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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERRA ARDENTE / Janice Diniz
TERRA ARDENTE / Janice Diniz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

M A T A R A N A

Livro I

TERRA ARDENTE

 

        Matarana é uma cidade fictícia localizada no Mato Grosso, próximo ao Pará, tão fictícia quanto Santa Fé e Belo Quinto, que também aparecem na história. E era este o título do primeiro esboço de Terra Ardente: Matarana.

        Em 2007, o livro Matarana era o rascunho de uma história sobre uma forasteira que chega a uma cidade hostil atrás de um caminhoneiro desaparecido e encontra pessoas estranhas que guardam segredos e medos, um delegado louco para mandá-la de volta ao sul e, claro, a febre daquela época, vampiros. No entanto, o meu interesse pelos humanos da história aumentava na mesma medida que o desinteresse pelos vampiros. Por isso, larguei o livro de lado e, em 2011, por acaso, encontrei esses originais incompletos e reescrevi a história. De uma forasteira criei cinco. Os vampiros foram retirados, e apenas a cidade Matarana e o delegado Rodrigo Malverde foram mantidos.

        Para se entender a série Matarana é preciso saber que ela toda é apenas um único livro dividido em três partes: Terra Ardente, Céu em Chamas e Fogo no Cerrado. Assim, são histórias contínuas como um longa metragem. Ainda que o foco principal seja as relações humanas, o comportamento e as escolhas de cada pessoa que vive situações corriqueiras do cotidiano, mas também extremas de sobrevivência relacionadas à violência ─ a protagonista da série é a própria cidade: um lugar violento dominado por duas forças econômicas, um coronel e um executivo do agronegócio.

        Acredito que o ser humano pode transformar o meio em que vive, assim como as circunstâncias externas influencia muito o seu comportamento. E aí está o limite da nossa liberdade. Uma liberdade que somente se realiza ao estarmos diante da angústia da escolha. Às vezes entre o que consideramos certo ou errado ou entre a verdade e a relatividade dos valores.

        Para mim, como autora, a série Matarana se resume à busca de mulheres e homens pelo seu lugar no mundo. A minha busca, a sua, a de qualquer pessoa; mas não é a busca por respostas ou soluções, é mais do que isso: é a procura pelo sentido da existência através da ação, de cada ação no cotidiano e da nossa atitude prática diante do que a vida nos nega ou nos oferece mostrando no horizonte as suas consequências. E é essa a magia de se estar vivo.

        Nós não somos os forasteiros da nossa vida; somos, sim, os protagonistas.

                                          Janice Diniz

 

 

           A TERRA PROMETIDA

           POR NOVA MONTEIRO – JORNAL DO CERRADO

 

        O agronegócio da soja move algo em torno de 45 bilhões de reais por ano no país, colocando o Brasil numa posição superior aos Estados Unidos no ranking de maior exportador mundial do produto. Esse destaque não foi conquistado sem esforço. Tudo começou na década de oitenta com o assentamento de cem famílias sulistas no centro-oeste. Os produtores optaram pela plantação de soja. Ergueram barracos nas pequenas aldeias que, anos mais tarde,se transformaram em cidades prósperas. Entre elas, Matarana, a campeã nacional na produção de grãos.

        Os barracos foram substituídos por casas de alvenaria. As máquinas agrícolas foram compradas e as fazendas ampliadas. A Terra Prometida era ocupada pelos colonos do sul.

        O que faz de Matarana um lugar especial?

       A topografia plana e o clima estável poderiam ser a resposta. No entanto, é insuficiente. A cidade destaca-se pela história de sua colonização. Assemelha-se ao povoamento dos Estados Unidos pelos ingleses, quando os últimos chegaram à terra estrangeira com o espírito de crescimento e uma velada e inabalável ambição. Afinal, assim como na América contemporânea, em Matarana, quem fracassa amarga desonrado regresso à terra natal ou enterra sua vida trabalhando nas fazendas e no comércio local. Por outro lado, a própria Matarana como subserviente à fome de riqueza e poder de seus colonizadores não serve como terra natal de ninguém. É a Terra Prometida, sim; porém, para o enriquecimento veloz de uma minoria. Mas a Terra Prometida de ninguém no que se refere a uma identidade cultural. O apego está atado ao número de hectares. Quanto maior a extensão de terras, maior a respeitabilidade do nome e sobrenome de seu proprietário.

        Grande parte dos latifúndios é administrada como empresas. Espalham-se através da rodovia 163 e entremeiam-se a verdadeiras cidades, pacatas, caricatas à moda das cidades texanas; no entanto, diferente dessas, com poucas ruas pavimentadas, rede elétrica defasada e uma acentuada desigualdade social. Matarana, por exemplo, com seus 13 mil habitantes e trinta e dois anos de emancipação de Santa Fé, é cortada ao meio pela rodovia federal que divide, explicitamente, os ricos dos pobres.

        Por último, uma sombria curiosidade: dizem que a fertilidade do solo de Matarana está associada ao número considerável de ossadas dos nativos, enterradas pelos primeiros colonizadores. À época da grilagem e do garimpo, a justiça era feita por meio dos revólveres, espingardas e facões. Mas isso é outra história.

 

                          Setembro, 2011

        Havia algum tempo que Nova Monteiro seguia e vigiava o homem. Todas as tardes dos dias ímpares ele passava no bar do Colono Tranquilo, sentava-se junto ao balcão, pedia um copo de cachaça, baixava a cabeça e escrevia coisas num caderno velho com folhas amareladas e manchas de gordura. Entre os dedos grossos cujas unhas estavam constantemente sujas de terra, um lápis mordiscado no extremo oposto do grafite. O chapéu que usava cobria-lhe boa parte do rosto, sempre puxado para frente e a aba quase batendo sobre a base do nariz grande e descascado devido à exposição ao sol. Era cor-de-rosa a pele de seu nariz e face. As sobrancelhas loiras como a cor do trigo, espessas, dando-lhe um ar carrancudo. Vestia-se como um caubói do Texas. Apesar de que naquela cidade todos se vestiam assim. E o homem que Nova vigiava de uma mesa no lado oposto do balcão, bebendo devagar o seu refrigerante light, possuía a estrutura física dos americanos, grande, alto, largo. Ombros roliços e fortes que sustentavam a cabeça de cavalo, o maxilar pontudo juntava-se ao queixo estreito. Podia-se dizer que o camarada tinha uma beleza exótica. Ou assustadora. A verdade, porém, era que ele era medonhamente feio. Possuía um rosto mau. Os movimentos de suas mãos e as inclinações grosseiras do seu corpanzil vociferavam maldade. Talvez o fato de ser um bandido lhe conferisse tal imagem. Ainda era incerto se o sujeito realmente se tratava de um dos vilões, mas, com certeza, não era um dos mocinhos. O homem, escravo de seus hábitos, era um gato. Um maldito aliciador de trabalhadores. Desconfiava que o aliciador servisse de fachada para as imundícies do coronel Marau.

 

       Investigava os homens do coronel. Um exército de pistoleiros e seguranças armados com suas Glocks e espingardas.  Uma fortaleza humana que protegia e executava para o sulista de quase 60 anos, dono da cidade que fundara e erguera a partir de barracas de lona no descampado.  Crescera tanto, a Canaã do cerrado, em função das safras recordes de grãos e a venda de lotes de terra aos latifundiários ricos de Santa Fé, que eles se obrigaram a construir um lugar todinho para si. E na tarefa de construção da pirâmide, as pragas do Egito atacaram quem se atrevesse a contê-las. O velho balofo tinha o legislativo e o executivo na palma da mão. A aparência de suíno combinava com o olhar de rapina e a fome de urubu. Comiam-lhe na mão os que tencionavam viver bem e prosperar. Distribuição de comida e trabalho para os mais pobres. Ingestão de dinheiro em microempresas. Apadrinhamento político e matrimonial. O homem que era odiado também era respeitado. Faltava apenas que o povo e os políticos de Matarana se curvassem diante do seu soberano, Nova pensava, quebrando a pedra de gelo entre os dentes. No entanto, todo filho da puta tinha inimigos. E com Marau não era diferente. Dois inimigos de peso, por sinal. Um representava a lei; o outro, o número dois na lista dos mais ricos da região. Thales Dolejal seguia de perto o coronel no ranking de senhor feudal com maior extensão de terra produtiva, patrimônio e capital.

 

       Nova ainda não se acostumara com esse pessoalzinho do interior. Sentia falta de Belo Horizonte, do cheiro e vibração de uma metrópole. Deixara a família para trás ao decidir acompanhar o melhor amigo na empreitada. Sabia que não conseguiria viver sem ele. Conhecera-o no jardim de infância, e Cris resumia tudo o que ela sabia sobre o amor. Descobrira que o amava tarde demais. Depois de casar-se e se separar. Depois de vê-lo casar e se separar.  Agora estavam solteiros e morando numa cabana próxima ao Rio Verde. Moravam juntos, mas não viviam juntos. Era tarde demais para eles. Cris sedimentara a situação de amizade entre ambos. De sua parte não havia rastro algum de química. Chegava ao ponto de dormir ao seu lado, abraçado nela, vestido, afagando-lhe o cabelo como se Nova lhe fosse a irmãzinha. Ao passo que ela, a suposta irmãzinha, aproveitava para admirá-lo enquanto dormia. Cris era o homem mais bonito que ela conhecia. No Jornal onde trabalhava haviam feito uma votação para eleger os solteiros mais cobiçados da região. Lá estava Cris, o seu melhor amigo, pediatra do único hospital público de Matarana. Na segunda posição, o delegado, Rodrigo Malverde, o eterno viúvo.

