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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Servidão Humana / William Somerset Maugham
Servidão Humana / William Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Servidão Humana

 

O dia rompera cinzento e triste. As nuvens pairavam, pesadas, e havia no ar certa aspereza que era uma promessa de neve. Penetrando no quarto em que dormia uma criança, a criada correu as cortinas. Relanceou um olhar maquinal à casa fronteira, um prédio revestido de estuque com pórtico, e caminhou em direcção à cama.

 

- Acorda, Philip - disse ela.

 

Puxou para trás a roupa da cama, tomou-o nos braços e desceu com ele as escadas. Philip ia ainda meio adormecido.

 

- A mamã quer ver-te -- acrescentou.

 

Abriu a porta de um quarto do andar inferior e conduziu a criança até à cama em que estava uma mulher. Era a mãe dele. Ela estendeu os braços e a pequeno aninhou-se a seu lado, sem perguntar por que razão o tinham acordado. A mulher beijou-lhe os olhos e, com as mãos delicadas e magras, procurou sentir o calor do corpo através da alva camisa de flanela. Aconchegando-o ainda mais a si, perguntou:

 

- Estás com sono, querido?

 

A voz era tão débil que parecia vir de muito longe. A criança não respondeu, mas sorriu consolada. Sentia-se feliz no leito grande e quente, enlaçada por aqueles braços macios. Procurou fazer-se ainda mais pequenina, encolhendo-se de encontro ao corpo da mãe, e beijou-a sonolentamente. Fechou os olhos, logo em seguida, e adormeceu profundamente. O médico avançou e parou junto da cama.

 

- Por favor, não o levem ainda! - gemeu ela.

 

Sem responder, o médico olhou-a com ar grave. Sabendo que não lhe permitiriam ficar com a criança mais tempo, a mulher tornou a beijá-la e correu a mão ao longo do pequeno corpo até lhe encontrar os pés. Segurou o pé direito, apalpou, um a um, os cinco dedinhos, e em seguida passou lentamente a mão pelo pé esquerdo. Soltou um soluço.

 

- Que é? - perguntou o doutor. - Está cansada?

 

Ela meneou a cabeça, incapaz de falar, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces. O médico inclinou-se:

 

- Deixe-me levá-lo.

 

Estava demasiado fraca para lhe opor resistência e largou a criança. O doutor restituiu-a à criada.

 

- _é melhor levá-lo para a cama.

 

- Sim, sr. doutor.

 

Ainda adormecido, o petiz foi levado embora. A mãe soluçava agora com o coração despedaçado.

 

- Que irá ser dele, pobrezinho?

 

A enfermeira tentou acalmá-la, até que o pranto cessou devido ao cansaço. O médico dirigiu-se a uma mesa, do outro lado do quarto, sobre a qual, coberto por uma toalha, jazia o corpo de um recém-nascido. Levantou a toalha e olhou. Um biombo separava-o da cama, mas a mulher adivinhou de que se tratava.

 

- Era menina ou menino ? - cochichou para a enfermeira.

 

- Outro menino.

 

A doente não disse mais nada. Pouco depois, a ama do menino regressou. Aproximou-se do leito.

 

- O menino Philip não chegou a acordar - disse.

 

Seguiu-se uma pausa. O médico examinou, mais uma vez, o pulso da enferma.

 

- Nada me resta fazer por agora - observou. - Voltarei depois do almoço.

 

-Vou acompanhá-lo à porta, sr. Doutor - disse a ama.

 

Desceram as escadas em silêncio. No vestíbulo, o médico estacou.

 

- Já mandou chamar o cunhado de Mrs. Carey?

 

 - Sim, sr. doutor.

 

- Sabe a que horas chegará?

 

- Não, senhor. Estou à espera de um telegrama.

 

- E o menino? Acho melhor afastá-lo daqui.

 

- Miss Watkin disse que o levaria.

 

- Quem é?

 

- É a madrinha, sr. doutor. Acha que Mrs. Carey resistirá?

 

O médico abanou a cabeça.

 

Passara-se uma semana. Philip estava sentado no chão da sala de visitas de miss Watkin, na sua casa de Onslow Garden. Era a única criança e habituara-se a brincar sozinho. A sala fora dotada de sólido mobiliário e em cada um dos sofás viam-se três grandes almofadas. As poltronas tinham também as suas almofadas. Servindo-se delas e dos banquinhos dourados, leves e fáceis de transportar, conseguira improvisar uma espécie de caverna onde se escondia dos Peles-_Vermelhas emboscados atrás das cortinas. Encostou o ouvido ao soalho e fingiu ouvir o tropel dos búfalos que se precipitavam através da planície. Nisto, sentindo que a porta se abria, susteve por um momento a respiração, com medo de ser descoberto; mas um puxão violento afastou uma das cadeiras e as almofadas caíram.

 

- Menino traquina! Miss Watkin vai zangar-se contigo.

 

- Olá, Ema! - disse ele.

 

A ama inclinou-se e beijou-o, depois começou a sacudir as almofadas e a colocá-las nos respectivos lugares.

 

- Vou para casa? - perguntou Philip.

 

- Vais, sim. Vou levar-te comigo.

 

- Estás com um vestido novo!

 

Era em 1885, e ela usava "tournure". O vestido era de veludo negro, com mangas justas e ombros inclinados e a saia tinha três grandes folhos. Usava também uma touca preta com cordões de veludo. Ela hesitou. A pergunta que esperava não veio e portanto, não pôde dar a resposta que preparara.

 

- Não te interessa saber como está a mamã ? - indagou por fim.

 

- Esqueci-me! Como está a mamã?

 

Chegara a ocasião.

 

- A tua mãe está bem e é muito feliz.

 

- Oh ! Que bom!

 

- Tua mãe foi-se embora. Não voltarás a vê-la.

 

Philip não compreendia o que ela queria dizer.

 

- Porquê ?

 

- A tua mamã está no Céu.

 

Começou a chorar, e Philip chorou também, embora não compreendesse bem aquilo. Ema era uma mulher alta e ossuda, de cabelos louros e rosto largo. Viera do Devonshire e, apesar da longa permanência em Londres, não perdera ainda o sotaque da região. As lágrimas aumentaram-lhe a comoção e apertou o menino contra o peito. Sentia pena daquela criança privada do único amor desinteressado do mundo. Afigurava-se-lhe horroroso ter de entregá-la a estranhos. Em poucos minutos, contudo, recuperou o domínio dos nervos.

 

- O tio William está à tua espera - falou por fim. - Vai dizer adeus a miss Watkin e vamos para casa.

 

- Não quero dizer adeus! - retorquiu o pequeno, procurando instintivamente ocultar as lágrimas.

 

- Está bem, vai lá acima buscar o teu chapéu.

 

O petiz obedeceu, e, quando desceu, Ema estava à sua espera no vestíbulo. Ouviu o som de vozes no gabinete que ficava por trás da sala de jantar. Parou. Sabia que Miss Watkin e a irmã estavam a conversar com umas amigas e parecia-lhe que se lá entrasse - ele já completara nove anos - o lamentariam.

 

- Acho que devo ir despedir-me de Miss Watkin.

 

- É melhor - respondeu Ema.

 

- Vai à frente para preveni-la - pediu ele.

 

Desejava tirar o maior proveito daquela oportunidade. Ema bateu à porta e entrou. Ele ouviu-a falar.

 

- Philip quer despedir-se da senhora.

 

A conversa interrompeu-se de súbito e Philip entrou, a coxear. Henrietta Watkin era uma mulher forte, de rosto vermelho e cabelos pintados. Naqueles tempos, tingir os cabelos suscitava comentários e Philip ouvira muitos, em casa, quando a madrinha lhes mudara a cor. Ela vivia com uma irmã mais velha, que se conformara, contente, com a velhice. Duas senhoras, que Philip não conhecia, estavam de visita e olharam-no com curiosidade.

 

- Meu pobre filho! - exclamou Miss Watkin, abrindo os braços.

 

Começou a chorar. Philip compreendeu então o motivo da sua ausência ao almoço e por que trajava um vestido negro. Miss Watkin sentia-se incapaz de falar.

 

-Tenho que ir para casa - disse Philip, por fim.

 

Desenvencilhou-se dos braços de Miss Watkin, que o beijou novamente. Depois foi junto da irmã dela e despediu-se também. Uma das senhoras estranhas perguntou se podia beijá-lo, permissão que o petiz concedeu com gravidade. Embora chorasse, apreciava muito a sensação que provocava. Gostaria de ficar um pouco mais para continuar a ser alvo das atenções, mas, como sentisse que aguardavam a sua retirada alegou que Ema estava à sua espera. Saiu da sala. Ema descera para falar com uma amiga e ele esperou-a no patamar. Ouviu a voz de Henrietta Watkin.

 

- A mãe dele era a minha melhor amiga. Custa-me acreditar que tenha morrido.

 

- Não devias ter ido ao enterro, Henrietta - advertiu a irmã. -Eu sabia que isso te poria nervosa.

 

Uma das visitantes disse:

 

- Pobre criança! É horrível pensar que está agora só no mundo. Notei que coxeava.

 

- Sim, tem um pé boto. Era um enorme desgosto da mãe!

 

Ema regressou. Chamaram um carro e ela disse ao cocheiro para onde devia seguir.

 

Ao chegarem à casa onde Mrs. Carey morrera, em Kensington, numa respeitável e desolada rua entre Notting Hill Gate e High Street - Ema levou Philip à sala de estar. O tio escrevia cartas de agradecimento pelas coroas que haviam sido enviadas. Uma delas, que chegara demasiado tarde para o funeral, estava dentro da caixa de papelão em cima da mesa da entrada.

 

- Aqui está o menino Philip - disse Ema.

 

Mr. Carey levantou-se devagar e apertou a mão do pequeno. Depois, reflectindo, inclinou-se e beijou-o na testa. Era um homem de estatura abaixo do normal, com tendência para a obesidade, com os cabelos compridos acamados na cabeça de modo a ocultar a calvície. Estava bem escanhoado. As feições eram regulares, e era possível imaginar-se que fora bem apresentável na sua mocidade. Na corrente do relógio trazia uma cruz de ouro.

 

- Agora vais viver comigo, Philip - disse Mr. Carey. -  Agrada-te?

 

Dois anos antes, Philip havia sido mandado para o vicariato uma temporada, depois de um ataque de varicela; mas guardava consigo mais a recordação de um sótão e de um enorme jardim, do que do tio e da tia.

 

- _sim.

 

- Deves considerar-nos, a mim e à tua tia Louise, como pai e mãe.

 

Os lábios da criança tremeram ligeiramente, corou, mas não respondeu.

 

- A tua saudosa mãe deixou-te ao meu cuidado.

 

Mr. Carey não tinha grande facilidade de expressão. Quando chegara a notícia de que a cunhada estava a morrer, partira imediatamente para Londres, mas pelo caminho não pensara senão no transtorno que a sua vida sofreria, se a morte dela o forçasse a tomar a seu cargo o filho. Tinha mais de cinquenta anos, e a mulher, com quem se casara havia trinta, não tivera filhos; não lhe causava o menor prazer a presença de um rapazinho que poderia ser barulhento e malcriado. Nunca estimara muito a cunhada.

 

- Vou levar-te amanhã para Blackstable - disse.

 

- Com a Ema?

 

A criança pôs a mão na dela que lha apertou.

 

- Acho que a Ema tem de ir-se embora - respondeu Mr. Carey.

 

- Mas eu quero que a Ema venha comigo.

 

Philip começou a chorar, e a ama não pôde deixar de chorar também. Mr. Carey olhava-os perplexo.

 

- Parece-me que será melhor deixar-me sozinho com o menino Philip por um momento.

 

- Sim, senhor.

 

Embora Philip se agarrasse, ela afastou-o com brandura. _mr. Carey sentou o garoto nos joelhos e cingiu-o com o braço.

 

- Não deves chorar - disse. - Já estás muito crescido para ter uma ama. Temos de pensar em mandar-te para a escola.

 

- Quero que a Ema venha comigo - repetiu o pequeno. - Custa muito dinheiro, Philip. O teu pai não deixou grande coisa e não sei que foi feito dele. Tens de poupar todos os vinténs.

 

Mr. Carey visitara na véspera o procurador da família. O pai de Philip era um cirurgião com boa clientela e os cargos dos hospitais faziam pensar numa situação sólida; causou pois surpresa, após a sua morte súbita por envenenamento do sangue, verificar-se que apenas deixara à viúva pouco mais além do seguro de vida e do que ela auferisse do aluguer da casa em Bruton Street. Isto acontecera havia seis meses; e Mrs. Carey, já de saúde delicada e à espera de uma criança, perdera a cabeça e aceitara a primeira oferta de aluguer que lhe fora feita. Mandou guardar a mobília num depósito, e, pagando uma renda que o cunhado considerava exorbitante, alugara uma casa mobilada, por um ano, a fim de não ter aborrecimentos até ao nascimento do filho. Mas não estava habituada a lidar com dinheiro e não fora capaz de adaptar as despesas às novas circunstâncias. O pouco de que dispunha fora-se-lhe dos dedos de uma maneira ou de outra e, pagas todas as despesas, restavam apenas umas duas mil libras para manter o rapaz até ele ganhar a sua vida. Era impossível explicar tudo isto a Philip, que continuava a soluçar.

 

- E melhor ires ter com a Ema - disse Mr. Carey, compreendendo que ela saberia consolar a criança melhor que ninguém.

 

Sem uma palavra, Philip saltou dos joelhos do tio, mas Mr. Carey deteve-o.

 

- Temos de ir amanhã, porque no sábado preciso de preparar o meu sermão, e tens de dizer à Ema para ter as tuas coisas prontas hoje. Podes levar todos os teus brinquedos. E, se queres guardar alguma lembrança do teu pai e da tua mãe, podes ficar com um objecto de cada um deles. Tudo o resto será vendido.

 

O pequeno saiu da sala. Mr. Carey estava desabituado de trabalhar e voltou à correspondência, de mau humor. A um lado da secretária havia um maço de contas que o irritavam sobremaneira. Uma delas, especialmente, parecia-lhe absurda. Logo após a morte de Mrs. Carey, Ema encomendara ao florista ramos de flores brancas para o quarto em que estava a senhora morta. Era um total desperdício de dinheiro. Ema ultrapassara as suas atribuições. Mesmo que não houvesse necessidades financeiras, tê-la-ia despedido.

 

Contudo Philip foi ter com ela, e escondeu-lhe no seio a cara, e chorou amargamente. E ela, sentindo que ele era como seu filho -criara-o desde a idade de um mês - consolava-o com meigas palavras. Prometeu que iria vê-lo de vez em quando e que jamais o esqueceria; falou-lhe da terra para onde ia e da sua própria casa no Devonshire - o pai dela era guarda da linha em Exeter, e tinha porcos no chiqueiro, e tinha uma vaca e a  :, vaca acabara de ter um bezerro - até Philip esquecer as lágrimas e se entusiasmar pensando na próxima viagem. Então pô-lo no chão, porque havia muito que fazer, e ele ajudou-a a dispor as roupas em cima da cama. Ela mandou-o à sala dos brinquedos buscar os brinquedos e dentro em pouco ele brincava alegremente.

 

Mas por fim aborreceu-se de estar sozinho, e voltou para o quarto onde Ema colocava as coisas dele num grande baú de folha; lembrou-se então de que o tio dissera que poderia guardar alguma coisa como recordação do pai e da mãe. Disse-o a Ema e perguntou-lhe que deveria guardar.

 

 - é melhor ires à sala de visitas e veres o que te agrada.

 

- O tio William está lá.

 

- Não tem importância. As coisas pertencem-te agora.

 

Philip desceu lentamente as escadas e encontrou a porta aberta. Mr. Carey saíra da sala. Philip andou à volta lentamente. Morara tão pouco tempo naquela casa que nela nada tinha particular interesse para ele. Era uma sala estranha e Philip nada viu que lhe prendesse a imaginação. Sabia, contudo, quais eram os objectos da mãe e quais os que pertenciam ao senhorio; então, reparou num relogiozinho de que ouvira uma vez a mãe dizer que gostava. Com ele subiu novamente as escadas um pouco desconsoladamente. Em frente da porta do quarto da mãe parou e escutou. Embora ninguém lhe tivesse dito para não entrar, tinha a sensação de que não deveria fazê-lo; ficou um pouco medroso e o coração bateu-lhe descontroladamente; mas, ao mesmo tempo, algo o impeliu a dar volta ao puxador. Voltou-o muito mansamente como para evitar que alguém o ouvisse e então, sua emente, empurrou a porta. Ficou no limiar um instante, antes de ter coragem para entrar. Não estava assustado, mas aquilo parecia-lhe estranho. Fechou a porta atrás de si. As cortinas estavam corridas e o quarto estava escuro, à fria luz de uma tarde de Janeiro. No toucador estavam as escovas e o espelho de Mrs. Carey. Numa bandejinha estavam ganchos. Havia em cima do fogão uma fotografia sua e outra do pai. Entrara muitas vezes no quarto, na ausência da mãe, mas agora parecia diferente. Havia algo de curioso no aspecto das cadeiras. A cama estava feita, como se alguém fosse dormir ali aquela noite, e num saco sobre a travesseira estava uma camisa de dormir.

 

Philip abriu um grande armário cheio de vestidos e, trepando, abraçou tantos quantos pôde e mergulhou o rosto neles. Cheiravam ao perfume que a mãe usava. Depois, abriu as gavetas cheias de coisas da mãe e contemplou-as... Havia sacos de alfazema por entre as roupas; o perfume delas era fresco e agradável. A estranheza do quarto desaparecera, e parecia-lhe que a mãe acabara de sair a passear. Em breve voltaria e subiria para tomar o chá  com ele no quarto dos brinquedos. E pareceu-lhe sentir o beijo na face.

 

Não era verdade que a não veria mais. Não era verdade, simplesmente porque era impossível. Trepou para a cama e deitou a cabeça no travesseiro. Deixou-se ficar imóvel.

 

Philip despediu-se, de Ema, choroso, mas a viagem para Blackstable divertiu-o, e, ao chegar, estava resignado e alegre. Blackstable ficava a sessenta milhas de Londres. Entregando a bagagem a um carregador, Mr. Carey seguiu a pé com Philip para o vicariato. Gastaram nisso pouco mais de cinco minutos e, quando chegaram, Philip recordou-se logo do portão. Era pintado de vermelho e tinha cinco barras; abria para ambos os lados nos lubrificados gonzos; e era possível, embora fosse proibido, andar para cá e para lá nele. Atravessaram o jardim em direcção à porta principal. Esta era só usada por visitantes e aos domingos, ou em ocasiões especiais como quando o vigário ia para Londres ou regressava. O movimento da casa fazia-se pela porta lateral e havia uma porta nas traseiras, para o jardineiro e para os mendigos e vagabundos. Era uma casa bastante espaçosa, de tijolos amarelos e telhado vermelho, construída havia vinte e cinco anos em estilo eclesiástico. A porta principal lembrava o portal de uma igreja e as janelas da sala de visitas eram góticas.

 

Mrs. Carey, sabendo em que comboio vinham, esperava na sala pelo chiar do portão. Quando o ouviu, dirigiu-se para a porta.

 

- Cá está a tia Louise - disse Mr. Carey ao avistá-la. - Corre e dá-lhe um beijo.

 

Philip pôs-se a correr, desajeitadamente, arrastando o pé boto, e depois parou. Mrs. Carey era uma mulher pequena e engelhada, da mesma idade do marido, rosto extraordinariamente vincado de profundas rugas e claros olhos azuis. O cabelo grisalho estava arranjado em caracóis, segundo a moda da sua juventude. Trazia um vestido preto e o único ornamento era uma cadeia de ouro da qual pendia uma cruz. Tinha gestos tímidos e uma voz suave.

 

- Vieste a pé, William? - perguntou quase reprovativamente, ao beijar o marido.

 

- Nem dei por isso - respondeu ele relanceando um olhar ao sobrinho. - Não te fez doer andar a pé, pois não, Philip? -perguntou ao garoto.

 

- Não. Eu ando sempre a pé.

 

Ficara um pouco surpreendido com a conversa deles. A tia Louise disse-lhe para entrar, e entraram no vestíbulo. Este era de :,

mosaicos vermelhos e amarelos, nos quais alternadamente havia uma cruz grega e o cordeiro de Deus. Uma imponente escada partia do vestíbulo. Era de pinho polido, com um cheiro peculiar; e fora construída porque, felizmente, sobrara muita madeira quando a igreja levara bancos novos. Os balaústres eram decorados com os emblemas dos Quatro Evangelistas.

 

- Mandei acender o fogão, pensando que sentirias frio depois da viagem - disse Mrs. Carey.

 

Era um fogão grande e negro que estava na entrada e só se acendia se o tempo ia muito rigoroso e o vigário se constipava. Não se acendia se Mrs. Carey se constipava. O carvão estava caro. Além disso, Mary Ann, a criada, não gostava de lume por toda a parte. Se queriam tantos fogões que contratassem outra rapariga. Durante o Inverno Mr. e Mrs. Carey permaneciam na sala de jantar, bastando portanto um único fogão; no Verão não conseguiam fugir desse hábito e, portanto, a sala de visitas só servia nas tardes de domingo a Mr. Carey para dormir a sesta. Mas todos os sábados havia lume no escritório para ele poder escrever o seu sermão.

 

A tia Louise subiu as escadas com Philip e mostrou-lhe um acanhado quarto que dava para o jardim. Bem em frente da janela havia uma enorme árvore, que Philip logo reconheceu, porque os ramos eram tão baixos que era possível trepar por eles acima.

 

- Um quarto pequeno para um rapaz pequeno - disse Mrs. Carey. - Não terás medo de dormir sozinho?

 

- Não!

 

Na primeira visita ao vicariato viera com a ama e pouco trabalho dera a Mrs. Carey. Agora, ela olhava-o com certa hesitação.

 

-- Sabes lavar as mãos, ou queres que eu tas lave?

 

- Sei lavar-me sozinho - respondeu ele com firmeza.

 

- Muito bem, examiná-las-ei quando desceres para o chá -retorquiu Mrs. Carey.

 

Nada entendia de crianças. Depois de resolvido que Philip viria para Blackstable, Mrs. Carey pensara bastante em como deveria tratá-lo; estava ansiosa por cumprir o seu dever; mas, agora que ele estava ali, sentia-se tão tímida à sua frente, como ele em frente dela. Desejava que ele não fosse malcriado e barulhento, porque o marido não gostava de rapazes barulhentos e malcriados. Mrs. Carey deu uma desculpa para deixar Philip só, mas logo em seguida voltou e bateu à porta; perguntou-lhe, sem entrar, se sabia deitar a água sozinho. Depois, desceu as escadas e tocou a sineta para o chá.

 

A sala de jantar, ampla e bem proporcionada, tinha janelas em dois lados com pesadas cortinas de fustão vermelho; no meio havia uma grande mesa; e numa extremidade um imponente aparador de mogno com espelho. A um canto estava um harmónio. De cada lado do fogão havia uma cadeira forrada de couro estampado e coberta com capa de algodão; uma tinha braços e era chamada "o marido", a outra não tinha e chamava-se "a esposa". Mrs. Carey nunca se sentava na cadeira de braços: dizia preferir uma cadeira que não fosse tão confortável; tinha sempre muito que fazer e se a cadeira dela tivesse braços nunca estaria tão pronta a levantar-se.

 

Mr. Carey espevitava o lume quando Philip entrou, e mostrou então ao sobrinho que havia dois atiçadores. Um, grande, brilhante, polido e por usar, era chamado o Vigário; o outro, muito mais pequeno, e, evidentemente, muito passado pelas chamas, chamava-se o Cura.

 

- Por que esperamos? - perguntou Mr. Carey.

 

- Mandei a Mary Ann arranjar-te um ovo. Creio que terás apetite depois da viagem.

 

Mrs. Carey julgava a viagem de Londres a Blackstable muito fatigante. Ela raras vezes viajava, pois, para viver, tinham apenas trezentas libras por ano, e, quando o marido tinha férias, como não havia dinheiro para dois, partia sozinho. Apreciava imenso os congressos religiosos e geralmente procurava ir a Londres uma vez por ano; e uma vez fora à exposição de Paris e duas ou três vezes à Suíça. Mary Ann trouxe o ovo e sentaram-se à mesa. A cadeira era baixa de mais para Philip e por momentos nem Mr. Carey nem a mulher souberam que fazer.

 

- Ponho uns livros debaixo dele - disse Mary Ann.

 

Tirou de cima do harmónio a Bíblia enorme e o livro das orações em que o vigário costumava ler as preces e pô-los na cadeira de Philip.

 

- Oh! William, não pode sentar-se em cima da Bíblia! - exclamou Mrs. Carey em tom escandalizado. - Não podes arranjar-lhe uns livros do escritório?

 

Mr. Carey considerou a questão uns momentos.

 

- Não vejo razão, uma vez que ponhas o livro das orações por cima, Mary Ann - disse ele. - O livro das Orações Comuns foi escrito por homens como nós. Não lhe é atribuída origem divina.

 

- Não pensara nisso, William - disse a tia Louise.

 

Philip empoleirou-se em cima dos livros e o vigário, depois de dar graças, cortou a parte de cima do ovo.

 

-Toma - disse, estendendo-a a Philip - podes comer este pedaço, se gostas.

 

Philip gostaria também de um ovo, mas não lhe fora oferecido, portanto aceitou o que lhe davam.

 

- Que tal puseram as galinhas na minha ausência? - perguntou o vigário.

 

- Oh, estiveram horríveis, só um ou dois por dia.

 

- Que tal achaste esse pedaço, Philip? - perguntou o tio.

 

- Muito bom, obrigado.

 

- Terás outro, no domingo à tarde.

 

Mr. Carey comia sempre um ovo cozido ao chá de domingo, para ter forças para o serviço da noite.

 

Pouco a pouco, Philip veio a conhecer a gente com quem tinha de viver, e, através de trechos de conversas, muitos dos quais não se destinavam aos seus ouvidos, aprendeu bastante, tanto a seu respeito como acerca dos falecidos pais. O pai de Philip era muito mais novo do que o vigário de Blackstable. Após brilhante carreira no Hospital de S. Lucas, passara a fazer parte do corpo clínico e a ganhar elevados honorários. Gastava-os despreocupadamente. Quando o pároco resolveu reformar a igreja e visitou o irmão com uma subscrição, ficou surpreendido ao receber duzentas libras. Mr. Carey, pároco por inclinação e económico por necessidade, aceitou a oferta com um misto de sentimentos: invejando o irmão por lhe ser possível dar tanto dinheiro, regozijado ao pensar na reforma da igreja, e levemente irritado perante uma generosidade que tocava as raias da ostentação. Mais tarde, Henry Carey desposou uma cliente, uma jovem formosa mas pobre, órfã e sem parentes próximos, mas de boa família; um grupo de amigos distintos compareceu ao casamento. Ao visitá-la durante a sua estada em Londres, o pároco portara-se com certa reserva. Mostrara-se acanhado e, no íntimo, causava-lhe mal-estar a grande beleza dela: vestia com uma magnificência que não ficava bem à esposa de um cirurgião trabalhador, e a encantadora mobília da sua casa, as flores no meio das quais vivia, mesmo no Inverno, sugeriam uma extravagância que ele deplorava. Ouvira-a falar das diversões que costumava frequentar; e, segundo declarou à mulher, ao regressar a casa, era-lhe impossível aceitar a hospitalidade sem alguma retribuição. Vira uvas na sala de jantar, que deviam ter custado pelo menos oito xelins a libra; ao almoço, serviram-lhe espargos dois meses antes de ser possível colhê-los na horta do vicariato. Agora, tudo quanto previra se realizara; o vigário sentia a satisfação do profeta que vê o fogo e o enxofre destruir a cidade que não se corrigiu, apesar das suas advertências. O pobre Philip não tinha praticamente um vintém, e de que valiam agora as altas amizades de sua mãe? Constava que a extravagância do pai fora na verdade criminosa, e o desaparecimento da mãe parecia um acto da Providência. Ela entendia de finanças tanto como uma criança.

 

Quando Philip completou uma semana em Blackstable, ocorreu um incidente que irritou sobremodo o tio. Encontrou certa manhã, sobre a mesa, um pequeno volume que viera, pelo correio, de casa da falecida Mrs. Carey, em Londres. Estava endereçado a ela. Quando o pároco abriu o volume, depararam-se-lhe doze fotografias de Mrs. Carey. Mostravam só a cabeça e os ombros, e o cabelo, descendo para a testa, fora penteado de maneira mais simples que habitualmente, o que lhe emprestava um aspecto especial; o rosto estava magro e cavado, mas não havia doença capaz de empanar a beleza das feições. Nos olhos grandes e escuros, lia-se uma tristeza que Philip não reconhecia. Ao ver a imagem da morta, Mr. Carey sentiu um súbito choque, logo transformado em perplexidade. As fotografias pareciam recentes e ele não fazia ideia de quem poderia tê-las encomendado.

 

- Sabes o que isto significa, Philip? - perguntou.

 

- Lembro-me da mamã dizer que tirara o retrato - respondeu o interpelado. - Miss Watkin ralhou-lhe. . . Ela respondeu: "Quero que o meu filho guarde uma lembrança minha, para quando crescer".

 

Mr. Carey encarou Philip uns segundos. A criança falava em claro falsete. Recordava-se das palavras mas estas não tinham para ele significado algum.

 

- Acho melhor levares uma das fotografias para o teu quarto,  -disse Mr. Carey. - Ficarei com as outras.

 

Enviou uma delas a miss Watkin, que lhe escreveu a explicar a maneira como haviam sido tiradas.

 

Certa vez, Mrs. Carey repousava, um pouco mais bem disposta do que nos outros dias e o médico, pela manhã, mostrara-se esperançado. Ema levara o menino a passear e as criadas tinham descido para a cave. De súbito, Mrs. Carey sentiu-se horrivelmente só no mundo. Um grande temor se apoderou dela, o de não resistir ao parto, que esperava para daí a quinze dias. O filho contava nove anos de idade. Como havia de recordar-se dela? Era-lhe intolerável pensar que ele cresceria e esquecê-la-ia, esquecê-la-ia totalmente; e amava-o com tanta paixão, porque ele era fraco e aleijado e porque era seu filho. Não tirava fotografias desde o casamento, havia dez anos. Queria que o filho soubesse qual o seu aspecto nos derradeiros dias. Não a esqueceria, então - não a esqueceria de todo. Sabia que, se chamasse a criada e manifestasse desejo de levantar-se, a criada a impediria, e talvez avisasse o médico; e não sentia, por outro lado, forças para lotar ou discutir. Ergueu-se do leito, e começou a vestir-se. Estivera tanto tempo deitada que as pernas cediam ao peso do corpo e tinha tal formigueiro nas plantas dos pés que mal podia tocar no soalho. Ainda assim continuou. Não estava acostumada a pentear-se, e ao levantar o braço para passar a escova nos cabelos sentiu-se desfalecer. Seria incapaz de arranjá-los como o fazia a criada. Era uma linda cabeleira, muito fina e de um profundamente :, belo doirado. _as sobrancelhas, eram direitas e escuras. Vestiu uma saia preta, mas escolheu o corpo do vestido de noite de que mais gostava, de damasco branco, muito em moda naquela época. Mirou-se em seguida no espelho. O rosto estava pálido mas a pele não perdera a limpidez. Nunca tivera muita cor, e isso realçava ainda mais o rubor da sua formosa boca. Não pôde conter um suspiro. Não tinha, porém, tempo para se lamentar. Já começava a sentir-se imensamente cansada; colocou nos ombros as peles que Henry lhe havia dado no Natal passado (como ele a fizera orgulhosa e feliz naquele dia!) e desceu as escadas com o coração palpitante. Saiu de casa livremente e fez-se conduzir a um fotógrafo. Pagou uma dúzia de retratos. No meio da pose, viu-se obrigada a pedir um copo de água; e vendo-a doente o fotógrafo sugeriu que ela voltasse no dia seguinte, mas Mrs. Carey insistiu em ficar até ao fim. Finalmente acabara e voltou para a soturna casinha de Kensington, que odiava do fundo do coração. Seria horrível morrer numa casa como aquela.

 

Encontrou aberta a porta de entrada, e, à aproximação do carro, Ema e a criada desceram a correr, os degraus, para ampará-la. Haviam sofrido um susto, ao encontrar o quarto vazio. A princípio, julgaram que Mrs. Carey tivesse ido visitar Miss Watkin e mandaram lá a cozinheira. Miss Watkin veio com ela e ficou à espera, impaciente, na sala de visitas. Descia agora as escadas transbordante de ansiedade e de censura. Mas o esforço que Mrs. Carey despendera fora superior às suas forças e, como não fosse já necessário resistir, desmaiou pesadamente nos braços de Ema; levaram-na para cima. Permaneceu desmaiada um tempo que pareceu imensamente longo aos que a observavam, e o médico, chamado com urgência, não compareceu. Só no dia seguinte, com as primeiras melhoras, conseguiu Miss Watkin alguns esclarecimentos. Philip brincava no chão do quarto de sua mãe e nenhuma das duas senhoras lhe dava a menor atenção. Apenas entendia vagamente do que tratavam e ele mesmo não saberia explicar por que se lhe gravaram na memória aquelas palavras:

 

- Quero que o meu filho guarde uma lembrança minha para quando crescer.

 

- Não compreendo por que razão ela encomendou uma dúzia de retratos - comentou Mr. Carey. - Dois teriam sido suficientes.

 

Os dias eram todos iguais, no vicariato.

 

Logo após o pequeno almoço, Mary Ann ia buscar o *_Times*. Mr. Carey compartilhava-o com dois vizinhos. Conservava-o das dez à uma, quando o jardineiro o levava a Mr. Ellis, a Limes, onde ficava até às sete; era então levado a Miss Brooks, ao solar, que, uma vez que o recebia tão tarde, usufruía a vantagem de ficar com ele. No Verão, quando Mrs. Carey fazia geleia, muitas vezes lhe pedia um exemplar para cobrir os frascos. Quando o vigário se sentava a ler, a mulher punha o chapéu e saía para fazer as compras. Philip acompanhava-a. Blackstable era uma vila piscatória. Consistia numa rua principal onde estavam as lojas, o banco, a casa do médico e as casas de dois ou três proprietários de navios carvoeiros; em volta do pequeno porto havia ruas miseráveis onde viviam os pescadores e os pobres; mas como frequentavam a capela não mereciam consideração. Quando Mrs. Carey cruzava na rua com um pastor dissidente, atravessava para o outro lado para evitar encontrá-lo, mas se não tivesse tempo de tal, fixava os olhos no chão. Era um escândalo com o qual o vigário não se conformava, que houvesse três capelas na High Street: não podia deixar de pensar que a lei, se quisesse, teria impedido a sua construção. Fazer compras em Blackstable não era coisa fácil; eram muito frequentes as dissidências criadas pelo facto da igreja da paróquia ser a duas milhas da cidade; e era necessário comprar só a frequentadores da igreja; Mrs. Carey sabia perfeitamente que a preferência do vicariato podia operar alterações na fé de um comerciante. Havia dois açougueiros que iam à igreja e não compreendiam que o vigário não pudesse comprar a ambos ao mesmo tempo; tão-pouco se satisfaziam com o plano simples de ir seis meses a um e seis meses a outro. O talhante que não vendia carne para o vicariato ameaçava constantemente não ir à igreja e o vigário era por vezes obrigado a fazer ameaças: era muito mau para ele não ir à igreja, mas se ele levava a iniquidade a ponto de ir agora à capela, então, é claro, por boa que fosse a carne que vendia, Mr. Carey ver-se-ia forçado a deixá-lo para sempre. Mrs. Carey parava muitas vezes no banco para transmitir um recado a Josiah Graves, o gerente, que era mestre de coro, tesoureiro e zelador. Era um homem alto e magro, com um rosto macilento e um nariz comprido; o cabelo era muito branco; a Philip parecia extremamente velho. Escriturava as contas da paróquia e ensaiava as festas do coro e da catequese; embora não houvesse órgão na igreja da paróquia era do consenso geral (em Blackstable) que o coro que ele dirigia era o melhor de Kent; e quando havia uma solenidade, como a visita do bispo para o Crisma ou do deão rural para pregar na Acção de Graças pelas colheitas, ele fazia os preparativos necessários.

 

Não hesitava, contudo, em fazer toda a espécie de coisas sem uma consulta mais que pró-forma ao vigário, e o vigário, embora sempre pronto a fugir a complicações chocava-se bastante com os modos do zelador. Na verdade ele parecia considerar-se a pessoa mais importante da paróquia. Mr. Carey :, dizia constantemente à mulher que se Josiah Graves não se corrigisse lhe daria um dia umas palmatoadas; mas Mrs. Carey aconselhava-o a ser paciente com Josiah Graves: as intenções eram boas e não era culpa sua não ser um perfeito cavalheiro. O vigário, encontrando conforto na prática de uma virtude cristã, cultivava a indulgência; mas vingava-se chamando Bismarck ao zelador, nas suas costas.

 

Uma vez houve séria zanga entre os dois, e Mrs. Carey lembrava-se ainda com consternação dessa triste época. O candidato conservador anunciara a intenção de organizar um comício em Blackstable; e Josiah Graves, tendo conseguido que este se realizasse na Casa da Missão, procurou Mr. _Carey e disse-lhe que esperava que ele dissesse algumas palavras. Parece que o candidato pedira a Josiah Graves que presidisse. Isto ultrapassava os limites do que Mr. Carey suportava. Tinha opiniões firmes sobre o respeito devido ao clero e era ridículo que um zelador presidisse a uma sessão em que o vigário estivesse. Fez ver a Josiah Graves que pastor significa guia, isto é, que o vigário era o guia da paróquia. Josiah Graves respondeu que era o primeiro a reconhecer a dignidade da igreja, mas aqui era uma questão política e por seu lado fez ver ao vigário que o Salvador os exortara a dar a César o que era de César. A isto Mr. Carey respondeu que o demónio também sabia citar as Escrituras nas ocasiões, só ele era autoridade na Casa da Missão e se não fosse convidado para presidente recusá-la-ia para uma reunião política. Josiah Graves disse a Mr. Carey que fizesse como quisesse e pela sua parte pensava que a Capela Wesleyana seria um lugar igualmente propício. Então Mr. Carey respondeu que se Josiah Graves pusesse os pés no que pouco se diferençava de um templo pagão, não era digno de ser zelador de uma paróquia cristã. Em vista disso, Josiah Graves resignou de todas as suas funções e nessa mesma noite mandou buscar à igreja a batina e a sobrepeliz. A irmã, Miss Graves, que lhe cuidava da casa, abandonou o seu lugar de secretária da Sociedade Maternal, que concedia, às parturientes pobres, roupas de flanela, roupas de bebé, carvão e cinco xelins. Mr. Carey exclamou que era finalmente dono da sua própria casa. Mas depressa verificou que era obrigado a olhar por coisas de que nada sabia; e Josiah Graves, passados os primeiros momentos de irritação, reparou que perdera o principal interesse da sua vida. Mrs. Carey e Miss Graves desgostaram-se muito com a questão; encontraram-se após uma discreta troca de cartas e procuraram maneira de os reconciliar: falavam de manhã à noite, uma ao marido, a outra ao irmão; e, como persuadiam aqueles cavalheiros a fazer o que no íntimo desejavam, ao fim de três semanas de ansiedade fez-se a reconciliação. Era do interesse de ambos mas atribuíram tudo ao comum amor :, pelo Redentor. A sessão realizou-se na Casa da Missão e o médico foi convidado para presidente. Mr. Carey e Josiah Graves fizeram discursos os dois.

Quando Mrs. Carey acabava a entrevista com o empregado bancário, subia geralmente a tagarelar um pouco com a irmã dele; e enquanto as senhoras falavam de assuntos da paróquia, do curato ou do chapéu novo de Mrs. Wilson - Mr. Wilson era o homem mais rico de Blackstable, pensava-se que tinha pelo menos quinhentas libras por ano, e casara com a cozinheira - Philip sentava-se gravemente na austera sala que servia só para receber visitas e entretinha-se a seguir os movimentos do peixinho dourado no aquário. As janelas não se abriam nunca senão de manhã alguns minutos para arejar a sala e havia um cheiro a mofo que parecia a Philip possuir misteriosa relação com os negócios bancários.

 

Nessa altura Mrs. Carey lembrava-se de que tinha de ir ao merceeiro, e continuavam a caminhada. Feitas as compras desciam muitas vezes uma rua lateral de casinhas, a maior parte de madeira, nas quais viviam pescadores (aqui e ali um pescador sentado no degrau da porta remendava as redes, e redes pendiam, a secar às portas) até chegarem a uma pequena praia fechada de ambos os lados por armazéns, mas com vista para o mar. Mrs. Carey parava uns instantes a olhá-lo; era lodoso e amarelo (e quem adivinharia que pensamentos lhe atravessavam o espírito?) enquanto Philip procurava pedrinhas arredondadas para atirar. Em seguida voltavam vagarosamente. Passavam pelo correio para acertar as horas, cumprimentavam Mrs. _wigram, a esposa do médico, que cosia sentada à janela, e então iam para casa.

 

O jantar era à uma hora; às segundas, terças e quartas-feiras constava de picado de carne assada, e às quintas, sextas e sábados, de carneiro. Aos domingos preparavam uma galinha das deles. _à tarde Philip preparava as lições. Estudava latim e matemática com o tio que disso nada percebia e francês e piano com a tia. De francês era ela ignorante, mas de piano conhecia o bastante para acompanhar as antiquadas canções que cantara durante trinta anos. O tio William costumava contar a Philip que quando era cura a mulher sabia doze canções de cor que poderia cantar de seguida todas as vezes que lhe pedissem. Cantava ainda muitas vezes quando davam um chá no vicariato. Eram poucas as pessoas que os Carey convidavam e as reuniões deles consistiam sempre no cura, Josiah Graves e a irmã, o Dr. Wigram e a mulher. Depois do chá Miss Graves tocava uma ou duas das "*_Canções sem Palavras*" de Mendelssohn e Mrs. Carey cantava *_Quando as andorinhas regressam* ou *_Trota, trota, meu cavalinho*.

 

Todavia os Carey não davam chás muitas vezes; os preparativos exigiam-lhes muito trabalho, e quando os convidados se retiravam, sentiam-se exaustos. Preferiam tomar o chá sozinhos :, e em seguida jogar uma partida de gamão. Mrs. Carey fazia com que o marido ganhasse, pois ele não gostava de perder. Comiam uma ceia fria às oito horas. Era uma refeição improvisada, porque Mary Ann não estava disposta a preparar nada depois do chá e Mrs. Carey ajudava-a a arrumar. Mrs. Carey raras vezes comia mais do que pão com manteiga, e a seguir um pouco de fruta em calda; mas o vigário tinha uma fatia de carne fria. Logo após a ceia Mrs. Carey tocava a sineta para as orações e então Philip ia para a cama. Ele protestava contra a imposição de ser despido por Mary Ann, e tempo depois conseguiu que lhe fosse estabelecido o direito de se vestir e despir sozinho. _às nove horas Mary Ann, trazia os ovos e a baixela. Mrs. Carey escrevia a data em cada ovo e registava o total num livro. Ela em seguida pegava no cesto dos pratos e subia as escadas. Mr. Carey continuava a ler um dos seus velhos livros, mas, assim que o relógio dava as dez horas, levantava-se, apagava as luzes e reunia-se à mulher na cama.

 

Quando Philip chegou, houve dificuldades em decidir em que tarde tomaria o banho. Não era nunca fácil conseguir água quente suficiente desde que a caldeira da cozinha não funcionava e era impossível duas pessoas tomarem banho no mesmo dia. O único homem que tinha um quarto de banho em Blackstable era Mr. Wilson e era tomado como ostentação sua. Mary Ann tomava banho na cozinha ao domingo à noite, porque gostava de começar a semana lavada. O tio William não podia tomá-lo ao sábado, pois tinha na frente um dia trabalhoso e ficava sempre um pouco cansado depois do banho. Portanto, tomava-o à sexta-feira. Mrs. Carey por idêntica razão tomava-o às quintas-feiras. Desta forma parecia ser o sábado naturalmente indicado para Philip, mas Mary Ann declarou que não podia conservar o lume aceso ao sábado à noite: tendo tanto que cozinhar ao domingo, com a confecção de pastéis e não sabia que mais, não tinha disposição para dar banho ao rapaz ao sábado à noite; e era evidente que não podia banhar-se sozinho. Mrs. Carey tinha acanhamento de dar banho a um rapaz e, é claro, o vigário tinha o sermão. Mas o vigário insistia em que Philip estivesse limpo e fresco no Dia do Senhor. Mary Ann declarou que preferia ir-se embora do que encarregar-se disso - ao fim de dezoito anos não esperava que lhe dessem mais trabalho, deveriam mostrar mais consideração - e Philip disse que não precisava de ninguém para lhe dar banho, que saberia muito bem banhar-se. Assim se resolveu. Mary Ann declarou estar convencida de que ele não saberia lavar-se convenientemente e para que não andasse sujo - não por causa dele ir à presença do Senhor, mas porque não lhe seria agradável conviver com um rapaz que não estivesse devidamente asseado - resolveu trabalhar até mais não, mesmo na noite de sábado.

O domingo era um dia fértil em acontecimentos. Mr. Carey costumava dizer que era o único homem da paróquia que trabalhava sete dias por semana.

 

Todos em casa se levantavam uma hora antes do costume. Não pode um pobre pároco ficar um pouco mais na cama no dia de descanso, observava Mr. Carey quando Mary Ann batia à porta pontualmente às oito. Mrs. Carey levava mais tempo a vestir-se e descia para o pequeno almoço às nove, um tanto ofegante, um pouco antes do marido. As botas de Mr. Carey estavam em frente do lume para aquecerem. As orações eram mais longas que de costume e a refeição mais substancial. Depois do pequeno almoço, o vigário cortava pequenas fatias de pão para a comunhão e Philip tinha o privilégio de aparar a côdea. Era mandado ao escritório buscar um pisa-papéis de mármore com o qual Mr. Carey comprimia o pão até ficar fino e compacto; depois era cortado em pequenos quadrados. A quantidade era regulada pelo tempo. Nos dias chuvosos poucas pessoas iam à igreja e nos muito bonitos, embora fossem muitas, poucas ficavam para a comunhão. Havia mais quando estava seco de modo a tornar agradável o caminho até a igreja, mas não tão bonito que as pessoas tivessem pressa de se ir embora.

 

Depois, Mrs. Carey tirava a bandeja da comunhão do guarda-comidas que ficava na despensa e o vigário polia-o com uma camurça. _às dez a carruagem parava à porta e _Mr. Carey calçava as botas. Mrs. Carey levava alguns minutos a pôr o chapéu enquanto o vigário, metido numa enorme capa, esperava no vestíbulo, com a expressão fisionómica de um cristão primitivo prestes a ser conduzido à arena. Era extraordinário que sua mulher, após trinta anos de vida conjugal, não estivesse pronta a horas nas manhãs de domingo. Finalmente ela chegava, de cetim preto; o vigário não gostava de cores na esposa de um clérigo fosse quando fosse, mas aos domingos determinara que estivesse inteiramente de preto; uma vez por outra, em conspiração com Miss Graves, arriscava uma pena branca ou uma rosa no chapéu, mas o vigário insistia que teria de ser suprimida; dizia ele que não iria à igreja com a mulher de escarlate (1): Mrs. Carey suspirava como mulher, mas obedecia como esposa. Estavam prestes a subir para a carruagem quando o vigário se lembrava de que não lhe tinham servido o ovo. Sabiam que tinha de tomar um ovo por causa da voz, havia duas mulheres na casa e nenhuma tinha o mínimo interesse pelo seu bem-estar. Mrs. Carey censurava Mary Ann, a qual respondia que não podia pensar em tudo. Corria a buscar um ovo e Mrs. Carey batia-o num copo de xerez. O vigário tomava-o de um gole. O cálice da comunhão era posto na carruagem e partiam.

 

O cabriolé viera do *_Leão Vermelho* e tinha um cheiro peculiar a palha velha. Seguiam com as duas janelas fechadas para que o vigário se não constipasse. O sacristão estava à espera no portal para pegar na bandeja da comunhão e, enquanto o vigário se encaminhava para a sacristia, Mrs. Carey e Philip sentavam-se nos bancos reservados ao vicariato. Mrs. Carey colocava na sua frente a moeda de seis *pence* que costumava pôr na salva e dava a Philip três *pence* para o mesmo fim. A igreja enchia-se pouco a pouco e o serviço começava.

 

Philip aborrecia-se durante o sermão mas se ele se agitava Mrs. Carey colocava-lhe suavemente a mão sobre o braço e olhava-o repreensivamente. Recuperava o interesse quando cantavam o hino final e Mr. Graves dava a volta com a salva.

 

Quando toda a gente se retirava, Mrs. Carey ia ao banco de Miss Graves para trocar com ela umas palavras enquanto esperavam pelos cavalheiros, e Philip dirigia-se à sacristia. O tio, o cura e Mr. Graves vestiam ainda as respectivas sobrepelizes. Mr. Carey dava-lhe os restos do pão consagrado e dizia lhe que podia comê-lo. Era costume comê-lo ele, pois lhe parecia blasfemo deitá-lo fora, mas o devorador apetite de Philip libertava-o dessa obrigação. Depois, contavam o dinheiro. Era em moedas de um, seis e três *pence*. Havia sempre dois únicos xelins, um posto na salva pelo vigário e o outro por Mr. Graves; e algumas vezes havia um florim. Mr. Graves informava o vigário de quem o dera. Eram sempre estranhos a Blackstable e Mr. Carey desconhecia quem fosse. Contudo Miss Graves observara o acto de prodigalidade e estava apta a informar Mrs. Carey de que o estranho viera de Londres, era casado e tinha filhos. Durante o trajecto para casa Mrs. Carey comunicava a informação e o vigário punha na ideia visitá-lo e pedir-lhe uma subscrição para a *_Sociedade Promotora dos Curatos*. Mr. Carey indagava se Philip se comportara devidamente; e Mrs. Carey comentava que Mrs. Wigram tinha uma capa nova, que Mr. Cox não estava na igreja, e que toda a gente julgava que Miss Phillips fora pedida. Quando chegavam ao vicariato todos sentiam merecer um jantar substancial.

 

Terminado este, Mrs. Carey ia para o quarto sestear e Mr. Carey ficava no sofá da sala de visitas a passar pelo sono.

Tomavam chá às cinco horas e o vigário comia um ovo para se fortalecer para o ofício e vésperas. Mrs. Carey não ia, para que Mary Ann pudesse ir, mas lia o serviço do princípio ao fim e os hinos. Mr. Carey ia a pé para a igreja à noite e Philip coxeando seguia a seu lado. A caminhada no escuro pelo campo impressionava-o estranhamente e a igreja com todas as suas luzes à distância, aproximando-se pouco a pouco, parecia-lhe acolhedora. A princípio estava tímido com o tio, mas, progressivamente, acostumara-se a ele e conseguira segurar na sua a mão dele e caminhar mais tranquilamente com a sensação de protecção.

 

Ceavam quando regressavam a casa. As chinelas de Mr. Carey esperavam-no sobre um banquinho em frente do lume e ao lado delas as de Philip uma um sapato de menino a outra deformada e esquisita. Estava tremendamente cansado quando subia para o quarto e não resistia quando Mary Ann o despia. Ela beijava-o depois de o aconchegar bem e ele começou a querer-lhe.

 

Philip levara sempre a vida solitária de um filho único e a sua solidão no vicariato não era maior do que quando a mãe vivia. _tornou-se amigo de Mary Ann. Era uma criaturinha rechonchuda de trinta e cinco anos, filha de um pescador, e viera para o vicariato aos dezoito; fora o seu primeiro emprego e não fazia tenções de o deixar; mas mantinha a possibilidade de casamento como uma espada sobre as cabeças do patrão e da patroa. O pai e a mãe viviam numa casita de Harbour Street e ia visitá-los nas tardes de folga. As suas histórias do mar tocavam a imaginação de Philip e as estreitas ruelas do porto foram enriquecidas com as imaginações que a sua infantil fantasia lhes emprestava. Uma tarde perguntou se poderia ir a casa com ela; mas a tia receou que apanhasse alguma doença, e o tio declarou que as más companhias corrompem as boas maneiras. Não gostava da gente do mar porque eram rudes, grosseiros e iam à capela. Philip, contudo, sentia-se mais à vontade na cozinha do que na sala de jantar, e sempre que possível, pegava nos bonecos e ia para lá. A tia não se importava. Detestava o desarrumo e embora reconhecesse que das crianças só se deve esperar desordem preferia que esta fosse desarrumar para a cozinha. Se ele estava irrequieto, o tio impacientava-se e dizia que era mais que tempo de ele ir para a escola. Mrs. Carey achava Philip muito novo, e o seu coração enternecia-se pela criança sem mãe; todavia as suas tentativas para lhe conquistar a afeição eram desastradas e o pequeno, intimidado, recebia essas demonstrações com um tal mau humor que ela ficava mortificada. _às vezes ela ouvia a sua voz aguda em risadas na cozinha, mas quando entrava logo ele ficava silencioso e corava envergonhado quando Mary Ann explicava a brincadeira. Mrs. Carey não achava graça nenhuma ao que ouvia e sorria constrangida.

 

- Ele parece dar-se melhor com Mary Ann do que connosco, William - dizia, ao pegar de novo na costura.

 

- Vê-se logo que foi pessimamente educado. É preciso metê-lo na ordem.

 

No segundo domingo após a chegada de Philip ocorreu um desagradável incidente. Mr. Carey retirara-se como de costume depois do jantar para uma sestazinha na sala de visitas, mas encontrava-se num tal estado de irritação que não conseguiu dormir.

 

Josiah Graves naquela manhã fizera grandes objecções aos candelabros com que o vigário enfeitara o altar. Comprara-os em segunda-mão em Tercambury, e achava que tinham um bom aspecto. Todavia Josiah Graves declarara que eram papistas. Esta insinuação enfurecia sempre o vigário. Estivera em Oxford quando do movimento que culminou na separação de Edward Manning da Igreja oficial e sentia certa simpatia pela Igreja de Roma. Por sua vontade faria o serviço divino mais ornamentado do que habitualmente na paróquia de Blackstable, e no íntimo suspirava por procissões e velas acesas. Ficara-se pelo incenso. Detestava a palavra protestante. Dizia-se católico. Costumava dizer que os papistas necessitavam de um epíteto, eram Católicos Romanos, mas a Igreja Anglicana era católica no melhor, no mais amplo e no mais nobre sentido da palavra. Agradava-lhe pensar que o seu rosto escanhoado lhe dava o aspecto de um padre, e na mocidade possuíra um ar ascético que aumentava essa impressão. Contava muitas vezes que numa das férias em Bolonha, uma daquelas férias em que a mulher por economia o não acompanhara, o *curé*, quando ele estava sentado na igreja se aproximara dele e o convidara a pregar um sermão. Quando os seus coadjutores se casavam, despedia-os, pois tinha opinião assente sobre o celibato do clero inferior. Mas, quando, numa eleição, os liberais lhe tinham escrito na cerca do jardim em grandes letras azuis: "Este é o caminho para Roma", ficara enfurecido e ameaçara processar os chefes do partido liberal de Blackstable. Decidira então que nada do que Josiah Graves dissesse o levaria a tirar os candelabros do altar e resmungou "_Bismarck" uma ou duas vezes irritadamente.

 

De repente ouviu um ruído inesperado. Puxou o lenço da cara, saltou do sofá em que estava recostado e foi à sala de jantar. Philip estava sentado à mesa com os cabos à volta. Construíra um formidável castelo mas qualquer defeito nos alicerces acabara de fazer ruir o edifício com estrépito.

 

- Que estás a fazer com esses cubos, Philip? Sabes bem que não tens licença de brincar ao domingo.

 

Philip olhou-o um momento com olhos assustados e, como de costume, corou profundamente.

 

- Em casa costumava brincar sempre - respondeu.

 

- Tenho a certeza de que a tua mãe nunca permitiu fazer uma coisa tão condenável como esta.

 

Philip não sabia que era condenável; mas se fosse, não queria que se supusesse que a mãe consentira em tal. Baixou a cabeça e não respondeu.

 

- Então não sabes que é um grande pecado brincar ao domingo? Por que supões então que se lhe chama o dia de repouso ? Vais à igreja esta noite e como podes olhar de frente para o teu Criador se violaste uma das Suas Leis durante a tarde ? - Mr. Carey ordenou-lhe que retirasse os cubos imediatamente e ficou a olhar para ele enquanto Philip o fazia.

 

- _és um menino muito traquina - continuou. Pensa no desgosto que estás a causar à tua pobre mãe, no Céu.

 

Philip sentia vontade de chorar mas tinha uma aversão instintiva a patentear as lágrimas aos outros e cerrou os dentes para evitar que os soluços escapassem. Mr. Carey sentou-se na cadeira de braços e começou a folhear as páginas de um livro. Philip ficou junto da janela. O vicariato ficava afastado da estrada de Tercambury e da sala de jantar via-se uma nesga semicircular de relva e, para lá, campos verdes até ao horizonte. Neles pastavam carneiros. O céu estava triste e cinzento. Philip sentia-se extremamente infeliz.

 

Mary Ann entrou então para servir o chá e a tia Louise desceu as escadas.

 

- Fizeste uma boa sestazinha, William? - perguntou.

 

- Não - respondeu. - Philip fez tanto barulho que não pude dormir um segundo.

 

Não era inteiramente verdade porque ele ficara acordado por causa dos próprios pensamentos; e Philip, prestando atenção de mau humor, cogitou que só fizera barulho uma vez, e que não havia razão para que o tio não tivesse dormido antes ou depois. Quando Mrs. Carey pediu que lhos explicassem o vigário narrou os factos.

 

- Nem sequer disse que estava arrependido - concluiu.

 

- Oh, Philip, tenho a certeza de que estás arrependido - disse Mrs. Carey ansiosa de que o pequeno não parecesse ao tio mais culpado do que era preciso.

 

Philip não respondeu. Continuou a mastigar o pão com manteiga. Não sabia que força o impedia de fazer uma expressão de desgosto. Sentia os ouvidos zumbirem, estava quase a chorar, mas nem palavra lhe escapava dos lábios.

 

- Não precisas agravar as coisas com o ar carrancudo! - exclamou Mr. Carey.

 

O chá terminou em silêncio. De vez em quando, Mrs. Carey olhava sub-repticiamente para Philip, mas o vigário fingia ignorá-lo. Quando Philip viu O tio subir as escadas e preparar-se para ir para a igreja foi ao vestíbulo e pegou no chapéu e no casaco, mas o vigário, quando desceu e o viu disse:

 

- Não quero que vás à igreja esta noite, Philip. Acho que não estás em estado de espírito apropriado para entrar na Casa de Deus.

 

Philip não disse uma palavra. Sentiu que lhe caía em cima uma profunda humilhação e as suas faces coraram.

 

Permaneceu silenciosamente observando o tio a pôr o chapéu de abas largas e o enorme capote. Mrs. Carey, como de costume, foi à porta vê-lo sair. Depois voltou-se para Philip.

 

- Não faz mal, Philip, no próximo domingo não vais ser um menino mau, não é verdade?, e o teu tio levar-te-á com ele à noite à igreja.

 

Tirou-lhe o chapéu e o casaco e levou-o para a sala de jantar.

 

- Vamos ler os dois o ofício, Philip, e cantaremos os hinos ao harmónio. Agrada-te?

