fingimento, mas por terror: julgou que a ordem estava prestes a ser executada; pensou que lorde de Winter antecipara a sua partida; julgou que estava condenada a partir na mesma noite. Por um momento tudo se esvaneceu no seu espírito, quando de repente se apercebeu de que a ordem não estava assinada.

Esta descoberta causou‑lhe uma alegria tão grande que não conseguiu dissimulá‑la.

‑ Sim, sim ‑ disse lorde de Winter, que percebeu o que se passava com ela ‑, sim, procurais a assinatura e pensais: nem tudo está perdido pois esta carta não está assinada; mostram‑ma apenas para me assustarem, é tudo. Estais enganada, amanhã esta ordem será enviada a lorde Buckingham, depois de amanhã voltará assinada pelo seu punho e marcada com o seu selo, e vinte e quatro horas depois garanto‑vos que começará a ser posta em execução. Adeus, minha senhora, é tudo o que tinha a dizer‑vos.

‑ E eu responder‑vos‑ei, senhor, que esse abuso do poder, que esse exílio sob um nome suposto são uma infâmia.

‑ Preferíeis ser enforcada sob o vosso verdadeiro nome, Milady? Vós sabeis, as leis inglesas são inexoráveis para os abusos feitos ao casamento; explicai‑vos francamente: embora o meu nome, ou melhor, o nome do meu irmão esteja envolvido, arriscarei o escândalo dum processo público para ter a certeza de me livrar de vós.

Milady não respondeu mas pôs‑se pálida como um cadáver.

‑ Oh! Vejo que preferis a peregrinação. Muito bem, minha senhora, e há um velho provérbio que diz que as viagens formam a juventude. Apre! Não fazeis mal, e a vida é boa. É por isso que não quero que ma roubeis. Falta, pois, resolver a questão dos cinco xelins; mostro‑me um pouco parcimonioso, não é? É que não pretendo que corrompais os vossos guardas. Aliás, sempre vos restarão os vossos encantos para os seduzir. Usai‑os se o vosso fracasso com Felton não vos fez perder o gosto pelas tentativas desse género.

«Felton não falou», disse Milady para consigo, «portanto nada está perdido.»

‑ E agora, minha senhora, até à vista. Amanhã virei anunciar‑vos a partida do meu mensageiro.

Lorde de Winter ergueu‑se, cumprimentou ironicamente Milady e saiu.

Milady respirou fundo: ainda tinha quatro dias à sua frente; quatro dias chegar‑lhe‑iam para acabar de seduzir Felton.

Então ocorreu‑lhe uma ideia terrível, é que talvez lorde de Winter enviasse o próprio Felton para levar a ordem a Buckingham; deste modo Felton escapava‑lhe e, para que a prisioneira conseguisse o que queria, era necessária a magia duma sedução contínua.

Contudo, como dissemos, uma coisa a tranquilizou: Felton não tinha falado.

Não quis parecer emocionada com as ameaças de lorde de Winter; sentou‑se à mesa e comeu.

Depois, como fizera na véspera, ajoelhou‑se e repetiu as suas orações em voz alta. Como na véspera, o soldado parou de andar e estacou para a ouvir.

Em breve ouviu passos mais ligeiros que os da sentinela, vindos do fundo do corredor e parando à sua porta.

‑ É ele ‑ disse ela.

E começou o mesmo cântico religioso que na véspera exaltara tão violentamente Felton.

Mas, embora a sua voz doce, plena e sonora vibrasse mais harmoniosa e mais dilacerante que nunca, a porta permaneceu fechada. Milady, com um dos olhares furtivos que lançava pela abertura, julgou ver através das grades os olhos ardentes do jovem; mas, quer fosse uma realidade ou uma visão, desta vez ele teve forças para não entrar. Contudo, instantes depois de terminar o seu cântico religioso, Milady julgou ouvir um profundo suspiro; depois os mesmos passos que ouvira aproximarem‑se afastaram‑se lentamente e como que a contragosto.

 

         QUARTO DIA DE CATIVEIRO

No dia seguinte, quando Felton entrou nos aposentos de Milady, encontrou‑a levantada em cima duma poltrona, tendo nas mãos uma corda tecida com uns lenços de cambraia rasgados em tiras entrançadas umas nas outras e presas nas pontas; ao ruído que Felton produziu abrindo a porta, Milady saltou com ligeireza da poltrona e tentou esconder nas costas a corda improvisada que tinha na mão.

O jovem estava mais pálido que de costume, e os seus olhos vermelhos de insónia indicavam que havia passado uma noite febril.

Contudo, a sua fronte revelava uma severidade mais austera que nunca.

Avançou lentamente para Milady, que se havia sentado e, pegando numa ponta da trança mortífera que ela deixara passar por descuido ou talvez de propósito:

‑ Que é isto, minha senhora? ‑ perguntou friamente.

‑ Não é nada ‑ disse Milady, sorrindo com aquela expressão dolorosa que tão bem sabia dar ao seu sorriso ‑, o tédio é o inimigo mortal dos prisioneiros, eu aborrecia‑me e entretive‑me a entrançar esta corda.

Felton dirigiu os olhos para o ponto da parede do quarto diante do qual encontrara Milady em cima da poltrona em que agora estava sentada, e por cima da cabeça dela viu um grampo dourado, cravado na parede, e que servia para pendurar tanto roupas como armas.

Estremeceu, e a prisioneira viu este estremecimento, pois embora tivesse os olhos baixos, nada lhe escapava.

‑ E que fazíeis em cima dessa poltrona? ‑ perguntou ele.

‑ Que vos importa? ‑ respondeu Milady.

‑ Mas ‑ replicou Felton ‑, desejo saber.

‑ Não me interrogueis ‑ disse a prisioneira ‑; vós sabeis que nós, verdadeiros cristãos, estamos proibidos de mentir.

‑ Pois bem! ‑ disse Felton. ‑ Vou dizer‑vos o que fazíeis, ou melhor, o que íeis fazer; íeis concluir a obra fatal que alimentais no vosso espírito. Pensai, minha senhora, se o nosso Deus proíbe a mentira, proibe ainda mais severamente o suicídio.

‑ Quando Deus vê uma das suas criaturas perseguida injustamente, colocada entre o suicídio e a desonra, podeis crer, senhor ‑ respondeu Milady num tom de profunda convicção ‑, Deus perdoa‑lhe o suicídio pois, nesse caso, o suicídio é o martírio.

‑ Dizeis de mais ou de menos; falai, minha senhora, explicai‑vos por amor de Deus.

‑ Contar‑vos as minhas desgraças para lhes chamardes mentiras; dizer‑vos os meus projectos para irdes denunciá‑los ao meu perseguidor; não, senhor; de resto, que vos importa a vida ou a morte duma pobre condenada? Só respondeis pelo meu corpo, não é? E desde que apresenteis um cadáver, que este seja reconhecido como o meu, não vos perguntarão mais nada, e talvez até tenhais uma dupla recompensa.

‑ Eu, minha senhora, eu! ‑ exclamou Felton, ‑ Supor que alguma vez aceitaria o preço da vossa vida; oh! Não pensais no que dizeis.

‑ Deixai‑me, Felton, deixai‑me ‑ disse Milady, exaltando‑se. ‑ Todo o soldado deve ser ambicioso, não é? Vós sois tenente, pois bem! Seguireis o meu cortejo com a patente de capitão.

‑ Mas que vos fiz eu ‑ disse Felton abalado ‑ para que me atireis com semelhante responsabilidade perante os homens e perante Deus? Daqui a alguns dias estareis longe daqui, minha senhora, a vossa vida já não estará sob a minha guarda e ‑ acrescentou com um suspiro ‑, então fareis o que quiserdes.

‑ Então ‑ exclamou Milady como se não pudesse resistir a uma santa indignação ‑, vós, um homem piedoso, vós a quem chamam um justo, só quereis uma coisa: não ser inculpado, inquietado por causa da minha morte!

‑ Devo zelar pela vossa vida, minha senhora, e zelarei.

‑ Mas compreendeis a missão que cumpris? Já cruel se eu fosse culpada, que nome lhe daríeis, que nome lhe dará o Senhor se eu for inocente?

‑ Sou um soldado, minha senhora, e cumpro as ordens que recebi.

‑ Credes que, no dia do Juízo Final, Deus separará os carrascos cegos dos juizes iníquos? Não quereis que eu mate o meu corpo e fazeis‑vos agente daquele que quer matar a minha alma!

‑ Mas repito‑vos ‑ continuou Felton abalado ‑, nenhum perigo vos ameaça, e eu respondo por lorde de Winter como por mim.

‑ Louco! ‑ exclamou Milady. ‑ Pobre louco, que ousa responder por outro homem quando os mais sábios, quando os maiores segundo Deus hesitam em responder por eles mesmos, e que se põe do lado do mais forte e do mais feliz para oprimir a mais fraca e a mais infeliz!

‑ Impossível, minha senhora, impossível ‑ murmurou Felton que sentia no fundo do coração a verdade deste argumento ‑, prisioneira, não será através de mim que ireis recuperar a liberdade; viva, não será diante de mim que ireis perder a vida.

‑ Sim ‑ exclamou Milady ‑, mas perderei o que me é muito mais caro que a vida, perderei a honra, Felton; e sois vós, vós, que eu farei responsável perante Deus e perante os homens pela minha vergonha e a minha infâmia!

Desta vez, Felton, por muito impassível que fosse ou que parecesse ser, não conseguiu resistir à influência secreta que já se apossara dele: ver aquela mulher tão bela, branca como a mais cândida visão, vê‑la ora desolada ora ameaçadora, sofrer o ascendente da dor e ao mesmo tempo da beleza, era demais para um visionário, era de mais para um cérebro minado pelos sonhos ardentes da fé extática, era de mais para um coração roído pelo amor do Céu que queima e ao mesmo tempo pelo ódio dos homens que devora.

Milady viu a perturbação, sentia intuitivamente a chama das paixões opostas que ardiam com o sangue nas veias do jovem fanático; e, como um general hábil que, vendo o inimigo prestes a recuar, marcha sobre ele com um grito de vitória, ergueu‑se, bela como uma sacerdotisa antiga, inspirada como uma virgem cristã, e, com o braço estendido, o colo descoberto, os cabelos soltos, segurando com uma das mãos o vestido pudicamente puxado sobre o peito, o olhar iluminado por esse fogo que já causara a desordem nos sentidos do puritano, caminhou na direcção dele, exclamando com um ar veemente, com a sua voz tão doce e à qual dava, nessa ocasião, uma entoação terrível:

 

       Libre a Baal sã victime,

       Jette aux lions le martyr:

       Dieu te fera repentir!...

       e crie à lui de l'abíme(1)

 

Felton parou ao ouvir esta estranha invectiva e ficou como que petrificado.

‑ Quem sois vós, quem sois vós? - exclamou ele, juntando as mãos. ‑ Sois uma enviada de Deus, sois um ministro dos Infernos, sois anjo ou demónio, chamais‑vos Éloa ou Astarte?

‑ Não me reconheceste, Felton? Não sou nem um anjo nem um demónio, sou uma filha da terra, sou uma irmã da tua crença, é tudo.

‑ Sim! sim! ‑ disse Felton. ‑ Eu ainda duvidava, mas agora acredito.

‑ Acreditais e, contudo, és cúmplice desse filho de Belial a quem chamam lorde de Winter! Acreditais e, contudo, deixais‑me nas mãos dos meus inimigos, do inimigo da Inglaterra, do inimigo de Deus? Acreditais e, contudo, entregais‑me àquele que enche e macula o mundo com as suas heresias e a sua devassidão, a esse infame Sardanapalo a quem os cegos chamam duque de Buckingham e os crentes o Anti‑Cristo.

‑ Eu entregar‑vos a Buckingham, eu! Que dizeis?

‑ Eles têm olhos ‑ exclamou Milady ‑ e não verão; têm ouvidos e não ouvirão.

 

*1. Entrega a Baal a sua vítima,/Atira aos leões o mártir/Deus te fará arrepender!.../Por ele eu grito do abismo. (N. da T.)

 

‑ Sim, sim ‑ disse Felton, passando as mãos pela testa banhada de suor como para arrancar a última dúvida ‑; sim, reconheço a voz que me fala em sonhos; sim, reconheço os traços do anjo que me aparece todas as noites, gritando à minha alma que não consegue dormir: «Fere, salva a Inglaterra, salva‑te, pois morrerás sem ter desarmado a Deus!» Falai, falai! ‑ exclamou Felton. ‑ Agora posso compreender‑vos.

Um lampejo de alegria terrível, mas rápido como o pensamento, brotou dos olhos de Milady.

Por muito fugidio que fosse este lampejo homicida, Felton viu‑o e estremeceu como se este lampejo houvesse iluminado os abismos do coração daquela mulher.

Felton lembrou‑se subitamente das advertências de lorde de Winter, das seduções de Milady, das suas primeiras tentativas à chegada; recuou um passo e baixou a cabeça, mas sem parar de fitá‑la como se, fascinado por esta estranha criatura, os seus olhos não conseguissem desprender‑se dos olhos dela.

Milady não era pessoa para se enganar quanto ao sentido desta hesitação. Sob as suas emoções aparentes, o seu sangue‑frio glacial não a abandonava. Antes que Felton lhe respondesse e que fosse forçada a recomeçar aquela conversa tão difícil de manter no mesmo tom de exaltação, deixou cair as mãos e, como se a fraqueza da mulher vencesse o entusiasmo da inspirada:

‑ Mas não ‑ disse ela ‑, não me cabe a mim ser a Judite que libertará Betúlia de Holofernes. O gládio do Eterno é demasiado pesado para o meu braço. Deixai‑me, pois, fugir da desonra pela morte, deixai‑me refugiar‑me no martírio. Não vos peço nem a liberdade, como um culpado faria, nem a vingança, como faria uma pagã. Deixai‑me morrer, mais nada. Suplico‑vos, imploro‑vos de joelhos: deixai‑me morrer e o meu derradeiro suspiro será uma bênção para o meu salvador.

Ao ouvir esta voz doce e suplicante, ao ver este olhar tímido e abatido, Felton aproximou‑se. Pouco a pouco a feiticeira revestira‑se daqueles enfeites mágicos que ia buscar e que largava conforme queria, ou seja, a beleza, a doçura, as lágrimas e sobretudo o irresistível atractivo da volúpia mística, a mais devoradora das volúpias.

‑ Infelizmente ‑ disse Felton ‑, só posso fazer uma coisa, lamentar‑vos se me provardes que sois uma vítima! Mas lorde de Winter tem cruéis razões contra vós. Sois cristã, sois minha irmã na religião; sinto‑me arrastado para vós, eu que só amei o meu benfeitor, eu que só encontrei na vida traidores e ímpios. Mas vós, minha senhora, vós que na realidade sois tão bela, vós que aparentemente sois tão pura, cometestes iniquidades para que lorde de Winter assim vos persiga?

‑ Eles têm olhos ‑ repetiu Milady num tom de indizível dor ‑, e não verão, têm ouvidos e não ouvirão.

‑ Mas então ‑ exclamou o jovem oficial ‑ falai, falai!

‑ Confiar‑vos a minha vergonha! ‑ exclamou Milady, corando de pudor, pois muitas vezes o crime dum é a vergonha do outro. ‑ Confiar‑vos a minha vergonha, a vós um homem, eu uma mulher!

Oh! ‑ continuou ela, tapando pudicamente com a mão os seus belos olhos. ‑ ah! Nunca, nunca poderei!

‑ A mim, a um irmão! ‑ exclamou Felton.

Milady fitou‑o longamente com uma expressão que o jovem oficial tomou por dúvida e que, contudo, não passava de observação e sobretudo de vontade de fascinar.

Por sua vez suplicante, Felton juntou as mãos.

‑ Pois bem ‑ disse Milady ‑, confio no meu irmão, ousarei! Neste momento ouviu‑se o passo de lorde de Winter; mas desta vez o terrível cunhado de Milady não se contentou como fizera na véspera, em passar diante da porta e afastar‑se, parou, trocou duas palavras com a sentinela, depois a porta abriu‑se e ele apareceu.

Enquanto trocavam estas duas palavras, Felton recuara vivamente e, quando lorde de Winter entrou, estava a alguns passos da prisioneira.

O barão entrou lentamente e dirigiu o seu olhar perscrutador da prisioneira para o jovem oficial:

‑ Há muito tempo que estais aqui, John ‑ disse ele ‑; será que essa mulher vos contou os seus crimes? Nesse caso, compreendo a demora da conversa.

Felton estremeceu e Milady sentiu que estava perdida se não fosse em socorro do puritano embaraçado.

‑ Ah! Receais que a vossa prisioneira vos escape! ‑ disse ela. ‑ Pois bem, perguntai ao vosso digno carcereiro que favor eu lhe pedia neste mesmo instante.

‑ Pedíeis um favor? ‑ disse o barão, desconfiado.

‑ Sim, Milorde ‑ respondeu o jovem confuso.

‑ E que favor era esse? ‑ perguntou lorde de Winter.

‑ Uma faca que me devolverá pela abertura da porta, um minuto depois de a ter recebido ‑ respondeu Felton.

‑ Então está aqui uma pessoa escondida que essa graciosa pessoa queira degolar? ‑ perguntou lorde de Winter com a sua voz irónica e desprezível.

‑ Estou eu ‑ respondeu Milady.

‑ Dei‑vos a escolher entre a América e Tyburn ‑ prosseguiu lorde de Winter ‑, escolhei Tyburn. A corda ainda é mais segura que a faca, podeis crer.

Felton empalideceu e deu um passo em frente, pensando que, no momento em que entrara, Milady tinha uma corda.

‑ Tendes razão ‑ disse esta ‑, eu não tinha pensado nisso. ‑ Depois acrescentou com voz surda: Hei‑de pensar outra vez.

Felton sentiu um arrepio percorrer‑lhe os ossos; provavelmente , lorde de Winter percebeu este movimento.

‑ Desconfia, John ‑ disse ele ‑, John, meu amigo, eu confiei em ti, tem cuidado! Eu preveni‑te! De resto, tem coragem, meu filho, daqui a três dias estaremos livres desta criatura, e lá onde a envio, não prejudicará ninguém.

‑ Estais a ouvir! ‑ exclamou bem alto Milady de modo que o barão julgou que ela se dirigia aos céus e Felton compreendeu que se dirigia a

ele.

Felton baixou a cabeça e divagou:

O barão deu o braço ao oficial, virando a cabeça de modo a não perder Milady de vista até sair.

‑ Vamos, vamos ‑ disse a prisioneira quando a porta se fechou ‑, ainda não avancei tanto como julgava. Winter transformou a sua habitual estupidez numa prudência desconhecida; o que é o desejo de vingança e como este desejo forma o homem! Quanto a Felton, hesita. Ah! Não é um homem como esse maldito d'Artagnan. Um puritano só adora as virgens, e adora‑as juntando as mãos. Um mosqueteiro ama as mulheres, e ama‑as juntando os braços.

Todavia Milady esperou com impaciência pois suspeitava que o dia não terminaria sem que tornasse a ver Felton. Por fim, uma hora depois da cena que acabámos de contar, percebeu que falavam baixo à porta, depois a porta abriu‑se e ela reconheceu Felton.

O jovem avançou rapidamente no quarto, deixando a porta aberta e fazendo sinal a Milady para se calar; tinha uma expressão transtornada.

‑ Que quereis de mim? ‑ perguntou ela.

‑ Escutai ‑ respondeu Felton em voz baixa ‑, acabo de afastar a sentinela para poder ficar aqui sem que saibam que vim, para vos falar sem que possam ouvir o que vos digo. O barão acaba de me contar uma história horrível.

Milady arvorou o seu sorriso de vítima resignada e abanou a cabeça.

‑ Ou sois um demónio ‑ continuou Felton ‑ ou o barão, o meu benfeitor, meu pai, é um monstro. Conheço‑vos há quatro dias, a ele amo‑o há dez anos; posso, portanto, hesitar entre os dois. Não vos assusteis com o que vos digo, preciso de ser convencido. Esta noite, depois da meia‑noite, virei ver‑vos e convencer‑me‑eis.

‑ Não, Felton, não, meu irmão ‑ disse ela ‑, o sacrifício é grande de mais e sinto que vos custa. Não, eu estou perdida, não vos percais comigo. A minha morte será muito mais eloquente que a minha vida, e o silêncio do cadáver convencer‑vos‑á muito melhor que as palavras da prisioneira.

‑ Calai‑vos, minha senhora ‑ exclamou Felton ‑, e não me faleis assim; eu vim para que me prometêsseis pela vossa honra, para que me jurásseis pelo que tendes de mais sagrado, que não atentareis contra a vossa vida.

‑ Não quero prometer ‑ disse Milady ‑, pois não há ninguém que mais respeite um juramento e, se prometer, terei de cumprir.

‑ Pois bem ‑ disse Felton ‑, comprometei‑vos apenas até ao momento em que me voltareis a ver. Se, quando me voltardes a ver, ainda persistirdes, pois bem, então sereis livre e eu próprio vos darei a arma que me pedistes.

‑ Muito bem ‑ disse Milady ‑, por vós eu esperarei.

‑ Jurai.

‑ Juro pelo nosso Deus. Estais satisfeito?

‑ Bom ‑ disse Felton ‑, até logo à noite!

E precipitou‑se fora do quarto, fechou a porta e esperou lá fora com a meia lança do soldado na mão como se montasse guarda no lugar dele.

Quando o soldado voltou, Felton devolveu‑lhe a arma.

Então, através da abertura da porta de que se tinha aproximado, Milady viu o rapaz persignar‑se com um fervor delirante e ir pelo corredor num transporte de alegria.

Quanto a ela, voltou para o seu lugar com um sorriso de desprezo selvático nos lábios e repetiu, blasfemando, o nome terrível de Deus, pelo qual jurara sem nunca o ter procurado conhecer.

‑ Meu Deus! ‑ disse ela. ‑ Fanático tresloucado! Meu Deus! Sou eu, eu e aquele que me ajudar a vingar‑me.

 

         QUINTO DIA DE CATIVEIRO

Contudo, Milady tinha chegado a um semitriunfo e o êxito obtido redobrava as suas forças.

Não era difícil vencer, como fizera até então, homens prontos a deixar‑se seduzir, e que a educação galante da corte depressa arrastava para a armadilha; Milady era bastante bela para não encontrar resistência da parte da carne, e era bastante hábil para vencer todos os obstáculos do espírito.

Mas, desta vez, tinha de lutar contra uma natureza selvagem, concentrada, insensível à força da austeridade; a religião e a penitência haviam feito de Felton um homem inacessível às seduções banais. Alimentava na sua cabeça exaltada planos tão vastos, projectos tão tumultuosos que não ficava lugar nenhum para amor, de capricho ou de matéria, esse sentimento que se nutre de lazer e que cresce com a corrupção. Milady tinha, pois, aberto uma brecha, com a sua falsa virtude, na opinião dum homem horrivelmente prevenido contra ela, e, com a sua beleza, no coração e nos sentidos dum homem casto e puro. Enfim dera a plena medida dos seus meios, que até então ela própria desconhecia, através dessa experiência realizada com o sujeito mais rebelde que a natureza e a religião poderiam submeter ao seu estudo.

Contudo, muitas vezes durante o dia perdera a esperança na sorte e em si mesma; não invocava Deus, já sabemos, mas tinha fé no génio do mal, essa imensa soberania que reina em todos os pormenores da vida humana e à qual, como na fábula árabe, um bago de romã basta para construir um mundo perdido.

Milady, bem preparada para receber Felton, pôde preparar as suas baterias para o dia seguinte. Sabia que só lhe restavam dois dias, que uma vez a ordem assinada por Buckingham (e Buckingham assiná‑la‑ia facilmente tanto mais que essa ordem indicava um nome falso e que não reconheceria a mulher em questão), uma vez a ordem assinada, dizíamos, o barão mandá‑la‑ia embarcar imediatamente, e ela também sabia que as mulheres condenadas à deportação se servem de armas muito menos poderosas nas suas seduções que as mulheres pretensamente virtuosas a quem o sol do mundo ilumina a beleza, a quem a voz da moda gaba o espírito e que um reflexo de aristocracia doura com as suas luzes encantadas. Ser uma mulher condenada quase miserável e infamante não impede de ser bela, mas impede de voltar a ser poderosa. Como todas as pessoas de mérito verdadeiro, Milady conhecia o meio que convinha à sua natureza, aos seus meios. A pobreza causava‑lhe repugnância, a abjecção tirava‑lhe dois terços da sua grandeza. Milady só era rainha entre as rainhas; a sua dominação precisava do prazer do orgulho satisfeito. Para ela, comandar os seres inferiores era mais uma humilhação do que um prazer.

Certamente que voltaria do seu exílio, não duvidava disso nem por um instante, mas quanto tempo poderia durar esse exílio? Para uma natureza activa e ambiciosa como a de Milady, os dias não ocupados a subir são dias nefastos; imagine‑se uma palavra para designar os dias empregues a descer! Perder um ano, dois anos, três dias, quer dizer, uma eternidade; voltar quando d'Artagnan tivesse, ele e os seus amigos, recebido a recompensa pelos serviços que ele e os seus amigos tinham prestado, eram ideias devoradoras que uma mulher como Milady não podia suportar. De resto, a tempestade que rosnava dentro dela redobrava a sua força e faria rebentar os muros da prisão, se o seu corpo pudesse ganhar por um instante as proporções do seu espírito.

Depois, o que ainda a espicaçava no meio de tudo isso era a lembrança do cardeal. Que pensaria, que diria do seu silêncio o cardeal, desconfiado, inquieto, o cardeal não só o seu único apoio, o seu único protector no presente, mas também o principal instrumento da sua fortuna e da sua vingança futura? Ela conhecia‑o, sabia que, quando regressasse após uma viagem inútil, bem poderia falar da prisão, bem podia exaltar os sofrimentos passados, o cardeal responderia com a calma irónica do céptico poderoso pela força e ao mesmo tempo pelo génio: «Não vos devíeis ter deixado apanhar!»

Então Milady chamava a si toda a sua energia, murmurando no fundo do seu pensamento o nome de Felton, a única claridade que chegava até ela no fundo do inferno em que tinha caído; e, como uma serpente que enrola e desenrola os seus anéis para mostrar a si mesma a sua força, envolvia antecipadamente Felton nas mil pregas da sua inventiva imaginação.

Contudo, o tempo passava, as horas umas atrás das outras pareciam despertar o sino ao passar e cada badalada de bronze ecoava no coração da prisioneira.

Às nove horas, lorde de Winter fez a sua habitual visita, olhou pela janela e pelas grades, sondou o soalho e as paredes, examinou a lareira e as portas sem que, durante esta longa e minuciosa visita, nem ele nem Milady pronunciassem uma única palavra. Certamente que ambos compreendiam que a situação se tornara demasiado grave para perderem tempo com palavras inúteis e com arrebatamentos sem efeito.

‑ Vá, vá ‑ disse o barão ao deixá‑la ‑, ainda não será esta noite que fugireis!

Às dez horas, Felton veio trazer uma sentinela; Milady reconheceu‑lhe o passo. Adivinhava‑o agora como uma amante adivinha o do eleito do seu coração e, contudo, Milady desprezava e detestava aquele fraco fanático.

Não era a hora combinada, Felton não entrou.

Duas horas depois, ao soar a meia‑noite, a sentinela foi rendida.

Desta vez era a hora; portanto, a partir deste momento, Milady esperou com impaciência.

A nova sentinela começou a passear no corredor.

Passados dez minutos veio Felton.

Milady prestou ouvidos.

‑ Escuta ‑ disse o jovem à sentinela ‑, não te afastes desta porta sob nenhum pretexto, pois sabes que a noite passada Milorde puniu um soldado por ter largado o seu posto um instante, e contudo fui eu que, durante essa curta ausência, guardei no lugar dele.

‑ Sim, eu sei ‑ disse o soldado.

‑ Recomendo‑te, pois, a mais exacta vigilância. Eu ‑ acrescentou ‑ vou entrar para examinar pela segunda vez o quarto dessa mulher, que receio tenha projectos sinistros contra si mesma e que recebi ordem de vigiar.

‑ Bom ‑ murmurou Milady ‑, o austero puritano mente! Quanto ao soldado, contentou‑se em sorrir.

‑ Irra! Meu tenente ‑ disse ele ‑, que sorte serdes encarregado dessas tarefas, sobretudo se Milorde vos autorizou a espreitar até dentro da cama.

Felton corou, em qualquer outra circunstância teria censurado o soldado que se permitia semelhante gracejo, mas a sua consciência murmurava muito alto para que a sua boca ousasse falar.

‑ Se eu chamar ‑ disse ele ‑, vem. E também, se vier alguém, chama‑me.

‑ Sim, meu tenente ‑ disse o soldado.

Felton entrou no quarto de Milady. Milady levantou‑se.

‑ Estais aqui? ‑ disse ela.

‑ Tinha‑vos prometido vir ‑ disse Felton ‑, e vim.

‑ Prometestes‑me outra coisa.

‑ O quê? Meu Deus! ‑ disse o jovem que apesar do seu domínio sentia os joelhos a tremer e o suor a perlar‑lhe a testa.

‑ Prometestes trazer‑me uma faca, e deixar‑ma depois da nossa conversa.

‑ Não faleis nisso, minha senhora ‑ disse Felton ‑, não há situação, por mais terrível que seja, que autorize uma criatura de Deus a matar‑se. Pensei bem e decidi que nunca me devia tornar culpado de semelhante pecado.

‑ Ah! Pensastes! ‑ disse a prisioneira, sentando‑se na poltrona com um sorriso de desdém. ‑ E eu também pensei.

‑ O quê?

‑ Que não tinha nada a dizer a um homem que não cumpria a sua palavra.

‑ Ó meu Deus! ‑ murmurou Felton.