 

       Precisava apossar-se do caderno do caubói. Crispou os lábios e estreitou os olhos. Precisava mesmo era de ideias, vária delas, perfiladas por ordem de urgência. Era certo que naquelas folhas rotas e emporcalhadas de gordura havia os nomes dos trabalhadores contratados para a derrubada das árvores e preparação do pasto nas fazendas do coronel. Com muita sorte estariam também as anotações de suas dívidas. Mas sorte mesmo, pra valer, seria localizar a fazenda onde esses trabalhadores viviam em condições de escravidão em pleno século XXI. Por um momento, sentiu-se personagem de um filme de suspense. Estava sentada à mesa de um bar maliluminado cujos buracos nas paredes de madeira, perfurados por projéteis deflagrados por culpa de uma briguinha ou outra, deixavam entrar fios de sol. Duas mesas ocupadas por clientes; um casal – ela, loira metida numa blusa de lycra e short minúsculo e ele, vesgo, boné virado, falava com as mãos. Ambos bebiam cerveja e fumavam sem parar. Noutra mesa, um gorducho que transpirava enquanto tocava piano no notebook. O resto eram mesas escuras e vazias. Do fundo, entre a jukebox e duas vassouras de piaçava encostadas contra a parede, Nova tinha uma visão bastante privilegiada do lugar. Às cinco da tarde, sol minguado em meio ao colchão de fumaça, de vez em quando as portas duplas, gastas e barulhentas do Colono Tranquilo, cediam à pressão do vento tépido e abriam-se ligeiramente permitindo que a poeira da rua e a fuligem das picapes entrassem. Num desses movimentos, ela foi escancarada para a entrada daquele que lhe ferraria a tarde.

 

       O sol se jogou aos seus pés como um tapete vermelho antecedendo-se à sua passagem, uma nesga pálida e enfraquecida pelo avançado da hora. A bota esquerda entrou primeiro trazendo consigo um redemoinho de terra machucada e enchendo o lugar de aridez. E era como se Rodrigo Malverde viesse do espaço. No alto dos 1.90, a aba do Stetson, velho e gasto, puxada para frente, escondia-lhe metade da face. Um rosto bonito e másculo com um cavanhaque ralo e quase loiro, um castanho dourado que combinava com a pele morena tostada pela agressividade do sol do cerrado. Mascava chiclete de forma preguiçosa, mal mexendo os maxilares. Tinha o corpo magro e musculoso coberto por uma camiseta sem mangas e outra, xadrez, de mangas compridas, dobradas até os cotovelos e completamente desabotoada. Atravessado no ombro esquerdo, por baixo da camisa, o coldre de uma arma. O cinto de couro preto, ao redor da cintura, acentuava-lhe a estreiteza do quadril vestido no jeans. O volume de outra arma chamava a atenção para aquela parte em especial de seu corpo, o cós da calça. O cano de uma Glock espiava algo que as mulheres da cidade adorariam ver se o delegado estivesse disposto a compartilhar. Mas ninguém substituiria a esposa morta havia dois anos.

 

       Nova emborcou o refrigerante enfiando a cara dentro do copo. Queria se esconder dentro do copo. Mesmo para uma mulher magra e pequena, de cabelos curtos como um menino e peitos do tamanho de ervilhas, isso ainda não era possível. Se ele a visse no fundo do bar, estaria frita na manteiga. Afundou ainda mais na cadeira. Tentou escapar do esquadrinhamento dos seus olhos.

 

       Ela comentara certa vez com Cris, que era amigo do delegado, sobre o modo como Rodrigo Malverde olhava para as pessoas ao entrar num lugar. Parecia o Robocop analisando suas diretrizes. Encarava cada um nos olhos para, em seguida, se certificar de que não havia perigo para si e para eles, relaxar ligeiramente e assumir a postura de “foda-se o mundo, eu sou o xerife”.

 

       E foi o que ele fez. Olhou na cara de cada um devagar. Sempre suspeitando de algo ou alguém. Bom, ele tinha algumas armas escondidas debaixo da roupa e era um policial, quem se incomodaria com tal atitude? Assim foi interessante observá-lo praticamente ler, por cima do ombro do aliciador, o que escrevia. O outro fechou o caderno ostensivamente sem deixar de encarar o delegado. Duelaram por alguns segundos, sem falar. Era uma linguagem só deles. Mantinham os olhos grudados como cães expondo as gengivas. Podia-se ouvir alto o silêncio no bar. O aliciador baixou a cabeça, era um homem sensato. Não puxaria briga com aquele que foderia seus esquemas ilegais. Os olhos de Nova então se desviaram do gato para o defensor da lei. Viu-o sorrir com arrogância diante do recuo do capanga do coronel Marau. Ela sabia que o delegado era bom de mira e alvejara três felinos no último mês. Mandara-os direto para o centro cirúrgico e, depois, atrás das grades. Não atirava para matar. Dissera a Cris que não gostava de matar. Matar era nojento e sujo. Preferia descer o sarrafo e prender. E por descer tanto o sarrafo, ele tinha a cabeça a prêmio. Uma lista de pistoleiros a fim de descer-lhe o sarrafo também. E outra lista de pistoleiros – da parte de Thales Dolejal – para vingá-lo caso fosse preciso. A bem da verdade, corria o boato que o delegado já estava morto fazia tempo, desde que a sua esposa morrera. E ninguém matava um morto.

 

       Respirou fundo ao receber o seu quinhão de reconhecimento. Percebeu uma ligeira transformação na expressão do delegado que de circunspecta tendendo à ironia passou a refletir desconfiança e irritação. Sim, ele sabia o que Nova fazia ali, sentada à mesa do pior bar da cidade, bebendo uma merda sem calorias, bem atrás da nuca de um bandido. Ela não devia nada à polícia nem à justiça. Estava em dia com seu título eleitoral e suas vacinas. Parara de fumar e praticava a abstinência sexual havia cinco anos. Era uma boa menina e rezava antes de dormir. Acreditava em Platão e Sócrates. Suava frio, ele vinha em sua direção. Escovava os dentes três vezes ao dia e usava fio-dental. Sentou-se ereta e preparada para o ataque. Ele parou à sua frente e ajeitou a aba do chapéu, que tornou a assentar-se como antes. Era-lhe mais um trejeito, como o de andar remexendo ligeiramente o quadril magro, mascar chiclete como se não o estivesse fazendo e se meter na vida dos outros, como no momento em que esboçou um leve sorriso ao cumprimentá-la e ao perguntar pelo amigo. Até parecia que não sabia onde Cris estava...

 

       – No hospital, Rodrigo. – sorveu uma ácida pausa debaixo da língua, encarando-o sem pestanejar: – Prendendo muitos bandidos? – tentou brincar com naturalidade.

 

       Ele deu de ombros, indiferente, e apontou para o copo à mesa:

 

       – Faltou refrigerante na sua geladeira?

 

       Primeiro round.

 

       – Curtindo um pouco a tarde de verão. – respondeu, mantendo altivamente o sorriso.

 

       – Sei... – falou baixinho, balançando devagar a cabeça e afastando a cadeira para sentar-se, sem deixar de fitá-la: – Me diz uma coisa, senhorita jornalista, por acaso pretende morrer cedo? – indagou com um sorriso preguiçoso nos lábios e numa voz baixa e arrastada.

 

       – Uma vida sem busca não é digna de ser vivida, já dizia o filósofo. – gracejou, levando aos lábios o copo vazio.

 

       Rodrigo riu-se baixinho ao vê-la corar envergonhada e tornar a depositar o copo sobre a mesa. Era melhor que a amiga de Cris ainda fosse sensível o suficiente para sentir vergonha de seus tolos atos.

 

       – Dependendo da busca é melhor ficar em casa assistindo à televisão. – comentou sério, retirando o chapéu e balançando-o na mão. – Por que será que tenho a impressão de que você está à procura de encrenca?

 

       Foi a vez de ela rir.

 

       – Deve ser porque o Cris falou que costumo me meter em, digamos, encrencas. Médicos e jornalistas têm visões diferentes do que vem a ser uma encrenca.

 

       – Certo. Então diga a esse pobre caipira sulista, o que os jornalistas entendem por encrenca?

 

       A garçonete parou ao lado da mesa, sacou um bloquinho, endereçando um olhar expectante ao delegado:

 

       – O que bebe hoje, Malverde?

 

       – Ele está me interrogando, e quando trabalha não bebe nada. – interrompeu Nova antes que o delegado tivesse chance de abrir a boca.

 

       A morena hesitou olhando de um para outro. Rodrigo sorriu levemente e tornou a encaixar o chapéu sobre a cabeça.

 

       – Obrigada, Georgete, mas estou só de passagem. – explicou-se e esperou a garota afastar-se para fulminar Nova com dois olhos perscrutadores e um tom de voz bastante incisivo: – Não quero ter de chamar o Cris para identificar o seu corpo. Se tem um ego maior que a sensatez, sugiro que faça as malas e dê o fora daqui.

 

       – Ei, calma aí... Pra quê o escândalo? – debochou, enquanto sentia as pernas moles.