 

Philip abanou a cabeça resolutamente. Mrs. Carey ficou desconcertada. Se ele não quisesse ler o ofício da noite com ela não sabia que fazer-lhe.

 

- Que queres fazer, então, até o teu tio regressar? - indagou desanimada.

 

Philip quebrou finalmente o silêncio:

 

- Quero que me deixe em paz! - exclamou.

 

- Philip, como podes dizer tal grosseria? Não vês que o teu tio e eu só queremos o teu bem? Não gostas de mim?

 

- Odeio-a. Tomara que morresse.

 

Mrs. Carey perdeu a respiração. Ele dissera as palavras tão furiosamente que teve um autêntico sobressalto. Não sabia que dizer. Sentou-se na cadeira do marido; e, enquanto pensava no desejo de amar a aleijada e solitária criança e na ansiosa vontade de que ela a amasse - era uma mulher estéril, mas, embora fosse claro que Deus não quisera dar-lhe filhos, mal podia por vezes suportar olhar para as criancinhas, tanta pena lhe faziam - as lágrimas brotaram-lhe dos olhos e uma a uma, vagarosamente rolaram-lhe pela face. Philip contemplava-a atónito. Ela puxou do lenço e agora chorava incontidamente. Subitamente Philip concluiu que ela chorava pelo que ele dissera e teve pena. Inclinou-se para ela silenciosamente e beijou-a. Era o primeiro beijo que lhe dava sem ser solicitado. E a pobre senhora, tão pequena no seu cetim preto, amarelenta e enrugada, com os seus caricatos caracóis, pegou no pequeno ao colo, envolveu-o nos braços e chorou como se o coração se lhe fosse partir. Todavia as suas lágrimas eram em parte lágrimas de felicidade pois sentia que a estranheza entre os dois desaparecera. Amou-o então, com um novo amor, porque ele a fizera sofrer.

 

No domingo seguinte, quando o vigário fazia os preparativos para a sua sesta na sala de visitas - todos os actos da sua vida eram realizados como um ritual - e Mrs. Carey se dispunha a subir as escadas, Philip perguntou:

 

- Que devo fazer, já que não tenho licença de brincar?

 

- Não podes estar sentado e calado um bocado?

 

- Não posso estar sentado até à hora do chá.

 

Mr. Carey olhou pela janela mas fazia frio e nevoeiro. Não pôde sugerir que Philip fosse para o jardim.

 

- Já sei o que podes fazer. Vais decorar a oração para hoje.

 

Pegou no livro das orações que usavam para rezar, de cima do harmónio, e folheou-o até encontrar o que queria.

 

- Não é muito comprida. Se souberes recitá-la sem erros, quando eu vier para o chá dou-te o pedaço de cima do meu ovo.

 

Mrs. Carey empurrou a cadeira de Philip para a mesa de jantar -tinham-lhe já comprado uma cadeira alta - e colocou-lhe o livro na frente.

 

- _o diabo arranja trabalho para ocupar as mãos ociosas - sentenciou Mr. Carey.

 

Pôs mais carvão no lume para que estivesse um bom brasido quando voltasse para o chá e dirigiu-se para a sala de visitas.

Desapertou a "volta", arranjou as almofadas e instalou-se confortavelmente no sofá. Mas, achando a sala de visitas um pouco fria, Mrs. Carey trouxe-lhe do vestíbulo um cobertor; pôs-lho em cima das pernas e envolveu-lhe os pés nele. Cerrou as cortinas para que a luz lhe não ofendesse os olhos e, como ele já os fechara, saiu da sala nos bicos dos pés. O vigário estava em paz consigo mesmo nesse dia e dentro de dez minutos dormia. Ressonava suavemente.

 

Era o sexto domingo depois da Epifania e a oração começava com as palavras: "_ó Senhor, cujo Filho abençoado mostrou ao Mundo que tinha o poder de destruir as obras do demónio e fazer de nós filhos de Deus e herdeiros da vida Eterna". Philip leu-a do princípio ao fim. Não conseguiu perceber coisa alguma. Começou a dizer as palavras em voz alta para si próprio, mas, muitas delas eram-lhe desconhecidas e a construção das frases era esquisita. Não conseguiu meter na cabeça mais que duas linhas. A sua atenção desviava-se constantemente: havia árvores de fruto junto das paredes do vicariato e, de vez em quando, um galho comprido batia na vidraça; os carneiros pastavam calmamente no campo para lá do jardim. Tinha a impressão de ter nós dentro do cérebro. Então dominou o pânico de não ser capaz de saber as frases à hora do chá, e murmurava-as sem cessar :, de enfiada; não tentava compreendê-las mas, apenas, como se fosse um papagaio, gravá-las na memória.

 

Mrs. Carey não conseguiu dormir naquela tarde e por volta das quatro horas estava tão desperta que desceu as escadas. Pensou que poderia ouvir Philip dizer a oração para a não errar quando a recitasse ao tio. O tio ficaria satisfeito; veria que o pequeno era bom, no fundo. Mas, quando Mrs. Carey se aproximou da sala de jantar e ia entrar, ouviu um som que a fez parar bruscamente. O coração teve um baque. Voltou para trás e silenciosamente deslizou pela porta da frente. Deu a volta e então, cautelosamente, espreitou para dentro. Philip continuava sentado na cadeira em que o pusera, mas com a cabeça apoiada nos braços, sobre a mesa, soluçava desesperadamente. Via o movimento convulsivo dos seus ombros. Mrs. Carey ficou assustada. O que sempre a surpreendera no pequeno era que ele parecesse tão senhor de si. Nunca o vira chorar. Sabia agora que a calma dele era apenas instintiva vergonha de revelar os seus sentimentos: escondia-se para chorar.

Sem se lembrar de que o marido não gostava de ser acordado de repente, entrou a correr na sala de visitas.

 

- William, William -- chamou. - O pequeno chora que é de estalar o coração.

 

Mr. Carey soergueu-se e desembaraçou as pernas do cobertor.

 

- Por que razão está a chorar?

 

- Não sei... Oh, William, não devemos permitir que o pequeno seja infeliz. Achas que é por nossa causa? Se tivéssemos filhos saberíamos que fazer.

 

Mr. Carey olhou-a perplexo. Sentia-se extraordinariamente impotente.

 

- Não pode estar a chorar por lhe ter dado a oração para decorar. Não são mais que dez linhas.

 

- Não achas que poderia dar-lhe alguns livros com gravuras para ver, William? Temos alguns da Terra Santa. Não haveria mal algum nisso.

 

- Está bem, não vejo inconveniente.

 

Mrs. Carey foi ao escritório. Coleccionar livros era a única paixão de Mr. Carey e não ia nunca a Tercambury que não passasse uma hora ou duas nos alfarrabistas; regressava sempre com quatro ou cinco volumes bolorentos. Nunca os lia, pois perdera havia muito o hábito de ler, todavia gostava de os folhear e de ver as ilustrações, se eram ilustrados, e de consertar as encadernações. Gostava dos dias de chuva, pois podia ficar em casa sem lhe pesar na consciência, e passar a tarde a remendar o couro da Rússia de algum "quarto" maltratado, com clara de ovo e cola. Possuía muitos volumes de antigas viagens com gravuras em aço e Mrs. Carey encontrou logo dois que descreviam a Palestina. :, Tossiu propositadamente à entrada para que Philip tivesse tempo de recompor-se; sentia que ele ficaria humilhado se se chegasse a ele a meio das lágrimas. Em seguida manejou com barulho o puxador da porta. Quando entrou, Philip fingia ler com atenção, ocultando os olhos com as mãos, para ela não poder ver que estivera a chorar.

 

Já sabes a oração? - perguntou ela.

 

Ele não respondeu logo e ela sentiu que não estava seguro da voz. Ficou estranhamente embaraçada.

 

- Não consigo decorá-la - disse ele por fim, com um soluço.

 

- Está bem, não tem importância - disse ela. - Não te rales.

 

Trouxe uns livros de gravuras para veres. Vem sentar-te no meu colo e vê-los-emos juntos.

 

Philip desceu da cadeira e dirigiu-se para ela coxeando. Olhava para o chão de modo que ela lhe não visse os olhos. Ela envolveu-o nos braços.

 

- Olha - disse ela - este foi o lugar onde nasceu Nosso Senhor.

 

Mostrava-lhe uma cidade oriental com terraços, cúpulas e minaretes. No primeiro plano havia um grupo de palmeiras sob as quais repousavam dois árabes e camelos. Philip passou a mão pela gravura como se quisesse apalpar as casas e as soltas roupas dos nómadas.

 

- Leia o que aqui diz - pediu ele.

 

Mrs. Carey leu, com a sua voz firme, a página oposta. Era uma romântica narrativa feita por algum viajante oriental de 1830, pomposa talvez, mas flagrante da emoção com que o Oriente surgiu à geração que se seguiu a Byron e Chateaubriand. Instantes depois Philip interrompeu-a.

 

- Quero ver outra figura.

 

Quando Mary Ann entrou e Mrs. Carey se levantou para a ajudar a pôr a mesa, Philip pegou no livro e apressadamente percorreu as ilustrações. Foi com dificuldade que a tia o convenceu a deixar o volume para tomar chá. Esquecera o horrível esforço que fizera para decorar a oração; esquecera as lágrimas. No dia seguinte chovia e ele perguntou pelo livro novamente. Mrs. Carey deu-lho toda contente. Falando com o marido acerca do futuro do pequeno, verificou que ambos desejavam que ele tomasse ordens, e o seu interesse pelo livro que descrevia os lugares santificados pela presença de Jesus parecia um bom sinal. Parecia que o espírito do pequeno se inclinava naturalmente para as coisas santas. Mas, daí a um ou dois dias ele pediu mais livros. Mr. Carey levou-o ao escritório, mostrou-lhe a estante onde guardava os livros ilustrados e escolheu-lhe um dedicado a Roma. Philip segurou-o com avidez. As gravuras davam-lhe um novo divertimento. Começou a ler a página antes e a página depois :, de cada gravura para saber do que se tratava, e em pouco tempo perdeu todo o interesse pelos brinquedos.

 

 Depois, quando não havia ninguém próximo, escolhia os livros sozinho; e talvez porque a primeira impressão no seu espírito fora causada por uma cidade oriental, sentia mais interesse naqueles que descreviam o Levante. O coração pulsava-lhe de entusiasmo ante as gravuras de mesquitas e palácios deslumbrantes; contudo, havia uma num livro sobre Constantinopla, que peculiarmente lhe excitou a imaginação. Chamava-se a Sala das Mil Colunas. Era uma cisterna bizantina que a fantasia popular dotara de fantásticas proporções; e a lenda que ele leu dizia que um barco se encontrava sempre atracado à entrada, para tentar os incautos, mas nenhum viajante que se aventurasse na escuridão tornava a ser visto. E Philip cismava se o barco vogaria eternamente de nave em nave com colunas ou chegaria finalmente a alguma estranha mansão.

 

Certo dia, a boa fortuna favoreceu-o pois descobriu a tradução de Lane das *_Mil e _Uma _noites*. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foram as ilustrações e para começar leu as histórias de fundo mágico e depois as outras; e aquelas de que gostava lia e relia. Não pensava em mais nada. Esquecia a vida que o cercava. Era preciso chamá-lo duas ou três vezes para que fosse jantar. Insensivelmente contraíra o mais delicioso hábito do mundo, o hábito da leitura: ignorava que construíra assim um refúgio para as amarguras da vida; ignorava também que estava criando um mundo irreal que transformaria o mundo real quotidiano numa fonte de cruéis decepções. Dentro em pouco começou a ler outras coisas. Tinha o cérebro precoce. O tio e a tia, vendo que ele se entretinha e lhes não causava aborrecimentos nem fazia barulho, deixaram de se preocupar com ele. Mr. Carey possuía tantos livros que os não conhecia bem e como lia pouco esquecera-se daqueles tantos que comprara uma vez por outra por serem baratos. Ao acaso, entre sermões e homilias, as viagens, as vidas dos Santos, dos Padres da Igreja, as histórias da Igreja, estavam novelas antiquadas; e Philip acabou por descobri-las. Escolheu-as pelos títulos e a primeira que leu foi, *_As bruxas de Lancashire* e depois leu *_O admirável Chrichton* e muitas mais. Sempre que começava um livro com dois viajantes solitários cavalgando à beira de uma perigosa ravina, sentia-se seguro.

 

Chegara o Verão, e o jardineiro, um velho marujo, fez-lhe uma rede e dependurou-a nos ramos de um chorão. Ali passava horas esquecidas, alheio a quem quer que pudesse vir ao vicariato, lendo, lendo apaixonadamente.

 

Passou Julho; veio Agosto: aos domingos a igreja enchia-se de forasteiros e a colecta, ao ofertório, elevava-se muitas vezes a duas libras. Nem o vigário nem Mrs. Carey costumavam sair :,

do jardim durante este período; aborrecia-os ver caras novas e olhavam com aversão para os visitantes de Londres. A casa fronteira foi alugada por seis semanas por um senhor que tinha dois rapazinhos, e ele mandou perguntar se Philip gostaria de ir brincar com eles; mas Mrs. Carey apresentou uma delicada recusa. Receava que Philip se corrompesse junto de meninos de Londres. Ia ser clérigo e era necessário evitar que se contaminasse. Acostumara-se a ver nele um pequeno Samuel.

 

Os Carey resolveram mandar Philip para o colégio de Tercambury. O clero das cercanias mandava para lá os filhos. Achava-se ligada à Catedral por longa tradição: o director era um cónego honorário e um director precedente era arcediago. Os alunos eram ali encorajados a desejar ordens sacras e a educação visava a preparar os rapazes honestos para se devotarem ao serviço de Deus. Anexa, havia uma escola preparatória e para ela se combinou que Philip iria. Mr. Carey conduziu-o a Tercambury uma tarde de quinta-feira pelos fins de Setembro. Todo o dia Philip estivera excitado e um pouco amedrontado. Pouco conhecia da vida escolar a não ser o que lera nas histórias de *_The boy.s Own Paper*. Lera também *_eric, ou _Pouco a _Pouco*.

 

Ao descerem do comboio em Tercamburv Philip sentia-se mortalmente apreensivo e durante o trajecto para a cidade permaneceu silencioso e pálido. O alto muro de tijolos na frente da escola dava-lhe o aspecto de uma prisão. _havia nele uma pequena porta que se abriu ao tocarem a campainha; um homem pesadão e desalinhado veio buscar o baú e a caixa de brinquedos de Philip. Penetraram na sala de visitas; estava arranjada com móveis maciços e feios e as cadeiras achavam-se colocadas ao longo das paredes com uma severa rigidez. Esperaram pelo director.

 

- Como é Mr. Watson? - perguntou Philip daí pouco.

 

-Tu próprio verás.

 

Houve outra pausa. Mr. Carey cismava porque não vinha o director. Philip fez um esforço e falou de novo.

 

- Diga-lhe que tenho um pé boto - pediu.

 

Antes que Mr. Carey pudesse falar a porta abriu-se de repente e Mr. Watson entrou na sala. Philip achou-o gigantesco. Era um homem com seis pés de altura, largo, com mãos enormes e uma grande barba vermelha; falava alto e com modos joviais; mas a sua alegria agressiva encheu de terror o coração de Philip. Apertou a mão de Mr. Carey e depois agarrou nas suas a mãozinha de Philip.

 

- Então, jovem amigo, estás contente por vires para a escola?

 

Philip corou e não encontrou resposta adequada.

 

- Quantos anos tens?

 

- Nove - respondeu Philip.

 

- Deves dizer *senhor* - observou o tio.

 

-Julgo que terás muito que aprender - exclamou o director alegremente.

 

Para pôr o pequeno à vontade começou a fazer-lhe cócegas com os dedos ásperos. Philip contrafeito e envergonhado esquivava-se ao contacto.

 

- Para já vou pô-lo no dormitório pequeno... Preferirás, não é verdade ? - indagou de Philip. - Estão lá só oito. Não estranharás tanto.

 

Nessa altura a porta abriu-se e Mrs. Watson entrou. Era uma mulher morena, de cabelos negros cuidadosamente repartidos ao meio. Possuía lábios estranhamente grossos e um nariz pequeno e arredondado. Os olhos eram grandes e negros. Havia uma singular frieza na sua fisionomia. Falava muito pouco e sorria ainda menos. O marido apresentou-lhe Mr. Carey e em seguida impeliu para ela Philip afectuosamente.

 

- _é um novo aluno, Helen. Chama-se Carey.

 

Sem uma palavra, ela apertou a mão de Philip e depois sentou-se, enquanto o director perguntava a Mr. Carey o que Philip sabia e em que livros estudara. O vigário de Blackstable sentia-se um pouco embaraçado com as expansões turbulentas de Mr. Watson e pouco depois levantou-se.

 

- Creio que é melhor agora deixar-lhes Philip.

 

- Perfeitamente - respondeu Mr. Watson. - Está bem entregue. Vai progredir como fogo em palheiro. Não é verdade meu rapaz ?

 

Sem esperar pela resposta de Philip o homenzarrão soltou ma gargalhada. Mr. Carey beijou Philip na testa e retirou-se.

 

- Vamos, meu rapaz - trovejou Mr. Watson. - Vou mostrar-te a sala de aula.

 

Deixou a sala de visitas a passos agigantados e Philip apressadamente coxeava atrás dele. Entraram num comprido e despido salão com duas mesas que se estendiam a todo o seu comprimento; de cada lado havia bancos de madeira.

 

- Ainda cá não está ninguém - disse Mr. Watson. - Vou mostrar-te o pátio de recreio e em seguida deixo-te à vontade.

 

Mr. Watson ia na frente. Philip encontrou-se num grande pátio cercado de grandes paredes de tijolo por três lados. No quarto lado havia uma grade de ferro que deixava ver um extenso relvado e mais à frente alguns dos pavilhões da *_king.s _School*. :,

Um garotinho vagueava desconsoladamente dando pontapés ao cascalho enquanto andava.

 

- Olá, Venning - exclamou Mr. Watson. - Quando voltaste? O garoto aproximou-se e apertou-lhe a mão.

 

- Aqui está um novo companheiro. E mais velho e maior do que tu, portanto não o aborreças.

 

 O director encarou amigavelmente as duas crianças aterrando-as com a estridência da sua voz e em seguida afastou-se com uma risada.

 

- Como te chamas ?

 

- Carey.

 

- O que é o teu pai?

 

- Morreu.

 

- Oh! E a tua mãe lava?

 

- Minha mãe também morreu.

 

Philip julgou que esta resposta causasse ao colega algum mal-estar, mas Venning não se calava tão facilmente.

 

 

- Está bem, mas lavava antes disso, não?

 

- Sim - disse Philip indignadamente.

 

- Então era lavadeira ?

 

-Não, não era.

 

-Então não lavava.

 

O garoto gozava deliciado o êxito da sua dialéctica. Entretanto reparou nos pés de Philip.

 

- Que tens no pé?

 Philip instintivamente procurou escondê-lo. Colocou-o por trás do outro que era são.

 

- Tenho um pé boto - respondeu.

 

- Como arranjaste isso ?

 

- Sempre o tive assim.

 

- Deixa-me ver.

 

- Não.

 

- Como queiras.

 

O garoto acompanhou as palavras de um forte pontapé na canela de Philip que o não esperava e portanto se não pôde defender. A dor foi tão grande que o fez sufocar, mas maior que a dor foi a surpresa. Não sabia por que Venning lhe dera o pontapé. Não teve suficiente presença de espírito para lhe dar um estalo na cara. Além disso o outro era mais pequeno do que ele e lera no *_The Boy.s Own Paper* que é feio bater nos mais pequenos. Enquanto Philip esfregava a canela surgiu um terceiro garoto e o algoz deixou-o em paz. Daí a pouco notou que estavam ambos falando a seu respeito e sentiu que lhe olhavam para os pés. Ficou furioso e constrangido.

 

Entretanto chegaram outros, um magote de doze e depois mais, e começaram a falar do que tinham feito nas férias, :, onde tinham estado, e que esplêndidas partidas de *cricket* tinham jogado. Apareceram alguns alunos novos e em breve Philip viu-se a falar com eles. Estava tímido e nervoso. Procurava ser agradável mas não conseguia dizer nada. Fizeram-lhe inúmeras perguntas e respondeu-lhes de bom grado. Um rapaz perguntou-lhe se sabia jogar o *cricket*.

 

- Não - respondeu Philip. - Tenho um pé boto.

 

O rapaz olhou para baixo rapidamente e corou. Philip viu que ele reconhecia ter feito uma pergunta indiscreta. Estava demasiado envergonhado para pedir desculpa e olhava embaraçadamente para Philip.

 

Na manhã seguinte, quando o badalar de um sino o acordou, Philip olhou espantado em volta do cubículo. Nessa altura uma voz soou, e lembrou-se de onde estava.

 

- Estás acordado, Singer?

 

As divisórias do cubículo eram de pinho polido e tinham uma cortina verde na entrada. Naquele tempo era pouco importante a ventilação e as janelas estavam fechadas excepto de manhã quando o dormitório era arejado.

 

Philip levantou-se e ajoelhou para dizer as suas orações. Era uma manhã fria, e tiritava um pouco, mas fora-lhe ensinado pelo tio que as orações seriam mais bem recebidas por Deus se as dissesse em camisa de noite do que se esperasse por vestir-se. Isso não o surpreendia, pois começava a compreender que fora criado por um Deus que gostava de privar de comodidade aqueles que o adoravam. Depois lavou-se. Havia duas banheiras para os cinquenta pensionistas e cada aluno tinha um banho por semana. As lavagens diárias eram feitas numa bacia que, com a cama e a cadeira constituía o mobiliário de cada compartimento. Os rapazes tagarelavam alegremente enquanto se vestiam. Philip era todo ouvidos. Depois tocou outro sino e eles desceram as escadas a correr. Tomaram os seus lugares nos bancos de cada lado das duas compridas mesas do refeitório; e Mr. Watson, seguido da mulher e dos criados, entrou e sentou-se. Mrs. Watson lia as orações de uma maneira impressionante e as súplicas trovejavam em voz alta, como se fossem ameaças dirigidas pessoalmente a cada rapaz. Philip ouvia, ansioso. Então, Mr. Watson leu um capítulo da Bíblia e os criados retiraram-se. Logo em seguida o criado desalinhado apareceu com dois enormes bules de chá e numa segunda volta trouxe grandes travessas de pão com manteiga.

 

Philip tinha fraco apetite e a camada de manteiga ordinária posta no pão revolvia-lhe o estômago, mas viu outros rapazes :,

raspá-la, e seguiu-lhes o exemplo. Todos eles tinham carnes fumadas e coisas semelhantes trazidas nas caixas dos brinquedos; e alguns tinham como extraordinário ovos ou presunto dos quais Mr. Watson tirava lucro. Quando ele perguntara a Mr. Carey se Philip poderia tê-los, Mr. Carey replicara que não achava que os rapazes devessem ser amimados. Mr. Watson concordou plenamente com ele - considerava que não havia nada melhor do que pão com manteiga para rapazes em crescimento - mas alguns pais, indevidamente, alimentando a prole, insistiam nisso.

 

Philip notou que os "extraordinários" conferiam certa consideração e resolveu pedi-los quando escrevesse à tia Louise.

 

Depois do pequeno almoço, saíram para o parque de recreio. Os alunos externos iam chegando pouco a pouco. Eram filhos do clero local, dos oficiais da guarnição e dos industriais ou homens de negócio da velha cidade. Pouco depois, tocou uma sineta e todos correram para dentro da escola. Esta consistia numa grande e comprida sala em cujos extremos dois professores davam aulas à segunda e terceira classes, e de outra mais pequena, ligada àquela, de que se servia Mr. Watson, que ensinava a primeira classe. Para ligar a classe preparatória à primária, estas três classes eram reconhecidas oficialmente, quer na linguagem corrente quer nos relatórios, por segunda superior, média e inferior. Philip foi inscrito na última. O professor, um homem de rosto avermelhado e voz agradável, chamava-se Rice; tinha bom modo para os rapazes e o tempo passava rapidamente. Philip ficou surpreendido quando faltava um quarto para as onze e foram levados para fora durante dez minutos de intervalo.

 

Toda a escola se precipitou ruidosamente para o pátio de recreio. Os novos alunos reuniram-se no centro enquanto os outros se colocavam ao longo dos muros opostos. Começaram a jogar o "apanhar o porquinho". Os veteranos corriam de uma parede para a outra enquanto os novatos procuravam fugir-lhes: quando um era agarrado e pronunciadas as palavras sacramentais  - "um, dois, três e um porquinho para mim" - tornava-se prisioneiro e por seu lado ajudava a agarrar os que estavam ainda livres. Philip viu um rapaz passar correndo e tentou agarrá-lo mas o coxear não o ajudou; e os corredores, aproveitando a oportunidade dirigiram-se para o lugar onde ele estava. Um deles teve então a brilhante ideia de imitar a corrida desajeitada de Philip. Os outros rapazes viram e começaram a rir; logo após, todos eles arremedaram o primeiro; e rodearam Philip, coxeando grotescamente e dando estridentes gargalhadas com as suas vozes agudas. Perderam a cabeça no prazer do novo divertimento e sufocavam de alegria irreprimível. Um deles passou uma rasteira a Philip que caiu pesadamente como sempre caía e feriu um joelho. As gargalhadas recrudesceram quando ele se levantou. :, Um rapaz empurrou-o pelas costas e ele teria caído novamente se um outro o não tivesse segurado. O jogo fora esquecido com a divertida deformidade de Philip. Um deles inventou um coxear esquisito e bamboleante que batia o outro por sumamente ridículo e alguns rapazes atiraram-se ao chão e rebolaram de riso: Philip estava completamente aterrado. Não conseguira compreender por que se riam dele. O coração batia-lhe tanto, que mal podia respirar e estava assustado como nunca na vida. Ficou de pé, estupidificado enquanto os rapazes lhe corriam à volta imitando-o e rindo; gritavam-lhe que os apanhasse mas ele hão se moveu. Não queria que o vissem correr outra vez. Empregava todas as forças para não chorar.

 

Subitamente a sineta soou e todos correram para as aulas. O joelho sangrava e Philip estava sujo e desgadelhado. Durante alguns minutos Mr. Rice não pôde dominar a classe. Estavam ainda excitados com a estranha novidade e Philip viu um ou dois colegas olhando-lhe furtivamente para os pés. Escondeu-os debaixo do banco.

 

_à tarde iam jogar o futebol mas Mr. Watson deteve Philip quando saía depois da refeição.

 

- Creio que não podes jogar o futebol, Carey? - Perguntou.

Philip corou acanhado.

 

- Não, senhor.

 

- Muito bem. É melhor ires para o campo. Podes caminhar até lá, não podes ?

 

Philip não fazia ideia onde era o campo mas apesar disso respondeu:

 

- Posso, sim senhor.

 

Os rapazes passavam sob a vigilância de Mr. Rice que relanceando um olhar a Philip e, vendo que não mudara de roupa, perguntou por que não ia jogar.

 

- Mr. Watson disse que eu não precisava de ir - respondeu Philip.

 

- Porquê ?

 

Havia rapazes a toda a volta dele olhando-o com curiosidade e uma sensação de vergonha dominou Philip. Baixou os olhos sem responder. Outros deram a explicação.

 

- Tem um pé boto.

 

- Oh! é verdade.

 

Mr. Rice era bastante novo; licenciara-se havia apenas um ano e sentiu-se subitamente embaraçado. O seu instinto foi pedir desculpa ao pequeno mas sentia-se demasiado tímido para tal. Elevou asperamente a voz:

 

- Então, meninos, por que esperam? Desandem.

 

Alguns deles já tinham retomado a marcha c os que tinham  :, ficado para trás puseram-se a caminho, em grupos de dois ou três.

 

- É melhor vires comigo, Carey  - disse o professor - Não sabes o caminho, pois não?

 

Philip percebeu a atenção e subiu-lhe à garganta um soluço.

 

- Não posso ir muito depressa.

 

- Então irei mais devagar - disse o professor com um sorriso.

 

Philip afeiçoou-se logo àquele rapaz vulgar, de rosto vermelho, que tivera uma palavra gentil para ele. Sentiu-se subitamente menos infeliz.

 

_à noite, porém, quando se despiam para se deitarem, o rapaz chamado Singer saiu do seu compartimento e espreitou para o de Philip.

 

-- Carey, deixa ver o teu pé - disse.

 

- Não - respondeu Philip.

 

E meteu-se rapidamente na cama.

 

- Não me digas que não - tornou Singer. - Anda cá, Mason.

 

O rapaz do compartimento do lado espreitava pela fresta e, a estas palavras, entrou. Dirigiram-se a Philip e procuraram arrancar-lhe de cima a roupa da cama mas este segurava-a firmemente.

 

- Por que não me deixam em paz? - gritou ele.

 

Singer agarrou uma escova e com as costas dela bateu nas mãos de Philip enclavinhadas no cobertor. Philip gritou.

 

- Por que não nos mostras o teu pé, hem?

 

- Porque não quero.

 

Desesperado Philip cerrou o punho e esmurrou o rapaz que o atormentava, mas estava em inferioridade e o rapaz agarrou-lhe o braço. Começou a torcê-lo.

 

- Não faças, não faças isso - pediu PhiIip. - Partes-me o braço.

 

-- Então põe-te quieto e mostra-me o pé.

 

Philip soltou um suspiro e soluçou. O rapaz deu outra torcedura ao braço. A dor era insuportável.

 

- Está bem. Mostrarei - exclamou Philip.

 

Pôs o pé de fora. Singer conservava a mão no pulso de Philip. Examinou curiosamente a deformidade.

 

- Não é medonho? - observou Mason.

 

Um outro entrou e olhou também.

 

- Uh! - exclamou com asco.

 

- Palavra que é esquisito - exclamou Singer fazendo uma careta - _é duro?

 

Tocou-lhe com a ponta do dedo, cautelosamente, como se fosse algo com vida própria. De repente ouviram o andar pesado de Mr. Watson, nas escadas. Atiraram as roupas para cima de Philip e correram para os respectivos compartimentos como coelhos. Mr. Watson entrou no dormitório. Erguendo-se na :, ponta dos pés podia ver por cima da travessa que segurava o cortinado verde e olhou para dentro de duas ou três divisórias. Os pequenos estavam metidos na cama. Apagou as luzes e saíu.

 

Singer chamou por Philip, mas este não respondeu. Cravara os dentes na travesseira para que não ouvissem o seu soluçar. Não chorava pela dor que lhe tinham causado nem pela humilhação que sofrera quando lhe examinaram o pé, mas de raiva para consigo porque, incapaz de suportar a tortura, tirara o pé para fora de moto próprio.

 

E sentiu então a miséria da sua vida. Pareceu ao seu espírito infantil que aquele infortúnio não mais teria fim. Sem nenhuma razão especial recordou aquela manhã fria em que Ema o tirara da cama e o pusera junto da mãe. Não pensara mais nisso desde que tal acontecera, mas agora parecia-lhe sentir o calor do corpo da mãe contra o seu e os braços dela envolvendo-o. De súbito, pareceu-lhe que a sua vida, a morte da mãe, a vida no vicariato e aqueles dois terríveis dias na escola, eram um sonho e que acordaria de manhã e estaria outra vez em casa. As lágrimas iam secando enquanto pensava nisto. Sentia-se tão infeliz que só podia ser um sonho, que a mãe estava viva e que Ema subiria daí a pouco para ir deitar-se. Adormeceu.

 

Mas, quando na manhã seguinte acordou, foi ao toque da sineta; e a primeira coisa que os seus olhos viram foi a cortina verde do seu compartimento.

 

Com o tempo a deformidade de Philip deixou de interessar. Aceitavam-na como aos cabelos vermelhos de um ou à exagerada corpulência de outro. Mas, entretanto, ele tornara-se horrivelmente sensível. Não corria nunca, se lhe era possível, porque sabia que isso tornava o coxear mais evidente, e adoptou um andar especial. Quando estava de pé permanecia tanto quanto podia com o pé boto por trás do outro para que não atraisse as atenções e estava sempre alerta a qualquer referência. Como não podia tomar parte nos jogos dos outros rapazes, a vida deles era-lhe estranha; só se interessava pelo que faziam, à distância; parecia-lhe existir uma barreira entre si e eles. Por vezes parecia que o julgavam culpado de não jogar o futebol, e era incapaz de os fazer compreender. Vivia, em geral, isolado. Fora inclinado à loquacidade mas, pouco a pouco, tornou-se silencioso. Começou a meditar na diferença entre ele e os outros.

 

Singer, o rapaz mais robusto do dormitório, antipatizava com ele, e Philip, pouco desenvolvido para a idade, teve de aguentar uma série de maus tratos. Por meados do período surgiu na escola :,

a mania de um jogo chamado *_nibs*. Era um jogo de dois, jogado numa mesa ou num banco com aparos de aço. Empurrava-se o aparo com a unha até lhe colocar a ponta sobre o do adversário, enquanto este manobrava para o evitar e para, por sua vez, fazer o mesmo; quando o objectivo era atingido aquecia-se com o bafo a polpa do polegar, comprimia-se este sobre os dois aparos e, se se conseguia levantá-los sem os deixar cair, ambos se tornavam propriedade do vencedor. Dentro em pouco só se viam rapazes jogando este jogo e os mais hábeis acumulavam grande quantidade de aparos. Porém, logo em seguida, Mr. Watson cismou que o jogo tinha aspecto de profissionalismo, proibiu-o e confiscou todos os aparos em poder dos rapazes. Philip adquirira grande destreza e foi com pesar que entregou os seus troféus; porém os dedos apelavam-lhe ainda para o jogo e poucos dias depois, no caminho para o campo de futebol, entrou numa loja e comprou um penny de aparos "_J". Levava-os soltos no bolso e comprazia-se em apalpá-los. Pouco depois, Singer descobriu que ele os tinha. Singer entregara também os seus aparos mas escondera um muito grande, chamado *_jumbo* que era quase invencível e não pôde resisitir à oportunidade de conquistar os "_J" de Philip. Embora Philip reconhecesse que estava em desvantagem com os seus aparos, um sentido de aventura levou-o a correr o risco; por outro lado, sabia que Singer não lhe admitiria recusa. Havia uma semana que não jogava e sentou-se para o jogo com um frémito de excitação. Perdeu logo dois dos seus aparozitos e Singer rejubilava, mas à terceira vez, por sorte, *_jumbo* fugiu para o lado e Philip conseguiu agarrá-lo com o seu "_J". Exultou com o triunfo. Nesse instante Mr. Watson entrou.

 

- Que estão a fazer? - perguntou.

 

Olhou de Singer para Philip, mas nenhum respondeu.

 

- Não sabem que eu proibira que jogassem esse jogo idiota?

O coração de Philip batia desordenadamente. Sabia o que ia acontecer e estava terrivelmente amedrontado, mas no seu temor havia certo regozijo. Nunca fora vergastado. Com certeza doeria mas teria de que se gabar mais tarde.

 

- Venham ao meu gabinete.

 

O director deu meia volta e eles seguiram-no lado a lado. Singer cochichou para Philip:

 

- Desta não escapamos.

 

Mr. Watson apontou para Singer.

 

- Inclina-te - ordenou.

 

Philip, muito branco, via o rapaz tremer a cada pancada e depois da terceira ouviu-o gritar. Seguiram-se mais três.

 

- Isto chega. Levanta-te.

 

Singer ergueu-se. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Philip aproximou-se. Mr. Watson olhou-o por momentos. :,

 

- Não te darei de chibata. És aluno novo. E não posso bater num aleijado. Vão-se embora, ambos, e não tornem a ser desobedientes.

 

Quando voltaram à sala de aula, um grupo de rapazes que tinham sabido misteriosamente o que acontecera, esperava por eles. Rodearam Singer, à uma, com perguntas ansiosas. Singer encarou-os com o rosto vermelho de dor e os sulcos das lágrimas ainda na face. Fez sinal com a cabeça para Philip que parara um pouco atrás dele.

 

- Ele escapou porque é aleijado - disse enraivecido.

 

Philip permaneceu mudo e ruborisado. Notou que o olhavam com desprezo.

 

- Quantas levaste? - perguntou um rapaz a Singer.

 

Mas ele não respondeu. Estava furioso porque fora castigado.

 

- Não me peças para jogar o *_nibs* contigo outra vez - disse a Philip. - É muito bom para ti. Nada arriscas.

 

- Eu não te pedi.

 

- Não pediste?

 

Rapidamente estendeu o pé e fez Philip tropeçar. Philip tinha sempre pouca firmeza nas pernas e caiu pesadamente no chão.

 

- Aleijado! - exclamou Singer.

 

Durante o resto do período atormentou Philip cruelmente, e ainda que Philip procurasse furtar-se-lhe ao caminho, a escola era tão pequena que lhe era impossível; procurou ser amigável e atencioso com ele; rebaixou-se a ponto de lhe comprar um canivete; mas, embora Singer aceitasse o canivete, não ficou aplacado. Uma ou duas vezes, perdendo a paciência, socou e deu pontapés no corpulento colega, mas Singer era tão forte quanto Philip era fraco e obrigava-o sempre depois de maior ou menor tortura a pedir-lhe perdão. Era isso que amargurava Philip: não podia suportar a humilhação das desculpas, arrancadas à custa de dores que não conseguia aguentar. E o pior era que a sua infelicidade parecia não ter fim; Singer tinha só onze anos e não iria para a escola secundária senão aos treze. Philip verificou que teria de viver dois anos com um algoz a que não podia escapar. Só era feliz enquanto estudava e quando ia para a cama. E, então, muitas vezes lhe ocorria aquela estranha sensação de que a sua vida, com todos os dissabores, não passava de um sonho e que acordaria de manhã na sua caminha, em Londres.

 

Dois anos passaram e Philip ia fazer os doze. Estava na primeira classe nos dois ou três primeiros lagares, e depois do Natal, quando alguns alunos passassem para a escola média, seria o melhor aluno. Possuia já grande colecção de prémios, livros sem valor impressos em papel ordinário, mas de vistosas encadernações decoradas com o distintivo da escola: a sua posição livrara-o da intimidação e já não era infeliz. Os companheiros perdoavam-lhe o êxito, devido à sua deformidade.

 

- No fim de contas, é facílimo para ele ganhar prémios - diziam - não pode fazer mais nada senão estudar.

 

Perdera o terror inicial de Mr. Watson. Habituara-se àquela voz de trovão e quando a pesada mão do director lhe caía nos ombros, Philip vislumbrava vagamente a intenção de uma carícia. Possuía boa memória, que é mais útil nas realizações escolares do que a inteligência e sabia que Mr. Watson esperava que ele acabasse a escola preparatória com uma bolsa de estudo.

 

Todavia tornara-se muito tímido. O recém-nascido não concebe que o seu corpo é mais parte de si próprio do que os objectos que o rodeiam, e brinca com os dedos dos pés sem a mínima noção de que lhe pertencem mais do que a sua roca; e é só pouco a pouco, através da dor, que compreende a realidade do corpo. São necessárias experiências idênticas para que o indivíduo se torne consciente de si próprio; contudo há uma diferença: enquanto todos igualmente adquirem consciência do corpo como um organismo completo e separado, nem todos adquirem igualmente a consciência de si próprios como uma personalidade completa e separada. O sentimento de diferenciação dos outros surge para a maioria com a puberdade mas não se desenvolve sempre a um grau tal que torne perceptível ao indivíduo a diferença entre o indivíduo e o seu próximo. São estes, os tão pouco conscientes de si próprios como as abelhas numa colmeia, os afortunados na vida, pois têm os melhores ensejos de felicidade: as suas actividades são partilhadas por todos e os seus prazeres só são prazeres porque fruídos em comum; vêmo-los dançar na segunda-feira de Pentecostes em Hampstead Heath, aplaudir numa partida de futebol ou assistir a um desfile real das janelas de um clube de Pall Mall. Por sua causa tem o homem sido considerado um animal sociável.

 

Philip passou da inocência infantil à amarga consciência de si próprio, através do ridículo que o seu pé boto provocara. As circunstâncias do seu caso eram tão especiais que não podia aplicar-lhes as regras estabelecidas válidas para casos vulgares e viu-se obrigado a pensar por si mesmo. Os inúmeros livros que lera encheram-lhe o espírito de ideias, as quais, porque só em

:, parte as entendia, alargaram o âmbito da sua imaginação. Por detrás daquele retraimento doloroso, algo tomara vulto dentro de si, e obscuramente descobria a sua personalidade. Contudo, às vezes tinha desconcertantes surpresas; fazia coisas não sabia porquê, e mais tarde, quando reflectia sobre elas via-se perdido no mar.

 

Havia um rapaz chamado Luard de quem Philip se tornara amigo e um dia, quando brincavam na aula, Luard pôs-se a executar proezas com a caneta de ébano de Philip.

 

- Não te faças parvo - disse Philip. - Vais parti-la.

 

- Não!

 

Mas, palavras não eram ditas, a caneta partiu-se em duas. Luard olhou para Philip com consternação.

 

- Oh! Desculpa, sinto muito.

 

As lágrimas rolaram pela cara de Philip mas não respondeu.

 

- Que tens? - disse Luard com surpresa. - Arranjar-te-ei outra exactamente igual.

 

- Não é a caneta que lamento - disse Philip com voz trémula - é que me fora dada pela minha mãe, pouco antes de morrer.

 

- Estou tristíssimo, Carey.

 

- Não tens de quê. A culpa não foi tua.

 

Philip apanhou os dois pedaços da caneta e examinou-os. Procurou conter os soluços. Sentia-se extremamente infeliz. E, todavia, não saberia dizer porquê, pois sabia muito bem que comprara a caneta em Blackstable nas últimas férias por um ou dois *pence*. Não sabia, afinal, por que inventara aquela história patética, mas ela fizera-o tão infeliz como se fosse verdadeira. A atmosfera piedosa do vicariato e o ambiente religioso da escola tornavam a consciência de Philip muito sensível; sem se aperceber, absorvera a crença de que o demónio estava constantemente à espreita para se apoderar da sua alma imortal; e embora não fosse mais verdadeiro do que a maioria dos rapazes, não mentia nunca, que não sentisse remorsos. Ao reflectir no incidente sentiu-se desolado e decidiu que deveria ir ter com Luard e dizer-lhe que a história fora inventada. Embora tivesse horror às humilhações mais do que a qualquer outra coisa no mundo, embalou-se dois ou três dias na ideia do prazer doloroso de se humilhar pela glória de Deus. Mas nunca passou disto. Satisfez a consciência pelo método mais cómodo de expressar o arrependimento apenas ao Todo Poderoso. Contudo, não podia compreender por que fora tão profundamente tocado pela história que inventara. As lágrimas que lhe haviam corrido pelas faces lustrosas tinham sido lágrimas verdadeiras. Por associação de ideias ocorreu-lhe então a cena em que Ema lhe comunicara a morte da mãe, e, embora as lágrimas não o deixassem falar, insistira em se despedir das Misses Watkin para que vissem a sua dor e o lamentassem. :,

 

Uma onda de religiosidade varreu, então, a escola. Não mais se ouviram termos baixos e as simples inconveniências dos pequenos eram olhadas com hostilidade; os maiores como os "lordes seculares" da Idade Média serviam-se da força dos seus braços para persuadir os mais fracos a seguirem o caniinho da virtude.

Philip, cujo espírito inquieto era ávido de coisas novas, tornou-se muito devoto. Depressa soube da possibilidade de se filiar na Liga da Bíblia e escreveu para Londres a pedir informações. Era necessário preencher uma ficha com o nome, a idade e a escola do candidato; assinar uma declaração solene de que leria todas as noites, durante um ano, determinado trecho da Santa Escritura; e enviar meia coroa; esta, era explicado, pediam-na em parte para provar a seriedade do desejo do candidato em se tornar membro da Liga, e em parte para cobrir as despesas gerais. Philip enviou devidamente preenchida a papelada e o dinheiro e recebeu em troca um calendário de um *penny*, onde estavam marcadas as passagens a ler em cada dia, e uma folha de papel em que, numa das faces, havia uma gravura do Bom Pastor com um eordeiro e na outra, decorativamente enquadrada em linhas vermelhas, uma pequena oração para ser rezada antes de começar a leitura.

 

Todas as noites se despia o mais rapidamente possível para ter tempo de executar a sua tarefa antes de se apagar o gás. Lia atentamente, como sempre sem critério, histórias de crueldades, fraudes, ingratidões, perfídias e baixos ardis. Actos que lhe provocariam horror na vida real, na leitura passavam-lhe pelo espírito sem comentários, pois eram cometidos sob a inspiração directa de Deus. O método da Liga era alternar um livro do Velho Testamento com um livro do Novo e certa noite Philip deu com estas palavras de Jesus Cristo:

 

"*_Em verdade vos digo que, se tiverdes fé e não duvidardes, não só fareis o que eu acabo de fazer à figueira, mas, ainda, se disserdes a esta montanha tira-te e lança-te ao mar, assim se fará.

E todas as coisas que pedirdes orando com fé, conseguireis*".

 

Não lhe causaram impressão especial, mas aconteceu que dois ou três dias mais tarde, no domingo, o cónego residente as escolheu para tema do sermão. Mesmo que Philip quisesse ouvi-lo era impossível, porque os rapazes da _king.s School se sentavam no coro e o púlpito ficava na esquina do transepto e por isso o pregador estava quase de costas para eles. Além disso a distância :,

era tamanha que seria preciso um homem com uma boa voz e uma dicção primorosa para se fazer ouvir no coro; e, segundo um velho costume, os cónegos de Tercambury são escolhidos mais pela erudição do que por quaisquer qualidades utilizáveis numa catedral. Todavia as palavras do texto, talvez porque as lera recentemente, soaram com bastante clareza aos ouv dos de Philip e pareceram de repente possuir um significado pessoal. Meditou nelas quase todo o sermão e naquela noite, ao deitar-se, folheou o Evangelho e encontrou uma vez mais a passagem. Se bem que acreditasse implicitamente em tudo quanto via impresso, já aprendera que na Bíblia coisas havia que eram ditas com toda a clareza, mas, muitas vezes, misteriosamente, tinham outro significado. Não havia ninguém, na escola, a quem pudesse perguntar, portanto reservou a pergunta para as férias do Natal e então, certo dia, aproveitou uma oportunidade. Foi depois da ceia, acabadas as orações. Mrs. Carey contava os ovos que Mary Ann trouxera, como de costume, escrevendo a data em cada um. Philip, junto à mesa, fingia voltar, com despreocupação, as páginas da Bíblia.

 

- Escute, tio William, esta passagem aqui quer realmente dizer isto?

 

Apontou com o dedo, como se a tivesse encontrado por acaso.

Mr. Carey olhou por cima dos óculos. Segurava o *_Blackstable _times* em frente do lume. Chegava ao anoitecer, húmido do prelo, e o vigário secava-o sempre durante dez rninutos antes de começar a ler.

 

- Que passagem é? - perguntou.

 

- Esta que refere que a fé move montanhas.

 

- Se está assim na Bíblia, é porque é, Philip - garantiu brandamente Mrs. Carey levantando a cesta da loiça.

 

Philip olhou para o tio à espera de uma resposta.

 

- _é uma questão de fé.

 

- Quer dizer que, se se acreditar realmente, se pode mover de facto montanhas?

 

- Com a graça de Deus - respondeu o vigário.

 

- Agora dá boa-noite ao teu tio, Philip - disse a tia Louise. 

- Não pretendes mover uma montanha esta noite, pois não?

 

Philip deixou-se beijar na testa pelo tio e subiu as escadas à frente de Mrs. Carey. Conseguira a informação que procurava. O seu quartinho era gelado, e tiritava ao vestir a camisa de dormir. Mas tinha a certeza de que as orações agradavam mais a Deus quando as dizia em condições desconfortáveis. O frio das mãos e dos pés eram uma oferenda ao Todo-Poderoso. E naquela noite caiu de joelhos, escondeu o rosto nas mãos e pediu a Deus com todo o fervor que lhe corrigisse o pé boto. Era coisa bem insignificante comparada com a remoção de montanhas. Sabia que :, Deus poderia fazê-lo, se o quisesse e a sua fé era absolota. Na manhã seguinte ao terminar as orações com o mesmo pedido, fixou uma data para o milagre.

 

- _ó Deus cheio de bondade e misericórdia, se for da Tua vontade, por favor, endireita o meu pé na noite da véspera do meu regresso à escola.

 

Sentia-se contente por ter condensado o seu pedido numa fórmula e repetiu-a mais tarde, na sala de jantar, durante a pequena pausa que o vigário fazia sempre após as orações, antes de se levantar da genuflexão. Voltou a dizê-la à tardinha e ainda, tremendo na camisa de noite, antes de se meter na cama. E acreditava. Pela primeira vez, esperava com ansiedade pelo fim das férias. Ria de si para si ao imaginar o espanto do tio quando descesse as escadas a três e três; e depois do pequeno almoço teria de ir com a tia Lonise comprar um par de botas novas. Na escola ficariam estupefactos.

 

- Olá, Carey, que aconteceu ao teu pé?

 

- Oh, agora está bom - responderia despreocupadamente como se fosse a coisa mais natural do mundo.

 

Poderia jogar o futebol. O coração saltava-lhe ao imaginar-se a correr, a correr mais do que qualquer outro rapaz. Depois da Páscoa eram os desportos e poderia entrar nas corridas; imaginava-se já a saltar os caniçados. Que maravilha ser igual aos outros, não atrair a curiosidade dos alunos novos que não sabiam ainda da sua deformidade, nem, no Verão, necessitar das incríveis precauções que tomava enquanto se despia para o banho e antes de mergulhar o pé na água.

 

Orou com todo o ardor da sua alma. Dúvida alguma o assaltava. Confiava na palavra de Deus. E na noite da véspera do regresso à escola foi para a cama trémulo de comoção. Havia nove no quintal e a tia Louise permitira-se o raro luxo de acender o fogão do quarto; no quartinho de Philip, contudo, estava tanto frio que ele sentia os dedos dormentes e teve grande dificuldade em desabotoar o colarinho. Batia os dentes. Ocorreu-lhe então que deveria fazer qualquer coisa fora do comum para atrair a atenção de Deus e afastou o tapete que havia em frente da cama para se ajoelhar no soalho; em seguida veio-lhe à ideia que a camisa de noite fosse um conforto que pudesse desgostar o Criador e então despiu-a e fez as preces nu. Quando se metou na cama estava tão enregelado que lhe custou a adormecer, mas, quando o conseguiu foi tão profundamente que Mary Ann teve de o sacudir quando lhe trouxe a água quente na manhã seguinte. Falou-lhe enquanto corria as cortinas, mas ele não respondeu; lembrara-se imediatamente que aquela era a manhã do milagre. Tinha o coração cheio de alegria e gratidão. O seu primeiro instinto foi baixar a mão e apalpar o pé que já devia estar curado, :, mas fazê-lo significaria duvidar da bondade de Deus. Tinha a certeza de que o pé estava bom. Por fim, decidiu-se e com os dedos do pé direito tocou o esquerdo. Depois, passou-lhe a mão por cima.

 

Desceu as escadas a coxear, no momento em que Mary Ann entrava na sala de jantar para as orações, e sentou-se para almoçar.

 

-- Estás muito calado esta manhã, Philip - disse a tia Louise.

 

- Está a pensar no belo almoço que terá amanhã na escola  -exclamou o vigário.

 

Quando Philip respondeu fê-lo de um modo que sempre irritava o tio, com algo que nada tinha que ver com o assunto em questão.

Este achava o desconversar um mau hábito.

 

- Suponha que pedira alguma coisa a Deus - principlou Philip

 

- e realmente acreditava que ia acontecer, como mover uma montanha, por exemplo, e tinha fé, e não acontecia, que queria isso dizer?

 

- Que rapaz engraçado que és - exclamou a tia Louise. - Há duas ou três semanas fizeste perguntas sobre o mover montanhas.

 

- Quereria dizer apenas que não tinha tido fé - respondeu o tio William.

 

Philip aceitou a explicação. Se Deus o não curara, era porque ele não acreditava realmente. E, no entanto, não via como poder acreditar mais do que acreditara. Mas, talvez não tivesse dado a Deus tempo suficiente. Dera-lhe só dezanove dias. Um ou dois dias depois começou de novo a sua prece e desta vez fixou para depois da Páscoa. Era o dia da gloriosa ressurreição do Seu Filho, e Deus, na Sua felicidade talvez se mostrasse misericordioso. Desta vez Philip acrescentara outros meios de atingir o seu desejo: formulava-o quando via uma lua nova ou um cavalo mosqueado e procurava as estrelas cadentes; por ocasião de uma licença houve frango no vicariato e ele partiu o osso da sorte com a tia Lonise desejando mais uma vez que o pé ficasse bom. Apelava inconscientemente para deuses mais antigos, entre a sua raça, do que o Deus de Israel. E assediava o Todo-_Poderoso com a sua oração, a qualquer hora do dia, quando lhe lembrava, sempre com as mesmas palavras, pois lhe parecia importante fazer o pedido sempre nos mesmos termos. Porém, logo em seguida, sentia que ainda desta vez a sua fé não seria suficientemente forte. Não conseguia dominar a dúvida que o assaltava. Transformou a sua própria experiência numa regra geral.

 

- Acho que nunca ninguém tem fé bastante.

 

Era como o sal, de que a ama costumava contar: todos os pássaros se podem apanhar se se lhes puser sal na cauda e uma vez comprara um saquinho dele em Kensington Gardens. Todavia não conseguira nunca aproximar-se o suficiente para pôr o sal na cauda de um pássaro. Antes da Páscoa já ele renunciara à :, luta. Sentia um ressentimento surdo contra o tio, por ele o ter enganado. O texto em que se falava do mover montanhas era precisamente daqueles que diziam uma coisa e significavam outra. Concluiu que o tio lhe pregara uma partida.

 

A *_king.s School*, de Tercambury, para onde Philip foi quando tinha treze anos, orgulhava-se da sua antiguidade. Tinha a sua origem numa escola abacial fundada antes da Conquista, onde o ensino rudimentar era ministrado pelos monges Agostinhos; e, como outros estabelecimentos semelhantes, fora com a extinção dos mosteiros, reorganizada pelos coadjutores de Hearique VIII e adquirira assim o seu nome. Desde então, cumprindo o seu modesto objectivo, principiou a dar aos filhos da nobreza local e dos burgueses de Kent uma educação bastante para as suas necessidades. Um ou dois homens de letras, a começar por um poeta, cujo génio apenas foi suplantado por Shakespeare e a terminar com um prosador, cuja visão da vida prolundamente influenciou a geração de Philip, de lá saíram para a conquista da fama; produzira um ou dois advogados eminentes, se bem que advogados eminentes seja coisa vulgar, e um ou dois soldados de valor; mas durante os três séculos após a separação da ordem monástica, preparara especialmente homens da igreja, bispos, deões, cónegos e sobretudo pastores: havia rapazes na escola cujos pais, avós e bisavós, ali tinham sido educados e tinham sido todos reitores de paróquias na diocese de Tercambury; e esses ingressavam decididos já a ordenar-se. No entanto, circunstâncias várias pareciam indicar que mesmo ali, se estavam operando transformações; alguns, repetindo o que tinham ouvido em casa, diziam que a Igreja estava longe de ser o que fora. Não era tanto em relação ao dinheiro, mas à classe de gente que a seguia e que já não era a mesma; e dois ou três rapazes conheciam pastores cujos pais eram comerciantes; preferiam partir para as colónias (naquele tempo as colónias eram ainda a última esperança dos que nada consegulam na Inglaterra) a tornarem-se curas sob as ordens de gente que não era educada. Na King.s School como no Vicariato de Blackstable, era negociante todo aquele que não tinha a sorte de possuir terras (e aqui residia a perfeita distinção entre um senhor dado à sua lavoura e o proprietário de terras) ou não pudera seguir uma das quatro profissões que um cavalheiro podia seguir. Entre os alunos externos, dos quais perto de cento e cinquenta eram filhos da nobreza local e de oficiais da guarnição, fazia-se sentir aos que tinham pais negociantes a baixeza da sua condição.

 

Os mestres não admitiam as ideias modernas sobre educação, que liam de vez em quando no *_Times* ou no *_Guardian* e esperavam com fervor que a King.s School permanecesse fiel às suas velhas tradições. As línguas mortas eram ensinadas com tanta exigência que um antigo aluno raramente se lembrava, pela vida fora, de Homero ou Virgílio sem uma náusea de enfado; e embora no refeitório, ao jantar, um ou dois espíritos mais audaciosas sugerissem que a importância da matemática era crescente, na opinião geral eram um estudo menos nobilitante que o dos clássicos. Não ensinavam nem alemão nem química e o francês era ensinado pelos professores comuns; sabiam manter a disciplina melhor que um estrangeiro e desde que conhecessem a gramática tão bem como qualquer francês parecia-lhes de somenos que nenhum deles fosse capaz de pedir uma chávena de café num restaurante de Bolonha, a menos que o criado soubesse alguma coisa de inglês. A geografia era ensinada principalmente fazendo os alunos desenhar mapas, o que era uma ocupação muito apreciada, principalmente quando o país em estudo fosse montanhoso: podiam-se desperdiçar horas a fio a desenhar os Andes ou os _apeninos. Os professores formados por Oxford ou Cambridge eram ordenados e solteiros; e, se por acaso, pensavam em casar, só podiam fazê-lo aceitando um dos pequenos benefícios à disposição do Capítulo; durante muitos anos, todavia, nenhum deles quisera trocar a requintada sociedade de Tercambury, que em virtude da guarnição de cavalaria possuía um ar tão eclesiástico quanto marcial, dada a monotonia da vida de um reitorado no campo; e eram já todos homens de meia-idade.

 

O reitor, por outro lado, era obrigado a ser casado e dirigia a escola até lhe pesar a idade. Quando se retirava recompensavam-no com uma pensão muito melhor que a que qualquer dos outros professores poderia aspirar e um canonicato honorário.

 

Porém, no ano anterior ao da entrada de Philip na escola, dera-se uma grande transformação. Era evidente, havia muito, que o Dr. Fleming, reitor que fora um quarto de século, se tornara demasiado surdo para prosseguir no seu trabalho para a maior glória de Deus; e quando um dos benefícios das proximidades da cidade vagou, o Capítulo ofereceu-lho, com um estipêndio de seiscentas libras por ano, insinuando deste modo que pensava ser tempo de ele se retirar. Poderia entregar-se conforavelmente aos seus achaques com aquele rendimento. Dois ou três pastores que esperavam a promoção disseram às esposas ser escandaloso entregar uma paróquia, que necessitava de um homem jovem, forte e enérgico, a um velho que nada percebia de actividades paroquiais e que, aliás, já enchera as algibeiras; todavia, os murmúrios do clero não beneficiado não chegavam aos ouvidos do Capítulo. E quanto aos paroquianos, nada tinham a dizer, :, e portanto ninguém lhes pedia a opinião. Tanto os metodistas como os baptistas possuíam capelas na vila.

 

Uma vez arrumado deste modo o Dr. Fleming, foi necessário escolher um sucessor. Era contrário às tradições da escola que fosse escolhido um dos professores menos graduados. O refeitório era unânime no desejo da eleição de Mr. Watson, director da escola preparatória; dificilmente se poderia dizer dele que já era um mestre da *_king.s School*, e todos o conheciam havia vinte anos e não haveria o perigo de se tornar indesejável. Mas o Capítulo reservava-lhes uma surpresa. Escolheu um homem chamado Perkins. A princípio ninguém sabia quem era Perkins e o nome não impressionou favoravelmente ninguém; mas ainda o choque não passara, verificou-se que Perkins era o fílho do camiseiro Perkins. O Dr. Fleming informou os professores precisamente antes do jantar e os seus modos mostravam consternação. Alguns deles que estavam a jantar tomaram a refeição em silêncio e só fizeram referência ao assunto quando os criados se retiraram da sala. E então puseram-se a discutir. Os nomes dos que estavam presentes naquela ocasião não importam, mas várias gerações de alunos os conheceram por Sighs, Tar, Winks, Squirts e Pat.