‑ Podeis retirar‑vos ‑ disse Milady ‑, eu não falarei.

‑ Eis a faca! ‑ disse Felton, tirando do bolso a arma que, conforme prometera, tinha trazido mas que hesitava em entregar à prisioneira.

‑ Vejamos ‑ disse Milady.

‑ Para quê?

‑ Palavra de honra que vos entrego a faca imediatamente; podereis pousá‑la nesta mesa e ficar entre ela e eu.

Felton estendeu a arma a Milady, que lhe examinou atentamente a têmpera e que lhe experimentou a ponta com o dedo.

‑ Bom ‑ disse ela, devolvendo a faca ao jovem oficial ‑, esta é mesmo de aço; sois um amigo fiel, Felton.

Felton pegou na arma e pousou‑a na mesa, como acabava de combinar com a prisioneira.

Milady seguiu‑o com o olhar e fez um gesto de satisfação.

‑ Agora ‑ disse ela ‑, escutai‑me.

A recomendação era inútil: o jovem oficial estava de pé diante dela, à espera das suas palavras para as devorar.

‑ Felton ‑ disse Milady com uma solenidade cheia de melancolia ‑, Felton, se vossa irmã, a filha de vosso pai, vos dissesse: «Ainda jovem, bastante bela para a desgraça, fizeram‑me cair numa armadilha, eu resisti; multiplicaram as ciladas, as violências à minha volta, eu resisti; blasfemaram contra a religião que sirvo, contra o Deus que adoro, porque eu chamava em meu socorro esse Deus e essa religião, eu resisti; então prodigalizaram‑me os ultrages e, como não podiam perder a minha alma, quiseram dominar para sempre o meu corpo; enfim...»

‑ Enfim ‑ disse Felton ‑, enfim, que fizeram?

‑ Enfim, uma noite, resolveram paralisar essa resistência que não podiam vencer; uma noite, deitaram‑me na água um narcótico poderoso; mal acabei de comer senti‑me cair a pouco e pouco num torpor desconhecido. Embora não desconfiasse, assaltou‑me um receio vago e tentei lutar contra o sono; levantei‑me, quis correr à janela, pedir socorro, mas as minhas pernas recusaram‑se a andar; parecia‑me que o tecto baixava sobre a minha cabeça e me esmagava sob o seu peso; estendi os braços, tentei falar, só consegui emitir uns sons inarticulados; um torpor irresistível tomava conta de mim, agarrei‑me a uma poltrona, sentindo que ia cair, mas em breve esse apoio foi insuficiente para os meus braços débeis, caí sobre um joelho, depois sobre os dois; quis gritar, mas tinha a língua gelada; Deus certamente não me viu nem ouviu, e escorreguei no soalho, vítima dum sono semelhante à morte.

«Não me lembro de nada do que se passou durante esse sono, nem do tempo que durou; a única coisa que recordo é que acordei deitada num quarto redondo, mobilado luxuosamente e cuja claridade provinha unicamente duma abertura no tecto. De resto, nenhuma porta parecia dar entrada para o quarto; dir‑se‑ia uma magnífica prisão.

»Levei muito tempo até conseguir dar conta do lugar em que me achava e de todos os pormenores que refiro, o meu espírito parecia lutar em vão para sacudir as pesadas trevas do sono de que não me conseguia arrancar; tinha percepções vagas dum espaço percorrido, do andamento dum carro, dum sonho horrível em que as minhas forças se teriam esgotado; mas tudo isso era tão sombrio e tão indistinto para o meu pensamento que esses acontecimentos pareciam pertencer a uma vida que não era a minha e que, contudo, estava confundida com a minha por uma fantástica dualidade.

«Durante algum tempo o estado em que me achava pareceu‑me tão estranho que julguei que estava a sonhar. Levantei‑me cambaleante, a minha roupa estava junto de mim, em cima duma cadeira: não me lembrava nem de me ter despido nem de me ter deitado. Então, a pouco e pouco, a realidade apresentou‑se‑me, cheia de pudicos terrores: já não estava na casa em que morava e, a julgar pela luz do sol, já tinham decorrido dois terços do dia! Fora na véspera à noite em que eu adormecera; o meu sono durara, portanto, quase vinte e quatro horas. Que se passara durante esse longo sono?

»Vesti‑me o mais depressa que pude. Todos os meus movimentos lentos e entorpecidos provavam que a influência do narcótico ainda não se tinha dissipado inteiramente. De resto, aquele quarto estava mobilado para receber uma mulher, e a mais garrida de todas só teria que formular um desejo e, passeando o olhar pelo quarto, veria este desejo realizado.

«Certamente eu não era a primeira cativa que se vira encerrada naquela esplêndida prisão; mas, compreendeis, Felton, quanto mais bela era a prisão mais eu me assustava.

»Sim, era uma prisão; foi em vão que tentei sair. Sondei todas as paredes a fim de descobrir uma porta, em toda a parte as paredes produziam um som pleno e surdo.

»Dei talvez vinte vezes a volta àquele quarto, à procura duma saída qualquer; não havia nenhuma: caí numa poltrona, vencida pela fadiga e pelo terror.

"Entretanto a noite caía rapidamente, e, com a noite, aumentavam os meus terrores: não sabia se devia ficar onde me tinha sentado; parecia‑me que estava rodeada de perigos desconhecidos, nos quais ia cair a cada passo. Embora não tivesse comido nada desde a véspera, os meus receios não me deixavam ter fome.

«Nenhum ruído exterior, que me permitisse medir o tempo, chega até mim; presumi apenas que podiam ser sete ou oito horas da noite, pois estávamos no mês de Outubro e era noite cerrada.

»De repente, o rangido duma porta girando sobre os seus gonzos fez‑me sobressaltar; um globo de fogo apareceu por cima da abertura envidraçada do tecto, lançando uma luz viva no meu quarto, e eu notei, aterrada, que um homem estava de pé a poucos passos de mim.

«Uma mesa para dois, com um jantar servido, tinha‑se erguido como por magia no meio do quarto.

«Esse homem era o que me perseguia há um ano, que tinha jurado a minha desonra, e que, com as primeiras palavras que lhe saíram da boca, me fez compreender que o fizera na noite anterior.

‑ O infame! ‑ murmurou Felton.

‑ Oh! Sim, o infame! ‑ exclamou Milady, vendo o interesse que o jovem oficial, cuja alma parecia suspensa dos seus lábios, dedicava à estranha narrativa. ‑ Oh! Sim, o infame! Julgara que lhe bastara ter‑me vencido durante o sono para que estivesse tudo dito; vinha, esperando que eu aceitaria a minha vergonha, pois a minha vergonha estava consumada; vinha oferecer‑me a sua fortuna em troca do meu amor.

«Derramei sobre aquele homem tudo quanto o coração duma mulher pode conter de supremo desprezo e de palavras desdenhosas; certamente que estava habituado a semelhantes censuras, pois escutou‑me calmo, sorridente, de braços cruzados, depois, quando julgou que eu tinha dito tudo, avançou para mim, eu saltei para a mesa, peguei numa faca e encostei‑a ao peito.

»‑ Mais um passo ‑ disse‑lhe eu ‑ e, além da minha desonra, tereis ainda de vos censurardes da minha morte.

«Com certeza havia no meu olhar, na minha voz, em toda a minha pessoa, a verdade do gesto, da atitude e do tom que dá a convicção às almas mais perversas, porque ele parou.

«‑ A vossa morte! ‑ disse‑me ele. ‑ Oh! Não, sois uma amante muito encantadora para que eu consinta em perder‑vos dessa maneira, depois de ter tido a felicidade de possuir‑vos apenas uma vez. Adeus, minha linda! Esperarei, para vir visitar‑vos, que estejais mais bem disposta.

«Com estas palavras assobiou; o globo que iluminava o meu quarto subiu e desapareceu; encontrei‑me novamente às escuras. O mesmo ruído duma porta a abrir‑se e a fechar‑se reproduziu‑se passado um instante, o globo chamejante tornou a descer e eu fiquei só.

«Esse momento foi horrível; se ainda tivesse dúvidas sobre a minha desgraça, essas dúvidas tinham‑se desvanecido numa realidade desesperante: estava em poder dum homem que não só detestava mas também desprezava; dum homem capaz de tudo, e que já me dera uma prova fatal daquilo que podia ousar.

‑ Mas, então, quem era esse homem? ‑ perguntou Felton.

‑ Passei a noite numa cadeira, estremecendo ao menor ruído, pois, cerca da meia‑noite, o candeeiro apagara‑se e eu tinha ficado às escuras.

Mas a noite passou‑se sem nova tentativa do meu perseguidor; veio o dia: a mesa desaparecera, mas eu ainda tinha a faca na mão.

«Aquela faca era toda a minha esperança.

«Estava derreada de fadiga; a insónia queimava‑me os olhos, não ousava dormir um instante; o dia tranquilizou‑me, atirei‑me para cima da cama sem largar a faca libertadora, que escondi debaixo da almofada.

«Quando acordei, estava posta outra mesa.

«Desta vez, apesar dos meus terrores, apesar das minhas angústias, sentia uma fome devoradora; havia quarenta e oito horas que não comia; comi pão e fruta, depois, lembrando‑me do narcótico misturado com a água que tinha bebido, não toquei na que estava em cima da mesa e fui encher o copo a uma fonte de mármore embutida na parede, por cima do toucador.

«Porém, apesar dessa precaução, ainda permaneci algum tempo numa horrível angústia; mas desta vez os meus receios eram infundados, passei o dia sem sentir nada daquilo que temia.

«Tinha tido a precaução de esvaziar metade da garrafa, para que não se apercebessem da minha desconfiança.

«Veio a noite e, com ela, a escuridão; contudo, por muito profunda que fosse, os meus olhos começavam a habituar‑se; vi, no meio das trevas, a mesa penetrar no tecto; passado um quarto de hora, tornou a aparecer com o meu jantar e, instantes depois, graças ao mesmo candeeiro, o meu quarto tornou a iluminar‑se.

«Estava resolvida a comer apenas alimentos em que fosse impossível misturar algum sonífero: dois ovos e fruta constituiriam a minha refeição; depois, fui encher um copo à minha fonte protectora, e bebi.

«Ao beber os primeiros goles, pareceu‑me que já não tinha o mesmo gosto que de manhã; tive uma breve suspeita e parei, mas já tinha bebido meio copo.

"Atirei o resto fora, horrorizada, e esperei, com a testa coberta de suor que o pavor me causara.

«Com certeza, alguma testemunha invisível me vira beber água da fonte e aproveitara‑se da minha própria confiança para melhor garantir a minha perdição tão friamente resolvida, tão cruelmente levada a cabo.

«Ainda não tinha passado meia hora quando se produziram os mesmos sintomas; mas, como desta vez eu só bebera meio copo de água, lutei durante mais tempo e, em vez de adormecer completamente, caí num estado de sonolência que me deixava o sentimento de tudo o que se passava à minha volta mas que me tirava a força para me defender ou para fugir.

«Arrastei‑me para a minha cama, à procura da única defesa que me restava, a minha faca salvadora, mas não consegui chegar à cabeceira: caí de joelhos, fincando as mãos numa das colunas dos pés da cama, então compreendi que estava perdida.

Felton empalideceu terrivelmente e um arrepio convulsivo percorreu‑lhe o corpo todo.

‑ E o mais horrível ‑ continuou Milady com a sua voz alterada como se ainda sentisse a mesma angústia que naquele momento terrível ‑ é que, daquela vez, eu tinha consciência do perigo que me ameaçava; é que a minha alma, posso dizê‑lo, estava vigilante no meu corpo adormecido; é que eu via, é que eu ouvia; é verdade que tudo aquilo era como um sonho, mas isso ainda o tornava mais assustador.

«Vi o candeeiro subir e deixar‑me a pouco e pouco no escuro; depois ouvi o ranger da porta que já conhecia tão bem, embora esta porta só se tivesse aberto duas vezes.

«Senti instintivamente que alguém se aproximava de mim; dizem que o desgraçado perdido nos desertos da América sente assim a aproximação da serpente.

«Quis fazer um esforço, tentei gritar; com uma incrível energia da vontade, consegui levantar‑me, mas para imediatamente tornar a cair... e cair nos braços do meu perseguidor.

‑ Dizei‑me quem era esse homem ‑ pediu o jovem oficial.

Milady viu com um só olhar todo o sofrimento que inspirava a Felton, pesando cada pormenor da sua narrativa; mas não lhe queria poupar nenhuma tortura. Quanto mais profundamente lhe esmagasse o coração, mais seguramente ele a vingaria. Continuou, portanto, como se não tivesse ouvido a sua exclamação, ou como se pensasse que ainda não tinha chegado o momento de responder.

‑ Mas, desta vez, já não era uma espécie de cadáver inerte, sem nenhum sentimento, que o infame tinha diante dele. Já vos disse: embora sem conseguir recuperar o exercício completo das minhas faculdades, restava‑me o sentimento do meu perigo: lutei, pois, com todas as minhas forças e por certo opus, embora muito fraca, uma longa resistência, porque o ouvi exclamar:

«‑ Estas miseráveis puritanas! Já sabia que cansavam os seus carrascos, mas julgava que eram menos fortes contra os seus sedutores.

«Ai de mim! Aquela resistência desesperada não podia durar muito, senti que as forças me faltavam e, desta vez, não foi do meu sono que o cobarde se aproveitou, mas do meu desmaio.

Felton escutava, emitindo apenas um rugido surdo, mas o suor escorria‑lhe da testa de mármore e a mão, escondida dentro da casaca, rasgava‑lhe o peito.

‑ Quando recuperei os sentidos, o primeiro movimento que fiz foi para procurar debaixo da almofada a faca que não tinha conseguido alcançar; se não tinha servido para a defesa, ao menos podia servir para a expiação.

«Mas ao pegar na faca, Felton, tive uma ideia terrível. Jurei dizer‑vos tudo e vou dizer‑vos tudo; prometi‑vos a verdade e vou dizê‑la, ainda que seja a minha perdição.

‑ Tiveste a ideia de vos vingardes desse homem, não foi? ‑ exclamou Felton.

‑ Sim! ‑ disse Milady. ‑ Não era uma ideia cristã, eu sei; talvez fosse esse eterno inimigo da nossa alma, esse leão que ruge incessantemente à nossa volta que a soprasse ao meu espírito. Enfim, que hei‑de dizer‑vos, Felton? ‑ continuou Milady no tom da mulher que se acusa dum crime. ‑ Tive essa ideia, que certamente nunca mais me abandonou. É o castigo desse pensamento homicida que hoje trago comigo.

‑ Continuai, continuai ‑ disse Felton ‑, tenho pressa de vos ver chegar à vingança.

‑ Oh! Resolvi que ela teria lugar o mais cedo possível, não duvidava de que ele não viesse na noite seguinte. Durante o dia não tinha nada a temer.

«Portanto, quando chegou a hora do almoço, não hesitei em comer e beber; estava resolvida a fingir que jantava, mas a não comer nada, portanto tinha de combater o jejum da noite com o alimento da manhã.

«Porém, escondi um copo de água do almoço, pois a sede foi o que mais me custara quando passei quarenta e oito horas sem beber nem comer.

«O dia passou‑se sem exercer em mim outra influência além de fortalecer‑me na resolução que havia tomado, mas tive o cuidado de não deixar que o meu rosto traísse o pensamento do meu coração, pois não tinha dúvidas de que me observavam; várias vezes cheguei a sentir um sorriso nos lábios. Felton, não ouso dizer‑vos a ideia que me fazia sorrir, causar‑vos‑ia horror...

‑ Continuai, continuai ‑ disse Felton ‑, bem vedes que escuto e que tenho pressa de chegar.

‑ Veio a noite, realizaram‑se os acontecimentos habituais; durante a escuridão, como de costume, serviram‑me o jantar, depois o candeeiro acendeu‑se e eu sentei‑me à mesa.

«Comi apenas fruta; fingi que me servia da água da garrafa, mas só bebi a que tinha conservado no copo; de resto, a substituição foi feita com suficiente habilidade para que os meus espiões, se é que os tinha, não tivessem nenhuma suspeita.

"Depois do jantar, dei as mesmas mostras de torpor que na véspera, mas, desta vez, como se sucumbisse à fadiga ou me familiarizasse com o perigo, arrastei‑me para a cama e fingi que adormecia.

"Desta vez, tinha encontrado a minha faca debaixo da almofada e, fingindo que dormia, a minha mão apertava convulsivamente o cabo da faca.

«Decorreram duas horas sem que se passasse nada de novo; desta vez, ó meu Deus!, quem mo diria na véspera? Começava a recear que ele não viesse.

"Enfim, vi o candeeiro subir lentamente e desaparecer nas profundezas do tecto; o meu quarto encheu‑se de trevas; mas fiz um esforço para penetrar a escuridão com o olhar.

«Passaram‑se cerca de dez minutos. O único ruído que eu ouvia eram as palpitações do meu coração.

"Implorei ao céu que ele viesse.

«Por fim, ouvi o tão conhecido ruído da porta a abrir‑se e a fechar‑se; ouvi, apesar da espessura do tapete, um passo que fazia ranger o soalho; vi, apesar do escuro, uma sombra que se aproximava da minha cama.

‑ Apressai‑vos, apressai‑vos! ‑ disse Felton. ‑ Não vedes que cada uma das vossas palavras me queima como chumbo derretido?

‑ Então ‑ continuou Milady ‑, chamei a mim todas as minhas forças, lembrei‑me de que o momento da vingança, ou melhor, da justiça, tinha soado; considerei‑me uma nova Judite; encolhi‑me, com a faca na mão e, quando o vi junto de mim, estendendo os braços à procura da sua vítima, então, com o derradeiro grito da dor e do desespero feri‑o em pleno peito.

»O miserável tinha previsto tudo; o seu peito estava coberto de uma cota de malha; a faca embotou‑se.

«‑ Ah! Ah! ‑ exclamou ele, agarrando‑me o braço e arrancando‑me a arma que tão mal me havia servido. ‑ Atentais contra a minha vida, minha linda puritana! Mas isso é mais que ódio, é ingratidão! Vá, vá, acalmai‑vos, minha linda menina! Julguei que estáveis mais boazinha. Eu não sou desses tiranos que conservam as mulheres à força: não me amais, eu já suspeitava disso com a minha habitual fatuidade, agora estou convencido. Amanhã estareis livre.

«Eu só desejava uma coisa: que ele me matasse.

«‑ Tende cuidado! ‑ disse‑lhe eu. ‑ Pois a minha liberdade é a vossa desonra.

«Sim, pois mal sair daqui contarei tudo, contarei a violência que usastes contra mim, contarei o meu cativeiro. Denunciarei este palácio de infâmia; vós ocupais uma posição muito alta Milorde, mas podeis tremer! Acima de vós está o rei, acima do rei está Deus.

«Por muito senhor de si que parecesse, o meu perseguidor deixou escapar um movimento de cólera. Eu não podia ver‑lhe a expressão do rosto, mas sentira tremer‑lhe o braço, sobre o qual estava pousada a minha mão.

«- Então não saireis daqui ‑ disse ele.

«‑ Bom, bom! ‑ exclamei eu. ‑ Então o lugar do meu suplício será também o do meu túmulo. Bom! Morrerei aqui e vereis se um fantasma que acusa não é ainda mais terrível que um vivo que ameaça!

«‑ Não vos deixarão nenhuma arma.

«‑ Há uma que o desespero pôs ao alcance de toda a criatura que tenha a coragem de se servir dela. Deixar‑me‑ei morrer de fome.

«‑ Ora ‑ disse o miserável ‑, não vale mais a paz do que semelhante guerra? Eu devolvo‑vos a liberdade neste instante, proclamo‑vos virtuosa, chamo‑vos a Lucrécia de Inglaterra.

«‑ E eu digo que vós sois o Sextus, denuncio‑vos aos homens como já vos denunciei a Deus; e se for preciso que, como Lucrécia, eu assine a minha acusação com o meu sangue, assiná‑la‑ei.

«‑ Ah! Ah! ‑ disse o meu inimigo ironicamente. ‑ Isso é outra coisa. Apre! Afinal, estais bem aqui, nada vos faltará e, se vos deixardes morrer de fome, a culpa será vossa.

«Com estas palavras, retirou‑se; eu ouvi abrir e fechar a porta e fiquei abalada, menos na minha dor, confesso, que na vergonhha de não me ter vingado.

«Ele manteve a palavra. Todo o dia, toda a noite seguintes se passaram sem que o voltasse a ver. Mas eu também mantive a palavra e não comi nem bebi; como lhe dissera, estava resolvida a morrer de fome. «Passei o dia e a noite a rezar, pois esperava que Deus me perdoasse o meu suicídio.

«Na segunda noite a porta abriu‑se; eu estava deitada no chão, começava a perder as forças.

«Ao ouvir ruído, firmei‑me numa das mãos.

«- Ora bem! ‑ disse‑me ele com uma voz que soava aos meus ouvidos duma maneira muito terrível para que eu não a reconhecesse. ‑ Ora bem! Já estais mais boazinha, e pagais a vossa liberdade com uma só promessa de silêncio? Vede, eu sou magnânimo ‑ acrescentou ‑ e, embora não goste dos puritanos, faço‑lhes justiça, e também às puritanas quando são bonitas. Vá, fazei‑me um juramento sobre a cruz, não vos peço mais nada.

«‑ Sobre a cruz! ‑ exclamei eu, reerguendo‑me, pois, ao ouvir aquela voz odiada, recobrara as forças. ‑ Sobre a cruz! Juro que nenhuma promessa, nenhuma ameaça, nenhuma tortura me fechará a boca; sobre a cruz! juro denunciar‑vos em toda a parte como um assassino, como um ladrão da honra, como um cobarde; sobre a cruz! juro, se jamais conseguir sair daqui, pedir vingança a todo o género humano.

«‑ Tende cuidado! ‑ disse a voz num tom de ameaça que eu ainda não tinha ouvido. ‑ Eu tenho um meio supremo, que só empregarei em última instância, de vos fechar a boca ou pelo menos de impedir que acreditem numa só palavra do que disserdes.

«Reuni as minhas forças para responder com uma gargalhada.

«Ele viu que dali em diante seria uma guerra eterna entre nós, uma guerra mortal.

«‑ Escutai ‑ disse ele ‑, dou‑vos ainda o resto desta noite e o dia de amanhã; reflecti: prometei calar‑vos; sereis rodeada de riqueza, de consideração e até de honrarias; ameaçai falar e condeno‑vos à infâmia.

«‑ Vós! ‑ exclamei eu. ‑ Vós!

«‑ À infâmia eterna, inextinguível.

«‑ Vós! ‑ repeti eu. ‑ Oh! Digo‑vos, Felton, que julgava que ele estava louco!

«‑ Sim, eu! ‑ disse ele.

«‑ Ah! Deixai‑me ‑ disse‑lhe eu ‑, saí, se não quereis ver‑me rachar a cabeça na parede!

«‑ Está bem ‑ respondeu ‑, como quiserdes, até amanhã à noite!

«‑ Até amanhã à noite ‑ respondi, deixando‑me cair e mordendo o tapete de raiva...»

Felton apoiava‑se num móvel e Milady via com uma alegria demoníaca que talvez lhe faltassem as forças antes do fim da narrativa.

 

         UM MEIO DE TRAGÉDIA CLÁSSICA

Após um momento de silêncio que Milady empregou a observar o rapaz que a escutava, ela continuou a sua narrativa:

‑ Havia quase três dias que não comia nem bebia, sofria atrozes torturas, por veses passavam por mim como que umas nuvens que me oprimiam a fronte, que me velavam os olhos: era o delírio.

Veio a noite; estava tão fraca que a cada instante desmaiava e cada vez que desmaiava agradecia a Deus, pois julgava que ia morrer.

«No meio de um destes desmaios ouvi abrir a porta; o terror fez‑me vir a mim.

«O meu perseguidor entrou, seguido de um homem mascarado; ele próprio estava mascarado, mas eu reconheci‑lhe o passo, reconheci‑lhe aquele ar imponente que o inferno deu à sua pessoa para mal da humanidade.

«‑ Ora bem! ‑ disse‑me ele. ‑ Estais decidida a fazer‑me o juramento que vos pedi?

«‑ Vós o dissestes: os puritanos só têm uma palavra, já ouvistes a minha, perseguir‑vos na terra até ao tribunal dos homens, no Céu até ao tribunal de Deus!

«‑ Então persistis?

«‑ Juro diante de Deus que me está a ouvir: tomarei o mundo inteiro como testemunha do vosso crime, até encontrar um vingador.

«‑ Sois uma prostituta ‑ disse ele com voz trovejante ‑ e sofrereis o suplício das prostitutas! Marcada aos olhos do mundo que invocais, tentai provar‑lhe que não sois nem culpada nem louca!

«Depois, dirigindo‑se ao homem que o acompanhava:

«‑ Carrasco ‑ disse ele ‑, cumpre o teu dever.

‑ Oh! O seu nome, o seu nome! ‑ exclamou Felton. ‑ Dizei‑me o

seu nome!

‑ Então, apesar dos meus gritos, apesar da minha resistência, pois começava a compreender que se tratava de algo pior que a morte, o carrasco agarrou‑me, derrubou‑me, dominou‑me com os braços e, sufocada pelos soluços, quase inconsciente, invocando Deus que não me escutava, soltei de repente um horrível grito de dor e de vergonha: um ferro ao rubro, o ferro do carrasco, tinha‑se imprimido no meu ombro.

Felton soltou um rugido.

‑ Vede ‑ disse Milady, erguendo‑se então com a majestade duma rainha ‑, vede, Felton, como inventaram um novo martírio para a jovem pura e, contudo, vítima da brutalidade dum celerado. Aprendei a conhecer o coração dos homens e, doravante, não sejais tanto o instrumento das suas injustas vinganças.

Com um gesto rápido, Milady abriu o vestido, rasgou a cambraia que lhe cobria o regaço e, vermelha de cólera fingida e de falsa vergonha, mostrou ao jovem a marca inapagável que desonrava aquele ombro tão belo.

‑ Mas ‑ exclamou Felton ‑ vejo uma flor‑de‑lis!

‑ Eis justamente a infâmia ‑ respondeu Milady. ‑ A marca da Inglaterra!... Era preciso provar que tribunal ma tinha imposto, e eu apelaria publicamente para todos os tribunais do reino; mas a marca da França... Oh! Por ela eu era realmente marcada.

Era de mais para Felton.

Pálido, imóvel, esmagado por esta revelação pavorosa, ofuscado pela beleza sobre‑humana daquela mulher que se descobria diante dele com um impudor que lhe parecia sublime, acabou por cair de joelhos perante ela como faziam os primeiros cristãos diante das mártires puras e santas que a perseguição dos imperadores entregava no circo à lubricidade da populaça. A marca desapareceu, só ficou a beleza.

‑ Perdão, perdão! ‑ exclamou Felton. ‑ Oh! Perdão! Milady leu nos seus olhos: amor, amor.

‑ Perdão de quê? ‑ perguntou.

‑ Perdão por me ter aliado aos vossos perseguidores. Milady estendeu‑lhe a mão.

‑ Tão bela, tão jovem! ‑ exclamou Felton, cobrindo‑lhe a mão de beijos.

Milady deixou cair sobre ele um daqueles olhares que dum escravo fazem um rei.

Felton era puritano: largou a mão da mulher para lhe beijar os pés.

Já não a amava; adorava‑a.

Quando esta crise passou, quando Milady pareceu ter recobrado o sangue‑frio, que nunca tinha perdido, quando Felton viu fechar‑se sob o véu da castidade esses tesouros de amor que lhe escondiam tão bem apenas para o fazerem desejá‑los mais ardentemente:

‑ Ah! Agora ‑ disse ele ‑, só tenho que pedir‑vos uma coisa. É o nome do vosso verdadeiro carrasco, pois para mim só há um, o outro era o instrumento, mais nada.

‑ O quê, irmão? ‑ exclamou Milady. ‑ Ainda tenho de dizer como se chama, não adivinhastes?

‑ O quê? ‑ disse Felton. ‑ Ele!... Outra vez!... Sempre ele!... O quê? O verdadeiro culpado...

‑ O verdadeiro culpado ‑ disse Milady ‑ é o saqueador da Inglaterra, o perseguidor dos crentes autênticos, o cobarde ladrão da honra de tantas mulheres, aquele que, por um capricho do seu coração corrupto, vai fazer derramar tanto sangue a dois reinos, que hoje protege os protestantes e amanhã traí‑los‑á...

‑ Buckingham! Então é Buckingham! ‑ exclamou Felton, desesperado.

Milady escondeu o rosto nas mãos, como se não pudesse suportar a vergonha que este nome lhe causava.

‑ Buckingham, o carrasco desta angélica criatura! ‑ exclamou Felton ‑, E tu não o fulminaste, meu Deus! E tu deixaste‑o nobre, honrado, poderoso para a perdição de todos nós!

‑ Deus abandona quem se abandona a si mesmo ‑ disse Milady.

‑ Mas ele quer atrair sobre a sua cabeça o castigo reservado aos malditos! ‑ continuou Felton com exaltação crescente. ‑ Quer que a vingança humana preceda a justiça celeste!

‑ Os homens têm medo dele e poupam‑no.

‑ Oh! Eu ‑ disse Felton ‑ Não tenho medo e não o pouparei!... Milady sentiu a sua alma banhada de uma alegria infernal.

‑ Mas como é que lorde de Winter, o meu protector, o meu pai ‑ perguntou Felton ‑ está envolvido em tudo isto?

‑ Escutai, Felton ‑ recomeçou Milady ‑ pois ao lado dos homens cobardes e desprezíveis ainda há naturezas grandes e generosas. Eu tinha um noivo, um homem que eu amava; um coração como o vosso, Felton, um homem como vós. Fui ter com ele e contei‑lhe tudo; ele conhecia‑me e não duvidou nem por um instante. Era um grande senhor, era um homem igual a Buckingham em todos os aspectos. Não disse nada, apenas cingiu a espada, embrulhou‑se na capa e dirigiu‑se a Buckingham Palace.