 

       Ela fazia parte de um tipo de gente que ainda temia a Lei e a Ordem. Tinha realmente medo da polícia e, de certa forma, mais da polícia do que dos bandidos. Mesmo quando o policial em questão fosse incorruptível e durão como Rodrigo Malverde. Aliás, ainda mais sendo como era, o delegado de Matarana provavelmente poderia pô-la atrás das grades para evitar que ela se envolvesse com os homens do coronel. Seria engraçado estar presa no lugar dos bandidos que investigava.

 

       – Escute bem, porque falarei apenas uma vez. – baixou a voz num tom quase de murmúrio rouco, obrigando-se a se aproximar do rosto dela por cima da mesa: – Estou sacando a senhorita há algum tempo. Sei que anda se enfiando em ninhos de cobras venenosas e sei também que não é por amor à humanidade. – estreitou os olhos avaliando-a: – Deixou para trás uma carreira interessante e, agora, tenta resgatá-la pondo a própria vida em risco. Quer voltar ao mercado em alto estilo. Nada melhor então que uma reportagem de peso, não? – fitou-a longamente, ergueu-se da cadeira e apontou-lhe o indicador em riste: – Sou eu quem dá as cartas nessa porra de cidade, ouviu? Banque a espertinha, Nova, e chutarei sua bunda até Minas.

 

       Ajeitou o chapéu cumprimentando-a e encaminhou-se até o balcão. Nova o acompanhava com o olhar, aturdida. Abuso de autoridade? Com toda a certeza. O delegado acreditava de fato que eles viviam no Velho Oeste americano?

 

       Levantou-se com raiva e a cadeira caiu. O casal bizarro pagou a conta e ensaiou movimento de fuga. A loira colada na lycra enviou-lhe um sorriso sarcástico. Ao passar pelo delegado fez questão de esbarrar os melões contra as costas dele, fazendo com que se virasse e a encarasse com a expressão interrogativa:

 

       – Como vai, Alícia? – perguntou sem sorrir.

 

       – Melhor que sua amiguinha ali. – respondeu, molhando os lábios com a língua.

 

       O acompanhante da loira puxou-a pela mão, emburrado.

 

       Nova saiu do bar, mas, antes de passar pelas portas, ouviu a voz baixa e grave do delegado:

 

       – O que escreve tanto aí, Pedro?

 

       Ela parou e fingiu admirar um quadro horroroso na parede. Dois homens com braços desproporcionais ao corpo pescavam num rio com coloração esverdeada. Moldura barata. Pinceladas grotescas. Tintas compradas numa ferragem. Era um tipo de pintura que provocava angústia.

 

       – Me deixa, delegado. – o outro resmungou.

 

       – Hum... O que temos aqui? – a voz soou divertida.

 

       Nova não se aguentou e virou-se para observar melhor a cena. O delegado, atrás do cara de cavalo, sorria com ar irônico apalpando-lhe a parte detrás de sua camisa. Empertigou-se pondo na feição um ar grave e, ao mesmo tempo, fingido ao indagar o óbvio:

 

       – Armado, cara pálida?

 

       – Me deixa, delegado, por favor. – pediu o pistoleiro, tentando não dar atenção às investidas do policial.

 

       – Levante-se devagar e ponha as mãos sobre o balcão. – disse calmamente, ainda sorrindo, parecia que se divertia com a situação. – Quero que me mostre o registro do seu consolo.

 

       O tal Pedro nem se mexeu, manteve a cara amarrada e os cotovelos apoiados no balcão. Esperava por certo que o delegado se dissipasse no ar.

 

       Ah, que saco, pensou Malverde, tocando na Glock enfiada na própria cintura.

 

       – Certo, amigo, levanta o rabo, afaste as pernas e ponhas as mãos sobre o balcão. Entendeu agora ou quer que a Bonnie venha te explicar? – baixou tanto o tom da voz que mais parecia um rosnado.

 

       Pedro girou meio corpo sobre a cadeira e o encarou sério, fitando-o como quem analisa o adversário tentando adivinhar o grau de sua insanidade.

 

       – Sabe quem eu sou? – desafiou-o.

 

       Rodrigo arqueou as sobrancelhas fingindo-se de desentendido.

 

       – Beto Carreiro reencarnado?

 

       Um brilho de prazer refletia-se no castanho de seus olhos. Prazer, o brilho nos olhos era de prazer. O delegado era conhecido por muitas coisas e, uma delas, o prazer que tinha de brigar.

 

       – Olha, delegado, estou numa boa...

 

       – Tem porte de arma?

 

       – Ninguém em Matarana tem, qual é?

 

       – Qual é? – entortou o lábio com desprezo. – É o seguinte, passa a arma! – ordenou sem se alterar.

 

       – O coronel não vai gostar. – declarou como uma ameaça, sorrindo e balançando a cabeça: – Ah, merda, cada dia que passa você se fode ainda mais.

 

       – Hã? – debochou Rodrigo, puxando a pistola do cós traseiro das costas de Pedro e enfiando-a no cós do seu jeans. – Me fodo? Que eu saiba o fodido aqui é você, já que será preso por porte ilegal de arma. – afirmou, piscando-lhe o olho.

 

       – Está de brincadeira, né?

 

       – Sim, a próxima é Amarelinha. Vamos para a picape, verme. – disse, puxando os braços do outro para trás e algemando-o nos pulsos.

 

       – Que perda de tempo, basta eu ligar pro coronel e logo serei solto. Você é muito tosco, Malverde. – disse Pedro, rindo-se e se deixando levar pela mão firme do delegado em seu antebraço: – Tudo bem, preciso mesmo descansar um pouco. – gargalhou.

 

       Nova viu-os passar por ela e cruzar a porta. Seguiu-os devagar. Viu também quando o delegado mandou Pedro subir na caçamba da picape, mas o outro emperrou teimoso.

 

       – Vou com você na cabine. Não quero comer poeira até a delegacia. Cadê os direitos humanos, cacete?

 

      – Espere, vou chamá-los. – Rodrigo fez um sinal com a mão; em seguida, pôs dois dedos entre os lábios e assobiou alto.

 

       Nova sabia o que aconteceria. Era estranho que o delegado ainda tentasse controlar a sua melhor amiga. Ela somente fazia o que queria. Mas ele tentava, bem que tentava.

 

       Ele assobiou uma segunda vez. Pedro riu-se, deitando a cabeça para trás.

 

       – Ééé, meu chapa, quando não se cumpre os deveres conjugais acontece isso aí.

 

       Rodrigo soltou o camarada, praguejando baixinho, contornou a picape e abriu a porta.

 

       – É difícil pular a janela, Bonnie? Que merda! – xingou a cadela Dobermann, que pulou para o asfalto e correu até o homem algemado.

 

       Bonnie era preta, orelhas pontudas. Postou-se sentada, as pernas frontais esticadas, o pescoço altivo. Rosnou baixinho para o prisioneiro exibindo a gengiva escura e os caninos de vampiro. Não precisava latir.

 

       – Fica aqui, Bonnie, e nada de fungar entre as pernas dele, esse aí não costuma tomar banho.

 

       Nova tinha vontade de rir, conteve-se para não valorizar a atitude arbitrária do delegado que se aproximava dela a passos largos e decididos.

 

       – Se eu te pegar tentando caçar algum bandido, Nova, faço o mesmo que fiz com esse diabo.

 

       – Abuso de autoridade, delegado. – disse, empinando o nariz.

 

       – Que tal ir à merda, forasteira? – exasperou-se e deu-lhe as costas, ajeitando o chapéu na cabeça.

 

       Antes de entrar na picape, falou sem se virar para ela:

 

       – Uma vida sem busca e apreensão não é digna de ser vivida. Volte ao bar e faça a sua parte.

 

       Entrou, girou a chave na ignição e acariciou a cabeça de Bonnie.

 

       – Mulheres... – suspirou, resignado.

 

       Acelerou, sacudindo a traseira da picape. Pedro, algemado à caçamba por uma das mãos, balançava-se comendo poeira.

 

       Com o coração bombeando forte o sangue nas veias, ela sentou-se na banqueta em frente ao balcão e apossou-se do objeto desejado. Ao final da leitura, jogou longe o rascunho com as poesias cafonas do aliciador.

 

       Saiu do bar com a certeza de que Rodrigo Malverde forçara aquela prisão. Mas por quê? Simples. Pedro era um aliciador de trabalhadores. O desgraçado do delegado era mesmo fiel às suas amizades. Era por causa de sua amizade com Cris, que ele tirava momentaneamente das ruas o homem que ela continuaria a seguir sem se importar com nada que não fosse a verdade. Sim, a verdade. A coluna num jornal do sudeste e um best-seller nas melhores livrarias do país. A sua verdade.

 

       Karen Lisboa era proprietária de um condomínio de bangalôs à beira da falência. Suportava a inadimplência de alguns inquilinos e administrava-o se estressando com encanadores, eletricistas, pedreiros e toda a corja que se formava ao redor desse tipo de negócio. Como se isso não bastasse, convivia com uma vovozinha de 70 anos meio doida meio dissimulada e o filho adolescente. De fato, ela não tinha tempo para meter-se em situações profundas.

 

       Viera com os pais para Matarana. Vinte anos atrás, ainda acreditavam os pobres sulistas, que enriqueceriam com esforço, privação e trabalho.