 

Todos conheciam Tom Perkins. A primeira coisa era que não era um homem distinto. Lembravam-se dele muito bem. Fora um rapaz miúdo, moreno, de cabelos pretos e olhos grandes. Parecia um cigano. Viera para a escola como externo com uma bolsa de estudo, portanto a sua educação nada lhe custara. Fora aluno brilhante, é claro. No dia da distribuição dos prémios era sempre premiado. Era o aluno-modelo, e lembravam agora amargamente o receio que tinham de que ele tentasse obter outra bolsa de estudo para uma das escolas públicas mais importantes e lhes fugisse, portanto, das mãos. O dr. Fleming fora ter com o camiseiro pai -todos se lembravam da loja, Perkins ç Cooper, em St. Catherine.s Street - e dissera-lhe que esperava que Tom permanecesse lá até ir para Oxford. A escola era o melhor freguês de Perkins ç Cooper e Mr. Perkins só teve de, muito pressuroso, dar a garantia pedida. Tom Perkins continuou a triunfar, era o melhor aluno de clássicos de que o dr. Flerning se lembrava e ao deixar o colégio levou consigo a melhor bolsa de estudos que tinham para oferecer. Conseguiu outra no Magdalen e fez uma brilhante carreira na Universidade. O boletim escolar consignava as distinções que ele conquistara ano após ano e quando ganhou um "primeiro duplo" o dr. Fleming escreveu pessoalmente algumas palavras encomiásticas na primeira página. O seu triunfo foi recebido com a maior satisfação dado que Perkins ç Cooper tinham sofrido reveses: Cooper bebia como uma esponja e pouco antes de Tom Perkins receber o diploma, os camiseiros abriram falência. :,

 

_a devido tempo, Tom Perkins tomou as ordens sacras e iniciou a profissão para a qual era tão admiràvelmente dotado. Fora professor assistente em Wellington e depois em Rugby.

 

Havia, contudo, grande diferença entre celebrar o seu triunfo nas outras escolas e servir sob a sua orientação na própria. Tar dera-lhe, muitas vezes, cópias de castigo e Squints aplicara-lhe tabefes. Não podiam compreender como o Capítulo cometera tal erro. Ninguém conseguiria esquecer que era filho do falido camiseiro e o alcoolismo de Cooper parecia aumentar o opróbrio. Reconhecia-se que o Deão apoiara com ardor a candidatura dele e portanto o convidaria para jantar; mas, poderiam aqueles agradáveis jantarzinhos continuar a ser os mesmos quando Tom Perkins se sentasse à mesa? E que dizer da guarnição militar? Ele não poderia esperar que oficiais e homens distintos o recebessem como a um igual. Daria ao colégio um prejuízo incalculável. Os pais ficariam descontentes, e ninguém deveria surpreender-se se houvesse uma retirada em massa. E depois, que rebaixamento chamar-lhe Mr. Perkins. Os professores pensaram em enviar a sua demissão colectiva, em sinal de protesto, mas o incomodativo receio de que fosse aceite, fê-los renunciar por unanimidade.

 

- A única coisa a fazer é prepararmo-nos para as mudanças  -disse Sighs que dirigira a quinta classe durante vinte e cinco anos com inigualável incompetência.

 

E quando o viram não ficaram tranquilizados. O dr. Fleming convidou-os a almoçar com ele. Era agora um homem de trinta e dois anos, alto e magro mas com o mesmo ar selvagem e desmazelado de que se lembravam quando rapaz. O fato, mal feito e velho, estava enxovalhado. Os cabelos continuavam compridos e negros como sempre, e era evidente que nunca aprendera a passar-lhes a escova; caíam-lhe para a testa ao mais pequeno gesto e tinha um movimento habitual de mão com o qual os puxava de cima dos olhos. Tinha um bigode preto e uma barba que lhe cobria a cara quase até às maçãs do rosto. Dirigia-se aos mestres muito desembaraçadamente como se se tivesse separado deles uma ou duas semanas antes; estava evidentemente satisfeito de os ver. Parecia alheio ao estranho da posição e aparentava não se dar conta da disparidade ao ser tratado por Mr. Perkins.

 

Quando se preparou para se despedir, um dos mestres, para dizer alguma coisa, observou que tinha muito tempo para apanhar o comboio.

 

- Quero dar uma volta e dar uma vista de olhos à loja - respondeu ele alegremente.

 

Houve um nítido embaraço. Espantaram-se de que ele tivesse tal falta de tacto e, para cúmulo, o dr. Fleming não ouvira o que ele dissera. A esposa berrou-lhe ao ouvido.

 

- Quer ir dar uma vo1ta e ver a antiga loja do pai.

 

Só Tom Perkins não dava pela humilhação que todos sentiam. Voltou-se para Mrs. Fleming.

 

- Quem a alugou agora, sabe?

 

Com dificuldade ela conseguiu responder. Estava furiosa.

 

- E outro camiseiro - disse com ressentimento. - Chama-se Grove. Já não compramos lá.

 

- Gostaria imenso que me deixassem visitar a casa.

 

- _creio que deixarão se se der a conhecer.

 

Só no fim do jantar, naquela noite, se fez referência no refeitório ao assunto presente no espírito de todos. Foi Sighs quem perguntou:

 

- Ora bem, como acharam o nosso novo director?

 

Lembraram-se da conversa do almoço. Dificilmente fora uma conversa: fora um monólogo. Perkins falara incessantemente. Falava muito rapidamente com uma grande fluência de palavras, numa voz profunda e sonora. Tinha um risinho leve e singular que deixava ver os seus dentes brancos. Tinham-no seguido com dificuldade pois o seu espírito saltava de assunto para assunto com uma conexão que eles nem sempre apreendiam. Falava de pedagogia, o que era muito natural; mas falara imenso das modernas teorias alemãs, de que nunca tinham ouvido falar e que receberam com desconfiança. Dissertara sobre os clássicos, e como estivera na Grécia falara de arqueologia; tinha passado um Inverno em escavações; eles não compreendiam de que serviria isso a um homem para ensinar rapazes a passar nos exames. Falara de política. Soou-lhes estranha a comparação entre Lorde Beaconsfield e Alcibíades. Falou de Gladstone e do *_Home Rule*. Acharam que ele era um liberal. Caíu-lhes o coração aos pés. Falou da filosofia alemã e da ficção francesa. Não podiam considerar profundo um homem cujos interesses eram tão diversos.

 

Foi Winks quem resumiu a impressão geral numa fórmula que reputaram conclusivamente condenatória. Winks era o mestre da terceira classe superior, um homem irresoluto de olhar lânguido. demasiado alto para a sua constituição e de movimentos lentos e frouxos. Dava uma impressão de lassidão e o apelido era-lhe eminentemente apropriado.

 

-  É um entusiasta  -  definiu Winks.

 

Entusiasmo era falta de distinção. Entusiasmo era falta de cavalheirismo. Lembrava-lhes o Exército de Salvação com as estridentes trombetas e os tambores. Entusiasmo significava transformação. Ficaram apavorados ao pensar nos agradáveis e velhos hábitos que estavam em perigo iminente. Mal se atreviam a olhar para o futuro. :,

 

- Parece cada vez mais um cigano - comentou um, após uma pausa.

 

- Penso se o Deão e o Capítulo sabiam tratar-se de um radical quando o elegeram - observou outro, amargamente.

 

Mas a conversa parava. Estavam por de mais perturbados para falarem.

 

Quando Tar e Sighs caminhavam juntos para a sala do capítulo, no dia da festa, uma semana depois, Tar, que tinha uma língua mordaz, observou para o colega:

 

- Ora bem, já assistimos a muitas sessões aqui, não é assim? Pergunto a mim próprio se assistiremos a outra.

 

Sighs estava mais melancólico do que nunca.

 

- Se me aparecesse algum modo de vida, não se me dava de me aposentar.

 

Passou-se um ano, e, quando Philip foi para o colégio os antigos mestres ocupavam ainda os respectivos lugares; todavia, grandes modificações se haviam operado, não obstante a teimosa resistência deles, não menos formidável porquanto se ocultava sob a aparênçia do desejo de aceitar as ideias do novo director. Embora os mestres da primária continuassem a ensinar o francês, viera outro professor com grau de doutor em filologia da Universidade de _heidelberga e com um currículo de três anos passados num lycée francês, para ensinar francês às classes superiores e alemão a quem o preferisse ao grego. Foi contratado outro professor para ensinar matemática mais sistematizadamente do que até então se achara necessário. Nenhum deles era ordenado. Foi uma verdadeira revolução, e, quando os dois chegaram, os antigos professores receberam-nos com desconfiança. Instalou-se um laboratório e criaram-se aulas de instrução militar; todos afirmavam que o carácter da escola se transformava. E só Deus sabia que mais projectos trazia _mr. Perkins naquela sua desgrenhada cabeça. A escola era pequena, como qualquer escola vulgar, não havia mais de duzentos internos; e era impossível aumentá-la, comprimida como estava pela catedral; o terreno, com excepção da casa onde viviam alguns dos mestres, era ocupado pelo cabido da catedral; e não havia mais espaço para construções. No entanto, Mr. Perkins imaginara um plano complicado através do qual poderia obter espaço suficiente para duplicar a sua actual lotação. Pretendia atrair rapazes de Londres. Achava que lhes seria proveitoso o contacto com os rapazes de Kent, e isso desenvolveria o espírito provinciano destes.

 

- É contra todas as nossas tradições -sentenciou Sighs, quando Mr. Perkins lhe fez a sugestão. - Temos tido bastante trabalho para evitar a contaminação dos rapazes de Londres.

 

- Oh, que disparate - exclamou Mr. Perkins.

 

Ninguém até então dissera ao mestre primário que ele dizia disparates, e estava pensando numa réplica acerada, em que talvez pudesse inserir uma alusão velada do comércio de camisas, quando Mr. Perkins, com o seu modo impetuoso o atacou violentamente.

 

- Aquela casa no recinto da escola... se o senhor casasse eu arranjaria com que o Capítulo mandasse construir mais dois andares e faríamos dormitórios e salas de estudo e a sua mulher poderia ajudá-lo.

 

O envelhecido clérigo teve um choque. Por que se casaria? Tinha cinquenta e sete anos, um homem não pode casar-se aos cinquenta e sete anos. Era incapaz de andar à procura de casa naquela altura da vida. Não queria casar-se. Se tivesse de escolher entre isso e uma paroqula rural, preferiria resignar. Quanto desejava agora era paz e tranquilidade.

 

- Não penso em casar-me - respondeu.

 

Mr. Perkins fitou-o com os seus olhos vivos e escuros e, se havia ironia neles, o pobre Sighs não o notou.

 

- Que pena ! Não poderia casar-se para me fazer favor ? Isso ajudar-me-ia imenso junto do Deão e do Capítulo quando eu sugerisse construir a sua casa.

 

No entanto, a mais desagradável inovação de Mr. Perkins foi o sistema de dar ocasionalmente uma aula de outro professor. Pedia como favor, mas ao fim e ao cabo era um favor que não podia ser recusado e, como Tar, ou antes Mr. Turner observou, não dignificante para ambas as partes. Não avisava, apenas depois das orações matinais dizia a um dos mestres:

 

- Muito gostaria que pudesse tomar conta hoje do sexto às 11 horas. Poderemos trocar, concorda?

 

Não sabiam se aquilo era hábito noutras escolas mas, é claro, nunca se fizera em Tercambury. Os resultados eram curiosos. Mr. Turner, que foi a primeira vítima, informou a classe de que o reitor lhes daria a aula de Latim naquele dia e, a pretexto de que talvez quisessem fazer-lhe algumas perguntas, para que não fizessem figura de tolos, passou o último quarto de hora da aula de História a interpretar-lhes o trecho de Tito Lívio marcado para aquele dia; porém, quando retomou a classe e olhou para a folha em que Mr. Perkins escrevera as notas, esperava-o uma surpresa; é que os dois primeiros alunos da turma parecia terem andado muito mal, enquanto os que nunca se tinham distinguido, tinham tido boas notas. Quando perguntou a Eldridge, o seu melhor aluno, o significado daquilo, a resposta veio trombudamente: :,

 

- Mr. Perkins não nos deu nenhuma interpretação para fazermos. Perguntou-me que sabia eu do General Gordon.

 

Mr. Turner fitou-o atónito. Os rapazes sentiam, evidentemente, terem sido injustamente tratados e não pôde deixar de concordar com o mudo descontentamento deles. Também ele não percebia que tivesse que ver o General Gordon com Tito Lívio. Mais tarde arriscou um esclarecimento.

 

- Eldridge ficou terrivelmente constrangido por lhe ter perguntado o que sabia do General Gordon - disse ao reitor com um pretenso ar jocoso.

 

Mr. Perkins riu.

 

- Vi que tinham chegado às Leis agrárias de Caio Graco e quis ver se sabiam alguma coisa sobre as perturbações agrárias na Irlanda. Mas tudo quanto sabiam sobre a Irlanda era que Dublin era banhada pelo Liffey. Portanto, suspeitei que nunca tinham ouvido falar no General Gordon.

 

Então descobriu-se um facto horrível: que o novo reitor tinha a mania dos conhecimentos gerais. Ele tinha dúvida sobre a utilidade dos exames em assuntos preparados para esse efeito. Apreciava o senso-comum.

 

Sighs ficara cada vez mais inquieto; não conseguia afastar da cabeça o pensamento de que Mr. Perkins lhe iria pedir a fixação do dia do casamento; e detestava a atitude adoptada pelo superior em relação à literatura clássica. Era, sem dúvida, um inteligente erudito e estava contratado para um trabalho bem de acordo com a tradição: estava a escrever um tratado sobre as árvores na Literatura latina; no entanto referia-se a isso, voluvelmente, como se o achasse um passatempo sem grande importância, como o bilhar, no qual empregasse as horas vagas, mas que não era levado a sério. E Squirts, o mestre do terceiro médio, tornava-se de dia para dia mais neurasténico.

 

Foi nesta classe que Philip ingressou quando entrou para a escola. O Rev. B. B. Gordon era homem de natureza incompatível com o magistério: era impaciente e colérico. Sem ninguém que lhe pedisse contas, lidando apenas com rapazes pequenos, havia muito que perdera o autodomínio. Iniciava a aula enraivecido e terminava-a furioso. Era de meia estatura, de compleição corpulenta; tinha cabelos loiros, aparados muito curtos e já grisalhos e um pequeno e eriçado bigode. O rosto grande, de feições indistintas e olhinhos azuis, era naturalmente rubro, mas nos seus frequentes acessos de ira tornava-se escuro e arroxeado. Tinha as unhas roídas até ao sabugo, porque, enquanto um aluno respondia tremendo, ele, sentado na cadeira, que estremecia com a fúria que o consumia, roía os dedos. Contavam-se histórias, talvez exageradas, da sua violência, e dois anos antes houvera certo alvoroço na escola ao constar que um pai ameaçara processá-lo: :,

batera com um livro na orelha de um rapaz chamado Walters com tal força que o ouvido fora afectado e o pequeno tivera de ser retirado da escola. O pai do rapaz residia em Tercambury, houve grande indignação na cidade e o jornal local referira-se ao caso; porém, como Mr. Walters era um simples cervejeiro, as simpatias dividiram-se. Os outros alunos, por motivos bem conhecidos deles, embora detestassem o mestre, tomaram o seu partido na questão, e, para mostrarem a sua indignação por terem transpirado os assuntos da escola, tornaram quanto possível desagradável a vida do irmão mais novo de Walters que ainda lá ficara. Todavia Mr. Gordon escapou da demissão por uma unha negra, e nunca mais bateu num aluno. Foi suprimido o direito que os mestres tinham de dar palmatoadas e Squirks já não podia aplacar a fúria batendo na mesa com o ponteiro. O mais que podia, agora, fazer era agarrar o rapaz pelos ombros e sacudi-lo. Costumava ainda, aos travessos ou teimosos, obrigá-los a estar de pé com um braço estendido durante dez minutos a meia hora e a linguagem era tão violenta como antes.

 

Nenhum mestre teria sido menos indicado para ensinar fosse o que fosse a um menino tão tímido como Philip. Entrara para a escola com menos terror do que quando contactara pela primeira vez com Mr. Watson. Conhecia muitos rapazes que tinham andado com ele na escola preparatória, Crescera, e sentia, instintivamente, que no meio de tanta gente, a sua deformidade seria menos notada. Logo no primeiro dia, porém, Mr. Gordon lhe infundiu profundo terror; e o professor, perspicaz em descobrir os rapazes que lhe tinham medo, parecia, por este motivo, votar-lhe especial antipatia. Philip tinha prazer no estudo, mas agora começava a olhar com horror as horas passadas na escola. Preferia ficar estupidamente silencioso, a arriscar uma resposta que poderia ser errada e provocar uma tempestade de desaforos do mestre, e, quando chegava a sua vez de se levantar e interpretar, ficava enfiado e pálido de apreensão. Os seus momentos felizes eram aqueles em que Mr. Perkins ficava com a turma. Era capaz de satisfazer a paixão dos conhecimentos gerais, que importunava o reitor; lera toda a espécie de livros complicados para a sua idade, e muitas vezes, Mr. Perkins quando a pergunta já percorrera a sala, voltava-se para Philip com um sorriso que enchia o pequeno de contentamento e dizia:

 

- Vamos, Carey, ensina-lhes.

 

As boas notas que obtinha nessas ocasiões aumentavam a indignação de Mr. Gordon. Um dia, aconteceu chegar a Philip a vez de traduzir e o mestre fitava-o, roendo furiosamente as unhas. Estava de disposição feroz. Philip começou a falar em voz baixa.

 

- Não resmungues - gritou o mestre.

 

Algo pareceu prender a garganta de Philip.

 

- Vamos. Vamos. Vamos.

 

De cada vez as palavras eram mais intensamente berradas. O efeito foi obscurecer a memória de Philip que olhava abstractamente para a página impressa. Mr. Gordon desatou a respirar fortemente.

 

- Se não sabes, por que o não confessas? Sabes ou não? Não ouviste traduzir tudo isso na última aula? Por que não falas? Fala, imbecil, fala!

 

O mestre segurava os braços da cadeira como para resistir à tentação de se atirar a Philip. Em tempos passados costumava agarrar os alunos pela garganta, a ponto de sufocá-los. As veias da testa tornavam-se salientes e o rosto, sombrio e ameaçador. Parecia louco.

 

No dia anterior, Philip soubera traduzir perfeitamente o trecho em questão, mas naquele momento não se lembrava de coisa alguma.

 

-- _não sei traduzir isto - gaguejou.

 

- E por que não sabes? Vamos traduzir palavra por palavra. Veremos se sabes ou não.

 

Philip permaneceu em silêncio, pálido e trémulo, com a cabeça curvada para o livro. A respiração do mestre tornara-se quase estertorosa.

 

- O reitor diz que és inteligente. Não sei em que se baseia para afirmar semelhante coisa. Conhecimentos gerais!

 

Soltando uma gargalhada selvagem, continuou:

 

- Não sei por que te puseram nesta turma. Imbecil!

 

Gostou da palavra e pôs-se a repeti-la a plenos pulmões.

 

- Imbecil! Imbecil! Imbecil do pé torto!

 

Sentiu-se um pouco aliviado, notando que Philip corara repentinamente. Mandou-o buscar o Livro Negro. Philip pousou o seu *_César* e saiu silenciosamente. O Livro Negro era um sinistro volume onde se registavam os nomes dos alunos em falta, e as más acções. A repetição de três registos significava uma sova. Philip dirigiu-se a casa do reitor e bateu à porta do gabinete. Mr. Perkins achava-se sentado à mesa.

 

- Posso levar o Livro Negro, senhor reitor?

 

- Está ali - responde Mr. Perkins, indicando o lugar com um movimento de cabeça. - Fizeste alguma maldade.

 

- Não sei, senhor reitor.

 

Mr. Perkins olhou-o de relance e, sem responder, concentrou novamente a atenção no trabalho. Philip agarrou o livro e retirou-se. Minutos depois, terminada a aula, voltou a trazê-lo.

 

 - Deixa ver o livro - disse o reitor. - Vejo que Mr. Gordon registou o teu nome por "grave insolência". Que significa isso? :,

 

- Não sei, senhor reitor. Mr. Gordon disse que eu era um imbecil de pé torto.

 

Mr. Perkins fitou-o de novo. Não sabia se a resposta do rapaz encerrava alguma dose de sarcasmo, mas notou que ainda estava bastante abalado. Tinha o rosto pálido e os olhos reflectiam grande angústia. Levantando-se, o reitor foi colocar o livro no seu lugar e, ao mesmo tempo, pegou nalgumas fotografias.

 

- Um amigo enviou-me hoje estas vistas de Atenas - disse com naturalidade. - Olha, aqui está a Acrópole.

 

Começou a descrever aquilo que via. As suas palavras emprestavam vida às ruínas. Mostrou-lhe o teatro de Diónisos e explicou a ordem em que as pessoas se sentavam, descortinando, ao longe, as águas azuis do Egeu. De repente, disse:

 

- Lembro-me de que Mr. Gordon costumava chamar-me caixeirinho cigano, no tempo em que eu era seu aluno.

 

E, antes que Philip, com a atenção posta nas fotografias, pudesse compreender o sentido da observação, já Mr. Perkins lhe estava a mostrar uma gravura de Salamina. Com o indicador - cuja unha tinha uma pequena barra preta - apontava a localização dos navios gregos e persas.

 

Os dois anos que se seguiram foram, para Philip, de confortável monotonia. Não era mais importunado do que os outros rapazes do seu tamanho, e o aleijão, afastando-o dos jogos, envolvia-o numa obscuridade que o alegrava muito. Não era popular e levava uma vida solitária. Esteve, durante dois trimestres, com Winks no terceiro ano secundário. Winks, com o seu ar cansado e as pálpebras caídas, dava uma impressão de tédio infinito. Cumpria o seu dever, mas fazia-o com o espírito absorto. Era bondoso, delicado e tolo. Acreditava firmementente na honra dos alunos; julgava que a melhor maneira de conservá-los apegados à verdade era não imaginar por um instante sequer a possibilidade de mentirem. "Pede muito, e muito te será dado", costumava ele dizer. A vida não era difícil no terceiro ano. Sabia-se antecipadamente quais as linhas que seriam traduzidas e, com o auxílio da cábula que corria de mão em mão, tornava-se fácil resolver qualquer coisa em menos de dois minutos. Enquanto as perguntas eram formuladas, abrir uma gramática latina sobre os joelhos era a coisa mais natural do mundo. Winks nunca estranhava o facto de um mesmo e incrível erro aparecer em doze exercícios diferentes. Não tinha grande fé nos exames, pois notava que os rapazes nunca se saíam tão bem neles como no decorrer das aulas: isso causava certa decepção, mas não tinha importância. Com o :, correr dos meses, passaram todos para a classe imediatamente superior, tendo aprendido pouco mais do que uma alegre desfaçatez na deturpação da verdade, o que sem dúvida lhes seria muito mais útil, na vida futura, do que os conhecimentos de latim.

 

Caíram, então, nas mãos de Tar. O seu verdadeiro nome era Turner. Era o mais vivaz dos velhos mestres, um homem baixo, imensamente barrigudo, de barba negra, que começava a embranquecer, e pele trigueira. As vestes clericais emprestavam-lhe certo aspecto que lembrava um barril de alcatrão. Embora, por princípio, cada rapaz de cujos lábios ouvisse a sua alcunha fosse obrigado a copiar quinhentas linhas, não raro, por ocasião de algum jantar, fazia trocadilhos a esse respeito. Era o mais mundano dos mestres. Jantava fora com mais frequência do que os outros e a sua sociedade não se compunha unicamente de elementos clericais. Os alunos consideravam-no como uma espécie de estroina. Durante as férias, desprezava o trajo clerical, e fora visto na Suíça com alegres fatos de xadrez. Apreciava uma garrafa de vinho e uma boa refeição e, como o surpreendessem no Café Royal, certa vez, acompanhado de uma dama, provavelmente alguma parente próxima, daí em diante as diversas gerações de estudantes imaginaram-no mergulhado em orgias cujos pormenores circunstanciados revelavam ilimitada crença na depravação humana.

 

Mr. Turner achava necessário um trimestre para meter nos eixos os garotos que vinham do terceiro ano. De vez em quando, deixava escapar uma alusão hábil que denotava estar perfeitamente ao par do que se passava na classe do colega. Encarava tudo com bom humor. Para ele, os alunos eram jovens malfeitores que só seguiam o caminho da verdade se tivessem a certeza de que as mentiras seriam descobertas, e cuja senso de honra se limitava aos companheiros e não se aplicava às suas relações com os professores; enfim, que se tornavam menos molestos depois de descobrirem que isso não lhes trazia vantagem alguma. Orgulhava-se da sua classe e, aos cinquenta e cinco anos, esperava, com o mesmo ardor de tempos passados, que ela se distinguisse nos exames. Possuía o génio peculiar aos obesos: irritava-se facilmente e acalmava-se com mais facilidade ainda. Em breve os alunos descobriram bastante bondade por trás das invectivas que lhes dirigia constantemente. Não suportava tolos, mas revelava grande paciência para com os rapazes sob cujo procedimento voluntarioso julgava ver alguma inteligência. Gostava de convidá-los para o chá e os rapazes, embora jurassem que não sentiam nem o cheiro dos bolos e das guloseimas - pois era costume pensarem que a sua corpulência denunciava um apetite voraz e que essa voracidade devia ser causada por alguma solitária  - aceitavam o convite com verdadeiro prazer.

 

Philip gozava, agora, um pouco mais de conforto, pois o espaço era tão reduzido que só havia salas de estudo para os alunos do curso secundário. Até então, vivera na grande sala em que se tomavam as refeições e onde as classes primárias estudavam numa promiscuidade que o desgostava vagamente. De vez em quando, a presença dos outros inquietava-o e sentia grande necessidade de se isolar. Saía, então, em solitários passeios pelo campo. Havia um pequeno arroio que deslizava através de prados verdejantes; Philip, sem saber porquê, sentia-se imensamente feliz ao vaguear ao longo das margens, por entre as árvores podadas. Uma vez cansado, deitava-se de bruços na relva e ficava a observar os movimentos dos cadozes e dos girinos. Dava-lhe especial prazer passear pelo terreno da escola. Existia um relvado onde, no verão, se jogava o *cricket*, mas que permanecia tranquilo o resto do ano. Os rapazes percorriam-no de um lado para outro, de braço dado, e, de vez em quando, um mais estudioso passava lentamente, com o olhar abstracto, repetindo algum trecho difícil de decorar. Instalada nos majestosos olmos, havia ama colónia de gralhas que enchia o ar com seus gritos melancólicos. Num dos lados elevava-se a Catedral, com a grande torre central, e Philip, que não conhecia ainda a beleza, sentia, ao vê-la, um deleite perturbador e incompreensível. Quando lhe reservaram uma sala de estudo (era um aposento pequeno, com janela para a rua, compartilhado por quatro alunos) comprou uma vista da Catedral e pregou-a na sua carteira. Começava a despertar-lhe interesse o que via pela janela da sala, na quarta classe. Dava para velhos relvados, tratados com carinho, e lindas árvores de densa e rica folhagem. Experimentava estranha sensação dentro do peito, mas não saberia dizer se era dor ou prazer. Era o primeiro despontar da sensação estética. Seguiram-se outras transformações. A sua voz, começou a mudar. Já não a dominava e da garganta escapavam-se-lhe sons esquisitos.

Passou, então, a frequentar as aulas que o reitor ministrava no seu gabinete, depois do chá, a fim de preparar os alunos para o sacramento da confirmação. A devoção de Philip não resistira à prova do tempo e havia muito abandonara a leitura da Bíblia antes de dormir. Agora, porém, sob a influência de Mr. Perkins e ante a nova condição do corpo que tanto o inquietava, os velhos sentimentos ressuscitavam e censurou-se amargamente por esse abandono. As chamas do inferno ardiam, ferozes, aos olhos da sua imaginação. Se tivesse morrido nessa época, quando era pouco mais do que um infiel, estaria perdido para sempre. Acreditava implicitamente na dor eterna, muito mais do que na eterna felicidade. Tremia à ideia dos perigos que correra.

 

Desde o dia em que Mr. Perkins lhe falara com bondade, quando ele sentia o pungir da humilhação mais insuportável, Philip passara a adorar o mestre como um cão adora o dono. Procurava, inutilmente, um modo qualquer de lhe agradar. Guardava a menor palavra de louvor que por acaso lhe caísse dos lábios e, quando começou a frequentar as tranquilas reuniões realizadas na residência do reitor, estava preparado para se entregar por completo. Com a boca entreaberta e a cabeça um pouco inclinada para a frente, a fim de não perder uma só palavra, citava com insistência os olhos brilhantes de Mr. Perkins. A simplicidade do ambiente emprestava aos assuntos abordados extraordinário poder emotivo. Muitas vezes o mestre, empolgado também pela beleza do tema, empurrava o livro para o lado e, entrelaçando as mãos sobre o coração, como para sofrear-lhe as palpitações, comentava os mistérios da fé comum a todos. Nem sempre Philip compreendia, mas não procurava compreender. Tinha a vaga impressão de que era suficiente sentir. Comparava então o reitor, com a cabeleira preta e rebelde e o seu pálido rosto, aos profetas de Israel, que não receavam vituperar os próprios reis, e ao lembrar-se do Redentor imaginava-_o com os mesmos olhos escuros e faces descoradas.

 

Mr. Perkins levava muito a sério essa parte das suas obrigações. Nunca se lhe notava, nessas ocasiões, aquele humor cintilante que levava os outros mestres a acusá-lo de volubilidade. Como arranjasse tempo para tudo, no decorrer do dia, instruía às vezes, separadamente, durante um quarto de hora, mais ou menos, os rapazes que preparava para a confirmação. Queria compenetrá-los de que era aquele o primeiro passo conscientemente sério que iam dar na vida. Procurava sondar-lhes os recessos da alma e incutir-lhes a sua devoção veemente. Sentia em Philip, não obstante o seu retraimento, a possibilidade de uma paixão igual à sua. O temperamento do rapaz afigurava-se-lhe essencialmente religioso. Certo dia, de súbito, desviou-se do assunto sobre que falava.

 

- Já pensaste no que serás quando cresceres? - perguntou.

 

- Meu tio quer que eu me ordene - respondeu Philip.

 

- E tu?

 

Philip desviou os olhos. Sentia vergonha de dizer que se considerava indigno.

 

- Não conheço outro modo de vida que seja tão cheio de felicidade como o nosso. Quisera fazer-te sentir o privilégio maravilhoso que ele encerra. _é possível servir a Deus onde quer que seja, mas nós estamos mais perto dele. Não quero influenciar-te mas se viesses a pensar em tal... ah de uma vez para sempre... não poderias deixar de sentir a alegria e o conforto que nunca mais nos abandonam.

 

Philip não respondeu, mas o reitor leu-lhe nos olhos uma semicompreensão das suas palavras.

 

- Se continuares como até agora, em breve te transformarás no primeiro aluno de toda a escola, e ao terminar o curso terás uma bolsa de estudos quase garantida. Possuis alguns recursos?

 

- Meu tio diz que, ao completar vinte e um anos, passarei a receber cem libras por ano.

 

- Estarás rico. Eu nada tive.

 

O reitor hesitou um pouco e depois, riscando despreocupadamente com o lápis o mata-borrão que tinha à frente, continuou.

 

-- Parece-me que a tua escolha de profissão é um tanto ou quanto limitada. Não poderás, por exemplo, dedicar-te a coisa alguma que exija actividade física.

 

Philip corou até à raiz dos cabelos, o que acontecia todas as vezes que se referiam ao pé boto. Mr. Perkins olhou gravemente para ele.

 

- Parece-me que és hipersensível a respeito da tua infelicidade. Já pensaste em agradecê-la a Deus?

 

Philip ergueu os olhos vivamente. Os lábios contraíram-se-lhe. Lembrou-se de que, durante meses inteiros, confiando no que lhe haviam dito, implorara a Deus que o curasse como curara o leproso e restituíra a vista ao cego.

 

- Enquanto a aceitares com rebeldia, só sentirás aumentar a tua vergonha. Se, pelo contrário, a considerares como uma cruz que és obrigado a transportar porque a resistência dos teus ombros assim o permite, e aí está o favor de Deus, então transformá-la-ás numa fonte de venturas, em vez de uma desgraça.

 

Notou que o rapaz tinha aversão a abordar aquele assunto e por isso deixou-o retirar-se.

 

Philip, porém, meditou sobre tudo quanto o reitor lhe dissera. Inteiramente absorvido pela cerimónia que ia realizar-se dentro em pouco, mergulhou em êxtase místico. O seu espírito parecia libertar-se dos laços da carne e viver uma nova vida. Aspirava à perfeição, com todo o ardor de que era capaz. Queria entregar-se por completo ao serviço de Deus e optou em definitivo pela ordenação. Ao chegar o grande dia, a alma achava-se tão profundamente comovida pelos preparativos, pelos livros que estudara e, acima de tudo, pela influência dominadora do mestre, que mal se continha de alegria e temor. Um pensamento o atormentava. Sabia que teria de dirigir-se sozinho para o altar e assim mostrar o pé não só a toda a escola, reunida para assistir à cerimónia, como aos estranhos, pessoas vindas da cidade ou pais que queriam estar presentes à confirmação dos filhos. Chegado o momento, porém, sentiu de súbito a possibilidade de aceitar a humilhação com alegria. Ao atravessar o altar, coxeando, pequenino e insignificante sob as majestosas abóbadas da Catedral, ofereceu conscientemente a sua deformidade em sacrifício a Deus, que o amava.

 

Mas Philip não podia viver por muito tempo no ar rarefeito das alturas. Repetia-se, agora, o que ocorrera quando do seu primeiro arrebatamento religioso. Sentia de tal forma a beleza da fé e a ânsia de sacrifício ardia-lhe no coração com tamanho fulgor que as forças pareciam não corresponder à sua ambição. A violência da paixão extenuara-o. A sua alma tornou-se, de súbito, singularmente árida. Começou a esquecer a presença de Deus, que sempre lhe parecera tão próximo, e as práticas religiosas, posto que ainda observadas pontualmente, transformavam-se em mera formalidade. A princípio censurava a si próprio aqueles lapsos e o temor aos apelos do inferno redobrava de veemência; mas a paixão estava morta e pouco a pouco outros interesses passaram a absorver-lhe o pensamento.

 

Philip tinha poucos amigos. O hábito de ler isolava-o; tal era a necessidade desse hábito que, após algumas horas passadas em companhia dos colegas, sentia-se fatigado e inquieto. Orgulhava-se dos largos conhecimentos adquiridos através de inúmeros livros, mas não sabia ocultar, com o seu espírito vivo, o desprezo com que encarava a estupidez dos companheiros. Queixavam-se de que Philip era presunçoso e, como apenas os superava em matérias que consideravam sem importância, perguntavam-lhe em tom satírico qual a razão de toda aquela fatuidade. Adquirira o senso do humor e descobrira que tinha o dom de fazer observações amargas, embora verdadeiras, que feriam o amor-próprio das pessoas. Fazia-as pelo simples prazer que isso lhe dava, sem perceber quanto eram afrontosas, e sentia-se bastante ofendido ao verificar que as vítimas principiavam a tratá-lo com hostilidade. As humilhações sofridas quando do seu ingresso na escola haviam-lhe despertado, com relação aos colegas, uma repulsa de que nunca se pôde libertar; conservava-se esquivo e calado. Embora tudo fizesse para afastar a simpatia dos outros rapazes, ansiava ardentemente pela popularidade que outros com facilidade conquistavam. Admirava-os de longe, extravagantemente. E, posto que, por inclinação, se mostrasse mais sarcástico para com eles do que para com os demais, improvisando gracejos à sua custa, faria os maiores sacrifícios para trocar o lugar com eles. Seria capaz de trocar de lugar mesmo com o mais estúpido da escola, contanto que tivesse um físico são. Contraiu, então, um hábito singular. Imaginava ser um rapaz por quem sentia especial predilecção, transferia por assim dizer a própria alma para o corpo do outro, adoptava-lhe a voz e a espontaneidade do riso; imaginava-se a praticar todos os actos que o outro praticava. Era tudo tão vívido que às vezes acreditava ter adquirido nova personalidade. Desfrutou, desse modo, muitos intervalos de fantástica felicidade.

 

Ao iniciar-se o período do Natal, logo após o sacramento do crisma, Philip foi transferido para outra saleta de estudo. Um dos que a compartilhavam chamava-se Rose. Estava na mesma turma de Philip, que sempre o olhara com invejosa admiração. Não era bonito; embora as grandes mãos e os ossos desenvolvidos sugerissem que viria a ser um homem alto, possuía um físico canhestro. Os olhos, porém, eram encantadores, e quando ria (vivia constantemente a rir) as faces enrugavam-se-lhe jovialmente ao redor deles. Não era sagaz nem estúpido, mas dava conta das suas obrigações e salientava-se nos jogos. Era o favorito dos mestres e colegas, dedicando, por sua vez, amizade a todos eles.

 

Quando Philip foi transferido para o novo estudo, verificou que os outros o recebiam com frieza, uma vez que estavam juntos havia três trimestres. Ficara nervoso ao sentir-se intruso. Aprendera, contudo, a ocultar os seus sentimentos, e, devido a isso, não aborrecia ninguém. Na presença de Rose, então, como se não resistisse ao seu encanto, o que, aliás, acontecia com todos os outros, Philip mostrava-se ainda mais retraído e brusco. Fosse em virtude disso, levado a exercer, inconscientemente, a fascinação que sabia possuir apenas pela observação dos efeitos, ou fosse movido por pura bondade de coração, o certo é que Rose foi o primeiro a admitir Philip no seu círculo. Certo dia, de improviso, perguntou-lhe se queria acompanhá-lo ao campo de futebol. Philip corou:

 

- Não posso caminhar tão depressa como tu - observou.

 

- Tolice! Vamos.

 

Pouco antes de saírern, um rapaz qualquer assomou a cabeça à porta entreaberta e convidou Rose para ir com ele.

 

- Não posso - respondeu. - prometi ir com Carey.

 

--Não te preocupes comigo - disse Philip, prontamente. - Não me importo.

 

- Tolice! - repetiu Rose.

 

Olhou para Philip, com aquele seu ar tão afável, e sorriu. Philip sentiu um palpitar esquisito no coração.

 

Essa amizade cresceu rapidamente, como acontece entre rapazes, e os dois tornaram-se inseparáveis. Os colegas, admirados com tão repentina intimidade, perguntavam a Rose que atractivos descobrira em Philip.

 

- Oh, não sei - respondeu. - Não é mau rapaz, afinal de contas.

 

Mais tarde, costumavam entrar na capela de braço dado ou conversar enquanto passeavam no pátio. Onde quer que um estivesse, o outro também seria encontrado e, como reconhecendo-lhe a sua qualidade de proprietário, os rapazes que queriam falar com Rose confiavam recados a Carey. A princípio, Philip mostrava-se reservado. Não desejava entregar-se inteiramente à alegria e ao desvanecimento que o dominavam. Mas a descon-

fiança  :, que lhe inspirava o destino não tardou a transformar-se em imensa felicidade. Considerava Rose a criatura mais admirável que já vira. Os livros tinham perdido toda a importância para ele. Não podia dar-lhes atenção quando havia coisa infinitamente mais séria com que se preocupar. Às vezes, os amigos de Rose vinham tomar chá na sua sala de estudo ou conversar, quando nada tinham que fazer. Rose gostava dessas reuniões, que proporcionavam oportunidades para boas pândegas. Todos concordavam em que Philip era um óptimo camarada, e isso deixou-o radiante.

 

Por ocasião do último dia do período lectivo, ele e Rose combinaram o comboio em que voltariam. Assim poderiam encontrar-se na estação e tomar chá na cidade, antes de regressarem à escola. Philip foi para casa com o coração oprimido. Pensou em Rose durante todo o tempo das férias, imaginando as coisas que fariam juntos no período seguinte. Entediou-se no vicariato e, no último dia, o tio fez-lhe a pergunta costumada, no tom jovial de sempre:

 

- Então, estás contente por voltar à escola?

 

- Muito - respondeu, cheio de alegria.

 

Para estar certo de encontrar-se com Rose na estação, tomou um comboio anterior àquele em que habitualmente viajava e esperou na plataforma uma hora. Ao chegar o comboio de Faversham, onde Rose teria que fazer o trasbordo, correu ansioso ao encontro do amigo. Mas Rose não viera. Perguntou a um carregador quando chegava outro comboio e esperou. Sofreu nova decepção. Sentia frio e fome; resolveu seguir para a escola pelo caminho mais curto possível, percorrendo travessas e ruelas miseráveis. Encontrou Rose na sala de estudo, com os pés sobre o fogão, falando pelos cotovelos com meia dúzia de colegas, sentados por onde calhava. Apertou a mão de Philip entusiasticamente, mas este caiu das nuvens, pois notou que Rose esquecera por completo o encontro marcado.

 

- Por que chegas tão atrasado?

 

- perguntou Rose. - Pensei que já não viesses.

 

- _às quatro e meia, estavas na estação - observou outro colega

 

- Vi-te quando cheguei.

 

Philip corou de leve. Não queria dar a entender a Rose que tivera a ingenuidade de esperar por ele.

 

- Tive que acompanhar uma amiga da minha família - inventou prontamente. - Pediram-me que a levasse até ao comboio.

 

A decepção, porém, deixou-o um pouco mal-humorado. Conservou-se em silêncio e, quando lhe dirigiam alguma pergunta, respondia com monossílabos. Pretendia discutir o caso com Rose, quando estivessem a sós. Mas, logo que os outros se retiraram, Rose veio sentar-se no braço da cadeira em que Philip descansava. :,

 

- Sinto-me contente por estarmos no mesmo estudo este período. Formidável, não achas?

A sua alegria parecia tão sincera que o aborrecimento de Philip se desvaneceu. Como se nunca se tivessem separado, puseram-se a conversar sobre mil coisas de interesse comum.

 

A princípio, Philip sentia-se tão grato pela amizade de Rose que não tinha coragem de ter com ele a menor exigência. Aceitava as coisas como realmente eram e achava a vida agradável. Agora, contudo, a amabilidade universal de Rose começava a desgostá-lo. Queria uma intimidade mais exclusiva, reclamando como direito o que antes aceitara como favor. Tinha olhares ciumentos quando via Rose em companhia de outros, e, embora reconhecesse não ser razoável, não podia reprimir algumas palavras ásperas. Quando Rose passava uma hora a galhofar noutra sala de estudo, Philip recebia-o, ao voltar, com o sobrolho carregado. Conservava-se assim o dia inteiro, e o seu sofrimento era ainda maior porque Rose, ou não lhe notava o mau humor, ou fingia ignorá-lo. Não raro, inteiramente cônscio da estupidez de tal procedimento, Philip provocava uma disputa e os dois não se falavam durante alguns dias. Era, contudo, impossível continuar zangado por muito tempo, e, embora convencido de que tinha razão, pedia desculpa humildemente. Na semana que se seguia, voltavam a ser, então, os grandes amigos de sempre. Os bons tempos, porém, haviam passado; Philip observava que muitas vezes Rose passeava com ele, obedecendo simplesmente ao velho hábito ou por temor ao seu génio. Já não tinham muito que dizer um ao outro e muitas vezes Rose mostrava enfado. Philip percebeu que o seu defeito físico principiava a irritá-lo.

 

Ao aproximar-se o fim do período dois ou três rapazes foram atacados de escarlatina e falou-se em mandar todos para casa, a fim de evitar uma epidemia. Os doentes porém foram isolados, e como não se verificaram outros casos a impressão geral foi de que o perigo passara. Um daqueles era Philip. Permaneceu no hospital as férias da Páscoa e ao começar o período do Verão, foi enviado para o vicariato, a fim de mudar de ares. Embora o médico assegurasse que não havia perigo de contágio, o vigário recebeu o sobrinho com certo receio. Achou má lembrança do doutor sugerir que a convalescença se efectuasse à beira-mar, e apenas consentiu em tê-lo em casa porque não havia outro lugar para onde mandá-lo.

 

Quando o período já ia em meio, Philip regressou à escola. Esquecera as brigas que tivera com Rose, lembrando-se apenas :,

de que ele era o seu maior amigo. Reconhecia ter sido muito tolo e resolveu mostrar-se mais razoável. Durante a doença, Rose enviara-lhe dois bilhetes, terminando cada um deles com as palavras: "_Volta o mais depressa possível". Philip imaginava que Rose devia estar tão ansioso por vê-lo quanto ele próprio almejava encontrar-se com o amigo.

 

Foi informado de que, em consequência da morte de um dos rapazes atacados de febre, houvera uma mudança na distribuição dos alunos e Rose já não era seu companheiro de estudo. Foi para ele uma amarga decepção. Assim que chegou, porém, correu para a sala de Rose. Estava este sentado à carteira, com um companheiro de nome Hunter, e voltou-se irritado quando Philip entrou.

 

- Que diabo é isso? - gritou.

 

E depois, avistando Philip:

 

- Ah, és tu.

 

Philip estacou embaraçado.

 

- Lembrei-me de vir até aqui, para saber como estavas.

 

- Estamos a trabalhar.

 

Hunter intrometeu-se na conversa.

 

- Quando chegaste?

 

- Há cinco minutos.

 

Os dois olhavam-no como se os estivesse a incomodar. Era evidente que esperavam a sua retirada. Philip corou.

 

- Saio já. Podes procurar-me quando acabares - disse a Rose.

 

- Está bem.

 

 Philip fechou a porta e dirigiu-se, coxeando, para a sua sala de estudo. Sentia-se profundamente ofendido. Longe de se mostrar alegre ao voltar a vê-lo, Rose parecia antes lamentar a sua vinda. Era como se não fossem mais do que simples conhecidos. Embora esperasse na sala de estudo, sem a abandonar um só momento, o amigo não apareceu. Na manhã seguinte, por ocasião das orações, viu Rose e Hunter de braço dado. Outros contaram-lhe o que não lhe era possível deduzir por si mesmo. Esquecera-se de que três meses constituem um espaço de tempo bem longo na vida de um estudante, e se os tinha passado na solidão, não acontecera o mesmo com Rose. Hunter preenchera o lugar vago. Philip notou que o amigo o evitava, dissimuladamente. Seria incapaz, contudo, de aceitar semelhante situação sem uma explicação directa. Esperou que Rose se encontrasse só na sala de estudo e dirigiu-se para lá:

 

- Posso entrar? - perguntou.

 

Rose olhou-o com um embaraço que o fez ficar furioso com Philip.

 

-- Podes, se quiseres.

 

- É muita bondade tua - disse Philip em tom sarcástico.

 

- Que queres?

 

- Por que tens sido tão estúpido depois da minha volta?

 

- Ora, não sejas burro - retorquiu Rose.

 

- Não sei o que vês em Hunter.

 

- _isso é comigo.

 

Philip baixou o olhar. Era incapaz de dizer o que sentia no íntimo. Receava submeter-se a uma humilhação. Rose levantou-se.

 

- Tenho de ir ao ginásio - disse.

 

Quando saía a porta Philip, com grande esforço, exclamou:

 

- Olha, Rose, não sejas um animal.

 

- Ora, vai para o diabo!

 

Rose fechou violentamente a porta, deixando Philip só, a tremer de raiva. Este voltou, depois, para a sua sala de estudo e pôs-se a meditar sobre a discussão de minutos antes. Odiava Rose, agora; faria tudo por magoá-lo. Quantas coisas mordazes lhe poderia ter dito! Pensou longamente sobre o fim daquela amizade e imaginava os comentários dos outros. A sua sensibilidade fazia-o ver sorrisos de desprezo e expressões de admiração nos companheiros que, na verdade, não se preocupavam com ele. Procurava reconstituir os diálogos dos colegas:

 

- Afinal de contas, isso não podia durar muito. Duvido mesmo que ele tenha gostado de Carey. Idiota!

 

Para mostrar indiferença, iniciou aparente amizade com um rapaz chamado Sharp, a quem desprezava e odiava. Era londrino, de aspecto pesadão e grosseiro, com um prenúncio de bigode e bastas sobrancelhas que se uniam por cima do nariz. Tinha as mãos macias e maneiras urbanas de mais para a sua idade. Ao falar, deixava transparecer ligeiramente o sotaque londrino. Era desses rapazes indolentes, de constituição avessa aos desportos, usando de grande astúcia para evitar a participação nos jogos obrigatórios. Os colegas e os mestres olhavam-no com vaga antipatia e só por arrogância Philip procurava agora o seu convívio. Dentro de alguns meses, Sharp iria passar um ano na Alemanha. Detestava a escola e considerava a vida ali como uma indignidade que fora condenado a suportar, até adquirir idade suficiente para penetrar no mundo. Londres era tudo o que lhe interessava. Contava várias histórias das suas proezas lá, nas férias. Da sua conversa - falava em voz macia e profunda - desprendia-se, vagamente, o burburinho das ruas de Londres ao cair da noite. Philip ouvia-o ao mesmo tempo com fascinação e repulsa. Com a sua viva imaginação, via as multidões acotovelarem-se em redor dos teatros, o brilho dos restaurantes baratos, bares onde homens, meio embriagados, sentados em bancos de pernas altas, conversavam com as criadas e, sob os candeeiros das ruas, o desfilar misterioso de bandos negros em busca do prazer. Sharp emprestou-lhe algumas novelas baratas de Holywell Street, que Philip leu no cubículo, com uma espécie de temor maravilhoso.

 

Certa vez, Rose tentou uma reconciliação. Era um rapaz de boa índole e não gostava de ter inimizades.

 

- Olha, Carey, por que continuas obstinado como um burro? Não ganhas nada em romper comigo.

 

- Não sei a que te referes - respondeu Philip.

 

- Bem, não sei por que nos não falamos.

 

- Aborreces-me - retorquiu Philip.

 

- Faze o que quiseres.

 

Rose encolheu os ombros e afastou-se. Philip ficou muito pálido, como acontecia todas as vezes que se comovia, e o coração batia-lhe com violência. Quando viu Rose desaparecer, sentiu-se imensamente infeliz. Não sabia explicar por que respondera daquela forma. Daria tudo para reconquistar a amizade de Rose. Lamentava ter brigado com o companheiro, e, agora que o fizera sofrer, mostrava-se bastante arrependido. No momento, porém, não soubera dominar-se. Parecia-lhe que algum demónio se apoderara dele, obrigando-o a pronunciar palavras amargas quando, na verdade, o seu maior desejo era apertar a mão de Rose e restabelecer a antiga amizade. A vontade de magoar fora mais forte do que ele. Procurara vingar-se da dor e da humilhação que sofrera. Tudo tinha sido produto do seu orgulho e redundara numa insensatez, pois sabia que Rose não ligaria maior importância ao caso, sendo ele o único prejudicado. Ocorreu-lhe então a ideia de ir ao encontro de Rose e dizer:

 

- Olha, desculpa, portei-me como um asno. Não me contive. Esqueçamos.

 

Sabia, porém, que era incapaz de fazê-lo. Receava que Rose zombasse dele. Teve raiva a si próprio, e, quando Sharp apareceu, pouco depois, Philip aproveitou a primeira oportunidade para entrar em disputa com o amigo. Possuía o dom diabólico de descobrir os pontos fracos dos outros, dizendo coisas que ofendiam por serem verdadeiras. Sharp, contudo, teve a última palavra.

 

- Acabo de ouvir Rose falar com Mellor a teu respeito. Mellor disse: "_Por que não lhe deste um pontapé? Isso o ensinaria a ser bem educado". E Rose respondeu: "_Não quis. _aleijado dos diabos!".

 

Philip tornou-se subitamente escarlate. Não pôde responder, pois sentia na garganta um nó que quase o sufocava.

 

Philip foi promovido à sexta classe, mas tinha agora profunda aversão ao colégio. Perdida a ambição, pouco lhe importava o triunfo ou o malogro. Ao amanhecer, despertava cheio de desânimo ante a perspectiva de mais um dia de fadiga. Estava cansado de fazer coisas ditadas pelos outros. As restrições aborreciam-no não porque fossem despropositadas, mas pelo simples facto de serem restrições. Ansiava pela liberdade. Sentia-se farto de repetir coisas que já sabia e não suportava o constante repisar de assuntos elementares, por amor de algum colega de espírito bronco.

 

Com Mr. Perkins, o aluno trabalhava se quisesse. Era ao mesmo tempo arrebatado e abstracto. A sala da sexta classe era na parte restaurada da velha abadia e possuía uma janela gótica. Philip tentava enganar o tédio desenhando vezes seguidas essa janela; noutras ocasiões, desenhava de memória a grande torre da catedral ou o portão que dava entrada para o recinto do colégio. Tinha queda para o desenho. Durante a mocidade, a tia Louise pintara a aguarela, e possuía diversos álbuns cheios de esboços de igrejas, velhas pontes e pitorescas casas de campo. Exibia frequentemente esses álbuns por ocasião dos chás oferecidos no vicariato. Certa vez, dera a Philip, como presente de Natal, uma caixa de tintas, e a primeira coisa que ele fez, foi copiar quadros da tia. Reproduzira-os com mais perfeição do que se podia esperar e em pouco tempo já começava a pintar obras originais. Mrs. Carey encorajara-o. Era uma boa maneira de afastá-lo do mal e mais tarde esses trabalhos renderiam algum dinheiro nas quermesses. Dois ou três dos quadros de Philip foram emoldurados e pendurados no seu quarto de dormir.

 

Um dia, porém, no fim dos trabalhos matinais, Mr. Perkins chamou-o à parte, no momento em que se retirava da sala de aula.

 

-- Quero falar contigo, Carey.

 

Philip esperou. Mr. Perkins correu os dedos magros por entre barba e olhou para ele. Parecia meditar no que devia dizer.

 

-- Que se passa contigo, Carey? -- perguntou, de súbito.

 

Philip corando olhou-o de relance. Como, porém, já o conhecia na perfeição, esperou, sem responder, que ele prosseguisse.

 

-- Tenho estado descontente contigo ultimamente. Tens sido negligente e desatento. Pareces não tomar interesse pelo estudo. Estás a tornar-te um aluno desmazelado e medíocre.

 

-- Sinto muito, senhor reitor -- disse Philip.

 

-- É a única coisa que tens a dizer em tua defesa?

 

Philip olhou para o chão, aborrecido. Como poderia explicar que estava a morrer de tédio?

 

-- Este período vais retroceder, como sabes. Não posso dar boas informações.

 

Philip pensou no que ele diria, se soubesse como essas informações eram recebidas no vicariato. Chegavam por altura do primeiro almoço. Mr. Carey olhava-as com indiferença e entregava-as Philip.

 

-- Aqui está o teu boletim. É melhor que o vejas pessoalmente :,

-- observava, rasgando com o dedo a cinta de um catálogo de livros em segunda mão.

 

Philip lia-o.

 

-- É bom? -- indagava a tia Louise.

-- Não tão boas quanto eu mereço - respondia Philip, com um sorriso, entregando-lhe a folha.

 

-- Lerei mais tarde, quando estiver com os óculos -- volvia ela.

 

Terminada a refeição, porém, Mary Ann vinha anunciar a chegada do açougueiro e Mrs. Carey quase sempre se esquecia de ler o boletim.

 

Mr. Perkins continuou.

 

-- Estou desiludido contigo. Não posso compreender. Sei que és capaz do que queres, mas pareces não querer nada. Pretendia nomear-te monitor no próximo trimestre, mas acho melhor esperar algum tempo.

 

Philip corou. Desagradava-lhe a ideia de ser posto de lado. Os lábios contraíram-se-lhe.

 

-- E há ainda outra coisa. Precisas de começar a pensar na bolsa de estudo. Não conseguirás, a não ser que trabalhes com afinco.

 

O sermão deixou Philip irritado. Estava furioso com o mestre e furioso consigo mesmo:

 

-- Acho que não vou para Oxford -- observou.

 

-- Porque não? Pensei que pretendesses ordenar-te.

 

-- Mudei de ideia.

 

-- Porquê?

 

Philip não respondeu. Mr. Perkins, na postura estranha de sempre, como a de certas figuras dos quadros de Perugino, cofiava pensativamente a barba. Olhou para Philip, com a expressão de quem procura compreender, e, de repente, disse-lhe que podia ir-se embora.

 

Mas, aparentemente, não ficou convencido, pois, certa noite, uma semana mais tarde, quando Philip teve de levar-lhe alguns papeis ao gabinete, a conversa foi reiniciada. Desta vez, porém, adoptou um método diferente. Falou não na qualidade de mestre, mas como de um homem para outro. Não parecia interessar-lhe que o aproveitamento de Philip deixasse a desejar ou que fossem poucas as probabilidades de vencer os rivais mais preparados na conquista do prémio que lhe facultaria a ida para Oxford. O que interessava era a mudança de intenções a respeito da sua vida futura. Mr. Perkins procurou reavivar-lhe o ardente desejo de receber ordens sacras. Actuou, com grande perícia, sobre os sentimentos do rapaz, o que não foi difícil, uma vez que ele próprio estava sinceramente comovido. A nova resolução de Philip afligia imenso o mestre. Desprezava a oportunidade de ser feliz na vida, em troca não sabia de quê. A voz de Mr. Perkins era bastante :, persuasiva. Philip, que era muito sensível à comoção dos outros, e tinha um temperamento altamente sentimental, apesar da plácida aparência exterior -- o rosto, já por natureza, já em virtude do hábito adquirido em vários anos de escola, raras vezes revelava o que sentia no peito, a não ser pela facilidade com que corava -- deixou-se comover profundamente pelas palavras do mestre. Ficava-lhe muito grato por demonstrar tanto interesse pela sua pessoa e, por outro lado, pungiam-lhe a consciência os efeitos do seu procedimento. Era bastante lisonjeiro saber que Mr. Perkins se preocupava com o seu futuro, quando tinha toda a escola para lhe absorver a atenção mas, ao mesmo tempo, porém, alguma coisa, como alguém que estivesse ao seu lado, se agarrava desesperadamente a duas palavras.

 

-- Não quero! Não quero! Não quero!

 

Sentiu-se resvalar. Via-se impotente diante da fraqueza que parecia brotar no seu íntimo. Era como a água que invade pouco a pouco uma garrafa posta a boiar. E cerrou os dentes, repetindo as palavras de si para si:

 

-- Não quero! Não quero! Não quero!

 

Por fim, Mr. Perkins pousou a mão no ombro de Philip.

 

-- Não desejo influenciar-te. Deves escolher por ti. Pede a Deus Todo-_Poderoso que te auxilie e conduza.

 

Quando Philip saiu da casa do reitor, estava a chuviscar. Não havia vivalma na arcada que levava ao edifício principal e as gralhas dormiam silenciosas entre a ramagem dos olmos. Caminhou em redor, a passos lentos. Sentia calor e a chuva fazia-lhe bem. Meditou com calma sobre tudo quanto Mr. Perkins lhe dissera, calmamente agora que estava longe da sua personalidade ardente e dava graças por não ter transigido.