‑ Sim, sim ‑ disse Felton ‑, compreendo; embora com esses homens não seja a espada que se deva usar mas o punhal.

‑ Buckingham partira na véspera, enviado a Espanha como embaixador, onde ia pedir a mão da infanta para o rei Carlos I, que nessa altura ainda era apenas príncipe de Gales. O meu noivo voltou.

«- Escutai ‑ disse‑me ele ‑, o homem partiu e, por conseguinte, para já escapa à minha vingança mas, entretanto, unamo‑nos como já devíamos estar unidos, e depois confiai em lorde de Winter para garantir a sua honra e a de sua mulher.

‑ Lorde de Winter! ‑ exclamou Felton.

‑ Sim ‑ disse Milady ‑, lorde de Winter e agora deveis compreender tudo, não é? Buckingham ficou ausente mais de um ano. Oito dias antes de chegar, lorde de Winter morreu subitamente, deixando‑me a sua única herdeira. Donde vinha este golpe? Deus, que tudo sabe, deve saber, eu não acuso ninguém...

‑ Oh, que abismo! Que abismo! ‑ exclamou Felton.

‑ Lorde de Winter morrera sem contar nada ao irmão. O terrível segredo devia ser oculto de todos, até rebentar como um raio na cabeça do culpado. O vosso protector vira com desgosto o casamento do irmão mais velho com uma jovem sem fortuna. Senti que não podia esperar nenhum apoio dum homem enganado nas suas esperanças de herdeiro. Fui para a França, resolvida a passar ali o resto dos meus dias. Mas toda a minha fortuna está em Inglaterra; quando a guerra fechou as comunicações, faltou‑me tudo, então tive de voltar, e há seis dias cheguei a Portsmouth.

‑ E então? ‑ disse Felton.

‑ Então, Buckingham deve ter sabido do meu regresso, falou a lorde de Winter, já prevenido contra mim, e disse‑lhe que a cunhada era uma prostituta, uma mulher marcada.

A voz pura e nobre do meu marido já cá não estava para me defender. Lorde de Winter acreditou em tudo o que lhe diziam, tanto mais que tinha interesse em acreditar. Mandou‑me prender, conduziu‑me aqui, entregou‑me à vossa guarda. Já sabeis o resto: depois de amanhã vai banir‑me, deportar‑me; depois de amanhã relega‑me para o meio dos infames. Oh! A trama foi bem urdida, o conluio é hábil e a minha honra não sobreviverá. Bem vedes que é preciso que eu morra, Felton; Felton, dai‑me essa faca!

E, ao dizer estas palavras, como se todas as suas forças se tivessem esgotado, Milady deixou‑se cair, lânguida e débil, nos braços do jovem oficial que, ébrio de amor, de cólera e de volúpias desconhecidas, a recebeu com arrebatamento, a abraçou, estremecendo com o hálito daquela boca tão bela, perdido com o contacto daquele seio tão palpitante.

‑ Não, não ‑ disse ele ‑, não. Viverás honrada e pura, viverás para triunfar sobre os teus inimigos.

Milady afastou‑o lentamente com a mão, atraindo‑o com o olhar; mas, por sua vez, Felton apoderou‑se dela, implorando‑lhe como a uma divindade.

‑ Oh! A morte, a morte! ‑ disse ela, velando a voz e as pálpebras.

‑ Oh! A morte em vez da vergonha; Felton, meu irmão, meu amigo, eu te conjuro!

‑ Não ‑ exclamou Felton ‑, viverás e serás vingada!

‑ Felton, eu dou azar a tudo o que me rodeia! Felton, abandona‑me! Felton, deixa‑me morrer!

‑ Pois bem, morreremos juntos! ‑ exclamou ele, apoiando os lábios nos da prisioneira.

Ouviram‑se pancadas na porta; desta vez Milady afastou‑se realmente.

‑ Escuta ‑ disse ela ‑, ouviram‑nos. Vem gente! Estamos perdidos!

‑ Não ‑ disse Felton ‑, é apenas a sentinela a avisar‑me da chegada de uma ronda.

‑ Então correi à porta e abri vós mesmo.

Felton obedeceu; esta mulher já era todo o seu pensamento, toda a sua alma.

Viu‑se diante dum sargento que comandava uma patrulha de vigilância.

‑ Então, que há? ‑ perguntou o jovem tenente.

‑ Tínheis‑me dito que abrisse a porta se ouvisse gritar, por socorro ‑ disse o soldado ‑, mas esquecestes‑vos de me dar a chave; eu ouvi‑vos gritar sem compreender o que dizíeis, quis abrir a porta, estava fechada por dentro, e então chamei o sargento.

‑ E aqui estou ‑ disse o sargento.

Felton, alucinado, quase louco, estava sem voz. Milady compreendeu que era ela que tinha de tomar conta da situação, correu à mesa e pegou na faca que Felton ali pousara:

‑ E com que direito me quereis impedir de morrer? ‑ disse ela.

‑ Deus do Céu! ‑ exclamou Felton, vendo brilhar a faca na sua mão.

Neste momento ouviu‑se no corredor uma gargalhada irónica. O barão, atraído pelo barulho, de roupão, a espada debaixo do braço, estava de pé no limiar da porta.

‑ Ah! Ah! ‑ disse ele. ‑ Eis‑nos no último acto da tragédia; estais a ver, Felton, a dama seguiu todas as fases que eu tinha indicado, mas ficai descansado que o sangue não correrá.

Milady compreendeu que estava perdida se não desse a Felton uma prova imediata e terrível da sua coragem.

‑ Estais enganado, Milorde, o sangue correrá, e que este sangue possa cair sobre os que o fazem correr!

Felton deu um grito e precipitou‑se sobre ela; era tarde de mais, Milady tinha‑se ferido.

Mas felizmente, ou melhor, habilmente, a faca tinha encontrado a vara de ferro que naquela época defendia como uma couraça o peito das mulheres; escorregara, rasgando o vestido, e penetrara obliquamente entre a carne e as costelas.

Mas, num segundo, o vestido de Milady ficou manchado de sangue.

Milady caíra para trás e parecia desmaiada.

Felton arrancou a faca.

‑ Vede, Milorde ‑ disse ele com ar sombrio ‑, eis uma mulher que se matou sob a minha guarda!

‑ Descansai, Felton ‑ disse lorde de Winter ‑, ela não está morta, os demónios não morrem assim tão facilmente, descansai e ide esperar‑me nos meus aposentos.

‑ Mas, Milorde...

‑ Ide, ordeno‑vos.

Felton obedeceu a esta ordem do seu superior, mas, ao sair, meteu a faca no peito.

Quanto a lorde de Winter, contentou‑se em chamar a mulher que servia Milady e, quando esta veio, recomendou‑lhe a prisioneira, que continuava desmaiada, e deixou‑a sozinha com ela.

Contudo, como apesar das suspeitas, o ferimento podia ser grave, enviou nesse mesmo instante um homem a buscar um médico.

 

         EVASÃO

Como lorde de Winter pensara, o ferimento de Milady não era grave e, logo que se achou sozinha com a mulher que o barão mandara chamar e que se apressava a despi‑la, ela abriu os olhos.

Contudo, tinha de jogar com a fraqueza e a doçura, o que não era difícil para uma actriz como Milady; assim, a pobre mulher foi completamente iludida pela prisioneira que, apesar das suas instâncias, teimou em velar toda a noite.

Mas a presença desta mulher impedia Milady de pensar.

Não havia dúvidas, Felton estava convencido, Felton estava nas suas mãos; se aparecesse ao jovem um anjo para acusar Milady, ele tomá‑lo‑ia certamente, na disposição em que estava, por um enviado do demónio.

Milady sorria a este pensamento, pois dali em diante Felton era a sua única esperança, o seu único meio de salvação.

Mas lorde de Winter podia ter desconfiado, agora o próprio Felton podia ser vigiado.

Por volta das quatro da manhã chegou o médico; mas a ferida já se tinha fechado e o médico não pôde medir‑lhe nem a direcção nem a profundidade, apenas reconheceu pelo pulso da enferma que o caso não era grave.

De manhã, Milady, alegando que não dormira de noite e que precisava de repouso, mandou embora a mulher que velava junto dela.

Tinha uma esperança, que Felton viesse à hora do almoço, mas Felton não veio.

Ter‑se‑iam realizado os seus receios? Felton, suspeitado pelo barão, iria faltar‑lhe no momento decisivo? Só tinha um dia: lorde de Winter anunciara‑lhe o seu embarque para o dia 23, e tinham chegado à manhã do dia 22.

Contudo, ainda esperou com muita paciência até à hora do jantar.

Embora não tivesse comido de manhã, o jantar foi trazido à hora habitual; Milady apercebeu‑se então, assustada, de que o uniforme dos soldados que a guardavam tinha mudado.

Então, atreveu‑se a perguntar o que era feito de Felton. Responderam‑lhe que Felton tinha montado a cavalo há uma hora e tinha partido.

Perguntou se o barão continuava no castelo; o soldado respondeu‑lhe que sim e que tinham ordens de o prevenir se a prisioneira lhe quisesse falar.

Milady respondeu que por enquanto estava muito fraca, e que o seu único desejo era ficar só.

O soldado saiu, deixando o jantar servido.

Felton tinha sido afastado, os soldados da marinha tinham sido substituídos, portanto desconfiavam de Felton.

Era o único golpe para a prisioneira.

Quando ficou só, ela levantou‑se; a cama onde estava por prudência e para que a julgassem gravemente ferida queimava‑a como um braseiro. Lançou um olhar à porta; o barão mandara pregar uma tábua na abertura; devia recear que ela ainda conseguisse, através de algum meio diabólico, seduzir os guardas através daquela abertura.

Milady sorriu de alegria; podia entregar‑se aos seus ímpetos sem que a observassem: percorria o quarto com a agitação duma louca furiosa ou duma leoa fechada numa gaiola de ferro. Por certo que, se tivesse ficado com a faca, desta vez não teria pensado em matar‑se, mas em matar o barão.

Às seis horas, lorde de Winter entrou; estava armado até aos dentes. Este homem, no qual até então Milady só vira um gentleman bastante ingénuo, tornara‑se um admirável carcereiro: parecia prever tudo, tudo adivinhar, tudo prevenir.

Um só olhar lançado a Milady disse‑lhe tudo o que se passava na sua alma.

‑ Sim ‑ disse ela ‑, ainda não será hoje que me matareis; não tendes mais armas e, de resto, estou de sobreaviso.

- Tínheis começado a perverter o meu pobre Felton: ele já sofria a vossa infernal influência, mas eu quero salvá‑lo, nunca mais vos verá, está tudo acabado. Juntai as vossas roupas, amanhã partireis. Eu tinha fixado o vosso embarque para o dia 24, mas pensei que quanto mais depressa melhor. Amanhã ao meio‑dia terei a ordem do vosso exílio, assinada por Buckingham. Se disserdes uma palavra seja a quem for antes de estardes no navio, o meu sargento mete‑vos uma bala nos miolos, tem ordens para o fazer; se, no navio, disserdes uma palavra seja a quem for antes que o capitão vo‑lo permita, o capitão manda‑vos lançar à água, está combinado. Até à vista, por hoje nada mais tenho a dizer‑vos. Amanhã voltarei a ver‑vos para me despedir de vós!

E com estas palavras o barão saiu.

Milady escutara toda esta tirada ameaçadora com um sorriso de desdém nos lábios, mas com o coração cheio de raiva.

Serviram o jantar; Milady sentiu que precisava de forças, não sabia o que poderia passar‑se durante aquela noite que se aproximava ameaçadora, pois grandes nuvens rolavam no céu e relâmpagos longínquos anunciavam tempestade.

A tempestade rebentou por volta das dez da noite: Milady sentia uma certa consolação ao ver a natureza partilhar a desordem do seu coração: a tempestade rosnava no ar como a cólera do seu pensamento; parecia‑lhe que, ao passar, as rajadas de vento a despenteavam como às árvores cujos ramos curvavam e cujas folhas arrancava; gritava como o furacão e a sua voz perdia‑se na grande voz da natureza que, também ela, parecia gemer e desesperar‑se.

De repente ouviu bater numa vidraça e, à luz dum relâmpago, viu o rosto dum homem aparecer por trás das grades.

Correu à janela e abriu‑a.

- Felton! ‑ exclamou. ‑ Estou salva!

‑ Sim! ‑ disse Felton. ‑ Mas silêncio, silêncio! Preciso de tempo para limar as vossas grades. Cuidado eles não nos vejam através da abertura da porta.

‑ Oh! É uma prova de que o Senhor está do nosso lado, Felton ‑ disse Milady ‑, eles fecharam a abertura com uma tábua.

‑ Está bem, Deus enlouqueceu‑os! ‑ disse Felton.

‑ Mas que devo fazer? ‑ perguntou Milady.

‑ Nada, nada; fechai apenas a janela. Deitai‑vos, ou pelo menos metei‑vos vestida na cama; quando eu acabar, bato nas grades, podereis vós seguir‑me?

‑ Oh, sim!

‑ O vosso ferimento?

‑ Dói‑me mas não me impede de andar.

‑ Nesse caso, estejai pronta ao primeiro sinal.

Milady fechou a janela, apagou o candeeiro e, como Felton lhe recomendara, foi deitar‑se na cama. No meio dos queixumes da trovoada, ouvia a lima ranger nas grades, e à luz de cada relâmpago via a sombra de Felton através das vidraças.

Passou uma hora sem respirar, ofegante, com a testa perlada de suor e o coração oprimido por uma angústia pavorosa a cada movimento que ouvia no corredor.

Há horas que duram um ano.

Ao cabo de uma hora, Felton tornou a bater.

Milady saltou da cama e foi abrir. Duas grades a menos formavam uma abertura pela qual um homem podia passar.

‑ Estais pronta? ‑ perguntou Felton.

‑ Sim. Devo levar alguma coisa?

‑ Ouro, se tiverdes.

‑ Sim, felizmente deixaram‑me o que tinha.

‑ Tanto melhor, pois gastei tudo o que tinha para fretar um barco.

‑ Aqui tendes ‑ disse Milady, pondo um saco cheio de ouro nas mãos de Felton.

Felton pegou no saco e atirou‑o para o chão.

‑ Agora ‑ disse ele ‑, quereis vir?

‑ Aqui estou.

Milady subiu para cima da poltrona e passou a parte superior do corpo através da janela; viu o jovem oficial suspenso sobre o abismo numa escada de corda.

Pela primeira vez um movimento de terror lembrou‑lhe que era uma mulher.

O vazio apavorava‑a.

‑ Eu tinha desconfiado disto ‑ disse Felton.

‑ Não é nada, não é nada ‑ disse Milady ‑, descerei de olhos fechados.

‑ Tendes confiança em mim? ‑ perguntou Felton.

‑ Ainda me perguntais?

‑ Juntai as mãos; cruzai‑as, está bem.

Felton amarrou‑lhe os pulsos com um lenço, depois, por cima do lenço, com uma corda.

‑ Que fazeis? ‑ perguntou Milady, surpreendida.

‑ Passai os braços à volta do meu pescoço e não tenhais medo de nada.

‑ Mas eu vou fazer‑vos perder o equilíbrio, e esmagar‑nos‑emos os dois.

‑ Ficai sossegada, eu sou marinheiro.

Não havia um segundo a perder; Milady passou os braços à volta do pescoço de Felton e deixou‑se deslizar para fora da janela.

Felton começou a descer os degraus lentamente, um a um. Apesar do peso dos dois corpos, a força da tempestade baloiçava‑os no ar.

De repente Felton parou.

‑ Que há? ‑ perguntou Milady.

‑ Silêncio ‑ disse Felton. ‑ Oiço passos.

‑ Fomos descobertos!

Durante alguns instantes fez‑se silêncio.

‑ Não ‑ disse Felton ‑, não é nada.

‑ Mas, enfim, que ruído é este?

‑ É a patrulha que vai passar no caminho da ronda.

‑ Onde é o caminho da ronda?

‑ É mesmo por baixo de nós.

‑ Vai descobrir‑nos.

‑ Não, se não houver relâmpagos.

‑ Vai embater na parte de baixo da escada.

‑ Felizmente faltam‑lhe seis pés.

‑ Cá estão eles, meu Deus!

‑ Silêncio!

Ficaram os dois suspensos, imóveis e sem respiração, a vinte pés do solo; entretanto, os soldados passavam lá em baixo, a rir e a conversar.

Houve um momento terrível para os fugitivos.

A patrulha passou; ouviu‑se o som dos passos que se afastava e o murmúrio das vozes que ia enfraquecendo.

‑ Agora ‑ disse Felton ‑ estamos salvos. Milady deu um suspiro e desmaiou.

Felton continuou a descer. Quando chegou ao fim da escada e deixou de sentir um apoio para os pés, agarrou‑se com as mãos; por fim, ao chegar ao último degrau, deixou‑se ficar pendurado nos pulsos e tocou no chão. Baixou‑se, apanhou o saco de ouro e agarrou‑o com os dentes.

Depois tomou Milady nos braços, e afastou‑se vivamente para o lado oposto da patrulha. Em breve deixou o caminho da ronda, desceu através dos rochedos e, ao chegar à beira‑mar, assobiou.

Respondeu‑lhe um sinal igual e, cinco minutos depois, ele viu aparecer um barco com quatro homens.

O barco aproximou‑se da costa o mais que pôde, mas como o fundo era baixo não conseguiu tocar em terra; Felton meteu‑se na água até à cintura, não querendo confiar a ninguém o seu precioso fardo.

Felizmente a tempestade começava a acalmar‑se e, contudo, o mar ainda estava agitado; o barquinho saltava sobre as vagas como uma casca de noz.

‑ Para o sloop ‑ disse Felton ‑, e remai depressa.

Os quatro homens puseram‑se a remar, mas o mar estava muito agitado e os remos produziam pouco efeito.

Contudo, afastavam‑se do castelo; era o principal.

A noite era profundamente tenebrosa e, do barco, já era quase impossível distinguir a costa, portanto, da costa, também não se podia distinguir o barco.

Um ponto negro baloiçava no mar.

Era o sloop.

Enquanto o barco avançava a toda a força dos seus quatro remadores, Felton desatava a corda e depois o lenço que amarrava as mãos de Milady.

Depois, tendo‑lhe desamarrado as mãos, apanhou água do mar e atirou‑lha à cara.

Milady suspirou e abriu os olhos.

‑ Onde estou? ‑ disse ela.

‑ Salva ‑ respondeu o jovem oficial.

‑ Oh, salva, salva! ‑ exclamou ela. ‑ Sim, eis o céu, eis o mar! O ar que respiro é o ar da liberdade. Ah!... Obrigada, Felton, obrigada!

O jovem apertou‑a nos braços.

‑ Mas que tenho nas mãos? ‑ perguntou Milady. ‑ Parece que me partiram os pulsos num tomilho.

Com efeito, Milady ergueu os braços; tinha os pulsos doridos.

‑ Infelizmente! ‑ disse Felton, contemplando aquelas belas mãos e abanando docemente a cabeça.

‑ Oh! Não é nada, não é nada! ‑ exclamou Milady. ‑ Agora me lembro.

Milady olhou em redor.

‑ Está ali ‑ disse Felton, empurrando o saco do ouro com o pé. Aproximavam‑se do sloop. O marinheiro de quarto chamou a barcaça e esta respondeu.

‑ Que embarcação é esta? ‑ perguntou Milady.

‑ É a embarcação que fretei para vós.

‑ Onde vai conduzir‑me?

‑ Onde quiserdes, desde que me deixeis em Portsmouth.

‑ Que tendes a fazer em Portsmouth?

‑ Cumprir as ordens de lorde de Winter ‑ respondeu Felton com um sorriso sombrio.

‑ Que ordens? ‑ perguntou Milady.

‑ Então não compreendeis? ‑ disse Felton.

‑ Não. Explicai‑vos, por favor.

‑ Como desconfiava de mim, quis guardar‑vos pessoalmente e mandou‑me no seu lugar levar a ordem da vossa deportação a Buckingham, para que este a assinasse.

‑ Mas, se desconfiava de vós, como vos confiou essa ordem?

‑ E eu devia saber o que levava?

‑ Está certo. E ides a Portsmouth?

‑ Não tenho tempo a perder; amanhã é 23 e Buckingham parte amanhã com a frota.

‑ Parte amanhã para onde?

‑ Para La Rochelle.

‑ Não deve partir! ‑ exclamou Milady, esquecendo a sua habitual presença de espírito.

‑ Sossegai ‑ respondeu Felton ‑, não partirá.

Milady estremeceu de alegria, acabava de ler no mais fundo do coração do rapaz: estava lá escrita a morte de Buckingham com todas as letras.

‑ Felton... ‑ disse ela ‑, sois grande como Judas Macabeu! Se morrerdes, morro convosco. É tudo o que vos posso dizer.

‑ Silêncio! ‑ disse Felton. ‑ Chegámos. Com efeito, tocavam o sloop.

Felton subiu a escada primeiro e deu a mão a Milady, enquanto os marinheiros a sustinham, pois o mar ainda estava muito agitado. Passado um instante estavam no convés.

‑ Capitão ‑ disse Felton ‑, eis a pessoa de que vos falei e que deveis conduzir a França sã e salva.

‑ Mediante mil pistolas ‑ disse o capitão.

‑ Dei‑vos quinhentas.

‑ Está certo ‑ disse o capitão.

‑ E aqui estão as outras quinhentas ‑ disse Milady levando a mão ao saco do ouro.

‑ Não ‑ disse o capitão ‑, eu só tenho uma palavra e já a dei a este jovem; só devo receber as outras quinhentas pistolas ao chegar a Bolonha.

‑ E chegaremos?

‑ Sãos e salvos ‑ disse o capitão ‑, ou eu não me chame Jack Buttler.

‑ Muito bem! ‑ disse Milady. ‑ Se mantiverdes a vossa palavra, não vos darei quinhentas, mas mil pistolas.

‑ Então hurra para vós, linda dama ‑ gritou o capitão ‑, e que Deus me possa enviar muitos passageiros como Vossa Senhoria!

‑ Entretanto ‑ disse Felton ‑, conduzi‑nos à pequena baía de Chichester, antes de Portsmouth; sabeis que está combinado conduzir‑nos a esse local.

O capitão respondeu conduzindo a manobra necessária e, por volta das sete da manhã, a pequena embarcação lançava a âncora na baía designada.

Durante a travessia, Felton contara tudo a Milady; como, em vez de ir a Londres, fretara a pequena embarcação, como voltara, como escalara a muralha, cravando grampos nos interstícios das pedras à medida que subia, e como, por fim, ao chegar às grades, prendera a corda. Milady sabia o resto.

Por seu lado, Milady procurou encorajar Felton no seu projecto; mas, ao dizer as primeiras palavras, viu que o jovem fanático mais precisava de ser moderado do que encorajado.

Combinaram que Milady esperaria Felton até às dez horas; se às dez horas ele não tivesse regressado, Milady partiria.

Então, supondo que estivesse livre, iria ter com ela em França, no convento das Carmelitas de Béthune.

 

         O QUE SE PASSOU EM PORTSMOUTH A 23 DE AGOSTO DE 1628

Felton despediu‑se de Milady como um irmão que vai fazer um simples passeio e se despede da irmã, beijando‑lhe a mão.

Todo ele parecia no seu estado de calma habitual, apenas um lampejo inusual brilhava nos seus olhos, semelhante a um reflexo de febre; a sua testa estava ainda mais pálida do que de costume; os seus dentes estavam cerrados e a sua palavra tinha uma entoação breve e sacudida que indicava que algo de sombrio se agitava dentro dele.

Enquanto esteve na barcaça que o conduziu a terra, manteve o rosto virado para Milady, que, em pé no convés, o seguia com o olhar. Não tinham medo de ser seguidos: nunca entravam no quarto de Milady antes das nove horas, e para ir do castelo a Londres eram precisas três horas.

Felton pôs o pé em terra, subiu a pequena crista que conduzia ao cimo da falésia, saudou Milady pela última vez e dirigiu‑se para a cidade.

Passados cem passos, como o terreno descia, já não conseguia ver mais que o mastro do sloop.

Correu imediatamente na direcção de Portsmouth, cujas torres e casas via desenharem‑se diante dele, a cerca de meia milha, na bruma matinal.

Ao largo de Portsmouth o mar estava coberto de navios cujos mastros faziam lembrar uma floresta de choupos despidos no Inverno, baloiçando ao vento.

Felton, na sua marcha rápida, passava em revista as acusações verdadeiras ou falsas que dez anos de meditações ascéticas e uma longa estadia no meio dos puritanos lhe haviam fornecido contra o favorito de Jaime VI e de Carlos I.

Quando comparava os crimes públicos deste ministro, crimes estrondosos, crimes europeus, se assim se podia dizer, com os crimes privados e desconhecidos de que Milady o acusara, Felton achava que o mais culpado dos dois homens que existiam em Buckingham era aquele cuja vida o público não conhecia. É que o seu amor tão estranho, novo e ardente o fazia ver as acusações infames e imaginárias de lady de Winter como se vêem através duma lupa, no estado de monstros assustadores, uns átomos na realidade imperceptíveis, ao pé duma formiga.

A rapidez da sua corrida ainda mais lhe inflamava o sangue; pensar que deixava para trás, exposta a uma vingança terrível, a mulher que amava, ou melhor que adorava como uma santa, a emoção passada, a presente fadiga, tudo exaltava ainda mais a sua alma acima dos sentimentos humanos.

Entrou em Portsmouth cerca das oito da manhã; toda a população estava a pé; o tambor rufava nas ruas e no porto; as tropas de embarque desciam para o mar.

Felton chegou ao palácio do Almirantado, coberto de pó e de suor; o seu rosto, habitualmente tão pálido, estava púrpura de calor e de cólera. A sentinela quis repeli‑lo, mas Felton chamou o chefe do posto e, tirando do bolso a carta de que era portador:

‑ Mensagem da parte de lorde de Winter ‑ disse ele.

Ao nome de lorde de Winter, que sabiam ser um dos mais íntimos de Sua Graça, o chefe do posto deu ordem para deixar passar Felton que, de resto, também envergava o uniforme de oficial de marinha.

Felton correu ao palácio.

No momento em que entrava no vestíbulo, um homem também entrava, coberto de pó, esbaforido, deixando à porta um cavalo de posta que, ao chegar, caiu de joelhos.

Felton e ele dirigiram‑se ao mesmo tempo a Patrick, o criado de confiança do duque. Felton citou o barão de Winter, o desconhecido não quis citar ninguém e afirmou que só ao duque se poderia dar a conhecer. Os dois insistiam para passarem um à frente do outro.

Patrick, que sabia que lorde de Winter tinha assuntos de serviço e relações de amizade com o duque, deu a preferência ao que vinha em seu nome. O outro teve de esperar, e não foi difícil ver como amaldiçoava este atraso.

O criado fez Felton atravessar a grande sala em que esperavam os deputados de La Rochelle conduzidos pelo príncipe de Soubise, e introduziu‑o num gabinete em que Buckingham, saído do banho, se vestia, concedendo como sempre uma atenção extraordinária a esta operação.

‑ O tenente Felton ‑ disse Patrick ‑, da parte de lorde de Winter.

‑ Da parte de lorde de Winter! ‑ repetiu Buckingham. ‑ mandai entrar.

Felton entrou. Neste momento, Buckingham atirava para cima dum canapé um rico roupão bordado a ouro, para vestir um gibão de veludo azul todo bordado com pérolas.

‑ Por que não veio o barão pessoalmente? – perguntou Buckingham. ‑ Esperava‑o esta manhã.

‑ Encarregou‑me de dizer a Vossa Graça ‑ respondeu Felton ‑ que lamentava muito não ter essa honra, mas que era impedido pela guarda que tem de fazer ao castelo.

‑ Sim, sim ‑ disse Buckingham ‑, já sei, tem uma prisioneira.

‑ É justamente acerca dessa prisioneira que eu queria falar a Vossa Graça ‑ replicou Felton.

‑ Muito bem! Falai.

‑ O que tenho a dizer‑vos só pode ser ouvido por vós, Milorde.

‑ Deixai‑nos, Patrick ‑ disse Buckingham ‑, mas ficai perto da sineta; daqui a pouco chamo‑vos.

Patrick saiu.

‑ Estamos sós, senhor ‑ disse Buckingham ‑, falai.

‑ Milorde ‑ disse Felton ‑, o barão de Winter escreveu‑vos no outro dia pedindo‑vos que assinásseis uma ordem de embarque relativa a uma mulher chamada Charlotte Backson.

‑ Sim, senhor, e eu respondi‑lhe que me trouxesse ou que me enviasse essa ordem e que a assinaria.

‑ Aqui a tendes, Milorde.

‑ Dai‑ma ‑ disse o duque.

E, tirando‑a das mãos de Felton, passou rapidamente os olhos pelo papel. Então, vendo que era o que lhe tinham anunciado, pousou‑o na mesa, pegou numa pena e preparou‑se para assinar.

‑ Perdão, Milorde ‑ disse Felton, detendo o duque ‑, mas Vossa Graça sabe que o nome Charlotte Backson não é o verdadeiro nome dessa jovem.

‑ Sei, sim senhor ‑ respondeu o duque, mergulhando a pena no tinteiro.

‑ Então Vossa Graça conhece o seu verdadeiro nome? ‑ perguntou Felton com voz breve.

‑ Conheço.

O duque aproximou a pena do papel.

‑ E mesmo conhecendo o verdadeiro nome ‑ continuou Felton Monsenhor assinará?