 

       Ela tinha 15 anos quando deitou debaixo de um homem. Casou-se com ele e, cinco anos mais tarde, teve Johnny, o seu pequeno Cash. Antes de tudo isso, o pai comprou um terreno distante do centro da cidade e quase perto do Rio Verde. Endividou-se para pagar a construção dos minúsculos bangalôs. A pousada para hospedar os novos desbravadores do cerrado. Um tiro pela culatra. Os que chegaram sem dinheiro, saíram de fininho deixando a mala e a conta em aberto. Os outros compraram imóveis, terras e nunca mais tornaram a ocupar a pousada. Em pouco tempo, o pai de Karen decidiu alugar os bangalôs por mês para solteiros e casais sem filhos. Numa das viagens de natal para Montenegro, o pai dormiu ao volante e matou a mãe, esmagando-a contra a traseira de um ônibus de turismo. O pai morreu depois, engasgado.

 

       No cerrado, Karen e a sua avó materna. Quando um cara com todos os dentes, força muscular e pinos apertados na cabeça apareceu em busca de trabalho, ganhou mulher e dez bangalôs, três deles alugados.

 

        Montou no manga-larga encilhado cuja pelagem alazã estava opaca em função da terra seca que se erguia soprada pelo vento mormacento. Deu dois tapinhas amistosos no seu pescoço.

 

       – Não voltaremos mais aqui, Prefontaine. – murmurou, observando o quanto a rua estava vazia.

 

       Era um lugar discreto. Um hotel onde não se precisava levar malas. Karen registrava-se sempre como Magda Patológica. E quando terminava o serviço, bastava montar em Prefontaine e voltar para casa. Tudo muito limpo, como um aborto praticado com o aval do governo. Relacionamento sem vínculos. Amor de calendário. Minutos de sabedoria: três vezes e pule fora.

 

       Ela acabava de deixar um homem no quarto de um hotel barato. Thales Dolejal, seu amante havia quase dez anos, jamais pedira exclusividade. E, caso o fizesse, seria um fraco. Os fracos torravam ao sol de Matarana. Morriam de sede. Eram mortos pelos pistoleiros. Eram comidos pelo câncer de pele. Os fracos vacilavam diante da esfinge. Contavam verdades embrulhadas em celofane.

 

       À beira do Rio Verde, sentou-se, acendeu um cigarro e o fumou.

 

       A clareira aberta para a queima do pasto alcançava a água verde e barrenta, parada, como dentro de um pneu atraindo o mosquito da dengue.

 

        Tirou a roupa e pulou na água. Mergulhou fundo e emergiu deitando a cabeça para trás. Nadou descansadamente. Boiou de barriga para cima e abriu os braços. O céu era feio. À noite, na estação das chuvas, reluziam estrelas como confetes prateados. Mas durante a seca a fumaça dos focos de incêndios encobria qualquer visão do paraíso. Era um lugar hostil, Matarana, para se viver. Ela bem o sabia, vira tantos chegarem à cidade dispostos a arrancarem dinheiro do solo para remetê-lo ao sul e sudeste. O jogo já estava na mesa antes de eles cruzarem o portal da cidade. As apostas eram altas, e poucos podiam cobri-las.

 

       Aproveitou os últimos minutos da deliciosa solidão. O tempo para si cada vez mais escasso. Nadou até a margem, observando antes o movimento à beira do rio. Não queria ser surpreendida por uma sucuri. Karen estava no reduto delas. Ao longo das margens do Rio Verde, várias cobras da mesma espécie traziam suas presas para se acostumarem a elas e depois as comerem. Esse era o esquema da anaconda brasileira. Mergulhava na beira do rio e, alimentada, boiava imóvel.

 

       O perigo podia estar à beira do rio, mas, com certeza, não era para esse perigo que Karen devia até as calcinhas. Dois predadores em seu encalço. Thales não sabia sobre a intenção do coronel Marau de cobrar a sua dívida tomando-lhe o condomínio, sua única fonte de renda. Se contasse a ele, afundaria ainda mais na palma de sua mão. Já lhe devia muita grana, mais do que poderia pagar. E empréstimo era como corda no pescoço: quanto mais pegava, mais se enforcava. No entanto, não poderia simplesmente entregar as chaves dos bangalôs e pegar a estrada de volta ao sul com uma velhinha e um adolescente e sem um tostão no bolso. Recomeçar sem ter um currículo, aos 35, era bater com a cabeça contra a parede. Além do mais, não tinha o direito de perder o legado de seus pais, que haviam se sacrificado para construir algo para futuro.

 

       Teria de voltar a renegociar sua dívida com o banco e, depois, pedir uma audiência com o coronel a fim de expor a situação. Tinha experiência com isso; normalmente, não dava em nada. O coronel espicharia para mais uns dias, meteria uma taxa de juros absurda, comentaria sobre a extensão da área do condomínio e arredores, a qualidade do solo naquele lugar e a posição geográfica interessante, uma vez que ele possuía poucos imóveis na área urbana; ao contrário de Thales. O velho que jamais pertencera às forças armadas cozinhava-a em fogo brando.

 

       Saiu da água e secou o corpo alto e curvilíneo com a camiseta. Vestiu-a úmida. O estômago doía, e quando isso acontecia não era bom sinal. Estava apavorada. Ninguém em sua casa podia o saber. Não tinha mais de onde tirar dinheiro. E não era o dinheiro em si que a preocupava. Dinheiro não era problema. Devia para duas sucuris sempre esfomeadas, esse era o problema. Quando a corda rebentasse – e a corda sempre arrebentava – sobraria para Karen Lisboa. Como se safar dessa situação? Podia tentar pagar ao coronel pedindo mais dinheiro a Thales. E como pagaria a Thales? Vendendo o condomínio? Doando-o para pagar a dívida? De todos os ângulos, ela perdia.

 

       Everaldo tinha cerca de trinta anos, era negro e usava nos cabelos dreads longos, debaixo do chapéu de palha. Camisa xadrez, colar de sementes, jeans rasgados nos joelhos e pulseiras. Ele parecia em dúvida quanto a ser John Wayne ou Jack Sparrow. Na verdade, era de Manaus, um caubói amazonense.

 

       – Cem metros, só isso. Quinhentos paus na primeira rodada. Faz o caubói comer poeira, potranca! – exortou o peão da fazenda de Dolejal.

 

       Karen virou-se e meteu dois olhos escuros e ameaçadores.

 

       – Não me chama de potranca. – enfatizou baixinho.

 

       Ele riu sem jeito e tentou consertar:

 

       – Para de ser rabugenta, mulher, só estava motivando você. Sabe que desses 500 paus, pego 50, né? – arreganhou a boca num sorriso.

 

       Karen puxou as rédeas de Prefontaine e direcionou-o ao lado do cavalo de seu adversário. Piscou o olho para o ruivo com bandagem protetora acima do nariz, sinal de que recentemente retirara pedaço de pele para biópsia. O sol do cerrado, encoberto pelas nuvens de fumaça, lançava aos mais sensíveis a maldição do câncer de pele. Canceroso ou não, o vaqueiro de uma das fazendas de Thales lamberia o rabo gracioso de Prefontaine. E ela embolsaria 450 paus. Uma corrida por semana e ainda invicta. Boa média; ótimos lucros. Não pagava suas dívidas mais significativas, mas bancava o curso de inglês de Johnny, mantinha fartamente abastecida a geladeira e a gasolina do Fusca.

 

       Encurvou a cabeça e, enquanto acariciava o pescoço de Prefontaine, murmurou num tom firme mas também carinhoso:

 

       – São dois animaizinhos do Dolejal, Pre, vamos acabar com eles!

 

       Empertigou-se e respirou fundo. O sangue circulava forte nas veias. Não pôde conter um sorrisinho superior ao lançar por cima do ombro um olhar para o seu adversário. O filho da puta estava de olho na sua bunda. Fechou a cara e voltou-se para frente, concentrada na estrada de chão batido, uma secundária da BR-163.

 

        Duas pistas demarcadas por estacas, cercadas pelo prado de mato curto e seco, salpicado pela vegetação xerófila e pisado por dezenas de pés calçados em botas. Corpos toldados por chapéus. Peões de Dolejal excitados pela corrida de cavalo. Esbravejavam e jogavam os chapéus para o alto. Bebiam cachaça e cerveja trazidas em coolers nas camionetes. A cuia de chimarrão também era passada de mão em mão. Depois da corrida de Karen, outras duas disputas. Ela era a única mulher. Talvez porque fosse a mais lascada das mulheres de Matarana ou talvez porque gostasse demais de vencer um macho de quatro patas e outro de duas.

 

       Prefontaine forçou a musculatura e jogou a cabeça para frente, as patas estirando-se na velocidade de um puro sangue. O pelo recendia suor morno e adrenalina. Percebeu a aproximação do cavalo do ruivo com sua cabeça vermelha bem ao lado, corpo a corpo. Ergueu-se ligeiramente da sela e gritou qualquer coisa para o baio. O vento lançava estilhaços farpados que lhe machucavam o rosto. Engolia terra e aspirava-a. Narinas ásperas. Cabelos voando para trás. Pálpebras semicerradas. Não perderia para o outro, não perderia para homem. Gritou mais uma vez. Jamais machucaria Pre, mas tinha de vencer. Sempre perdia para a vida, mas não numa corrida, numa estrada, ouvindo os homens gritando o nome do vaqueiro. Encurvou-se centímetros acima da montaria e jogou o corpo totalmente para frente. Proporcionou ao ruivo uma bela visão. Prefontaine entendeu a mensagem e galopou como uma mulher enlouquecida pelo prado atrás do canalha que lhe roubara os sonhos. Passaram por Everaldo, que sorria saboreando 50 paus em cachaça no Gringo, ao som da música country de Nova alguma-coisa.