 

Na escuridão podia apenas divisar vagamente a massa enorme da catedral. Odiava-a agora, por causa dos enfadonhos ofícios a que tinha de assistir. A antífona era interminável, sendo todos forçados a permanecer de pé enquanto era cantada. Não se distinguiam as palavras do sermão e ainda por cima exigia-se completa imobilidade durante a cerimónia, enquanto o corpo ansiava por movimento. Philip lembrou-se então dos dois ofícios realizados aos domingos, em Blackstable. A igreja era nua e fria e o ambiente ficava impregnado do odor de brilhantina e roupas engomadas. Pregava tanto o tio como o cura, cada um por sua vez. _à medida que crescera, Philip conhecia melhor o tio. Intolerante e positivo, não compreendia como um pároco podia pregar, com sinceridade, caminhos que na realidade não seguia. Tal burla revoltava-o. Seu tio era um homem fraco e egoísta, cujo principal objectivo consistia em evitar preocupações.

 

Mr. Perkins falara-lhe sobre a beleza de uma vida dedicada ao serviço de Deus. Philip sabia muito bem que espécie de vida

 :, os membros do clero levavam na região que habitava. Havia o vigário de Whitestone, paróquia situada a pouca distância de Blackstable; era solteirão, e, para fazer alguma coisa resolvera nos últimos tempos transformar-se em lavrador. De vez em quando, a folha local dava notícia de processos movidos contra sicrano e beltrano, trabalhadores a quem recusava pagar os respectivos salários ou comerciantes que acusava de burla. Corriam boatos de que as suas vacas morriam de fome e falava-se com insistência em medidas a serem tomadas em comum contra ele. Havia ainda o vigário de Ferne, homem de bonita figura, que usava barba; a esposa fora obrigada a abandoná-lo, em virtude da sua crueldade, e enchera a vizinhança com histórias a respeito da sua conduta imoral. O vigário de Surle, pequena povoação à beira-mar, era visto todas as noites na taberna da esquina. Os zeladores da igreja iam consultar a opinião de Mr. Carey. Não tinham com quem conversar a não ser com os pequenos rendeiros e pescadores; nas longas noites de Inverno, o vento soprava forte, assobiando lugubremente por entre as árvores desfolhadas. Em redor, viam apenas a nua monotonia dos campos arados. Lutavam com a pobreza e a falta de trabalho proveitoso. Todos os seus defeitos se desenvolviam livremente. Nada lhes opunha obstáculo. Tornavam-se obtusos e excêntricos. Philip sabia de tudo isso, mas na intolerância própria da idade não queria admitir desculpas. Tremia de horror ante a perspectiva de uma vida semelhante. Queria conhecer mundo.

 

Mr. Perkins viu logo que as suas palavras não tinham produzido efeito sobre Philip, e por isso não lhe deu mais atenção durante o resto do período. Escreveu um boletim vitriólico. Quando este chegou a Blackstable, a tia Louise perguntou a Philip que tal achava os resultados e o rapaz respondeu alegremente:

 

-- Péssimos.

-- São de facto? -- exclamou o vigário. -- Deixa ver outra vez.

-- Acha que vale a pena eu continuar em Tercanbury? Seria muito melhor se fosse passar uma temporada à Alemanha.

 

-- Quem te meteu isso na cabeça? -- indagou Mrs. Carey.

 

-- Não acha uma boa ideia?

 

Sharp já deixara o colégio e escrevera a Philip, de Hanover. Impacientava-o ainda mais imaginar que o amigo iniciava a vida de verdade. Seria impossível suportar mais um ano de jugo.

 

-- Mas assim não obterás a bolsa de estudo.

 

-- De qualquer maneira, essa probabilidade não existe. Além disso, não me sinto muito inclinado a ir para Oxford. :,

 

-- Mas não pretendes ordenar-te, Philip? -- perguntou a tia Louise, alarmada.

 

-- Há muito que pus de parte essa ideia.

 

Mrs. Carey fitou-o com os olhos espantados, e em seguida, acostumada a dominar-se, tornou a encher a chávena para o tio. Não trocaram uma palavra. Philip notou então que as lágrimas rolavam lentamente pelas faces dela. Confrangeu-se-lhe o coração ao verificar que a magoara. No seu vestido negro colado ao corpo, feito por modéstia na vizinhança, o rosto enrugado, os olhos cansados e sem brilho, os cabelos grisalhos ainda frivolamente penteados em cachos, como no tempo da sua mocidade -- a pobre mulher era uma figura ridícula mas singularmente patética. Pela primeira vez Philip o notava.

 

Mais tarde, quando o vigário se fechou no gabinete em companhia do cura, rodeou-lhe a cintura com o braço.

 

-- Desculpe-me tê-la magoado, tia Louise -- disse. -- Mas não é justo que eu me ordene sem ter vocação para isso, não acha?

 

-- Estou tão desiludida, Philip -- gemeu ela. -- Fazia empenho nisso. Imaginava ver-te cura coadjutor de teu tio, e, quando chegasse o nosso dia... Não havemos de viver eternamente, não é assim?..., talvez viesses a ocupar o seu lugar.

 

Philip estremeceu. Foi tomado de pânico. O coração pulsava como um pombo a debater-se contra as grades da prisão. A tia chorava silenciosamente, com a cabeça pousada no ombro dele.

 

-- Gostaria que persuadisse o tio William a tirar-me de Tercanbury. Estou farto daquilo.

 

Mas o vigário de Blackstable não costumava alterar os planos que fazia, e havia muito fora estabelecido que Philip devia permanecer na *_King.s School* até aos dezoito anos, e então iria para Oxford. Fosse como fosse, nem queria ouvir falar na retirada imediata de Philip, pois não se fizera a comunicação ao director e as mensalidades teriam de ser pagas em qualquer hipótese.

 

-- Então, o tio comunicará a minha retirada no Natal? -- perguntou Philip, ao fim de longa e por vezes penosa conversação.

 

-- Vou escrever a Mr. Perkins, a pedir a sua opinião.

 

-- Oh, quem me dera ter vinte e um anos. É horrível depender dos outros.

 

-- Não deves responder assim a teu tio, Philip -- observou Mrs. Carey com brandura.

 

-- Mas não vê que Perkins preferirá que eu continue? Cada aluno contribui para aumentar os seus vencimentos.

-- E por que não queres ir para Oxford?

 

-- Qual a vantagem disso, já que não entrarei para a Igreja?

 

-- Tu não podes entrar para a Igreja: já estás dentro dela -- disse o vigário. :,

 

- Quero dizer que não vou ordenar-me -- replicou Philip com impaciência.

 

-- Que pretendes ser, Philip? -- perguntou Mrs. Carey.

 

-- Não sei. Nada resolvi ainda. Mas de uma forma ou de outra, será de grande utilidade conhecer línguas estrangeiras. Passando um ano na Alemanha, lucrarei muito mais do que se ficar toda a vida naquela toca.

 

Embora não o manifestasse sentia que Oxford significava pouco mais do que uma continuação da sua vida no colégio. Desejava ardentemente tornar-se senhor de si próprio. Além disso, seria sem dúvida reconhecido por antigos colegas e agora só lhe interessava fugir a todos eles. A sua vida escolar fora um desastre. Queria iniciar existência nova.

 

Aconteceu que o seu desejo de partir para a Alemanha coincidia com certas ideias que tinham sido discutidas ultimamente em Blackstable. _às vezes, o vigário hospedava em sua casa amigos que traziam notícias recentes do mundo exterior; os visitantes que vinham passar o mês de Agosto à beira-mar também olhavam as coisas através de um prisma especial. O vigário ouvira dizer que muitas pessoas não consideravam a educação antiga de grande utilidade no presente, tendo as línguas modernas adquirido uma importância sem paralelo. O seu espírito achava-se indeciso, pois um irmão mais novo fora também enviado para Alemanha, ao perder um exame, criando assim um precedente; viera, porém, a falecer logo em seguida, vitimado pela febre tifóide, e, em vista disso, a experiência só podia ser considerada temerária. Como resultado de inúmeras conversações, ficou resolvido que Philip passaria em Tercanbury mais um trimestre e sairia depois. Philip não se mostrou descontente com essa resolução. Alguns dias depois do seu regresso, o reitor procurou-o.

 

-- Recebi uma carta de teu tio. Diz ele que queres ir para a Alemanha, e, em vista disso, pede a minha opinião.

 

Philip ficou estupefacto. Estava furioso com o tutor por haver faltado à palavra.

 

-- Pensei que estivesse tudo resolvido, senhor reitor. -- retorquiu.

 

-- Longe disso. Escrevi a dizer que considero um grande erro retirar-te daqui.

 

Philip foi sentar-se imediatamente a redigir uma carta violenta para o tio. Não mediu a linguagem. A raiva não lhe deixou conciliar o sono senão alta noite, e, ao despertar, na manhã seguinte, pôs-se novamente a meditar sobre a maneira como o haviam tratado. Esperou impacientemente pela resposta. Recebeu-a dois ou três dias depois. Era uma carta branda e dolorosa, enviada pela tia Louise dizendo que ficara muito sentida por ele ter escrito aquelas coisas ao tio, que ficara muito penalizado. Era um procedimento :,

cruel e pouco cristão. Devia compreender que eles apenas procuravam o seu bem-estar, e como fossem muito mais velhos do que Philip, eram melhores juízes sobre o que lhe convinha. O rapaz cerrou os punhos. Já ouvira muitas vezes aquela afirmação, mas não compreendia por que razão havia de ser verdadeira. Seus tios não conheciam as condições em que ele vivia. Portanto, como podiam ter a certeza de que a diferença de idade lhes conferia maior sabedoria? A carta terminava com a informação de que Mr. Carey tornara sem efeito a notificação feita ao reitor.

 

Philip ruminou a cólera até à próxima tarde de saída. Eram às terças e quinta-feiras, visto que aos sábados de tarde se realizava o ofício na catedral. Ficou para trás enquanto o resto da turma saía.

 

- Por favor, senhor reitor, posso ir a Blackstable esta tarde? --perguntou.

 

-- Não -- respondeu Mr. Perkins, laconicamente.

 

-- Desejava tratar de um assunto muito importante com meu tio.

 

-- Não me ouviste dizer que não?

 

Philip não respondeu, retirando-se em seguida Sentia-se acabrunhado pela humilhação de ter tido que pedir e de ter recebido uma recusa tão seca. Pôs-se a odiar o reitor. Revoltava-se contra esse despotismo que não invocava a menor razão para o mais tirânico dos actos. Não raciocinava no que fazia, e, após o almoço, pelos caminhos escusos que conhecia tão bem, dirigiu-se à estação a tempo de apanhar o comboio para Blackstable. Ao chegar ao vicariato, encontrou os tios sentados, na sala de jantar.

 

-- Olá, de onde surgiste? -- perguntou o vigário.

 

Notava-se claramente, que não sentia satisfação alguma em vê-lo.

 

-- Vim para falar a respeito da minha retirada do colégio. Quero saber qual era a sua intenção ao prometer uma coisa na minha presença e fazer outra diferente uma semana mais tarde.

 

A própria audácia infundia-lhe certo temor, porém, escolheu previamente as palavras que deveria usar, e embora o coração lhe pulsasse com violência, forçou-se a dizê-las.

 

-- Obtiveste licença para vir aqui hoje à tarde?

 

-- Não. Pedi a Mr. Perkins, mas ele recusou. Se o tio quiser escrever-lhe, a contar-lhe que estive aqui, meter-me-á num bom sarilho.

 

Mrs. Carey sentada, tricotava com mãos trémulas. Não estava habituada a cenas e aquilo agitava-a profundamente.

 

-- Merecias bem que lhe escrevesse -- disse Mr. Carey.

-- Se lhe apraz ser um patife completo, escreva. Não seria de admirar, depois de ter enviado a Perkins uma carta como aquela. :,

 

Philip cometera uma tolice, ao falar desse modo, pois deu ao vigário a oportunidade que ele procurava.

 

-- Esperas que fique aqui a ouvir as tuas impertinências? --perguntou com dignidade.

 

Levantando-se dirigiu-se para o seu gabinete. Philip ouviu-o fechar a porta à chave.

-- Oh, quem me dera já ter vinte e um anos! _é horrível sentir-me assim amarrado!

 

A tia Louise começou a chorar baixinho.

 

-- Oh, Philip, não devias ter falado dessa forma a teu tio. Por favor, vai pedir-lhe perdão.

 

-- Não estou arrependido. Ele aproveita-se da sua situação. Conservar-me no colégio é deitar dinheiro à rua, mas que diferença lhe faz ? O dinheiro não é dele... _é crueldade colocarem-me sob a guarda de pessoas sem experiência das coisas!

 

-- Philip !

 

Não obstante a sua raiva, Philip calou-se subitamente ao som da voz da tia. Era de comover. Não percebera quão amargas eram as palavras que pronunciava.

 

-- Philip, como podes ser tão indelicado? Bem sabes que só desejamos a tua felicidade, embora seja certo que não temos experiência. Se tivéssemos tido filhos, não seria assim. Foi por isso que consultámos Mr. Perkins. -- A voz alterava-se-lhe.-- Tenho procurado ser uma mãe para ti. Tenho-te amado como se fosses meu filho.

 

Era tão pequena e frágil e havia no seu ar de solteirona algo de tão tocante que Philip se deixou impressionar. Sentiu um nó na garganta e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

 

-- Estou arrependido -- disse. -- Reconheço que fui muito bruto.

 

Ajoelhou-se ao lado da tia, abraçou-a e beijou-lhe as faces húmidas e engelhadas. Ela soluçava angustiosamente e, de súbito, Philip compreendeu a tristeza daquela vida inútil. Era a primeira vez que Mrs. Carey revelava tal comoção.

 

-- Reconheço que não tenho sido o que pretendia ser para ti, Philip, mas não sabia que fazer. É tão horrível para mim não ter filhos como para ti não teres mãe.

 

Philip esqueceu a sua cólera e as suas preocupações para só pensar em consolá-la com palavras entrecortadas e tímidas carícias. Mas o relógio bateu horas e foi preciso partir sem demora, a fim de apanhar o único comboio que chegava a Tercanbury a tempo para a chamada. Já no comboio, lembrou-se de que nada fizera. Odiava-se pela sua fraqueza. Era humilhante deixar-se influenciar pelos ares pomposos do vigário e pelas lágrimas da tia. Como resultado, porém, da conversa havida entre o casal, foi enviada outra carta ao reitor. Mr. Perkins leu-a, e encolheu os ombros com impaciência. Mostrou-a a Philip. Dizia: :,

 

 

Caro Mr. Perkins:

 

Perdoe-me se venho aborrecê-lo outra vez a respeito do meu pupilo, mas tanto eu como minha mulher nos temos preocupado ultimamente com a sua situação. Mostra-se ansioso por deixar o colégio e a tia julga-o muito infeliz. _é-nos difícil encontrar uma solução, uma vez que não somos seus pais. Acha que não faz progresso algum e diz que conservá-lo ai é deitar fora o seu dinheiro. Ficarei imensamente grato se o senhor conversar com ele a esse respeito e caso persista no mesmo propósito, talvez seja melhor deixá-lo partir no Natal, como era a minha primeira intenção.

 

Sinceramente,

 

William Carey

 

Philip restituiu-lhe a carta. Estava orgulhoso do triunfo. Fora feita a sua vontade, e sentia-se satisfeito. A sua vontade obtivera uma vitória por cima da vontade dos outros.

 

-- Não vale a pena gastar meia hora a escrever a teu tio, já que ele muda de ideias após cada carta que recebe de ti -- observou, irritado, o reitor.

 

Philip nada disse e o seu rosto guardava uma expressão plácida; mas não pôde impedir que os olhos cintilassem. Mr. Perkins notou-o e pôs-se a rir.

 

--Marcaste um tento, hem? -- exclamou.

 

Philip sorriu, então, abertamente. Não podia ocultar a sua exaltação.

 

-- É verdade que estás ansioso por te ires embora?

 

-- _é, sim, senhor.

-- Sentes-te infeliz aqui?

 

Philip corou. Revoltava-se instintivamente contra qualquer tentativa para lhe devassar os sentimentos íntimos.

-- Não sei dizer, senhor reitor.

 

Deslizando os dedos por entre a barba, Mr. Perkins fitou-o, pensativo. Quando falou, foi como se o fizesse para si próprio.

 

-- É claro que as escolas foram feitas para o estudante mediano. Os buracos são todos redondos e as cravelhas têm de se encaixar neles, qualquer que seja a sua forma. Não há tempo para nos preocuparmos com outra coisa que não seja o termo médio. -- Depois, repentinamente dirigiu-se a Philip. -- Escuta, vou fazer-te uma sugestão. Está a aproximar-se o fim do período. Mais uma temporada não te matará, e, já que queres ir para a Alemanha, é melhor que o faças depois da Páscoa. _é muito mais agradável na Primavera do que no Inverno. Se em meados do próximo período ainda mantiveres o firme propósito de partir, não oporei mais objecção alguma. Que me dizes a isto? :,

 

-- Muito obrigado, senhor reitor.

 

O contentamento de Philip era tal por ter obtido os últimos três meses, que não lhe importava esperar mais um período. O colégio já não lhe parecia uma prisão, pois sabia que, ao chegar a Páscoa, se livraria dele para sempre. O coração dançava-lhe no peito. De noite, na capela, correu os olhos pelos rapazes, colocados cada um no seu lugar, de acordo com as respectivas classes, e riu-se consigo de satisfação, ao pensar que em breve nunca mais os veria. Chegava quase a votar-lhes certa afeição. Os seus olhos pousaram em Rose, que como muitos, levara a sério a sua posição de monitor. Estava convencido de que exercia boa influência no colégio. Philip sorriu ao pensar que ia livrar-se dele para sempre; dentro de um semestre, pouco lhe importaria que Rose fosse alto e esbelto ou exercesse as funções de monitor e capitão de *team*. Philip olhou, em seguida, para os mestres, com as suas becas. Gordon morrera de apoplexia dois anos antes, mas os outros achavam-se todos reunidos ali. Compreendia agora as criaturas medíocres que eram, com excepção de Turner, cujo carácter possuía alguns reflexos humanos. Indignava-o imaginar que vivera sujeito a eles durante tanto tempo. Seis meses, porém, passariam depressa. Os louvores daquela gente nada significariam para ele e as censuras far-lhe-iam encolher os ombros.

 

Philip aprendera a não revelar as suas emoções por sinais exteriores e ainda se sentia atormentado pela timidez, mas às vezes exultava de contentamento. Nessas ocasiões, embora andasse a coxear, silencioso e reservado, a sua alma parecia cantar. Era como se o próprio andar se lhe tornasse mais leve. Corriam-lhe pelo cérebro ideias de toda a espécie, e as fantasias sucediam-se com tal rapidez que se tornava impossível captá-las. Só isso bastava, entretanto, para enchê-lo de júbilo. Agora, como era feliz, sentia ânimo para o trabalho e, nas restantes semanas do período, resolveu compensar a sua prolongada negligência. A fácil actividade do cérebro proporcionava-lhe imenso prazer. Saiu-se muito bem nos exames de conclusão do período. Mr. Perkins fez apenas uma observação; comentava uma composição feita por Philip e, após as correcções do costume, disse:

 

-- Resolveste deixar de te fazeres parvo, não foi?

 

Sorria-lhe com os seus dentes brancos e, Philip baixando a cabeça, sorriu confundido.

 

A meia dúzia de rapazes que esperavam dividir entre si os prémios a ser distribuídos no fim do período de Verão e que haviam cessado de considerar Philip como um rival sério, começara a ficar apreensiva. Não disse a ninguém que ia partir por ocasião da Páscoa. Sabia que Rose se orgulhava do seu francês, pois passara dois ou três períodos de férias na França, e esperava, por outro lado, conseguir o prémio do Deão, para a melhor composição :, inglesa. Notava-se-lhe grande preocupação, ao reconhecer que Philip o estava a suplantar naquelas matérias. Morton, outro aluno, não poderia ingressar em Oxford, a menos que conseguisse uma das bolsas de estudo postas à disposição da escola. Perguntou a Philip se pretendia candidatar-se.

 

-- Tens alguma objecção a fazer? -- indagou Philip.

 

Divertia-o imaginar que o futuro de alguém dependesse dele. Havia algo de romântico em ter ao alcance da mão essas recompensas e em seguida desprezá-las em benefício de outros. Chegou, afinal, o dia da partida e foi despedir-se de Mr. Perkins.

 

-- Pretendes realmente deixar-nos?

 

Philip fez uma cara ingénua ante a evidente surpresa do reitor.

 

-- O senhor prometeu não fazer objecção alguma -- observou.

 

-- Pensei que se tratasse de um capricho com o qual fosse melhor concordar de momento. Sei que és obstinado e pertinaz. Por que razão queres deixar-nos? De qualquer forma, só te falta mais um período. Obterás facilmente a bolsa de Magdalen; poderás conquistar metade dos prémios que vamos conceder.

 

Philip olhava-o carrancudo. Sentia-se enganado. Mas Perkins empenhara a palavra e não podia voltar atrás.

 

-- Estou certo de que gostarás de Oxford. Por enquanto, não precisas de preocupar-te com o futuro. Talvez não saibas como a vida é encantadora lá, para aqueles que possuem inteligência.

 

-- Fiz todos os preparativos para ir para a Alemanha, senhor reitor

-- disse Philip.

 

-- E esses preparativos não são susceptíveis de alteração? -- inquiriu Mr. Perkins, com o seu sorriso zombeteiro. -- Sentirei muito a tua falta. Os alunos estúpidos, que estudam, suplantam sempre os que são inteligentes mas não se aplicam. Mas quando um aluno inteligente se resolve a trabalhar, acontece o que te aconteceu este período.

 

Philip corou violentamente. Não estava acostumado a receber elogios. Nunca lhe tinham dito que era inteligente. O reitor pôs-lhe a mão no ombro.

 

-- Na verdade é aborrecido introduzir o quer que seja na cabeça de uma criatura obtusa, mas quando, uma vez por outra, encontramos um discípulo que compreende as coisas quase antes de abrirmos a boca, então o ensino transforma-se na tarefa mais agradável do mundo.

 

Philip sentia-se enternecido pela bondade. Nunca pensara que a sua permanência no colégio interessasse realmente Mr. Perkins. Sentia-se comovido e muito lisonjeado. Seria agradável terminar gloriosamente a sua fase escolar e matricular-se, então, em Oxford. Como um relâmpago, passaram-lhe pela memória as descrições feitas por ex-alunos que vinham tomar parte em diversos jogos e as cartas vindas da Universidade, lidas em voz :, alta na sala de estudo. A vergonha, porém, dominava-o. Considerar-se-ia um idiota se voltasse atrás. Mr. Carey havia de rir-se ante a vitória obtida pela astúcia do reitor. Era como que uma queda de dignidade, passar da dramática renúncia aos prémios, que estavam ao seu alcance porque os desprezava, ao simples e vulgar empenho de conquistá-los. Bastaria, contudo, um pouco mais de persuasão, o suficiente para ressalvar o respeito devido a si próprio, e Philip cederia a todos os desejos de Mr. Perkins. Mas o seu rosto não dava sinal dessas emoções em conflito. Mostrava-se plácido e carrancudo.

 

-- Prefiro partir, senhor reitor -- respondeu.

 

Como muitos homens que tudo conseguem pela sua influência pessoal, Mr. Perkins tornou-se um pouco impaciente ao notar que o seu poder não se fazia sentir desde logo. Tinha muito que fazer e não podia desperdiçar mais tempo com uma criatura que lhe parecia doentiamente obstinada.

 

-- Muito bem. Prometi que te deixaria ir, se assim o quisesses e cumpro a minha promessa. Quando partes para a Alemanha ?

 

O coração de Philip começou a pulsar com violência. A batalha fora vencida, mas ele não sabia se aquela vitória, no fundo, não significava uma derrota.

 

-- Em princípios de Maio, senhor reitor -- respondeu.

 

-- Espero que nos visites quando estiveres de volta.

 

Estendeu-lhe a mão. Se tivesse dado mais uma oportunidade a Philip, este mudaria de ideia. Mas parecia considerar o caso como resolvido. Philip afastou-se do colégio. Os dias de prisão estavam terminados. Todavia, não sentia o incontido júbilo previsto para aquele momento. Caminhou lentamente em redor do edifício, preso de profunda depressão. Lamentava ter sido tão tolo. Não queria ir-se embora, mas agora sabia que seria impossível procurar o reitor e comunicar-lhe a sua mudança de resolução. Era uma humilhação a que não se submeteria. Teria agido bem? Sentia-se descontente consigo e com todas as circunstâncias da sua vida. Perguntava a si próprio se não seria verdade que, quando impomos a nossa vontade, sempre nos arrependemos, mais tarde.

 

O tio de Philip tinha uma amiga de velha data, Miss Wilkinson, que vivia em Berlim. Era filha de um clérigo, pároco de uma vila em Lincolnshire, com quem Mr. Carey passara os seus últimos tempos como cura coadjutor. Com a morte do pai, obrigada a ganhar a vida, empregara-se várias vezes como governanta em França e na Alemanha. Correspondia-se sempre com Mrs. Carey :,

e, duas ou três vezes, passara as férias no vicariato de Blackstable, pagando um preço módico pela sua manutenção, como era hábito fazerem os hóspedes, relativamente raros, dos Carey. Quando se tornou patente a impossibilidade de resistir aos desejos de Philip, Mrs. Carey escreveu-lhe a pedir informações. A resposta recomendava Heldelberga como excelente local para aprender alemão, e a casa do prof. Erlin como óptima residência. Philip poderia morar lá pagando trinta marcos por semana, e o próprio professor, que leccionava na escola secundária local, poderia dar-lhe lições.

 

Certa manhã de Maio, Philip chegou a Heidelberga. Colocadas as suas coisas num carrinho-de-mão, deixou a estação na companhia do carregador. O céu apresentava-se inteiramente azul e as árvores da avenida por onde passavam estavam cobertas de folhas. Philip sentia no ar algo de novo e, juntamente com a timidez que nele despontava, ao penetrar na nova vida, rodeado de estranhos, experimentava grande sensação de euforia. Ficou um pouco desconsolado com o facto de não haver ninguém à sua espera e sentiu-se embaraçado quando o carregador o deixou à porta de uma grande casa branca. Um latagão desalinhado fê-lo entrar e conduziu-o à sala de visitas, que era guarnecida por um conjunto de móveis forrados de veludo verde, havendo ao centro uma mesa redonda. Sobre esta, dentro de água, achava-se um ramalhete de flores muito apertadas numa franja de papel, como o osso de uma costeleta de carneiro, e em redor, muito bem espaçados, livros com encadernações de couro. Sentia-se o odor a mofo.

 

Daí a pouco, a cheirar à cozinha, entrou a mulher do professor, uma mulher baixa e forte, com os cabelos bem repuxados e terminando num rolo. Tinha o rosto vermelho, olhos pequeninos que cintilavam como contas, e maneiras comunicativas. Segurou ambas as mãos de Philip e pediu-lhe notícias de Miss Wilkinson, que por duas vezes passara algumas semanas com ela. Falava em alemão e em mau inglês. Philip não conseguiu dar-lhe a entender que não conhecia Miss Wilkinson pessoalmente. Apareceram então as duas filhas. O recém-chegado não as achou muito jovens, mas talvez não fossem além dos vinte e cinco anos. A mais velha, Thekla, era tão baixa como a mãe e tinha o mesmo ar indefinido, mas possuía uma cara bonita e abundante cabeleira escura. Ana, a irmã mais nova, era alta e de feições vulgares, mas possuía um sorriso agradável que logo lhe conquistou a preferência. Após alguns minutos de palestra cortês, Frau Erlin acompanhou Philip ao quarto e deixou-o. O aposento estava situado numa espécie de torre, cujas janelas davam para os topos das arvores da Anlage; a cama ficava num desvão da parede, de modo que, quando a pessoa se sentava à secretária, o conjunto não oferecia o aspecto de um quarto de dormir. Philip esvaziou as malas e separou os livros. Era, finalmente, senhor de si próprio.

 

_à uma hora, uma sineta chamou-o para o almoço. Na sala de visitas estavam reunidos os hóspedes de Frau Erlin. Foi apresentado ao marido, um homem de meia-idade, alto, com uma grande cabeça loura que já começava a embranquecer, e um par de suaves olhos azuis. Falou a Philip num inglês correcto mas um tanto arcaico, que aprendera no estudo dos clássicos, e não na conversação. O rapaz achava curioso ouvi-lo empregar palavras que apenas se encontravam nas peças de Shakespeare. Frau Erlin considerava o seu estabelecimento uma casa de família e não uma pensão; seria necessário, contudo, recorrer a subtilezas metafísicas para determinar em que consistia a diferença. Ao sentarem-se para o almoço, numa sala comprida e escura que dava para a de visitas, Philip, muito estranho, notou que havia dezasseis pessoas. _frau Erlin ocupava uma das cabeceiras e era quem trinchava a carne. Servia de criado, com grande tinir de pratos, o mesmo tipo desajeitado que lhe abrira a porta, e embora agisse com ligeireza, as primeiras pessoas a ser servidas terminavam antes que as últimas recebessem o seu quinhão. Frau Erlin fazia questão de que só se falasse a língua do país, de modo que Philip, mesmo pondo de parte o acanhamento, via-se obrigado a manter silêncio. Limitou-se a estudar aqueles com quem ia viver. Junto de Frau Erlin, estavam sentadas outras senhoras idosas, mas Philip não lhes deu muita atenção. Havia duas raparigas, ambas louras e uma delas muito bonita, a quem Philip ouviu chamar Frãulein Hedwig e Frãulein Cãcilie. Frãulein Cãcilie usava uma trança comprida que lhe pendia nas costas. Achavam-se uma ao lado da outra e cochichavam as duas entre risos abafados; de vez em quando, olhavam para Philip e uma delas dizia qualquer coisa em surdina; desatavam a rir e Philip corava, envergonhado, sentindo que o ridicularizavam. Perto delas, estava um chinês, de rosto amarelo e sorriso comunicativo, que estudava na Universidade as condições de vida do Ocidente. Falava com tanta rapidez e com sotaque tão esquisito que muitas vezes as raparigas não o entendiam e punham-se a rir. Ele ria, por sua vez, bem-humoradamente e ao fazê-lo, os olhos em amêndoa quase se fechavam. Havia ainda dois ou três americanos de paletó preto, que tinham a pele pálida e seca; eram estudantes de teologia. Philip notou-lhes o sotaque americano através do péssimo alemão que falavam e observava-os com desconfiança, pois haviam-lhe ensinado a ver os americanos como uns bárbaros cruéis e desabridos.

 

Mais tarde, quando todos conversavam na sala, sentados nas desconfortáveis cadeiras forradas de velado verde, Frãulein Ana perguntou se Philip queria dar uma volta com elas.

 

Philip aceitou o convite. Formou-se um grupo composto das duas filhas da dona da casa, mais as duas outras raparigas, um :,

dos estudantes americanos, e Philip. Este caminhava ao lado de Ana e de Frãulein Hedwig. Sentia-se um tanto perturbado. Nunca conhecera uma rapariga. Em Blackstable, havia apenas as filhas dos rendeiros e as dos negociantes locais. Conhecia-as de nome e de vista, mas era tímido e temia que se rissem da sua deformidade Aceitava de bom grado a diferença que o vigário e Mr. Carey estabeleciam entre a sua classe e a dos rendeiros. O médico tinha também duas filhas, mas eram ambas muito mais velhas do que Philip, e tinham casado com dois sucessivos assistentes quando Philip era ainda um rapazinho. Na escola havia duas ou três raparigas, mais ousadas do que modestas, conhecidas de alguns rapazes; contavam-se delas histórias fabulosas, devidas, talvez, à imaginação masculina. Philip, contudo, sempre ocultara sob o manto do desprezo o terror que elas lhe infundiam. A sua imaginação e os livros que devorara incutiram-lhe o desejo de adoptar uma atitude byroniana. Via-se dividido entre o seu mórbido acanhamento e a convicção de que lhe cumpria ser galante. Sentia agora a necessidade de mostrar-se brilhante e espirituoso, mas o seu cérebro parecia vazio e não sabia que dizer. Frãulein Ana, a filha do professor, dirigia-lhe de vez em quando a palavra, mais por um sentido de obrigação; a outra, porém, pouco falava. Olhava de tempos a tempos para Philip e, não raras vezes, explodia numa gargalhada que o enchia de confusão. Philip percebia que ela o achava profundamente ridículo. Caminhavam ao longo da encosta de uma colina, entre pinheiros cujo aroma deleitava o rapaz. O dia estava quente e o céu sem nuvens. Alcançaram por fim uma eminência de onde se descortinava o vale do Reno, iluminado pelo Sol. Era uma vasta extensão de terra que cintilava à luz doirada; lá ao fundo, divisavam-se cidades e, de um extremo a outro, serpenteava a fita prateada do rio. Na região de Kent, que Philip conhecia, eram raros os grandes espaços abertos. Só o mar oferecia um horizonte largo e por isso a vastidão em que os seus olhos agora se perdiam proporcionava-lhe uma comoção especial e indescritível. Sentiu uma súbita exaltação. Embora não o percebesse, era a primeira vez que experimentava, pura, sem mescla de outras emoções, a sensação da beleza. Os três sentaram-se num banco, pois os outros continuaram a caminhar, e, enquanto as raparigas tagarelavam em alemão, Philip, indiferente à proximidade delas, banqueteava os olhos.

 

-- Meu Deus, sou feliz! -- dizia a si próprio, inconscientemente.

 

_às vezes, Philip lembrava-se da *_king.s School*, em Tercanbury, e ria-se consigo próprio ao imaginar o que estariam a fazer lá em dado instante do dia. De vez em quando sonhava estar ainda no internato; ao despertar, dava-lhe extraordinária satisfação verificar que se achava no quartinho da torre. Da sua cama, era possível ver os grandes cúmulos que flutuavam no céu azul. Exultava na posse da liberdade. Podia ir para a cama quando bem entendia e levantar-se quando lhe dava na gana. Ninguém lhe dava ordens. De repente, ocorreu-lhe que não mais lhe seria preciso mentir.

 

Ficara combinado que o prof. Erlin se incumbiria de ensinar-lhe o Latim e o Alemão; diarianente, um francês vinha ministrar lições da sua língua materna, ao passo que, no que dizia respeito à  matemática, Frau Erlin recomendara um inglês em vésperas de doutorar-se em filologia, na Universidade. Chamava-se Wharton. Philip ia ter com ele todas as manhãs. Morava num quarto situado no último andar de uma casa velha. Era um quarto sujo e desalinhado, impregnado de um odor acre, composto de vários cheiros desagradáveis. Em geral, quando Philip chegava, às dez horas da manhã, o inglês ainda estava deitado. Levantava-se de um salto, vestia um roupão imundo, calçava umas chinelas de feltro e, enquanto dava a lição, tomava um frugal pequeno-almoço. Era um homem baixo, gordo devido ao abuso da cerveja, tinha bigode espesso e comprida cabeleira sempre em desalinho. Estava na Alemanha havia cinco anos, e achava-se quase inteiramente teutonizado. Falava com desprezo de Cambridge, onde se licenciara, e enchia-o de horror lembrar a vida que o esperava quando, depois de doutorar-se em Heidelberga, tivesse de voltar para Inglaterra e iniciar a carreira pedagógica. Adorava a vida na Universidade alemã, com a sua liberdade e as suas alegres companhias. Era sócio de um *_Burschenschaft*, e prometeu levar Philip a um *_Kneipe*. Era muito pobre e não ocultava que as lições ministradas a Philip eram o que lhe permitia comer carne ao jantar, em vez de pão com queijo. _às vezes, após uma noite de bebedeira, erguia-se com tal dor de cabeça que se via impossibilitado de tomar o café; dava a lição, assim, com o espírito bastante carregado. Para essas ocasiões, conservava, debaixo da cama, algumas garrafas de cerveja, as quais, juntamente com o inseparável cachimbo, o ajudavam a suportar o fardo da vida.

 

-- Um pelo do cão que mordeu -- dizia ao deitar a cerveja no copo com todo o cuidado, para que a espuma não o obrigasse a esperar muito antes de bebê-la.

 

Em seguida, conversava com Philip sobre a Universidade, os desentendimentos entre grémios rivais, os duelos e os méritos :,

deste ou daquele professor. Pbilip aprendia com ele mais da vida do que de matemática, Não raro, Wharton repoltreava-se na cadeira, no meio de uma risada, e dizia:

 

-- Bern, hoje não fizemos nada. Não tem que me pagar a lição.

 

-- Ora, não tem importância - retorquia Philip.

 

Havia naquilo algo de novo e interessante, muito mais importante do que a trigonometria, que ele nunca pudera compreender. Era como uma janela aberta para a vida e pela qual tinha a felicidade de espreitar, com o coração a bater desordenadamente.

 

-- Não, guarde o seu vil dinheiro -- insistia Wharton.

 

-- Mas com que vai jantar? -- perguntava Philip a sorrir, pois sabia exactamente em que pé iam as finanças do professor.

 

Wharton pedira mesmo ao rapaz que lhe pagasse semanal e não mensalmente a importância das lições, que eram dadas à razão de dois xelins cada uma, porque isso tornava as coisas menos complicadas.

 

-- Oh, não se preocupe com o meu jantar. Não será a primeira vez que janto uma garrafa de cerveja, e o espírito nunca se me torna tão claro como nessas ocasiões.

 

Mergulhando o braço debaixo da cama (os lençóis estavam cinzentos de tão sujos) pescava outra garrafa. Philip, que era novo e desconhecia as coisas boas da vida recusava-se a partilhar da cerveja com o mestre, que a bebia sozinho.

 

-- Quanto tempo ficará aqui? -- indagou Wharton.

 

Tanto ele como Philip haviam posto a matemática de lado.

 

-- Não sei ao certo. Talvez um ano. Em casa querem que eu vá para Oxford.

 

Wharton encolheu os ombros com ar de desprezo. Era novidade para Philip descobrir que nem todos olhavam com respeito para aquele templo da sabedoria.

 

-- Que pretende fazer lá? Será apenas um colegial glorioso. Por que não se matricula aqui? Um ano não é suficiente. Fique cinco anos em Heldelberga. Há duas coisas insubstituíveis na vida: a liberdade de pensamento e a liberdade de acção. Em França dão-nos a liberdade de acção: faz-se o que bem se entende e ninguém se intromete, mas é preciso que se pense como todos os outros. Na Alemanha, a pessoa é obrigada a fazer o que os outros fazem, mas em compensação pode pensar à vontade. São duas coisas excelentes. Pessoalmente, prefiro a liberdade de pensar. Mas, na Inglaterra, não se tem nem uma coisa nem a outra: é-se triturado pelas convenções. Não se pode pensar nem agir como se quer. Isso, porque a Inglaterra é uma nação democrática. Desconfio que a América ainda é pior.

 

Recostou-se cautelosamente, pois a cadeira em que estava sentado tinha uma perna frouxa e é desconcertante um floreio de retórica ser interrompido por uma queda repentina.

 

-- Devo voltar a Inglaterra ainda este ano, porém, se me for possível juntar o suficiente para não morrer de fome, farei mais uns doze meses aqui. Mas, depois, serei forçado a ir. E terei de abandonar isto tudo... -- fez um gesto que abrangia o esquálido sótão, com a cama por fazer, os lençóis atirados pelo chão, uma fileira de garrafas vazias ao longo da parede e pilhas de livros esfarrapados pelos cantos -- terei de abandonar isto tudo por alguma Universidade provinciana, onde obterei uma cadeira de filologia. Terei também de jogar ténis e frequentar chás. -- Interrompendo-se bruscamente lançou um olhar zombeteiro a Philip que estava bem vestido, com um colarinho limpo e os cabelos devidamente escovados. -- E, meu Deus ! Serei obrigado a lavar-me!

 

Philip corou, com a impressão de que a sua elegância era um crime intolerável. (Ultimamente, começara a prestar certa atenção à toilette, e saíra de Inglaterra, com uma linda colecção de gravatas.

 

O Verão invadiu a natureza como um conquistador. Os dias sucediam-se cada vez mais belos. O azul do céu era de uma arrogância que espicaçava os nervos como um aguilhão. O verde das árvores, na Anlage, era violento e cru, e as casas, quando o sol lhes batia, irradiavam uma claridade ofuscante, que estimulava a ponto de se tornar dolorosa. _às vezes, ao voltar do quarto de Wharton, Philip sentava-se à sombra, num dos bancos da Anlage, a gozar a fresca e a observar os padrões luminosos que o sol, infiltrando-se por entre as folhas, desenhava no chão. A sua alma dançava, tão alegre como os raios do Sol. Deliciava-se com aqueles momentos de lazer, roubados ao trabalho. Outras vezes vagueava pelas ruas da velha cidade. Olhava com respeito para os estudantes do grémio, com gilvazes nas faces rubras, que passavam, garbosos, com os seus bonés coloridos. De tarde, errava pelas colinas com as raparigas da pensão, indo de vez em quando, rio acima, tomar chá numa frondosa esplanada. De noite, passeavam de cá para lá no Stadtgarten, ouvindo a banda de música.

 

Philip depressa veio a saber as particularidades da vida dos hóspedes. Frãulein Thekla, a filha mais velha do professor, estava noiva de um inglês que passara doze meses na pensão, a fim de aprender a língua alemã. O casamento devia realizar-se no fim do ano, mas o rapaz escrevera a declarar que o pai, um mercador de borracha residente em Slough, não concordara com a união, o que trazia Frãulein Thekla constantemente banhada em lágrimas. _às vezes, ela e a mãe eram vistas, de olhar severo e voz resoluta, a examinar as cartas do apaixonado relutante. Thekla pintava a aguarela e havia ocasiões em que saía com Philip e uma outra rapariga, a fim de desenhar algumas paisagens. A linda Frãulein Hedwig também tinha os seus aborrecimentos de amor. Era filha de um comerciante de Berlim e um garboso hussardo,

um *von*, nada menos, havia-se apaixonado por ela. Mas os pais não permitiam que o rapaz desposasse uma jovem de condição inferior à sua e ela fora enviada para Heidelberga, a ver se o esquecia. Mas jamais o conseguia, pois correspondia-se continuamente com o rapaz, que empregava todos os esforços para persuadir o exasperado pai a mudar de opinião. Contou tudo isto a Philip entre adoráveis suspiros e rubores, e mostrou-lhe a fotografia do alegre tenente. Philip preferia-a a todas as raparigas da casa de Frau Erlin; procurava sempre colocar-se a seu lado nos frequentes passeios que davam. Corava quando os outros comentavam, brincalhões, a sua evidente preferência. Foi a Frãulein Hedwig que ele fez a primeira declaração da sua vida mas, infelizmente, foi por acaso e aconteceu da seguinte maneira: nas noites em que não saíam, as jovens, reunidas na sala de veludo verde, cantavam pequenas canções habilmente acompanhadas ao piano por Frãulein Ana, sempre muito prestimosa. A canção predilecta de Frãulein Hedwig chamava-se *_Ich liebe dich* (amo-te) e certa noite, depois de a cantar, quando estava com Philip na sacada olhando as estrelas, o rapaz quis fazer um comentário. Começou:

 

-- *_Ich liebe dich*...

 

O seu alemão era trôpego e custou-lhe encontrar uma palavra com que continuasse. A pausa foi infinitesimal, mas antes de ele prosseguir, Frãulein Hedwig exclamou:

 

-- *_Ach, Herr Carey, Sie mussen mir nicht du sagen (não deve tratar-me na segunda pessoa do singular).

 

Philip sentiu-se preso de um enorme desconforto. Nunca teria ousado pronunciar uma frase tão familiar, e não sabia que responder. Seria pouco elegante explicar que não estava a fazer uma declaração mas apenas a mencionar o título da canção.

 

-- *_Entschuldigen Sie* -- disse ele. -- (Peço-lhe perdão).

 

-- Não tem importância -- sussurrou ela.

 

Sorriu com ar amável, tomou mansamente a mão de Philip, apertou-a e regressou à sala de visitas.

 

No dia seguinte, ele sentia-se tão embaraçado que não teve coragem para lhe falar, e timidamente fez o possível por evitá-la. Quando o convidaram para o passeio do costume, recusou, alegando ter de estudar. Mas Frãulein Hedwig arranjou ocasião para lhe falar a sós.

 

-- Por que procede desse modo? -- perguntou bondosamente. -Não pense que estou zangada pelo que disse a noite passada. Se me ama, não é culpa sua. Sinto-me lisonjeada. Mas, embora não esteja comprometida com Hermann, nunca poderei amar outra pessoa, pois considero-me noiva dele.

 

Philip corou outra vez, mas assumiu a expressão perfeita do amante rejeitado.

 

-- Estimo que seja muito feliz -- disse.

 

Todos os dias o prof. Erlin dava lição a Philip. Organizou uma lista dos livros que o rapaz devia ler, a fim de se preparar para a leitura do Fausto, e, ao mesmo tempo, lançou-o engenhosamente na tradução alemã de uma das peças de Shakespeare que o rapaz estudara na escola. Era, na Alemanha, o período em que a fama de Goethe atingira o auge. Apesar da sua atitude um pouco superior em relação ao patriotismo, fora adoptado como poeta nacional e, desde a guerra de setenta, parecia constituir uma das glórias mais significativas da unidade nacional. Os entusiastas imaginavam ouvir, no desenfreamento do *_Walpurgisnacht*, o ribommbar da artilharia em Gravelotte. Uma das coisas que caracterizam a grandeza de um escritor é o facto de diferentes espíritos encontrarem nele diferentes inspirações. E o prof. Erlin, que odiava os prussianos, dedicava a Goethe uma admiração arrebatada, porque as suas obras, olímpicas e serenas, ofereciam a um espírito são o único refúgio contra as investidas da geração actual. Havia um dramaturgo cujo nome, nos últimos tempos, era muito ouvido em Heidelberga; no Inverno anterior, uma das suas peças subira à cena, no teatro, entre os aplausos dos adeptos e as vaias das pessoas decentes. Philip ouviu discussões a esse respeito, durante o jantar, quando o prof. Erlin, perdendo a calma habitual, dava socos na mesa e aniquilava qualquer oposição com o troar da sua voz profunda e sonora. Era um contra-senso, e um contra-senso revoltante. Forçara-se a assistir a toda a representação, mas não sabia dizer se estava aborrecido ou enojado. Se o Teatro estava a tomar aquele rumo, então era tempo de a Polícia intervir e fechar as portas de todas as casas de espectáculos. Não era um puritano, seria capaz de rir, como qualquer outro, ante a espirituosa imoralidade de uma farsa, no Palais Royal, mas ali não havia senão sordidez. Com um gesto enfático, apertou o nariz com os dedos e assobiou por entre os dentes. Era a ruína da família, o fim da moral, a destruição da Alemanha.

 

-- *_Aber, Adolf* -- disse Frau Erlin, do outro extremo da mesa. --Acalma-te.

 

Ele estendeu o punho, para ela. Era a mais mansa das criaturas e nunca se aventurava a qualquer acto da sua vida sem a consultar.

 

-- Não, Helena, digo-te isto -- gritou ele. -- Prefiro ver as minhas filhas jazendo mortas a meus pés a vê-las alinhar com esse desavergonhado.

 

A peça era a *_Casa da Boneca*, e o autor, Henrik Ibsen.

 

O prof. Erlin classificava-o do mesmo modo que a Richard Wagner, mas, ao referir-se a este, não falava com rancor; ria bem-humorado. Era um charlatão, mas um charlatão bem sucedido, e aí havia qualquer coisa para deleitar as espíritos cómicos.

 

-- *_Verruckter *_kerl*! Um louco! -- exclamava ele.

 

Vira o *_Lohengrin* e esse passara à revista. Não era mau, embora monótono. Mas o *_Sigfried*! Ao mencioná-lo, o prof. Erlin apoiou a cabeça na mão e soltou uma gargalhada estentórea. Não havia melodia do princípio ao fim. Imaginava Richard Wagner sentado no seu camarote, a rir-se até as lágrimas daquela multidão que o tomava a sério. Era o maior logro do século __XIX. Levou aos lábios o copo de cerveja, inclinou a cabeça para trás e bebeu até à última gota. E então, limpando os lábios com as costas da mão, exclamou:

 

-- Garanto-lhes, rapazes, que, antes do século __xix findar, Wagner estará morto e bem morto. Wagner! Trocaria todas as

obras por uma ópera de Donizetti.

 

O mais singular dos mestres de Philip era o professor de francês. Monsieur Ducroz nascera em Genebra. Era um velho alto, de rosto pálido, faces chupadas e longa cabeleira. Trajava sempre um fato preto e surrado, com buracos nos cotavelos e calças puídas. A camisa estava sempre suja. Philip não o vira nunca de colarinho lavado. Era homem de poucas palavras; transmitia as lições conscienciosamente, mas sem entusiasmo algum, iniciando-as e terminando-as no minuto marcado. Os seus preços eram módicos. Taciturno por natureza, Philip só conseguiu informar-se a seu respeito por intermédio de outros. Soube que o velho lutara contra o Papa, ao lado de Garibaldi, mas abandonara a Itália, desgostoso, ao verificar que todos os seus esforços em prol da liberdade, isto é, pela instauração da República, resultavam apenas numa mudança de jugo; finalmente, fora expulso de Genebra por não sabia que crimes políticos. Philip olhava-o intrigado e surpreso. Em nada se assemelhava à ideia que fazia de um revolucionário. Falava em voz baixa e era extraordinariamente cortês. Nunca se sentava senão quando lhe pediam que o fizesse e quando, por acaso, encontrava Philip na rua, tirava sempre o chapéu, num gesto delicado. Não costamava rir nem mesmo sorrir. Uma imaginação mais completa do que a de Philip talvez o visse como um jovem cheio de grandes esperanças, pois tornara-se adulto em 1848, quando os reis, ao lembrarem-se do seu primo francês, sentiam cãibras no pescoço. E talvez aquela paixão pela liberdade, que percorreu a Europa, levando à frente os restos de absolutismo e tirania que reergueram a cabeça durante a reacção posterior à revolução de I789, não encontrasse peito :, mais ardente onde se abrigar. Apaixonado pelas teorias da igualdade e dos direitos humanos, era fácil imaginá-lo a discutir, a lutar atrás de barricadas, em Paris, fugindo à cavalaria austríaca, em Milão; aprisionado aqui, exilado ali, sem jamais perder a fé na palavra que parecia mágica -- a palavra Liberdade. Finalmente, vencido pela doença e pela fome, velho, sem outro meio de vida que não fosse leccionar por preços irrisórios, encontrava-se agora naquela cidadezinha, sob uma tirania pior que qualquer outra da Europa. Talvez aquele retraimento ocultasse o desprezo pela espécie humana que abandonara os grandes sonhos da sua mocidade e agora chafurdava num conforto indolente. Podia ser, também, que os trinta anos de revolução lhe tivessem ensinado que os homens não eram talhados para a liberdade; e pensava na sua vida gasta na busca de algo que não valia a pena encontrar. Ou talvez se sentisse cansado e esperasse apenas, com indiferença, o alívio da morte.

 

Certa vez, com a indiscrição da sua idade, Philip perguntou se o professor realmente combatera com Garibaldi. O velho não pareceu dar grande importância à pergunta. Respondeu muito serenamente, na voz baixa do costume:

 

-- Oui, monsieur.

-- Consta que o senhor esteve na Comuna.

-- Deveras? Vamos continuar a lição?

 

Mantinha aberto o livro e Philip, intimidado, começou a traduzir o trecho que preparara.

 

Certo dia, Monsieur Ducroz parecia preso de grande dor. Foi-lhe quase impossível galgar os degraus da escada, para o quarto de Phihp. Uma vez lá, deixou-se cair pcsadamente na cadeira, com o rosto contraído e gotas de suor na testa, procurando refazer-se.

 

-- Receio que esteja doente -- observou Philip.

 

-- É coisa sem importância.

 

Mas Philip notou que o pobre homem sofria e, ao terminar a hora, perguntou se não seria preferível suspender as lições até que estivesse melhor.

 

-- Não -- respondeu o velho, na sua voz baixa e firme. -- Prefíro continuar enquanto me for possível.

 

Philip, que se tornava morbidamente nervoso sempre que tinha de referir-se a dinheiro, corou.

 

-- Mas a si não lhe fará diferença -- explicou. -- Continuarei a pagar as lições na mesma. Se estivesse de acordo, adiantar-lhe-ia o dinheiro da próxima semana.

 

Monsieur Ducroz cobrava dezoito *pence* pela hora. Philip tirou do bolso uma moeda de dez marcos e colocou-a, embaraçado na mesa. Não tinha coragem para oferecê-la, como se o velho fosse um mendigo.

 

-- Nesse caso, acho que não voltarei até me sentir melhor.

 

Pegou na moeda e, sem mais do que a estudada inclinação de cabeça com que sempre se despedia, saiu.

 

-- *_Bonjour, monsieur*.

 

Philip ficou vagamente desconcertado. Pensando ter praticado uma acção generosa, esperara que Monsieur Ducroz fosse cumulá-lo de expressões de gratidão. Surpreendia-o ver que o velho professor aceitara o presente como se tivesse direito a ele. Era tão jovem que ainda não sabia quão menor é o sentido da obrigação por parte dos que recebem favores do que dos que os prestam. Monsieur Ducroz tornou a aparecer cinco ou seis dias mais tarde. Cambaleava ainda mais e mostrava-se muito abatido, mas parecia ter vencido a fase aguda do ataque. Não veio mais comunicativo do que dantes. Continuava misterioso, retraído e sujo. Só fez referência à doença ao terminar a lição. Ao retirar-se, à porta, que segurava aberta, estacou. Hesitava, como se sentisse dificuldade em falar.

 

-- Se não fosse aquela moeda que me deu, teria morrido de fome. Foi a única coisa que me valeu.

 

Fez uma solene e obsequiosa reverência, e partiu. Philip sentiu um nó na garganta. Parecia-lhe que compreendia, de certo modo, a desesperada amargura da luta do velho e como a vida lhe era difícil, quando para ele se mostrava tão agradável!

 

Havia já três meses que Philip estava em Heidelberga quando, certa manhã, Frau Erlin lhe anunciou que um inglês chamado Hayward iria hospedar-se lá, e na mesma noite, por ocasião da ceia surgiu a nova figura. Os dias anteriores tinham sido de grande reboliço. Em primeiro lugar, resultado não se sabe de que planos, à força de humildes súplicas e ameaças veladas, os pais do jovem inglês de quem Frãulein Thekla estava noiva convidaram-na a visitá-los na Inglaterra. A jovem partiu, levando um álbum de aguarelas para mostrar as suas habilidades e uma pilha de cartas para revelar até que ponto o jovem se comprometera. Uma semana mais tarde, Frãulein Hedwig, toda sorrisos, anunciava que o tenente dos seus afectos estava a caminho de Heidelberga, em companhia dos pais. Cansados da insistência do filho e sensibilizados pelo dote que o pai de Frãulein Hedwig oferecia, consentiram em passar por Heidelberga, a fim de conhecer a rapariga. O encontro foi satisfatório e Frãulein Hedwig teve o prazer de exibir o noivo no Stadtgarten, a todos os hóspedes da pensão. As velhas e silenciosas senhoras que sé sentavam à cabeceira da mesa, ao lado da mulher do professor, estavam agitadíssimas. :, Quando Frãulein Hedwig comunicou que seguiria para casa imediatamente a fim de efectuar o noivado oficial, Frau Erlin, indiferente a despesas, prometeu servir um *_Maibowle*. O prof. Erlin orgulhava-se da sua perícia em preparar aquela embriagante mistura e, após o jantar, a grande vasilha de vinho do Reno e soda, em que sobrenadavam ervas perfumadas e morangos silvestres, foi colocada solenemente sobre a mesa redonda da sala de visitas. Frãulein Ana meteu Philip à bulha, por causa da partida da sua amada, e este sentiu-se pouco à vontade e um tanto melancólico. Frãulein Hedwig interpretou várias canções, Frãulein Ana tocou a Marcha Nupcial e o professor cantou *_Die Wacht am _rhein*. Em meio de tanta alegria, Philip não prestou muita atenção ao recém-chegado. Ocuparam lugares opostos, durante a ceia, mas Philip conversava entretidamente com Frãulein Hedwig, e o novo hóspede, ignorando o alemão, tomara a refeição em silêncio. Ao observar que o inglês usava gravata azul-desmaiado, Philip sentiu logo súbita antipatia por ele. Era um rapaz de vinte e seis anos, muito louro, com longa cabeleira ondulada, pela qual passava com frequência a mão, num gesto negligente. Tinha os olhos grandes e azuis, de um azul-pálido, onde se lia prematuro cansaço. Trazia o rosto escanhoado, e a boca, não obstante os lábios estreitos, era bem formada. Frãulein Ana, que se interessava por fisiognomonia, fez notar a Philip, mais tarde, como era bem delineado o crânio do rapaz e quão fraca era a parte inferior do rosto. A cabeça, disse ela, era de um pensador mas os maxilares denotavam falta de carácter. Condenada a uma vida de solteirona, com os seus malares salientes e um grande nariz deformado, Frãulein Ana dava grande importância ao carácter. Enquanto comentavam as suas características, o rapaz conservava-se afastado, a observar as comemorações com uma expressão bem-humorada mas um tanto ou quanto desdenhosa. Era alto e esbelto. Tinha uma graça estudada. Weeks, um dos estudantes americanos, vendo-o só, foi-lhe ao encontro e dirigiu-lhe a palavra. Os dois contrastavam singularmente: o americano, impecável no seu casaco negro e calças de mescla, magro e ressequido, notando-se já nos seus modos certa unção eclesiástica; o inglês, metido num traje folgado de *tweed*, longilíneo e lento nos gestos.

 

Philip não conversou com o recém-chegado senão no dia seguinte. Encontraram-se a sós na varanda da sala de visitas, antes do jantar. Foi Hayward quem falou.

 

-- É inglês, não é?

 

-- Sou.

 

-- A comida aqui é sempre má como ontem à noite?

-- _é quase sempre o mesmo.

 

-- Detestável, não acha?

 

--Detestável.

 

Philip não achara nada que reparar na comida, e até jantara bem, com apetite e prazer; não queria, porém, revelar falta de discriminação ao julgar boa uma refeição que outro considerava péssima.

 

A visita de Frãulein Thekla a Inglaterra aumentou as ocupações da irmã, que quase não arranjava tempo para os passeios do costume. Frãulein Cãcilie, com a sua longa trança loura e o seu narizinho arrebitado, tornara-se ultimamente retraída. Frãulein Hedwig também se fora e Weeks, o americano que em geral as acompanhava nas suas excursões, partira em viagem de recreio pelo sul da Alemanha. Philip ficou, a bem dizer, sozinho. Hayward procurou travar amizade com ele, mas Philip possuía uma característica lamentável: por acanhamento ou, talvez, por uma herança atávica do homem das cavernas, antipatizava sempre com as pessoas ao primeiro contacto. Só depois de certo convívio é que se desvanecia a primeira impressão. Isso tornava-o pouco acessível. Recebeu com timidez as tentativas de aproximação de Hayward e quando este, um dia, o convidou para um passeio, aceitou apenas porque não lhe ocorrera no momento uma desculpa cortês. Fez a observação do costume, irritado consigo mesmo por causa do rubor que não conseguia ocultar e riu para disfarçar.

 

-- Sinto não poder caminhar muito depressa.