‑ Sem dúvida ‑ disse Buckingham ‑ e até duas vezes.

‑ Não posso crer ‑ continuou Felton com uma voz que se tornava cada vez mais breve e sacudida ‑, que Sua Graça saiba que se trata de lady de Winter...

‑ Sei perfeitamente, embora me admire que vós também saibais.

‑ E Vossa Graça assinará essa ordem sem remorsos?

Buckingham fitou o rapaz com altivez.

‑ Ora esta, senhor! Sabeis ‑ disse‑lhe ‑, que me fazeis estranhas perguntas e que não me custa responder?

‑ Respondei, Monsenhor ‑ disse Felton ‑, a situação talvez seja mais grave do que pensais.

Buckingham pensou que o jovem, vindo da parte de lorde de Winter, falava certamente em seu nome, e tornou‑se mais brando.

‑ Sem remorso algum ‑ disse ele ‑, e o barão sabe tão bem como eu que milady de Winter é uma grande culpada, e que limitar a sua pena à deportação é quase fazer‑lhe um favor.

O duque pousou a pena em cima do papel.

‑ Não assinareis essa ordem, Milorde! ‑ disse Felton, dando um passo em direcção ao duque.

‑ Não assinarei esta ordem! ‑ disse Buckingham. ‑ E por que não?

‑ Porque caíreis em vós e fareis justiça a Milady.

‑ Far‑lhe‑ão justiça enviando‑a para Tyburn ‑ disse Buckingham ‑, Milady é uma infame.

‑ Monsenhor, Milady é um anjo, vós bem sabeis, e eu peço a sua liberdade.

‑ Ora esta! ‑ exclamou Buckingham. ‑ Estais louco para me falardes assim?

‑ Milorde, desculpai‑me! Falo como posso; contenho‑me. Contudo, Milorde, pensai no que ides fazer e não ultrapasseis as medidas!

‑ Como?... Que Deus me perdoe! ‑ exclamou Buckingham ‑, mas creio que ele me ameaça!

‑ Não, Milorde, ainda peço e digo‑vos: basta uma gota de água para fazer derramar uma taça cheia, uma falta ligeira pode chamar o castigo sobre a cabeça poupada apesar de tantos crimes.

‑ Sr. Felton ‑ disse Buckingham ‑, ides sair daqui e apresentar-vos imediatamente na prisão.

‑ Ides escutar‑me até ao fim, Milorde. Seduzistes essa jovem, que ultrajastes e maculastes; reparai os crimes que cometestes contra ela, deixai‑a partir em liberdade e eu não exigirei mais nada de vós.

‑ Não exigireis? ‑ disse Buckingham, fitando Felton com espanto e martelando cada uma das sílabas das palavras que acabava de pronunciar.

‑ Milorde ‑ continuou Felton, exaltando‑se à medida que falava ‑, Milorde, tomai cautela, toda a Inglaterra está cansada das vossas iniquidades; Milorde, vós abusastes do poder régio que quase usurpastes; Milorde, causais horror aos homens e a Deus; Deus há‑de castigar‑vos mais tarde, eu castigar‑vos‑ei hoje.

‑ Ah! Isto é de mais! ‑ gritou Buckingham, dando um passo para a porta.

Felton barrou‑lhe a passagem

‑ Peço‑vos humildemente ‑ disse ele ‑, assinai a ordem de libertação de Lady de Winter; pensai que é a mulher que vós desonrastes.

‑ Retirai‑vos, senhor ‑ disse Buckingham ‑, ou chamo Patrick e mando‑vos prender.

‑ Não chamareis ‑ disse Felton, interpondo‑se entre o duque e a sineta colocada em cima duma consola com incrustrações de prata. ‑ Tomai cautela, Milorde, eis‑vos nas mãos de Deus.

‑ Nas mãos do diabo, quereis dizer! ‑ exclamou Buckingham, erguendo a voz para chamar a atenção, sem contudo chamar directamente.

‑ Assinai, Milorde, assinai a Liberdade de lady de Winter ‑ disse Felton, estendendo ao duque um papel.

‑ À força! Troçais de mim? Patrick!

‑ Assinai, Milorde!

‑ Jamais!

‑ Jamais!

‑ A mim! ‑ gritou o duque e ao mesmo tempo saltou para a sua espada.

Mas Felton não lhe deu tempo para puxar por ela; tinha já aberta e escondida no gibão a faca com que Milady se ferira; com um salto, pôs‑se em cima do duque.

Neste momento Patrick entrava na sala a gritar:

‑ Milorde, uma carta de França!

‑ De França! ‑ exclamou Buckingham, esquecendo tudo e pensando na pessoa que lhe enviava aquela carta.

Felton aproveitou o momento e enterrou‑lhe a faca até ao cabo na ilharga.

‑ Ah, traidor! ‑ gritou Buckingham. ‑ Mataste‑me...

‑ Assassínio! ‑ gritou Patrick.

Felton olhou em redor para fugir e, vendo a porta livre, correu ao quarto contíguo, que era o quarto onde esperavam, como dissemos, os deputados de La Rochelle, atravessou‑o a correr e precipitou‑se em direcção à escada; mas, no primeiro degrau, encontrou lorde de Winter que, vendo‑o pálido, alucinado, lívido, manchado de sangue na mão e no rosto, se lançou ao pescoço dele, exclamando:

‑ Eu sabia, eu tinha adivinhado e cheguei um minuto mais tarde! Oh, como sou infeliz!

Felton não ofereceu resistência; lorde de Winter entregou‑o aos guardas, que o conduziram, aguardando novas ordens, a um pequeno terraço sobranceiro ao mar, e correu ao gabinete de Buckingham.

Ao ouvir o grito do duque e o apelo de Patrick, o homem que Felton encontrara na antecâmara precipitou‑se no gabinete.

Encontrou o duque deitado num sofá, apertando a ferida com a mão crispada.

‑ La Porte ‑ disse o duque com voz agonizante ‑, La Porte, vens da sua parte?

‑ Sim, Monsenhor ‑ respondeu o fiel servidor de Ana de Áustria ‑, mas talvez tarde de mais.

‑ Silêncio, La Porte! Poderiam ouvir‑vos; Patrick, não deixes entrar ninguém. Oh! Não saberei o que ela manda dizer‑me! Meu Deus, estou a morrer!

E o duque desmaiou.

Contudo, lorde de Winter, os deputados, os chefes da expedição, os oficiais da casa de Buckingham tinham irrompido no quarto; por toda a parte se ouviam gritos de desespero. A notícia que enchia o palácio de queixumes e gemidos em breve se estendeu por toda a parte e se espalhou na cidade.

Um tiro de canhão anunciou que acabava de passar‑se algo de novo e inesperado.

Lorde de Winter arrancava os cabelos.

‑ Um minuto mais tarde! ‑ exclamava. ‑ Um minuto mais tarde! Oh, meu Deus, meu Deus, que desgraça!

Com efeito, tinham vindo dizer‑lhe às sete da manhã que uma escada de corda flutuava numa das janelas do castelo; imediatamente correra ao quarto de Milady, encontrara‑o vazio, com a janela aberta e as grades serradas, lembrara‑se da recomendação verbal que d'Artagnan lhe transmitira através do seu mensageiro, receando pelo duque, e, correndo à cavalariça, sem perder tempo mandando selar o cavalo, saltara para cima do primeiro que vira, correra a toda a brida e, saltando do cavalo no pátio, subira precipitadamente a escada e, no primeiro degrau, como já dissemos, encontrara Felton.

Todavia, o duque não estava morto: veio a si, reabriu os olhos, e a esperança voltou a brilhar em todos os corações.

‑ Meus senhores ‑ disse ele ‑, deixai‑me só com Patrick e La Porte.

‑ Ah! Sois vós, De Winter! Enviastes‑me esta manhã um doido singular, vede o estado em que me pôs!

‑ Oh! Milorde! ‑ exclamou o barão. ‑ Nunca me consolarei.

‑ E faríeis mal, meu caro De Winter ‑ disse Buckingham e, estendendo‑lhe a mão ‑, não conheço nenhum homem que mereça que outro homem passe a vida a lamentá‑lo; mas, por favor, deixa‑nos.

O barão saiu a soluçar.

No gabinete só ficaram o duque ferido, La Porte e Patrick.

Procuravam um médico, que não conseguiam encontrar.

‑ Vivereis, Milorde, vivereis ‑ repetia, de joelhos diante do sofá do duque, o mensageiro de Ana de Áustria.

‑ Que escrevia ela? ‑ disse fracamente Buckingham, cheio de sangue e dominando dores atrozes para falar da sua amada. ‑ Que me escrevia ela? Lê‑me a sua carta.

‑ Oh, Milorde! ‑ exclamou La Porte.

‑ Obedece, La Porte; não vês que não tenho tempo a perder?

La Porte rasgou o selo e pôs o pergaminho sob os olhos do duque; mas foi em vão que Buckingham tentou distinguir a letra.

‑ Lê ‑ disse ele ‑, lê que eu já não vejo. Lê! Pois talvez em breve eu já não ouça e morrerei sem saber o que ela me escreve.

La Porte deixou de levantar dificuldades e leu:

 

               Milorde,

Porque, desde que me conheço, sofri por vós e para vós, rogo‑vos, se o meu repouso vos causa cuidados que interrompais os grandes armamentos que fazeis contra a França e que cessais uma guerra de que se diz em voz alta que a religião é a causa visível, e em voz baixa que o amor que me dedicais é a causa oculta. Essa guerra pode não só causar grandes catástrofes à França e à Inglaterra mas também a vós, Milorde, desgraças de que eu jamais me consolaria.

Velai pela vossa vida, que está ameaçada e que me será querida a partir do momento em que eu deixar de ser obrigada a ver em vós um inimigo. Vossa afeiçoada.

                           ANA

 

Buckingham chamou a si toda a vida que lhe restava para escutar esta leitura; depois, quando terminou, como se tivesse encontrado na carta um amargo desapontamento:

‑ Não tendes mais nada a dizer‑me de viva voz, La Porte? ‑ perguntou.

‑ Sim, Monsenhor. A rainha encarregara‑me de velar por vós, pois fora avisada de que vos queriam assassinar.

‑ E é tudo, é tudo? ‑ perguntou Buckingham, com impaciência.

‑ Encarregara‑me ainda de vos dizer que continuava a amar‑vos.

‑ Ah! ‑ exclamou Buckingham. ‑ Deus seja louvado! Nesse caso a minha morte não será para ela a morte dum estranho!...

La Porte desatou a chorar.

‑ Patrick ‑ disse o duque ‑, trazei‑me o cofre onde estavam as agulhetas de diamantes.

Patrick trouxe o objecto que lhe pediam, e La Porte reconheceu‑o por ter pertencido à rainha.

‑ Agora o saquinho de cetim branco com as suas iniciais bordadas a pérolas.

Mais uma vez Patrick obedeceu.

‑ Tomai, La Porte ‑ disse Buckingham ‑, eis as únicas provas da sua afeição que tenho, este cofre de prata e estas cartas. Entregai‑as a Sua Majestade e, como última lembrança... ‑ procurou em redor algum objecto precioso ‑ ... juntareis...

- Continuou a procurar, mas o seu olhar enevoado pela morte só encontrou a faca caída das mãos de Felton, ainda quente do sangue vermelho espalhado na lâmina.

‑ Juntareis esta faca ‑ disse o duque, apertando a mão de La Porte. Ainda pôde meter o saquinho no fundo do cofre de prata, deixou cair dentro deste a faca, fazendo sinal a La Porte que já não podia falar; depois, numa derradeira convulsão que desta vez já não tinha forças para combater, escorregou do sofá para o chão.

Patrick deu um grande grito.

Buckingham quis sorrir pela última vez, mas a morte parou‑lhe o pensamento, que ficou gravado na sua fronte como um derradeiro beijo de amor.

Neste momento chegou o médico do duque, desorientado; já estava a bordo do navio almirante, onde fora preciso ir buscá‑lo.

Aproximou‑se do duque, pegou‑lhe na mão, conservou‑a um instante na sua e deixou‑a cair.

‑ Tudo é inútil ‑ disse ‑, está morto.

‑ Morto! Morto! ‑ exclamou Patrick.

A este grito toda a multidão entrou na sala e por toda a parte foi a consternação e o tumulto.

Assim que lorde de Winter viu Buckingham morto, correu a Felton que os soldados continuavam a guardar no terraço do palácio.

‑ Miserável! ‑ disse ele ao jovem que, desde a morte de Buckingham, recuperara a calma e o sangue‑frio que nunca mais o abandonariam. ‑ Miserável! Que fizeste?

‑ Vinguei‑me ‑ disse ele.

‑ Tu! ‑ disse o barão. ‑ Diz antes que serviste de instrumento a essa mulher maldita; mas juro‑te que este crime será o seu último crime.

‑ Não sei o que quereis dizer ‑ respondeu tranquilamente Felton ‑, e ignoro de quem falais, Milorde; matei o Sr. de Buckingham porque vos recusou duas vezes a vós mesmo nomear‑me capitão; puni‑o pela sua injustiça e nada mais.

De Winter, estupefacto, olhava as pessoas que amarravam Felton, e não sabia o que pensar daquela insensibilidade.

Contudo uma única coisa escurecia a fronte pura de Felton. A cada ruído que ouvia, o ingénuo puritano julgava reconhecer os passos e a voz de Milady, vindo atirar‑se aos seus braços para se acusar e se perder com ele.

De súbito estremeceu, o seu olhar fixou‑se num ponto do mar que o terraço onde se achava dominava inteiramente; com o olhar de águia do marinheiro reconhecera, onde outro só veria uma gaivota a baloiçar nas ondas, a vela do sloop que se dirigia para as costas da França.

Pôs‑se pálido, levou a mão ao peito onde o seu coração rebentava e compreendeu toda a traição.

‑ Um último favor, Milorde ‑ disse ele ao barão.

‑ O quê? ‑ perguntou este.

‑ Que horas são?

O barão tirou o relógio.

‑ Nove horas menos dez ‑ disse ele.

Milady antecipara a partida uma hora e meia; assim que ouvira o tiro de canhão que anunciava o fatal acontecimento, dera ordem de içar a âncora.

A embarcação vogava sob um céu azul a grande distância da costa.

‑ Deus assim o quis ‑ disse Felton com a resignação do fanático, mas sem poder desprender os olhos do esquife a bordo do qual julgava certamente distinguir o branco fantasma daquela a quem a sua vida ia ser sacrificada.

De Winter seguiu o seu olhar, interrogou o seu sofrimento e adivinhou tudo.

‑ Que sejas punido primeiro só, miserável ‑ disse lorde de Winter a Felton, que se deixava arrastar com os olhos postos no mar ‑, mas juro‑te pela memória de meu irmão que eu tanto amava que a tua cúmplice não está salva.

Felton baixou a cabeça sem pronunciar uma palavra. Quanto a De Winter, desceu rapidamente a escada e dirigiu‑se ao porto.

 

         EM FRANÇA

O primeiro temor do rei de Inglaterra, Carlos I, ao saber desta morte, foi que uma notícia tão terrível desencorajasse os rocheleses; tentou, diz Richelieu nas suas memórias, esconder‑lhes o facto enquanto foi possível, mandando fechar os portos do reino, e mandando que tivessem o maior cuidado em não deixar sair nenhum barco até que a armada que Buckingham preparava tivesse partido, encarregando‑se pessoalmente de tomar conta da partida, à falta de Buckingham.

Levou até a severidade desta ordem ao ponto de reter em Inglaterra o embaixador da Dinamarca, que se demitira, e o embaixador ordinário da Holanda que devia conduzir ao porto de Flessingue os navios da índia que Carlos I mandara restituir às Províncias Unidas.

Mas, como só se lembrou de dar esta ordem cinco horas depois do acontecimento, ou seja, às duas da tarde, dois navios já tinham saído do porto: um levando, como sabemos, Milady, a qual já desconfiava do acontecimento e se certificou ao ver o pavilhão negro arvorado no mastro do navio almirante.

Quanto ao segundo navio, diremos mais tarde quem transportava e como partiu.

De resto, entretanto, não se passou nada de novo no acampamento de La Rochelle; apenas o rei, que se aborrecia bastante, mas talvez um pouco mais no acampamento do que noutros sítios, resolveu ir incógnito passar as festas de São Luís em Saint‑Germain e pediu ao cardeal que lhe mandasse preparar uma escolta de vinte mosqueteiros apenas. O cardeal, por vezes contagiado pelo tédio do rei, concedeu com o maior prazer esta folga ao seu régio tenente, o qual prometeu regressar por volta do dia 15 de Setembro.

O Sr. de Tréville, prevenido por Sua Eminência, fez as malas e, como sabia do vivo desejo e até da necessidade imperiosa que os seus amigos tinham de voltar a Paris, embora sem saber porquê, designou‑os para fazerem parte da escolta.

Os quatro jovens souberam da notícia um quarto de hora depois do Sr. de Tréville, pois foram os primeiros a quem este a comunicou. Foi então que d'Artagnan apreciou o favor que o cardeal lhe fizera, tornando‑o finalmente mosqueteiro; sem esta circunstância, seria obrigado a ficar no acampamento enquanto os seus companheiros partiam.

Veremos mais tarde que a causa desta impaciência de ir a Paris era o perigo que a Sr.a Bonacieux devia correr, encontrando‑se no convento de Béthune com Milady, a sua inimiga mortal. Assim, como dissemos, Aramis escrevera imediatamente a Marie Michon, a roupeira de Tours que tinha tão boas relações que conseguiu que a rainha desse autorização à Sr.a Bonacieux para sair do convento e retirar‑se quer na Lorena quer na Bélgica.

A resposta não se fizera esperar e, oito ou dez dias depois, Aramis recebera a seguinte carta:

 

             Meu caro primo,

Eis a autorização da minha irmã para retirar a nossa criadinha do convento de Béthune, cujos ares vos parecem prejudiciais à sua saúde. Minha irmã envia‑vos esta autorização com grande prazer, pois estima muito a jovem a quem espera ser útil mais tarde.

                   Um abraço.

                   MARIE MICHON.

 

Com esta carta vinha uma autorização redigida nos seguintes termos:

 

A superiora do convento de Béthune entregará nas mãos da pessoa que lhe trouxer este bilhete a noviça que entrara para o seu convento sob a minha recomendação e protecção.

             Louvre, 10 de Agosto de 1628.

             ANA

 

Compreende‑se como estas relações de parentesco entre Aramis e uma roupeira que tratava a rainha por irmã tinham alegrado os jovens; mas Aramis, depois de ter corado duas ou três vezes até à raiz dos cabelos com os gracejos de Porthos, pedira aos amigos que não voltassem a falar no assunto, declarando que se lhe dissessem mais uma palavra, deixaria de usar a prima como intermediária naquele género de questões.

Portanto, os quatro mosqueteiros nunca mais falaram de Marie Michon. De resto, eles sabiam o que queriam: a ordem de tirar a Sr.a de Bonacieux do convento das Carmelitas de Béthune. É verdade que esta ordem não lhes servia de grande coisa enquanto estivessem no acampamento de La Rochelle, ou seja, na outra extremidade da França; portanto, d'Artagnan ia pedir uma folga ao Sr. de Tréville, confiando‑lhe muito simplesmente a importância da sua partida, quando lhe foi transmitida a notícia, bem como aos seus três companheiros, de que o rei ia partir para Paris com uma escolta de vinte mosqueteiros, e que eles faziam parte da escolta.

Grande foi a alegria. Enviaram os criados à frente com as bagagens e partiram no dia 16 de manhã.

O cardeal conduziu Sua Majestade de Surgères a Mauzé e ali o rei e o seu ministro despediram‑se um do outro com grandes demonstrações de amizade.

Contudo o rei, que procurava uma distracção e caminhava o mais depressa possível pois desejava chegar a Paris no dia 23, parava de vez em quando para se dedicar a um passatempo chamado voler la pie, cujo interesse lhe fora inspirado em tempos por De Luynes e pelo qual o rei conservava sempre uma grande predilecção. Quando isso acontecia, dezasseis dos vinte mosqueteiros regozijavam‑se com a diversão mas quatro resmungavam o mais que podiam. D'Artagnan sobretudo sentia sempre os ouvidos a zumbir, o que Porthos explicava assim:

‑ Uma grande dama ensinou‑me que isso quer dizer que estão a falar em vós.

Enfim a escolta atravessou Paris no dia 23 à noite; o rei agradeceu ao Sr. de Tréville e permitiu‑lhe que distribuísse algumas folgas de quatro dias, desde que nenhum dos favorecidos comparecesse num lugar público, sob pena de irem parar à Bastilha.

Como se pode calcular, as primeiras quatro folgas foram concedidas aos nossos quatro amigos. Mais ainda, Athos obteve do Sr. de Tréville seis dias em vez de quatro e fez acrescentar duas noites a estes quatro dias, pois partiram no dia 24 às cinco da tarde e, ainda por boa vontade, o Sr. de Tréville prolongou a folga até ao dia 25 de manhã.

‑ Eh, meu Deus ‑ dizia d'Artagnan que, como sabemos, nunca desconfiava de nada ‑, parece‑me que nos embaraçamos muito com uma coisa bastante simples: daqui a dois dias, dando cabo de dois ou três cavalos (pouco importa, eu tenho dinheiro), estou em Béthune, entrego a carta da rainha à superiora, e levo o querido tesouro que vou buscar, não para a Lorena nem para a Bélgica, mas para Paris, onde ficará melhor escondido, sobretudo enquanto o Sr. Cardeal estiver em La Rochelle. Depois, quando regressarmos da campanha, pois bem!, meio por protecção de sua prima, meio por causa do que fizemos pessoalmente por ela, obteremos da rainha o que queremos. Ficai pois aqui, não vos canseis inutilmente; eu e Planchet somos suficientes para uma expedição tão simples.

Athos respondeu‑lhe tranquilamente:

‑ Nós também temos dinheiro, pois eu ainda não bebi o resto do diamante, e Porthos e Aramis não o comeram todo. Portanto, damos cabo de quatro cavalos como damos cabo de um. Mas pensai, d'Artagnan ‑ acrescentou com uma voz tão sombria que causou um arrepio ao rapaz ‑, pensai que Béthune é uma cidade onde o cardeal marcou encontro com uma mulher que, onde quer que vá, semeia a desgraça. Se só tivésseis que lidar com quatro homens, d'Artagnan, eu deixava‑vos ir sozinho; mas tendes que enfrentar essa mulher, vamos os quatro e Deus queira que, com os nossos quatro criados, sejamos suficientes!

‑ Assustais‑me, Athos ‑ exclamou d'Artagnan ‑, que temeis?

‑ Tudo! ‑ respondeu Athos.

D'Artagnan examinou os rostos dos seus companheiros que, como o de Athos, tinham estampada uma profunda inquietação, e continuaram o seu caminho a galope, mas sem acrescentarem uma única palavra.

No dia 25 à noite, ao entrarem em Arras e quando d'Artagnan acabava de apear‑se na estalagem de Herse d'Or para beber um copo de vinho, um cavaleiro saiu do pátio da posta, onde acabava de trocar de montada, tomando a galope e com um cavalo fresco a estrada para Paris.

No momento em que saía do portão para a rua, o vento abriu a capa que o envolvia, embora fosse no mês de Agosto, e tirou‑lhe o chapéu, que o viajante segurou com a mão no momento em que já não o tinha na cabeça, enterrando‑o à pressa.

D'Artagnan, que tinha os olhos pregados no homem, pôs‑se muito pálido e deixou cair o copo.

‑ Que tendes, senhor? ‑ disse Planchet. ‑ Oh! Acorrei, senhores, o meu amo sente‑se mal!

Os três amigos acorreram e encontraram d'Artagnan que, em vez de se sentir mal, corria ao seu cavalo. Detiveram‑no à porta.

‑ Então! Onde vais assim? ‑ gritou‑lhe Athos.

‑ É ele! ‑ exclamou d'Artagnan pálido de cólera e com a testa coberta de suor. ‑ É ele! Deixai‑me alcançá‑lo!

‑ Mas ele quem? ‑ perguntou Athos.

‑ Aquele homem.

‑ Qual homem?

‑ Aquele homem maldito, o meu génio mau, que vi sempre que alguma desgraça me ameaçava; aquele que acompanhava a horrível mulher quando a vi pela primeira vez, aquele que eu procurava quando provoquei Athos, aquele que vi na manhã do dia em que a Sr.a Bonacieux fora raptada! O homem de Meung, enfim! Eu vi‑o, é ele! Reconheci‑o quando o vento lhe entreabriu a capa.

‑ Diabo! ‑ disse Athos, sonhador.

‑ A cavalo, meus senhores, a cavalo. Vamos persegui‑lo e apanhá‑lo‑emos.

‑ Meu caro ‑ disse Aramis ‑, lembrai‑vos de que ele vai na direcção oposta à nossa, que tem um cavalo fresco e que os nossos cavalos estão fatigados, que por conseguinte daremos cabo dos nossos cavalos sem termos sequer a hipótese de o alcançar.

‑ Eh, senhor! ‑ exclamou um moço de estrebaria correndo atrás do desconhecido. ‑ Eh, senhor! Caiu‑vos um papel da capa! Eh, senhor! Eh!

‑ Meu amigo ‑ disse d'Artagnan ‑, meia pistola por esse papel!

‑ Apre, senhor, com todo o prazer! Aqui o tendes!

O moço de estrebaria, satisfeito com o seu dia, entrou no pátio da estalagem; d'Artagnan desdobrou o papel.

‑ Então? ‑ perguntaram os seus amigos, rodeando‑o.

‑ Só uma palavra! ‑ disse d'Artagnan.

‑ Sim ‑ disse Aramis ‑, mas é o nome duma cidade ,ou duma aldeia.

‑ "Armentières" ‑ leu Porthos. ‑ Armentières, não conheço!

‑ E este nome duma aldeia ou duma cidade foi escrito pelo seu punho! ‑ exclamou Athos.

‑ Vá, vá, guardemos cuidadosamente este papel ‑ disse d'Artagnan ‑, talvez eu não tenha perdido a minha última pistola. A cavalo, meus amigos, a cavalo!

E os quatro amigos lançaram‑se a galope na estrada de Béthune.

 

         O CONVENTO DAS CARMELITAS DE BÉTHUNE

Os grandes criminosos têm uma espécie de predestinação que lhes permite superar todos os obstáculos, que lhes permite escapar a todos os perigos, até ao momento que a Providência, cansada, marcou como o escolho da sua ímpia fortuna.

Milady era assim; passou através dos cruzadores das duas nações e chegou a Bolonha sem nenhum acidente.

Ao desembarcar em Portsmouth, Milady era uma inglesa que as perseguições da França expulsavam de La Rochelle; ao desembarcar em Bolonha, após dois dias de travessia, fez‑se passar por uma francesa que os ingleses inquietavam em Portsmouth, devido ao ódio que haviam concebido contra a França.

De resto, Milady tinha o mais eficaz dos passaportes: a sua beleza, o seu ar importante e a generosidade com que distribuía as pistolas. Libertando‑se das formalidades da praxe graças a um sorriso afável e às maneiras galantes dum velho governador do porto, que lhe beijou a mão, só ficou em Bolonha o tempo necessário para enviar uma carta concebida nos seguintes termos:

 

A sua Eminência Monsenhor Cardeal de Richelieu, no seu acampamento diante de La Rochelle.

 

Monsenhor, que Vossa Eminência fique descansada; Sua Graça, o duque de Buckingham, não partirá para França. Bolonha, 25 à noite.

         MILADY DE ...

  1. S. ‑ Segundo o desejo de Vossa Eminência dirijo‑me ao convento das Carmelitas de Béthune onde aguardarei as suas ordens.

 

Efectivamente, na mesma noite, Milady pôs‑se a caminho; a noite surpreendeu‑a; parou e pernoitou numa estalagem; depois, no dia seguinte às cinco horas da manhã, partiu e, três horas depois, entrou em Béthune.

Pediu que lhe indicassem o convento das Carmelitas, onde imediatamente entrou.

A superiora veio ao seu encontro; Milady mostrou‑lhe a ordem do cardeal, e a abadessa mandou que lhe dessem um quarto e que lhe servissem o almoço.

Todo o passado já se tinha esvanecido para esta mulher que, de olhos postos no futuro, só via a fortuna que lhe reservava o cardeal, a quem servira com tanto sucesso e sem que o seu nome se envolvesse naquele caso sangrento.

As paixões sempre renovadas que a consumiam davam à sua vida a aparência dessas nuvens que voam no céu, reflectindo ora o azul, ora o fogo, ora o negro‑opaco da tempestade, e que só deixam na terra, como vestígios, a devastação e a morte.

Depois do almoço, a abadessa veio visitá‑la; há poucas distracções no claustro, e a bondosa superiora tinha pressa de conhecer a sua nova hóspede.

Milady queria agradar à superiora; ora, isto era fácil para esta mulher realmente superior; tentou ser amável, foi encantadora e seduziu a superiora com a sua conversa tão variada e com os seus encantos.

A abadessa, que pertencia à nobreza, apreciava sobretudo as histórias da corte, que tão raramente chegam às extremidades do reino e que, sobretudo, têm tanta dificuldade em transpor os muros dos conventos, no limiar dos quais vêm expirar os rumores do mundo.

Milady, pelo contrário, estava muito ao corrente de todas as intrigas aristocráticas, no meio das quais vivera constantemente durante cinco ou seis anos, e portanto pôs‑se a entreter a boa da abadessa com práticas mundanas da corte de França, misturadas com as devoções excessivas do rei, fez‑lhe a crónica escandalosa dos senhores e das damas da corte, que a abadessa conhecia perfeitamente de nome, tocou ao de leve os amores da rainha e de Buckingham, falando muito para ouvir falar um pouco.

Mas a abadessa contentou‑se em falar e sorrir, sem responder. Contudo, como Milady via que este género de histórias a divertia bastante, continuou, mas fez a conversa incidir no cardeal.