 

       Karen lançou os braços para cima, permitindo-se ser beijada pela vitória. O cavalo ainda galopou alguns metros e era como se ele também comemorasse. Abraçou-lhe o pescoço e beijou o seu pelo brilhante e marrom. Quando Pre decidiu diminuir o ritmo, ela puxou devagar as rédeas guiando-o de volta aos caras que abriam suas carteiras e perdiam os seus trocados de peões. E foi aí, toldando os olhos com a mão, que ela avistou a Silverado preta parada ao longe, na parte alta do terreno.

 

       Thales Dolejal mexeu os músculos do cenho ao franzi-lo, tornando a expressão ainda mais carrancuda. Girou a chave na ignição e acelerou. Ele tinha planos para a mulher que vibrava com fúria.

 

       Karen contava as cédulas de olho na Silverado que partia sem pressa. O fazendeiro marcava a sua presença de longe, lembrando que ela fazia parte do seu rebanho. Guardou as notas no bolso traseiro do jeans. Acompanhou com o olhar o rastro de poeira deixado pela camionete e era como se esse rastro fosse a indicação do caminho que ela deveria seguir.

 

       Apeou sem pressa. Observou o lugar que lhe provocava fascínio e repulsa. Uma faixa de terra a se perder de vista cercava o casarão saído de uma revista de Hollywood. Não era o excesso de dinheiro ostentado no jardim impecável, sempre irrigado, mantendo-se verde como na estação das chuvas, que a incomodava. Nem o luxo da construção de três andares em alvenaria e vidro ao estilo dos endinheirados de Los Angeles. Ali, naquela fazenda afastada do centro urbano e dissonante com o provincialismo da região, vivia um homem que fazia as coisas acontecerem, manipulava as engrenagens. Karen não tinha dúvida alguma de que todas as manhãs, Thales Dolejal – o mais urbano e cosmopolita colonizador de Matarana – postava-se no alto da sacada de sua mansão, erguia o queixo e tentava inutilmente abarcar com os olhos o feudo. Ele sabia exatamente quantos hectares de terra possuía e a extensão e importância do seu patrimônio. Batia de frente com o outro colonizador que, diante do portão de entrada da sua fazenda, mantinha perfilada uma muralha de seguranças armados.

 

       Na fazenda de Dolejal, a segurança era discreta. O lugar em si, calmo, afastava do pensamento a possibilidade de um confronto armado. As únicas pessoas dispostas a dar cabo do fazendeiro estavam noutra ponta da região, ocupadas também em aumentar a sua riqueza e poder. Era de conhecimento público a inimizade entre o coronel Marau e Thales, o executivo do agronegócio. Farpas lançadas de lado a lado, sem diplomacia. Disputas judiciais por áreas de terras devolutas. O segundo homem mais rico queria se tornar o primeiro e o primeiro jamais aceitaria perder o posto. O único bem que Karen via nessa disputa era a oferta de emprego para os peões e agricultores. Onde houvesse pelo menos dois ricaços gananciosos, haveria, no mínimo, uma centena de desgraçados. Não havia terra para todos. Culpa da natureza cruel? As terras já estavam marcadas por bandeiras de posse. Alguns agricultores, os menores, que expeliam das entranhas dinheiro para pagar empréstimos bancários, invariavelmente, recebiam propostas de compra de suas propriedades, uma vez que não bastava a terra para se fazer comida. Máquinas, equipamentos, mão de obra, produtos agropecuários e profissionais especializados para darem suporte tanto à criação de gado quanto à produção de grãos. Se nas metrópoles a selva era de pedra; no campo, de ossadas.

 

       Irene abriu a porta. Um sorriso de reconhecimento logo se formou em seus lábios enrugados de 67 anos. A governanta de Dolejal servia-o desde a compra da fazenda. O marido de Irene estava sempre com ela, sentado na sua cadeira de rodas. Karen, aos poucos, se acostumara com a devoção cega que os funcionários do fazendeiro dedicavam-lhe. Eram mais como servos remunerados que doavam seus corpos e almas a um senhor. E o mesmo retribuía a lealdade e força de trabalho com salários dignos e belas casas arejadas, num condomínio fechado, na própria fazenda onde trabalhavam. Mas, de certa forma, pensava Karen, largando-se vestido e corpo sobre um dos imensos sofás, todos eram escravos. Alguns, escravizados por gatos e presos em fazendas distantes, trabalhando para pagarem o que comiam, o teto que lhes abrigavam os esqueletos e um mundaréu de dívidas inventadas pelos aliciadores. Outros escravos viviam e morriam para produzirem dinheiro para somente uma pessoa enriquecer. Era engraçado se não fosse nojento, mas Thales Dolejal, neto de garimpeiro e latifundiário desde a morte do avô, jamais tocara um dedo na terra vermelha e seca que lhe pertencia. Ele tinha as mãos macias de um executivo.

 

       – O que a senhora gostaria de beber antes do jantar? – perguntou solícita a mulher de um metro e meio, cabelos brancos e curtos.

 

       – Uísque sem gelo. Obrigada, Irene.

 

       A governanta postou-se atrás do bar e comentou sem desviar os olhos da tarefa.

 

       – O senhor Dolejal está ao telefone e logo descerá.

 

       Karen assentiu, levemente, observando que havia exagerado no decote do vestido longo, de verão. Seus seios pareciam possuir mãos que afastavam o tecido para espiarem o que acontecia ao redor. Irritava-se consigo mesma quando se percebia tentando seduzir o amante. Uma mulherzinha muito submissa morava no mesmo cômodo que a livre e independente. Não queria bancar a sensual e passar a informação errada ao fazendeiro. Ela não era dele. Ele não era dela. A roupa que usava não fora comprada para um encontro.

 

       Sorveu o uísque numa golada só. A bebida desceu queimando e liberando alguns grilhões que, depois de uma década, ainda a atavam a um estado de ansiedade e nervosismo. Dormia com o inimigo. E acordada sonhava com ele.

 

       – Boa noite, Karen.

 

       Virou meio corpo para encontrá-lo descendo a escada tranquilamente. Os olhos claros possuíam um brilho de divertimento, mas qualquer outro aspecto de sua expressão facial sugeria sobriedade e enfado. O corpo grande e forte tinha as características de um puro sangue, um macho alfa, um provedor. O tipo de homem que as mulheres escolhiam quando ovulavam. Era isto que ele inspirava, sexo, cópula, montaria.

 

       – Boa noite, Thales. – tentou sorrir, o desgraçado ainda lhe tirava o fôlego; assim, logo emendou: – Hoje não é sexta-feira. – não era para ter saído em tom de acusação.

 

       A sombra de um sorriso esboçou-se nos lábios duros. Ele conteve-o. Adestrara as emoções, controlava-as bem de perto. Uma arte que o mantivera vivo no passado. Observou que Karen ajeitara-se para vê-lo, abandonara o jeans e o eterno chapéu e vestira-se de mulher.

 

       –Viajarei. – disse apenas, servindo-se de bebida.

 

       Camisa branca, calça social escura, face escanhoada, colônia francesa. Um típico fazendeiro do século XXI, a substituição contemporânea dos coronéis.

 

       – Ah, por isso quis antecipar o... a noite. – engasgou-se com o uísque e com os olhos irônicos cravados nos seus.

 

       – Não, quis apenas vê-la. – emborcou a bebida e depositou o copo vazio sobre a mesinha que ladeava a poltrona onde ele se sentou displicentemente. – Sentirá minha falta?

 

       Pensou que ele estivesse brincando, mesmo sabendo que Thales jamais brincava. Senso de humor era algo que lhe faltava.

 

       Karen desviou o olhar para o tapete persa debaixo das suas sandálias.

 

       – Pode ser sincera, não ficarei magoado. – insistiu.

 

       – Vamos para o quarto. – declarou, erguendo-se do sofá num átimo, ajeitando o vestido.

 

       Imóvel, o fazendeiro a encarava. Circunspecto e intrigado. Cruzou as pernas num gesto feminino. Ele brincava? Era assim o seu senso de humor?

 

       – Ficarei fora por tempo indeterminado. – afirmou como se falasse com o seu diretor administrativo.

 

       – Texas?

 

       – Não, São Paulo. – comentou, procurando não se aprofundar no assunto; em seguida, completou noutro tom, mais quente e acolhedor: – Sentirei sua falta, Karen.

 

       Ela sorriu sem jeito, balançando os braços ao longo do corpo.

 

       –Vamos lá para cima. – pediu novamente.

 

       Entendiam-se no lugar mais simples do mundo, a cama.

 

       – Jantaremos antes. – disse, erguendo-se e puxando-a pela mão para a varanda aberta, onde uma mesa com castiçais e louças finas para dois esperavam-na.

 

      – Descobriu um câncer, Thales? – perguntou, sinceramente, preocupada.

 

       Ele se virou e tomou-lhe o rosto entre as mãos.