 

-- Deus do céu! Não vamos fazer uma corrida. Prefiro ir devagar. Não se lembra do capítulo do *_Marius*, em que Peter se refere ao suave exercício do caminhar como o melhor incentivo da conversação?

 

Philip era bom ouvinte. Embora tivesse observações inteligentes a fazer, quase sempre deixava passar a oportunidade. Hayward era comunicativo. Qualquer pessoa com mais experiência do que ele notaria que o rapaz gostava de se ouvir a si próprio. A sua atitude superior impressionava Philip. Não podia deixar de admirar, e ao mesmo tempo temer, um homem que de certo modo desprezava tantas coisas que ele, Philip, considerava quase sagradas. Condenava a paixão pelo exercício, estigmatizando com a palavra *pol-hunters todos aqueles que se dedicam à prática das suas várias modalidades. Philip não percebia que Hayward tratava apenas de substituí-la pela paixão da cultura.

 

Subiram em direcção ao castelo e sentaram-se no terraço sobranceiro à cidade, que se aninhava confortavelmente no fundo do vale, na margem do aprazível Neckar. O fumo das chaminés pairava por sobre as casas, formando uma névoa azul-pálida. :,

Os altos telhados e os campanários das igrejas davam-lhe interessante ar medieval. Tinha um aspecto acolhedor, que dava alento. Hayward falou de *_Richard Feverel* e *_Madame Bovary*, de Verlaine, Dante e Matthew Arnold. Naquela época, a tradução de Omar Khayyam, feita por Fitzgerald, era conhecida apenas dos eleitos, e Hayward recitou-a a Philip. Gostava muito de recitar poesias, suas e alheias, o que fazia com uma cadência monótona. Ao voltarem para casa, a desconfiança de Philip pelo novo companheiro transformara-se em entusiástica admiração.

 

Adquiriram o hábito de passear juntos todas as tardes e Philip entrou no conhecimento de certos pormenores da vida de Hayward.

Era filho de um juiz da província, por cuja morte, ocorrida pouco antes, herdara trezentas libras por ano. O seu curso em Charterhouse fora tão brilhante que, ao dirigir-se a Cambridge, o reitor do Trinity Hall se afastou das normas para exprimir a satisfação que lhe causava o ingresso do jovem naquele colégio. Preparava-se para uma carreira de grande destaque. Convivia nos melhores círculos intelectuais, lia Browning com entusiasmo, fazia troça de Tennyson. Conhecia em todos os pormenores o tratamento dispensado por Shelley a Harriet, fazia incursões na História da Arte (nas paredes do seu quarto viam-se reproduções de quadros de G. F. Watts, Burne-_Jones e Botticelli). Escrevia também, com bastante distinção, versos de carácter pessimista. Os amigos diziam-no um homem de elevados dons e Hayward ouvia-os de bom grado profetizar o seu futuro renome. Com o correr do tempo tornou-se uma autoridade no campo da arte e da literatura. Foi influenciado pela *_Apologia*, de Newman; o pitoresco da fé católica agradava à sua sensibilidade estética; só o temor de seu pai (um homem rude, de ideias curtas, que lia Macaulay) o impedira de converter-se. Quando, no fim dos estudos, não conseguiu passar com distinção, os amigos mostraram-se surpreendidos; ele, porém, encolheu os ombros e insinuou delicadamente que não se deixava ofuscar pelos examinadores, dando a entender que formar-se com distinção era um tudo-nada vulgar. Descrevia, com tolerante bom humor, um dos exames orais: uma criatura entalada num colarinho incrível pusera-se a fazer-lhe perguntas sobre lógica. Hayward sentiu profundo tédio, e de repente notara que o examinador usava botas de elástico. Era grotesco e ridículo. Para afastar o pensamento daquilo, começou a reflectir na beleza gótica da capela do *_king.s College*. Em compensação, passara alguns dias encantadores em Cambridge; oferecera excelentes jantares e as discussões, nos seus aposentos, ficaram muitas vezes memoráveis. Citou para Philip o delicioso epigrama:

 

-- *_Ouvi dizer, Heraclito, ouvi dizer que havias morrido*.

 

Riu-se ao repetir-lhe a pitoresca anedota do examinador e das botas.

 

-- _é  claro que foi uma tolice - acrescentou -- mas uma tolice com algo de aproveitável.

 

Philip, vibrante de admiração, achava tudo magnífico.

 

De Cambridge, Hayward voltara a Londres, para estudar advocacia. Alugou óptimas instalações em Clement.s Inn, com as paredes forradas de madeira. Alimentava, então, ambições vagamente políticas, dando-se como liberal. Foi proposto para um clube liberal, mas de ambiente distinto. O seu plano era praticar no Foro (escolhia o Supremo Tribunal de Justiça como menos brutal) e conseguir a eleição para o Parlamento Logo que se cumprissem as promessas que lhe haviam feito. Nesse meio tempo, frequentara assiduamente a ópera e travara relações com um pequeno número de pessoas de gosto idêntico ao seu. Ingressou num *dining-club* cuja divisa era "o Todo, o Bom e o Belo" e cultivou platónica amizade por uma dama, de idade um pouco superior à sua, que vivia em Kensington Square. Quase todas as tardes tomava chá na sua companhia, à luz de velas, e falava de George Meredith e Walter Pater. Era voz corrente que qualquer tolo conseguiria aprovação nos exames do Conselho da Ordem dos Advogados, e por isso os seus estudos foram realizadlos de maneira dilatória. Quando, por fim, foi reprovado, considerou isso uma afronta pessoal. Na mesma ocasião, a dama de Kensington Square comunicou-lhe que seu marido regressava da _índia, em gozo de licença; era um homem de ideias muito estreitas, embora digno a todos os respeitos e não compreenderia as frequentes visitas de um rapaz. Hayward sentiu que a vida era cheia de sordidez; a sua alma revoltava-se ante a ideia de enfrentar novamente o cinismo dos examinadores. Via algo de esplêndido em dar um pontapé na oportunidade que se lhe apresentava. Estava, além disso, bastante endividado, pois era difícil viver como uma pessoa de bem, em Londres, apenas com trezentas libras por ano. Além disso, o seu coração ansiava por Veneza e Florença, que John Ruskin tão maravilhosamente descrevera. Achava não ter sido talhado para as actividades vulgares do Foro, pois descobrira que não era bastante pregar uma placa na porta para conseguir causas; a política moderna, por outro lado, parecia pecar pela falta de nobreza. Julgava-se poeta. Abandonou, portanto as instalações da Clement.s Inn e partiu para a Itália. Passara um Inverno em Florença e outro em Roma, e agora estava a passar o Verão na Alemanha, a fim de ler Goethe no original.

 

Hayward possuía um dom precioso. Tinha grande senso literário e transmitia o seu ardor com admirável facilidade. Sabia colocar-se no ponto de vista de um escritor, apreciar o que ele tivesse de melhor e, em seguida, discutir-lhe a obra com perfeita :, compreensão. Philip lera bastante, mas indiscriminadamente, tudo quanto lhe caía nas mãos; e era óptimo para ele, agora, encontrar alguém que lhe orientasse o gosto. Levou livros emprestados da pequena biblioteca da cidade e começou a ler as maravilhas de que Hayward falara. Nem sempre lia com prazer, mas fazia-o com invariável perseverança. Ansiava por aperfeiçoamento. Sentia-se muito ignorante e humilde. Ao findar Agosto, quando Weeks voltou do seu giro pelo sul da Alemanha, Philip estava por completo sob a influência de Hayward. Este não gostava de Weeks. Deplorava o casaco preto e as calças de mescla do americano, e referia-se com desdém à sua mentalidade de filho da Nova Inglaterra. Philip escutava com complacência. essas observações injuriosas a respeito de um homem que o tratara com bandade, mas quando Weeks, por sua vez, fazia comentários desagradáveis a respeito de Hayward, zangava-se.

 

-- O teu novo amigo tem ar de poeta -- dizia Weeks, com um leve sorriso nos lábios amargos e preocupados.

 

-- Pois é um poeta.

 

-- Disse-te isso? Na América, chamar-lhe-íamos um bom exemplo da inutilidade.

 

-- Mas não estamos na América -- retorquia Philip, friamente.

 

-- Que idade tem ele? Vinte e cinco? E não faz nada, a não ser viver nas pensões e escrever poesias.

 

-- Não o conheces -- interrompeu-o Philip, com calor.

 

-- Se o conheço... tenho encontrado centenas de indivíduos

iguals a ele.

 

Os olhos de Weeks cintilaram, mas Philip, que não compreendia o humorismo americano, cerrou os lábios numa expressão severa. Para ele, Weeks parecia um homem de meia-idade, mas o certo é que tinha pouco mais de trinta anos. Possuía um corpo magro, comprido, o curvado dos eruditos. A cabeça era grande e feia, os cabelos ralos, de um louro desmaiado, e a pele cor de terra. A boca fina e o nariz, também fino e comprido, emprestavam-lhe, juntamente com a protuberância dos ossos frontais, um aspecto desgracioso. Era frio e preciso nos gestos, um homem sem ardor, sem paixão. Mas tinha uma vida de frivolidade que desconcertava as pessoas de espírito maduro, cuja convivência os seus instintos o levavam naturalmente a cultivar. Estudava teologia em Heidelberga, mas os outros estudantes da sua nacionalidade olhavam-no com desconfiança. Era muito pouco ortodoxo, o que os assustava; além disso, a sua disposição caprichosa suscitava a desaprovação de todos.

 

-- Por que dizes que já conheceste centenas iguais a ele? -- indagou Philip, com seriedade.

 

-- Encontrei-os no Bairro Latino, em Paris, e encontrei-os nas pensões de Berlim e de Munique. Vivem nos pequenos hotéis de :,

Perúgia e Assis. São vistos às dúzias diante dos quadros de Botticelli, em Florença, e sentam-se em todos os bancos da Capela Sistina, em Roma. Em Itália, bebem vinho em demasia e na Alemanha bebem cerveja em demasia. Admiram as coisas consagradas, sejam quais forem, e por estes dias principiarão a escrever grandes obras. Pensa nisto, há centenas de grandes obras a germinar nos cérebros de centenas de grandes homens, mas a trágica verdade é que nenhuma dessas centenas de grandes obras será jamais escrita. E o mundo continua.

 

Weeks falava com seriedade, mas os seus olhos cintilaram de leve, ao fim da longa explicação e Philip corou, ao notar que o americano zombava dele.

 

-- És um fala-barato -- retorquiu, aborrecido.

 

Nem Hayward nem Weeks imaginavam que essas conversas em que se entretinham durante as noites de ócio eram depois esmiuçadas pelo cérebro activo de Philip. Nunca lhe ocorrera, antes, ser a religião um assunto que comportasse discussão. Para ele, a religião resumia-se à Igreja Anglicana, e não acreditar nos seus ensinamentos era um sinal de capricho e teimosia que não podia deixar de receber o merecido castigo, neste mundo ou noutro. Alimentava, contudo, certas dúvidas quanto ao género de castigo que sofreriam os incrédulos. Podia ser que um juiz misericordioso, reservando as chamas do inferno para os pagãos -- maometanos, budistas, etc.  -- poupasse, no entanto, os dissidentes e os católicos-romanos (embora viessem a sofrer horrível humilhação, mais tarde, ao reconhecerem o erro em que haviam caído!); era também possível que Ele se mostrasse condescendente para com aqueles que não tivessem tido ensejo de conhecer a verdade -- se bem que o número de tais criaturas devesse ser muito reduzido, dadas as actividades da Sociedade Missionária. Se tivessem esse ensejo, porém, e o desprezassem -- categoria essa em que estavam incluídos, é claro, os católicos-romanos e os dissidentes -- o castigo seria inevitável e bem merecido. Era evidente que o incrédulo se encontrava num estado perigoso. Talvez não lho houvessem dito por estas palavras mas o certo é que haviam dado a Philip a impressão de que só os adeptos da Igreja Anglicana podiam aspirar à felicidade eterna.

 

Uma das afirmações categóricas que lhe fizeram foi a de que o descrente é um homem perverso e vicioso. Weeks, contudo, embora não depositasse fé em nada do que Philip acreditava, levava uma vida de pureza cristã. Philip raras vezes encontrara quem se mostrasse bondoso para com ele, e por isso o comovia o desejo que o americano tinha de auxiliá-lo. Certa vez, durante um resfriamento que o prendeu na cama três dias, Weeks tratou-o como o faria uma mãe. Não havia nele vício nem maldade: havia apenas sinceridade e amor do próximo. Era possível, por conseguinte, ser-se virtuoso e descrente.

 

Haviam dado a entender a Philip, igualmente, que as pessoas :,

se tornavam adeptas de outros credos apenas por obstinação ou interesse pessoal. Intimamente, todas tinham consciência da falsidade desses credos, procurando por todos os meios iludir os outros. Visando aperfeiçoar o seu alemão, Philip adquirira o hábito de assistir todos os domingos ao ofício luterano, mas, após a chegada de Hayward, passou a acompanhá-lo à missa. Observou que, ao passo que a igreja protestante se apresentava quase vazia e a congregação parecia desatenta, o templo dos jesuítas estava sempre apinhado de fiéis que se entregavam com todo o fervor às suas orações. Não tinham aparência de hipócritas. Esse contraste surpreendeu-o, pois sabia evidentemente que os luteranos, cuja fé se assemelhava mais à da igreja Anglicana, estavam, por essa razão, mais próximos da verdade do que os católicos-romanos. A maioria dos homens -- a congregação era quase totalmente masculina -- compunha-se de alemães do Sul, e ele pensava consigo próprio que, se tivesse nascido no Sul da Alemanha, seria naturalmente católico-romano. Tanto podia ter nascido numa nação católica, como na Inglaterra; e na Inglaterra, tanto podia pertencer a uma família wesleyana, baptista ou metodista, como à sua, que felizmente professava a religião oficial. Sentia-se atemorizado ante o perigo que correra. Travara relações de amizade com o chinês que se sentava à mesa com ele, duas vezes por dia. Chamava-se Sung. Mostrava-se sempre sorridente, afável e polido. Era estranho que estivesse condenado a arder no Inferno pelo simples facto de ser chinês. Mas se a salvação fosse possível, independentemente da fé que o homem alimentasse, não haveria nenhuma vantagem especial em pertencer à igreja anglicana.

 

Cheio de perplexidade, Philip resolveu sondar Weeks. Teve que usar de cautela, pois era muito sensível ao ridículo e o humor acre com que o americano se referia à igreja de Inglaterra desconcertava-o. Weeks contundiu-o ainda mais. Levou-o a reconhecer que aqueles alemães da igreja dos jesuítas estavam tão firmemente convencidos da verdade do Catolicismo Romano como ele estava da da Igreja Anglicana, e daí levou-o a admitir que os maometanos e budistas estavam também convencidos da verdade das respectivas religiões. Dir-se-ia que a consciência da verdade nada significava: todos tinham a certeza de estarem com a razão. Weeks não pretendia destruir a crença do rapaz, mas sentia grande interesse pela religião e considerava-a um assunto absorvente. Descrevera acertadamente a sua convicção, quando afirmava não acreditar em nada daquilo que constituía a crença dos outros. Uma vez, Philip fez-lhe uma pergunta que ouvira ao tio, no vicariato, por ocasião de uma conversa sobre certa obra modernamente racionalista que provocava discussões nos jornais.

 

-- Mas por que havias tu de estar na razão, e criaturas como Santo Anselmo e Santo Agostinho no erro? :,

 

-- Queres dizer que eles foram homens inteligentes e cultos, ao passo que pões grandes dúvidas se eu o sou? -- perguntou Weeks.

 

-- Sim -- respondeu Philip num tom de incerteza, pois feita daquela forma, a pergunta parecia impertinente.

 

-- Santo Agostinho acreditava que a Terra era plana e que o Sol girava em torno dela.

-- Não vejo o que isso possa provar.

-- Ora, prova que cada um tem as crenças da sua geração. Os teus santos viveram numa era de fé, quando era praticamente impossível deixar de acreditar em coisas que hoje nos parecem positivamente inacreditáveis.

 

-- Então, como sabes que estamos agora na verdade?

 

-- Mas eu não o sei!

 

Philip reflectiu um instante e volveu:

-- Não vejo razão para que as coisas em que acreditamos presentemente não sejam tão erróneas como aquelas em que se acreditava no passado.

 

-- Nem eu.

 

-- Então como podes acreditar em alguma coisa?

 

-- Não sei.

 

Philip perguntou a Weeks o que pensava da religião de Hayward.

 

-- Os homens imaginaram sempre os deuses à sua própria imagem --disse Weeks. -- Hayward acredita no pitoresco.

 

Após pequena pausa, Philip observou:

 

Afinal, não compreendo por que se deva acreditar em Deus.

 

Mal as palavras lhe saíram da boca, concluiu que já não tinha fé.

Perdeu o fôlego de repente, como se tivesse mergulhado em água fria. Voltou-se para Weeks, com os olhos espantados, e de súbito teve medo. Na primeira oportunidade, despediu-se do amigo. Queria estar sozinho. Era a coisa mais extraordinária que já lhe acontecera. Tentou reflectir; aquilo era emocionante, uma vez que o caso parecia interessar toda a sua vida (julgava que qualquer decisão nesse terreno alteraria profundamente o curso da sua existência) e um erro podia conduzir à condenação eterna. Quanto mais reflectia, porém, mais reforçava a sua convicção, e embora durante as semanas que se seguiram devorasse livros de tendências cépticas, não o fez senão para confirmar aquilo que sentia instintivamente. O facto é que deixara de acreditar, não por esta ou aquela razão, mas porque lhe faltava o temperamento religioso. A fé fora-lhe incutida do exterior. Era uma questão de ambiente e exemplo. Novo ambiente e novo exemplo proporcionavam-lhe, agora, a oportunidade de encontrar-se a si próprio. Descartava-se facilmente da crença que alimentava em criança, como uma capa de que já não necessitava. A princípio, a vida pareceu-lhe estranha e solitária, sem a fé que, embora nunca o tivesse percebido, representava :, um apoio infalível. Sentia-se como um homem que, acostumado a andar apoiado ao bastão, fosse de repente compelido a dispensá-lo. Parecia, realmente, que os dias eram mais frios e as noites mais solitárias. A novidade da sensação animava-o, contudo; parecia transformar-lhe a vida numa aventura emocionante. Em pouco tempo, o bastão que atirara para longe e a capa que lhe caíra dos ombros assemelhavam-se a um fardo insuportável de que tivesse sido aliviado. As práticas religiosas durante tantos anos impostas afiguravam-se-lhe partes integrantes da própria religião. Lembrou-se das orações e epístolas que fora obrigado a decorar, e dos prolongados ofícios na catedral, a que assistira sentado, com as pernas e os braços a ansiar por movimento. Lembrou-se das caminhadas, à noite, através de estradas lamacentas para a matriz de Blackstable, e do desconforto daquele frio edifício; sentava-se com os pés gelados, os dedos entorpecidos e doridos e por todo o lado o cheiro incomodativo da brilhantina. Oh! como se enfastiava! O seu coração saltava de alegria, ao ver que estava livre daquelas maçadas.

 

Admirava-se de se ter libertado da crença com tanta facilidade e, ignorando que tudo se originara nos processos subtis da sua natureza íntima, atribuía à faculdade de raciocínio a convicção inabalável a que chegara. Sentia-se, indubitavelmente, contente consigo mesmo. Com a falta de simpatia que a mocidade revela por atitudes diferentes da sua, Philip desprezava Weeks e Hayward, por se contentarem com o vago símbolo a que chamavam Deus, sem coragem para darem o passo final que a ele parecia tão simples. Certo dia subiu, sozinho, a uma colina, para descortinar uma vista que, não sabia por que razão, sempre o inundara de sensações eufóricas. Era, então, no Outono, mas os dias ainda se apresentavam quase sempre sem nuvens e o céu parecia brilhar com mais esplendor. Dir-se-ia que a natureza procurava aumentar a magnificência dos últimos dias de bom tempo. Olhou a planície, lá em baixo, reverberando ao Sol numa extensão infinita; à distância, viam-se os telhados de Mannheim e, muito além, os contornos mal delineados de Worms. Aqui e ali, o Reno cintilava, num reflexo penetrante. Toda aquela vastidão estava impregnada de pura luz doirada. Com o coração a bater de alegria, Philip lembrou-se de como Satanás mostrara a Jesus, do alto de um monte, os reinos da Terra. A Philip inebriado pela beleza do cenário, parecia que o mundo inteiro se estendia diante dele e estava ansioso por descer e destrutá-lo. Sentia-se livre de temores degradantes, livre de preconceitos. Podia seguir o seu caminho sem o insuportável fogo do inferno. De súbito, verificou haver-se também descartado daquela responsabilidade que transformava todas as acções da sua vida em questões de premente importância. Respirava mais livremente, numa atmosfera menos carregada. Só a si :,

próprio tinha que dar satisfação do que fizesse. Liberdade! Era, afinal, senhor de si próprio. Por velho hábito, agradeceu inconscientemente a Deus o já não acreditar nele.

 

Embriagado de orgulho ante a sua inteligência e destemor, Philip iniciou uma nova vida cheia de entusiasmo. Mas a perda da fé ocasionou, na sua conduta, uma mudança menor do que esperava. Embora tivesse repelido os dogmas cristãos, nunca lhe ocorreu criticar a ética cristã; aceitava as virtudes e na verdade achava louvável praticá-las desinteressadamente, sem aspirar a recompensa ou a castigo. Na casa de Frau Erlin havia pouca oportunidade para demonstrações de heroísmo, mas Philip tornou-se, um pouco mais verídico do que costumava ser, mostrando-se por outro lado, atencioso com as senhoras idosas e insípidas que às vezes travavam conversa com ele. Desprezava agora os adjectivos violentos e as imprecações eufemísticas que caracterizam o idioma britânico e que ele cultivara até então, como símbolo de masculinidade.

 

Depois de resolver satisfatoriamente a questão, procurou apagá-la da memória, o que não foi muito fácil. Não podia esquivar-se às saudades nem sufocar as apreensões que por vezes o atormentavam. Era tão novo, e tinha tão poucos amigos, que a imortalidade não lhe parecia muito atraente, e por isso deixou também de acreditar nela. Havia, porém, uma coisa que o martirizava. Dizia consigo mesmo não ser razoável e procurava afastar aquele estado de alma, olhando-o pelo lado cómico. Mas as lágrimas vinham-lhe, de facto, ao olhos, ao pensar que nunca mais veria a sua linda mãe, cujo amor por ele, após a morte, se tornara mais precioso à medida que os anos corriam. _às vezes, como se sofresse inconscientemente a influência de inúmeros antepassados devotos, deixava-se tomar de grande pânico, receoso de que tudo fosse, afinal, verdadeiro e existisse de facto, lá em cima, por trás do céu azul, um Deus ciumento que punisse os ateus com as chamas eternas. Nessas ocasiões a razão não vinha em seu socorro. Imaginava a angústia de um tormento físico interminável, sentia-se transido de medo e o suor brotava-lhe por todos os poros. Por fim, desesperado, exclamava consigo mesmo:

 

-- Afinal de contas, não tenho culpa alguma. Não posso obrigar-me a crer. Se existe um Deus e se ele me castigar porque honestamente não creio n._Ele, não posso dar remédio.

 

Chegara o Inverno. Weeks foi a Berlim assistir às prelecções de Paulssen, e Hayward começou a fazer planos de uma viagem ao Sul. O teatro local abriu as portas. Philip e Hayward frequentavam-no duas ou três vezes por semana, com a louvável intenção de melhorarem os seus conhecimentos de alemão. Para Philip, esse método era muito mais divertido do que ouvir sermões. O drama passava, nessa época, por uma espécie de renascimento. Várias peças de Ibsen foram incluídas no reportório de Inverno. *_Die Ehre*, de Sudermann, era nessa época uma peça nova, e a sua apresentação na tranquila cidade universitária provocou indizível alvoroço; era extravagantemente elogiada e ao mesmo tempo combatida sem dó nem piedade. Seguiram-se outros dramaturgos, com peças escritas sob a influência moderna, e Philip assistiu a uma série de obras em que a vileza humana era posta em evidência. Nunca, na sua vida, vira uma representação teatral. Humildes companhias passavam, às vezes, por Blackstable, mas o vigário, já em virtude da sua profissão, já porque considerasse aquilo uma coisa vulgar, nunca ia aos espectáculos. Philip foi tomado pela paixão do teatro. Vibrava de comoção ao penetrar no velho teatrinho mal iluminado. Em pouco tempo, descobriu todas as particularidades da pequena companhia, e, pela distribuição dos papéis, sabia dizer quais as características das figuras encarnadas. Isso, contudo, não fazia diferença alguma. Para ele, era a vida real. Uma vida estranha, sombria e torturada, em que homens e mulheres revelavam a maldade que lhes ia nos corações. Um lindo rosto escondia um espírito depravado; os virtuosos utilizavam-se da virtude como máscara para ocultar os seus vícios secretos; os que pareciam fortes desmaiavam intimamente de fraqueza; os honestos eram corruptos e os castos, libidinosos. Tinha-se a impressão de um quarto onde, na noite anterior, houvera desenfreada orgia: as janelas não tinham sido abertas e o ar estava impregnado de cerveja, fumo e gás de iluminação. Não se ouvia o riso na plateia. Quando muito, havia quem sorrisse escarninhamente do hipócrita ou do tolo. As personagens expressavam-se por palavras cruéis, que pareciam arrancadas dos seus corações pela vergonha e pela angústia.

Philip deixou-se arrebatar pela sórdida intensidade do drama. Parecia contemplar novo ângulo do mundo e ansiava explorá-lo sem demora. Ao terminar a representação, dirigia-se a uma casa de bebidas e sentava-se com Hayward, ao pé do lume, a comerem uma sanduíche e beberem uma garrafa de cerveja. Em redor viam-se grupos de estudantes, que conversavam e riam. Aqui e além, uma família: pai, mãe, dois filhos e uma filha; às vezes, a rapariga dizia qualquer coisa engraçada e o pai, recostando-se na cadeira, :, soltava sonora gargalhada. Era tudo tão inocente e amistoso! A cena sugeria o agradável aconchego do lar, mas Philip nada disso via. Os seus pensamentos convergiam para a peça a que acabara de assistir.

 

-- Sente-se que aquilo é a vida real, não é verdade? -- disse, cheio de agitação. -- Não posso permanecer aqui por mais tempo. Quero ir para Londres e iniciar a vida de verdade. Quero ter aventuras. Estou cansado de me preparar para a vida: quero vivê-la agora.

 

_às vezes, Hayward deixava que Philip voltasse só para casa. Nunca respondia às perguntas ansiosas que o rapaz lhe fazia. Com um sorriso jovial e um tanto ou quanto estúpido, fazia insinuações sobre amores românticos; citou algumas linhas de Rossetti e certa vez mostrou a Philip um soneto em que havia paixão, pessimismo e sentimento, a respeito de uma jovem chamada Trude. Hayward envolvia as suas aventuras sórdidas e vulgares numa auréola de poesia, imaginando andar de mãos dadas com Péricles e Fídias, só porque, para descrever o objecto das suas atenções, utilizava a palavra *hetaira*, em vez de recorrer aos termos mais rudes e apropriados que oferece o idioma inglês. Durante o dia, levado por mera curiosidade, Philip passou pela pequena rua de casas brancas e postigos, onde, de acordo com as informações de Hayward, morava Frãulein Trude. Mas as mulheres de rostos brutais e faces pintadas que apareceram às portas e chamaram por ele encheram-no de medo. Fugiu, horrorizado, das ásperas mãos que procuravam detê-lo. Ansiava por aventuras e sentia-se ridículo por não ter ainda, na sua idade, experimentado aquilo que a ficção lhe ensinara ser a coisa mais importante da vida... Possuía, no entanto, o dom infeliz de ver tudo como na verdade era, e a realidade diferia terrivelmente do ideal dos seus sonhos.

 

Não sabia como é vasto, árido e escarpado o país que o viajante da vida tem de atravessar para poder aceitar a realidade. _é uma ilusão pensar que a mocidade seja feliz, uma ilusão daqueles que a perderam. Os jovens sabem que são miseráveis, pois alimentam os falsos ideais que lhes foram incutidos e todas as vezes que entram em contacto com o real sentem-se magoados e contundidos. Dir-se-ia serem vítimas de uma conspiração. Os livros que lêem, livros ideais pela necessidade de selecção, e a conversa dos mais velhos, que olham para o passado através da nuvem rosada do esquecimento, preparam-nos para uma vida irreal. São obrigados a descobrir por si próprios que tudo o que leram e tudo o que lhes ensinaram é mentira, mentira, pura mentira. Cada nova descoberta é mais um prego que lhes fixa o corpo à cruz da vida. O estranho é que as próprias pessoas que sofreram esses amargos desenganos trabalham inconscientemente, movidas por irresistível força íntima, para criar essa mesma atmosfera. A companhia  :, de Hayward era a pior coisa que Philip podia ter encontrado. Era um homem que nada sabia ver com os próprios olhos, mas só através do prisma literário; um homem perigoso porque se iludira a si mesmo, a ponto de se tornar sincero. Confundia honestamente o seu sensualismo com a emoção romântica, a sua indecisão com o temperamento artístico e o seu ócio com a calma filosófica. O seu espírito, vulgar apesar da ânsia de perfeição, via tudo em dimensões maiores do que as da realidade e os contornos apareciam mal definidos, imersos na névoa doirada do sentimentalismo. Mentia e no entanto nunca sabia que mentia e quando lhe chamavam a atenção para isso, dizia que as mentiras eram belas. Era um idealista.

 

Philip andava inquieto e insatisfeito. As alusões poéticas de Hayward perturbavam-lhe a imaginação e a sua alma ansiava por aventuras amorosas. Pelo menos, era o que ele julgava.

 

E em casa de Frau Erlin ocorreu qualquer coisa que aumentou as preocupações de Philip em matéria de sexo. Duas ou três vezes, passeando pelas colinas, encontrara Frãulein Cãcilie a deambular sozinha. Cumprimentara-a, ao cruzarem-se, e pouco adiante encontrara o chinês. Não ligou importância ao incidente, mas ao voltar para casa, certa noite, avistou duas pessoas que caminhavam bem juntinhas uma da outra. Ao ouvirem passos separaram-se rapidamente, mas, embora não fosse possível distingui-los na escuridão, tinha quase a certeza que se tratava de Cãcilie e Herr Sung. O repentino movimento de separação sugeria que caminhavam de braço dado. Philip ficou perplexo e surpreso. Nunca dera atenção a Frãulein Cãcilie. Era uma jovem vulgar, de rosto quadrangular e feições grosseiras. Devia ter, o máximo, dezasseis anos, pois ainda usava os cabelos louros enrolados numa trança. Nessa noite, à ceia, olhou-a com curiosidade. Embora, ultimamente, pouco falasse às refeições, ela perguntou-lhe:

 

-- Por onde passeou hoje, Herr Carey?

 

-- Subi o Kõnigstuhl.

 

-- Eu não saí -- retorquiu ela. -- Estava com uma dor de

cabeça.

 

O chinês, sentado a seu lado, voltou-se de repente.

 

-- Sinto muito -- disse ele. -- Espero que já esteja melhor.

 

Frãulein Cãcilie estava visivelmente inquieta.

 

-- Encontrou muita gente no caminho ?

 

Philip não pôde evitar corar por ter de inventar uma mentira.

 

-- Não. Não encontrei vivalma.

 

Julgou notar uma expressão de alívio perpassar nos olhos dela.

 

Dentro em pouco, porém, não havia dúvidas sobre as relações entre os dois, uma vez que várias pessoas os surpreenderam em recantos escuros da casa. As senhoras idosas, sentadas à cabeceira da mesa, puseram-se a comentar aquilo que já assumia as proporções de um escândalo. Frau Erlin mostrava-se irritada e atormentada. Fizera o possível por ignorar tudo. O Inverno estava próximo e nessa época a pensão nunca se conservava cheia como no Verão. Herr Sung era bom hóspede: ocupava dois quartos no andar de baixo e bebia uma garrafa de Mosela a cada refeição. Frau Erlin lucrava bastante com isso, pois cobrava-lhe três marcos por garrafa. Nenhum outro hóspede bebia vinho e alguns nem mesmo cerveja eram capazes de consumir. Não queria perder Frãulein Cãcilie, também, cujos pais negociavam na América do Sul e lhe pagavam bem pela manutenção da jovem. Se, por outro lado, escrevesse ao tio desta, que residia em Berlim, tinha a certeza de que ele a mandaria logo buscar. Contentava-se em lançar-lhes olhares severos, durante as refeições e, conquanto não ousasse ser rude para com o chinês, sentia certa satisfação em tratar Cãcilie indelicadamente. Mas as três senhoras idosas não se davam por satisfeitas. Duas eram viúvas e a outra, uma holandesa, era uma solteirona de aspecto masculino. Pagavam irrisória quantia na pensão e davam muito que fazer, mas eram hóspedas permanentes e portanto tinham de ser suportadas. Dirigiram-se à dona da casa e disseram que era preciso tomar qualquer providência. Aquilo era vergonhoso e comprometia a reputação do estabelecimento. Frau Erlin experimentou a obstinação, a raiva, as lágrimas, mas as três velhas não a deixaram em paz. De repente, enchendo-se de virtuosa indignação, resolveu pôr fim à história toda.

 

Após o almoço, levou Cãcilie para o quarto e falou-lhe seriamente. Ficou perplexa, quando a rapariga assumiu uma atitude atrevida. Faria o que muito bem entendesse, e, se passeava com o chinês, ninguém tinha nada com isso. Frau Erlin ameaçou, então, escrever ao tio.

 

-- Tanto melhor para mim. O tio Heinrich arranjará uma família com quem eu possa ficar em Berlim, durante o Inverno. Herr Sung irá, depois, para Berlim também.

 

Frau Erlin pôs-se a chorar. As lágrimas rolavam-lhe pelas faces grosseiras, vermelhas e gordas, provocando o riso de Cãcilie.

-- Isso significará três quartos vagos durante o Inverno --  disse ela.

 

A dona da casa experimentou, então, outro plano. Apelou para os melhores sentimentos de Frãulein Cãcilie: foi bondosa, sensata, tolerante. Passou a tratá-la, não como criança, mas como mulher feita. O namoro, em si, não apresentava nada de mal, mas namorar um chinês, de pele amarela, nariz chato e olhinhos de porco! Que coisa horrível! Dava engulhos só de pensar em tal.

 

-- *_Bitte, bitte* -- exclamou Cãcilie, respirando fundo. -- Não permito que se fale mal dele.

 

-- Não é a sério, não? -- perguntou Frau Erlin, consternada.

 

-- Eu amo-o! Amo-o! Amo-o!

 

-- *_Gott im Himmel*!

 

Frau Erlin encarou a jovem com uma surpresa horrorizada. Julgava que se tratasse apenas de uma travessura infantil, uma brincadeira inocente, mas o calor da voz dela revelara tudo. Cãcilie fitou-a um instante, com os olhos inflamados, e, depois de encolher os ombros, retirou-se do quarto.

 

Frau Erlin guardou segredo sobre os pormenores da entrevista e dois dias depois modificou a disposição dos lugares na sala de jantar. Convidou Herr Sung a sentar-se a seu lado, na extremidade da mesa, o que ele aceitou de bom grado, com a sua indefectível polidez. Cãcilie mostrou-se indiferente à mudança. Agora, porém, como se o facto de todos ali saberem do namoro os tornasse ainda mais indiscretos, passeavam juntos, todas as tardes, de colina em colina. Via-se que pouco lhes importava o que pudessem dizer. Por fim, até a placidez do professor foi atingida. Insistiu com a esposa para que falasse ao chinês. Frau Erlin levou-o para um canto, por sua vez,

 e fez-lhe um sermão: estava a arruinar a reputação da jovem; arruinava a reputação da casa; a sua conduta era má e perversa. Herr Sung, porém, sorrindo sempre, negava tudo. Não sabia de que se tratava; não dava atenção alguma a Frãulein Cãcilie e nunca passeara com ela. Era tudo mentira, pura calúnia!

 

-- *_Ach*, Herr Sung, como pode o senhor afirmar uma coisa destas? Já os viram tantas vezes !

 

-- Não, está enganada. É mentira.

 

Olhava para ela com um sorriso interminável que mostrava os seus iguais e pequenos dentes brancos. Mantinha-se perfeitamente calmo. Negou tudo. Negou com amável descaramento. Por fim, Frau Erlin perdeu a paciência e disse que a rapariga confessara que o amava. Não se perturbou. Continuou a sorrir.

 

-- Tolice! Tolice! É tudo mentira!

 

Era impossível conseguir qualquer coisa daquele homem. O tempo esfriou. Veio a neve, a geada, e em seguida o degelo, numa sucessão de dias tristes que não convidavam a passeios. Certa noite, depois de findar a lição com o Professor, Philip conversava com Frau Erlin, na sala de visitas, quando Ana entrou repentinamente.

 

-- Mamã, onde está Cãcilie? -- perguntou.

 

-- Deve estar no quarto.

 

-- A luz está apagada.

 

Frau Erlin soltou uma exclamação, olhando, desolada, para a filha.

O pensamento de Ana transmitira-se-lhe instantaneamente. :,

 

-- Chama o Emil -- ordenou com voz rouca.

 

Referia-se à espécie de labrego que servia à mesa e dava conta de quase todos os trabalhos domésticos. Ele apareceu.

 

-- Emil, desça ao quarto de Herr Sung e entre sem bater. Se houver alguém, diga que entrou para ver a estufa.

 

A fisionomia fleumática de Emil não revelou o menor sinal de espanto.

 

Desceu vagarosamente as escadas. Frau Erlin e Ana deixaram a porta aberta e ficaram à escuta. Dentro de instantes ouviram Emil subir e chamaram-no.

 

-- Está alguém lá? -- perguntou a mulher.

 

-- Sim. Herr Sung está lá.

 

-- Está só?

 

O indício de um sorriso malicioso estreitou-lhe os lábios.

 

-- Não. Frãulein Cãcilie está lá.

 

-- Oh, é uma vergonha! -- exclamou Frau Erlin.

 

Agora o criado sorria francamente

 

-- Frãulein Cãcilie vai lá todas as noites. Demora-se lá horas a fio.

 

Frau Erlin pôs-se a torcer as mãos.

 

-- Que coisa abominável! E por que não me disse nada?

 

-- Não era da minha conta -- respondeu ele vagarosamente, encolhendo os ombros.

 

-- Sem dúvida lhe pagaram bem. Vá-se embora, ande!

 

Emil caminhou desajeitadamente para a porta.

 

-- Têm de se ir embora, mamã -- sugeriu Ana.

-- E quem pagará o aluguer? Os impostos estão por vencer. _é muito fácil dizer que é preciso mandá-los embora. Se fizermos isso, não sei como havemos de pagar as contas. -- Voltou-se para Philip, com o rosto banhado em lágrimas. -- Por favor, Herr Carey, não conte nada do que ouviu. Se Frãulein Forster -- era o nome da solteirona holandesa -- se Frãulein Forster soubesse o que se passa, deixar-nos-ia imediatamente. E se todos partirem, teremos de fechar a casa. Não poderei mantê-la.

 

-- Evidentemente que nada direi.

 

-- Se ela ficar, não lhe dirigirei mais uma palavra -- prometeu Ana.

 

Nessa mesma noite, por ocasião da ceia, Frãulein Cãcilie, mais corada que de costume, com ar obstinado, sentou-se à mesa pontualmente. Herr Sung, porém, não apareceu, dando a Philip a impressão de querer fugir à prova. Por fim, surgiu muito sorridente, os olhinhos dançando, pedindo mil desculpas pelo seu atraso. Insistiu, como de costume, em servir um pouco do seu Mosela a Frau Erlin, oferecendo também um copo a Frãulein Forster. A sala estava muito quente, pois a estufa conservara-se acesa todo o dia e as janelas raramente eram abertas. Emil movia-se :, de um lado para outro, meio tonto, mas conseguia servir a todos com ordem e rapidez. As três senhoras idosas mantinham-se em silêncio, visivelmente desaprovadoras. Frau Erlin mal se refizera das lágrimas; o marido, calado, parecia muito oprimido. A conversa arrastava-se, Philip sentia a atmosfera pesada daquela reunião de que tantas vezes fizera parte. Todos tinham um aspecto diverso do que sempre apresentavam. Ele sentia uma vaga inquietação. Certa vez, os seus olhos encontraram os de Cãcilie e a impressão que teve era de que ela o olhava com desprezo e ódio. A sala sufocava. Dir-se-ia que a paixão animal daquele par torturava todos os hóspedes. Pairava no ar um quê de depravação oriental; como que um odor de varinhas aromáticas, um mistério de vícios ocultos, parecia cortar-lhe a respiração. Philip sentia o pulsar das artérias na fronte. Não compreendia que comoção estranha o arrebatava. Parecia sentir qualquer coisa infinitamente atraente que, ao mesmo tempo, lhe causava repulsa e horror.

 

Esse estado de coisas prolongou-se alguns dias. Aquela atmosfera de paixão monstruosa era nauseante, e os nervos dos hóspedes já não suportavam tamanha tensão. Só Herr Sung se mantinha inalterável. Continuava sorridente, afável e cortês como dantes. Seria difícil dizer se a sua atitude era um triunfo para a civilização ou uma expressão de desprezo, da parte do oriental, pelo Ocidente vencido. Cãcilie continuava provocante e cínica. A própria Frau Erlin, por fim, achou que as coisas ultrapassavam os limites. Grande pânico se apoderou dela, de repente, pois o marido, com uma franqueza brutal, sugerira as possíveis consequências de um caso que já ninguém ignorava. A pobre mulher via o seu bom nome em Heidelberga e a reputação da sua casa arrumados por um escândalo agora impossível de ocultar. Por uma razão qualquer --obcecada, talvez, pelo interesse -- nunca pensara em semelhante possibilidade; mas desta vez foi tomada de terror e tornou-se difícil impedir que ela expulsasse a jovem imediatamente. Por sugestão de Ana, que era muito sensata, escreveram uma carta ao tio de Cãcilie, em Berlim, a pedir-lhe que mandasse buscar a sobrinha sem demora.

 

Resignada a perder os dois hóspedes, Frau Erlin não resistiu à tentação de dar rédeas ao furor por tanto tempo reprimido. Poderia dizer a Cãcilie o que bem entendesse.

 

-- Escrevi a seu tio, Cãcilie, a pedir-lhe que a mandasse buscar. Não a posso conservar por mais tempo aqui em casa.

 

Os seus olhinhos redondos faiscaram, ao notar a repentina palidez que invadira o rosto da jovem.

 

-- É uma sem-vergonha. Sem-vergonha -- continuou.

 

Chamou-lhe nomes feios!

 

-- Que mandou dizer a meu tio Heinrich, Frau Erlin? --

perguntou Cãcilie, abandonando a sua atitude de arrogante independência.

 

-- Ele lhe dirá. Espero receber a resposta amanhã.

 

No dia seguinte, a fim de tornar pública a humilhação, a dona da casa interpelou Cãcilie por ocasião da ceia.

 

-- Recebi uma carta de seu tio, Cãcilie. Arrume as suas coisas hoje mesmo, pois amanhã levá-la-emos à estacão. Seu tio esperará o comboio em Berlim, na Central Bahnhof.

 

-- Muito bem, Frau Erlin.

 

Herr Sung sorriu para Frau Erlin e, apesar dos protestos, insistiu em deitar vinho no copo da proprietária, que ceou com bastante apetite. Triunfara sem prudência, contudo. Ao recolher-se, chamou o criado.

 

-- Emil, se o baú de Frãulein Cãcilie estiver pronto, é melhor trazê-lo para baixo ainda esta noite. Amanhã, o carregador virá buscá-lo cedo.

 

O criado retirou-se, voltando pouco depois.

 

-- Frãulein Cãcilie não está no quarto e a sua mala de mão desapareceu.

 

Com um grito Frau Erlin correu para lá. O baú estava no chão, convenientemente amarrado, mas não estava a mala, nem o chapéu nem o casaco. O toucador estava vazio. Ofegante, Frau Erlin correu escada abaixo, em direcção ao quarto do chinês. Havia mais de vinte anos que não se movimentava com tal desembaraço, e Emil gritava-lhe que tivesse cuidado para não cair. Não se dando ao trabalho de bater, entrou. Os quartos estavam vazios. A bagagem fora retirada e a porta que dava para o jardim, ainda aberta, mostrava por onde se dera a evasão. Sobre a mesa, num sobrescrito, havia dinheiro equivalente a um mês de pensão, e uma quantia aproximada por conta dos extraordinários. Vencida de repente pelo cansaço, a gemer, a dona da casa deixou-se cair pesadamente no sofá. Não podia haver a menor dúvida. Os dois tinham fugido juntos. Emil permanecia imóvel e impassível.

 

Depois de anunciar durante um mês a sua partida para o Sul no dia imediato, e transferi-la de semana em semana por falta de ânimo para enfrentar a arrumação das malas ou o tédio da viagem, Hayward foi afinal forçado a uma decisão, pouco antes do Natal, pelos preparativos dessa festa. Não suportava a ideia de um folguedo teutónico. Arrepiava-se todo ao pensar na agressiva alegria dessa quadra do ano, e no desejo de evitá-la resolveu partir na véspera do Natal.

 

Philip não se entristeceu com o afastamento do amigo porque possuía um carácter resoluto e irritava-o que alguém não soubesse ao certo o que queria. Embora sob a influência de Hayward, não podia reconhecer que a indecisão revelasse encantadora sensibilidade. Ressentia-se, também, da sombra de sarcasmo com que Hayward olhava os seus modos decididos. Corresponderam-se. Hayward escrevia cartas de maneira admirável], e, como reconhecesse em si essa qualidade, esmerava-se ao fazê-lo. O seu temperamento abria-se facilmente às belas influências com que se punha em contacto, e dessa forma ele conseguia imprimir, às cartas enviadas de Roma, a delicada e subtil fragrância da Itália. Achava a cidade dos antigos romanos um pouco vulgar e só reconhecia distinção na decadência do Império. Mas a Roma dos Papas cativou-lhe a simpatia e nas suas palavras escolhidas transparecia, deliciosamente, uma beleza rococó. Falava na antiga música sacra, nos Montes Albanos, no langor do incenso e no encanto nocturno das ruas, sob a chuva, quando as calçadas reflectiam a luz misteriosa dos candeeiros. Talvez repetisse essas admiráveis cartas a vários amigos. Não sabia o efeito perturbador que elas produziam em Philip; faziam com que a existência lhe parecesse muito desenxabida. Com a Primavera, Hayward tornou-se ditirâmbico. Propôs a ida de Philip para a Itália. Estava a perder tempo em _heidelberga. A vida ali era banal e os alemães muito grosseiros. Como poderia a alma revelar-se em cenário tão artificial? Na Toscana, a Primavera espalhava flores por toda a região. Philip tinha apenas dezanove anos. Que viesse para percorrerem, juntos, as cidades montanhosas da _úmbria. Os nomes dessas cidades cantavam no coração de Philip. Cãcilie, com o amante, também partira para a Itália. Ao pensar neles, Philip era tomado de uma inquietação que não sabia justificar. Amaldiçoava a sorte por não ter dinheiro para viajar; o tio não lhe mandaria mais do que a mesada convencionada de quinze libras. Não soubera muito bem controlar os seus gastos. Uma vez pagas a pensão e as lições, muito pouco lhe sobrava, e percebia agora que os passeios com Hayward lhe haviam saído muito dispendiosos. Frequentemente, sugeria ele excursões, idas ao teatro ou uma garrafa de vinho quando já se tinha esgotado a mesada de Philip. Com a irreflexão própria da idade, não quisera confessar que os seus recursos não comportavam tais extravagâncias.

 

Felizmente, as cartas de Hayward vinham apenas de raro em raro, e nos intervalos Philip entregava-se de novo à sua vida laboriosa. Matriculara-se na _universidade e frequentava alguns cursos de conferências. Kuno Fischer alcançara, então, o pináculo da fama e fizera, durante o Inverno, brilhantes prelecções sobre Schopenhauer. Foi a iniciação de Philip na filosofia. Possuía um espírito prático e por isso movimentava-se com dificuldade :,

no reino do abstracto; sentia, porém, inexplicável fascinação em acompanhar investigações metafísicas. Enchiam-no de pasmo; era o mesmo que observar um dançarino de corda bamba a fazer proezas sobre um abismo. Mas era empolgante. O pessimismo seduziu-lhe a mocidade; acreditava ser o mundo, no qual em breve penetraria, um tenebroso antro de misérias de onde a piedade fora banida. Nem por isso estava menos ansioso de conhecê-lo. Quando Mrs. Carey, que servia de correspondente ao marido, transmitindo as suas opiniões, sugeriu a Philip, em hora oportuna, que era tempo de regressar a Inglaterra, o rapaz concordou, entusiasmado. Agora, tornava-se necessário decidir o que faria na vida. Deixando _Heidelberga no fim de Julho, teria todo o mês de Agosto para conversar com os tios -- e seria boa ocasião para entrar em combinações.

 

Marcada a data da partida, Mrs. Carey escreveu-lhe novamente. Relembrava-lhe miss Wilkinson, cuja bondade permitira a sua ida para a casa de Frau Erlin, em Heidelberga, e dizia-lhe que ela combinara passar algumas semanas no vicariato. Devia partir de Flessinga em dia determinado e, se Philip se pusesse em viagem ao mesmo tempo, poderia procurá-la e virem juntos para Blackstable. A timidez do rapaz fê-lo responder imediatamente, comunicando não poder embarcar senão um ou dois dias mais tarde. Imaginava-se à procura de Miss Wilkinson, a perguntar-lhe, embaraçado, se era realmente ela (com que facilidade poderia dirigir-se a outra pessoa qualquer e receber uma repreensão!); depois, no comboio, não sabia se as boas maneiras lhe permitiriam a leitura de algum livro ou se teria a obrigação de conversar com ela durante todo o trajecto!

 

Por fim, deixou Heidelberga. Havia três meses que não pensava senão no futuro. Não levava saudades. Nunca se deu conta de que fora feliz ali. Frãulein Ana ofereceu-lhe um exemplar de *_Der _trompeter von Sãckingen* e ele, em retribuição, brindou-a com um volume de William Morris. Muito acertadamente, nenhum dos dois chegou a ler o presente do outro.

 

Philip ficou surpreendido quando viu o tio e a tia. Nunca notara, que eram pessoas tão velhas. O vigário recebeu-o com a afável indiferença do costume. Tornara-se um pouco mais gordo e mais calvo, e o cabelo que lhe restava estava mais grisalho. Philip notou, então, como o tio era insignificante. O seu rosto revelava fraqueza e egoísmo. A tia Louise apertou-o nos braços e beijou-o; lágrimas de ventura rolaram-lhe pelas faces. Philip sentiu-se comovido e embaraçado. Não sabia que ela lhe dedicava uma afeição tão profunda.

 

-- Oh, como o tempo custou a passar na tua ausência, Philip! --exclamou ela.

 

Afagando-lhe as mãos, fitou-o com olhos jubilosos.

 

-- Cresceste. Estás agora um homem feito.

 

Um pequeno bigode insinuava-se-lhe no lábio superior. Comprara uma navalha e, de vez em quando, com prudência infinita, raspava a penugem do queixo liso.

 

-- Sentimo-nos tão sós sem ti -- continuou a tia.

E então, muito tímida, com uma pequena tremura na voz perguntou:

 

-- Estás contente por voltar para casa, não estás?

 

-- Sim, muito.

 

Estava tão magra que parecia quase transparente. Os braços com que envolveu o pescoço do sobrinho eram ossos tão frágeis que lembravam ossos de galinha, e, oh! como o seu rosto murcho estava sulcado de rogas! Os cachos grisalhos que ainda usava à moda da juventude emprestavam-lhe estranho e comovente aspecto. O corpo alquebrado assemelhava-se a uma folha outoniça; sentia-se que o primeiro vento forte a levaria pelos ares. Philip compreendeu que nada mais restava na vida àquelas simples criaturas: pertenciam a uma geração passada e aguardavam a morte com paciência, um pouco estupidamente. E ele, em pleno vigor da mocidade, sedento de aventuras e sensações, impressionava-se com aquelas ruínas. Nada tinham construído, e, quando desaparecessem, seria como se nunca tivessem vindo ao mundo. Sentia pena da tia Louise e, vendo-se amado por ela, pôs-se de súbito a amá-la também.

 

Miss Wilkinson, que se conservava discretamente afastada, dando assim oportunidade a que os Carey abraçassem o sobrinho, penetrou então na sala.

 

-- Esta é Miss Wilkinson, Philip -- apresentou Mrs. Carey.

 

-- O filho pródigo voltou --  disse ela, estendendo-lhe a mão. -- Colhi uma rosa para a lapela do filho pródigo.

 

Com um sorriso alegre, prendeu ao casaco de Philip a flor que acabara de colher no jardim. Ele corou e sentiu-se um tanto ridículo. Sabia que Miss Wilkinson era filha do último cura de seu tio e já estava familiarizado com as filhas de clérigos. Usavam vestidos mal talhados e botas resistentes. Geralmente, vestiam-se de preto pois na infância de Philip os tecidos de desporto ainda não haviam chegado àquela região do país e as damas do clero não simpatizavam com as cores. Penteavam-se com desalinho e desprendiam agressivo cheiro de linho engomado. Consideravam pouco decorosos os encantos femininos e apresentavam a mesma aparência, quer fossem velhas ou novas. Praticavam a religião com arrogância. A sua estreita ligação com a igreja levava-as a assumir uma atitude ligeiramente ditatorial para com o resto da humanidade.

 

Miss Wilkinson era bem diferente. Usava um vestido de musselina branca, estampado com alegres raminhos de flores, sapatos de bico fino e salto alto, e meias arrendadas. A inexperiência de Philip, ela parecia maravilhosamente bem trajada; não notava que o seu vestido era inferior e espalhafatoso. Tinha os cabelos penteados a capricho, formando um cacho isolado, bem no meio da testa; eram negros, brilhantes e duros, dando a impressão de que seria impossível despenteá-los. Possuía grandes olhos pretos e nariz levemente aquilino; de perfil, lembrava, de certo modo, uma ave de rapina, mas de frente podia dizer-se que era cativante. Sorria muito, mas, como tivesse a boca mais rasgada do que o natural, procurava, ao sorrir, ocultar os dentes grandes e amarelados. O que mais embaraçava Philip, contudo, era o seu rosto empoado com exagero. Possuía ideias muito estreitas sobre a conduta feminina e não julgava que uma dama pudesse empoar-se. Mas Miss Wilkinson era indubitavelmente uma dama, como filha de um pastor, pois um pastor era um cavalheiro.

 

Philip resolveu-se a não gostar dela de todo em todo. Falava com ligeiro sotaque francês, e isso intrigava-o sobremodo, uma vez que ela nascera e fora educada em Inglaterra. Achava-lhe o sorriso afectado e as suas maneiras recatadamente desenvoltas irritavam-no. Conservou-se silencioso e hostil dois ou três dias, mas Miss Wilkinson não pareceu notar. Era muito afável. Dirigia-se quase exclusivamente a ele, na conversa, havendo certa lisonja no modo como apelava, de vez em quando, para o seu juízo sólido. Fazia-o rir, também, e Philip nunca pôde resistir às pessoas que o divertiam. Possuía ele, por seu turno, o dom de dizer coisas incisivas, uma vez ou outra, e sempre era agradável encontrar alguém que o ouvisse com prazer. Nem o vigário, nem Mrs. Carey tinham o senso do humor; nunca achavam graça ao que ele dizia. _à medida que se familiarizava com Miss Wilkinson e perdia a sua timidez, passava a gostar mais e mais dela; já achava pitoresco o sotaque francês e, numa reunião oferecida pelo doutor, ela apresentou-se mais bem vestida do que todas as demais convidadas. Trajava *foulard* azul com grandes pintas brancas e Philip sentiu-se agradavelmente impressionado pela sensação que ela causou.

 

-- Aposto que ficaram a fazer má opinião de si -- disse-lhe ele, sorrindo.

 

O sonho da minha vida é ser tomada por uma rapariga de maus costumes -- respondeu.

 

Certo dia, quando Miss Wilkinson se retirara para o quarto, Philip perguntou à tia Louise qual era a idade dela.

 

-- Oh, querido, nunca deves perguntar a idade de uma mulher; de qualquer forma, é muito velha para te casares com ela.

 

O vigário entreabriu os lábios num lento e obeso sorriso.

 

-- Não é nenhuma franguinha, Louise -- observou ele. -- Já era quase adulta quando morávamos em Lincolnshire, há vinte anos. Usava um rabicho, que lhe pendia pelas costas.

 

-- Nessa época, não teria mais de dez anos -- disse Philip.

 

-- Tinha, sim -- afirmou a tia Louise.

 

-- Acho que estava próxima dos vinte -- comentou o vigário.

 

-- Por favor, William, isso também não. Dezasseis ou dezassete, o máximo.

 

-- Quer dizer que deve ter mais de trinta -- concluiu Philip.

 

Nesse instante, Miss Wilkinson desceu os degraus da escada cantando uma canção de Benjamin Goddard. Pusera o chapéu, pois ela e Philip iam dar um passeio, e estendeu a mão para que lhe abotoasse a luva. O rapaz fê-lo desajeitadamente. _conquanto embaraçado, sentia-se galante. A conversa já decorria fácil entre os dois; enquanto caminhavam, abordaram todos os assuntos possíveis. Ela falou-lhe de Berlim e ele descreveu-lhe a sua temporada em Heidelberga. _à medida que falava, coisas que lhe pareciam destituídas de importância adquiriam novo interesse. Descreveu os hóspedes de Frau Erlin e desvirtuou um pouco as discussões entre Hayward e Weeks, fazendo-as passar, de significativas que lhe tinham parecido anteriormente, a absurdas. As risadas de Miss Wilkinson lisonjeavam-no.

 

-- Tenho imenso medo de si -- disse ela. -- _é  tão sarcástico!

 

Perguntou-lhe então, em ar de troça, se não tivera nenhuma aventura amorosa em Heidelberga. Sem pensar, Philip respondeu francamente que não, mas ela não quis acreditar.

 

-- Como é reservado! -- replicou. -- Compreende-se lá isso na sua idade?!

 

Ele corou e riu.

 

-- Quer saber muita coisa -- retorquiu.

 

-- Ah! Já sabia -- exclamou ela triunfante.-- Olha como ele cora!

 

Agradava-lhe que ela o tomasse por um libertino; mudou, pois, o assunto da conversa para dar a entender que ocultava toda uma série de aventuras. Sentia raiva a si próprio, por não ser verdade. Não tivera oportunidade.