Porém estava muito embaraçada, não sabia se a abadessa era pelo rei ou pelo cardeal; manteve‑se num meio termo prudente, mas a abadessa, por seu lado, manteve‑se numa reserva ainda mais prudente, contentando‑se em inclinar profundamente a cabeça sempre que a viajante pronunciava o nome de Sua Eminência.

Milady começava a crer que ia aborrecer‑se muito naquele convento e, portanto, resolveu arriscar qualquer coisa para saber com que podia contar. Querendo ver até onde ia a discrição da abadessa, começou a dizer mal do cardeal, primeiro de maneira muito dissimulada e depois muito circunstanciada, contando os amores do ministro com M.me d'Aiguillon, com Marion de Lorme e outras mulheres galantes.

A abadessa escutou com mais atenção, animou‑se pouco a pouco e sorriu.

‑ Bom ‑ disse Milady ‑, ela interessa‑se pela minha conversa; se é cardinalista, pelo menos não é fanática.

Passou então às perseguições exercidas pelo cardeal sobre os seus inimigos. A abadessa contentou‑se em persignar‑se, sem aprovar nem desaprovar.

Isto confirmou a opinião de Milady de que a religiosa era mais a favor do rei que do cardeal. Milady continuou, forçando cada vez mais o tom.

‑ Sou muito ignorante de todos esses assuntos ‑ disse por fim a abadessa ‑, mas por muito afastadas que estejamos da corte e dos interesses do mundo em que estamos, temos exemplos muito tristes daquilo que contais, e uma das nossas hóspedes sofreu muito com as vinganças e as perseguições do Sr. Cardeal.

‑ Uma das vossas hóspedes ‑ disse Milady ‑, oh, meu Deus! Coitada, tenho muita pena.

‑ E tendes razão, pois é de ter pena: prisão, ameaças, maus tratos, tudo sofreu. Mas, afinal ‑ continuou a abadessa ‑, O Sr. Cardeal talvez tivesse motivos plausíveis para agir assim e, embora ela pareça um anjo, não se deve julgar as pessoas pela cara.

«Bom«, disse Milady para consigo, «quem sabe! Talvez vá descobrir alguma coisa por aqui, estou com sorte.»

E tentou dar ao rosto uma expressão de perfeita candura.

‑ Infelizmente ‑ disse Milady ‑, bem sei. Diz‑se que não devemos crer nas fisionomias, mas, se não acreditamos na mais bela obra do Senhor, então no que havemos de acreditar? Eu talvez me engane toda a vida, mas hei‑de fiar‑me sempre numa pessoa cujo rosto me inspire simpatia.

‑ Serieis, pois, tentada a crer ‑ disse a abadessa ‑ que essa jovem está inocente?

‑ O Sr. Cardeal não castiga apenas os crimes ‑ disse ela. ‑ Há certas virtudes que persegue mais severamente que certas proezas.

‑ Permiti‑me, minha senhora, exprimir a minha surpresa ‑ disse a abadessa.

‑ E que vos surpreende? ‑ disse ingenuamente Milady.

‑ A vossa linguagem.

‑ Que vos espanta nesta linguagem? ‑ perguntou Milady sorrindo.

‑ Sois amiga do cardeal, pois é ele que vos envia, e contudo...

‑ E contudo digo mal dele ‑ disse Milady, concluindo o pensamento da superiora.

‑ Pelo menos não dizeis bem.

‑ É que não sou sua amiga ‑ disse ela suspirando ‑, mas sua vítima.

‑ Mas a carta através da qual ele vos recomenda...

‑ É uma ordem para que eu me mantenha numa espécie de prisão da qual algum dos seus satélites me virá tirar.

‑ Mas por que não fugistes?

‑ Para onde iria? Julgais que existe algum lugar na terra que o cardeal não possa alcançar, se quiser dar‑se ao trabalho de estender a mão? Se eu fosse um homem, ainda seria possível, mas uma mulher... Que há‑de uma mulher fazer? Acaso a jovem hóspede que aqui tendes tentou fugir?

‑ É certo que não, mas o seu caso é outro, creio que algum amor a retém em França.

‑ Então ‑ disse Milady com um suspiro ‑, se ela ama, não é infeliz de todo.

‑ Sendo assim ‑ disse a abadessa, contemplando Milady com crescente interesse ‑, tenho diante de mim mais uma perseguida?

‑ Infelizmente ‑ respondeu Milady.

A abadessa fitou Milady por um instante, com inquietação, como se lhe ocorresse um novo pensamento.

‑ Não sois inimiga da nossa santa fé? ‑ disse ela, balbuciando.

‑ Eu ‑ exclamou Milady ‑, eu protestante! Oh, não! Deus, que nos está a ouvir, é testemunha de que eu sou, pelo contrário, uma católica fervorosa.

‑ Então, minha senhora ‑ disse a abadessa, sorrindo ‑, ficai descansada; a casa em que vos encontrais não será uma prisão muito dura e faremos o que for preciso para vos fazer estimar o cativeiro. Mais ainda, encontrareis aqui essa jovem que deve ser perseguida por causa dalguma intriga da corte; é amável e graciosa.

‑ Como se chama?

‑ Foi‑me recomendada por uma pessoa de posição muito elevada sob o nome de Ketty. Não procurei saber o outro nome.

‑ Ketty! ‑ exclamou Milady. ‑ O quê! Tendes a certeza?...

‑ Que se chama assim? Sim, minha senhora. Acaso a conheceis? Milady sorriu a si mesma e à ideia de que a jovem podia ser a sua

antiga camareira. A lembrança da jovem misturava‑se com uma lembrança de cólera e um desejo de vingança agitara os traços de Milady, que de resto logo retomara a expressão calma e benevolente que esta mulher de cem rostos lhe fizera perder momentaneamente.

‑ E quando poderei ver essa jovem dama, pela qual já sinto uma grande simpatia? ‑ perguntou Milady.

‑ Esta noite ‑ disse a abadessa ‑, ou mesmo durante o dia. Mas viajais há quatro dias, vós mesma me disseste; esta manhã levantaste‑vos às cinco horas, deveis precisar de repouso. Deitai‑vos e dormi. À hora do jantar acordar‑vos‑emos.

Embora Milady pudesse passar perfeitamente sem dormir, por causa de todas as excitações que uma nova aventura causava no coração ávido de intrigas, não deixou de aceitar a oferta da superiora; durante doze ou quinze dias passara por tantas emoções diversas que, se o seu corpo de ferro ainda podia aguentar o cansaço, a sua alma precisava de repouso.

Por conseguinte, despediu‑se da abadessa e deitou‑se, docemente embalada pelas ideias de vingança às quais aliara naturalmente o nome de Ketty. Recordava a promessa ilimitada que o cardeal lhe fizera, se realizasse a sua empresa. Realizara‑a e, portanto, poderia vingar‑se de d'Artagnan.

Só uma coisa assustava Milady: a lembrança do marido, o conde de La Fere, que julgara morto ou pelo menos expatriado, e que reencontrava em Athos, o melhor amigo de d'Artagnan.

Mas também, se era amigo de d'Artagnan, devia tê‑lo ajudado em todas as manobras com as quais a rainha fizera fracassar os projectos de Sua Eminência; se era amigo de d'Artagnan, era inimigo do cardeal; e ela conseguiria envolvê‑lo na sua vingança, nas pregas da qual contava sufocar o jovem mosqueteiro.

Todas estas esperanças eram doces pensamentos para Milady; assim, embalada por elas, depressa adormeceu.

Despertou‑a uma voz doce aos pés da cama. Milady abriu os olhos e viu a abadessa acompanhada duma jovem de cabelos loiros, tez delicada, que fixava nela um olhar cheio duma benevolente curiosidade.

O rosto desta jovem era totalmente desconhecido para ela; as duas examinaram‑se com uma atenção escrupulosa, trocando os cumprimentos habituais; as duas eram bastante belas, mas de uma beleza totalmente diferente. Contudo Milady sorriu, reconhecendo que levava a palma à jovem quanto à altivez e às maneiras aristocráticas. É verdade que o hábito de noviça que a jovem envergava não era muito vantajoso para uma luta desse género.

A abadessa apresentou‑as uma à outra; depois, cumprida esta formalidade, como os seus deveres a chamavam à igreja, deixou as duas jovens sozinhas.

Vendo que Milady estava deitada, a noviça quis seguir a superiora, mas Milady reteve‑a.

‑ Como, minha senhora ‑ disse‑lhe ela ‑, mal vos vi e já quereis privar‑me da vossa presença, com a qual confesso que contava um pouco para o tempo que tenho de passar aqui?

‑ Não, minha senhora ‑ respondeu a noviça ‑, apenas receava que o momento fosse mal escolhido. Dormíeis e estais cansada.

‑ Muito bem ‑ disse Milady. ‑ Que podem desejar as pessoas que dormem? Um despertar agradável. Foi o que me proporcionastes; deixai‑me gozá‑lo à minha vontade.

E, pegando‑lhe na mão, puxou‑a para a poltrona que estava junto da cama.

A noviça sentou‑se.

‑ Meu Deus! ‑ disse ela. ‑ Como sou infeliz! Há seis meses que estou aqui, sem a mínima distracção, vós chegais, a vossa presença ia ser uma companhia encantadora para mim, e eis que muito provavelmente vou deixar o convento dum momento para o outro!

‑ Como! ‑ disse Milady. ‑ Sais em breve?

‑ Assim o espero, pelo menos ‑ disse a noviça com uma expressão de alegria que não procurava disfarçar.

‑ Creio que sofrestes por causa do cardeal ‑ disse Milady ‑, seria mais um motivo de simpatia entre nós.

‑ Então o que a nossa boa mãe me disse é verdade? Também sois vítima do malvado do cardeal.

‑ Chiu! ‑ disse Milady. ‑ Mesmo aqui não falemos nele dessa maneira; todas as minhas desgraças foram causadas por eu ter dito mais ou menos o que acabais de dizer diante duma mulher que tinha por amiga e que me traiu. Vós também sois vítima duma traição?

‑ Não ‑ disse a noviça ‑, mas da minha dedicação a uma mulher que amava, pela qual teria dado e ainda daria a vida.

‑ E que vos abandonou!

‑ Fui suficientemente injusta para crer que sim, mas há dois ou três dias tive a prova do contrário, e dou graças a Deus; muito me custaria crer que ela me tinha esquecido. Mas vós, minha senhora ‑ continuou a noviça ‑, parece‑me que sois livre e que, se quisésseis, poderíeis fugir.

‑ Para onde ir, sem amigos, sem dinheiro, numa parte da França que não conheço, onde nunca vim?...

‑ Oh! ‑ exclamou a noviça. ‑ Tereis amigos onde quer que vos mostreis, pareceis tão boa e sois tão bela!

‑ E contudo ‑ replicou Milady, adoçando o seu sorriso de modo a dar‑lhe uma expressão angélica ‑, estou só e perseguida.

‑ Escutai ‑ disse a noviça ‑, é preciso ter esperança; há sempre um momento em que o bem que fizemos defende a nossa causa diante de Deus. e talvez seja uma sorte para vós, por muito humilde e destituída de poder que eu seja, o facto de me terdes encontrado, pois, se eu sair daqui, ora bem, terei alguns amigos poderosos que, depois de ter batalhado por minha causa, também poderão batalhar por vossa causa.

‑ Oh! Quando vos disse que estava só ‑ disse Milady, esperando levar a noviça a falar, falando de si mesma ‑, não quer dizer que também não tenha alguns conhecimentos elevados, mas estes conhecimentos também tremem diante do cardeal, a própria rainha não ousa defender ninguém contra o terrível ministro; tenho provas de que Sua Majestade, apesar do seu excelente coração, foi obrigada mais do que uma vez a abandonar à cólera de Sua Eminência as pessoas que a tinham servido.

‑ Crede, minha senhora, que pode parecer que a rainha abandonou essas pessoas, mas não se deve acreditar nas aparências: quanto mais perseguidas são, mais a rainha pensa nelas, e muitas vezes, no momento em que menos esperam, têm a prova duma boa lembrança.

‑ Ai de mim! ‑ disse Milady. ‑ Eu creio, a rainha é tão boa.

‑ Oh! Então conheceis a bela e nobre rainha, para falardes dela assim! ‑ exclamou a noviça com entusiasmo.

‑ Quer dizer ‑ replicou Milady, encurralada ‑, a ela, pessoalmente, não tenho a honra de conhecer, mas conheço muitos dos seus amigos mais íntimos. Conheço o Sr. de Putange, conheci em Inglaterra o Sr. Dujart e conheço o Sr. de Tréville.

‑ O Sr. de Tréville! ‑ exclamou a noviça. ‑ Conheceis o Sr. de Tréville!

‑ Sim, perfeitamente. Muito bem até.

‑ O capitão dos mosqueteiros do rei?

‑ O capitão dos mosqueteiros do rei.

‑ Oh! Mas ides ver que daqui a pouco seremos velhas conhecidas, quase amigas. Se conheceis o Sr. de Tréville, deveis ter ido a sua casa.

‑ Muitas vezes ‑ disse Milady que, tendo entrado neste caminho e vendo que a mentira era bem sucedida queria levá‑la até ao fim.

‑ Em sua casa deveis ter visto alguns dos seus mosqueteiros.

‑ Todos os que costuma receber ‑ respondeu Milady, para quem a conversa começava a apresentar um interesse real.

‑ Dizei‑me o nome dalguns dos que conheceis e vereis que são meus amigos.

‑ Mas ‑ disse Milady embaraçada ‑, conheço o Sr. de Louvigny, o Sr. de Courtivron, o Sr. de Férussac.

A noviça deixou‑a falar, depois vendo que se calava:

‑ Não conheceis ‑ disse ela ‑ um gentil‑homem chamado Athos?

Milady pôs‑se tão pálida como os lençóis da cama em que estava deitada e, por muito senhora de si que fosse, não conseguiu deixar de dar um grito, agarrando a mão da sua interlocutora e devorando‑a com os olhos.

‑ O quê! Que tendes? Oh, meu Deus! ‑ perguntou a pobre mulher. ‑ Terei dito alguma coisa que vos ferisse?

‑ Não, mas esse nome impressionou‑me porque eu também conheci esse gentil‑homem e parece‑me estranho encontrar alguém que o conheça bem.

‑ Oh, sim! Muito bem, muito bem! Não só a ele mas também aos seus amigos, os Srs. Porthos e Aramis!

‑ Realmente! Também os conheço! ‑ exclamou Milady, sentindo o frio penetrar‑lhe no coração.

‑ Muito bem! Se os conheceis, deveis saber que são bons e francos companheiros; por que não vos dirigis a eles, se precisais de apoio?

‑ Quer dizer ‑ balbuciou Milady ‑, não estou realmente ligada a nenhum deles; conheço‑os por ter ouvido falar muito neles a um dos seus amigos, o Sr. d'Artagnan.

‑ Conheceis o Sr. d'Artagnan! ‑ exclamou a noviça por sua vez, agarrando na mão de Milady e devorando‑a com os olhos.

Depois, notando a estranha expressão do olhar de Milady:

‑ Perdão, minha senhora, a que título o conheceis?

‑ Mas ‑ respondeu Milady embaraçada ‑ a título de amigo.

‑ Enganais‑me, minha senhora ‑ disse a noviça ‑, fostes sua amante.

‑ Vós é que fostes! ‑ exclamou por sua vez Milady.

‑ Eu! ‑ disse a noviça.

‑ Sim, vós; agora conheço‑vos: sois a Sr.a Bonacieux.

A jovem recuou, cheia de surpresa e de terror.

‑ Oh! Não negueis! Respondei ‑ continuou Milady.

‑ Pois muito bem, é verdade! Eu amo‑o ‑ disse a noviça. ‑ Somos rivais?

O rosto de Milady iluminou‑se com um fogo tão selvagem que, em qualquer outra circunstância, a Sr.a Bonacieux teria fugido de pavor; porém estava entregue ao seu ciúme.

‑ Dizei então, minha senhora ‑ continuou a Sr.a Bonacieux com uma energia de que parecia incapaz ‑, fostes ou sois sua amante?

‑ Oh, não! ‑ exclamou Milady com uma entoação que não admitia dúvidas. ‑ Nunca, nunca!

‑ Acredito ‑ disse a Sr.a Bonacieux ‑, mas então por que tivestes essa exclamação?

‑ O quê? Não compreendeis! ‑ disse Milady, que já se tinha recomposto e que recuperara a sua presença de espírito.

‑ Como hei‑de compreender? Não sei de nada.

‑ Não compreendeis que, sendo seu amigo, o Sr. d'Artagnan me fizera sua confidente?

‑ Realmente!

‑ Não compreendeis que sei tudo, o vosso rapto da casinha de Saint‑Germain, o seu desespero, o desespero dos seus amigos, as suas buscas inúteis desde esse momento! E como não havia de me admirar quando, sem estar à espera, me encontro diante de vós, de vós de quem tantas vezes falámos, de vós a quem ele ama de todo o coração, de vós a quem me fez amar antes de vos conhecer? Ah! Cara Constance, então encontro‑vos, finalmente conheço‑vos!

E Milady estendeu os braços à Sr.a Bonacieux que, convencida com aquilo que ela lhe acabava de dizer, só viu nesta mulher, que pouco antes julgara a sua rival, uma amiga sincera e dedicada.

‑ Oh! Perdoai‑me, perdoai‑me! ‑ exclamou ela, encostando‑se no ombro da outra. ‑ Eu amo‑o tanto!

As duas mulheres permaneceram um instante abraçadas. Por certo que, se as forças de Milady fossem iguais ao seu ódio, a Sr.a Bonacieux teria saído morta deste abraço. Mas, não a podendo sufocar, Milady sorriu‑lhe.

‑ Ó minha cara! Ó minha rica! ‑ disse Milady. ‑ Como estou feliz de vos ver! Deixai‑me contemplar‑vos. ‑ E, dizendo estas palavras devorava‑a efectivamente com o olhar. ‑ Sim, sois vós. Ah! Reconheço‑vos por aquilo que ele me disse, reconheço‑vos perfeitamente.

A pobre rapariga não podia desconfiar daquilo que se passava de horrivelmente cruel por trás das muralhas daquela fronte pura, por trás daqueles olhos tão brilhantes onde só lia interesse e compaixão.

‑ Então sabeis o que eu sofri ‑ disse a Sr.a Bonacieux ‑, pois ele disse‑vos o que sofria; mas sofrer por causa dele é uma felicidade.

Milady repetiu maquinalmente:

‑ Sim, é uma felicidade. Pensava noutra coisa.

‑ E depois ‑ continuou a Sr.a Bonacieux ‑, o meu suplício está a chegar ao fim; amanhã, talvez esta noite, voltarei a vê‑lo, e então o passado não mais existirá.

‑ Esta noite? Amanhã? ‑ exclamou Milady, que estas palavras tinham tirado da sua divagação. ‑ Que quereis dizer" Esperais alguma notícia dele?

‑ Espero‑o a ele mesmo.

‑ Ele mesmo; d'Artagnan, aqui!

‑ Ele mesmo.

‑ Mas é impossível! Ele está no cerco de La Rochelle com o cardeal e só voltará a Paris depois da cidade ser tomada.

‑ É o que pensais, mas haverá alguma coisa impossível para o meu d'Artagnan, o nobre e leal gentil‑homem?

‑ Oh! Não posso crer!

‑ Pois bem, então lede! ‑ disse a pobre jovem cheia de orgulho e de alegria, apresentando uma carta a Milady.

‑ É a letra da Sr.a de Chevreuse! ‑ pensou Milady. ‑ Ah! Eu tinha a certeza de que eles tinham contactos deste género!

E leu avidamente as seguintes linhas:

 

Minha querida filha, estai preparada; o nosso amigo irá ver‑vos em breve, e será para arrancar‑vos da prisão onde a vossa segurança exigia que estivésseis escondida: preparai‑vos, pois, para a partida e nunca percais as esperanças em nós.

O nosso encantador gascão acaba de se mostrar bravo e fiel como sempre, dizei‑lhe que uma pessoa lhe está muito reconhecida pelo aviso que lhe fez.

 

‑ Sim, sim ‑ disse Milady ‑, a carta é preciosa. Sabeis que aviso é esse?

‑ Não. Penso apenas que deve ter prevenido a rainha de alguma nova maquinação do cardeal.

‑ Sim, deve ser isso ‑ disse Milady, entregando a carta à Sr.a Bonacieux e reclinando pensativamente a cabeça.

Neste momento ouviu‑se o galopar dum cavalo.

‑ Oh! ‑ exclamou a Sr.a Bonacieux, correndo à janela. ‑ Será já ele?

Milady ficara na cama, petrificada pela surpresa; aconteciam‑lhe de repente tantas coisas que pela primeira vez não sabia o que pensar.

‑ Ele, ele! ‑ murmurou. ‑ Será ele?

E ficou na cama, com os olhos fixos.

‑ Não, infelizmente! ‑ disse a Sr.a Bonacieux. ‑ É um homem que não conheço, mas que parece vir para aqui; sim, ele abranda, pára na porta e toca a sineta.

Milady saltou da cama.

‑ Tendes a certeza de que não é ele? ‑ perguntou.

‑ Sim, a certeza absoluta!

‑ Talvez tenhais visto mal.

‑ Oh! Ainda que só visse a pluma do seu chapéu, a ponta da sua capa reconhecê‑lo‑ia!

Milady continuava a vestir‑se.

‑ Não importa! Esse homem vem para aqui, dizeis vós?

‑ Sim, entrou.

‑ É por vossa ou por minha causa.

‑ Oh, meu Deus! Como pareceis agitada!

‑ Sim, confesso, não tenho a mesma confiança que vós; temo tudo da parte do cardeal.

‑ Chiu! ‑ disse a Sr.a Bonacieux. ‑ Vem aí gente! Efectivamente a porta abriu‑se e a superiora entrou.

‑ Sois vós que vindes de Bolonha? ‑ perguntou ela a Milady.

‑ Sim, sou eu ‑ respondeu esta e, tentando recuperar o seu sangue‑frio. ‑ Quem pergunta por mim?

‑ Um homem que não quer dizer como se chama e que vem da parte do cardeal.

‑ E quer falar comigo? ‑ perguntou Milady.

‑ Que quer falar com uma senhora que vem de Bolonha.

‑ Então mandai‑o entrar, por favor, minha senhora.

‑ Oh, meu Deus! Meu Deus! ‑ disse a Sr.a Bonacieux. ‑ Será alguma má notícia?

‑ Receio que sim.

‑ Deixo‑vos com esse estranho mas, se me permitirdes, voltarei assim que ele se for embora.

‑ Ora essa! Com certeza.

A superiora e a Sr.a Bonacieux saíram.

Milady ficou sozinha, com os olhos pregados na porta; passado um instante, ouviu‑se o som dumas esporas a ecoarem nas escadas, depois os passos aproximaram‑se, a porta abriu‑se e apareceu um homem.

Milady deu um grito de alegria: este homem era o conde de Rochefort, a alma danada de Sua Eminência.

 

         DUAS VARIEDADES DE DEMÓNIOS

‑ Ah! ‑ exclamaram ao mesmo tempo Rochefort e Milady. ‑ Sois vós!

‑ Sim, sou eu.

‑ E vindes de?... ‑ perguntou Milady.

‑ De La Rochelle. E vós?

‑ De Inglaterra.

‑ Buckingham?

‑ Morto ou gravemente ferido; quando parti sem ter conseguido obter nada, um fanático acabava de assassiná‑lo.

‑ Ah! ‑ exclamou Rochefort com um sorriso. ‑ Eis um acaso muito feliz e que vai satisfazer Sua Eminência! Já o prevenistes?

‑ Escrevi‑lhe de Bolonha. Mas por que estais aqui?

‑ Sua Eminência, que estava inquieto, mandou‑me ao vosso encontro.

‑ Cheguei só ontem.

‑ E que fizestes desde ontem?

‑ Não perdi tempo.

‑ Oh! Eu imagino.

‑ Sabeis quem encontrei aqui? ‑Não.

‑ Adivinhai.

‑ Como havia eu de adivinhar?...

‑ Aquela jovem que a rainha tirou da prisão.

‑ A amante do pequeno d'Artagnan?

‑ Sim, a Sr.a Bonacieux, cujo paradeiro o cardeal ignorava.

‑ Muito bem! ‑ disse Rochefort. ‑ Eis um acaso tão feliz como o outro; o Sr. Cardeal é de facto um homem privilegiado!

‑ Compreendeis o meu espanto ‑ continuou Milady ‑ quando me encontrei cara a cara com essa mulher?

‑ Conhece‑vos? ‑Não.

‑ Então considera‑vos como uma estranha? Milady sorriu.

‑ Sou a sua melhor amiga!

‑ Palavra de honra ‑ disse Rochefort ‑, só vós, minha cara condessa, é que conseguis fazer esses milagres!

‑ E em boa hora, cavaleiro ‑ replicou Milady ‑, pois sabeis o que se passa?

‑Não.

‑ Vêm buscá‑la amanhã ou depois de amanhã com uma ordem da rainha.

‑ De facto? E quem?

‑ D'Artagnan e os seus amigos.

‑ Na verdade hão‑de fazer tantas que seremos obrigados a mandá‑los para a Bastilha.

‑ Por que não o fizeram ainda?

‑ Que quereis? Porque o Sr. Cardeal tem um fraco por esses homens que eu não compreendo.

‑ Ai sim?

‑ Sim.

‑ Muito bem! Dizei‑lhe o seguinte, Rochefort: dizei‑lhe que a nossa conversa na estalagem do Colombier‑Rouge foi escutada por esses quatro homens; dizei‑lhe que, depois de se ter ido embora, um deles subiu e arrancou‑me pela violência o salvo‑conduto que ele me tinha dado; dizei‑lhe que tinham mandado prevenir lorde de Winter da minha passagem pela Inglaterra; que, ainda desta vez, por pouco não fizeram fracassar a minha missão, como fizeram fracassar a das agulhetas; dizei‑lhe que, desses quatro homens, só dois são de temer, d'Artagnan e Athos; dizei‑lhe que o terceiro, Aramis, é amante da Sr.a de Chevreuse: é preciso deixá‑lo viver, conhecemos o seu segredo e ele pode ser útil; quanto ao quarto, Porthos, é um tolo, um presumido e um ingénuo, não vale a pena preocupar‑se com ele.

‑ Mas a estas horas esses quatro homens devem estar no cerco de La Rochelle.

‑ Eu também pensava que sim, mas uma carta que a Sr.a Bonacieux recebeu da Sr.a de Chevreuse, e que teve a imprudência de me comunicar, leva‑me a crer que, pelo contrário, esses quatro homens vêm a caminho para a tirarem daqui.

‑ Diabo! Que fazer?

‑ Que vos disse o cardeal a meu respeito?

‑ Que recebesse os vossos recados escritos ou verbais, que regressasse pela posta e que, quando souber o que fizestes, resolverá o que deveis fazer.

‑ Nesse caso devo ficar aqui? ‑ perguntou Milady.

‑ Aqui ou nos arredores.

‑ Não podeis levar‑me convosco?

‑ Não, a ordem é formal; perto do acampamento poderíeis ser reconhecida e, compreendeis, a vossa presença comprometeria Sua Eminência, sobretudo depois do que acaba de se passar. Contudo, dizei‑me desde já onde aguardareis notícias do cardeal, para que eu saiba sempre onde vos encontrar.

‑ Escutai, é provável que eu não possa ficar aqui?

‑ Porquê?

‑ Esqueceis que os meus inimigos podem chegar dum momento para o outro.

‑ É verdade, mas então essa mulherzinha vai escapar a Sua Eminência?

‑ Ora! ‑ disse Milady com um sorriso que era só dela. ‑ Esqueceis que sou a sua melhor amiga.

‑ Ah, é verdade! Então posso dizer ao cardeal, acerca dessa mulher...

‑ Que fique descansado.

‑ Nada mais?

‑ Ele saberá o que isso quer dizer?

‑ Adivinhará. E agora, que devo eu fazer?

‑ Partir agora mesmo; parece‑me que as notícias que levais merecem a diligência.

‑ A minha sege partiu‑se à entrada de Lillers.

‑ Muito bem!

‑ Como?

‑ Sim, eu preciso da vossa sege ‑ disse a condessa.

‑ Então como poderei partir?

‑ A toda a brida.

‑ Falais bem. São cento e oitenta léguas.

‑ Que é isso?

‑ Está bem. E depois?

‑ Depois, ao passar em Lillers mandais‑me a sege, dando ordem ao vosso criado para se pôr à minha disposição.

‑ Bom.

‑ Deveis ter alguma ordem do cardeal, convosco, não?

‑ Tenho uma carta de plenos poderes.

‑ Mostrai‑a à abadessa e dizei que virão buscar‑me hoje ou amanhã e que eu terei que seguir a pessoa que se apresentar em vosso nome.

‑ Muito bem!

‑ Não vos esqueceis de me tratar com dureza quando falardes de mim à abadessa.

‑ Para quê?

‑ Eu sou uma vítima do cardeal. Tenho de inspirar confiança à pobre Sr.a Bonacieux.

‑ Tendes razão. Agora quereis fazer‑me um relatório de tudo o que se passou?

‑ Mas eu já vos contei os acontecimentos; vós tendes boa memória, repeti o que vos disse. Um papel é coisa que se perde.

‑ Tendes razão, Mas tenho de saber onde hei‑de encontrar‑vos para não ter de percorrer os arredores em vão.

‑ Está bem. Esperai.

‑ Quereis um mapa?

‑ Oh! Eu conheço perfeitamente a região.

‑ Vós? Quando foi que cá viestes?

‑ Fui criada aqui.

‑ Realmente?

‑ Estais a ver que sempre serve de alguma coisa ter sido criada nalgum sítio.