 

       – Por acaso sou um bruto? – a voz revelava uma maciez que combinava com a franqueza do olhar.

 

       – Não, mas...

 

       – Mas sempre quartos de hotel, uma hora cansam. – enfatizou, arqueando as sobrancelhas.

 

       Sentou-se na cadeira que lhe era afastada e digeriu os primeiros sinais de uma sensação bastante familiar. Respirou fundo. Não importava. Eles não possuíam vínculo. Dez anos também tinha um par de meias suas, e ela não era apaixonada por suas meias. Engoliu em seco e perguntou sem querer saber:

 

       – Ainda pensa em se casar com uma mulher rica como você?

 

       Thales sentou-se à mesa diante dela e fez um sinal para o empregado trazer o vinho. Ganhou tempo o suficiente para responder sem o mínimo de interesse:

 

       – É possível – deu de ombros, indiferente: – Meus advogados estão verificando como podemos quitar os dois empréstimos que lhe foram concedidos.

 

       Liberdade. Era incrível. A gaiola enfim seria aberta.

 

       – Onde ela está?

 

       – No Texas.

 

       Um carrinho com a comida e o vinho foi posto ao lado da mesa. O fazendeiro fez um gesto com a mão, ele mesmo tencionava servir a convidada e a si mesmo. A convidada estava confusa e não prestava atenção na refeição. Bebeu o vinho automaticamente. O terceiro copo desceu sem que ela o percebesse. Ele tinha outra mulher.

 

       – E o diretor da escola? Esse está durando, hein. – comentou desinteressado, concentrado em juntar ervilhas na ponta do garfo.

 

       – Está apaixonado? – não acreditava na pergunta que fazia.

 

       Thales ergueu os olhos do prato e fitou-a curioso.

 

       – Tenho 42, minha cara, as paixões estão fora de questão. É estranho que uma mulher com água gelada nas veias me faça tal pergunta. – constatou, tornando a servir-se de comida. Ele parecia faminto.

 

       – É, também acho estranho.

 

       – Ele fode bem?

 

       Assustou-se. Limpou a boca no guardanapo e encarou o homem que jamais se interessava pela vida dela:

 

       – Não é da sua conta. – exasperou-se.

 

       – E é você que decide o que é da minha conta ou não? – desferiu-lhe sagaz.

 

       – Temos um acordo, Thales. – insistiu.

 

       – Quebro um acordo ao perguntar se o meu substituto fode tão bem quanto eu? – indagou impassível.

 

       – Substituto? – riu-se com um cinismo tão triste, que sentia as lágrimas brotarem-lhe nas bordas das pálpebras. – Não tenho ninguém.

 

       – É mesmo? – encostou-se contra o espaldar da cadeira e acendeu um cigarro, avaliando-a: – Karen, sinto muito, mas o prazo de validade do nosso arranjo expirou.

 

       Ele não parecia sentir.

 

       – Está me substituindo? – havia um sorriso irônico e uma vontade de gritar qualquer merda no meio do prado calcinado.

 

       – Por um modelo mais novo com menos quilômetros rodados, se é que me entende. – arqueou a sobrancelha com cinismo.

 

       – Entendo, sim. Imagino que sejam os primeiros sinais da crise da meia-idade, “coronel” Dolejal. – enfatizou com maldade o título que o igualava ao coronel Marau. Ele, o executivo que não era um coronel.

 

       Imediatamente, teve a resposta à sua provocação. Thales fechou a cara e largou o cálice sobre a mesa com violência, quebrando-o.

 

       – Vamos para o quarto. – ordenou, afastando a cadeira e fazendo um gesto com a mão para que o seguisse.

 

       – Trairá a sua mais nova aquisição? – debochou.

 

       – As regras que apliquei a você são aplicadas a ela também. Ninguém é de ninguém, minha Karen.

 

       Frio, insensível, ela pensou, olhando-o de esguelha. E, num impulso, desferiu à queima-roupa:

 

       – Eu te amo, Thales.

 

       Quem era essa mulher que dividia o cômodo com uma mulherzinha submissa e sua companheira de quarto, livre e independente? Uma terceira Karen surgia dos escombros, com as roupas esfarrapados e o nariz inchado de tanto chorar. Jogava a toalha. Pedia água. Que merda dissera a ele? O que sabia sobre isso?

 

       Suportou com dignidade o olhar hostil do fazendeiro que parecia irritado por ser amado por ela.

 

       – Disse isso ao camarada que deixou no hotel?

 

       – O que? – aturdida, riu.

 

       – A gente, Karen, elabora teorias e estabelece regras que às vezes são tão capengas e inverossímeis que parecem equações matemáticas de loucos. – tocou-lhe o queixo com a mão e completou sério: – Nós decidimos que seria apenas uma distração, um divertimento, mas durou dez anos. Brincamos, nos divertimos e agora brincaremos com outras pessoas.

 

      – Sempre foi assim, você nunca pediu exclusividade. – acusou-o, irritada.

 

       – Claro que não, visto que você é incapaz de ser fiel e não quero afrontar a sua natureza. Mas sinceramente cansei de ser corno. – disse, incisivo e grave.

 

       – Certo. Então cada um para o seu lado?

 

       – Alguma dúvida?

 

       – Devo-lhe muito dinheiro...

 

       – O meu diretor financeiro conversará com você no fim da semana...

 

       Interrompeu-o tentando controlar a raiva:

 

       – Enquanto você se ocupa de uma americana frígida?

 

       Dolejal afastou-se e esquadrinhou-lhe a expressão, desconfiado:

 

       – Está mesmo apaixonada por mim?

 

       – Tanto quanto você por mim. – saiu pela tangente.

 

       Pegou-a pela mão e a puxou para dentro da casa.

 

       – Vamos fazer o que somos melhores. Sentimentos atrapalham quando o assunto é amor. – ironizou.

 

       Seus dedos entrelaçaram-se enquanto ela era puxada para cima, para ele, para junto.

 

       Amanheceu, e eles ainda estavam acordados. Raios de sol penetraram as fibras do tecido fino da cortina e, antes disso, a faixa larga de fumaça branca. O barulho ao redor do casarão admitia a presença do cotidiano. E eles estavam atentos aos desígnios da realidade e da rotina. Eram vítimas daquilo que acreditavam.

 

       Thales deitou-se novamente sobre Karen e fez sexo de um jeito que parecia amor. Se ela fosse um pouquinho mais jovem e um pouquinho mais tola, acreditaria que aquele homem acariciando os seus cabelos e penetrando fundo dentro dela era o seu homem.

 

       Então o mundo em que ela vivia, ruiu. E a rejeição ateou fogo no seu sangue como um maldito rastro de combustível nas veias, espalhou-se, consumiu-a de uma forma avassaladora. Rejeitada, ela o quis. E saber que o queria a tornou desesperada e infeliz. Porque já não mais o tinha. Nunca o teve. Assim, o sangue que ardia em chamas nas principais artérias de seu ser, explodiu. Dos pedaços de seu corpo, outro se acomodou. E esse novo corpo, nascido do esqueleto carbonizado, arrastou-se até a beira do rio para matar a sede que somente a boca de Thales matava. No deserto para sempre viveria à sombra do que pudera viver. Levara dez anos para descobrir que sentiria falta de odiá-lo, desprezá-lo e, ao mesmo, de ser a sua mulher.

 

       Nova avaliou a expressão do homem que lia o Jornal do Cerrado com a testa franzida. Tentou adivinhar suas emoções. Cris não era uma pessoa difícil de ler, bastava não levar em conta alguns estereótipos. Agora, por exemplo, segurava numa mão o jornal de poucas páginas e na outra uma maçã. Vestia uma calça de moletom cinza, puída, e uma camiseta com gola V, que lhe emprestava uma aparência gay. Descalço, à mesa, após dormir por apenas cinco horas, descansava diante de um farto café da manhã para retornar ao hospital à noite.

 

         – E aí? Gostou?

 

         – Calma, estou lendo. – fez um sinal com a maçã mordida pela metade, como se tivesse intenção de jogá-la contra Nova.

 

       Ela aproveitou para fazer coisinhas de mulher-na-cozinha, juntou farelos da mesa, limpou a pia com um pano, empilhou as caixinhas de fósforos. De olho nele, atenta a cada oscilação de seu rosto sempre sereno. Por fim, ele dobrou o jornal, levantou-se e saiu da sala. Ela foi atrás e nem mesmo a porta do banheiro a impediu.

 

        Cris virou-se e fez um gesto tipo “calma aí, meu chapa”. Ameaçou fechar a porta em sua cara.

 

       – Espera! Que achou? Vou postar no meu blog, compartilhar no Facebook e enviar para outros cinquentas jornais do país. – declarou, alegremente, os olhos brilhando diante do feito.

 

       Muito bem, entre no jogo para poder roubar do seu próprio parceiro, pensou o pediatra.

 

       –Você é muito competente como jornalista. Parabéns, Nova. – beijou-lhe a testa fraternalmente.

 

       Ela odiou o beijo e afastou-se irritada.

 

       – Não quero elogio. – pôs as mãos na cintura e o emparedou: – Quero sua opinião verdadeira. O que achou do artigo? Rende um contrato com O Globo?

 

       O médico considerou que a amiga estivesse brincando. Não havia outra explicação.