 

Miss Wilkinson vivia descontente com a sorte. Lamentava ter de ganhar o sustento e contou a Philip uma história complicada sobre um tio por parte da mãe que devia deixar-lhe regular fortuna, ao morrer, mas acabara por casar-se com a cozinheira e modificar o testamento. Fez insinuações sobre o luxo da sua casa e comparou a vida que levava em Lincolnshire, com cavalos e carruagens à sua disposição, à abjecta dependência da sua situação actual. Philip ficou intrigado e mais tarde contou tudo à tia; esta explicou-lhe então, que os Wilkinson não possuíam senão um cavalito e um *dog-cart*. Mrs. Carey ouvira falar, sim, do tio  :, rico, mas, como fosse casado e tivesse filhos antes de Emily nascer, não era lógico que ela esperasse herdar-lhe a fortuna. Miss Wilkinson pouco tinha a dizer acerca de Berlim, onde conseguira uma situação estável. Queixava-se da vulgaridade da vida alemã, comparando-a mordazmente com o esplendor de Paris, onde passara certo número de anos. Não quis dizer quantos. Fora governanta em casa de um retratista muito em voga, que se casara com uma judia de recursos. Tivera, ali, ocasião de conhecer inúmeras pessoas de destaque. Ofuscava Philip com os seus nomes. Os actores da Comédia Francesa visitavam frequentemente a família e Coquelin, sentando-se a seu lado durante um jantar, dissera-lhe nunca haver encontrado um estrangeiro que falasse o francês com tamanha perfeição. Alphonse Daudet, que também lá aparecia, dera-lhe um exemplar de *_Safo*: prometera, também, escrever-lhe uma dedicatória no livro, mas ela esquecera-se de lho lembrar, mais tarde. Guardava o volume como um tesouro, mas emprestá-lo-ia a Philip. Havia ainda Maupassant. Com um riso borbulhante, Miss Wilkinson olhava matreiramente para Philip. Que homem, e que escritor! Hayward falara de Maupassant e Philip não desconhecia totalmente a sua reputação.

 

-- Ele fez-lhe a corte? -- indagou.

 

As palavras pareciam prender-se-lhe estranhamente na garganta, mas mesmo assim pronunciou-as. Apreciava já bastante Miss Wilkinson; achava grande encanto na sua conversa, mas não podia imaginar alguém a requestá-la.

 

-- Que pergunta! -- exclamou ela. -- Pobre Guy! Fazia a corte a todas as mulheres que encontrava! Era um hábito de que nunca conseguiu libertar-se.

 

Suspirou levemente, como quem lançava as vistas ternamente para o passado

 

-- Era um homem encantador -- murmurou.

 

Uma pessoa mais experiente do que Philip teria deduzido dessas palavras as probabilidades do encontro: o ilustre escritor convidado para o almoço *en famille*; a governanta, séria, a entrar na sala, acompanhada das duas meninas a quem ministrava lições; e a apresentação:

 

-- *_Notre miss anglaise*.

 

-- *_Mademoiselle*. . .

 

Seguia-se o almoço, durante o qual a *miss anglaise* se conservava calada, enquanto o distinto escritor conversava com o dono e a dona da casa.

 

Mas, para Philip, aquelas palavras sugeriam fantasias muito mais românticas.

 

-- Conte-me tudo quanto sabe a respeito dele -- pediu, ansioso.

-- Não há mais nada a dizer -- respondeu ela sinceramente, mas de forma a sugerir que nem mesmo três volumes seriam :, suficientes para descrever toda a série de factos sensacionais. -- Não deve ser curioso.

 

Pôs-se, então, a falar de Paris. Adorava os *boulevards* e os *_Bois*. Havia inconfundível graça em todas as ruas e as árvores dos Campos Elíseos possuíam uma distinção não observada em parte alguma do mundo. Estavam sentados num muro baixo, à beira da estrada, e Miss Wilkinson olhava com desdém para os majestosos olmos que se erguiam na sua frente. E os teatros! As peças eram brilhantes e a interpretação incomparável. Acompanhava frequentemente madame Foyot, mãe das meninas que educava, aos estabelecimentos de modas.

 

-- Oh, como é triste ser pobre! -- exclamou.-- Ver tanta coisa bonita -- porque só em Paris as pessoas sabem vestir-se -- e não ter dinheiro para comprar nada! A pobre Foyot tinha um corpo horrível. Muitas vezes a costureira me cochichava, ao ouvido: "Ah, *mademoiselle*, se ao menos ela possuísse o seu corpo!".

 

Philip notou, então, que Miss Wilkinson tinha formas robustas e se orgulhava delas.

 

-- Os homens na Inglaterra são tão estúpidos! Só dão importância ao rosto. Os franceses, que são um povo de amorosos, sabem que as formas têm muito mais valor.

 

O rapaz nunca se preocupara com aquelas coisas, mas observava agora que os tornozelos de Miss Wilkinson eram grossos e deselegantes. Desviou os olhos rapidamente.

 

-- Devia ir para a França. Não gostaria de passar um ano em Paris? Aprenderia o francês e, ao mesmo tempo, a permanência lá serviria para se déniaiser.

 

-- Que quer dizer isso? -- inquiriu Philip.

 

Ela riu ardilosamente.

 

-- Deve consultar o dicionário. Os ingleses não sabem tratar com mulheres. São demasiado tímidos. A timidez é ridícula num homem. Nem sabem, mesmo, cortejar. São incapazes até de dizer a uma mulher que ela é encantadora sem ficarem comprometidos.

 

Philip sentia-se numa situação absurda. Sem dúvida, miss Wilkinson esperava que ele se portasse de modo bem diferente. Dar-lhe-ia grande prazer, mesmo, dizer-lhe galanteios e frases espirituosas, mas essas coisas nunca lhe ocorriam ao espírito; quando ocorriam, não as dizia, com medo de representar um papel ridículo.

 

-- Oh, adoro Paris -- suspirou Miss Wilkinson. -- Mas tive de ir para Berlim. Permaneci com os Foyot até as meninas se casarem. Nada me restava fazer, então, quando tive a felicidade de conseguir a minha colocação actual. São parentes de madame Foyot, e em vista disso aceitei a oferta. Eu ocupava uma casa pequena, na *_Rue Bréda, cinquième*. Não era respeitável, convém dizer. Com certeza já ouviu falar da *_Rue Bréda -- ces dames*, bem sabe. :,

 

Philip fez sinal que sim, mas na verdade não entendia coisa alguma; apenas suspeitava vagamente, ansioso para que ela não o julgasse muito ignorante.

 

-- Mas eu não me importava. *_je suis libre, n.est-ce-pas? Gostava imensamente de falar francês, e na realidade falava-o bem. Certa -vez, tive lá uma aventura muito curiosa.

 

Após uma ligeira pausa, Philip insistiu para que continuasse.

 

-- Não quis contar-me as suas aventuras em Heidelberga -- observou ela.

 

-- Não tinham carácter de aventura -- retorquiu ele.

 

-- Que diria Mrs. Carey, se descobrisse o assunto das nossas conversas?

 

-- Não vai imaginar que eu seja capaz de lhe contar.

 

-- Promete?

 

Depois de Philip prometer ela começou a falar de um jovem artista, estudante ainda, que morava no andar de cima, mas interrompeu bruscamente a narrativa.

 

-- Por que não se dedica às belas-artes? Pinta tão admiravelmente

 

-- Não tenho suficiente talento.

 

-- Quanto a isso, é aos outros que compete julgar. *_je m'y connais, e creio que tem todas as qualidades de um grande artista.

 

-- Imagine a cara que o tio William faria, se eu lhe dissesse de repente que queria estudar belas-artes em Paris.

 

-- _é ou não é senhor de si próprio?

 

-- Procura desviar a conversa. Conte o resto da história por favor.

 

Miss Wilkinson com uma risadinha prosseguiu. Encontrara-se com o estudante de belas-artes diversas vezes, ao subir ou descer as escadas, mas não lhe dera atenção especial. Notara apenas que tinha olhos bonitos e que lhe tirava o chapéu muito delicadamente. Um belo dia, deu com uma carta debaixo da porta. Era dele. Dizia-lhe que havia meses a adorava e que a esperaria no patamar da escada. Oh, era uma carta encantadora! E claro que não respondera; mas que mulher não se sentiria lisonjeada? No dia seguinte, apareceu outra carta! Era maravilhosa, apaixonada, comovedora. Ao cruzar-se novamente com ele, na escada, não sabia para que lado olhar. As cartas repetiam-se todos os dias e agora ele suplicava que o recebesse. Anunciou que viria de noite, *vers neuf heures*, o que a deixou infinitamente embaraçada. Naturalmente, seria impossível recebê-lo: podia tocar à vontade, que ela não abriria a porta. Mais tarde, enquanto aguardava o toque de campainha, toda cheia de nervos, o rapaz aparecera de súbito na sua frente. Esquecera-se de fechar a porta, ao entrar.

 

-- *_C.était une fatalité*.

 

-- E que aconteceu, então? -- indagou Philip.

 

-- A história termina aqui -- replicou ela, sacudida de riso.

 

Philip calou-se por um momento. Estranhas sensações pareciam entrechocar-se no seu coração, que batia violentamente. Via a escura escadaria, os encontros fortuitos e admirava a audácia das cartas (oh!, nunca teria ousado o mesmo!); e, depois, aquela entrada silenciosa, quase misteriosa. Afigurava-se-lhe, tudo isso, a verdadeira essência da vida romântica.

 

-- Como era ele?

 

-- Oh, muito simpático! *_Charmant garçon*.

 

-- Ainda mantém relações com ele?

 

Philip sentiu ligeira irritação ao fazer esta pergunta.

 

-- Tratou-me abominavelmente. Os homens são sempre os mesmos. Nenhum de vocês tem coração!

 

-- Desconheço esse particular -- retorquiu Philip, com certo embaraço.

 

-- Voltemos para casa -- sugeriu Miss Wilkinson.

 

Philip não conseguia afastar do espírito a história de Miss Wilkinson. Embora ela tivesse interrompido a narração, compreendeu claramente o sentido das suas palavras e ficou um tanto escandalizado. Aquilo ficava bem a mulheres casadas, constituía mesmo regra geral em França, segundo deduzira dos romances mas Miss Wilkinson era inglesa e solteira, sendo além disso filha de um pastor anglicano. Ocorreu-lhe, então, não ter sido o estudante de belas-artes o primeiro nem o último dos seus amantes. Caiu das nuvens. Nunca fizera aquele juízo de Miss Wilkinson. Parecia impossível que alguém fosse capaz de assediá-la. Na sua ingenuidade, duvidava tão-pouco da história dela como do que lia nos livros, enraivecendo-se consigo mesmo pelo facto de aquelas coisas maravilhosas nunca lhe acontecerem. Era humilhante que nada tivesse a contar, quando Miss Wilkinson lhe pediu, com insistência, que descrevesse as suas aventuras em Heidelberga. Possuía, sem dúvida, certa faculdade inventiva, mas receava não conseguir persuadi-la de que vivia mergulhado no vício. As mulheres possuem profunda intuição -- lera isso, também -- e, sendo assim, talvez viesse a descobrir facilmente que tudo aquilo não passava de peta. Corou violentamente ao imaginar que ela poderia rir-se à socapa.

 

Miss Wilkinson tocava piano e cantava com uma voz algo cansada; mas as suas canções, da autoria de Massenet, Benjamin Goddard e Augusta Holmès, eram inéditas para Philip. Passavam juntos horas perdidas, ao piano. Certo dia, quis saber se o rapaz :, tinha voz e insistiu em experimentá-la. Achou que ele possuía uma agradável voz de barítono e prontificou-se a dar-lhe lições. _a princípio, envergonhado como era, ele recusou, mas Miss Wilkinson insistiu e começou a ministrar-lhe uma lição por dia, após o pequeno-almoço. Possuía o dom de ensinar e via-se que devia ser uma excelente preceptora. Tinha método e firmeza. Embora o sotaque francês nunca a abandonasse, pois constituía parte integrante da sua personalidade, os modos melífluos desapareciam quando se punha a ensinar. Não admitia brincadeiras. A sua voz tornava-se um pouco peremptória e instintivamente corrigia o desleixo e a desatenção. Mostrando conhecimento do assunto, iniciou Philip nos exercícios e nas escalas.

 

Terminada a lição, Miss Wilkinson voltava a sorrir sedutoramente, a sua voz readquiria com facilidade a macieza e o encanto, mas Philip não conseguia esquecer tão depressa o papel de aluno como ela o de professora. E essa impressão punha-se em conflito com as suspeitas que as suas histórias lhe despertavam. Olhava-a com atenção cada vez maior. Agradava-lhe muito mais à noite que de manhã. De manhã notavam-se-lhe certos vincos no rosto e a pele do pescoço apresentava-se um pouco áspera. Como seria bom se pudesse ocultar aquilo! Mas fazia calor e ela usava blusas decotadas. Gostava muito do branco, mas, pela manhã, não lhe ficava bem. _às vezes, de noite, tornava-se muito atraente com o seu vestido que mais parecia traje de jantar e um lindo colar de granadas ao pescoço. A renda que lhe cobria o peito e os cotovelos dava-lhe agradável suavidade, enquanto o seu perfume predilecto (em Blackstable ninguém usava senão água-de-colónia, e assim mesmo apenas aos domingos ou no caso de alguma dor de cabeça muito forte) perturbava pelo exotismo. Parecia realmente jovem naqueles momentos.

 

Philip preocupava-se muito com a idade. Adicionava vinte a dezassete, mas não conseguia chegar a um resultado satisfatório. Perguntou à tia Louise, mais de uma vez, por que julgava que Miss Wilkinson tinha trinta e sete anos: não parecia passar dos trinta, e toda a gente sabia que as estrangeiras envelheciam mais depressa do que as inglesas: Miss Wilkinson vivera tanto tempo longe da pátria que podia ser considerada uma estrangeira. Quanto a si, não lhe dava mais de vinte e seis anos.

 

-- Tem mais do que isso -- afirmava a tia Louise.

 

Philip não acreditava na exactidão das afirmações dos Carey. A única coisa de que se lembravam com clareza era que Miss Wilkinson ainda não usava penteados da última vez que a tinham visto em Lincolnshire. Na verdade, podia ter então uns doze anos; passara tempo e o vigário tinha má memória! Vinte anos tinham passado, diziam eles, mas é costume arredondar os números e, portanto talvez os vinte anos não passassem de dezoito ou dezassete. :,

Dezassete e doze faziam apenas vinte e nove, e poder-se-ia taxar de velha uma pessoa que tinha essa idade? Cleópatra contava quarenta e oito anos quando Marco António desprezou o mundo pelo seu amor.

O Verão ia lindo. Os dias decorriam quentes e o céu apresentava-se sempre sem nuvens, mas a vizinhança do mar suavizava o calor e o sol de Agosto, em vez de oprimir, enchia o ar de um bálsamo revigorante. Havia, no jardim, um lindo lago com repuxo. Os nenúfares cresciam, viçosos, e os peixinhos dourados vinham apanhar sol à superfície. Philip e Miss Wilkinson costumavam levar para lá tapetes e almofadas, após o almoço, e deitar-se na relva, à sombra de uma alta sebe de roseiras. Conversavam e liam durante toda a tarde. Aproveitavam, também, para fumar os seus cigarros, prática que o vigário não permitia em casa; achava repugnante o hábito do fumo e amiúde dizia ser muito triste alguém tornar-se escravo de um hábito. Esquecia-se de que ele próprio se deixara escravizar pelo seu chá da tarde.

 

Um dia, Miss Wilkinson ofereceu a Philip *_La Vie de Bohème*. Encontrara-a por acaso, quando remexia entre os livros do vigário. Viera num lote, entre outros volumes encomendados por Mr. Carey e permanecera dez anos ignorada.

 

Philip começou a ler a fascinante, absurda e mal escrita obra-prima de Murger e deixou-se logo encantar por ela. A sua alma dançava de alegria ante aqueles quadros de fome combinada com bom humor, de esqualidez pitoresca, de ignóbil e romântico amor, de tão tocante comicidade. Ah, Rodolphe e Mimi, Musette e Schaunard! Vagueavam pelas ruas pardacentas do Bairro Latino, metidos em esquisitas roupas à moda de Luís Filipe, refugiando-se ora numa, ora noutra água-furtada, banhados de lágrimas e abertos em sorrisos, descuidosos e temerários. Quem poderia resistir-lhes? Só quando a gente volta ao livro com o juízo mais amadurecido é que verifica quão grosseiros são os seus prazeres, quão vulgares os seus espíritos; só então se compreende a absoluta falta de valor dessa alegre sociedade, como artistas e como homens. Philip estava extasiado.

 

-- Não preferiria ir para Paris em vez de Londres? -- perguntou Miss Wilkinson, sorrindo do seu entusiasmo.

 

-- Agora é demasiado tarde, mesmo que o quisesse -- respondeu ele.

 

Depois de regressar da Alemanha, durante uma quinzena inteira Philip conversara muitas vezes com o tio, a respeito do seu futuro. Recusara definitivamente ir para Oxford, e desde que não havia probabilidade de conseguir uma bolsa de estudos, Mr. Carey convenceu-se de que o estudo, lá, sairia muito dispendioso. Toda a fortuna de Philip consistia apenas em duas mil libras, e, embora tivesse sido investida em hipotecas, a cinco por cento, :,

era-lhe impossível viver dos juros. Agora, achava-se um pouco reduzida. Seria absurdo gastar duzentas libras anuais (o mínimo que se poderia despender numa Universidade) em Oxford, numa permanência de três anos que, no fim das contas, não lhe facilitaria nenhum meio de vida. Ansiava por partir directamente para Londres. Mrs. Carey era de opinião que só existiam quatro profissões dignas de uma pessoa educada: o Exército, a Marinha, a Advocacia e a Igreja. Acrescentara a Medicina, que seu cunhado praticara, mas sem esquecer que, na sua mocidade, ninguém considerava o médico um cavalheiro. As duas primeiras estavam fora de questão e Philip não queria ordenar-se. Só restava o Direito. O doutor da localidade observara que muitas pessoas distintas já se dedicavam à engenharia, mas Mrs. Carey opôs imediata objecção à ideia.

 

-- Não quero ver Philip metido em negócios -- disse ela.

 

-- Não, ele precisa de ter uma profissão -- respondeu o vigário. -- Por que não fazê-lo médico, como o pai?

 

-- Ser-me-ia odioso -- interpôs Philip.

 

Mrs. Carey não se entristeceu com isso. A advocacia também estava posta de lado, uma vez que o rapaz não ia para Oxford, pois os Carey tinham a impressão de que ainda era necessário um diploma para se alcançar êxito no foro. Foi sugerido, por fim, que Philip se iniciasse como aprendiz de solicitador. Escreveram ao advogado da família, Albert Nixon, que era, juntamente com o vigário de Blackstable, executor testamentário do falecido Henry Carey, e perguntaram-lhe se se dispunha a tomar conta de Philip. Dois dias depois, chegou a resposta. Nela o advogado informava não dispor de vaga alguma e ao mesmo tempo manifestava-se radicalmente contrário ao plano. A profissão já estava superlotada e sem capital ou relações havia pouca probabilidade de se ir além de chefe de amanuenses. Era de parecer, contudo, que Philip devia estudar para contabilista. Nem o vigário nem a mulher sabiam o que isso significava; o próprio Philip nunca ouvira falar em contabilistas. Mas outra carta do procurador explicava que o desenvolvimento dos negócios modernos e o número cada vez maior de companhias, tinham exigido a organização de várias firmas de contabilistas para examinar os livros e introduzir nas transacções financeiras dos seus clientes uma ordem que faltava aos métodos antigos. Anos antes, fora concedida a carta régia e a profissão tornava-se cada vez mais respeitável, lucrativa e importante. Os contabilistas de cujos serviços Albert Nixon se utilizava havia três anos dispunham de uma vaga de praticante e aceitariam Philip pela módica quantia de trezentas libras. Metade dessa importância reverteria ao aprendiz, nos cinco anos do contrato, sob a forma de salário. A perspectiva não dava para entusiasmar, mas Philip sentia a necessidade de se decidir por :, qualquer coisa, e a ideia de viver em Londres contrabalançava a leve repulsa que tudo aquilo lhe causava. O vigário de Blackstable escreveu a Mr. Nixon, a perguntar se a profissão era própria de uma pessoa educada. A resposta dizia que, desde a carta régia, tinham ingressado nela vários rapazes saídos de escolas secundárias e um, de uma universidade; além do mais, caso Philip se aborrecesse do trabalho, e após um ano quisesse abandoná-lo, Herbert Carter  -- era esse o nome do contabilista -- restituiria metade do dinheiro pago pelos cinco anos. Fechou-se o negócio, ficando combinado que Philip começaria a trabalhar a 15 de Setembro.

 

--Tenho um mês inteiro na minha frente -- disse Philip.

 

-- Depois disso, irá para a liberdade e eu para o cativeiro --retorquiu Miss Wilkinson.

 

As suas férias durariam seis semanas, e, portanto, deixaria Blackstable apenas um ou dois dias antes de Philip.

 

-- Encontrar-nos-emos outra vez? -- perguntou ela.

 

-- Não vejo razão que o impeça.

 

-- Oh, não fale dessa maneira tão prática! Nunca vi ninguém tão pouco sentimental.

 

Philip corou. Temia que Miss Wilkinson o julgasse efeminado; afinal de contas, ela era jovem, às vezes bem bonita, e ele já caminhava para a casa dos vinte. Era absurdo que não conversassem senão de arte e literatura. Urgia cortejá-la. Tinham falado bastante de amor. Havia o estudante de belas-artes da *_Rue Bréda* e o pintor com cuja família vivera durante tanto tempo, em Paris; pedira-lhe que posasse para um quadro e logo se pusera a fazer-lhe a corte com tal violência que ela se vira obrigada a inventar desculpas para não lhe servir de modelo. Era claro que Miss Wilkinson estava acostumada a essa espécie de atenções. Como estava atraente, agora, com o seu grande chapéu de palha! Era uma tarde quente, a mais quente daquele Verão, e gotas de suor perlavam-lhe o lábio superior. Philip lembrou-se de Frãulein Cãcilie e Herr Sung. Nunca olhara Cãcilie sob o aspecto amoroso, tão desenxabida ela lhe parecia. Agora, porém, que se tornara passado, a aventura surgia envolta em romantismo. Encontrara, também, uma oportunidade de idílio. Miss Wilkinson era, por assim dizer, francesa, e isso dava maior sabor a uma possível aventura. Ao meditar nisso, de noite, na cama, ou quando se punha a ler um livro sozinho, no jardim, sentia-se electrizado. Quando se encontrava com Miss Wilkinson, porém, tudo parecia menos pitoresco.

 

De qualquer forma, depois do que lhe dissera, ela não poderia surpreender-se de ser cortejada. Qualquer coisa lhe dizia que a rapariga estranharia a sua frieza. Talvez fosse apenas produto da imaginação, mas por mais de uma vez, no dia anterior, Philip lera um quê de desprezo nos seus olhos. :,

 

-- Dava dinheiro para saber em que está a pensar -- disse Miss Wilkinson, fitando-o com um sorriso.

 

-- Não lho digo -- respondeu ele.

 

Estava a pensar que devia beijá-la naquele mesmo instante. Não sabia se era isso que ela esperava. Mas, afinal de contas, como podia agir sem primeiro preparar ambiente? Ela tomá-lo-ia por louco, ou talvez o esbofeteasse. Seria capaz, também, de queixar-se a Mr. Carey. Como teria Herr Sung começado com Cãcilie ? Seria o diabo se fosse queixar-se a seu tio, pois o doutor e Josiah Graves viriam logo a saber de todo o ocorrido. Faria o papel de um perfeito idiota. A tia Louise continuava a afirmar que Miss Wilkinson tinha trinta e sete anos pelo menos. A perspectiva do ridículo a que se exporia punha-o a tremer; diriam, sem dúvida, ter ela idade suficiente para ser sua mãe.

 

-- Dou um doce pelo que está a pensar -- sorriu Miss Wilkinson.

 

-- Pensava em si -- respondeu ele audazmente.

 

Era, contudo, uma afirmação neutra, que não o comprometia.

 

-- E o que pensava?

 

-- Ah, agora quer saber de mais.

 

-- _menino traquinas! -- exclamou Miss Wilkinson.

 

Cá estava outra vez! Sempre que começava a preparar ambiente ela dizia uma frase qualquer que lhe lembrava a governanta. Chamava-lhe também menino traquinas, em tom de brincadeira, quando os seus exercícios de canto não eram satisfatórios. Desta vez, ficou amuado.

 

-- Gostaria que não me tratasse como a uma criança.

 

-- Ficou zangado?

 

-- Muito.

 

--Foi sem querer.

 

Estendeu a mão que ele tomou. Já uma ou duas vezes, ao despedirem-se à noite, Philip tivera a impressão de que ela lhe apertava ligeiramente a mão, mas agora não podia haver dúvida a tal respeito.

 

Não sabia que dizer. Ali estava, afinal, o ensejo para uma aventura, e seria tolo se não o aproveitasse. Era um pouco banal, porém; esperava coisa mais fascinante. Lera inúmeras descrições de episódios amorosos, mas não sentia aquela comoção arrebatadora de que falavam os novelistas. Não se sentia transportado por ondas sucessivas de paixão. Nem Miss Wilkinson era o ideal. Sonhava com uma jovem de grandes olhos violáceos e pele alabastrina, uma jovem em cujos cabelos castanhos e ondeados pudesse mergulhar o rosto. Não seria possível afogar o rosto na cabeleira de Miss Wilkinson, tão pegajosa lhe parecia. Contudo, como ligação curta, valeria a pena. Philip vibrava já de legítimo orgulho com a sua conquista. Era preciso seduzi-la, como uma satisfação a si próprio. Deliberou beijar Miss Wilkinson; não :, naquele momento, mas de noite. A escuridão seria mais favorável e, uma vez que a tivesse beijado, o resto se seguiria com facilidade. Beijá-la-ia naquela mesma noite. Jurou que havia de fazê-lo.

 

Organizou todos os planos. Após a ceia, convidou-a para um passeio no jardim. Miss Wilkinson aceitou e os dois puseram-se a caminhar lado a lado. Philip estava muito nervoso. Não sabia a razão por que a conversa não tomava o rumo desejado. Chegara à conclusão de que a primeira coisa a fazer era envolver-lhe a cintura com o braço; mas não podia enlaçá-la subitamente, no momento em que ela falava da regata que ia realizar-se na semana seguinte. Conduzia-a ardilosamente para os recantos mais escuros do jardim, mas a coragem abandonava-o. Miss Wilkinson, porém, insistiu em afastar-se daquele lugar, com medo dos besouros. Ao percorrerem novamente o jardim, Philip prometeu a si mesmo decidir-se daquela vez. Mas quando passaram pela casa, viram Mrs. Carey, à porta.

 

-- Não será melhor virem para dentro? O ar da noite não lhes faz bem.

 

-- Talvez seja melhor entrarmos -- exclamou Philip.-- Não quero que apanhe um resfriamento.

 

Disse-o com um suspiro de alívio. Não poderia tentar mais nada naquela noite. Mais tarde, porém, quando se recolheu ao quarto, ficou furioso consigo mesmo. Representara um papel de verdadeiro tolo. Estava certo de que Miss Wilkinson esperava ser beijada, de contrário não o teria acompanhado ao jardim. Vivia a dizer que só os franceses sabiam tratar com as mulheres. Philip tinha lido novelas francesas. Se fosse francês, já a teria envolvido nos braços e declarado a sua ardente paixão; já teria, sem dúvida, pousado os lábios na sua *nuque*. Não sabia por que os franceses beijavam sempre as mulheres na *nuque*. Não via, mesmo, nada de atraente na parte posterior do pescoço. Para os franceses, naturalmente, essas coisas tornavam-se muito mais fáceis; o idioma ajudava tanto. Philip achara sempre que as expressões apaixonadas, em inglês, pareciam um pouco absurdas. Desejava nunca ter tentado assediar a virtude de Miss Wilkinson. A primeira semana fora tão divertida! Agora, sentia-se descoroçoado, mas jurou não desistir; nunca mais se respeitaria a si próprio, se desistisse. Tomou a resolução irrevogável de beijá-la na noite seguinte.

 

Quando se levantou, ao amanhecer, notou que chovia e o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi a impossibilidade de passearem à noite, no jardim. Sentiu-se muito bem-humorado, durante a refeição matinal. Miss Wilkinson mandou dizer por Mary Ann que uma dor de cabeça a obrigava a permanecer na cama. Só desceu para o chá, pálida, envolta num roupão que lhe ficava muito bem. Por ocasião da ceia, porém, já se sentia completamente :, restabelecida. Foi uma refeição alegre. Após as orações, anunciou ir directamente para o leito e beijou Mrs. Carey. Depois voltou-se para Philip.

 

-- Meu Deus! -- exclamou. -- Imagine que ia para beijá-lo, também.

 

-- E por que não? -- perguntou ele.

 

Ela riu e estendeu a mão, comprimindo nitidamente a de Philip.

 

No dia seguinte, não havia uma nuvem no céu e a chuva tornara o jardim perfumado e fresco. Philip foi à praia banhar-se e, ao regressar, saboreou um magnífico jantar. Tinham combinado jogar uma partida de ténis, à tarde, e, em vista disso, Miss Wilkinson envergou o seu melhor vestido. Sabia trajar com elegância, sem dúvida, e Philip não podia deixar de admirá-la ao lado da esposa do cura e da filha casada do doutor. Trazia duas rosas no cinto. Sentou-se numa cadeira do jardim, ao lado do relvado, segurando uma sombrinha vermelha, cujos reflexos lhe davam ao rosto uma bonita aparência. Philip apreciava o ténis. Tinha um toque forte, mas jogava junto da rede, para não ter que correr muito. Apesar do pé defeituoso, era rápido; dificilmente deixava escapar uma bola. Ficou contente por ganhar todas as séries. Durante o chá, sentou-se aos pés de Miss Wilkinson, ofegante.

 

-- A flanela fica-lhe bem -- disse ela. -- Está muito simpático esta tarde.

 

Ele corou de prazer.

 

-- Ainda bem que posso retribuir o cumprimento. Acho-a perfeitamente arrebatadora.

 

Ela sorriu e lançou-lhe um olhar prolongado, com os seus negros olhos.

 

Após a ceia, insistiu em que ela saísse.

 

-- Já não basta o exercício que fez hoje?

 

--O jardim deve estar adorável, esta noite. O céu está todo estrelado.

 

Sentia-se em excelente disposição.

 

-- Sabe que Mrs. Carey esteve a ralhar comigo por sua causa? -- disse Miss Wilkinson, enquanto passeavam pela horta. -- Diz ela que eu não devo namoriscar consigo.

 

-- E anda a namoriscar comigo? Não o notara...

 

-- Foi um gracejo de sua tia.

 

-- Foi muito má em não querer beijar-me ontem, à noite.

 

-- Se visse a cara que seu tio me deitou, quando eu disse aquilo!

 

-- Foi a única coisa que a impediu?

 

-- Prefiro beijar sem testemunhas.

 

-- Não há testemunhas, agora.

 

Philip enlaçou-lhe a cintura e beijou-lhe os lábios. Ela limitou-se a rir de leve, sem procurar afastar-se. Aquilo acontecera :, naturalmente. Philip sentia-se orgulhoso de si mesmo. Dissera que havia de beijá-la e beijara-a. Fora a coisa mais fácil do mundo.

Lamentava não o ter feito antes. Beijou-a de novo.

 

-- Oh, não deve fazer isso... -- murmurou ela.  -- Porquê?

 

-- Porque eu gosto -- respondeu rindo.

 

No dia seguinte, após o almoço, levaram novamente para a fonte as mantas e almofadas, junto com os livros; mas nada leram. Miss Wilkinson acomodou-se e abriu a sua sombrinha vermelha. Philip perdera todo o acanhamento, mas de início ela não queria deixar-se beijar.

 

-- Procedi muito mal a noite passada. Não consegui dormir. Senti-me tão culpada!

 

-- Que tolice! -- exclamou ele. -- Aposto que dormiu como uma pedra.

 

-- Imagine o que diria seu tio, se soubesse!

 

-- Não vejo razão para ele o saber.

 

Ao inclinar-se para ela, o coração pulsava-lhe rápido.

 

-- Por que quer beijar-me?

 

Sabia que devia responder: -- "Porque a amo", mas faltou-lhe coragem para o dizer.

 

-- Por que acha que seja? -- perguntou.

 

Ela fitou-o com olhos risonhos e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos.

 

-- Como é lisa a sua pele! -- murmurou.

 

-- Preciso de barbear-me -- disse ele.

 

Era singular a dificuldade que Philip encontrava em pronunciar frases românticas. Sentia que o silêncio o favorecia muito mais do que as palavras. O seu olhar exprimia coisas inefáveis. Miss Wilkinson suspirou.

 

-- Gosta de mim?

 

-- Gosto, sim, terrivelmente.

 

Ao tentar beijá-la de novo, ela não fez resistência. Fingiu estar tomado de muito maior ardor do que na realidade sentia, e essa simulação teve bom êxito, do que ele próprio se orgulhou.

 

-- Começo a ficar com medo de si -- disse Miss Wilkinson.-- Virá ao jardim após a ceia, não? -- suplicou ele.

 

--  Só se prometer portar-se devidamente.

 

-- Prometo tudo.

 

Incendiava-se com a própria chama em parte simulada; à hora do chá, mostrou-se de uma alegria turbulenta. Miss Wilkinson olhava-o, nervosa. :,

 

--  Não deve andar com os olhos tão brilhantes -- observou-lhe ela, pouco depois. -- Que pensará a tia Louise?

 

-- Não me interessa o que ela possa pensar.

 

Miss Wilkinson emitiu uma risadinha de prazer. Assim que terminaram a ceia ele perguntou-lhe:

 

-- Quer fazer-me companhia, enquanto fumo um cigarro?

 

-- Por que não deixas Miss Wilkinson repousar? -- exclamou Mrs. Carey. -- Deves lembrar-te de que ela não é tão jovem como tu.

 

-- Eu também tencionava sair -- replicou ela, com acrimónia.

 

-- _após o almoço caminha bastante, após a ceia repousa um instante -- sentenciou o vigário.

 

-- Sua tia é muito boa, mas às vezes mexe-me com os nervos -- disse

Miss Wilkinson, logo que saíram pela porta lateral.

 

Philip atirou fora o cigarro que mal acendera, e envolveu-lhe a cintura com ambos os braços. Ela procurou afastá-lo.

 

-- Prometeu que teria juízo, Philip.

 

-- Esperava que eu cumprisse uma promessa dessas?

 

-- Não tão perto de casa, Philip. Imagine se alguém saísse de repente!

 

Conduziu-a para o fundo do jardim, onde não havia possibilidade de alguém aparecer e, desta vez, Miss Wilkinson não se preocupou com os insectos. Beijou-a apaixonadamente. Uma das coisas que o intrigavam era o facto de não a apreciar de manhã e apenas a suportar de tarde. Mas à noite, o contacto das mãos dela fazia-o vibrar. Disse coisas que nunca se imaginara capaz de dizer; à luz do dia, pelo menos, tinha a certeza de que não ousaria dizê-las. Ouvia-se a si próprio com espanto e satisfação.

 

-- Que linda maneira de cortejar! -- exclamou ela.

 

Era o que ele próprio pensava.

 

-- Oh, se eu pudesse dizer tudo o que me inflama o coração! --murmurou ele com ardor.

 

Era esplêndido. Era o mais empolgante jogo de que já participara. E o mais estranho era que sentia, realmente, o que dizia. Apenas exagerava um pouco. Ficou extasiado ante o efeito que as suas palavras lhe causavam. Foi, sem dúvida, com muito esforço que ela manifestou, por fim, o desejo de recolher-se.

 

-- Oh, não vá ainda! -- suplicou ele.

 

-- Preciso ir -- murmurou ela -- tenho medo.

 

Ocorreu-lhe, de repente, o que lhe competia fazer.

 

-- Não posso recolher-me já. Ficarei aqui, a pensar. Tenho o rosto em fogo. Preciso da aragem da noite. Boa-noite!

 

Ele estendeu a mão, gravemente, e ela tomou-a em silêncio. Julgou ouvi-la abafar um soluço. Como era magnífico! Quando, após um intervalo razoável em que permaneceu sozinho e aborrecido :. na escuridão do jardim, resolveu voltar para casa, verificou que Miss Wilkinson já tinha ido para a cama.

 

Depois disso as coisas tomaram novo rumo entre eles. Nos dois dias que se sucederam, Philip mostrou-se muito apaixonado. Sentiu-se deliciosamente lisonjeado ao descobrir que Miss Wilkinson o amava também: ela confessara-lho em inglês e em francês. E os galanteios que lhe dizia! Ninguém o informara, até então, de que os seus olhos eram encantadores e a sua boca sensual. Nunca se preocupara muito com a sua aparência pessoal, mas agora, todas as vezes que podia, mirava-se ao espelho com satisfação. Ao beijá-la, era admirável aquela sensação que lhe fazia vibrar a alma! Beijava-a amiúde, pois achava isso mais fácil do que dizer coisas que sabia, instintivamente, serem esperadas por ela. Ainda achava ridículo afirmar que a adorava. Desejava ter alguém a quem pudesse gabar-se; analisaria, então, os mínimos pormenores da sua conduta. _às vezes, ela dizia coisas enigmáticas, que o punham perplexo. Se Hayward estivesse presente, perguntar-lhe-ia qual supunha ser a intenção dela e o que lhe aconselhava fazer. Não sabia se era melhor precipitar os acontecimentos ou deixar que seguissem o curso natural. Só lhe restavam três semanas.

 

-- _é horrível pensar que as férias vão acabar -- observou ela. -- Isso parte-me o coração. E talvez nunca mais nos tornemos a ver.

 

-- Se me quisesse de verdade, não seria tão má para mim  --murmurou ele.

 

-- Por que não aceita as coisas como elas são? Os homens são sempre os mesmos. Nunca ficam satisfeitos.

 

E ante a insistência dele, exclamou:

 

-- Mas não vê que isso é impossível? Como poderemos, aqui?

 

Philip propôs toda a sorte de planos, mas não havia meio de ela os aceitar.

 

-- _não quero arriscar-me. Seria um horror se sua tia descobrisse.

 

Um ou dois dias mais tarde, ocorreu-lhe uma ideia que parecia genial.

 

-- Olhe, não seria possível simular uma forte dor de cabeça, domingo à noite? Tendo alguém para tomar conta da casa, a tia Louise sem dúvida aproveitaria a oportunidade para ir à igreja.

 

Em geral, Mrs. Carey ficava em casa nas noites de domingo, a fim de permitir que Mary Ann fosse à igreja, mas ficaria contentíssima se pudesse assistir às vésperas.

 

Philip não julgara necessário comunicar aos tios a radical mudança que, na Alemanha, se processara no seu modo de encarar o cristianismo. Tinha plena certeza de que eles não compreenderiam, e por isso julgava preferível frequentar a igreja. Mas ia apenas pela manhã. Considerava isso uma concessão especial, feita aos preconceitos da sociedade, e a recusa a ir mais de uma vez por dia era, a seus olhos, uma afirmação de livre pensamento.

 

Ao ouvir a sugestão, Miss Wilkinson conservou-se um instante em silêncio e em seguida sacudiu a cabeça.

 

-- Não; não posso.

 

No domingo, porém, à hora do chá, Philip teve uma surpresa.

 

-- Creio que não vou à igreja esta noite -- disse ela, de repente. --Sinto uma terrível dor de cabeça.

 

Muito preocupada, Mrs. Carey ofereceu-lhe uma gotas que ela própria costumava tomar. Miss Wilkinson agradeceu e, logo depois do chá, anunciou que ia subir para o quarto e deitar-se.

 

-- Tens a certeza de que não precisarás de nada? -- perguntou Mrs. Carey com ansiedade.

 

-- Pode estar descansada.

 

-- _é porque, se não precisares de nada, eu aproveito para ir à igreja. Não me aparecem muitas oportunidades de ir à noite.

 

-- Isso mesmo, vá.

 

-- Ficarei em casa -- disse Philip. -- Se Miss Wilkinson quiser alguma coisa é só chamar-me.

 

-- É melhor deixares aberta a porta da sala de visitas, para que possas ouvir se Miss Wilkinson te chamar.

 

-- Está bem -- respondeu Philip.

 

Depois das seis horas, portanto, Philip ficou só, em casa, com Miss Wilkinson. A apreensão abatia-o. Desejava, de todo o coração, nunca ter sugerido aquele plano. Agora, era tarde, porem. Cumpria-lhe aproveitar a oportunidade que criara. Que pensaria Miss Wilkinson se ele não o fizesse! Dirigiu-se ao vestíbulo e escutou. Não se ouvia o menor rumor. Quem sabe se Miss Wilkinson estava de facto com dores de cabeça? Talvez se tivesse esquecido da sugestão. O coração batia-lhe dolorosamente. Galgou cauteloso os degraus da escada, estacando sempre que eles rangiam. Estava diante do quarto de Miss Wilkinson. Pondo-se à escuta, colocou a mão sobre a maçaneta. Teve a impressão de esperar ali mais de cinco minutos, incapaz de chegar a uma decisão. A mão tremia-lhe. Sentia vontade de fugir, mas tinha receio de ser perseguido pelo remorso. Era o mesmo que subir a uma piscina de natação; um trampolim, visto de baixo, não causava impressão alguma, mas uma vez lá em cima, olhando a água, a pessoa sentia o coração a desfalecer. A única coisa que obrigava o banhista a atirar-se era a vergonha de descer, humilhado, os degraus que galgara com tanto entusiasmo. Reunindo toda a coragem de que era possuidor, Philip fez girar brandamente a maçaneta e entrou. Tinha a impressão de que estava a tremer como uma folha.

 

Encontrou Miss Wilkinson de pé, em frente do toucador, com as costas voltadas para a porta. Ao vê-la abrir-se, voltou-se num movimento vivo. :,

 

-- Oh, é você? Que quer?

 

Já despira a saia e a blusa, e estava apenas com a saia de baixo, que era curta e mal lhe chegava à altura das botinas; a parte superior era preta, de fazenda brilhante, com folhos vermelhos. Vestia uma camisola de algodão branco, com mangas curtas. Tinha um aspecto grotesco. Ao avistá-la, Philip sentiu um desfalecimento. Nunca a imaginara tão pouco atraente. Era tarde de mais, porém. Empurrou a porta atrás de si e fechou-a com a chave.

 

Na manhã seguinte Philip despertou cedo. Tivera um sono agitado, mas, quando estendeu as pernas, ao ver as figuras que o sol desenhava no soalho, a esgueirar-se por entre as venezianas, soltou um suspiro de satisfação. Estava radiante consigo mesmo. Pôs-se a pensar em Miss Wilkinson. Pedira-lhe que lhe chamasse Emily, mas, não sabia porquê, isso era-lhe impossível; para ele, seria sempre Miss Wilkinson. Visto que ela o censurava por lhe chamar assim, evitava pronunciar-lhe o nome. Na sua infância ouvira falar frequentemente de uma irmã da tia Louise, viúva de um oficial da marinha, que se chamava também Emily. Não seria agradável, portanto, tratar Miss Wilkinson por esse nome, sendo também difícil encontrar outro que lhe assentasse melhor. Conhecera-a como Miss Wilkinson, e este nome parecia inseparável da primeira impressão que tivera dela. Carregou o sobrolho, de repente: fosse como fosse, ele vira-a naquela noite sob o pior aspecto possível. Não podia esquecer o assombro que experimentara ao vê-la voltar-se, em saia de baixo curta e camisola. Lembrou-se da ligeira aspereza da sua pele e dos longos e acentuados vincos que apresentava no pescoço. O seu triunfo fora efémero. Fez novos cálculos sobre a idade dela e agora não achava que pudesse ter menos de quarenta anos. A aventura tornava-se ridícula. Ela era velha e sem atractivos. Com a imaginação vivaz, via-a enrugada, desfigurada e empoada, metida em vestidos ostentosos de mais para a sua posição e muito infantis para a sua idade. De súbito, estremeceu; não queria vê-la mais. Como tivera coragem de beijá-la? Ficou horrorizado de si próprio. Seria aquilo amor?

 

Gastou muito tempo a vestir-se, para afastar assim o momento de voltar a vê-la. Quando, por fim, entrou na sala de jantar, levava o coração aflito. As orações haviam terminado e estavam sentados a almoçar.

 

-- Preguiçoso -- exclamou alegremente Miss Wilkinson.

 

Philip olhou para ela e soltou um suspiro de alívio. Estava sentada com as costas voltadas para a janela. Era, na realidade, :,

bastante bonita. Não sabia por que pensara aquelas coisas a seu respeito. Recuperou imediatamente a satisfação íntima.

Surpreendeu-se com a mudança que se processara nela. Logo depois do pequeno-almoço, com voz trémula de emoção, ela confessou que o amava. Mais tarde, durante a lição de canto, na sala de visitas, estendeu-lhe o rosto em meio de uma escala e disse:

 

-- *_Embrasse-moi*.

 

Quando o rapaz se inclinou, Miss Wilkinson lançou-lhe os braços em volta do pescoço. Foi ligeiramente incómodo, porque o prendera de tal maneira que ele se sentira quase sufocado.

 

-- *_Ah, je t.aime! _je t.aime! _je t.aime*! -- exclamou ela, no seu extravagante sotaque francês.

 

Philip preferiria que ela falasse inglês.

 

-- Já lhe ocorreu que o jardineiro pode passar diante da janela de um momento para o outro?

 

-- *_Oh, je m.en fiche du jardinier. _je m.en refiche et je m.en contrefiche*.

 

Philip achava tudo isso muito parecido com um romance francês, e não sabia por que razão se sentia ligeiramente irritado.

 

Por fim disse:

 

-- Bem, acho que vou à praia dar um mergulho.

 

-- Oh! Não vais deixar-me só, esta manhã... logo esta manhã?

 

Philip não via razão que o impedisse de ir, mas não se tratava disso.

 

-- Gostarias que eu ficasse? -- sorriu.

 

-- Não, meu querido! Pelo contrário. Vai! Quero imaginar-te dominando as salgadas águas do mar, banhando o corpo no oceano imenso.

 

Ele agarrou o chapéu e pôs-se a caminho.

 

-- Como as mulheres dizem asneiras! -- pensava consigo.

 

Sentia-se, porém, feliz e lisonjeado. Via-se que ela estava ardentemente apaixonada. Ao atravessar, coxeando, a rua principal de Blackstable, olhava para os transeuntes com superioridade. Conhecia muitos deles e, ao cumprimentá-los com um sorriso, pensava intimamente: "_Ah, se esta gente soubesse!" Estava ansioso por que alguém viesse a saber das suas aventuras. Pensou em escrever a Hayward e pôs-se a compor mentalmente a carta. Falaria do jardim e da pequena preceptora francesa, flor exótica entre as rosas, perfumada e perversa. Diria que ela era francesa porque... -- ora, vivera tanto tempo em França que bem podia considerar-se como tal; além disso, seria vulgar descrever as coisas de maneira muito exacta. Contaria a Hayward como a vira pela primeira vez, com o seu vestido de musselina preta e mencionaria o pormenor da flor. Converteu todo o episódio num delicado idílio: o sol e o mar emprestavam-lhe ardor e magia, as estrelas concorriam com a poesia e o velho jardim do vicariato proporcionava :, um cenário adequado e delicioso. Havia algo de George de Meredith naquilo tudo: não era bem Lucy Feverel nem Clara Middleton, mas possuía um encanto inefável. O coração de Philip pulsava célere. Estava tão embevecido com as suas fantasias que começou a pensar nelas, novamente, assim que saiu da água, gotejando e tiritando de frio, e foi vestir-se na sua cabina ambulante. Recordava o objecto dos seus afectos. Possuía o narizinho mais adorável do mundo e grandes olhos castanhos (descrevê-la-ia assim a Hayward); era delicioso mergulhar o rosto nos seus cabelos fofos, da mesma cor dos olhos, admirar a pele alva como marfim à luz do Sol e as faces coradas como uma rosa vermelha. Que idade tinha ela? Uns dezoito anos, talvez. Chamava-se Musette. O seu riso era como o sussurro de um arroio e a sua voz, tão suave, tão profunda como a mais doce música que jamais ouvira.

 

-- Em que estás a pensar, afinal?

 

Philip estacou. Caminhava vagarosamente, para casa.

 

-- Venho a fazer-te sinais de longe. Que distracção!

 

Miss Wilkinson estava diante dele, rindo da sua surpresa.

 

-- Resolvi vir ao teu encontro.

 

-- É muita bondade tua! -- disse ele.

 

-- Assustei-te ?

 

-- Um pouco -- admitiu ele.

 

Apesar disso, escreveu a Hayward a carta. Tinha oito páginas.

 

A quinzena passava rapidamente, e, embora todas as noites, quando iam para o jardim depois do jantar, Miss Wilkinson se lembrasse de que mais um dia se passara, a disposição jovial de Philip não deixava a ideia preocupá-lo. Certa noite, Miss Wilkinson insinuou que seria esplêndido se pudesse trocar a sua situação em Berlim por outra idêntica, em Londres. Ver-se-iam, então, constantemente. Philip respondeu que seria óptimo, mas não sentiu entusiasmo algum. Pretendia levar uma vida divertida, em Londres, e preferiria não ser estorvado. Discorreu livremente sobre todos os seus projectos, e através deles Miss Wilkinson concluiu que ele já estava ansioso por partir.

 

-- Se me amasses não falarias desse modo -- queixou-se ela

 

Apanhado de surpresa, o rapaz não encontrou resposta adequada.

 

-- Que tola que foi! -- murmurou a preceptora.

 

Philip notou, com espanto, que ela chorava. Possuía um coração sensível e não gostava de ver ninguém infeliz.

 

-- Perdoa-me, por favor. Em que foi que te magoei? Não chores.

 

-- Oh, Philip, não me abandones! Não sabes o que significas para mim. A minha vida era tão triste e tu fizeste-me tão feliz!

 

Ele beijou-a em silêncio. O tom de verdadeira angústia que :,

se percebia na sua voz atemorizava-o. Nunca imaginara que ela pensasse tão a sério o que dizia.

 

-- Estou arrependidíssimo. Bem sabes que te amo loucamente. Seria óptimo se fosses para Londres.

 

-- Bem sabes que isso é impossível. Arranjar uma colocação é a coisa mais difícil do mundo, e eu detesto a vida inglesa.

 

Quase sem ter consciência de que representava um papel, comovido pela aflição dela, insistiu mais vezes. As suas lágrimas lisonjeavam-no vagamente e foi com verdadeira paixão que a beijou.

 

Alguns dias mais tarde, porém, Miss Wilkinson fez uma cena. Havia jogo de ténis no vicariato, e para isso foram convidadas duas raparigas, filhas de um major aposentado que servira num regimento da Índia e agora se fixara em Blackstable. Eram ambas bonitas: uma tinha a mesma idade de Philip e a outra era um ou dois anos mais nova. Como estivessem acostumadas a conviver com rapazes (contavam mil histórias sobre guarnições montanhesas da Índia, numa época em que as histórias de Rudyard Kipling andavam em todas as mãos) puseram-se a implicar alegremente com Philip. Agradavelmente impressionado pela novidade -- as raparigas de Blackstable tratavam o sobrinho do vigário com certa seriedade

-- o rapaz mostrou-se logo alegre e desembaraçado. Algum demónio parece que o instigou a encetar violento namoro com as duas visitantes, e como fosse o único rapaz presente à reunião, elas corresponderam-lhe de bom grado. Acontecia que jogavam ténis com grande perfeição e como Philip estivesse cansado de jogar com Miss Wilkinson (desde que chegara a Blackstable, ela começara a treiná-lo) sugeriu, ao distribuir os parceiros, após o chá, que a preceptora jogasse contra a mulher do cura, tendo este a seu lado; quanto a ele, bater-se-ia, mais tarde, com as recém-chegadas. Sentando-se junto da mais velha, disse-lhe em voz baixa:

 

-- Descartemo-nos primeiro dos pexotes, para depois jogarmos uma boa partida.

 

Miss Wilkinson devia tê-lo ouvido, pois atirou ao chão a raqueta e, alegando dores de cabeça, foi para dentro. Todos notaram que ela se sentira ofendida e Philip ficou profundamente aborrecido com esta demonstração pública. Fez-se, não obstante, a distribuição dos jogadores, mas logo a seguir Mrs. Carey chamou-o.

 

-- Magoaste a Emily, Philip. Está no quarto, a chorar.

 

--Que foi que eu lhe disse?

 

-- Não sei; é uma história de pexotes ou coisa parecida. Vai pedir-lhe perdão e dizer-lhe que não o fizeste de propósito. Mostra que és um bom rapaz.

 

-- Está bem.

 

Bateu à porta do quarto de Miss Wilkinson, mas, como não recebeu resposta, entrou. Encontrou-a debruçada na cama, chorando amargamente. Pousou-lhe a mão no ombro.

 

-- Mas que foi que aconteceu?

 

-- Deixa-me em paz. Não quero mais falar contigo.

 

-- Que fiz eu? Sinto muito ter-te magoado. Não foi por querer. Vamos, levanta-te.

 

-- Que infeliz eu sou! Como pudeste ser tão cruel para mim? Sabes muito bem que detesto esse jogo estúpido. Jogo-o apenas para Jogar contigo.

 

Ergueu-se e caminhou para o toucador, mas, depois de mirar-se rapidamente no espelho deixou-se cair numa cadeira. Fez do lenço uma bola que comprimia de encontro aos olhos.

 

-- Dei-te o que de mais valioso uma mulher pode dar a um homem... oh, que tola fui!... e ainda te mostras tão ingrato. Pareces não ter coração. Como pudeste ter a crueldade de me atormentar, namorando raparigas tão vulgares? Só nos resta uma semana. Não podes conceder-ma, ao menos?

 

Philip estava mal-humorado. Achava muito infantil a conduta dela. Estava vexado pelo facto de ela ter dado expansão ao seu génio diante de estranhos.

 

-- Sabes perfeitamente que não ligo a menor importância a nenhuma das O._Connor. Por que diabo pensaste que eu o faria?

 

Miss Wilkinson afastou o lenço. As lágrimas tinham-lhe deixado marcas no rosto empoado e os cabelos estavam um tanto desarranjados. O vestido branco já não lhe ficava tão bem. Olhou para Philip com olhos famintos e apaixonados.

 

-- Porque tens vinte anos e uma delas tem a mesma idade --respondeu em voz rouca. -- E eu sou uma velha.

 

Philip corou e desviou o olhar. A angústia com que ela falava inquietava-o estranhamente. Seria mil vezes melhor que nunca tivesse conhecido Miss Wilkinson.

 

-- Não quero ser a causa da tua infelicidade -- exclamou, constrangida. -- Acho melhor desceres e reunires-te aos teus amigos. Já devem estar a cismar no que te aconteceu.

 

-- Está bem.

 

Philip sentiu alívio ao deixá-la.

 

A zanga foi logo seguida de reconciliação, mas o últimos dias trouxeram muitos aborrecimentos a Philip. Não gostava de falar senão do futuro, e o futuro levava invariavelmente Miss Wilkinson às lágrimas. A princípio, aquela choradeira sensibilizava-o e, sentindo-se um monstro, renovava os seus protestos de imorredoura paixão. Agora, porém, irritava-se facilmente; estaria tudo muito bem se se tratasse de uma rapariguinha, mas não ficava bem a uma mulher feita chorar a todo o instante. Não cessava de lhe lembrar a sua inapreciável dívida de gratidão para com ela. Philip não negava essa verdade, tal a insistência de Miss Wilkinson, mas não compreendia por que razão devia mostrar-se mais grato a ela do que ela a ele. Era obrigado a revelar essa gratidão de :,

maneira bastante enfadonha; acostumara-se à solidão, que às vezes se lhe tornava mesmo uma necessidade; mas Miss Wilkinson considerava-o indelicado se não estivesse constantemente a seu lado. As O._Connor convidaram-nos para o chá, e Philip gostaria de ir, mas Miss Wilkinson disse que tinha só cinco dias mais e portanto queria-o inteiramente para si. Era uma exigência lisonjeira, mas incómoda. Miss Wilkinson contou-lhe histórias sobre a refinada delicadeza dos franceses, quando em situação idêntica à sua. Elogiou-lhes a cortesia, o amor ao sacrifício, o tacto perfeito. Miss Wilkinson parecia exigir muita coisa.

 

Philip ouvia-a enumerar as qualidades que o verdadeiro amante deve possuir e não pôde deixar de sentir satisfação pelo facto de ela ir para Berlim.

 

-- Escreve-me sempre, ouviste? Escreve-me todos os dias. Quero saber tudo quanto fazes. Não deves ocultar-me coisa alguma.

 

-- Estarei muito ocupado -- respondeu ele. -- Escreverei sempre que for possível.

 

Ela lançou-lhe apaixonadamente os braços em volta do pescoço. _às vezes, ele sentia-se confundido com aquelas demonstrações de afecto. Seria preferível que ela fosse mais passiva. Também o surpreendia aquele ardor que destoava dos seus preconceitos sobre a modéstia do temperamento feminino.

 

 

Chegou afinal o dia da partida de Miss Wilkinson. Desceu para o pequeno-almoço pálida e abatida, trajando um vestido xadrez preto e branco. Parecia uma preceptora competentíssima. Philip conservava-se em silêncio, pois não sabia que dizer naquelas  circunstâncias; temia fazer alguma observação capaz de lançar Miss Wilkinson em prantos, mesmo diante de Mr. Carey. Tinham-se despedido no jardim, na noite anterior, e Philip sentia grande alívio por não haver mais oportunidade de estarem sós. Deixou-se ficar na sala de jantar após a refeição, receando que ela insistisse em beijá-lo na escada. Não queria que Mary Ann, mulher já de meia-idade e dona de uma língua ferina, os surpreendesse em atitude comprometedora. Mary Ann não gostava de Miss Wilkinson a quem apelidara de gata velha. A tia Louise não se sentia bem disposta e portanto não pôde ir à estação, mas o vigário e Philip acompanharam-na até lá. Quando o comboio se preparava para partir, ela inclinou-se e beijou Mr. Carey.

 

-- Devo beijá-lo também, Philip -- disse ela.

 

-- Pois não -- respondeu ele, corando.

 

Alçou-se no degrau e ela deu-lhe um rápido beijo. O comboio pôs-se em movimento e Miss Wilkinson caiu no banco, a chorar desconsoladamente. Ao voltar para casa, Philip sentia uma nítida sensação de alívio. :,

 

-- E então? Correu tudo bem? -- perguntou a tia Louise, quando eles voltaram.

 

-- Apenas a achei muito chorosa. Insistiu em beijar-me e ao Philip.

 

-- Bem, na idade dela não é perigoso -- Mrs. Carey apontou para o aparador.

 

-- Uma carta para ti, Philip. Veio na segunda distribuição.

 

Era de Hayward e dizia o seguinte:

 

*_Meu caro:

*_Respondo imediatamente à tua carta. Tomei a liberdade de lê-la a uma grande amiga minha, encantadora mulher cujo auxílio e simpatia me têm sido muito preciosos, uma mulher, em suma, possuidora de real sentimento artístico e literário; e ambos a achámos encantadora. Escreveste do fundo do teu coração e não imaginas a deliciosa *naiveté* que se desprende de cada linha. E, pelo simples facto de amares, escreves como um poeta. Ah, meu caro, assim é que deve ser; senti o ardor da tua paixão e a sinceridade da tua comoção transformou a prosa num poema musical. Como deves ser feliz! Quem me dera estar presente, sem ser visto, nesse jardim encantado, e observá-los a vaguear de mãos dadas por entre as flores, como Dafnis e Cloé. Parece-me que te vejo, meu Dafnis, com a chama do amor jovem a brilhar nos olhos, terno, arrebatado e a ardente Cloé, a teu lado, tão nova, tão meiga, tão fresca -- consentindo, ela que jurara nunca consentir. Rosas, violetas, madressilvas! Oh, meu amigo como te invejo! Como agrada saber que o teu primeiro amor foi para poesia! Entesoura esses momentos, pois os deuses imortais te dispensaram o maior de todos os Dons; recordá-lo-ás com saudade até o dia da tua morte. _nunca mais experimentarás esse despreocupado arrebatamento. O primeiro amor é sempre o melhor; ela é bela, tu és jovem, o mundo é vosso. Senti que o pulso se me acelerava quando, na tua adorável simplicidade me contaste haver mergulhado o rosto nos seus cabelos. Devem ser de um delicioso castanho, aquele castanho que dá a impressão de ter sido banhado em ouro. Quisera ver-vos sentados sob frondosas árvores, lado a lado, lendo juntos *_Romeu e Julieta*; desejaria, então, que caísses de joelhos e, em meu nome beijasses o solo calcado pelos seus pés. Diz-lhe que essa é a homenagem de um poeta à sua radiosa mocidade e ao teu amor.