‑ Então onde me ireis esperar?

‑ Deixai‑me reflectir um instante. Ah! Já sei, em Armentières.

‑ Que é isso?

‑ É uma cidadezinha na margem do Lys; é só atravessar o rio, e estou no estrangeiro.

‑ Muito bem. Mas fica combinado que só atravessareis o rio em caso de perigo.

‑ Combinado.

‑ E, nesse caso, como saberei onde estais?

‑ Não precisais do vosso lacaio?. ‑Não.

‑ É de confiança?

‑ De toda a confiança.

‑ Concedei‑mo; ninguém o conhece, deixo‑o no lugar de onde sair e ele conduz‑vos ao lugar onde estou.

‑ E dizeis que ireis esperar‑me em Armentières?

‑ Em Armentières ‑ respondeu Milady.

‑ Escrevei‑me esse nome num pedaço de papel, pois tenho medo de me esquecer. O nome duma cidade não é comprometedor, pois não?

‑ Quem sabe? Não importa ‑ disse Milady, escrevendo o nome numa folha de papel ‑, eu comprometo‑me.

‑ Bom ‑ disse Rochefort tirando o papel das mãos de Milady, dobrando‑o e metendo‑o dentro do chapéu.

‑ Aliás, ficai descansada, vou fazer como as crianças e, no caso de perder este papel, repetir o nome ao longo do caminho. Agora é tudo?

‑ Creio que sim.

‑ Vejamos: Buckingham morto ou gravemente ferido; a vossa conversa com o cardeal ouvida pelos quatro mosqueteiros; lorde de Winter prevenido da vossa chegada a Portsmouth; d'Artagnan e Athos na Bastilha; Aramis é amante da Sr.a de Chevreuse; Porthos é um presumido; encontrada a Sr.a Bonacieux; enviar‑vos a minha sege o mais depressa possível; pôr o meu lacaio à vossa disposição; fazer de vós uma vítima do cardeal, para que a abadessa não suspeite de nada; Armentières na margem do Lys. É isto?

‑ Tendes de facto uma memória prodigiosa, meu caro cavaleiro. A propósito, acrescentai uma coisa...

‑ O quê?

‑ Vi uns bosques muito bonitos que devem confinar com o jardim do convento; dizei que me é permitido passear nesses bosques. Quem sabe? Talvez precise de sair pela porta das traseiras.

‑ Pensais em tudo.

‑ E vós esqueceis uma coisa...

‑ O quê?

‑ Perguntar‑me se preciso de dinheiro.

‑ É verdade. Quanto quereis?

‑ Todo o ouro que tiverdes.

‑ Tenho cerca de quinhentas pistolas.

‑ E eu outras tantas; com mil pistolas faz‑se frente a tudo. Esvaziai os bolsos.

‑ Aqui tendes, condessa.

‑ Bom, meu caro conde! E quando partis?

‑ Daqui a uma hora. Só o tempo de comer qualquer coisa e de mandar buscar um cavalo de posta.

‑ Perfeitamente. Adeus, cavaleiro!

‑ Adeus, condessa!

‑ Cumprimentos ao cardeal ‑ disse Milady.

‑ Cumprimentos a Satanás ‑ replicou Rochefort. Milady e Rochefort trocaram um sorriso e separaram‑se. Passada uma hora Rochefort partiu a galope; cinco horas depois

passava em Arras.

Os nossos leitores já sabem como ele fora reconhecido por d'Artagnan e como este facto, inspirando receios aos quatro mosqueteiros, dera uma nova actividade à sua viagem.

 

         UMA GOTA DE ÁGUA

Assim que Rochefort saiu, a Sr.a Bonacieux entrou. Encontrou Milady sorridente.

‑ Então ‑ disse a jovem ‑, o que receáveis aconteceu; esta noite ou amanhã o cardeal manda‑vos buscar?

‑ Quem vos disse, minha filha? ‑ perguntou Milady.

‑ Ouvi da boca do próprio mensageiro.

‑ Vinde‑vos sentar aqui junto de mim ‑ disse Milady.

‑ Aqui me tendes.

‑ Esperai que me certifique de que ninguém nos escuta.

‑ Para quê todas essas precauções?

‑ Ides ver.

Milady levantou‑se, foi até à porta, abriu‑a, espreitou o corredor e voltou a sentar‑se perto da Sr.a Bonacieux.

‑ Então ‑ disse ela ‑ ele fez bem o seu papel. ‑ Quem?

‑ Aquele que se apresentou à abadessa como o enviado do cardeal.

‑ Então era um papel?

‑ Sim, minha filha.

‑ Esse homem não é...

‑ Esse homem ‑ disse Milady, baixando a voz ‑ é o meu irmão.

‑ Vosso irmão! ‑ exclamou a Sr.a Bonacieux.

‑ Muito bem! Só vós sabeis o meu segredo, minha filha; se o confiardes seja a quem for, estou perdida, e vós também, talvez.

‑ Oh, meu Deus!

‑ Escutai, eis o que se passa: meu irmão, que vinha socorrer‑me e tirar‑me daqui à viva força se fosse preciso, encontrou o emissário do cardeal que me vinha buscar; seguiu‑o. Ao chegar a um local solitário e afastado, empunhou a espada e intimou o mensageiro a entregar‑lhe os papéis de que era portador; o mensageiro quis defender‑se e meu irmão matou‑o.

‑ Oh! ‑ exclamou a Sr.a Bonacieux, estremecendo.

‑ Era a única maneira. Então meu irmão quis substituir a força pela astúcia: pegou nos papéis, apresentou‑se aqui como o próprio emissário do cardeal e, daqui a uma hora ou duas, um carro deve vir buscar‑me da parte de Sua Eminência.

‑ Compreendo, é vosso irmão que vos manda esse carro.

‑ Justamente, mas ainda não é tudo. Essa carta que recebestes e que julgáveis ser da Sr.a de Chevreuse...

‑ Sim. ‑É falsa.

‑ Como?

‑ Sim, falsa. É uma armadilha para não oferecerdes resistência quando vierem buscar‑vos.

‑ Mas é d'Artagnan que virá.

‑ Desenganai‑vos, d'Artagnan e os seus amigos estão retidos no cerco de La Rochelle.

‑ Como sabeis?

‑ Meu irmão encontrou emissários do cardeal disfarçados de mosqueteiros. Mandar‑vos‑iam chamar à porta, far‑se‑iam passar por amigos, raptar‑vos‑iam e levar‑vos‑iam para Paris.

‑ Oh, meu Deus! Não sei o que pensar no meio deste caos de iniquidades. Sinto que se isto durasse ‑ continuou a Sr.a Bonacieux, levando as mãos ao rosto ‑, enlouquecia.

‑ Esperai...

‑ O quê?

‑ Ouço o passo dum cavalo, é o de meu irmão que parte. Quero dizer‑lhe um último adeus, vinde cá.

Milady abriu a janela e fez sinal à Sr.a Bonacieux que fosse ter com ela. A jovem foi.

Rochefort passava a galope.

‑ Adeus, irmão! ‑ exclamou Milady.

O cavaleiro ergueu a cabeça, viu as duas mulheres e, continuando a correr, fez a Milady um sinal amigável com a mão.

‑ Bom Georges! ‑ disse ela, fechando a janela com uma expressão cheia de afectação e de melancolia.

E foi sentar‑se no seu lugar como se estivesse mergulhada em reflexões muito pessoais.

‑ Cara senhora! ‑ disse a Sr.a Bonacieux. ‑ perdoai‑me interromper‑vos! Mas que me aconselhais a fazer? Meu Deus! Vós tendes mais experiência que eu, falai que vos escuto.

‑ Primeiro ‑ disse Milady ‑, pode ser que eu esteja enganada e que d'Artagnan e os seus amigos venham realmente em vosso socorro.

‑ Oh! Isso seria bom de mais! ‑ exclamou a Sr.a Bonacieux. ‑ E eu não tenho essa sorte!

‑ Então, compreendeis, seria simplesmente uma questão de tempo, uma espécie de corrida para ver quem chegaria primeiro. Se forem os vossos amigos, estais salva; se forem os satélites do cardeal estais perdida.

‑ Oh, sim, sim! Perdida sem dó nem misericórdia! Que fazer? Que fazer?

‑ Haveria uma forma muito simples, muito natural...

‑ Qual?

‑ Seria esperar, escondida nas proximidades, certificando‑vos assim da identidade dos homens que vos vêm buscar.

‑ Mas onde esperar?

‑ Oh! Isso não é problema; eu mesma paro e escondo‑me a poucas léguas daqui, à espera de meu irmão. Ora bem, levo‑vos comigo, escondemo‑nos e esperamos juntas.

- Mas não me deixarão sair, sou quase uma prisioneira.

‑ Como crêem que parto por ordem do cardeal, não pensarão que tereis muita pressa de me seguir.

‑ E então?

‑ Então, o carro está à porta, dizeis‑me adeus, subis para cima do estribo para me abraçar uma última vez; o criado de meu irmão, que vem buscar‑me, está prevenido, faz um sinal ao postilhão e partimos a galope.

‑ Mas d'Artagnan, se d'Artagnan vier?

‑ Não saberemos disso?

‑ Como?

‑ Nada mais fácil. Enviamos a Béthune o criado de meu irmão, no qual, como já vos disse, podemos confiar; ele disfarça‑se e instala‑se numa casa diante do convento: se forem os emissários do cardeal, não se mexe; se for o Sr. d'Artagnan e os seus amigos, leva‑os ao lugar onde nós estamos.

‑ Ele conhece‑os?

‑ É claro, pois viu o Sr. d'Artagnan em minha casa!

‑ Oh! Sim, sim, tendes razão. Portanto, tudo corre bem. Mas não nos afastemos daqui.

‑ A sete ou oito léguas quando muito, ficamos na fronteira, por exemplo, e ao primeiro alerta saímos de França.

‑ E daqui até lá que fazer?

‑ Esperar.

‑ E se eles chegarem?

‑ O carro de meu irmão chegará antes deles.

‑ Se eu estiver longe de vós quando vos vierem buscar, se estiver a jantar ou a cear, por exemplo?

‑ Fazei uma coisa. ‑ O quê?

‑ Dizei à vossa bondosa superiora que, para nos separarmos o menos possível, lhe pedis permissão para partilhar as minhas refeições.

‑ E ela permitirá?

‑ Que inconveniente há nisso?

‑ Oh, muito bem! Desse modo não nos separamos nem por um instante.

‑ Então descei e ide fazer‑lhe o vosso pedido! Sinto a cabeça pesada, vou dar uma volta pelo jardim.

‑ Ide, e onde vos encontrarei?

‑ Neste sítio, daqui a uma hora.

‑ Neste sítio, daqui a uma hora. Oh! Como sois boa e como vos agradeço!

‑ Como não haveria eu de me interessar por vós? Ainda que não fôsseis boa e encantadora, sois amiga de um dos meus melhores amigos!

‑ Caro d'Artagnan! Oh! Como ele vos agradecerá!

‑ Espero bem que sim. Vá! Está tudo combinado, desçamos.

‑ Ides para o jardim?

‑ Vou.

‑ Segui este corredor, há umas escadinhas que conduzem ao jardim.

‑ Muito bem. Obrigada.

E as duas mulheres separaram‑se, trocando um sorriso encantador.

Milady dissera a verdade, sentia a cabeça pesada pois os seus projectos desordenados entrechocavam‑se lá dentro como num caos. Precisava de estar só para pôr em ordem os seus pensamentos. Via vagamente o futuro, mas precisava de um pouco de silêncio e de calma para dar a todas as suas ideias, ainda confusas, uma forma distinta, um plano definido.

O mais urgente era raptar a Sr.a Bonacieux, pô‑la em lugar seguro e ali, se fosse preciso, fazer dela um refém. Milady começava a recear o resultado daquele terrível duelo em que os seus amigos punham tanta perseverança como ela punha obstinação.

De resto sentia, como quem pressente uma tempestade, que este resultado estava próximo e que não podia deixar de ser terrível.

O principal para ela, como dissemos, era ter a Sr.a Bonacieux na mão. A Sr.a Bonacieux era a vida de d'Artagnan; era mais que a sua vida, era a vida da mulher que amava; era, em caso de pouca sorte, a maneira de lidar e de obter com certeza boas condições.

Ora, este ponto estava decidido: a Sr.a Bonacieux segui‑la‑ia sem desconfiar; uma vez escondida com ela em Armentières, seria fácil fazer‑lhe crer que d'Artagnan não viera a Béthune. Dali a quinze dias, quando muito, Rochefort estaria de volta; durante estes quinze dias pensaria no que devia fazer para se vingar dos quatro amigos. Não se aborreceria, graças a Deus, porque teria o mais doce dos passatempos que os acontecimentos podiam conceder a uma mulher do seu carácter: uma boa vingança a aperfeiçoar.

Enquanto divagava, lançava os olhos em redor e classificava mentalmente a topologia do jardim. Milady era como um bom general que prevê a vitória e a derrota, e que, segundo as probabilidades da batalha, está pronto para marchar em frente ou bater em retirada.

Passada uma hora, ouviu uma voz doce a chamá‑la; era a voz da Sr.a Bonacieux. A abadessa consentira tudo, naturalmente, e para começar, iam cear juntas.

Ao chegar ao pátio, ouviram o ruído dum carro que parava à porta.

‑ Ouvis? ‑ disse ela.

‑ Sim, é um carro.

‑ É o carro que meu irmão nos envia.

‑ Oh, meu Deus!

‑ Então? Coragem!

Bateram à porta do convento, Milady não se tinha enganado.

‑ Subi ao vosso quarto ‑ disse ela à Sr.a Bonacieux ‑, deveis ter algumas jóias que quereis levar.

‑ Tenho cartas ‑ disse ela.

‑ Muito bem, ide buscá‑las e vinde ter ao meu quarto; cearemos à pressa; talvez viajemos durante parte da noite, temos de ganhar forças.

‑ Deus do Céu! ‑ disse a Sr.a Bonacieux, levando a mão ao peito. ‑ Sufoco, não consigo andar.

‑ Coragem, vá, coragem! Pensai que daqui a um quarto de hora estais salva e pensai no que ides fazer, é por ele que o fazeis.

‑ Oh, sim! Tudo por ele. Vós devolvestes‑me a coragem com uma simples palavra. Ide, que já vou ter convosco.

Milady subiu rapidamente para os seus aposentos, onde encontrou o lacaio e lhe deu as suas instruções.

‑ Devia esperar à porta; se por acaso os mosqueteiros aparecessem, o carro partia a galope, dava a volta ao convento e ia esperar Milady numa aldeia situada do outro lado do bosque. Nesse caso, Milady atravessava o jardim e alcançava a aldeia a pé; já dissemos que Milady conhecia muito bem esta parte da França.

Se os mosqueteiros não aparecessem, as coisas seriam conforme combinado: a Sr.a Bonacieux subia para o carro a fim de lhe dizer adeus, e Milady raptava a Sr.a Bonacieux.

A Sr.a Bonacieux entrou e, para lhe desvanecer as suspeitas, se é que ela tinha alguma, Milady repetiu diante do lacaio a última parte das suas instruções.

Milady fez algumas perguntas sobre o carro: era uma sege atrelada a três cavalos e conduzida por um cocheiro; o lacaio de Rochefort devia precedê‑la como correio.

Milady não tinha razões para recear que a Sr.a Bonacieux desconfiasse; a pobre mulher era muito pura para suspeitar de semelhante perfídia noutra mulher; de resto, o nome da condessa de Winter, que ouvira a abadessa pronunciar, era inteiramente desconhecido para ela, e até ignorava que uma mulher tivesse tido tanta culpa nas desgraças da sua vida.

‑ Vedes ‑ disse Milady quando o lacaio saiu ‑, está tudo pronto. A abadessa não desconfia de nada e crê que me vêm buscar da parte do cardeal. Este homem vai dar as últimas ordens; comei qualquer coisa, bebei um dedo de vinho e vamos.

‑ Sim ‑ disse maquinalmente a Sr.a Bonacieux ‑, sim, vamos. Milady fez‑lhe sinal para se juntar ao pé dela, serviu‑lhe um copinho

de vinho de Espanha e um pedaço de frango.

‑ Vede ‑ disse ela ‑ se tudo não é a nosso favor: escurece, ao nascer do dia teremos chegado ao nosso esconderijo e ninguém poderá suspeitar do lugar onde estamos. Vá, coragem, comei alguma coisa.

A Sr.a Bonacieux comeu maquinalmente uns pedaços e molhou os lábios no copo.

‑ Vamos, vamos ‑ disse Milady, levando o seu copo aos lábios ‑, fazei como eu.

Mas no momento em que levava o copo à boca, a sua mão ficou suspensa, acabava de ouvir na estrada o ruído distante dum galope que se

ia aproximando, depois, quase ao mesmo tempo, pareceu‑lhe ouvir cavalos a relinchar.

Este ruído arrancou‑a da sua alegria como o som da tempestade acorda no meio dum sonho bonito; empalideceu e correu à janela, enquanto a Sr.a Bonacieux, erguendo‑se toda a tremer, se apoiava na cadeira para não cair.

Ainda não se via nada, só se ouvia o galope que se ia aproximando cada vez mais.

‑ Oh, meu Deus! ‑ disse a Sr.a Bonacieux. ‑ Que ruído é este?

‑ É o dos nossos amigos ou dos nossos inimigos ‑ disse Milady com o seu sangue‑frio terrível. ‑ Ficai onde estais, que eu vou dizer‑vos.

A Sr.a Bonacieux ficou em pé, muda, imóvel e pálida como uma estátua.

O ruído tornava‑se mais forte, os cavalos não podiam estar a mais de cento e cinquenta passos; se ainda não se viam era porque a estrada formava um cotovelo. Porém, o ruído tornava‑se tão distinto que se poderiam contar os cavalos pelo som sacudido das suas ferraduras.

Milady olhava com toda a atenção, só tinha a claridade suficiente para poder reconhecer quem vinha.

De repente, na curva do caminho, viu reluzir uns chapéus com galões e flutuar umas plumas; contou dois, depois cinco, depois oito cavaleiros; um deles ia bastante à frente dos outros.

Milady soltou um rugido abafado. No que vinha à frente reconheceu d'Artagnan.

‑ Oh, meu Deus! Meu Deus! ‑ exclamou a Sr.a Bonacieux. ‑ Então o que há?

‑ É o uniforme dos guardas do Sr. Cardeal. Não temos um instante a perder! ‑ exclamou Milady. ‑ Fujamos, fujamos!

‑ Sim, sim, fujamos ‑ repetiu a Sr.a Bonacieux, mas sem poder dar um passo, pregada no lugar em que estava pelo terror.

Ouviram‑se passar os cavaleiros por baixo da janela.

‑ Vinde! Vinde! ‑ exclamava Milady, tentando arrastar a jovem pelo braço. ‑ Graças ao jardim ainda podemos fugir, eu tenho a chave. Mas apressemo‑nos, daqui a cinco minutos seria demasiado tarde.

A Sr.a Bonacieux tentou andar, deu dois passos e caiu de joelhos. Milady tentou levantá‑la e levá‑la, mas não conseguiu. Neste momento ouviu‑se o carro que, ao ver os mosqueteiros, partia a galope. Depois ecoaram três ou quatro tiros.

‑ Mais uma vez, quereis vir? ‑ exclamou Milady.

‑ Oh, meu Deus, meu Deus! Bem vedes que não tenho forças; bem vedes que não posso andar, fugi sozinha.

‑ Fugir sozinha! Deixar‑vos aqui! Não, não, nunca! ‑ exclamou Milady.

De repente, um clarão lívido jorrou dos seus olhos; dando um salto, desvairada, Milady correu à mesa, deitou para dentro do copo da Sr.a Bonacieux o conteúdo do engaste dum anel que abriu com singular prontidão.

Era um pó vermelho que imediatamente se diluiu.

Depois, pegando no copo com mão firme:

‑ Bebei ‑ disse ela ‑, este vinho dar‑vos‑á forças, bebei.

E aproximou o copo dos lábios da jovem, que o bebeu maquinalmente.

‑ Ah! Não era assim que me queria vingar ‑ disse Milady, pousando o copo na mesa com um sorriso infernal. ‑ Mas, apre!, faz‑se o que se pode.

E precipitou‑se para fora do quarto.

A Sr.a Bonacieux viu‑a fugir sem a poder seguir; parecia uma dessas pessoas que sonham que as estão a perseguir e que tentam andar, mas em vão.

Passaram‑se alguns minutos, ouvia‑se um barulho horrível à porta; a Sr.a Bonacieux esperava ver reaparecer Milady a todo o instante, mas ela não reaparecia.

Por fim ouviu ranger os portões abrindo‑se, o ruído das botas ecoou nas escadas; ouvia‑se um grande murmúrio de vozes que se iam aproximando e no meio das quais lhe parecia ouvir o seu nome.

De repente deu um grito de alegria e correu à porta; reconhecera a voz de d'Artagnan.

‑ D'Artagnan! D'Artagnan! ‑ exclamou ela. ‑ Sois vós? Por aqui, por aqui.

‑ Constance! Constance! ‑ repetiu o mancebo. ‑ Onde estais? Meu Deus!

No mesmo momento, a porta da cela cedeu ao embate; vários homens precipitaram‑se no quarto; a Sr.a Bonacieux estava caída numa poltrona sem poder fazer um movimento.

D'Artagnan atirou uma pistola ainda fumegante que trazia na mão e caiu de joelhos diante da sua amante; Athos enfiou a pistola no cinto, Porthos e Aramis, que empunhavam as suas espadas meteram‑nas nas respectivas bainhas.

‑ Oh, d'Artagnan! Meu bem‑amado d'Artagnan! Finalmente vieste, não me tinhas enganado, és mesmo tu!

‑ Sim, sim, Constance! Estamos juntos!

‑ Oh! Ela bem dizia que tu não vinhas, mas eu esperava; não quis fugir. Oh! Como fiz bem, como estou feliz!

Ao ouvir a palavra ela, d'Artagnan, que se sentara tranquilamente, levantou‑se de sopetão.

‑ Ela quem? ‑ perguntou d'Artagnan.

‑ A minha companheira, aquela que por amizade me queria subtrair aos meus perseguidores; aquela que, tomando‑vos pelos guardas do cardeal, acaba de fugir.

‑ A vossa companheira! ‑ exclamou d'Artagnan, pondo‑se mais pálido que o véu branco da sua amante ‑, mas que companheira?

‑ Aquela cujo carro estava à porta, uma mulher que se diz vossa amiga, d'Artagnan, uma mulher a quem contastes tudo.

‑ O seu nome, o seu nome! ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Meu Deus! Então não sabeis o seu nome?

‑ Sim, pronunciaram‑no à minha frente. Esperai... Mas é estranho... Oh, meu Deus! Estou confusa, já não sei.

‑ A mim, meus amigos, a mim! Ela tem as mãos geladas! ‑ exclamou d'Artagnan ‑, sente‑se mal. Deus do Céu! Ela perde os sentidos!

Enquanto Porthos chamava por socorro o mais alto que podia, Aramis correu à mesa para pegar num copo de água, mas parou ao ver a horrível alteração do rosto de Athos que, de pé diante da mesa, com os cabelos eriçados, os olhos gelados de estupefacção, olhava para um dos copos e parecia entregue à mais horrível dúvida.

‑ Oh! ‑ dizia Athos. ‑ Oh, não! É impossível! Deus não permitiria semelhante crime.

‑ Água, água! ‑ gritava d'Artagnan. ‑ Água!

‑ Ó pobre mulher, pobre mulher! ‑ murmurava Athos com voz alterada.

A Sr.a Bonacieux abriu os olhos sob os beijos de d'Artagnan.

‑ Volta a si! ‑ exclamou o jovem. ‑ Oh, meu Deus! Meu Deus! Eu te dou graças!

‑ Minha senhora ‑ disse Athos ‑, minha senhora, por amor de Deus! De quem é este copo vazio?

‑ É meu, senhor... ‑ respondeu a jovem com uma voz agonizante.

‑ E quem vos serviu vinho neste copo?

‑ Foi ela.

‑ Ela quem?

‑ Ah, já me lembro ‑ disse a Sr.a Bonacieux ‑, a condessa de Winter...

Os quatro amigos deram um único grito, mas o grito de Athos dominou os outros todos.

Neste momento o rosto da Sr.a Bonacieux pôs‑se lívido, uma dor surda abateu‑a e caiu ofegante nos braços de Porthos e Aramis.

D'Artagnan agarrou as mãos de Athos com uma angústia difícil de descrever.

‑ O quê? ‑ disse ele. ‑ Tu crês... A sua voz extinguiu‑se num soluço.

‑ Creio tudo ‑ disse Athos, mordendo os lábios até fazer sangue.

‑ D'Artagnan, d'Artagnan! ‑ exclamou a Sr.a Bonacieux. ‑ Onde estás? Não me deixes, bem vês que vou morrer.

D'Artagnan largou as mãos de Athos, que ainda segurava com as suas mãos crispadas, e correu para junto dela.

O seu rosto tão belo estava muito perturbado, os seus olhos vítreos já não tinham expressão, um tremor convulsivo agitou‑lhe o corpo, o suor escorria‑lhe da testa.

‑ Por amor de Deus! Ide chamar alguém; Porthos, Aramis, pedi socorro!

‑ É inútil ‑ disse Athos ‑, inútil, para o veneno dela não há contraveneno.

‑ Sim, sim, socorro, socorro! ‑ murmurou a Sr.a Bonacieux. ‑ Socorro!

Depois, reunindo as suas forças, pegou na cabeça do jovem, contemplou‑o por um instante como se toda a sua alma lhe tivesse passado para os olhos e, com um grito soluçante, apoiou os lábios nos seus lábios.

‑ Constance! Constance! ‑ exclamou d'Artagnan.

Um suspiro escapou‑se da boca da Sr.a Bonacieux, aflorando a de d'Artagnan: era a sua alma tão casta e tão amorável que subia ao Céu.

D'Artagnan apertava um cadáver nos braços.

O jovem deu um grito e caiu ao lado da sua amante, tão pálido e tão gelado como ela.

Porthos chorou, Aramis levantou o punho para o céu, Athos fez o sinal da cruz.

Neste momento um homem apareceu à porta, quase tão pálido como os que estavam no quarto, olhou em volta e viu a Sr.a Bonacieux morta e d'Artagnan inanimado.

Aparecia no preciso instante de estupefacção que segue as grandes catástrofes.

‑ Não me tinha enganado ‑ disse ele ‑, aqui está o Sr. d'Artagnan, e vós sois os seus três amigos, Srs. Athos, Porthos e Aramis.

Aqueles cujos nomes acabavam de ser pronunciados olhavam admirados para este estranho, a todos parecia que o reconheciam.

‑ Meus senhores ‑ prosseguiu o recém‑chegado ‑, estais como eu à procura duma mulher que ‑ acrescentou com um sorriso terrível ‑, deve ter passado por aqui, pois vejo um cadáver!

Os três amigos ficaram mudos; aquela voz e aquele rosto lembravam‑lhes um homem que já tinham visto, mas não conseguiam lembrar‑se em que circunstâncias.

Os três amigos deram um grito de surpresa.

Athos levantou‑se e estendeu‑lhe a mão.

‑ Sede bem‑vindo, Milorde ‑ disse ele ‑, sois dos nossos.

‑ bem vindo, Milorde ‑ disse ele ‑, sois dos nossos.

‑ Parti cinco horas depois dela, de Portsmouth ‑ disse lorde de Winter ‑, cheguei a Bolonha três horas depois dela, em Saint‑Omer, não a encontrei por vinte minutos; enfim, em Lillers perdi‑lhe o rasto. Ia a galope; reconheci o Sr. d'Artagnan. Chamei‑vos mas não me respondestes; quis seguir‑vos, mas o meu cavalo estava muito cansado para ir tão depressa como os vossos. E, contudo, parece que, apesar da diligência que fizestes, chegastes tarde de mais!

‑ É como vedes ‑ disse Athos, mostrando a lorde de Winter a Sr.a Bonacieux morta e d'Artagnan, que Porthos e Aramis tentavam reanimar.

‑ Estão os dois mortos? ‑ perguntou friamente lorde de Winter.

‑ Felizmente não ‑ respondeu Athos ‑, o Sr. d'Artagnan está apenas desmaiado.

‑ Ah, tanto melhor! ‑ disse lorde de Winter.

Com efeito, neste momento, d'Artagnan abriu os olhos.

Arrancou‑se dos braços de Porthos e de Aramis e atirou‑se como um louco sobre o corpo da sua amante.

Athos levantou‑se, dirigiu‑se ao seu amigo lenta e solenemente, abraçou‑o com ternura e, como este soluçava, disse‑lhe com a sua voz nobre e persuasiva:

‑ Amigo, sê um homem: as mulheres choram os mortos, os homens

vingam‑nos!

‑ Oh, sim ‑ disse d'Artagnan. ‑ Sim! Se é para a vingar, estou

pronto a seguir‑te!

Athos aproveitou este momento de força que a esperança da vingança dava ao seu pobre amigo para fazer sinal a Porthos e Aramis que fossem buscar a superiora.

Os dois amigos encontraram‑na no corredor, ainda muito perturbada com tantos acontecimentos; chamou algumas religiosas que, contra todos os hábitos monásticos, se viram na presença de cinco homens.

‑ Minha senhora ‑ disse Athos, dando o braço a d'Artagnan ‑, deixamos aos vossos piedosos cuidados o corpo desta pobre mulher. Ela foi um anjo na terra antes de ser um anjo no Céu. Tratai‑a como uma das vossas irmãs, um dia voltaremos para rezar junto da sua sepultura.

D'Artagnan escondeu o rosto no peito de Athos e desatou a soluçar.