 

       – Você chamou os colonizadores de Matarana de assassinos. Que eu saiba o dono do Jornal onde você trabalha é um dos colonizadores, é o Dolejal, logo...

 

       – Chamei o meu chefe de assassino. – completou sorrindo, ainda alegre. – Ué, mas todos dizem que ele matou o avô e depois se apoderou das terras do velho.

 

       – Quer comprar briga com quem paga o seu salário? – indagou Cris, intrigado.

 

       – Acha que me importo com migalhas? Posso trabalhar como garçonete, se for o caso. Mas a verdade precisa ser escrita. Matarana é o lugar perfeito para os inescrupulosos.

 

       Cris esfregou a testa para esquentar o cérebro e ter uma ideia do que fazer com Nova.

 

       – O Rodrigo me disse que está encrencada. – falou num tom cansado.

 

       – Ai, que fofoqueiro! Que encrencada nada. – bufou.

 

       – Por que está seguindo os homens do coronel?

 

       – Estou na-nada. – gaguejou, olhando para os lados.

 

       – Sei que está, chega de encenação.

 

       – Cris, eles são bandidos e vivem como cidadãos comuns. Os caras aprisionam sabe lá Deus quantas pessoas e andam pela cidade impunemente. – exasperou-se, mexia as mãos tecendo no ar gestos amplos. – Alguém precisa ser os olhos e a voz de Matarana. – emendou num tom de falsa inocência.

 

       – Sai do palco, essa pose de boa-moça não engana nem o Rodrigo nem a mim. –Tentou impor seriedade ao que falava. – Lembre-se de que nos conhecemos desde os cinco anos. – apontou-lhe o dedo indicador.

 

       – Sério, Cris, quero melhorar o mundo. Se tenho de começar por Matarana, vamos lá. – exortou-o.

 

       – Por que não começa por si mesma? Volte a Minas e retome a sua carreira. – declarou, fitando-a calmamente.

 

       – É o que quer?

 

       – Esqueça o passado, esqueça aqueles dois. Eu já superei e você também deve fazer o mesmo.

 

       – Superou uma parte da história, não é? – indagou quase como uma afirmação.

 

       Ele suspirou, profundamente, encarando-a sem pestanejar.

 

       – O que deveria fazer? O seu marido levou a minha mulher para cama. Eles foram amantes durante dois anos, e nem você nem eu sabíamos. – deu de ombros e completou indiferente: – Sei que quando os investigou foi com boa intenção. Queria de fato provar que ambos nos traíam. Achei justo de sua parte. Mas, e daí? O que NÓS DOIS ganhamos, Nova? Minha mulher acabou casando com o seu marido, e eles têm uma bela família com direito a dois cachorros e três filhos. Talvez até morem numa casa com cerquinhas brancas, ladeada por pinheiros. E NÓS DOIS, querida, onde estamos? Comendo poeira no fim do mundo!

 

       – Deus do céu, Cris!,você queria viver uma farsa? – perguntou, horrorizada. – Ela dormia com o seu amigo, o MEU marido. Aquela galinha! E você preferia estar com ela?

 

       – Não é isso. Não tem nada a ver com ela. Eu só queria a minha vida de antes, quem eu era e o que ainda não havia feito.

 

       – Fala da sua paciente...

 

       Cris fez um sinal com a mão, abaixou a cabeça, vencido.

 

       – Só queria ter mais ilusões, Nova.

 

       – As ilusões nos cegam, Cris. Investiguei os safados e descobri a verdade e, mesmo que doa e que foda tudo, ainda sim é a verdade que importa.

 

       Cristiano ergueu a cabeça e encarou-a magoado:

 

       – Nunca pedi para que me contasse sobre os dois.

 

       – Que tipo de homem você é, meu Deus? – indagou com desprezo.

 

       – O tipo mais simples, que aceita as pessoas como são.

 

       – Ou um acomodado preguiçoso.

 

       – É, pode ser.

 

       – Preferia continuar sendo traído...

 

       – Não importa! A questão é que você não tinha o direito de decidir sobre isso. Podia ter investigado e decorado cada maldita frase daquele relatório de merda ou lambido cada fotografia, pouco me importava, mas não podia ter jogado todo esse lixo na minha cara. Você não me permitiu escolher, Nova.

 

       – Desculpe o erro de avaliação. Pensei que fosse tão corajoso quanto eu. – empinou o nariz.

 

       – Corajosa? Você foi a primeira a pular fora, nem tentou reestruturar seu casamento. Jogou as roupas do... jogou tudo que era dele pela janela.

 

       – É verdade, devia ter feito um altar para cultuá-lo. – ironizou.

 

       – E, agora, faz de tudo para se machucar. – completou, balançando a cabeça.

 

       – Sabe, Cris, pensei que você tivesse algo para me dar. – declarou, as lágrimas brotando-lhe nos olhos.

 

       – Tenho, sim, um conselho, – aproximou-se dela quase esbarrando no seu corpo: – a defesa da verdade, boa parte das vezes, é uma tremenda mentira, Nova Monteiro.

 

       Dito isso, ele jogou o jornal sobre a mesa e voltou para o seu quarto. Ela ouviu o barulho da chave girando na fechadura. Por que ele trancava a porta?,ela pensou, considerando a possibilidade de um dia arrombá-la.

 

       Karen abriu a porta do escritório e se instalou detrás da escrivaninha. Mexeu sem vontade nos envelopes com contas vencidas. Não tinha paciência para isso, agora. Saiu da sala, verificando no caminho se avistava o zelador. Por certo, ele estaria fazendo reparos no bangalô de algum inquilino. As construções de quarto e sala e varanda frontal necessitavam de contínua manutenção. E gastos.

 

       O condomínio, em forma de U, possuía no centro do pátio, em frente aos bangalôs pintados de branco encardido, uma piscina. Um dos bangalôs tinha três quartos. Nele, viviam Karen com o filho Johnny e a avó Ninita. Junto à portaria do condomínio, a sala com o escritório onde os inquilinos, mensalmente, iam chorar suas misérias para fugirem dos juros por atraso no pagamento do aluguel. Sim, eles sempre o atrasavam.

 

       A casa estava vazia. As janelas fechadas aprisionavam o odor dos corpos e das respirações. Afastou as venezianas e voltou-se, esquadrinhando cada móvel do recinto. Não havia bilhete algum informando o paradeiro de vó Ninita. O quarto da senhora de quase 70, cabelos armados e pose de Barbara Cartland, estava arrumado e arejado. Ao lado, o quarto desorganizado do filho revelava que ele haviase atrasado para a escola.

 

        Telefonou para o celular da avó.

 

       – Obrigada por não ter avisado que sairia. – acusou-a, mal-humorada.

 

       – Bom dia, meu anjo, estou com a Veridiana. À tarde, temos bingo. – disse,a voz tabagista.

 

       – Eu sei, todos os dias você faz a mesma coisa, não é, vó? – reclamou, mesmo sabendo que era inútil. – Por que não fica mais tempo em casa? Esse mormaço acabará lhe causando uma crise de hipotensão, já desmaiou uma vez...

 

       – Estou bem, tomo dois litros de água por dia e tenho sal na bolsa, caso minha pressão despenque. O Johnny vai dormir na casa de um amigo, mandou avisar.

 

       – Merda!,vocês dois nunca estão disponíveis para me ajudar. – exasperou-se. – Tenho de sair mais tarde para negociar minha dívida com o Dolejal e terei de deixar o Alemão tomando conta de tudo. – reclamou, irritada.

 

       – É verdade, o Alemão dá conta de tudo. Fofinha, a ligação está...

 

       Karen ficou olhando para a tela do celular enquanto absorvia a ideia de que a avó acabara de desligar o telefone.

 

       Uma viciada em bingo, essa era a sua avó materna. Gastava boa parte da pensão que recebia nos chás com bingos promovidos clandestinamente. Era impossível contar com Ninita para alguma coisa que não fosse diversão. Desde que enviuvara, havia quarenta anos, não se amarrara mais a homem nenhum e a mais nada que significasse prisão, como ela mesma dizia, entendendo-se por isso as lidas domésticas ou qualquer outra tarefa que implicasse a sua reclusão dentro de casa. Assim que amanhecia, ela montava na bicicleta ergométrica e pedalava a distância entre Matarana e a capital do estado. Ingeria sua vitamina composta de leite, fibras, frutas e guaraná em pó. Fazia careta, quase vomitava. Arrumava-se como se fosse a um casamento e se dirigia para o centro comercial, sendo seguida por sua fiel escudeira sessentona, Veridiana Agnes, atendente do salão country à noite; costureira até o sol se pôr.

 

       Preparou um café na cafeteira, que derrubava a água contra o pó marrom. O cheiro impregnou o ambiente. Sentou-se à mesa, pôs os cotovelos sobre a toalha de plástico e apoiou a cabeça com as mãos. Tentaria reduzir a dívida com Dolejal a várias prestações. Mais um empréstimo junto ao banco quitaria uma parte. Depois, procuraria o coronel Marau para novo empréstimo. Com o dinheiro de um fazendeiro terminaria de pagar ao outro. Assim, ficaria devendo ao banco e ao coronel. Romperia de vez qualquer ligação com Thales. Se fosse o caso, venderia o condomínio para pagar aos devedores. Podiam alugar uma casinha para morarem até Johnny concluir o ensino médio. Karen era conhecida na cidade, não seria difícil arranjar emprego como gerente de loja ou algo parecido.