*_Teu, sempre,

*_G. Etheridge Hayward*.

 

 

-- Que chorrilho de asneiras! -- exclamou Philip, ao terminar a leitura da carta.

 

Miss Wilkinson -- estranha coincidência -- sugerira também que lessem juntos *_Romeu e Julieta*, mas Philip recusara-se terminantemente a fazê-lo. Ao guardar a carta no bolso, sentiu pungi-lo a tristeza, por ver a realidade tão diferente do ideal.

 

Alguns dias depois, Philip seguiu para Londres. O cura recomendara uma pensão em Barnes e aposentos foram reservados por carta, à razão de catorze xelins por semana. Quando chegou já era noite e a dona da casa, uma esquisita velhinha de corpo encarquilhado e rosto coberto de profundas rugas, esperava-o para o chá. Quase toda a sala era ocupada pelo aparador e por uma mesa quadrada; numa das paredes, havia um sofá estofado com crina de cavalo e, ao lado da lareira, uma poltrona do mesmo tipo; o encosto desta última estava protegido por uma capa e, no assento, uma dura almofada substituía as molas que se tinham partido.

 

Depois de beber o chá, abriu as malas e colocou os livros em ordem. Tentou ler, em seguida, mas sentia-se muito deprimido. O silêncio da rua perturbava-o um pouco, aumentando a sua solidão.

 

_no dia seguinte, levantou-se cedo. Vestiu o fraque e pôs a cartola que costumava usar no colégio; estava muito velha porém, e em vista disso resolveu passar pela loja, a caminho do escritório, para comprar uma nova. Notou, então, que lhe sobrava tempo suficiente para passear ao longo do Strand. O escritório de Herbert Carter ç C.o estava situado numa pequena rua transversal à Chancery Lane. Philip teve de pedir informações a duas ou três pessoas. Notou que olhavam muito para ele e de uma dessas vezes tirou o chapéu, para ver se se esquecera de tirar a etiqueta. Ao chegar, bateu à porta, mas ninguém respondeu. Consultando o relógio, verificou serem pouco mais de nove e meia. Devia ser muito cedo. Voltou dez minutos mais tarde e encontrou então um empregado de nariz comprido, cara cheia de espinhas e sotaque escocês. Philip perguntou por Herbert Carter. Ainda não chegara.

 

-- Quando chegará?

 

-- Entre as dez e as dez e meia.

 

-- Esperarei -- disse Philip.

 

-- Que deseja? -- indagou o auxiliar.

 

Philip estava nervoso, mas procurou ocultá-lo com uma atitude jocosa.

 

-- Pretendo trabalhar aqui, se não fizer objecção.

 

-- Ah, é o novo praticante ? Acho melhor entrar. Mr. Goodworthy chegará de um momento para o outro Philip entrou, mas ao fazê-lo notou que o auxiliar -- que era um rapaz mais ou menos da sua idade -- lhe observara o pé. Tornou-se vermelho, de repente, e, sentando-se, procurou ocultar a deformidade. Olhou em volta da sala. Era escura e triste. Ilu- minava-a uma clarabóia. Havia três séries de cadeiras com os respectivos bancos de pernas altas. Acima do fogão, pendia uma gravura encardida, representando um combate de boxe. Chegou um escriturário e em seguida outro. Relancearam um olhar a Philip e perguntaram em voz baixa ao auxiliar (_Philip descobriu que este se chamava Macdougal) quem era. Soou um apito e Macdougal levantou-se.

 

-- Mr. Goodworthy já veio. __é o chefe dos escreventes. Devo dizer-lhe que está aqui?

 

-- Sim, por favor -- disse Philip.

 

O rapaz retirou-se, voltando pouco depois.

 

-- Faça o favor de acompanhar-me.

 

Philip seguiu-o através do corredor e penetrou numa saleta pouco mobilada, onde um homenzinho muito magro estava sentado com as costas para o fogão. Era de estatura muito inferior à mediana. A grande cabeça parecia mal segura no alto do corpo, dando-lhe um aspecto bastante estranho. Tinha o rosto largo e achatado e olhos salientes, de cor desmaiada; o cabelo era ralo, louro e sem brilho. Usava suíças muito irregulares, pois a barba brilhava pela ausência justamente nos pontos onde devia ser mais espessa. A pele era pastosa e amarela. Estendeu a mão a Philip e, ao sorrir, mostrou os dentes horrivelmente cariados. Falava com ar protector, mas ao mesmo tempo tímido, como se procurasse assumir uma importância de que ele próprio não estava convencido. Esperava que Philip gostasse do trabalho; era um pouco aborrecido, de início, mas, com o correr do tempo, tornava-se agradável. E ganhava-se dinheiro --eis o principal, não é verdade? Soltou uma risada, com certo ar misto de superioridade e timidez.

 

-- Mr. Carter chegará dentro em pouco -- esclareceu. -- Atrasa-se frequentemente, às segundas-feiras. Assim que chegar, chamá-lo-ei. Nesse meio tempo, preciso arranjar-lhe que fazer. Sabe alguma coisa de guarda-livros ou contabilidade?

 

-- Infelizmente, não.

 

-- Não esperava que o soubesse. Na escola não se aprendem as coisas úteis ao comércio -- reflectiu uns segundos. -- Já sei o que pode fazer.

 

Dirigiu-se à sala contígua e trouxe de lá uma grande caixa de papelão. Continha grande quantidade de cartas, todas misturadas, e Philip foi incumbido de colocá-las por ordem alfabética, de acordo com os nomes dos signatários.

 

-- _vou encaminhá-lo para a sala onde geralmente trabalham os praticantes de escriturário. Terá um óptimo companheiro. :,

Chama-se Watson. _é filho do chefe da firma Watson, Crag ç Thompson, os cervejeiros. Está a passar um ano connosco, a fim de aprender os segredos do comércio.

 

Mr. Goodworthy atravessou o sombrio escritório, onde seis ou oito escriturários tinham iniciado o trabalho, e conduziu Philip para uma estreita sala, situada ao fundo. Era separada do salão principal por uma divisória de vidro. Watson estava recostado na cadeira, a ler *_The Sportsman*. Era um rapaz forte e elegante no trajar, que ergueu os olhos da revista à entrada de Mr. Goodworthy. Afirmava a sua posição, tratando o chefe dos escriturários por Goodworthy, simplesmente. Este não gostava da familiaridade, e acintosamente chamava-lhe Mr. Watson. Watson, porém, sem ver neste tratamento uma repreensão, aceitava-o como um tributo ao seu cavalheirismo.

 

-- O jornal diz que eliminaram o *_Rigoletto* -- disse ele para Philip, assim que ficaram sós.

 

-- Deveras? -- respondeu Philip, que nada entendia de corridas de cavalos.

 

Olhava com admiração para o belo fato de Watson. O fraque assentava-lhe como uma luva e no meio da enorme gravata ostentava-se um valioso alfinete. A cartola repousava perto do fogão; era lustrosa e petulante, em forma de sino. Philip sentiu-se maltrapilho. Watson começou a falar de caça. Era uma maçada ter de passar dias inteiros naquele infernal escritório, com oportunidade para caçar apenas aos sábados. Recebia convites formidáveis, de toda a parte, mas via-se obrigado a recusá-los. A sina era cruel, mas, se Deus quisesse, não a aturaria por muito tempo. Ia passar somente um ano naquela baiúca, para depois ingressar nos negócios. Havia de ir à caça, então, quatro vezes por semana e tirar, nesses dias, a barriga de misérias.

 

-- Vai praticar aqui durante cinco anos? -- perguntou, indicando o minúsculo gabinete com um movimento circular do braço.

 

-- Creio que sim -- disse Philip.

 

-- Pelo que vejo, encontrar-nos-emos amiúde. Carter é quem faz a contabilidade da nossa casa, como sabe.

 

Philip sentia-se subjugado pela condescendência do jovem cavalheiro. Em Blackstable, o comércio de cerveja fora sempre olhado com polido desprezo e o vigário contava, mesmo, anedotas a esse respeito. Como se surpreendia ao encontrar agora, em Watson, uma criatura tão magnífica e importante! Estivera em Winchester e Oxford, o que se depreendia frequentemente da sua conversa. Ao conhecer os pormenores da educação de Philip as suas maneiras tornaram-se ainda mais protectoras.

 

-- Quando não se tem a felicidade de frequentar uma boa escola particular, é claro que essa espécie de escolas é a que mais se recomenda, não é? :,

 

Philip interrogou-o sobre os outros empregados.

 

-- Não lhes dou muita atenção, bem vê -- respondeu Watson; -- Carter não é mau sujeito. De vez em quando, convidamo-lo para jantar. Os outros são uma corja de plebeus.

 

Daí a pouco, Watson ocupou-se com algum trabalho que tinha entre mãos e Philip começou a classificar as cartas. Depois, Mr. Goodworthy entrou para anunciar a chegada de Mr. Carter. Philip foi conduzido a uma grande sala contígua à daquele. Havia ali uma enorme secretária e um par de confortáveis poltronas; um tapete turco adornava o soalho e as paredes ostentavam gravuras de desporto. Mr. Carter estava sentado à secretária e ergueu-se para apertar a mão de Philip. Trajava uma comprida sobrecasaca. Parecia um militar. O bigode era lustroso e usava os cabelos curtos e grisalhos, muito bem penteados. Mantinha-se sempre muito direito, falava com grande vivacidade e residia em Enfield. Interessava-se pelos desportos e pelo bem-estar do país. Era oficial da Guarda Territorial do condado de Hertford e presidente do Clube Conservador. Quando soube que um magnata local dissera que ninguém o tomaria por um homem da City, sentiu que não vivera em vão. Falou a Philip em tom amável e sem cerimónia. Mr. Goodworthy guiá-lo-ia no escritório. Watson era um óptimo rapaz, perfeito cavalheiro, excelente desportista. Philip caçava? Não. Que pena! Um desporto de cavalheiros. Já não tinha oportunidades para caçar; deixava-as ao filho. Estava em Cambridge; mandara-o para Rugby, a esplêndida escola de Rugby frequentada por rapazes decentes. Num par de anos o filho estaria treinado, o que seria óptimo para Philip; ia gostar do seu filho -- um desportista completo. Fazia votos para que Philip progredisse e apreciasse o trabalho. Não devia perder as suas aulas; estavam a elevar o conceito da profissão. Era preciso torná-la bem vista pelas pessoas de distinção social. Bem, Mr. Goodworthy estava ali. Se quisesse saber de alguma coisa, era só perguntar a Mr. Goodworthy. Que tal a sua letra? Bem, não fazia mal, Mr. Goodworthy se encarregaria disso.

 

Philip sentia-se oprimido por tanto cavalheirismo. Na East Anglia, sabia-se quem era distinto e quem o não era; mas as verdadeiras pessoas distintas nunca tocavam nesse assunto.

 

A principio, a novidade do trabalho conservou Philip interessado. Mr. Carter ditava-lhe cartas e incumbia-o de passar a limpo os extractos das contas.

 

Mr. Carter preferia dirigir o escritório dentro dos moldes do :,

verdadeiro cavalheirismo; não tomava conhecimento da dactilografia e antipatizava com a escrita estenográfica. O empregado conhecia a taquigrafia, mas só Mr. Goodworthy se utilizava dessa habilidade. De vez em quando, acompanhado de um dos escriturários experimentados, Philip saía a examinar os livros de alguma firma; veio a saber, em pouco tempo, quais os clientes que cumpria tratar com respeito e quais os pouco cotados. Outras vezes,

davam-lhe longas colunas de números para somar. Frequentava aulas, preparando-se para o primeiro exame. Mr. Goodworthy repetia sempre que o trabalho era aborrecido a princípio, mas acabaria por se habituar a ele. Philip deixava o escritório às seis horas da tarde e atravessava a pé a ponte, em direcção a Waterloo. Ao chegar a casa, encontrava o jantar à sua espera e passava o serão a ler. Nas tardes de sábado, costumava visitar a National Gallery. Hayward recomendara-lhe um guia compilado das obras de Ruskin. Munido desse guia, percorria, diligentemente, sala após sala. Lia com atenção o que o crítico dizia a respeito de um quadro e em seguida, muito decidido, tratava de vê-lo pelo mesmo ângulo. Os domingos eram muito monótonos, pois não conhecia ninguém em Londres e passava-os sozinho. Mr. Nixon, o solicitador, convidou-o para passar um domingo em Hampstead e lá viveu ele horas felizes, cercado de estranhos de temperamento exuberante. Comeu e bebeu bastante, deu uma volta pelo campo e retirou-se com um convite para voltar quando lhe aprouvesse; sentia, porém, um mórbido temor de ser importuno, e, em vista disso, esperava sempre um convite formal. Era natural que este nunca viesse, pois os Nixon, que possuíam uma infinidade de amigos, não se lembrariam do jovem solitário a quem deviam hospitalidade apenas por cortesia. Aos domingos, portanto, Philip levantava-se tarde e dava um passeio pela margem do rio, que, em Barnes, é lamacento, escuro e sujeito às marés; não possui o encanto gracioso do Tamisa acima das comportas, nem a vida romântica das inúmeras embarcações sob a ponte de Londres. De tarde, percorria o prado, também acinzentado e sombrio. Não é cidade nem campo; os espinheiros são raquíticos e em redor espalham-se as escórias da civilização. Ia ao teatro nas noites de sábado e deixava-se ficar mais de uma hora à porta da galeria. Não valia a pena voltar a Barnes no intervalo entre o encerramento do Museu e a sua refeição num restaurante A. B. C. Não sabia em que empregar o tempo. Subia a Bond Street, atravessava a Burlington Arcade e, quando se sentia cansado, sentava-se no Parque; se o tempo estava húmido, dirigia-se à Biblioteca Pública de St Martin.s Lane. Olhava para as pessoas que passavam e invejava-as por possuírem amigos; às vezes, essa inveja transformava-se em ódio, ao pensar que a felicidade só sorria aos outros. Nunca imaginara ser possível sentir-se tão só numa grande cidade. Frequentemente, :, enquanto esperava, de pé, à porta da galeria, alguém a seu lado tentava entabular conversa; mas Philip, como todos os rapazes do interior, desconfiava de estranhos e respondia de um modo que impedia qualquer aproximação Terminada a peça, obrigado a guardar para si próprio o juízo que fazia sobre ela, atravessava a ponte, apressado, em direcção a Waterloo. Ao entrar novamente em casa, onde, por economia, o lume ainda não fora aceso, apertava-se-lhe o coração. Sentia-se terrivelmente triste. Começava a detestar os seus aposentos e as intermináveis e solitárias noites que ali passava. Por vezes, a solidão era tanta que Philip se via impossibilitado de ler; passava horas e horas sentado, a olhar o fogo, cheio de desespero.

Estava em Londres havia três meses e, a não ser no domingo, passado em Hampstead, só falara com os companheiros de trabalho. Certa noite, Watson convidou-o para jantar num restaurante e em seguida levou-o a um café-concerto. Mas Philip sentiu-se cheio de timidez e deslocado. Watson só falava de coisas que não lhe interessavam e, embora o considerasse um filisteu, não podia deixar de admirá-lo. Enraivecia-se pelo facto de ele não dar importância à sua cultura. Como levava a sério o juízo que os outros faziam da sua pessoa, começou a desprezar os atributos que até então lhe pareciam valiosos. Sentia pela primeira vez a humilhação da pobreza. O tio mandava-lhe apenas catorze libras por mês e ainda tivera de comprar inúmeras coisas. O trajo para a noite custou-lhe cinco guinéus. Não ousava dizer a Watson que o comprara no Strand. Watson era de opinião que só existia um alfaiate em Londres.

 

-- Não danças, não? -- perguntou Watson, certo dia, relanceando os olhos para o pé aleijado de Philip.

 

-- Não -- respondeu Philip.

 

-- Que pena. Pediram-me que levasse alguns rapazes a um baile.

Poderia apresentar-te a umas raparigas engraçadas.

 

Uma ou duas vezes, sem coragem de regressar a Barnes, Philip deixou-se ficar na cidade e, de noite, pôs-se a deambular pelo West _end até encontrar alguma casa onde se realizasse um baile. Reuniu-se ao pequeno grupo de populares mal vestidos, por trás dos criados, e, ao mesmo tempo que observava a chegada dos convidados) ouvia a música que se escoava em ondas pelas janelas. _às vezes, apesar do frio, um par aparecia à sacada, em busca de ar fresco. Supondo-os enamorados, dava meia volta e lá se ia, a coxear, desconsolado. Jamais ocuparia o lugar daquele homem. Parecia-lhe que mulher alguma poderia olhá-lo sem manifestar repulsa ante a sua deformidade.

 

Isso fez que se lembrasse de Miss Wilkinson. Não experimentava satisfação ao pensar nela. Antes de se despedirem, combinaram que ela escrevesse para a Posta Restante de Charing Cross, :, até ele poder mandar-lhe uma morada, e quando lá foi encontrou três cartas dela. Escrevia em papel azul, com tinta violeta e em francês. O rapaz perguntava a si próprio por que não escrevia ela em inglês, como qualquer mulher sensata, e as suas expressões de amor, lembrando uma novela francesa, deixavam-no indiferente. Ela censurava-o por não ter escrito ainda e Philip, ao responder, desculpou-se, alegando as suas ocupações. Não sabia como iniciar a carta. Não se decidiu a usar *muito querida* ou *queridinha* e detestava chamar-lhe Emily; por fim decidiu-se pela palavra *querida*. Parecia esquisita e um tanto ridícula, assim isolada, mas, à falta de melhor, servia. Era a primeira carta de amor que escrevia, e tinha a consciência da sua tibieza; achava que devia dizer coisas veementes, contar que pensava nela em todos os minutos do dia, que estava ansioso por beijar as suas encantadoras mãos, que tremia ao pensar nos seus lábios purpurinos, mas inexplicável pudor o reprimia. Em lugar disso, falava-lhe do seu novo aposento e do escritório. A resposta veio cheia de cólera, mágoa e reprovação: como podia ele mostrar-se tão frio? Não sabia que ela dava a vida pelas suas cartas? Dera-lhe tudo quanto uma mulher pode dar e aquela era a recompensa que recebia. Já estaria cansado dela? Em seguida, como ele passasse alguns dias sem responder, Miss Wilkinson submeteu-o a um bombardeamento de cartas. Dizia não poder suportar mais a sua maldade; esperava inutilmente pelo correio, chorava noites a fio e vivia tão abatida que chamava a atenção de todos. Se nunca a amara, por que não fora sincero? Acrescentava não poder viver sem ele, e só lhe restar o suicídio. Chamava-lhe insensível, egoísta e ingrato. Tudo isso era dito em francês, mas Philip ficou inquieto, embora soubesse que ela escrevia nessa língua por puro exibicionismo. Não queria torná-la infeliz. Pouco tempo depois chegou outra carta, onde Miss Wilkinson confessava não suportar aquela separação, e pretendia por isso passar o Natal em Londres. Em resposta, Philip declarou apreciar imenso a ideia, e lamentava apenas ter assumido o compromisso de festejar o Natal com alguns amigos, fora da cidade, compromisso esse a que seria difícil faltar. Miss Wilkinson mandou dizer, então, que não desejava de nenhum modo ser-lhe pesada, pois bem notava que ele não a queria receber; estava profundamente sentida e nunca pensara em sofrer tanta crueldade em troca do bem que praticara. A carta era comovedora, e Philip imaginou ver vestígios de lágrimas no papel. Escreveu, então, uma resposta impulsiva, a confessar-se infinitamente arrependido e implorando-lhe que viesse. Foi com grande alívio que recebeu, mais tarde, a notícia de que seria impossível a Miss Wilkinson vir a Londres. Dentro em pouco, a chegada das cartas começou a despertar em Philip uma sensação de desalento; custava-lhe muito abri-las, pois sabia que elas só continham censuras :,

furiosas e apelos comoventes. Depois de as ler sentia-se um perfeito brutamontes, mas não conseguia compreender qual a culpa que lhe cabia em tudo aquilo. Adiava indefinidamente a resposta, até que chegava outra carta, a anunciar sentir-se ela doente, só e desgraçada.

 

-- Prouvera a Deus nunca a ter conhecido! -- exclamava então.

Admirava Watson pela facilidade com que resolvia esses assuntos. O rapaz arranjara uma aventura com uma actriz que representava em companhias ambulantes e as suas narrativas enchiam Philip de invejoso espanto. Após algum tempo, porém, as feições de Watson mudaram e um belo dia contou a Philip o rompimento.

 

-- Achei que não valia a pena usar de subterfúgios e por isso disse-lhe claramente que estava farto dela -- disse ele.

 

-- E ela não fez nenhuma cena terrível?

-- A coisa do costume, mas dei logo a entender que não valia a pena fazer daquelas coisas comigo.

 

-- E ela chorou?

-- Começou mas, como não suporto uma mulher chorona, disse-lhe que era melhor desistir.

 

O senso de humor de Philip tornava-se mais pronunciado com a passagem dos anos.

 

-- E ela desistiu?-perguntou' a sorrir.

 

-- Pois, que mais havia ela de fazer, não é verdade?

 

Entretanto, aproximavam-se as festas de Natal. Mrs. Carey estivera de cama todo o mês de Novembro e o médico sugeriu que ela e o vigário fossem, nessa época do ano, passar umas semanas na Cornualha, para recobrarem as forças. O resultado foi que Philip não teve para onde ir, sendo obrigado a passar o Natal no seu quarto. Influenciado por Hayward, convencera-se de que os festejos levados a efeito naquela data eram vulgares e bárbaros; resolveu, por isso, não dar importância ao dia. A incontida alegria que o circundava, porém, afectou-o estranhamente. A dona da casa, acompanhada do marido, fora passar o dia com uma filha casada, e, para evitar incómodos, Philip anunciou que tomaria as refeições fora. Por volta do meio-dia, desceu para a cidade e comeu uma fatia de peru e um pudim de Natal no restaurante Gatti e, como não tinha que fazer, dirigiu-se à Abadia de Westminster, para assistir ao ofício vespertino. As ruas estavam quase desertas e os poucos transeuntes tinham um ar preocupado. Não vagueavam sem destino; caminhavam em direcção a um objectivo qualquer e raramente iam sós. Philip julgava-os imensamente felizes. Nunca se sentira tão só na vida. Pretendera passar o dia na rua e jantar, em seguida, num restaurante, mas não podia enfrentar novamente aqueles grupos de pessoas alegres que conversavam, riam e se divertiam. Voltou para Waterloo, comprando, :, na ponte, um bocado de presunto e duas tortas. Comeu a pequena ceia no quarto, sozinho, e, no resto do serão, procurou distrair-se com um livro. A sua prostração era quase intolerável.

 

Ao regressar ao escritório, no dia seguinte, ficou muito magoado ao ouvir Watson descrever os divertimentos da véspera. Haviam conseguido a companhia de duas alegres raparigas e, depois do jantar, tinham retirado as mesas e dançado.

 

-- Só fui para a cama as três horas, e não sei mesmo como consegui chegar lá. Estava meio tonto, por Deus!

 

Philip perguntou, por fim, desesperado:

 

-- Como é que travamos conhecimentos em Londres?

 

Watson fitou-o com surpresa e um ar ao mesmo tempo divertido e desdenhoso.

 

-- Sei lá! As pessoas conhecem-se e pronto. Se frequentares bailes, em breve conhecerás quanta gente quiseres.

 

Philip odiava Watson e, no entanto, teria dado tudo na vida para estar no lugar dele. O velho sentimento experimentado na escola repetia-se agora. Procurava introduzir-se na pele do outro, imaginando como seria a sua existência, se fosse o _watson.

 

No fim do ano havia muito que fazer. Philip visitava vários lugares com um empregado chamado Thompson e passava o dia monotonamente, a ler em voz alta lançamentos de despesas gerais, que o outro conferia; _às vezes, davam-lhe também longas listas de números para somar. Como não tinha cabeça para cálculos, executava esse trabalho com grande morosidade. Thompson irritava-se com os seus erros. O seu companheiro de trabalho era um homem de quarenta anos, alta estatura, magro, pálido, de cabelos pretos e bigode irregular; tinha as faces reentrantes e de cada lado do nariz delineavam-se profundos vincos. Embirrou com Philip, porque este era aprendiz de escriturário. Philip tinha à sua frente uma carreira prometedora, pois podia dispor de trezentos guinéus e manter-se durante cinco anos, ao passo que ele, com toda a sua experiência e capacidade, nunca chegaria a ser mais do que um simples empregado com trinta e cinco xelins por semana. Era um homem atrabiliário, tendo às costas numerosa família, e ressentia-se com o ar de superioridade que imaginava ver em Philip. Escarnecia dele por ter recebido educação melhor do que a sua e ridicularizava a pronúncia do rapaz; não perdoava o facto de Philip falar sem o menor sotaque londrino e por isso exagerava sarcasticamente os seus *hh* aspirados. De início, as suas maneiras eram apenas bruscas e casmurras, mas, ao descobrir que Philip não possuía que dá para a contabilidade, achou :, prazer em humilhá-lo; as suas investidas eram grosseiras e estúpidas, mas magoavam Philip que, como autodefesa, assumia uma atitude de superioridade que não sentia.

 

-- Tomou banho esta manhã? -- perguntava Thompson quando Philip chegava atrasado, pois a sua pontualidade não durara muito.

 

-- Tomei; e o senhor?

 

--  Não, não sou um homem distinto, mas sim um simples empregado. Só tomo banho ao sábado à noite.

 

-- Deve ser por isso que se mostra mais mal-humorado às segundas-feiras.

 

-- Digna-se efectuar algumas somas hoje? Ou será exigir de mais de um cavalheiro conhecedor do grego e do latim?

 

-- As suas tentativas de sarcasmo não são muito felizes.

 

Mas Philip não podia deixar de reconhecer que os outros empregados, mal pagos c mal vestidos, eram mais úteis do que ele próprio. _mr. Goodworthy, não raro, impacientava-se com ele.

 

-- O senhor já tinha tempo de ter feito alguns progressos -- observava. -- Não possui nem metade da aptidão do empregado.

Philip ouvia-o carrancudo. Não gostava de ser censurado. Sentiu-se humilhado quando Mr. Goodworthy, descontente com umas cópias que lhe dera para fazer, as entregou a outro funcionário. A princípio, o trabalho era tolerável, visto que tudo possuía um cunho de novidade, mas agora tornava-se irritante. E, ao descobrir que não possuía aptidão para o serviço, Philip passou a detestá-lo. _às vezes, em lugar de executar um trabalho que lhe fora confiado, perdia o tempo a traçar figurinhas no papel do escritório. Desenhava caricaturas de Watson em todas as atitudes concebíveis, impressionando-o com o seu talento. Ocorreu ao amigo levar os desenhos para casa e, no dia seguinte, transmitiu-lhe os elogios da sua família.

 

-- Por que não estudaste pintura? -- perguntou. -- A única desvantagem é que a profissão não dá dinheiro.

 

Aconteceu, dois dias mais tarde, que Mr. Carter foi jantar com os Watson e teve, assim, oportunidade de admirar os esboços. Na manhã seguinte, Philip foi chamado à sua presença. Philip, que o via raramente, tinha por ele um respeito medroso.

 

-- _escute, meu rapaz. não me interessa o que o senhor faça fora das horas de serviço; vi, porém, os seus desenhos, e observei que foram executados em papel do escritório. Mr. Goodworthy por outro lado, informou-me de que o senhor não demonstra progresso algum. Devo dizer-lhe que só terá êxito como contabilista se desenvolver actividade. _é uma bela profissão, não há dúvida; dia a dia ingressam nela homens das melhores classes sociais, mas é uma profissão em que se precisa...

Mr. Carter procurou um remate para a frase, mas, não o encontrando, terminou de maneira um tanto chocha: -- ...em que se precisa desenvolver actividade.

Talvez Philip chegasse a conformar-se com tudo aquilo, se não fosse o acordo que lhe permitia retirar-se após um ano de trabalho, e receber metade da importância paga para o seu aprendizado. Julgava-se capaz de coisa melhor do que esse serviço de somar parcelas e sentia, ao mesmo tempo, que era humilhante realizar tão mal aquilo que desprezava. _os atritos com Thompson alteravam-lhe os nervos. Em Março, Watson completou o seu ano de estágio e Philip, embora não lhe ligasse importância, viu-o partir com tristeza. O facto de serem ambos malquistos dos outros cuja classe era inferior à sua, constituía uma espécie de elo que os unia. Quando Philip se lembrava de que seria obrigado a passar mais de quatro anos ainda na desoladora companhia daquela gente, o coração confrangia-se-lhe. Esperava encontrar em Londres coisas maravilhosas e no entanto a cidade nada lhe dera. Odiava-a, por isso. Não conhecia uma só alma e não sabia como travar relações. Estava cansado de andar sozinho de um lado para o outro. Começou então a sentir a impossibilidade de suportar por mais tempo aquela vida. Deitava-se na cama, de noite, e punha-se a imaginar a sua alegria quando pudesse fugir para sempre daquela pensão reles e nunca mais regressar ao sombrio escritório.

 

Grande decepção o aguardava na Primavera. Hayward anunciou o propósito de passar essa estação em Londres e Philip ficou muito contente ante a perspectiva de rever o amigo. Lera tantas coisas naqueles últimos meses, pensara tanto, e não encontrava ninguém que se interessasse por coisas abstractas, com quem pudesse discutir as ideias que lhe enchiam o cérebro. Todo o seu entusiasmo, no entanto, se transformou em desapontamento, quando Hayward escreveu a dizer que a Primavera, na Itália, estava mais adorável do que nunca, e por esse motivo lhe seria totalmente impossível abandoná-la. Prosseguindo, perguntava por que não ia Philip ter com ele. Para que dissipar os dias da sua mocidade enfurnado num escritório, quando o mundo era tão belo? E a carta continuava:

 

*_não sei como consegues suportar essa vida. Agora, quando penso em Fleet Street ou Lincoln.s Inn, estremeço de repugnância. Há apenas duas coisas no mundo capazes de tornar a vida digna de ser vivida -- o amor e a arte. Não posso imaginar-te sentado num escritório curvado sobre o diário da firma. _é verdade que usas uma cartola, um guarda-chuva e uma malinha preta? Acho que a vida deve ser encarada pelo prisma da aventura: devemos sentir a chama pura e ardente das paixões, devemos arriscar-nos, expor-nos ao perigo. Por que não te resolves a estudar belas-artes em Paris? Sempre me pareceu possuíres talento*.

 

Esta sugestão coincidia com os projectos que Philip, havia muito tempo, acariciava. A princípio, a ideia parecera impraticável, mas não podia afastá-la do espírito. Nessas constantes meditações, encontrava um meio de fugir ao seu infortúnio. Todos o julgavam com vocação para a arte. Em _Heidelberga, as suas aguarelas eram unanimemente admiradas e Miss Wilkinson repetira-lhe dezenas de vezes serem elas encantadoras; até mesmo pessoas estranhas, como os Watson, se mostravam impressionadas pelos seus esboços. A *_Vie de Bohème* exercera grande influência sobre ele. Trouxera-a para Londres e, quando sentia recrudescer a sua tristeza, lia umas páginas e deixava-se transportar para aquelas encantadoras águas-furtadas, onde Rodolphe e os companheiros dançavam, amavam e cantavam. Começou a pensar em Paris, como o fazia antes com relação a Londres, mas não temia uma segunda desilusão. Paris parecia corresponder aos seus anseios de romance, amor e beleza. Sentia grande paixão pelos quadros; por que, pois, não seria capaz de pintar tão bem como qualquer outra pessoa? Escrevendo a Miss Wilkinson, perguntou-lhe com quanto por ano achava que ele poderia viver em Paris. Ela respondeu que oitenta libras seriam suficientes, ao mesmo tempo que aprovava o projecto com grande entusiasmo. Dizia que ele possuía demasiadas qualidades boas para se estragar num escritório. "Quem, podendo tornar-se um grande artista, preferiria ser simples escriturário?" --perguntava dramaticamente. Suplicava, pois, a Philip que tivesse fé em si próprio: isso era o principal. Mas Philip era prudente por natureza. Essa história de falar em aventuras e riscos ficava muito bem a Hayward, cujos títulos de renda davam trezentas libras por ano. Toda a fortuna de Philip não ia além de mil e oitocentas libras. Ficou indeciso.

 

Aconteceu que Mr. Goodworthy lhe perguntou, certo dia, subitamente, se gostaria de ir a Paris. A firma fazia a contabilidade de um hotel, no Faubourg St. Honoré, explorado por uma companhia inglesa, e, duas vezes por ano, Mr. Goodworthy ia lá, acompanhado de um escriturário. Sucedeu, porém, que o funcionário que costumava ir com ele estava doente e a acumulação de serviço impedia a retirada de qualquer outro. Mr. Goodworthy lembrou-se de Philip, por ser o que menos falta fazia; por outro lado, a sua posição dava-lhe direito a esse encargo, que era um dos prazeres da profissão. Philip exultou de contentamento.

 

-- Será preciso trabalhar o dia inteiro -- advertiu Mr. Goodworthy

-- mas teremos as noites à nossa disposição, e Paris sempre é Paris.

 

Sorriu com o ar de velho conhecedor.

 

-- Tratam-nos muito bem no hotel, fornecem-nos as refeições e portanto não precisamos de gastar nada. É assim que gosto de ir a Paris: à custa dos outros.

 

Quando chegaram a Calais, o coração de Philip pulou de :,

alegria à vista da multidão de carregadores que gesticulavam na estação.

 

-- Era com o que eu sonhava -- disse consigo mesmo.

 

Observava tudo atentamente, à medida que o comboio corria pelos campos; adorou as dunas de areia, cuja cor lhe pareceu a coisa mais linda que vira até então; deixou-se encantar com os canais e os longos renques de álamos. Ao deixarem a Gare du Nord, sacolejando sobre o calcetamento irregular das ruas, num trem barulhento e desconjuntado, pareceu-lhe respirar um ar novo e tão inebriante que mal reprimia o desejo de gritar de alegria. Foram recebidos à porta do hotel pelo gerente, um senhor corpulento e simpático, que falava um ingIês tolerável. Mr. Goodworthy era um velho amigo e por isso o gerente cumprimentou-o efusivamente. Convidou-os para o jantar em companhia de sua mulher, numa sala particular, e Philip achou que nunca comera coisa tão deliciosa como o *beefsteak aux pommes* nem bebido néctar semelhante ao *vin ordinaire*.

 

Para Mr. Goodworthy, respeitável chefe de família, com excelentes princípios, a capital da França era o paraíso da obscenidade jovial. No outro dia, pela manhã, perguntou ao gerente onde encontrar espectáculos "apimentados". Apreciava imenso aquelas visitas a Paris; evitavam que a gente se enferrujasse, dizia ele. De noite, após o jantar, levava Philip ao *_Moulin Rouge* e às *_Folies Bergère*. Os seus olhinhos cintilavam e a sua face contraía-se num sorriso finório e sensual, à procura do pornográfico. Visitava todos os antros preparados especialmente para o estrangeiro e depois declarava que uma nação que permitia tais coisas não podia acabar bem. Tocava com o cotovelo em Philip quando, nalguma revista, surgia uma mulher praticamente nua, e apontava-lhe as mais tentadoras dentre as cortesãs que davam voltas ao salão. Era uma Paris vulgar que mostrava a Philip, mas este via-a com os olhos cegos de ilusões. Logo de manhã cedo saía do hotel, a correr, e dirigia-se aos *_Champs Elysées* ou à *_Place de la Concorde*. Era em Junho e Paris parecia prateada pela delicadeza do ar. Philip sentia ternura por aquela gente. Ali estava, finalmente, o sonhado romance.

 

Passaram lá quase uma semana, regressando no domingo. Quando, alta noite, Philip entrou no escuro quarto em Barnes, tomara a sua resolução. Abandonaria o aprendizado e iria estudar belas-artes em Paris. Para que não o julgassem precipitado, decidiu esperar até que completasse um ano de escritório. Teria as férias na segunda quinzena de Agosto e ao partir manifestaria a Herbert Carter a sua intenção de não voltar. Mas, embora, com muito esforço, comparecesse diariamente no escritório, Philip não conseguia ao menos fingir interesse pelo trabalho. O futuro enchia-lhe os pensamentos. Depois dos meados de Julho, não :, havia muito que fazer e Philip escapava-se frequentemente, alegando ter de ir às aulas de preparação para o exame. O tempo que assim conseguia era gasto na National Gallery. Lia livros sobre Paris e sobre pintura. Estava impregnado de Ruskin. Leu inúmeras biografias de pintores, por Vasari. Gostava da conhecida anedota de Correggio, e chegou a imaginar-se diante de uma obra-prima, a exclamar: *_Anch.io son. Pittore*. Já não tinha hesitações. Estava convencido de que possuía qualidades para vir a ser um grande pintor.

 

-- Afinal de contas, pelo menos posso tentar -- dizia consigo mesmo. --  O principal na vida é arriscar.

 

Chegou, por fim, o meado de Agosto. Mr. Carter estava a passar o mês na Escócia e o escriturário-chefe assumira a direcção do escritório. Desde a viagem a Paris, Mr. Goodworthy mostrava-se mais amável para com Philip e este, como devesse partir dentro de poucos dias, olhava o curioso homenzinho com tolerância.

 

-- Então, Carey, começa as férias amanhã? -- perguntou-lhe ele ao anoitecer.

 

Durante o dia inteiro, Philip repetira a si próprio que aquela era a última vez que se sentaria no odioso escritório.

 

-- Sim, o meu ano termina agora.

 

-- Temo que não tenha feito muitos progressos. Mr. Carter está bastante descontente com o senhor.

 

-- Não tão descontente como eu com ele -- volveu Philip alegremente.

 

-- Não deve falar assim, Carey.

 

-- Não pretendo voltar. Ficou combinado que, se eu não gostasse da contabilidade, Mr. Carter me restituiria metade do dinheiro pago para o meu aprendizado e me permitiria a retirada, após um ano de serviço.

 

-- Não deveria resolver as coisas com tanta precipitação.

-- Durante dez meses odiei isto tudo: odeio o trabalho, odeio o escritório, odeio a própria Londres. Preferiria varrer as ruas a passar a minha vida aqui.

 

-- Bem cumpre-me dizer que não o acho apto para a contabilidade.

-- Adeus -- disse Philip, estendendo-lhe a mão. -- Quero agradecer-lhe a bondade com que sempre me tratou. Desculpe-me se alguma vez lhe causei aborrecimentos. Desde o início, vi que não dava para isto.

 

-- Bem, se realmente resolveu assim, adeus. Não sei o que pretende fazer, mas, se alguma vez passar por aqui, não se esqueça de fazer-nos uma visita.

 

Philip soltou uma risada.

 

-- Temo que seja uma grande grosseria, mas espero, do fundo do coração, nunca mais pôr os olhos sobre qualquer dos senhores.

 

O vigário de Blackstable não quis tomar conhecimento do plano arquitectado por Philip. Julgava que se devia persistir, uma vez iniciada a obra. Como todos os homens fracos, punha um empenho exagerado em não mudar de resolução.

 

-- Foi por tua própria vontade que escolheste ser contabilista -- alegava ele.

 

-- Era a única oportunidade que se me apresentava de ir para Londres. Agora, detesto a cidade, detesto o trabalho e nada me obrigará a voltar.

 

Mr. e Mrs. Carey ficaram visivelmente escandalizados com a ideia de Philip se tornar artista. Não devia esquecer, diziam eles, que seus pais tinham sido pessoas distintas, e a pintura não era uma profissão séria; era uma profissão de boémios, mal-afamada, imoral. E depois, Paris!

 

-- Enquanto tiver voz activa no assunto, não permitirei que vivas em Paris -- declarou o vigário com firmeza.

 

Era um poço de iniquidades. A mulher de escarlate e a prostituta de Babilónia ostentavam ali a sua vileza; as cidades da planície não eram mais depravadas.

 

-- Foste educado como um cristão e uma pessoa distinta, e faltaria à confiança que o teu pai e a tua mãe depositaram em mim se permitisse que te expusesses a semelhante tentação.

 

-- Pois bem: sei que não sou cristão e começo a duvidar de que seja uma pessoa distinta -- retorquiu Philip.

 

A discussão tornava-se cada vez mais violenta. Faltava ainda um ano para Philip entrar na posse da sua pequena herança, e Mr. Carey declarou que só lhe daria uma mesada se ele resolvesse continuar no escritório.

 

Era claro que, uma vez deliberado o abandono da carreira, seria melhor que Philip se retirasse a tempo de recuperar a metade da importância depositada. Mas o vigário nada queria ouvir. Perdendo a reserva, Philip disse coisas que feriam e irritavam.

 

-- O tio não tem o direito de desperdiçar o meu dinheiro -- exclamou por fim. -- Afinal de contas é o meu dinheiro, não é? Já não sou criança. Não pode impedir que eu vá para Paris, se me resolver a isso. Não pode obrigar-me a voltar para Londres.

 

-- A única coisa que posso fazer é recusar-te dinheiro, a menos que faças o que me parece apropriado.

 

-- Pouco me importa. Estou resolvido a ir para Paris. Venderei a minha roupa, os meus livros, as jóias de meu pai.

 

A tia Louise permanecia sentada em silêncio, ansiosa e aflita. Sabia que Philip estava fora de si, e qualquer coisa que dissesse serviria apenas para lhe aumentar a ira. Finalmente, o vigário manifestou o desejo de não ouvir mais uma palavra sobre o assunto :, e deixou a sala com grande dignidade. Durante os três dias que se seguiram, os dois não se falaram. Philip escreveu a Hayward, a pedir informações sobre Paris e decidiu partir assim que recebesse resposta. Mrs. Carey meditava incessantemente no caso; sentia que Philip a incluía no ódio que dedicava ao vigário, e isso torturava-a. Amava-o do fundo do coração. Resolveu falar-lhe, por fim: escutou atentamente a narrativa de todas as suas desilusões em Londres e da sua grande ambição para o futuro.

 

-- Pode ser que nada consiga, mas deixem-me ao menos tentar. O meu malogro não será maior do que naquele medonho escritório. E sinto-me capaz de pintar. Sei que tenho esse dom.

 

Ela não estava tão convicta como o marido de que fosse justo contrariar uma inclinação tão forte. Tinha lido a história de grandes pintores cujos pais se opuseram às suas vocações; e, afinal de contas, tanto era possível levar uma vida virtuosa, para glória de Deus, na qualidade de pintor como na de contabilista encartado.

 

-- A tua ida para Paris enche-me de receios! -- disse ela, em tom lastimoso. -- Seria preferível que estudasses em Londres.

 

-- Já que vou estudar pintura, é preciso estudar de verdade. Só em Paris é que se faz isso.

 

Por sugestão do sobrinho, Mrs. Carey escreveu ao solicitador, a declarar que Philip se sentia descontente com o seu trabalho em Londres; perguntava, ao mesmo tempo, o que pensava de uma mudança. Mr. Nixon respondeu o seguinte:

 

*_Prezada Mrs. Carey;

*_Estive com Mr. Herbert Carter, e sinto dizer-lhe que Philip não fez os progressos que eram de esperar. Uma vez que o trabalho só lhe inspira aversão, talvez fosse melhor aproveitar agora a oportunidade que se oferece de rescindir o contrato. É grande, sem dúvida, o meu desapontamento, mas, como a senhora sabe, pode-se conduzir um cavalo à beira de água, mas não se pode obrigá-lo a beber.

*_Seu, sinceramente,

*_Albert _nixon*

 

 

O vigário tomou conhecimento da carta, mas isso serviu apenas para lhe aumentar a obstinação. Concordaria se Philip abraçasse outra profissão qualquer. Sugeriu mesmo a de seu pai -- a medicina. Nada, porém, o induziria a conceder uma mesada ao sobrinho, se este teimasse em ir para Paris.

 

-- É simples pretexto para levar vida folgada, para entregar-se à sensualidade -- disse. :,

 

-- É interessante ouvi-lo censurar a vida folgada nos outros  --retorquiu Philip, acremente.

 

Nessa altura chegou uma carta de Hayward, indicando o nome de um hotel onde Philip poderia alugar um quarto por trinta francos mensais; no mesmo sobrescrito, veio também um bilhete de apresentação à *massière* de uma escola. Philip leu a carta a Mrs. Carey e comunicou-lhe a intenção de partir a 1 de Setembro.

 

-- _mas não tens dinheiro algum! -- disse ela.

 

-- Vou esta tarde a Tercanbury vender as jóias.

 

Herdara do pai um relógio de ouro com corrente, dois ou três anéis, algumas abotoaduras e dois alfinetes de gravata. Um destes últimos tinha uma pérola engastada e talvez rendesse regular importância.

 

-- O valor de uma coisa tem muito pouco que ver com o que se consegue por ela -- observou a tia Louise.

 

Philip sorriu, pois era aquela uma das frases predilectas de seu tio.

 

-- Sei isso, mas, na pior das hipóteses, creio que poderei arranjar umas cem libras, o suficiente para me manter até aos vinte e um anos.

 

Mrs. Carey não respondeu; subiu ao seu quarto, pôs na cabeça o chapéu preto e dirigiu-se ao Banco. Em menos de uma hora, estava de volta. Procurou Philip, que lia na sala de visitas, e entregou-lhe um sobrescrito.

 

-- Que é isto? -- inquiriu ele.

 

-- É um pequeno presente para ti -- respondeu a tia, sorrindo timidamente.

 

Ele abriu-o, e encontrou onze notas de cinco libras e um saquinho de papel repleto de esterlinas.

 

-- Não podia permitir que vendesses as jóias de teu pai. É o dinheiro que eu tinha no Banco. Está muito perto de perfazer uma centena de libras.

 

Philip corou e, sem saber como, as lágrimas brotaram-lhe subitamente dos olhos.

 

-- Oh, minha querida tia, não posso aceitar -- disse ele. -- A tia é infinitamente bondosa, mas não me seria possível aceitar.

 

Quando Mrs. Carey se casara, possuía trezentas libras; esse dinheiro, cuidadosamente administrado, destinava-se a fazer frente a uma despesa imprevista, um acto urgente de caridade, ou para comprar presentes de Natal e de aniversário para o marido e para Philip. Com o correr dos anos, diminuíra lamentavelmente, mas ainda constituía motivo de galhofa para o vigário. Referia-se à esposa como uma mulher rica e falava constantemente no seu pé-de-meia.

 

-- Aceita-o por favor, Philip. Lamento ter sido extravagante e só me resta isto. Far-me-ás muito feliz se o aceitares.

 

-- Mas a tia pode precisar do dinheiro -- observou ele.

 

-- Não precisarei, não. Guardava-o para o caso de teu tio morrer antes de mim. Achava útil possuir alguma coisa de que pudesse lançar mão imediatamente, mas agora penso que não viverei muito tempo.

 

-- Oh, tia, não diga isso. É claro que viverá por muito tempo. Não posso passar sem a sua amizade.

 

-- Oh, não tenho pena.

 

A voz embargou-se-lhe, ocultou os olhos, mas, logo a seguir, enxugou-os e sorriu corajosamente.

 

-- _a princípio, costumava pedir a Deus que não me levasse primeiro, pois não queria deixar o teu tio sozinho no mundo, não queria fazê-lo sofrer. Mas agora concluí que a minha morte não seria tão dolorosa para ele como a dele para mim. Tem mais amor à vida do que eu, nunca fui o seu ideal de mulher e estou certa de que tornaria a casar se alguma coisa me acontecesse. É por isso que prefiro ir primeiro. Não achas que seja egoísmo meu, Philip? Se ele morresse antes de mim, não suportaria o desgosto.

 

Philip beijou-lhe a face enrugada e magra. Não sabia por que razão o espectáculo daquele transbordante amor o enchia de estranha vergonha. Era incompreensível que ela dedicasse tanta afeição a um homem tão indiferente, tão grosseiramente egoísta. E ele percebia de modo vago que, no seu íntimo, ela via a indiferença e o egoísmo do marido; via, mas apesar de tudo, amava-o com humildade.

 

-- Aceitas o dinheiro, Philip? -- perguntou ela, afagando-lhe suavemente a mão. -- Sei que podes dispensá-lo; se o aceitares, ficarei tão contente! Sempre quis fazer alguma coisa por ti. Nunca tive filhos, como sabes, razão por que te amei como verdadeira mãe. Quando eras criança, embora soubesse que praticava um erro, desejava às vezes que adoecesses para que eu pudesse ficar a teu lado noite e dia. Mas só estiveste doente uma vez, e assim mesmo na escola. Gostaria tanto de auxiliar-te... Este é o único ensejo que tenho. E quando, algum dia, te tornares um grande pintor, não te esquecerás de mim, antes te lembrarás de que fui eu quem te auxiliou no princípio.

 

-- Como é boa! -- exclamou Philip. -- Fico-lhe muito agradecido.

 

Um sorriso brilhou nos cansados olhos dela, um sorriso de pura felicidade.

 

-- Oh! Estou tão satisfeita!

 

Passados alguns dias, Mrs. Carey foi acompanhar Philip à estação. Mantinha-se à porta da carruagem, procurando reprimir as lágrimas. Philip estava irrequieto e ansioso. Quisera ter já partido.

 

-- Beija-me ainda uma vez -- disse ela.

 

Inclinou-se para fora da janela e beijou-a. O comboio pôs-se em movimento, deixando-a na plataforma de madeira da pequena estação. Agitou o lenço até perdê-lo de vista. Tinha o coração horrivelmente oprimido e as poucas centenas de jardas que a separavam do vicariato pareceram-lhe uma distância imensa. Era natural que ele se mostrasse ansioso por partir, dizia consigo; era ainda rapaz e o futuro acenava-lhe -- enquanto ela cerrava os dentes para não chorar. Fez, mentalmente, uma pequena prece, a rogar a Deus que o guardasse, que o livrasse das tentações, que lhe concedesse felicidade e boa sorte.

 

Philip, porém, esqueceu-se dela pouco depois de se instalar no seu lugar. Preocupava-se apenas com o futuro. Escrevera a Mrs. Otter, a *massière* a quem se destinava a carta de apresentação de Hayward, e levava no bolso um convite para o chá, no dia seguinte. Ao chegar a Paris, mandou colocar a bagagem num carro e rodou vagarosamente através de ruas alegres, sobre a ponte e ao longo das vielas do Bairro Latino. Alugara um quarto no *_Hôtel des Deux _écoles*, situado numa velha rua transversal ao *_Boulevard de Montparnasse*; ficava próximo da escola de Amitrano, onde pretendia estudar. Um criado galgou cinco lances de escadas, com a bagagem, e conduziu Philip a um quartinho que cheirava a mofo pelo facto de as janelas se conservarem fechadas. Quase todo o espaço era ocupado por uma grande cama de madeira, com dossel vermelho. As janelas eram ornadas de pesadas cortinas da mesma cor, bastante encardidas, e a cómoda servia também de lavatório; numa das paredes, descansava um maciço guarda-roupa desse estilo que se costuma associar ao nome do bom rei Luís Filipe. O papel das paredes perdera a cor, com o tempo; estava acinzentado, distinguindo-se nele, vagamente, grinaldas de folhas pardas. Philip achou o quarto pitoresco e encantador.

 

Embora fosse tarde, a excitação impedia-o de dormir. Dirigiu-se para o*boulevard*, e caminhou em direcção às luzes. Chegou, assim, à estação. A praça que lhe ficava em frente, com iluminação de arco voltaico, percorrida em todas as direcções por barulhentos "eléctricos" amarelos, arrancou-lhe um riso de alegria. Havia cafés em toda a volta e, como estivesse com sede e ansioso por observar a multidão de mais perto, conseguiu por acaso, um lugar numa das mesas colocadas na calçada do *_Café de _versailles*. As outras mesas achavam-se ocupadas, pois a noite estava linda.

Philip contemplava as pessoas com grande curiosidade: aqui, pequenos grupos de famílias, além um punhado de homens de barba, com chapéus esquisitos, falando em altas vozes e gesticulando; a seu lado, estavam sentados dois homens, com aspecto de pintores, acompanhados de mulheres que Philip desconfiava não serem suas legítimas esposas, e atrás dele alguns americanos discutiam animadamente assuntos de arte. A sua alma vibrava de comoção. Deixou-se ficar ali até tarde, com pena de se retirar, embora cansado. Quando, por fim, se resolveu a ir para a cama, não conseguiu dormir; pôs-se a escutar o ruído multiforme de Paris.

No dia seguinte, à hora do chá, dirigiu-se ao *_Lion de Belfort* e, numa rua nova que partia do *_Boulevard Raspail*, encontrou Mrs. Otter. Era uma insignificante mulher de trinta anos, de ar provinciano e maneiras estudadamente refinadas, que o apresentou a sua mãe. Philip descobriu, então, que ela estudava em Paris havia três anos, e mais tarde veio a saber que vivia separada do marido. Conservava na pequena sala de visitas um ou dois retratos de sua autoria e Philip, com a sua inexperiência, achou-os perfeitos.

 

-- Eu só queria saber se um dia chegarei a pintar assim tão bem --disse-lhe ele.

 

-- Oh, espero que sim -- respondeu Mrs. Otter, lisonjeada. -- Não será possível consegui-lo imediatamente, é claro.

 

Era muito amável. Deu-lhe o endereço de um estabelecimento onde encontraria papel de desenho e carvão.

 

-- Amanhã, às nove horas, irei à Amitrano; se estiver lá, arranjar-lhe-ei um lugar e o mais que for necessário.

 

Perguntou-lhe o que pretendia fazer, mas Philip não queria dar a perceber quão vagamente percebia do assunto.

 

-- Bem, primeiro, quero aprender a desenhar -- respondeu.

 

-- Agrada-me muito ouvi-lo falar assim. As pessoas quase sempre procuram fazer as coisas apressadamente. Só toquei em óleos depois de estudar durante dois anos, e veja os resultados.

Lançou um rápido olhar ao retrato da mãe, uma pintura empastada, que estava pendurada acima do piano.

 

-- Se estivesse no seu lugar, seria muito escrupulosa na escolha das minhas relações. Não me misturaria com estrangeiros.

 

Philip agradeceu o conselho, embora lhe parecesse estranho. Não fazia grande empenho em ser cauteloso.

 

-- Vivemos exactamente como se estivéssemos na Inglaterra  -- disse a mãe de Mrs. Otter, que até então se conservara calada. -- Quando viemos para cá, trouxemos connosco toda a nossa mobília.

Philip correu os olhos em volta da sala. Enchiam-na móveis maciços e das janelas pendiam cortinas de renda branca, semelhantes :, às que a tia Louise usava no vicariato, durante o Verão. O piano estava coberto por uma capa de seda, e o mesmo sucedia com o fogão. Mrs. Otter acompanhava o olhar admirado do rapaz.

 

-- De noite, quando as persianas estão fechadas, tem-se a impressão perfeita de estar em Inglaterra.

 

-- E as nossas refeições são todas feitas à moda da nossa terra --acrescentou a mãe. --Um ligeiro pequeno-almoço, de manhã, e jantar a meio do dia.

 

Ao deixar Mrs. Otter, Philip foi comprar o material de desenho de que necessitava. Na manhã seguinte às nove em ponto, apresentou-se na escola, procurando aparentar calma. Mrs. Otter, que já lá estava, aproximou-se com um sorriso nos lábios. Philip, como *nouveau*, não sabia que espécie de recepção lhe iriam fazer, pois lera que, nalguns estúdios, os estrangeiros eram objecto de brincadeiras desagradáveis. Mrs. Otter, porém, tranquilizou-o.

 

-- Não, aqui não existem essas coisas. Como vê, metade dos nossos estudantes é formada por mulheres e elas dão o tom ao ambiente.

 

O estúdio era amplo e desimpedido, com paredes cinzentas, onde se achavam fixados os trabalhos premiados. Uma mulher servia de modelo, sentada numa cadeira. Cobria-lhe o corpo uma simples capa de pano e cerca de doze homens e mulheres, dispostos em redor, conversavam ou trabalhavam nos seus desenhos. Era o primeiro descanso do modelo.

 

-- _é melhor não tentar coisa muito difícil a princípio -- aconselhou Mrs. Otter. -- Ponha o cavalete neste lugar. Vista daqui, a pose é a mais fácil.

 

Philip armou o cavalete no ponto indicado e Mrs. Otter apresentou-o a uma rapariga que estava sentada a seu lado.

 

-- Mr. Carey, miss Price. É a primeira vez que Mr. Carey estuda: portanto, não se negue a atendê-lo, caso venha a necessitar de algum auxílio.

 

Voltou-se então para o modelo.

 

-- *_La pose*!

 

A mulher atirou para o lado o jornal que estivera a ler, *_La Petite République*, e, despindo a capa com ar aborrecido, subiu para o tablado. Firmou-se em ambos os pés e cruzou as mãos por trás da cabeça.

 

-- Que pose estúpida! --  comentou miss Price. -- Não sei por que motivo a escolheram.

 

Quando Philip entrou, todos o tinham olhado, com curiosidade, excepto o modelo, que o fitara com indiferença; agora, porém, ninguém lhe prestava atenção. Com a sua bela folha de papel na frente, Philip olhava embaraçado para o modelo. Não sabia por onde começar. Nunca na sua vida vira uma mulher nua. Aquela já não era nova e tinha os seios murchos. Os cabelos, :, de um louro descorado, caíam-lhe em desalinho para a testa e o rosto estava coberto de grandes sardas. Philip lançou uma olhadela ao trabalho de miss Price. Desenhava aquela pose havia apenas dois dias e parecia encontrar muitas dificuldades. O papel, à força de ter sido limpo, achava-se em mísero estado e, aos olhos de Philip, a figura parecia singularmente deformada.

 

-- Iria afirmar que sou capaz de fazer tão bem como aqueles -- disse Philip para consigo.

 

Principiou pela cabeça, com a intenção de descer gradativamente. Não sabia porquê, era-lhe muito mais fácil traçar uma cabeça imaginária do que reproduzir a de um modelo. As dificuldades aumentaram. Olhou para miss Price, que trabalhava com veemente seriedade. Tinha a testa enrugada pelo esforço e o olhar ansioso. Fazia calor no estúdio e o suor brotava-lhe na fronte. Era uma rapariga de vinte e seis anos, com bonitos cabelos de um ouro baço. Não lhes dispensava, porém, cuidado algum, pois limitara-se a puxá-los para trás e prendê-los apressadamente num rolo. O rosto era grande, largo e sem relevo, e os olhos pequeninos; tinha a pele pastosa, de aspecto doentio, e as faces descoradas. Dava a impressão de que nunca tomava banho, levando mesmo a suspeitar de que não se despia para dormir. Conservava-se sempre séria e em silêncio. No segundo intervalo levantou-se e deu dois passos à retaguarda para contemplar o trabalho.

 

-- Não sei porquê, encontro tanta dificuldade -- disse ela. -- Mas hei-de fazê-lo, seja como for.

 

Voltando-se para Philip, perguntou:

 

-- Então, como está a sair-se?