‑ Chora ‑ disse Athos ‑, chora, coração cheio de amor, de juventude e de vida! Ai de mim, quem me dera poder chorar como tu!

E arrastou o amigo, afectuoso como um pai, consolador como um padre, grande como o homem que sofreu muito.

Os cinco, seguidos pelos seus criados, segurando as rédeas dos seus cavalos, avançaram para a cidade de Béthune, cujos arredores se avistavam, e pararam diante da primeira estalagem que encontraram.

‑ Mas ‑ disse d'Artagnan ‑ não perseguimos essa mulher?

‑ Mais tarde ‑ disse Athos ‑, tenho medidas a tomar.

‑ Vai escapar‑nos ‑ continuou o jovem ‑, vai escapar‑nos, Athos, e a culpa será tua.

‑ Eu respondo por ela ‑ disse Athos.

D'Artagnan tinha tanta confiança na palavra do amigo que baixou a cabeça e entrou na estalagem sem responder.

Porthos e Aramis entreolhavam‑se, não compreendendo a segurança

de Athos.

Lorde de Winter julgava que ele falava assim para suavizar a dor de

d'Artagnan.

‑ Agora, meus senhores ‑ disse Athos, depois de se certificar de que havia cinco quartos desocupados na estalagem ‑, retiremo‑nos cada um para o seu quarto; d'Artagnan precisa de estar só para chorar e vós para dormir. Eu encarrego‑me de tudo, ficai sossegados.

‑ Contudo, parece‑me ‑ disse lorde de Winter ‑ que, se há alguma medida a tomar contra a condessa, é coisa que me diz respeito: ela é minha cunhada.

‑ E a mim também ‑ disse Athos ‑, é minha mulher. D'Artagnan estremeceu, compreendendo que Athos estava seguro

da sua vingança, pois revelava aquele segredo; Porthos e Aramis olharam um para o outro, empalidecendo. Lorde de Winter pensou que Athos estava doido.

‑ Retirai‑vos ‑ disse Athos ‑ e deixai‑me agir. Bem vedes que a coisa é comigo, na minha qualidade de marido. Apenas, d'Artagnan, se não o perdestes, entregai‑me o papel que caiu do chapéu daquele homem e que tinha escrito o nome da cidade...

‑ Ah! ‑ disse d'Artagnan. ‑ Compreendo. O nome escrito pelo seu punho...

‑ Estás a ver ‑ disse Athos ‑, há um Deus no Céu!

 

         O HOMEM DA CAPA VERMELHA

O desespero de Athos dera lugar a uma dor concentrada, que tornava ainda mais lúcidas as brilhantes faculdades de espírito deste homem.

Todo entregue a um único pensamento, a promessa que fizera e a responsabilidade que assumira, foi o último a retirar‑se para o seu quarto, pediu ao estalajadeiro que lhe arranjasse um mapa da província, debruçou‑se sobre ele, interrogou as linhas traçadas, verificou que quatro caminhos diferentes iam de Béthune a Armentières, e mandou chamar os criados.

Planchet, Grimaud, Mosqueton e Bazin apresentaram‑se e receberam as ordens claras, pontuais e graves de Athos.

Deviam partir ao nascer do Sol, no dia seguinte, e dirigir‑se a Armentières, cada um por uma estrada diferente. Planchet, o mais inteligente dos quatro, devia seguir a estrada em que desaparecera o carro sobre o qual os quatro amigos tinham atirado e que, como deveis estar lembrados, era acompanhado pelo criado de Rochefort.

Athos começou a pôr os criados em acção porque, desde que estes homens estavam ao seu serviço e ao serviço dos seus amigos reconhecera em cada um deles qualidades diferentes e essenciais.

Depois, criados que interrogam inspiram menos desconfiança que os seus amos e encontram mais simpatia nas pessoas a quem se dirigem.

Enfim, Milady conhecia os amos mas não conhecia os criados; e, pelo contrário, os criados conheciam perfeitamente Milady.

Os quatro deviam reunir‑se no dia seguinte, às onze horas, no local indicado; se tivessem descoberto o esconderijo de Milady, três ficariam de guarda e o quarto voltaria a Béthune para prevenir Athos e servir de guia aos quatro amigos.

Tomadas estas disposições, os criados retiraram‑se por sua vez. Então, Athos levantou‑se da cadeira, cingiu a espada, embrulhou‑se na capa e saiu da estalagem; eram aproximadamente dez horas. Às dez da noite, como se sabe, as ruas são pouco frequentadas na província. Contudo, Athos procurava visivelmente uma pessoa a quem pudesse fazer uma pergunta. Por fim encontrou um transeunte atrasado, aproximou‑se dele e disse‑lhe umas palavras; o homem a quem se dirigia recuou aterrado, mas respondeu às palavras do mosqueteiro com uma indicação. Athos ofereceu‑lhe meia pistola para que o acompanhasse, mas o homem recusou.

Athos embrenhou‑se na rua indicada mas, ao chegar a um cruzamento, tornou a parar, nitidamente embaraçado. Mas, como mais que qualquer outro lugar, o cruzamento oferecia‑lhe a possibilidade de encontrar alguém, parou ali. Com efeito, passado um instante, passou um guarda nocturno. Athos repetiu‑lhe a mesma pergunta que já fizera à primeira pessoa que encontrara, o guarda nocturno revelou o mesmo terror, recusou‑se por sua vez a acompanhar Athos e mostrou‑lhe o caminho a seguir.

Athos caminhou na direcção indicada e alcançou o bairro situado na extremidade da cidade oposta àquela por onde ele e os seus companheiros tinham entrado. Ali, pareceu de novo inquieto e embaraçado e parou pela terceira vez.

Felizmente passou um mendigo que se aproximou de Athos para lhe pedir esmola. Athos propôs‑lhe um escudo para o acompanhar. O mendigo hesitou um instante mas ao ver a moeda que brilhava no escuro, decidiu‑se e foi à frente de Athos.

Ao chegar à esquina, mostrou‑lhe ao longe uma casinha isolada, solitária e triste; Athos aproximou‑se enquanto o mendigo, que recebera o seu salário, se afastava a sete pés.

Athos deu a volta à casa, antes de distinguir a porta no meio da cor avermelhada da casa; nenhuma luz aparecia através das frinchas dos postigos, nenhum ruído permitia supor que a casa fosse habitada, era sombria e muda como um túmulo.

Três vezes Athos bateu sem obter resposta. Mas, à terceira, aproximaram‑se passos, por fim a porta entreabriu‑se e um homem alto, pálido, de cabelos e barba negros apareceu.

Athos e ele trocaram umas palavras em voz baixa, depois o homem de estatura elevada fez sinal ao mosqueteiro para entrar. Athos aproveitou imediatamente a permissão e a porta fechou‑se atrás dele.

O homem que Athos viera buscar tão longe e que encontrara a tanto custo fê‑lo entrar no seu laboratório, onde estava ocupado a segurar com arames os ossos soltos dum esqueleto.

Todo o corpo já estava reajustado, só a cabeça estava pousada numa mesa.

Todo o resto do mobiliário indicava que o dono da casa se ocupava de ciências naturais: havia frascos cheios de serpentes, etiquetados segundo as espécies: lagartos ressequidos brilhavam como esmeraldas lapidadas em grandes molduras de madeira escura; enfim, molhos de ervas bravias, odoríferas e sem dúvida dotadas de virtudes desconhecidas no homem comum, estavam pendurados no tecto e desciam nos cantos da sala.

De resto, não havia família nem criados; o homem de estatura elevada morava sozinho naquela casa.

Athos lançou um olhar frio e indiferente a todos os objectos que acabámos de descrever e, a convite do homem que vinha procurar, sentou‑se junto dele.

Athos explicou‑lhe o motivo da sua visita e o serviço que lhe reclamava mas, assim que expôs o seu pedido, o desconhecido, que ficara de pé diante do mosqueteiro, recuou de terror e recusou. Então Athos tirou do bolso um papelinho em que estavam escritas duas linhas acompanhadas de uma assinatura e de um selo e apresentou‑o àquele que tão prematuramente dava estes sinais de repugnância. O homem alto leu estas duas linhas, viu a assinatura, reconheceu o selo e imediatamente se inclinou, em sinal de que já não tinha nenhuma objecção a fazer e que estava pronto para obedecer.

Era o que Athos queria; levantou‑se, cumprimentou, saiu, tomou o caminho por que viera, entrou na estalagem e fechou‑se no quarto.

Ao nascer do dia, d'Artagnan entrou no quarto dele e perguntou‑lhe o que ia fazer.

‑ Esperar ‑ respondeu Athos.

Passados instantes, a superiora do convento mandou prevenir os mosqueteiros de que o enterro da vítima de Milady seria ao meio‑dia. Quanto à envenenadora, não tinham tido notícias; devia ter fugido pelo jardim, pois tinham reconhecido as suas pegadas no jardim e tinham encontrado a porta fechada; quanto à chave, desaparecera.

À hora indicada, lorde de Winter e os seus amigos dirigiram‑se ao convento: os sinos repicavam, a capela estava aberta, a grade do coro fechada. No meio do coro, o corpo da vítima, com o seu hábito de noviça, estava exposto. De cada lado do coro e por detrás das grades que davam para o convento, estava toda a comunidade das Carmelitas, escutando dali o ofício religioso e juntando o seu canto com o canto dos sacerdotes, sem ver os profanos e sem ser vista por eles.

À porta da capela, d'Artagnan sentiu que tornava a perder a coragem, virou‑se à procura de Athos, mas este tinha desaparecido.

Fiel à sua missão de vingança, Athos mandara que o conduzissem ao jardim onde, na areia, seguindo os passos ligeiros daquela mulher que deixara um rasto de sangue por toda a parte onde passara, avançou até à porta que dava para o bosque, mandou abri‑la e embrenhou‑se na floresta.

Então todas as suas suspeitas se confirmaram: o caminho em que o carro desaparecera contornava a floresta. Athos seguiu o caminho durante algum tempo com os olhos postos no chão; ligeiras manchas de sangue, provenientes dum ferimento causado no homem que acompanhava o carro como correio ou num dos cavalos, marcavam o caminho. Cerca de três quartos de légua mais adiante, a cinquenta passos de Festubert, uma mancha de sangue maior aparecia; o solo tinha sido espezinhado pelos cavalos. Entre a floresta e este local denunciador, um pouco atrás da terra remexida, encontravam‑se as mesmas pegadas que no jardim; o carro tinha parado.

Neste lugar, Milady saíra do bosque e entrara no carro.

Satisfeito com esta descoberta que confirmava todas as suas suspeitas, Athos voltou à estalagem e encontrou Planchet, que o esperava impacientemente.

Era como Athos previra.

Planchet seguira a estrada, como Athos notara as manchas, como Athos reconhecera o lugar onde os cavalos tinham parado, mas fora um pouco mais longe que Athos, de modo que, na aldeia de Festubert, enquanto tomava um copo numa estalagem, e sem precisar de fazer perguntas, soubera que na véspera, às oito e meia da noite, um homem ferido, que acompanhava uma dama que viajava numa sege da posta, fora obrigado a parar, não podendo ir mais longe. O acidente fora atribuído a uns ladrões que teriam detido a sege no bosque. O homem ficara na aldeia, a mulher trocara de cavalos e prosseguira o seu caminho.

Planchet pôs‑se à procura do postilhão que conduzira a sege e encontrou‑o. Conduzira a dama até Fromelles, e de Fromelles ela partira para Armentières. Planchet tomou um atalho, e às sete da manhã estava em Armentières.

Só havia uma estalagem, que era a da Posta. Planchet apresentou‑se como um criado à procura de emprego. Conversara dez minutos com a gente da estalagem e soube que uma mulher só chegara às onze da noite, pedira um quarto, mandara chamar o estalajadeiro e dissera‑lhe que pretendia ficar algum tempo naquela região.

Planchet não precisava de saber mais nada. Correu ao lugar marcado, encontrou os três lacaios no seu posto, pô‑los de sentinela a todas as portas da estalagem e veio ter com Athos, que acabava de receber as informações de Planchet quando os seus amigos entraram.

Todos os rostos estavam sombrios e crispados, até o doce rosto de Aramis.

‑ Que fazer? ‑ perguntou d'Artagnan.

‑ Esperar ‑ respondeu Athos.

Cada um deles se retirou para o seu quarto.

Às oito da noite, Athos deu ordem para selar os cavalos e mandou prevenir lorde de Winter e os seus amigos que deviam preparar‑se para a expedição.

Num instante os cinco estavam prontos. Cada um examinou e preparou as suas armas. Athos desceu à frente e encontrou d'Artagnan já a cavalo e impaciente.

‑ Paciência ‑ disse Athos ‑, ainda falta uma pessoa.

Os quatro cavaleiros olharam em volta admirados pois, por mais que pensassem, não sabiam quem era a pessoa que podia faltar.

Neste momento Planchet trouxe o cavalo de Athos e o mosqueteiro saltou com ligeireza para a sela.

‑ Esperai‑me que já volto ‑ disse ele. E partiu a galope.

Passado um quarto de hora voltou, acompanhado por um homem mascarado e embrulhado numa grande capa vermelha.

Lorde de Winter e os três mosqueteiros interrogaram‑se com o olhar. Nenhum deles pôde informar os outros, pois todos ignoravam quem era aquele homem. Contudo, pensaram que devia ser assim, pois fora Athos que o ordenara.

Às nove horas, guiado por Planchet, o pequeno cortejo pôs‑se a caminho, tomando a estrada que o carro seguira.

Que triste aspecto tinham estes homens correndo em silêncio e mergulhados nos seus pensamentos, soturnos como o desespero, sombrios como o castigo.

 

         O JULGAMENTO

Era uma noite tempestuosa e sombria, grandes nuvens corriam no céu, velando a claridade das estrelas; a lua só devia despontar à meia‑noite.

Por vezes, à luz dum relâmpago que brilhava no horizonte, via‑se a estrada que se desenrolava branca e solitária; depois, quando o relâmpago desaparecia, tudo voltava às trevas.

A cada instante, Athos convidava d'Artagnan, sempre â cabeça do grupo, a voltar para o seu lugar, que passado um instante tornava a abandonar; só tinha um pensamento, avançar, e avançava.

Atravessaram em silêncio a aldeia de Festubert, onde ficara o criado ferido, depois ladearam o bosque de Richebourg; ao chegarem a Herlies, Planchet, que continuava a dirigir a coluna, virou à esquerda.

Várias vezes, tanto lorde de Winter como Porthos e Aramis tinham tentado dirigir a palavra ao homem da capa vermelha, mas a cada pergunta este inclinara‑se sem responder. Então os viajantes compreenderam que havia alguma razão para que o desconhecido conservasse o silêncio e tinham deixado de lhe dirigir a palavra.

De resto a tempestade crescia, os relâmpagos sucediam‑se rapidamente, o trovão começava a rosnar, e o vento, precursor do furacão, assobiava na planície, agitando as plumas dos cavaleiros.

O cortejo pôs‑se a galope.

Um pouco além de Fromelles, a trovoada rebentou; desdobraram as capas, ainda faltavam três léguas, percorreram‑nas sob torrentes de chuva.

D'Artagnan tirara o chapéu e não se cobrira com a capa; gostava de sentir escorrer a água na testa escaldante e no corpo agitado por arrepios de febre.

No momento em que o grupo passara por Goskal e ia chegar à posta, um homem, abrigado debaixo duma árvore, afastou‑se do tronco com o qual ficara confundido no escuro e avançou até ao meio da estrada, pondo um dedo nos lábios.

Athos reconheceu Grimaud.

‑ Que há? ‑ exclamou d'Artagnan. ‑ Teria ela deixado Armentières?

Grimaud fez um sinal afirmativo com a cabeça. D'Artagnan rangeu os dentes.

‑ Silêncio, d'Artagnan! ‑ disse Athos. ‑ Fui eu que me encarreguei de tudo, e portanto sou eu que interrogo Grimaud.

‑ Onde está ela? ‑ perguntou Athos. Grimaud estendeu a mão na direcção do Lys.

‑ Longe daqui? ‑ perguntou Athos.

Grimaud apresentou a Athos o indicador dobrado.

‑ Só? ‑ perguntou Athos. Grimaud fez que sim.

‑ Meus senhores ‑ disse Athos ‑, está sozinha a meia légua daqui na direcção do rio.

‑ Está bem ‑ disse d'Artagnan. ‑ Conduz‑nos, Grimaud.

Grimaud meteu‑se através dos campos e serviu de guia ao cortejo. Cerca de quinhentos passos mais à frente encontraram um regato,

que atravessaram a vau.

À luz dum relâmpago, viram a aldeia de Erquinghem.

‑ É ali? ‑ perguntou d'Artagnan. Grimaud abanou a cabeça em sinal de negação.

‑ Silêncio! ‑ disse Athos.

E o grupo continuou o seu caminho.

Outro relâmpago brilhou; Grimaud estendeu o braço e, à luz azulada da serpente de fogo, distinguiram uma casinha isolada, na margem do rio, a cem passos do barco. Uma janela estava iluminada.

‑ Cá estamos ‑ disse Athos.

Neste momento, um homem deitado no fosso ergueu‑se; era Mosqueton, que apontou para a janela iluminada.

‑ Está ali ‑ disse ele.

‑ E Bazin? ‑ perguntou Athos.

‑ Enquanto eu guardava a floresta, ele guardava a porta.

Athos apeou‑se do cavalo e entregou as rédeas a Grimaud, e avançou para a janela, depois de ter feito sinal ao resto do grupo para ir para o lado da porta.

A casinha era rodeada por uma sebe de dois ou três pés de altura. Athos transpôs a sebe, chegou à janela sem postigos mas com as cortinas bem corridas.

Subiu o rebordo de pedra de modo a ficar com os olhos acima das cortinas.

À luz dum candeeiro, viu uma mulher embrulhada numa capa escura sentada num banquinho, perto dum lume quase apagado; tinha os cotovelos pousados numa mesa tosca e apoiava a cabeça nas mãos brancas como o marfim.

Não se podia distinguir o seu rosto, mas um sorriso sinistro passou nos lábios de Athos; não havia engano, era aquela que procurava.

Neste momento um cavalo relinchou; Milady ergueu a cabeça, viu, colado à vidraça, o rosto pálido de Athos e deu um grito.

Athos compreendeu que tinha sido reconhecido, empurrou a janela com o joelho e a mão, a janela cedeu e os vidros partiram‑se.

E Athos, qual o espectro da vingança, saltou para dentro do quarto.

Milady correu para a porta e abriu‑a; ainda mais pálido e ameaçador que Athos, d'Artagnan estava à soleira.

Milady recuou dando um grito. D'Artagnan, julgando que ela tinha maneira de fugir e receando que lhes escapasse tirou a pistola do cinto, mas Athos ergueu a mão.

‑ Põe a arma no lugar, d'Artagnan ‑ disse ele. ‑ Importa que esta mulher seja julgada e não assassinada. Espera mais um instante, d'Artagnan, e ficarás satisfeito. Entrai, meus senhores.

D'Artagnan obedeceu, pois Athos tinha a voz solene e o gesto poderoso dum juiz enviado pelo próprio Deus. Assim, atrás de d'Artagnan, entraram Porthos, Aramis, lorde de Winter e o homem da capa vermelha.

Os quatro criados guardavam a porta e a janela.

Milady tinha caído na cadeira com as mãos estendidas, como para esconjurar esta terrível aparição; ao ver o cunhado, deu um grito terrível.

‑ Quem procurais? ‑ exclamou Milady.

‑ Procuramos ‑ disse Athos ‑ Charlotte Backson, que primeiro se chamou condessa de La Fere, depois lady de Winter, baronesa de Scheffield.

‑ Sou eu, sou eu! ‑ murmurou ela no auge do terror. ‑ Que quereis de mim?

‑ Queremos julgar‑vos pelos vossos crimes ‑ disse Athos. ‑ Podereis defender‑vos, justificar‑vos se podeis. Sr. d'Artagnan, acusai primeiro.

D'Artagnan avançou.

‑ Diante de Deus e dos homens ‑ disse ele ‑, acuso esta mulher de ter assassinado Constance Bonacieux, falecida ontem à noite.

Virou‑se para Porthos e Aramis.

‑ Nós confirmamos ‑ disseram com um único movimento os dois mosqueteiros.

D'Artagnan continuou:

‑ Diante de Deus e dos homens, acuso esta mulher de me ter querido envenenar a mim próprio, com o vinho que me enviara de Villeroy, acompanhado de uma carta falsa, como se o vinho proviesse dos meus amigos; Deus salvou‑me, mas no meu lugar morreu um homem chamado Brisemont.

‑ Confirmamos ‑ disseram em uníssono Porthos e Aramis.

‑ Diante de Deus e dos homens, acuso esta mulher de me ter levado a assassinar o barão de Wardes; e, como não está aqui ninguém para confirmar esta acusação, eu confirmo. Tenho dito.

E d'Artagnan foi para o outro canto da sala com Porthos e Aramis.

‑ Vós, Milorde! ‑ disse Athos.

O barão aproximou‑se por sua vez.

‑ Diante de Deus e dos homens ‑ disse ele ‑, acuso esta mulher de ter mandado assassinar o duque de Buckingham.

‑ O duque de Buckingham assassinado? ‑ disseram com um grito todos os assistentes.

‑ Sim ‑ disse o barão ‑, assassinado! graças à carta de advertência que me tínheis escrito, eu mandara prender esta mulher e confiara a sua guarda a um leal servidor; ela corrompeu esse homem, pôs‑lhe o punhal na mão, fê‑lo matar o duque, e talvez neste momento Felton esteja a pagar com a própria vida o crime desta fúria.

Um arrepio correu entre os juízes ao ouvirem a revelação dos crimes ainda desconhecidos.

‑ Não é tudo ‑ continuou lorde de Winter. ‑ Meu irmão, que vos fez sua herdeira, morreu em três horas duma estranha doença que deixa manchas lívidas por todo o corpo. Minha irmã, como morreu vosso marido?

‑ Que horror! ‑ exclamaram Porthos e Aramis.

‑ Assassina de Buckingham, assassina de Felton, assassina de meu irmão, peço justiça contra vós e declaro que, se não a fizerem, eu a farei.

E lorde de Winter foi pôr‑se ao lado de d'Artagnan, cedendo o lugar a outro acusador.

Milady enterrou o rosto nas mãos e tentou esclarecer as suas ideias confundidas por uma vertigem mortal.

‑ É a minha vez ‑ disse Athos, também a tremer como o leão treme ao ver a serpente ‑, é a minha vez. Eu casei‑me com esta mulher quando ela era uma jovem, casei‑me com ela contra a vontade da minha família inteira; dei‑lhe o que tinha, dei‑lhe o meu nome; e um dia apercebi‑me de que esta mulher estava marcada com uma flor‑de‑lis no ombro esquerdo.

‑ Oh! ‑ disse Milady, erguendo‑se. ‑ Desafio‑vos a encontrar o tribunal que pronunciou essa sentença infame contra mim.

Desafio‑vos a encontrar aquele que a executou.

‑ Silêncio ‑ disse uma voz. ‑ Sou eu que respondo!

E o homem da capa vermelha aproximou‑se por sua vez.

‑ Quem é este homem? Quem é este homem? ‑ exclamou Milady, sufocada de terror; os seus cabelos soltaram‑se e eriçaram‑se na cabeça lívida como se estivessem vivos.

Todos os olhares se voltaram para este homem, pois era desconhecido para todos, excepto para Athos.

Mesmo assim, Athos fitava‑o com tanta estupefacção como os outros, pois ignorava como é que ele podia estar implicado no horrível drama que nesse momento se desenrolava.

Depois de se ter aproximado de Milady, com passo lento e solene, de modo que só a mesa o separasse dela, o desconhecido tirou a máscara.

Milady fitou durante algum tempo com um terror crescente este rosto pálido, emoldurado por cabelos e suíças negros, cuja única expressão era uma impassibilidade glacial, depois de repente:

‑ Oh, não, não! ‑ disse ela, levantando‑se e recuando até à parede. ‑ Não, não! É uma aparição infernal! Não é ele! A mim, a mim! ‑ exclamou com voz rouca, virando‑se para a parede como se pudesse abrir uma passagem com as mãos.

‑ Mas quem sois vós? ‑ exclamaram todas as testemunhas desta cena.

‑ Perguntai a esta mulher ‑ disse o homem da capa vermelha ‑, pois, como vedes, ela reconheceu‑me.

‑ O carrasco de Lille, o carrasco de Lille! ‑ exclamou Milady, entre gue a um terror insane e fincando as mãos na parede para não cair.

Toda a gente se afastou, e o homem da capa vermelha ficou só no meio da sala.

‑ Oh, piedade, piedade! Perdão! ‑ exclamou a miserável, caindo de joelhos.

O desconhecido deixou o silêncio restabelecer‑se.

‑ Eu bem dizia que ela me tinha reconhecido! ‑ tornou ele. ‑ Sim, sou o carrasco de Lille, e eis a minha história.

Todos os olhos estavam pregados neste homem, cujas palavras eram aguardadas com ávida ansiedade.

‑ Esta jovem dama era antigamente uma rapariga tão bela como hoje. Era religiosa no convento das Beneditinas de Templemar. Um jovem padre de coração simples e crédulo oficiava na igreja desse convento; ela resolveu seduzi‑lo. Teria seduzido um santo.

«Os votos de ambos eram sagrados, irrevogáveis; a sua ligação não podia durar muito sem os perder. Ela conseguiu convencê‑lo a abando narem aquela terra, mas, para isso, para fugirem juntos, para alcançarem outra parte da França onde pudessem viver tranquilos por serem desconhecidos, era preciso dinheiro; nem um nem o outro tinham dinheiro. O padre roubou os vasos sagrados e vendeu‑os; mas, quando se preparavam para fugir juntos, foram presos.

«Oito dias depois, ela tinha seduzido o filho do carcereiro e tinha fugido. O jovem padre foi condenado a dez anos de prisão e a ser marcado. Eu era o carrasco da cidade de Lille, como diz esta mulher. Fui obrigado a marcar o culpado, e o culpado, meus senhores, era meu irmão!

«Então jurei que essa mulher que o tinha perdido, que era mais do que a sua cúmplice pois tinha‑o levado ao crime, ao menos partilharia o seu castigo. Suspeitei do lugar onde estava escondida, persegui‑a, encontrei‑a, amarrei‑a e imprimi‑lhe a mesma marca que tinha imprimido a meu irmão.

«Um dia depois de eu regressar a Lille, meu irmão conseguiu escapar‑se por sua vez, e eu fui acusado de cumplicidade e condenado a ficar na cadeia no lugar dele enquanto não se constituísse prisioneiro. Meu pobre irmão ignorava esta sentença; tinha alcançado aquela mulher e tinham fugido juntos para o Berry, onde ele obtivera uma pequena paróquia. A mulher passava por ser sua irmã.

«O senhor das terras em que estava situada a igreja viu esta pretensa irmã e enamorou‑se dela a ponto de lhe propor casamento. Então ela trocou o homem que tinha perdido por aquele que devia perder e tornou‑se condessa de La Fere...

Todos os olhos se voltaram para Athos, pois era esse o seu verdadeiro nome, e ele fez sinal que tudo o que o carrasco tinha dito era verdade.

‑ Então ‑ continuou este ‑, louco, desesperado, decidindo desembaraçar‑se duma existência à qual ela tinha roubado tudo, honra e felicidade, meu pobre irmão voltou a Lille e, ao saber da sentença que me condenara no lugar dele, constituiu‑se prisioneiro e enforcou‑se no respiradouro da sua cela.

«De resto, há que fazer‑lhes justiça, os que me tinham condenado cumpriram a sua palavra. Assim que constataram a identidade do cadáver, devolveram‑me a liberdade.

«Eis o crime de que eu a acuso, eis a razão por que a marquei.

‑ Sr. d'Artagnan ‑ disse Athos ‑, qual é a pena que reclamais para esta mulher?

‑ A pena de morte ‑ respondeu d'Artagnan.

‑ Milorde de Winter ‑ continuou Athos ‑, qual é a pena que reclamais para esta mulher?

‑ A pena de morte ‑ retorquiu lorde de Winter.

‑ Senhores Porthos e Aramis ‑ continuou Athos ‑, vós que sois os seus juízes, que pena aplicais a esta mulher?

‑ A pena de morte ‑ responderam com voz surda os dois mosqueteiros.

Milady soltou um grito horrível e deu alguns passos na direcção dos seus juízes, arrastando‑se de joelhos. Athos estendeu a mão para ela.

‑ Anne de Breuil, condessa de La Fere, milady de Winter ‑ disse ele ‑, os vossos crimes cansaram os homens na Terra e Deus no Céu. Se sabeis alguma oração, dizei‑a, pois fostes condenada e ides morrer.

Ao ouvir estas palavras que não lhe permitiam nenhuma esperança, Milady ergueu‑se o mais que pôde, quis falar, mas não teve forças; sentiu que uma mão poderosa e implacável a agarrava pelos cabelos e a arrastava tão irrevogavelmente como a fatalidade arrasta o homem, nem sequer tentou oferecer resistência, e saiu da choupana.

Lorde de Winter, d'Artagnan, Athos, Porthos e Aramis saíram atrás dela. Os criados seguiram os seus amos, e a sala ficou solitária com a sua janela partida, a sua porta aberta e o seu candeeiro enegrecido que ardia tristemente em cima da mesa.

 

         A EXECUÇÃO

Era quase meia‑noite; a Lua, afilada em minguante e ensanguentada pelos últimos vestígios da tempestade, despontava atrás da pequena cidade de Armentières, que destacava na sua claridade lívida a silhueta escura das suas casas e o esqueleto do seu alto campanário recortado a contra luz. À frente, o Lys rolava as suas águas semelhantes a um rio de estanho fundido, enquanto na outra margem se via a massa negra das árvores perfilar‑se num céu tempestuoso invadido por grandes nuvens acobreadas que formavam uma espécie de crepúsculo no seio da noite. À esquerda erguia‑se um velho moinho abandonado, de asas imóveis, nas ruínas do qual uma coruja fazia ouvir o seu grito agudo, periódico e monótono. Aqui e ali na planície, à direita e à esquerda do caminho que o lúgubre cortejo seguia, surgiam algumas árvores baixas e entroncadas que pareciam anões disformes acocorados à espreita dos homens àquela hora sinistra.

De tempos a tempos, um grande relâmpago rasgava o horizonte de ponta a ponta, serpenteava por sobre a massa negra das árvores e vinha cortar o céu e a água em duas partes como uma horrível cimitarra. Nem uma aragem passava na atmosfera pesada. Um silêncio de morte esmagava toda a natureza; o solo estava húmido e escorregadio por causa da chuva que acabava de cair, e as ervas reanimadas emanavam o seu odor com mais energia.

Dois criados seguravam o braço de Milady e arrastavam‑na; o carrasco ia atrás, lorde de Winter, d'Artagnan, Athos, Porthos e Aramis caminhavam atrás do carrasco.

Planchet e Bazin eram os últimos da fila.

Os dois criados conduziam Milady para o rio. Ia muda mas os seus olhos falavam com a sua inexprimível eloquência, suplicando a cada um que fitava.

Como ia alguns passos à frente, disse aos criados:

‑ Mil pistolas para cada um se protegerdes a minha fuga. Mas, se me entregardes aos vossos amos, tenho aqui perto uns vingadores que vos farão pagar cara a minha morte.

Grimaud hesitava. Mousqueton estava todo a tremer.

Athos, que ouvira a voz de Milady, aproximou‑se rapidamente, e lorde de Winter fez o mesmo.

‑ Mandai embora estes criados ‑ disse ele ‑, ela falou‑lhes e já não são seguros.

Chamaram Planchet e Bazin, que tomaram o lugar de Grimaud e de Mousqueton.

Ao chegarem à beira d'água, o carrasco aproximou‑se de Milady e amarrou‑lhe os pés e as mãos.

Então ela rasgou o silêncio para gritar:

‑ Sois uns cobardes, sois uns miseráveis assassinos. Juntais‑vos dez para degolar uma mulher. Tomai cautela, se não for socorrida, serei vingada.

‑ Vós não sois uma mulher ‑ disse friamente Athos ‑, não pertenceis à espécie humana, sois um demónio que escapou do inferno e que nós vamos devolver ao sítio donde veio.

‑ Ah, senhores virtuosos! ‑ disse Milady. ‑ Prestai atenção, pois aquele que tocar num cabelo da minha cabeça será por sua vez um assassino.

‑ O carrasco pode matar sem ser um assassino, minha senhora ‑ disse o homem da capa vermelha, batendo na sua espada. ‑ É o último juiz e nada mais: Nachrichter, como dizem os nossos vizinhos alemães.

E, como a amarrava enquanto dizia estas palavras, Milady deu dois ou três gritos selváticos, que produziram um efeito sombrio e estranho, voando na noite e perdendo‑se nas profundezas do bosque.

‑ Mas se eu sou culpada, se cometi os crimes de que me acusais ‑ gritava Milady ‑, conduzi‑me diante dum tribunal; vós não sois juizes para me condenar.

‑ Eu tinha‑vos proposto Tyburn ‑ disse lorde de Winter ‑, por que não quisestes?

‑ Porque não quero morrer! ‑ exclamou Milady, debatendo‑se. ‑ Porque sou muito nova para morrer!

‑ A mulher que envenenastes em Béthune era ainda mais jovem que vós, minha senhora, e contudo está morta ‑ disse d'Artagnan.

‑ Entrarei para um convento, far‑me‑ei religiosa ‑ disse Milady.

‑ Estáveis num convento ‑ disse o carrasco ‑, e saístes para perder meu irmão.

Milady deu um grito de pavor e caiu de joelhos. O carrasco levantou‑a e quis levá‑la para o barco.

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou ela. ‑ Meu Deus! Ides afogar‑me! Estes gritos tinham algo de tão dilacerante que d'Artagnan, que a

princípio era o mais encarniçado na perseguição de Milady, se foi sentar em cima dum tronco e inclinou a cabeça, tapando os ouvidos com as mãos. Porém, apesar disso, ainda ouvia ameaçar e gritar.

D'Artagnan era o mais novo de todos e faltou‑lhe a coragem.

‑ Oh, não posso ver este horrível espectáculo! Não posso consentir que esta mulher morra assim!

Milady ouvira estas palavras e agarrara‑se a uma luzinha de esperança.

‑ D'Artagnan, d'Artagnan! ‑ gritou ela. ‑ Lembra‑te de que eu te amei!

O rapaz levantou‑se e deu um passo na direcção dela. Mas, bruscamente, Athos tirou a espada e atravessou‑se no caminho.

‑ Se fizerdes mais um passo, d'Artagnan ‑ disse ele ‑, cruzaremos as espadas.

D'Artagnan caiu de joelhos e orou.

‑ Vamos ‑ continuou Athos ‑, cumpre o teu dever, carrasco.

‑ De bom grado, Monsenhor ‑ disse o carrasco ‑, pois, se é certo que sou um bom católico, creio firmemente que sou justo ao cumprir a minha missão com esta mulher.

‑ Está bem.

Athos deu um passo na direcção de Milady.

‑ Eu perdoo‑vos ‑ disse ele ‑ o mal que me fizestes; perdoo‑vos o meu futuro desfeito, o meu amor maculado e a minha salvação comprometida para sempre pelo desespero em que me lançastes. Morrei em paz.

Lorde de Winter avançou por sua vez.

‑ Perdoo‑vos ‑ disse ele ‑ o envenenamento de meu irmão, o assassínio de Sua Graça lorde Buckingham; perdoo‑vos a morte do pobre Felton, perdoo‑vos as vossas tentativas com a minha pessoa. Morrei em paz.

‑ E eu ‑ disse d'Artagnan ‑, perdoai‑me, minha senhora, por ter provocado a vossa cólera com uma astúcia indigna dum gentil‑homem; e, em troca, eu vos perdoo o assassínio da minha pobre amiga e as vossas vinganças cruéis para mim, perdoo‑vos e choro por vós. Morrei em paz.

‑ I am lost! ‑ murmurou em inglês Milady. ‑ I must die.

Então levantou‑se sozinha, lançou em seu redor um daqueles olhares

claros que pareciam brotar dum olho de chamas. Não viu nada. Escutou e não ouviu nada. À sua volta só tinha inimigos.

‑ Onde vou morrer? ‑ perguntou.

‑ Na outra margem ‑ respondeu o carrasco.

Então fê‑la entrar no barco e, quando ia pôr o pé lá dentro, Athos entregou‑lhe uma quantia de dinheiro.

‑ Eis o preço da execução ‑ disse ele ‑, e que se veja que agimos como juízes.

‑ Está bem ‑ disse o carrasco ‑, e que agora, por sua vez, esta mulher saiba que não faço o meu ofício, mas cumpro o meu dever.

E atirou o dinheiro para o rio.

O barco afastou‑se para a margem esquerda do Lys, levando a culpada e o executor; todos os outros ficaram na margem direita, onde tinham caído de joelhos.

O barco deslizava lentamente ao longo da corda, sob o reflexo duma nuvem pálida que naquele momento passava sobre a água.

Viram‑no chegar à outra margem; os personagens desenhavam‑se a negro no horizonte avermelhado.

Durante o trajecto, Milady conseguira soltar a corda que lhe amarrava os pés; ao chegar à outra margem, saltou ligeira e desatou a fugir.

Mas o solo estava húmido; ao chegar ao alto do talude, escorregou e caiu.

Teve certamente uma ideia supersticiosa; compreendeu que o Céu lhe recusava o seu socorro e ficou na atitude em que estava, de cabeça inclinada e mãos juntas.

Então, da margem, viram o carrasco erguer lentamente os braços; um raio de luar reflectiu‑se na lâmina da sua larga espada; os dois braços caíram; ouviu‑se o assobio da cimitarra e o grito da vítima, depois uma massa truncada abateu‑se sob o golpe.

Então o carrasco soltou a sua capa vermelha e estendeu‑a no chão, deitou o corpo em cima da capa e atirou a cabeça para o lado do corpo, atou as quatro pontas e voltou ao barco.

Ao chegar ao meio do Lys, parou o barco e suspendeu o seu fardo sobre o rio:

‑ Deixai passar a justiça de Deus! ‑ gritou bem alto.

E deixou cair o cadáver no fundo da água, que se fechou sobre ele.

Três dias depois os quatro mosqueteiros voltaram a Paris; estavam nos limites da sua folga, e na mesma noite foram fazer a sua visita habitual ao Sr. de Tréville.

‑ Então, meus senhores ‑ perguntou‑lhes o bravo capitão ‑, divertistes‑vos muito na vossa excursão?

‑ Prodigiosamente ‑ respondeu Athos, cerrando os dentes.

 

         CONCLUSÃO

No dia 6 do mês seguinte, o rei, mantendo a promessa que fizera ao cardeal de deixar Paris e voltar a La Rochelle, saiu da capital, ainda aturdido com a notícia que ali se acabava de espalhar do recente assassínio de Buckingham.

Embora prevenida de que o homem que tanto amara corria perigo, a rainha, quando lhe anunciaram esta morte, não quis acreditar; chegou até a gritar imprudentemente:

‑ É falso! Ele acaba de me escrever.

Mas, no dia seguinte, teve de acreditar na fatal notícia; La Porte, retido em Inglaterra como toda a gente por ordem do rei Carlos I, chegou com o último e fúnebre presente que Buckingham enviava à rainha.

Grande fora a alegria do rei; não se deu ao trabalho de a dissimular e até a exibiu diante da rainha. Como todos os corações fracos, Luís XIII era pouco generoso.

Mas, em breve, o rei ficou sombrio e indisposto; a sua fronte não era das que se desanuviam por muito tempo; sentia que, ao voltar ao acampamento, ia retomar a sua escravidão, e contudo voltava.

O cardeal era para ele a serpente fascinante e ele era a ave que esvoaça de ramo em ramo sem conseguir escapar‑lhe.

Assim, o regresso a La Rochelle era profundamente triste. Os nossos quatro amigos, sobretudo, eram um motivo de espanto para os seus camaradas; viajavam juntos, lado a lado, de olhar sombrio e cabeça baixa. Só Athos erguia de vez em quando a ampla fronte; um lampejo brilhava‑lhe nos olhos, um sorriso amargo passava‑lhe pelos lábios, depois, como os seus camaradas, voltava a mergulhar nas suas divagações.

Logo que a escolta chegou a uma cidade e que conduziram o rei às suas acomodações, os quatro amigos retiravam‑se ou para os seus aposentos ou para alguma taberna afastada, onde não jogavam nem bebiam; apenas falavam em voz baixa, verificando com atenção se ninguém os escutava.

Um dia em que o rei fizera uma paragem na estrada para «voler la pie» e que os quatro amigos, como de costume, em vez de seguirem a caçada, tinham parado numa taberna na estrada,‑um homem, vindo de La Rochelle a toda a brida, parou à porta para tomar um copo de vinho e mergulhou o olhar no interior da sala onde os quatro mosqueteiros estavam sentados a uma mesa.

‑ Olá, Sr. d'Artagnan! ‑ disse ele. ‑ Não sois vós que vejo ali?

D'Artagnan ergueu a cabeça e deu um grito de alegria. Este homem, a quem chamava o seu fantasma, era o seu desconhecido de Meung, da Rua dos Fossoyeurs e de Arras.

D'Artagnan puxou da espada e correu à porta.

Mas agora, em vez de fugir, o desconhecido apeou‑se do cavalo e avançou ao encontro de d'Artagnan.

‑ Ah, senhor! ‑ disse o rapaz. ‑ Finalmente vos encontro; desta vez não me escapareis.

‑ Também não tenho essa intenção, senhor, pois desta vez andava à vossa procura. Em nome do rei, estais preso e tendes de entregar‑me a vossa espada, senhor, sem resistência. Aviso‑vos que está em jogo a vossa vida.

‑ Quem sois vós? ‑ perguntou d'Artagnan, baixando a espada mas sem a entregar.

‑ Sou o cavaleiro de Rochefort ‑ respondeu o desconhecido ‑, escudeiro do Sr. Cardeal de Richelieu, e tenho ordens de vos levar a Sua Eminência.

‑ Nós vamos ter com Sua Eminência, Sr. Cavaleiro ‑ disse Athos, avançando ‑, e vós aceitareis a palavra do Sr. d'Artagnan, que vai direito a La Rochelle.

‑ Devo pô‑lo nas mãos dos guardas que o conduzirão ao acampamento.

‑ Nós servimos‑lhe de guardas, senhor, palavra de gentil‑homens. Mas também, palavra de gentil‑homens ‑ acrescentou Athos, franzindo o sobrolho ‑, o Sr. d'Artagnan não nos deixará.

O cavaleiro de Rochefort olhou para trás e viu que Porthos e Aramis se tinham colocado entre ele e a porta; compreendeu que estava à inteira disposição dos quatro homens.

‑ Meus senhores ‑ disse ele ‑, se o Sr. d'Artagnan quiser entregar‑me a sua espada e juntar a sua palavra à vossa, contentar‑me‑ei com a vossa palavra de que conduzireis o Sr. d'Artagnan ao quartel do Sr. Cardeal.

‑ Dou‑vos a minha palavra, senhor ‑ disse d'Artagnan ‑, e aqui tendes a minha espada.

‑ Ainda bem ‑ acrescentou Rochefort ‑, pois tenho de prosseguir viagem.

‑ Se é para ir ter com Milady ‑ disse friamente Athos ‑, não vale a pena, pois não a encontrareis.

‑ Que lhe aconteceu? ‑ perguntou vivamente Rochefort.

‑ Voltai ao acampamento e sabereis.

Rochefort ficou pensativo por um instante, depois, como estava apenas a meio dia de Surgères, onde o cardeal devia vir ao encontro do rei, resolveu seguir o conselho de Athos e regressar com eles.

Aliás, este regresso oferecia‑lhe uma vantagem: vigiar pessoalmente o seu prisioneiro.

Puseram‑se a caminho.

No dia seguinte, às três da tarde, chegaram a Surgères. O cardeal esperava Luís XIII. O ministro e o rei trocaram cumprimentos afectuosos, congratularam‑se pelo feliz acaso que livrara a França do inimigo encarniçado que amotinava a Europa contra ela. Depois, o cardeal, que fora prevenido por Rochefort de que d'Artagnan tinha sido preso, e que tinha pressa de voltar a vê‑lo, despediu‑se do rei, convidando‑o para ir visitar no dia seguinte as obras do dique, que estavam concluídas.

Ao voltar à noite ao seu quartel da ponte de La Pierre, o cardeal encontrou de pé, à porta da casa que habitava, d'Artagnan sem espada e os três mosqueteiros armados.

Desta vez, como se sentia forte, fitou‑os severamente e fez sinal a d'Artagnan que o seguisse.

D'Artagnan obedeceu.

‑ Nós esperamos‑te, d'Artagnan ‑ disse Athos para o cardeal ouvir.

Sua Eminência franziu o sobrolho, parou um instante, depois continuou a andar sem pronunciar uma palavra.

D'Artagnan entrou atrás do cardeal, e Rochefort atrás de d'Artagnan; a porta ficou guardada.

Sua Eminência dirigiu‑se ao quarto que lhe servia de gabinete, e fez sinal a Rochefort que mandasse entrar o jovem mosqueteiro.

Rochefort obedeceu e retirou‑se.

D'Artagnan ficou só diante do cardeal; era a sua segunda entrevista com Richelieu, e mais tarde confessou que estava convencido de que seria a última.

Richelieu ficou de pé, encostado à lareira, separado de d'Artagnan por uma mesa.

‑ Senhor ‑ disse o cardeal ‑, fostes preso por minha ordem.

‑ Assim me disseram, Monsenhor.

‑ Sabeis porquê?

‑ Não, Monsenhor, pois a única coisa pela qual poderia ser preso ainda é desconhecida para Sua Eminência.

Richelieu olhou fixamente para o rapaz.

‑ Oh! Oh! ‑ disse ele. ‑ Que quer isto dizer?

‑ Se Monsenhor se dignar dizer‑me primeiro os crimes que me imputam, depois lhe direi os factos que realizei.

‑ Imputam‑vos crimes que fizeram cair cabeças mais altas que a vossa, senhor! ‑ disse o cardeal.

‑ Quais, senhor? ‑ disse d'Artagnan com uma calma que admirou o próprio cardeal.

‑ Imputam‑vos o facto de vos terdes correspondido com os inimigos do reino, de terdes surpreendido os segredos do Estado, de terdes tentado fazer abortar os planos do vosso general.

‑ E quem me imputa, Monsenhor? ‑ disse d'Artagnan, que desconfiava que a acusação fora feita por Milady. ‑ Uma mulher marcada pela justiça do país, uma mulher que se casou com um homem em França e com outro na Inglaterra, uma mulher que envenenou o segundo marido e que me tentou envenenar a mim próprio!

‑ Que dizeis, senhor? ‑ exclamou o cardeal espantado. ‑ E que mulher é essa?

‑ Milady de Winter ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Sim, Milady de Winter, cujos crimes Sua Eminência ignorava certamente quando ela conquistou a sua confiança.

‑ Senhor ‑ disse o cardeal ‑, se Milady cometeu os crimes que dizeis, será castigada.

‑ Já foi, Monsenhor.

‑ E quem a castigou?

‑ Nós.

‑ Está na prisão?

‑ Está morta.

‑ Morta! ‑ repetiu o cardeal, que não podia acreditar no que ouvia. ‑ Morta! Dissestes que estava morta?

‑ Tentou matar‑me três vezes e eu perdoei‑lhe; mas matou a mulher que eu amava. Então, os meus amigos e eu apanhámo‑la, julgámo‑la e condenámo‑la.

Então d'Artagnan contou o envenenamento da Sr.a Bonacieux no convento das Carmelitas de Béthune, o julgamento da casa isolada e a execução nas margens do Lys.

Um arrepio percorreu o corpo do cardeal, que contudo não se arrepiava facilmente.

Mas de repente, como se sofresse a influência dum pensamento mudo, a fisionomia do cardeal, até então sombria, desanuviou‑se a pouco e pouco e chegou à mais perfeita serenidade.

‑ Então ‑ disse ele com uma voz cuja doçura contrastava com a severidade das suas palavras ‑, vós constituíste‑vos juízes sem pensar que os que não têm a missão de punir e punem são assassinos!

‑ Monsenhor, juro‑vos que nem por um instante tive a intenção de me defender de vós. Suportarei o castigo que Vossa Eminência me quiser infligir. Não tenho grande apego à vida para recear da morte.

‑ Sim, eu sei, sois um homem de coragem, senhor ‑ disse o cardeal com voz quase afectuosa. ‑ Posso, pois, dizer‑vos desde já que sereis julgado e até condenado.

‑ Um outro poderia responder a Vossa Eminência que tem o seu perdão no bolso; eu contento‑me em dizer: Ordenai, Monsenhor, estou pronto.

‑ O vosso perdão? ‑ disse Richelieu surpreendido.

‑ Sim, Monsenhor ‑ disse d'Artagnan.

‑ E assinado por quem? Pelo rei?

E o cardeal pronunciou estas palavras com uma singular expressão de desprezo.

‑ Não, por Vossa Eminência.

‑ Por mim? Estais louco, senhor?

‑ Monsenhor certamente reconhecerá a sua letra.

E d'Artagnan apresentou ao cardeal o precioso papel que Athos arrancara a Milady e que dera a d'Artagnan para lhe servir de salvaguarda.

Sua Eminência pegou no papel e leu com voz lenta e martelando as

sílabas:

 

Foi por minha ordem e para bem do Estado que o portador desta carta fez o que fez.

No acampamento diante de La Rochelle, 5 de Agosto de 1628.

               RICHELIEU.

 

Depois de ler estas duas linhas, o cardeal mergulhou numa divagação profunda, mas não entregou o papel a d'Artagnan.

«Medita no género de suplício que me matará», pensou d'Artagnan. «Pois bem! Palavra que verá como morre um gentil‑homem!»

O jovem mosqueteiro estava muito disposto a morrer heroicamente. Richelieu continuava a pensar, enrolando e desenrolando o papel nas mãos. Por fim ergueu a cabeça, pôs o seu olhar de águia nesta fisionomia leal, aberta, inteligente, leu naquele rosto sulcado de lágrimas todos os sofrimentos que suportara desde há um mês e pensou pela terceira ou quarta vez como aquela criança de vinte e um anos tinha futuro e que recursos a sua actividade, a sua coragem e o seu espírito podiam oferecer a um bom senhor.

Por outro lado, os crimes, o poder, o génio infernal de Milady mais de uma vez o tinham apavorado. Sentia como que uma alegria secreta por se ter desembaraçado para sempre daquele cúmplice tão perigoso.

Rasgou lentamente o papel que tão generosamente lhe tinha entregado d'Artagnan.

‑ Estou perdido ‑ pensou d'Artagnan.

E inclinou‑se profundamente diante do cardeal como quem diz: «Faça‑se a vossa vontade, senhor!»

O cardeal aproximou‑se da mesa e, sem se sentar, escreveu umas palavras num pergaminho que já tinha dois terços preenchidos e imprimiu‑lhe o seu selo.

«Isto é a minha condenação», disse d'Artagnan, «ele poupa‑me a maçada da Bastilha e as demoras dum julgamento. É muito amável da parte dele.»

‑ Aqui tendes, senhor ‑ disse o cardeal ao jovem ‑, recebi de vós uma assinatura em branco e dou‑vos outra. Falta‑lhe o nome; vós mesmo o escrevereis.

D'Artagnan, hesitante, pegou no papel e lançou‑lhe os olhos. Era uma tenência nos mosqueteiros. D'Artagnan caiu aos pés do cardeal.

‑ Monsenhor ‑ disse ele ‑, a minha vida está nas vossas mãos, podeis dispor dela daqui em diante, mas não mereço o favor que me concedeis. Tenho três amigos mais merecedores e mais dignos...

‑ Sois um valente rapaz, d'Artagnan ‑ interrompeu o cardeal, dando‑lhe uma palmadinha no ombro, encantado por ter vencido aquela natureza rebelde. ‑ Fazei dessa carta o que quiserdes. Lembrai‑vos apenas que, embora o nome esteja em branco, é a vós que eu a dou.

‑ Nunca esquecerei ‑ respondeu d'Artagnan ‑, Vossa Eminência pode estar certa.

O cardeal voltou‑se e disse em voz alta:

‑ Rochefort!

O cavaleiro, que devia estar atrás da porta, entrou logo.

‑ Rochefort ‑ disse o cardeal ‑, vedes o Sr. d'Artagnan; recebo‑o entre os meus amigos, portanto abracem‑se e portem‑se bem se têm amor à vida.

Rochefort e d'Artagnan abraçaram‑se, mas o cardeal observava‑os vigilante.

Saíram ao mesmo tempo.

- Voltaremos a ver‑nos, não é, senhor?

‑ Quando quiserdes ‑ disse d'Artagnan.

‑ Há‑de surgir ocasião ‑ respondeu Rochefort.

‑ Ha? ‑ perguntou Richelieu, abrindo a porta.

Os dois homens sorriram, apertaram a mão um ao outro e cumprimentaram Sua Eminência.

‑ Começávamos a ficar impacientes ‑ disse Athos.

‑ Cá estou eu, meus amigos! ‑ respondeu d'Artagnan. ‑ Não só livre mas também em favor!

‑ Que história é essa?

‑ Até logo à noite.

Com efeito, nessa mesma noite, d'Artagnan foi aos aposentos de Athos, que encontrou a esvaziar uma garrafa de vinho de Espanha, ocupação a que se dedicava religiosamente todas as noites.

Contou‑lhe o que se passara entre o cardeal e ele e, tirando a carta do bolso:

‑ Aqui tendes, meu caro Athos ‑ disse ‑, naturalmente é vossa. Athos sorriu com o seu sorriso doce e encantador.

‑ Amigo ‑ disse ele ‑, para Athos é de mais; para o conde de La Fere é muito pouco. Guardai essa carta, que é vossa. Infelizmente, meu Deus, custou‑vos muito caro!

D'Artagnan saiu do quarto de Athos e entrou no de Porthos. Encontrou‑o envergando uma magnífica casaca, coberta de esplêndidos bordados, e mirando‑se num espelho.

‑ Ah, ah! ‑ disse Porthos. ‑ Sois vós, caro amigo. Que tal me fica esta roupa?

‑ Muito bem ‑ disse d'Artagnan ‑, mas eu venho propor‑vos uma casaca que ainda vos ficará melhor.

‑ Qual? ‑ perguntou Porthos.

‑ A de tenente dos mosqueteiros.

D'Artagnan contou a Porthos a sua entrevista com o cardeal e, tirando a carta do bolso:

‑ Aqui tendes, meu caro ‑ disse ‑, escrevei o vosso nome e sede bom chefe para mim.

Porthos passou os olhos pela carta e devolveu‑a a d'Artagnan, para seu grande espanto.

‑ Sim ‑ disse ele ‑, seria uma grande lisonja para mim, mas não tenho muito tempo para gozar esse favor. Durante a nossa expedição a Béthune, o marido da minha duquesa morreu, de modo que, como o cofre do defunto me estende os braços, caso‑me com a viúva. Vede, estava a provar a casaca para o casamento; ficai com a tenência, meu caro.

E entregou a carta a d'Artagnan.

O rapaz entrou no quarto de Aramis.

Encontrou‑o ajoelhado diante dum oratório, com a fronte apoiada num livro de Horas aberto.

Contou‑lhe a sua entrevista com o cardeal e tirando pela terceira vez a carta do bolso:

‑ Vós, nosso amigo, nossa luz, nosso protector invisível ‑ disse ele ‑, aceitai esta carta; vós mereceste‑la mais do que ninguém pela vossa sabedoria e os vossos conselhos sempre seguidos de resultados tão felizes.

‑ Infelizmente, meu caro ‑ disse Aramis ‑, as nossas últimas aventuras desgostaram‑me muito da vida de espadachim. Desta vez tomei uma decisão irrevogável: depois do cerco, entro para os Lazaristas. Guardai essa carta, d'Artagnan, o ofício das armas convém‑vos, sereis um bravo e aventuroso capitão.

D'Artagnan, com os olhos húmidos de gratidão e brilhantes de alegria, voltou ao quarto de Athos, que encontrou ainda sentado à mesa a mirar o seu último copo de MáJaga à luz dum candeeiro.

‑ Pois bem ‑ disse ele ‑, eles também recusaram.

‑ É que, caro amigo, ninguém era mais digno que vós.

Pegou numa pena, escreveu o nome de d'Artagnan na carta e entregou‑lha.

‑ Não terei mais amigos ‑ disse o jovem. ‑ Mais nada, só recordações amargas...

E deixou cair a cabeça nas mãos, enquanto duas lágrimas lhe corriam pela cara abaixo.

‑ Sois jovem ‑ respondeu Athos ‑, e as vossas recordações amargas têm tempo de se transformar em doces recordações.

 

             EPÍLOGO

La Rochelle, privada do socorro da frota inglesa e da divisão prometida por Buckingham, rendeu‑se após um ano de cerco. A 28 de Outubro de 1628, assinou‑se a capitulação.

O rei entrou em Paris a 23 de Dezembro do mesmo ano. Receberam‑no triunfalmente como se acabasse de vencer o inimigo e não uns franceses. Entrou pelo bairro de Saint‑Jacques sob arcadas de verdura.

D'Artagnan tomou posse do seu cargo. Porthos abandonou o serviço e casou‑se, no ano seguinte, com a Sr.a Coquenard; o tão cobiçado cofre continha oitocentas mil libras.

Mosqueton recebeu uma magnífica libré e também a satisfação, que toda a vida ambicionara, de montar atrás duma carruagem dourada.

Aramis, após uma viagem na Lorena, desapareceu de repente e deixou de escrever aos amigos. Soube‑se mais tarde, por intermédio da Sr.a de Chevreuse, que o disse a dois ou três dos seus amantes, que tomara o hábito num convento de Nancy.

Bazin fez‑se frade laico.

Athos ficou mosqueteiro sob as ordens de d'Artagnan até 1633, data em que, depois duma viagem que fez em Touraine, também deixou o serviço alegando que acabava de receber uma pequena herança em Roussillon.

Grimaud seguiu Athos.

D'Artagnan bateu‑se três vezes com Rochefort e três vezes o feriu.

‑ À quarta é provável que vos mate ‑ disse‑lhe ele, estendendo‑lhe a mão para o ajudar a levantar‑se.

‑ Portanto, o melhor para vós e para mim é ficarmos por aqui ‑ respondeu o ferido.

‑ Apre! Sou mais vosso amigo que pensais, pois desde o primeiro encontro que, dizendo uma palavra ao cardeal, teria podido mandar cortar‑vos a cabeça.

Desta vez abraçaram‑se, mas de boa vontade e sem segundos pensamentos.

Planchet obteve de Rochefort o posto de sargento da guarda.

O Sr. Bonacieux vivia muito sossegado, sem saber o que acontecera à mulher e não se preocupando muito com isso.

Um dia teve a imprudência de chamar a atenção do cardeal; o cardeal respondeu‑lhe que ia providenciar que dali em diante nunca lhe faltasse nada.

Com efeito, no dia seguinte, o Sr. Bonacieux saiu às sete horas da noite para ir ao Louvre e nunca mais apareceu na Rua dos Fossoyeurs; a opinião dos que pareciam mais informados foi que estava alojado nalgum castelo real à custa de sua generosa Eminência.

 

                                                                                Alexandre Dumas  

 

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