 

-- Mal -- respondeu Philip, com um sorriso lastimoso.

 

Ela lançou um olhar ao que ele estava a fazer.

-- Assim, não conseguirá fazer coisa alguma. É preciso tomar medidas e, tem de esquadriar o papel.

 

Mostrou-lhe rapidamente como iniciar o trabalho. Philip sentia-se impressionado pela seriedade da rapariga, mas desagradava-lhe a sua absoluta falta de encanto. Agradeceu as indicações recebidas e pôs-se novamente a desenhar. Entretanto, chegaram outros alunos, na maioria homens, pois as mulheres chegavam sempre primeiro; o estúdio achava-se relativamente cheio, para a época do ano (era ainda cedo). Entrou mais um rapaz de cabelos finos e pretos, com um enorme nariz e o rosto tão comprido que lembrava um cavalo. Sentou-se ao lado de Philip, e, pela frente dele cumprimentou miss Price.

 

-- Estás bastante atrasado. Acordaste agora? -- perguntou ela.

 

-- O dia estava tão admirável que resolvi ficar na cama a imaginar como estaria bonito lá fora.

 

Philip sorriu, mas miss Price levou a sério a explicação. :,

 

-- Que esquisito fazer isso, eu teria achado melhor levantar-me e gozá-lo.

 

-- Como é difícil ser humorista! -- disse o jovem com gravidade.

 

Não parecia disposto a trabalhar. Olhou para a tela; estava a pintar a cores e esboçara, no dia anterior, o modelo que estava a posar. Voltando-se para Philip.

 

-- Veio agora da Inglaterra?

 

-- Sim.

 

-- Como veio parar ao estúdio do Amitrano?

 

-- Era o único de que ouvira falar.

 

-- Espero que não venha na ilusão de aprender aqui alguma coisa que tenha o mínimo préstimo para si.

 

-- É a melhor escola de Paris -- observou miss Price. -- É a única onde a arte é levada a sério.

 

-- Achas que a arte deve ser levada a sério? -- perguntou o rapaz.

E como Miss Price respondesse apenas encolhendo desdenhosamente os ombros, acrescentou:

 

-- O facto é que todas as escolas são más. São académicas, já se sabe. E se esta é menos prejudicial do que as outras, é porque o ensino aqui é mais improfícuo do que em qualquer outra parte. Não se aprende nada...

 

-- Para que vem aqui, nesse caso? -- interrompeu Philip.

 

-- Conheço o melhor caminho, mas não o sigo. Mis Price, que é culta, há-de lembrar-se de como se diz isto em latim.

 

-- Prefiro não ser incluída na sua conversa, Mr. Clutton --  observou Miss Price bruscamente.

 

-- A única maneira de se aprender a pintar -- continuou ele, imperturbável -- é arranjar um *atelier*, alugar um modelo e andar para a frente, sem auxílio de ninguém.

 

-- Parece muito simples -- disse Philip.

 

-- Requer apenas dinheiro -- replicou Clutton.

 

Começou a pintar, enquanto Philip o olhava de soslaio. Era comprido e incrivelmente magro. Os seus enormes ossos parecia quererem saltar-lhe do corpo; os cotovelos, de tão pontiagudos, quase furavam as mangas do velho casaco. As calças já estavam puídas nas bainhas e ambos os sapatos mostravam feios remendos. Miss Price levantou-se e caminhou em direcção ao cavalete de Philip.

 

-- Se Mr. Clutton calar a boca por um instante, ajudá-lo-ei um pouco.

 

-- Miss Price não gosta de mim porque tenho humor -- disse Clutton, contemplando com ar meditativo a própria tela. -- Detesta-me porque sabe que tenho génio.

 

Falava solenemente e o seu nariz disforme tornava bastante :,

estranho o que dizia. Philip foi obrigado a rir, mas Miss Price fez-se vermelha de raiva.

 

-- És a única pessoa convencida de que tens génio.

-- E sou também a única pessoa cuja opinião tem valor para mim.

Miss Price principiou a criticar o trabalho de Philip. Falou fluentemente a respeito de anatomia e estrutura, planos e linhas, e várias outras coisas que o rapaz não compreendia. Frequentava o estúdio havia muito tempo, e conhecia bem os pontos sobre os quais os mestres mais insistiam, mas, embora apontasse os erros cometidos por Philip, não sabia dizer-lhe como corrigi-los.

 

-- É muita bondade sua incomodar-se tanto comigo -- disse Philip.

 

-- Oh, não é nada de mais -- respondeu ela, corando embaraçada. -- Fizeram assim comigo, quando vim para cá; portanto, é natural que também faça o mesmo com os outros.

 

-- Miss Price quer dizer que lhe oferece as vantagens da sua sapiência por um sentimento de obrigação e não em virtude de qualquer encanto que possa ter a sua pessoa -- esclareceu Clutton.

 

Miss Price lançou-lhe um olhar furioso e voltou a desenhar. O relógio bateu doze horas e o modelo, com um suspiro de alívio, desceu do estrado.

 

Miss Price reuniu os seus apetrechos.

 

-- Muitos daqui vão ao Gravier almoçar -- disse a Philip, olhando para Clutton. -- Eu almoço sempre em casa.

 

-- Se quiser, levo-o ao Gravier -- ofereceu Clutton.

 

Philip agradeceu e preparou-se para sair. Quando saíram, Mrs. Otter perguntou-lhe que tal se achara.

 

-- Fanny Price auxiliou-o? Coloquei-o a seu lado porque ajuda sempre os outros, quando está disposta. É muito mal-humorada, e não sabe desenhar coisa alguma; mas percebe do assunto e sabe ser útil aos recém-chegados, quando quer dar-se a esse trabalho.

 

Enquanto caminhava pela rua, Clutton disse-lhe:

 

-- Você causou impressão a Fanny Price. É melhor acautelar-se.

Philip riu. Nunca encontrara criatura a quem menos quisesse impressionar. Ao chegar ao restaurante barato onde a maioria dos estudantes tomava as refeições, Clutton sentou-se numa mesa onde já havia três ou quatro homens. Mandaram vir um ovo para cada um, um prato de carne, queijo e uma pequena garrafa de vinho --tudo por um franco. O café era considerado extra. A mesa ficava no passeio e os "eléctricos" amarelos passavam para cima e para baixo, num soar incessante de campainhas.

 

-- Afinal como se chama? -- perguntou Clutton, logo depois de se sentarem. :,

 

-- Carey.

 

-- Permitam-me que lhes apresente Carey, um velho e leal amigo --disse Clutton, gravemente. -- Mr. Flanagan e Mr. Lawson.

 

O rapazes riram e prosseguiram a conversa. Conversavam a respeito de mil coisas e falavam todos ao mesmo tempo. Nenhum deles prestava a menor atenção ao que os outros diziam. Falaram dos lugares visitados no Verão, dos estúdios, das várias escolas. Mencionavam nomes desconhecidos para Philip; Monet, Manet, Renoir, Pizarro, Degas. Philip era todo ouvidos, e, embora se sentisse um pouco deslocado, o seu coração palpitava de alegria. O tempo voou. Ao levantar-se, Clutton disse:

 

-- Poderá encontrar-me aqui esta noite, se quiser vir. Verá que este é o melhor lugar para arranjar dispepsia pelo menor preço, em todo o Bairro.

 

Philip descia o *_boulevard de Montparnasse*. Não se assemelhava de modo algum ao Paris que admirara na Primavera, quando viera tratar da escrita do Hotel St. George -- sentia calafrios ao recordar aquela fase da sua vida. Trazia-lhe à mente uma cidade provinciana, segundo a ideia que delas fazia. Havia ali um ar de negligência e uma amplidão ensolarada que convidava o espírito a devanear. O alinho das árvores, a vívida brancura das casas, a vastidão dos espaços, tudo o encantava. Sentia-se perfeitamente à vontade. Continuava o seu caminho, observando os transeuntes; julgava ver certa elegância até nos simples operários de amplas cintas vermelhas e calças largas e nos soldadinhos de uniforme pardo e encantador. Chegou à Avenida do Observatório e soltou um suspiro de prazer ante aquele espectáculo tão magnificente e tão gracioso ao mesmo tempo. Penetrou, pouco depois, no Jardim do Luxemburgo; as crianças brincavam; as amas, com as suas longas fitas, passeavam devagar aos pares, homens atarefados cruzavam-se de um lado para o outro, com pastas debaixo do braço, e passavam rapazes vestidos de modo esquisito. Era um quadro de linhas harmoniosas; a natureza fora arranjada e posta em ordem, mas de forma tão primorosa que a natureza sem arranjo nem ordem parecia bárbara. Philip estava encantado. Impressionava-o o facto de se encontrar no local acerca do qual lera tantas coisas; para ele, era solo clássico. Experimentava o prazer respeitoso de algum velho professor de grego que contemplasse pela primeira vez as sorridentes planícies de Esparta.

 

Enquanto deambulava assim, avistou por acaso Miss Price, sentada num banco. Hesitou um momento, pois não desejava falar com ninguém e os modos rudes da rapariga pareciam deslocados no meio da alegria que o circundava. Adivinhara, porém, :,

ser ela muito sensível às afrontas, e, uma vez que o vira, seria um dever de polidez falar-lhe.

 

-- Que faz por aqui? -- perguntou ela, ao vê-lo aproximar-se.

 

-- Espaireço. E você?

 

-- Venho cá todos os dias, das quatro às cinco. Não acho que seja aconselhável trabalhar sem descanso.

 

-- Posso sentar-me um minuto? -- interrogou ele.

 

-- Se quiser.

 

-- A resposta não me parece muito cordial -- observou Philip,

rindo.

 

-- Não tenho muito jeito para dizer coisas bonitas.

 

O rapaz calou-se, meio desconcertado, e acendeu um cigarro.

 

-- Clutton disse-lhe alguma coisa a respeito do meu trabalho? -- perguntou ela, de repente.

 

-- Não, parece-me que não -- respondeu Philip.

 

-- Ele não presta, sabe? Considera-se um génio, mas não é. Em primeiro lugar, é preguiçoso. O génio é uma capacidade infinita para o trabalho. Sem persistência, nada se consegue. Quando nos resolvemos de facto a fazer alguma coisa, é impossível deixar de obter o triunfo.

 

Falava apaixonadamente, com uma ênfase que impressionava. Usava um chapéu de marinheiro, de palha preta, uma blusa branca que não se podia considerar limpa e uma saia castanha. Não calçava luvas e as mãos não tinham sido lavadas. Era tão pouco atraente que Philip lamentou ter-se sentado a seu lado. Não sabia se ela desejava que ele ficasse ou que se fosse embora.

 

-- Farei por você tudo quanto puder -- disse Miss Price de repente, sem qualquer relação com o assunto anterior. -- Sei muito bem que, a princípio, as dificuldades são enormes.

 

-- Muito obrigado -- disse Philip, acrescentando pouco depois: -- Não quer tomar chá comigo em qualquer parte?

 

Ela olhou-o vivamente e corou. Sempre que corava, a sua tez pastosa adquiria um aspecto curiosamente salpicado, como um prato de morangos com creme que se tivesse deteriorado.

 

-- Não, obrigada. Por que acha que eu preciso de chá? Acabei agora mesmo de almoçar.

 

-- Julguei que isso nos ajudaria a passar o tempo -- respondeu Philip.

 

-- Se o tempo lhe parece arrastar-se, não precisa de preocupar-se comigo. Não me importo de ficar sozinha.

 

Nesse instante, passaram dois homens, trajando blusas de veludo pardo, enormes calças, e boinas bascas. Eram jovens, mas ambos usavam barba.

 

-- São estudantes de belas-artes? -- indagou Philip. -- Parece que saíram da *_Vie de Bohème*.

 

-- São americanos -- esclareceu Miss Price, desdenhosamente. -- Os franceses já não usam essas coisas há trinta anos, mas os americanos do Far West compram esses fatos e fotografam-se no dia seguinte ao da sua chegada a Paris. É a única maneira de participarem da arte. Mas pouco se incomodam, não lhes falta o dinheiro.

 

Philip apreciou o ar pitoresco e atrevido dos americanos, achando que isso revelava um espírito romântico. Miss Price perguntou-lhe as horas.

 

-- Preciso de ir para o estúdio -- disse ela. -- Vai às aulas de desenho?

 

Philip nunca ouvira falar em tal coisa. Miss Price explicou, então, que um modelo posava diariamente, das cinco às seis, para todos que o quisessem desenhar, mediante a remuneração de cinquenta cêntimos. Era excelente para praticar, pois cada dia posava um modelo diferente.

 

-- Não me parece que esteja em condições de fazer isso. Terá de esperar um pouco.

 

--Não vejo razão que me impeça de experimentar. Não tenho mais nada que fazer.

 

Levantaram-se e puseram-se a caminho do estúdio. Philip ignorava se Miss Price preferia andar só ou na sua companhia. Permanecia junto dela por puro embaraço, pois não sabia como deixá-la. Ela não falava, limitando-se a responder-lhe às perguntas de maneira pouco polida.

 

Um homem, à porta do estúdio, com um grande prato na mão, recebia o meio franco de cada pessoa que entrava. A frequência era muito maior do que de manhã, não havendo aquela preponderância de ingleses e americanos nem mulheres em tão grande proporção. Philip achou que essa reunião correspondia mais à sua expectativa. Fazia bastante calor e o ar em pouco tempo se tornou irrespirável. Quem posava, dessa vez, era um velho de longas barbas brancas. Philip tentou pôr em prática os escassos conhecimentos adquiridos pela manhã, mas em vão; concluiu, por fim, não saber desenhar tão bem como imaginava. Olhava invejosamente para os esboços dos vizinhos e punha-se a imaginar quando seria capaz de manejar o carvão com aquela maestria. A hora passou-se rapidamente. Não querendo importunar Miss Price, sentara-se a certa distância, mas, no final, quando passou perto dela para se ir embora, a jovem perguntou-lhe, em tom brusco, como se saíra.

 

-- Não muito bem -- respondeu com um sorriso.

 

-- Se tivesse condescendido em sentar-se a meu lado, ter-lhe-ia dado alguns conselhos. Sem dúvida, considera-se uma sumidade.

 

-- Não, não foi isso. É que temia importuná-la.

 

-- Quando for assim, dir-lho-ei sem rodeios. :,

 

Philip pressentia, através das suas maneiras intratáveis, que ela lhe oferecia auxílio.

 

-- Bem, amanhã não a largarei um só instante.

 

-- Não faz mal -- respondeu ela.

 

O rapaz saiu a imaginar o que faria até a hora do jantar. Estava ansioso por fazer alguma coisa que fosse característica. *_Absinthe*! Era o mais indicado, não havia dúvida, e, assim, caminhando em direcção à gare, sentou-se em frente de um café e fez o seu pedido. Bebeu com náusea e satisfação. O gosto era desagradável, mas o efeito moral foi magnífico. Sentia-se da cabeça aos pés um estudante de belas-artes e, como tinha o estômago vazio, logo se sentiu alegre. Olhava para a multidão e achava que todos os homens eram seus irmãos. Estava feliz. Quando chegou ao Gravier, não havia lugar na mesa de Clutton, mas este, assim que avistou Philip, a coxear, chamou-o pelo nome. Arranjaram-lhe um lugar. O jantar foi frugal -- um prato de sopa, carne, fruta, queijo, meia garrafa de vinho -- mas Philip não prestou atenção ao que comeu. Apenas se preocupava com as pessoas sentadas à mesa. Flanagan estava novamente ali: era americano, um rapaz baixo, de nariz arrebitado, rosto jovial e boca sorridente. Usava um casaco de desporto, de padrão vivo, um lenço azul em volta do pescoço e um boné de forma fantástica.  Nessa época, o impressionismo reinava no Bairro Latino, mas a sua vitória sobre as outras escolas era ainda facto recente; e Carolus-_Duran, Bouguereau e outros que tais eram lançados contra Manet, Monet e Degas. Apreciar estes últimos ainda era um sinal de elegância. Era grande a influência de Whistler sobre os ingleses, e os seus compatriotas, e os entendidos coleccionavam gravuras japonesas. Os velhos mestres eram julgados de acordo com os novos moldes. A estima em que Rafael fora tido durante séculos era agora motivo de mofa para os jovens ilustrados. Trocariam todas as suas obras, diziam eles, pela cabeça de Filipe __IV, de Velasquez, da National Gallery. Philip encontrou-os empenhados em acalorada discussão. Lawson, a quem fora apresentado ao almoço, estava sentado na sua frente. Era um rapaz magro, de rosto sardento e cabelos ruivos. Tinha olhos verdes e brilhantes. Quando Philip se sentou, Lawson fixou o olhar nele e observou de repente:

 

-- Rafael só era tolerável quando pintava os quadros dos outros. Quando pintava Peruginos ou Pinturicchios, era encantador; quando pintava Rafaéis -- encolheu os ombros com desprezo -- era simplesmente "_Rafael".

 

Lawson falava com tal agressividade que Philip ficou surpreso, mas não foi preciso responder, porque Flanagan os interrompeu com impaciência:

 

-- Ora, a arte que vá para o inferno! Vamos encharcar-nos de *gin*. :,

 

-- Bebeste muito *gin* a noite passada, Flanagan -- advertiu Lawson.

 

-- Mas hoje quero beber ainda mais -- respondeu ele. -- Imagina a gente morar em Paris e não pensar senão na arte. -- Falava com um forte sotaque do Oeste. -- _ó Céus, a vida é uma delícia!

 

Recompôs-se e, depois, bateu com o punho na mesa.

 

-- Para o inferno com a arte, digo eu.

 

-- Não só o dizes como o repetes de modo maçador -- censurou Clutton.

 

Havia outro americano à mesa. Estava vestido como aqueles magníficos sujeitos que Philip vira passar pelo Luxemburgo à tarde. Tinha um belo rosto, fino, ascético, de olhos escuros; envergava o seu trajo extravagante com o ar atrevido de um corsário. Os cabelos, pretos e em basta quantidade, caíam-lhe amiúde para os olhos e o seu gesto mais frequente era atirar dramaticamente a cabeça para trás, a fim de afastar a mecha caída. Começou a falar sobre a *_Olympia* de Manet, então exposta no Luxemburgo.

 

-- Hoje fiquei uma hora diante dela, e garanto que não é um bom quadro.

 

Lawson pousou a faca e o garfo. Os seus olhos verdes flamejavam. Arfava de raiva, mas era visível que procurava dominar-se.

 

-- _é muito interessante conhecer-se o pensamento do selvagem inculto -- disse ele. -- Queres dizer-nos por que não é um bom quadro?

 

Antes que o americano respondesse alguém se interpôs com veemência:

 

-- Quererás dizer que não soubeste ver a pintura daquela carne, dizes que não é boa?

 

-- Não disse isso. Acho que o seio direito está muito bem pintado.

 

-- Vá para o diabo o seio direito! -- gritou Lawson. -- O quadro todo é um milagre de pintura.

 

Começou a descrever, em pormenor, as belezas da obra, mas, naquela mesa do Gravier, quando alguém falava, falava para sua própria edificação. Ninguém o escutava. O americano interrompeu-o, exaltado:

 

-- Não me venhas dizer que achaste a cabeça boa.

 

Lawson, já branco de raiva, iniciou, então, a defesa da cabeça, mas Clutton, que se conservava calado, lendo-se-lhe no rosto um certo desprezo bem-humorado, interveio:

 

-- Dá-lhe a cabeça. Não queremos a cabeça. Ela não afecta o quadro.

 

-- Vá lá, dar-te-ei a cabeça -- exclamou Lawson. -- Fica com a cabeça e não nos aborreças mais.

 

-- E o traço preto? -- continuou o americano, lançando triunfalmente para trás uma mecha de cabelo que quase lhe caía dentro da sopa. -- Os objectos, ao natural, não têm um contorno preto.

 

-- Oh! Deus! Manda fogo do céu para consumir o blasfemo!  -- disse Lawson. -- Que tem a natureza a ver com isso? Ninguém sabe quando uma coisa está ou não de acordo com a natureza. O mundo vê a natureza através dos olhos do artista. Durante séculos inteiros viu cavalos saltar cercas com as pernas estendidas e aceitou-o como facto incontestável. Viu as sombras pretas, até Manet as descobrir coloridas. Se resolvemos circundar os objectos com uma linha preta, o mundo verá a linha preta e haverá a linha preta. Se pintarmos a erva de vermelho e as vacas de azul, o mundo os verá vermelhos e azuis e serão de facto vermelhos e azuis.

 

-- Para o diabo a arte -- murmurou Flanagan. -- Quero encharcar-me de *gin*.

 

Lawson não tomou conhecimento da interrupção.

 

-- Agora, escuta. Quando a *_Olympia* foi exposta no *_Salon*, Zola, entre os apupos dos filisteus e os assobios dos *pompiers*, dos académicos e do público, Zola disse: "_Antevejo o dia em que o quadro de Manet figurará no Louvre na frente da *_odalisca*, de Ingres, e não será a *_Odalisca* que ganhará na comparação." A *_Olympia* acabará no Louvre. Esse dia está cada vez mais próximo. Dentro de dez anos, estará no Louvre.

 

-- Nunca! -- gritou o americano, utilizando, agora, ambas as mãos numa súbita e desesperada tentativa para desenvencilhar-se de uma vez do cabelo que lhe caía para os olhos. -- Daqui a dez anos, o quadro terá morrido. É coisa momentânea, uma moda passageira. Nenhum quadro poderá viver se não possuir algo que falta absolutamente a essa tela.

 

-- Que significa esse "algo"?

 

-- A grande arte não pode existir sem um elemento moral.

 

-- Oh! Senhor! -- exclamou Lawson, furioso. -- Eu bem sabia que era isso... Ele quer moralidade!

 

Elevou para o céu as mãos postas, em sinal de súplica, e perguntou:

-- Oh! Cristóvão Colombo! Que fizeste, Cristóvão Colombo, ao descobrires a América?

 

-- Ruskin diz...

 

Antes, porém, que Philip tivesse tempo de acrescentar a palavra seguinte, Clutton bateu imperiosamente com o cabo da faca na mesa.

 

-- Cavalheiros -- começou ele em tom severo, enquanto o seu enorme nariz se enrugava de ira -- mencionou-se neste instante um nome que eu não esperava tornar a ouvir na boca de pessoas :,

decentes. É justo que exista liberdade de palavra, mas devemos observar os limites de decoro comum. Falem de Bouguereau, se quiserem: provoca o riso a alegre repulsa que o nome inspira; mas não contaminemos os nossos lábios puros, pronunciando nomes como J. Ruskin, G. F. Watts ou E. B. Jones.

 

-- Quem foi Ruskin, afinal? -- indagou Flanagan.

 

-- Foi um dos Grandes Vitorianos. Um mestre do estilo inglês.

 

-- O estilo de Ruskin: uma manta de farrapos e remendos roxos --disse Lawson. -- Além disso, que vão para o diabo os Grandes Vitorianos. Sempre que leio no jornal a notícia da morte de um Grande Vitoriano, agradeço a Deus o ter acabado com mais um deles. O seu único talento foi a longevidade. Nenhum artista devia viver depois dos quarenta anos; nessa idade, o homem produziu o melhor e o que se segue é apenas repetição. Não achas que a morte prematura de Keats, Shelley, Bonnington e Byron foi uma grande sorte para eles? Que génio não consideraríamos Swinburne, se tivesse perecido no dia em que se publicou a primeira série dos *_Poemas e Baladas*!

 

A ideia agradou, pois nenhum dos presentes ultrapassara os vinte e quatro anos. Pela primeira vez, mostravam-se unânimes. E desenvolveram o tema. Um deles propôs uma fogueira festiva das obras dos Quarenta Académicos, à qual os Grandes Vitorianos seriam também atirados, após o seu quadragésimo aniversário. A proposta foi recebida entre aclamações. Carlyle e Ruskin, Tennyson, Browning, G. F. Watts, E. B. Jones, Dickens, Thackeray, foram arremessados às chamas. Seguiram-se Gladstone, John Bright e Cobden; houve um minuto de discussão a respeito de George Meredith, mas Matthew Arnold e Emerson foram abandonados de bom grado. Chegou por fim a vez de Walter Pater.

 

-- Walter Pater, não -- murmurou Philip.

 

Lawson fitou nele os olhos verdes e aquiesceu com a cabeça.

 

-- Tens razão. Walter Pater é a única justificação para a *_Mona Lisa*. Conheces Cronshaw? Ele dava-se com Pater.

 

-- Quem é Cronshaw? -- perguntou Philip.

 

-- Cronshaw é um poeta. Vive aqui em Paris. Vamos ao *_Lilas*.

 

*_La Closerie des Lilas* era um café ao qual costumavam ir com frequência, de noite, após o jantar, e onde Cronshaw era invariavelmente encontrado das nove da noite às duas da manhã. Flanagan, porém, já estava farto de conversas intelectuais e por isso, ao ouvir a sugestão de Lawson, voltou-se para Philip:

 

-- Oh, demónio, procuremos um lugar onde haja raparigas. Vem comigo ao *_Gaité Montparnasse* e mergulhemos no *gin*.

 

-- Prefiro não beber e ir ao encontro de Cronshaw -- respondeu Philip, rindo. :,

 

Houve um desacordo geral. Flanagan e mais dois ou três foram às variedades, enquanto Philip, Clutton e Lawson se puseram lentamente a caminho da *_Closerie des Lilas*.

 

-- Precisas de ir ao *_Gaité Montparnasse* -- disse Lawson a Philip.

-- É uma das coisas mais adoráveis de Paris. Vou pintá-lo um dia destes.

 

Influenciado por Hayward, Philip votava grande desprezo aos teatros de variedades mas chegara a Paris numa época em que as possibilidades artísticas desses estabelecimentos acabavam de ser descobertas. Os pormenores da iluminação, as massas vermelho-escuras ou cor de ouro sujo, a densidade das sombras e as linhas decorativas ofereciam um tema inteiramente novo. Metade dos estúdios do Bairro Latino continham esboços executados num ou noutro dos teatros locais. Homens de letras, seguindo o rasto dos pintores, puseram-se repentinamente, de comum acordo, a procurar valor artístico nos números de variedades. Comediantes de nariz vermelho eram elevados aos cornos da Lua pelo seu senso de caracterização; obesas cantoras, que berravam na obscuridade havia mais de vinte anos, adquiriam, de um momento para o outro, inimitável chocarrice; outros descobriam um prazer estético nas representações caninas, havendo finalmente os que esgotavam todo o seu vocabulário para exaltar a distinção dos prestidigitadores e ciclistas-acrobatas. A multidão, por sua vez, através de outras influências, tornou-se objecto de simpático interesse. Philip aprendera com Hayward a desdenhar as massas humanas; adoptara a atitude de alguém que se envolvesse em solidão e observasse, com repugnância, as palhaçadas do vulgo. Mas Clutton e Lawson falavam da multidão com entusiasmo. Descreviam a fervilhante onda de povo que enchia as diversas feiras de Paris, o mar de rostos entrevistos ao clarão do acetilene, meio ocultos na escuridão, o clangor de trombetas, o alarido de apitos, o zunzum de vozes. Tudo isso era novo e estranho para Philip. Falaram-lhe, depois, a respeito de Cronshaw.

 

-- Já leste alguma coisa dele?

 

-- _não -- respondeu Philip.

 

-- Aparecem no *_Yelow Book*.

 

Como é frequente de pintores para escritores, olhavam-no com desprezo por se tratar de um leigo, com tolerância porque praticava uma arte e com respeito porque ele se utilizava de um instrumento cujo manejo lhes era desconhecido.

 

E um tipo extraordinário. A princípio vai desiludir-te um pouco. Ele só se torna notável depois de bêbedo.

 

-- O que aborrece -- acrescentou Clutton -- é que leva um tempo enorme para se embebedar.

 

Quando chegaram ao café, Lawson disse a Philip que teriam de entrar. Quase não fazia frio, mas Cronshaw tinha pelas correntes de ar um temor mórbido e, mesmo quando fazia o maior calor, sentava-se sempre na parte de dentro.

 

-- Conhece quem quer que valha a pena ser conhecido -- disse Lawson. -- Conheceu Pater e Oscar Wilde, e conhece Mallarmé e todos os outros tipos.

 

O objecto da sua busca achava-se sentado no canto mais abrigado do café, com a gola do casacão levantada. Usava chapéu enterrado até ao meio da testa para se proteger contra o frio. Era um homenzarrão, corpulento mas não obeso, de rosto redondo, com um pequeno bigode, olhos diminutos e de certo modo estúpidos. A cabeça não parecia bastante grande para o corpo. Dava a impressão de uma ervilha mal equilibrada sobre um ovo. Estava a jogar ao dominó com um francês, e sorriu para os recém-chegados numa saudação silenciosa. Sem dizer nada empurrou, como para lhes dar lugar, a pequena pilha de pires correspondentes ao número de copos que já consumira. Ao ser apresentado a Philip, inclinou a cabeça e continuou a jogar. O conhecimento da língua, por parte de Philip, era insignificante, mas sabia o suficiente para verificar que Cronshaw, embora residisse em Paris havia anos, falava execravelmente o francês.

 

Reclinou-se na cadeira, afinal, com um sorriso de triunfo.

 

-- *_Je vous ai battu* -- disse com pronúncia abominável.

 

Chamou o criado e voltou-se para Philip.

 

-- Chegou agora da Inglaterra ? Assistiu a partidas de *cricket*?

 

Philip sentiu-se meio embaraçado ante essa pergunta inesperada.

 

-- Cronshaw conhece os recordes de todos os grandes jogadores de *cricket* dos últimos vinte anos -- disse Lawson, sorrindo.

 

O francês deixou-os, para reunir-se a outros amigos, numa mesa fronteira, e Cronshaw, com aquela dicção indolente que era uma das suas características, pôs-se a discorrer sobre os méritos relativos de Kent e Lancashire. Falou sobre a última partida a que assistira e descreveu-a lance por lance.

 

-- É a única coisa de que sinto falta em Paris -- lamentou, ao terminar o *bock* que acabara de lhe ser trazido. -- Aqui não se tem *cricket*.

 

Philip sofrera uma decepção, e Lawson, justificadamente ansioso por mostrar uma das celebridades do Bairro Latino, ficou impaciente. Cronshaw, naquela noite, custava a despertar, embora os pires a seu lado indicassem que pelo menos fizera uma honesta tentativa para se embebedar. Clutton observava a cena com ar divertido. Julgava descobrir certa afectação nos minuciosos conhecimentos de Cronshaw a respeito do *cricket*; gostava de torturar as pessoas com assuntos que as enfastiavam visivelmente. _clutton aventurou uma pergunta.

 

-- Tens visto ultimamente Mallarmé?

 

Cronshaw fitou-o demoradamente, como a revolver a pergunta no espírito, e, antes de responder, bateu com um dos pires sobre a mesa de mármore.

 

-- Traz a minha garrafa de *whisky* -- gritou.

 

Voltou-se de novo para Philip.

 

-- Tenho a minha garrafa de *whisky*. Saía muito dispendioso pagar cinquenta cêntimos por cada gole.

 

O criado trouxe a garrafa e Cronshaw ergueu-a de encontro à luz.

 

-- Andaram a beber nela. *_Garçon*, quem se serviu do meu *whisky*?

 

-- *_Mais, personne, Monsieur Cronshaw*!

 

-- Marquei o nível ontem à noite e agora vê onde já está.

 

-- Mas o senhor ainda continuou a beber depois disso. Dessa forma, o senhor perde tempo em marcar o *whisky*.

 

O criado, um sujeito jovial, conhecia Cronshaw intimamente. Cronshaw olhou fito para ele.

 

-- Se me deres a palavra de honra, como nobre e como cavalheiro, de que ninguém, além de mim, bebeu o meu *whisky*, aceito a explicação.

 

Traduzida literalmente, num francês dos mais toscos, essa observação tinha tanta graça que a senhora do *comptoir* não pôde deixar de rir.

 

-- *_Il est impayable* -- murmurou.

 

Ouvindo-a, Cronshaw volveu-lhe um olhar modorrento -- era madura, corpulenta e matrona -- e solenemente atirou-lhe um beijo. Ela sacudiu os ombros.

 

-- Nada tema, minha senhora -- disse ele em tom poderoso. -- Já passei da idade em que se é tentado pela gratidão e pelas mulheres de quarenta e cinco anos.

 

_serviu-se de *whisky* com água, sorveu-o vagarosamente. Limpou os lábios com as costas da mão.

 

-- Falou muito bem.

 

Lawson e Clutton sabiam que essa observação de Cronshaw era a resposta à pergunta sobre Mallarmé. Costumava frequentar as reuniões das noites de terça-feira, quando o poeta recebia homens de letras e pintores e discorria, com oratória subtil, sobre qualquer assunto que lhe fosse sugerido. Via-se que Cronshaw estivera lá recentemente.

 

-- Falou muito bem, mas disse absurdos. Discorreu sobre a arte como se fosse o que de mais importante existe no mundo.

 

-- Se assim não é, que estamos a fazer aqui? -- indagou Philip.

 

-- O que o senhor veio aqui fazer, ignoro-o. Isso não é da :,

minha conta. Mas a arte é um luxo. _os homens só dão importância à conservação própria e à propagação da espécie. Só depois de satisfeitos esses instintos é que consentem em entreter-se com o que lhes oferecem os escritores, pintores e poetas.

 

Cronshaw fez uma pausa, para beber. _havia vinte anos, procurava descobrir se gostava de bebida porque o fazia falar, ou se gostava de falar porque isso lhe provocava sede.

 

Depois disse:

 

-- Escrevi ontem um poema.

 

Sem que lho pedissem, começou a recitá-lo lentamente, marcando o ritmo com o indicador levantado. Devia ser um lindo poema, mas aconteceu que naquele mesmo instante entrou uma rapariga. Tinha os lábios escarlates e via-se logo que a cor viva das suas faces não era natural; enegrecera os cílios e sobrancelhas e pintara ambas as pálpebras de um atrevido azul que se prolongava em triângulo aos cantos dos olhos. Era cómico e fantástico. A cabeleira escura estava penteada para cima das orelhas, em obediência à moda popularizada por _cléo de Merode. O olhar de Philip desviou-se logo para ela e Cronshaw, terminada a recitação dos versos, sorriu indulgentemente.

 

-- O senhor não me prestou atenção -- disse.

 

-- Prestei, sim!

 

-- Não o censuro, pois ilustrou muito bem a afirmação que acabo de fazer. Que é a arte ao lado do amor? Respeito e aplaudo a sua indiferença pela poesia quando contempla os encantos prostituídos dessa jovem criatura.

 

Ela passou junto da mesa a que estavam sentados e Cronshaw tomou-lhe o braço.

 

-- Vem sentar-te ao meu lado, minha filha, e representemos a divina comédia do amor.

 

-- *_Fichez-moi la paix* -- exclamou ela. E, afastando-o com um empurrão, continuou a andar.

 

-- A arte -- continuou Cronshaw, abanando a mão --

é simplesmente um refúgio que os engenhosos inventaram, quando não lhes faltavam o alimento e a mulher, para fugirem ao tédio da vida.

 

Cronshaw encheu outra vez o copo e começou a falar ininterruptamente. As palavras, escolhidas com cuidado, saíam com uma pronúncia clara e cheia. Misturava sabedoria com tolice, da maneira mais espantosa. Ora zombava dos ouvintes em tom grave, ora lhes dava, a gracejar, excelentes conselhos. Atacou temas de arte, de literatura e da vida. Era, alternadamente, devoto e obsceno, alegre e lacrimoso. Depois de bem embriagado, pôs-se a recitar poesia -- sua e de Milton, sua e de Shelley, sua e de Marlowe.

 

Exausto, por fim, Lawson levantou-se para ir para casa.

 

-- Vou também -- disse Philip. :,

 

Clutton, o mais calado de todos, continuou a ouvir, com um sorriso sarcástico nos lábios, os resmungos de Cronshaw. Lawson acompanhou Philip ao hotel e desejou-lhe boa-noite. Mas quando foi para a cama, Philip não pôde dormir. Todas aquelas ideias novas, tão negligentemente expostas, fervilhavam-lhe no cérebro. Dominava-o tremenda excitação. Sentia no seu íntimo uma grande força. Nunca tivera tanta confiança em si próprio.

 

-- Estou certo de que ainda hei-de ser um grande artista -- disse para consigo. -- Sinto isso em mim...

 

Um arrepio percorreu-lhe o corpo quando lhe veio outro pensamento que não ousou exprimir em palavras.

 

-- Meu Deus, acho que tenho génio.

 

Estava, na realidade, bastante embriagado, mas como tinha tomado apenas um copo de cerveja, aquele efeito só poderia provir de um tóxico mais perigoso do que o álcool.

 

_às terças e sextas-feiras, os "mestres" passavam a manhã na escola Amitrano, a criticar os trabalhos executados. Na França, o pintor ganha pouco, a menos que pinte retratos ou conte entre os seus clientes alguns americanos ricos; e homens de reputação gostam de aumentar os seus rendimentos, visitando uma vez por semana, duas ou três horas, os numerosos estúdios onde se ensina arte. Terça-feira era o dia em que Michel ia ao Amitrano. Era homem idoso, de barbas brancas e tez corada; executara para o governo diversas decorações que se tornavam, no entanto, objecto de mofa para os seus próprios alunos. Rollin era discípulo de Ingres, impermeável ao progresso da arte e de uma impaciência colérica no que dizia respeito àquele *tas de forceurs* que se chamavam Manet, Degas, Monet e Sisley. Como professor, porém, era excelente: solícito, cortês, animador. Por outro lado, Foinet que frequentava o estúdio às sextas-feiras, era homem de trato difícil. Criatura pequena e encarquilhada, de dentes estragados, aparência biliosa, tinha uma barba branca pouco asseada e olhos selvagens. A voz era aguda e o tom sarcástico. Vendera alguns quadros para o Luxemburgo e, aos vinte e cinco anos, entrevira uma grande carreira. O seu talento, porém, provinha antes da juventude que da personalidade e por isso havia vinte anos não fazia outra coisa senão reproduzir a paisagem que lhe proporcionara o primeiro triunfo. Quando o acusavam de monotonia, replicava:

 

-- _Corot pintava sempre a mesma coisa. Por que não posso eu fazer o mesmo?

 

Invejava o êxito dos outros e sentia uma repulsa pessoal e estranha pelos impressionistas. Atribuía o seu malogro à doida :,

moda que atraía o público -- *sale bête* -- para as obras deles. O desprezo bem-humorado de Michel Rollin, que lhes chamava impostores, manifestava-se nele na forma de vitupérios, dos quais os menos violentos eram *crapule* e *canaille*. Divertia-se a caluniar-lhes as vidas particulares, atacando, com um humor sarcástico, com pormenores ultrajantes e obscenos, a legitimidade das suas filiações e a pureza das suas relações conjugais. Para acentuar o seu desdém grosseiro, utilizava imagens e uma ênfase orientais. Também não ocultava o desprezo que sentia pelos estudantes cujos trabalhos examinava. Era, por isso, odiado e temido por eles. O seu sarcasmo brutal reduzia as mulheres muitas vezes às lágrimas, o que o levava a ridicularizá-las ainda mais; apesar dos protestos dos alunos que mais sofriam com os seus ataques, continuava no estúdio, pois não havia dúvida de que era um dos melhores mestres de Paris. Às vezes, o proprietário da escola, um antigo modelo, arriscava-se a repreendê-lo, mas a violenta insolência do pintor levava-o por fim a apresentar desculpas abjectas.

 

Foi com Foinet que Philip teve o primeiro contacto. O pintor já se encontrava no estúdio. Percorria a sala, de cavalete em cavalete, acompanhado de Mrs. Otter, a *massière, que interpretava as suas observações para aqueles que não entendessem o francês. Fanny Price, ao lado de Philip, trabalhava febrilmente. O nervosismo empalidecera-lhe o rosto e de vez em quando enxugava as mãos na blusa. De repente, voltou-se para Philip, com ar ansioso que procurou disfarçar, franzindo o sobrolho.

 

-- Acha que está bom? -- indagou, indicando o seu trabalho com um movimento de cabeça.

 

Philip levantou-se e foi observar de mais perto. Ficou atónito. A rapariga parecia não ter nenhum sentido da forma; aquilo estava longe de ser desenho.

 

-- Quem me dera desenhar tão bem -- respondeu.

 

-- É natural que não possa, ainda agora chegou. Seria de mais esperar que desenhasse tão bem como eu. Estou aqui há dois anos.

Fanny Price deixava Philip intrigado. A sua presunção era incrível. Já descobrira que todos, no estúdio, a detestavam cordialmente, e não era de admirar, uma vez que ela parecia sentir grande prazer em ferir os companheiros.

 

-- Queixei-me de Foinet a Mrs. Otter -- disse ela. -- Há duas semanas que não olha para os meus desenhos. Com Mrs. Otter, contudo, só porque é a *massière*, gasta mais de meia hora. Afinal de contas, pago tanto com os outros e o meu dinheiro é tão bom como o deles. Não vejo motivo para que não me dispensem a mesma atenção que aos outros.

 

Tornou a segurar o carvão, mas, após uns instantes, pousou-o com um gemido.

 

-Não posso trabalhar mais. Estou horrivelmente nervosa. Olhou para Foinet, que se aproximava na companhia de Mrs. Otter. Esta, medíocre, satisfeita, submissa, ostentava um ar de importância. O artista sentou-se no banco de uma inglesinha desanimada, que se chamava Ruth Chalice. Tinha esses lindos olhos escuros, lânguidos mas apaixonados, esse rosto fino, ascético mas sensual, e essa pele cor de marfim velho, que, sob a influência de Burne-Jones, eram naquela época cultivados pelas raparigas de Chelsea. Foinet parecia bem-humorado. Não falou muito, mas com traços rápidos e resolutos de carvão indicou-lhe os erros. Quando ele se levantou, Miss Chalice exultava de contentamento. O pintor dirigiu-se a Clutton. Philip também começava a ficar nervoso, mas Mrs. Otter prometera ajudá-lo. Foinet deixou-se ficar um momento em frente do cavalete de Clutton, mordendo silenciosamente o polegar. De repente, distraído, cuspiu para a tela o fragmento de pele que arrancara com os dentes.

 

-- Eis uma óptima linha -- disse afinal, indicando com o polegar o traço que lhe agradava. -- Você começa a aprender a desenhar.

 

Clutton não respondeu, apenas olhou o mestre com o seu ar habitual de sardónica indiferença à opinião do mundo.

 

-- Começo a achar que tem pelo menos vestígios de talento.

 

Mrs. Otter, que não gostava de Clutton, franziu os lábios. Nada havia de notável no trabalho do rapaz. Foinet sentou-se e entrou em pormenores técnicos. Mrs. Otter já estava um tanto cansada de ficar de pé. Clutton nada dizia, inclinava a cabeça de quando em quando, e Foinet, satisfeito, achava que o estudante compreendia o que ele dizia e as razões que dava; quase todos os alunos o escutavam com atenção, mas era claro que nunca o entendiam. Em seguida, Foinet levantou-se e caminhou na direcção de Philip

 

-- Chegou há dois dias apenas -- apressou-se a explicar _mrs. Otter. -- _é um principiante. Nunca estudou pintura.

 

*_Ça se voit* -- comentou o mestre. -- Vê-se.

 

Passou adiante e Mrs. Otter murmurou-lhe:

 

-- Esta é a rapariga em quem lhe falei.

 

Ele olhou para Miss Price, como se ela fosse um animal repelente, e a voz tornou~se-lhe mais áspera.

 

-- A senhora parece achar que eu não lhe dispenso bastante atenção. A *massière* comunicou-me a sua queixa . Bem, mostre-me esse trabalho para o qual deseja a minha atenção.

 

Fanny Price corou. O sangue, sob a sua pele doentia, parecia ter uma estranha cor roxa. Sem responder, apontou para o desenho em que trabalhara desde o princípio da semana. Foinet sentou-se.

 

--  Então, que deseja que eu lhe diga? Que está bom? Não está. Quer que diga que está bem desenhado? Não está. Quer que diga que tem algum mérito? Não tem. Quer que mostre o que está errado? Está tudo errado. Quer que diga o que deve fazer com o seu trabalho? Rasgue-o. Está satisfeita agora?

 

Miss Price ficou muito branca. Estava furiosa porque tudo aquilo fora dito diante de Mrs. Otter. Embora estivesse em França havia tanto tempo e compreendesse o francês bastante bem, mal conseguiu articular duas palavras.

 

-- Não tem o direito de me tratar assim. O meu dinheiro é tão bom como o dos outros. Pago para que me ensine. Isso não é ensinar.

 

-- Que diz ela? -- perguntou Foinet. -- Que diz ela?

 

Mrs. Otter hesitou em traduzir. Miss Price repetiu, num francês execrável:

 

-- *_Je vous paye pour m.apprendre*.

 

Os olhos do pintor fuzilaram de raiva. Elevando o tom da voz, agitou o punho no ar.

 

-- *_Mais, nom de Dieu*, eu não posso ensinar-lhe. Seria mais fácil ensinar um camelo.

 

Voltou-se para Mrs. Otter.

 

-- Pergunte-lhe se estuda por divertimento ou se espera ganhar dinheiro com isto.

 

-- Vou ganhar a minha vida como pintora -- respondeu Miss Price.

 

-- _então é meu dever informá-la de que está a perder o seu tempo. Não importaria que lhe faltasse talento: hoje em dia não se encontram talentos a todas as esquinas. Mas falta-lhe qualquer aptidão. Há quanto tempo está aqui? Uma criança de cinco anos, após duas lições, desenharia melhor do que a senhora. Digo-lhe apenas uma coisa: abandone essa vã tentativa. É mais provável que ganhe a vida como *bonne à tout faire* do que como pintora.

Veja!

 

Tomou um pedaço de carvão, que se quebrou quando ele o aplicava sobre o papel. Praguejou, e, com o toco, traçou grandes linhas firmes. Desenhava rapidamente e, ao mesmo tempo, cuspia as palavras como se fossem veneno.

 

-- Veja, estes braços não são do mesmo comprimento. Este joelho está grotesco. Uma criança de cinco anos, é o que digo. Veja, a figura não se apoia nas pernas. E aquele pé!

 

A cada palavra o carvão raivoso deixava uma marca, e, num momento o desenho em que Fanny Price gastara tanto tempo e pusera tanto empenho estava irreconhecível, numa confusão de linhas e de manchas. Por fim, o mestre atirou o carvão e levantou-se.

 

-- Aceite o meu conselho, *mademoiselle*, tente a costura.

E, olhando o relógio:

 

-- _é meio-dia. _à la senaine prochaine, messieurs.

Miss Price reuniu lentamente as suas coisas. Philip esperou que todos saíssem para dizer-lhe alguma palavra de conforto. A única coisa que lhe ocorreu foi:

 

-- Sinto muito, sinceramente. Que animal é esse homem!

 

_ela voltou-se para ele furiosa.

 

-- Foi para isso que ficou à espera? Quando precisar da sua simpatia, pedi-la-ei. Faça o favor de sair do meu caminho.

 

Retirou-se do estúdio e Philip, encolhendo os ombros, dirigiu-se ao Gravier, para almoçar.

 

-- Foi bem feito -- disse Lawson, quando Philip lhe contou o que acontecera. -- Trapalhona rabugenta!

 

Lawson era muito sensível à crítica e, para evitá-la nunca ia ao estúdio por ocasião das visitas de Foinet.

 

-- Não me interessa a opinião que os outros tenham sobre o meu trabalho -- explicou. -- Eu próprio sei se está bom ou mau.

 

-- Significa isso que não queres conhecer as más opiniões dos outros a respeito dos teus trabalhos -- emendou Clutton, secamente.

 

De tarde, Philip resolveu ir ao Luxemburgo, para admirar os quadros. Atravessando o jardim, viu Fanny Price sentada no seu banco habitual. Sentia-se magoado pela rudeza com que ela recebera a sua tentativa bem-intencionada de dizer alguma coisa gentil e passou-lhe pela frente fingindo não a ver. Miss Price levantou-se, porém, e veio atrás dele.

 

-- Procura evitar-me?

 

-- Não, é claro que não. Julguei apenas que não quisesse ser importunada.

 

-- Aonde vai ?

 

-- Quero ver os quadros de Manet, de que tanto tenho ouvido falar.

 

-- Gostaria que eu fosse consigo? Conheço bastante o Luxemburgo. Poderei mostrar-lhe uma ou duas coisas boas.

 

Philip compreendeu que, incapaz de pedir desculpa directamente, ela procurava remediar a sua falta com aquele oferecimento.

 

_é muita bondade sua. Teria muito prazer.

 

-- Se prefere ir sozinho, não precisa de aceitar -- volveu ela, desconfiada.

 

-- Não, prefiro ir consigo.

 

Dirigiram-se juntos para a galeria. A colecção Caillebotte fora ultimamente exposta, oferecendo pela primeira vez ao estudante a oportunidade de examinar à vontade as obras dos impressionistas. Até então, só fora possível vê-las no Durand-Ruel, na Rua Lafitte (e o negociante, ao contrário dos seus colegas ingleses, que assumem para com o pintor uma atitude de superioridade, sentia sempre prazer em mostrar ao mais maltrapilho dos estudantes o que lhe interessasse ver) ou na sua residência particular, onde se encontravam quadros de fama mundial; :,  para isso, não era difícil obter, às terças-feiras, um cartão de ingresso. Miss Price conduziu Philip directamente à *_Olympia*, de Manet. Ele ficou a olhar para o quadro, num silêncio atónito.

 

-- Gosta? -- perguntou Miss Price.

 

-- Não sei dizer -- respondeu ele, desorientado.

 

-- Pode acreditar que é o melhor quadro da galeria, exceptuando-se, talvez, o retrato que Whistler fez da mãe.

 

Deu-lhe tempo para contemplar a obra-prima e em seguida conduziu-o a uma pintura que representava uma estação de caminho de ferro.

 

-- Olhe, aqui está um Monet. -- disse ela -- _é a Gare *_St. Lazare.

 

-- Mas os carris não são paralelos -- observou Philip.

 

-- Que importância tem isso? -- perguntou ela, com arrogância.

Philip sentiu-se envergonhado. Fanny Price assimilara a gíria volúvel dos estúdios e era-lhe fácil impressionar Philip com a extensão dos seus conhecimentos.

 

Começou a explicar-lhe os quadros, em tom de superioridade, mas não sem discernimento; mostrava-lhe as intenções dos pintores e o que ele devia notar. Falava a gesticular com exagero e Philip, para quem tudo quanto ela dizia era novo, ouvia-a com um interesse profundo, mas perplexo. Até então, adorara Watts e Burne-Jones. O lindo colorido do primeiro e o desenho afectado do segundo satisfaziam-lhe inteiramente a sensibilidade estética. O vago idealismo e a insinuação de uma ideia filosófica, oculta sob os títulos que eles davam aos seus quadros, estavam bastante de acordo com as funções da arte, segundo as entendera na diligente leitura de Ruskin. Ali estava, porém, algo totalmente diverso; ali não havia qualquer intenção moral e a contemplação daquelas telas não induzia a levar uma vida mais elevada e pura. Philip estava confuso.

 

Por fim disse:

 

-- Estou quase morto. Acho que não posso absorver nada mais com proveito. Vamos sair e sentar-nos num dos bancos.

 

-- É melhor não absorver muita arte de uma só vez -- respondeu Miss Price.

 

Quando saíram ele agradeceu-lhe calorosamente, o incómodo a que se dera.

 

-- Oh, não foi nada -- disse ela, com certa rispidez. -- Sinto prazer nisso. Se quiser, poderemos ir amanhã ao Louvre e depois ao Durand-Ruel.

 

-- Não sei como agradecer-lhe.

 

-- Não me ache tão estúpida como a maioria dos outros acham.

 

 -- Decerto -- confirmou ele, sorrindo.

 

-- Julgam que conseguirão afastar-me do estúdio. _estão enganados. Continuarei lá enquanto muito bem entender. O que aconteceu esta manhã foi tudo obra de Lucy Otter, sei que foi. Sempre me odiou. Imaginou que depois disto eu me fosse embora. Não duvido de que ela gostasse de que eu fosse. Receia que eu saiba de mais a seu respeito.

 

Miss Price contou-lhe uma longa e complicada história, segundo a qual Mrs. Otter, insípida e respeitável criatura, tinha amores escabrosos. Em seguida falou de Ruth Chalice, a jovem que Foinet elogiara.

 

-- Já dormiu com todos os rapazes do estúdio. Não é melhor que uma mulher da rua. E, além disso, é porca. Não toma banho há mais de um mês, posso assegurar.

 

Philip escutava-a aflito. Já ouvira vários boatos acerca de Miss Chalice, mas era ridículo supor que Mrs. Otter, vivendo com a mãe como vivia, não fosse virtuosa. A mulher que caminhava a seu lado, mentindo malignamente horrorizava-o positivamente.

 

-- Não me importa o que eles dizem. Prosseguirei da mesma forma. Sinto-me uma artista; o meu íntimo o confirma. Preferiria matar-me a desistir. Não sou a primeira a quem os outros ridicularizem nas escolas; às vezes, esses é que se revelam os grandes génios. A arte é a única coisa que me interessa. Estou disposta a dedicar-lhe toda a minha vida. _é questão, apenas, de persistência e vontade de trabalhar.

 

Descobria motivos baixos em todo aquele que não concordasse com a opinião que fazia de si própria. Detestava Clutton. Disse que o amigo de _philip não possuía verdadeiro talento: era apenas insípido e superficial. Era incapaz de desenhar uma figura. Quanto a Lawson:

 

-- Um pequeno idiota, com aqueles cabelos ruivos e aquelas sardas. Tem tanto medo de Foinet que não lhe deixa ver os seus trabalhos. Pelo menos, não acontece isso comigo, não é assim? Pouco me importa o que Foinet diga a meu respeito. Sei que sou uma verdadeira artista.

 

Chegaram à rua onde ela morava, e Philip com um suspiro de alívio, deixou-a.

 

Todavia, quando no domingo seguinte, Miss Price se ofereceu para o acompanhar ao Louvre, Philip aceitou. Ela mostrou-lhe a *_Mona Lisa*. Philip sentiu ligeira decepção, mas como lera até as decorar as frases buriladas com que Walter Pater enriqueceu em beleza a mais famosa tela do mundo, repetiu-as agora para Miss Price.

 

-- Isso é simples literatura -- disse ela, desdenhosamente. -- _é  preciso que se liberte dessas coisas.

 

Mostrou-lhe os quadros de Rembrandt e fez comentários adequados a cada um deles. Postou-se em frente dos *_Discípulos de Emaús*.

 

-- Quando conseguir sentir a beleza disto, entenderá algo de pintura -- disse ela.

 

Mostrou-lhe a *_Odalisca* e *_A _fonte*, de Ingres. Fanny Price era um guia autoritário e não deixava Philip observar a seu bel-prazer aquilo de que gostava, antes procurava forçá-lo a admirar as coisas que ela pessoalmente admirava. Levava o seu estudo de arte extremamente a sério. Quando Philip, ao passar por uma das janelas da galeria, avistou o jardim das Tulherias, garrido, cheio de sol e urbano como um quadro de Rafael, exclamou:

 

-- Olhe, que maravilha! Paremos aqui um instante.

 

Ela replicou, com indiferença:

 

-- Sim, é verdade, mas nós viemos aqui para admirar os quadros.

 

O ar outonal, tão leve e vivaz, enchia Philip de bem-estar. E, quando, já por volta do meio-dia, se acharam no grande pátio do Louvre, sentiu vontade de gritar, como Flanagan: "_A arte que vá para o inferno!"

 

-- Vamos comer juntos alguma coisa, num dos restaurantes do *_Boul. Mich. -- sugeriu ele.

 

Miss Price lançou-lhe um olhar desconfiado.

 

-- O almoço espera-me em casa -- respondeu.

 

-- Isso não vem ao caso. Pode comê-lo amanhã. Deixe-me oferecer-lhe o almoço.

 

-- Não sei por que faz tanto empenho.

 

-- Sentiria grande prazer nisso -- volveu ele, sorrindo.

 

Atravessaram o rio; na esquina do *_boulevard St. Michel* encontraram um restaurante.

 

-- Entremos neste.

 

-- Não, neste não. Parece muito luxuoso.

 

Ela continuava a caminhar decididamente e Philip foi obrigado a segui-la. Poucos passos adiante, descobriram um restaurante mais pequeno, onde uma dúzia de pessoas já se achava a almoçar debaixo de um toldo, na calçada. Por cima da janela havia um anúncio em grandes letras brancas: *_Déjeuner 1,25, vin compris*.

 

-- Não podemos encontrar coisa mais barata do que isto, e o aspecto não é nada mau.

 

Instalaram-se numa mesa vaga e esperaram pela *omelette*, que era o primeiro prato da lista. Philip deliciava-se a admirar os transeuntes. Sentia-se cheio de afeição por eles. Estava cansado mas bastante feliz.

 

-- Olhe aquele homem de blusa. Não acha magnífico?

 

Voltou-se para Miss Price, mas verificou com surpresa que ela baixara a cabeça para o prato, alheia ao que se passava na rua, enquanto duas teimosas lágrimas lhe rolavam pelo rosto.

 

-- Que aconteceu? -- exclamou ele.

 

-- Se me disser uma única palavra, vou-me embora imediatamente -- respondeu Miss Price.

 

Philip estava perplexo, mas por felicidade a *omelette* chegou nesse momento. Dividiu-a em duas partes e começaram a comer. Philip fazia o possível por falar de coisas indiferentes, e notava certo esforço em parecer agradável, por parte de Miss Price; o almoço, porém, não foi o que se esperava. Philip era muito delicado à mesa, e o modo de comer de Miss Price tirou-lhe o apetite. Comia ruidosamente, com sofreguidão, um tanto como um animal selvagem na jaula, e após cada serviço esfregava o prato com pedaços de pão até vê-lo brilhar, como se não quisesse perder uma só gota de molho. Veio queijo Camembert, Philip notou com repugnância que ela devorava com casca e tudo o bocado que lhe fora dado. Se estivesse a morrer de fome não comeria com maior voracidade.

 

Miss Price era incompreensível. Despediam-se um dia como amigos e, no dia seguinte, aparecia-lhe rabugenta e descortês. Philip, porém, aprendeu muita coisa com ela. Embora não soubesse desenhar bem, ela conhecia tudo o que se pode ensinar e as suas constantes sugestões auxiliavam-lhe o progresso. Mrs. Otter também procurava ser-lhe útil e às vezes Miss Chalice criticava-lhe os trabalhos. Philip tirava partido, ao mesmo tempo, da volúvel loquacidade de Lawson e do exemplo de Clutton. Mas Fanny Price não queria que ele aceitasse sugestões de outra pessoa que não ela e quando, depois de conversar com alguém, ele lhe pedia auxílio, ela recusava-o com rudeza brutal. Os outros rapazes, Lawson, Clutton, Flanagan, troçavam dele por isso.

 

-- Toma cuidado, rapaz -- diziam eles -- ela está apaixonada por ti.

 

-- Ora, deixem-se de tolices -- respondia Philip, a rir.

 

Julgava absurda a ideia de que Miss Price pudesse apaixonar-se por alguém. Tremia ao pensar na sua deselegância, nos cabelos desgrenhados, nas mãos sujas, no infalível vestido pardo, já cheio de nódoas e desfiado na bainha. Era pobre, sem dúvida, mas todos ali eram pobres, e ela podia pelo menos andar limpa; uma agulha e um pedaço de linha seriam suficientes para lhe consertar a saia.

                                                                                           

 

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