 

       Dinheiro não era problema, ela enfatizou para si mesma, servindo-se da bebida quente e tornando a se sentar no mesmo lugar. Sim, dinheiro não era problema. O que não se comprava, não se vendia, não se roubava: isso, sim, era um verdadeiro problema. Ainda havia uma ultima opção, a fuga. Pegar o primeiro ônibus de volta ao sul e nunca mais olhar para trás. O que se fazia em Matarana, ficava em Matarana.

 

       Terminou de fazer a barba e, no espelho, viu um homem de olhos azuis toldados por sombras cinzentas. No céu dos seus olhos também ardiam focos de queimada. Saiu do banheiro conjugado à sala. Postou-se diante do janelão de vidro que tomava toda a parede de fundo do escritório. Do 13° andar, no único prédio envidraçado, Thales fitava a cidade feia, com buracos entre as construções no centro, terrenos caríssimos que não conseguiam se vender. A poeira escura erguia-se sujando vidros, roupas, calçados e peles. O esterco dos cavalos amontoava-se no asfalto. Ele, que conhecera muitos lugares no exterior, angustiava-se diante do cenário árido e primitivo da cidade que ajudara a fundar. Lutara para sobreviver ao caos e selvageria dos primeiros anos no cerrado. Escapara de tocaias, planejara outras. Era um sobrevivente em meio aos tantos outros colonizadores que – como a jornalista se referira no artigo – sucumbiram à própria ambição e mataram nativos e foram mortos por eles e também por seus iguais.

 

       Era cedo para beber. Encheu o copo com uísque e emborcou-o numa golada. Desceu o amargor líquido. Isso o acalmou e deu-lhe coragem para fechar a pasta de cartolina que jazia sobre sua mesa de cedro. Na etiqueta apenas o nome: Albuquerque Feitosa. Pegou-a com a ponta dos dedos, como se tivesse receio de se contaminar com o conteúdo. Já estava contaminado, Thales bem o sabia. Abriu o armário vertical e puxou uma gaveta pelo trilho. Localizou a ordem alfabética. Esse era fácil, começava por “A”. Ajeitou a pasta entre Armando Junqueira e Carlos K.

 

       Contratara um investigador particular do Rio a fim de seguir os passos da amante. Quinze homens ela tivera enquanto estavam se encontrando. Em média, três vezes com cada um. Metódica e organizada. Entretanto, nada discreta. Conhecida como a Geni de Matarana, somente possuía o respeito dos outros devido à sua proteção. Ninguém ousaria desrespeitar a amante de Thales Dolejal. Mesmo que ela cometesse tantos deslizes.

 

       Quando o diretor financeiro entrou na sala, ele fez um sinal para que sentasse na cadeira em frente à mesa. Acompanhou-o também se sentando, atento ao outro:

 

       – Fiquei debruçado sobre essa questão a noite inteira, senhor. – começou, folheando um caderno de capa dura: – Procurei aplicar a taxa mais alta do mercado sobre o montante total da dívida. Esforcei-me, como me pediu, para elevá-la, mas a pobre coitada nos deve apenas 20 mil. – lamentou-se.

 

       – Pobre coitada? – arqueou a sobrancelha, interrogativo.

 

       – Desculpe, a senhorita Lisboa. – pigarreou e continuou ainda num tom profissional: – O terreno onde se localiza o condomínio está avaliado em 240 mil. Não temos como pressioná-la a vendê-lo em função da dívida. – torceu o lábio para baixo, sentindo-se impotente por não conseguir agradar ao dono de quase tudo: – Por outro lado, podemos oferecer os 240 pelo lugar e, além de ela quitar a dívida, lucrar tremendamente.

 

       Dolejal crispou os lábios e comentou mal os descolando para falar:

 

       – Ela não o venderá para mim.

 

       O diretor ajeitou-se na cadeira, desconfortável:

 

       – É uma excelente oportunidade...

 

       – Vinda da pessoa errada. – ele escorou-se contra o encosto da poltrona: – Se lhe fizermos tal proposta, ela a levará ao Marau e ele dobrará a oferta. Sabe o quanto aquele camarada quer esse terreno.

 

       – É a localização que o valoriza. O coronel deve estar também pensando em construir um hotel diante do rio, já que na estação das chuvas, tudo ao seu redor brilha verdejante.

 

       – Sim, ainda mais que o governo fechou contrato com uma empreiteira italiana para construir a ponte entre Matarana e Belo Quinto. A cidade vai se encher de europeu. – Thales suspirou resignado.

 

       – Desculpe a intromissão, mas por que o senhor não se casa com a senhorita Lisboa? A situação será então prontamente resolvida. – declarou com um sorrisinho esperto.

 

       Nem dois minutos para considerações.

 

       – A minha paz de espírito não vale apenas 240 mil. Além do mais, jamais cederia o meu sobrenome àquela vagabunda. – disse sem se exaltar, controlado, digno.

 

       – Desculpe, não queria incomodá-lo. – falou sem jeito, o diretor.

 

       – Quero Karen Lisboa de joelhos, na lona, sem nada. Dê um jeito de acabar com ela.

 

       – Senhor... farei o que achar que seja ético. – enfatizou o diretor.

 

       Dolejal fitou-o com a expressão séria e carrancuda de sempre, porém, dessa vez, havia altas doses de amargura:

 

       – Se não está à altura da empreitada, pode dizer. Não me decepcionará, de forma alguma. Mas preciso saber se está disposto a seguir ordens sem contestá-las ou julgá-las. O que você acha, Carlos K.? Karen merece ou não ser punida?

 

       O diretor mexeu discretamente na aliança que usava no dedo médio da mão esquerda. Que mulher! Que corpo! Que personalidade! Ainda sentia falta dela, oh, sim...

 

       – Darei um jeito. Se ela não vender o condomínio, acabará se endividando para nos pagar e, então, compraremos a sua dívida. No fim, a senhorita Lisboa estará comendo na sua mão, senhor. – completou orgulhoso de si mesmo.

 

       – Quero isso resolvido hoje. – ordenou, enfiando dois olhos duros no subordinado.

 

       – Claro, senhor Dolejal. – retrucou, procurando sair sem derrubar nada no caminho.

 

       O efeito da publicação do artigo no Jornal do Cerrado foi imediato. Entretanto, longe da forma como Nova queria que ocorresse. Talvez ninguém lesse o jornalzinho publicado no fim do mundo e distribuído aos arredores. O alcance do jornal local de Matarana não abrangia nem a região metropolitana do estado, muito menos a capital. O camarada gastava cinquenta centavos para ler a coluna social dos caipiras, previsão do tempo e astrológica, informações sobre agricultura e pecuária, a ronda policial e uma historinha de ficção escrita por uma garotinha tola de 13 anos, filha da prefeita da cidade. Explicação: a prefeita era amiga do dono do Jornal. E a filha era uma garotinha tola, porque escrevia sobre vampiros bonzinhos. Em Matarana, só havia vampiros do mal.

 

       Tinha de ser honesta para consigo mesma, de fato acreditara que o espaço cedido pelo seu editor para uma matéria a respeito do idealismo sulista, fosse-lhe a chance de alçar novos voos. Um jornal feito para os latifundiários e as mosquinhas que orbitavam em torno deles – como ela pudera acreditar que chamaria a atenção da mídia nacional? Nem nos mapas oficiais Matarana aparecia. Ééé, não era nada fácil ser os olhos e a voz da cidade, uma vez que fantasmas não se comunicavam.

 

       Nova Monteiro apertava o bolsão contra a barriga, sentada no sofá diante de uma secretária com cara de pêssego murcho, peluda e seca. Céus, a mulher tinha uma penugem de barba!,pensou a jornalista, um tanto nervosa. Sentia-se como se estivesse esperando ser atendida por um dentista. Cruzou e descruzou as pernas. A situação verificava-se bem pior. Na sala impessoal, diante de uma trintona que ganharia mais dinheiro trabalhando no circo, ela esperava ser chamada pelo chefe. O problema era que não era o seu chefe de Redação; era o de todos. O pai de todos. O dedo mais comprido da mão. No fundo, pressentia que não seria apenas demitida. Tal função não era designada por um maioral, qualquer ratinho a cumpriria. Havia ainda mais porvir.

 

       Retratação pública? Processo por calúnia e difamação? Merda!,bem que Cris havia-lhe avisado para não mexer em vespeiro. Cris e quem mais? Ah, sim, a força policial de chapéu!

 

       O melhor a fazer era ligar o gravador dentro da bolsa e deixar a conversa rolar.

 

       – Você só pode estar brincando! – ela riu de um jeito estranho, a boca torceu-se com repulsa.

 

       Dito isso, ergueu-se da cadeira e saiu da sala. No corredor, martelava os passos com raiva sobre o carpete de seis milímetros. Controlava um bicho raivoso que secava a garganta de voz. Percebeu uma pessoa sentada na antessala do escritório do fazendeiro, via apenas um borrão colorido. Em seguida, a secretária enfiada num terninho bege surgiu diante dela como um maldito guarda de trânsito:

 

       – O senhor Dolejal está em reunião, senhorita Lisboa.

 

       – Sai da minha frente, manga chupada! – falou entre os dentes, quase rosnando.

 

       A outra não saiu. Era assim mesmo, em terra de homens cretinos apenas mulheres fortes sobreviviam. Então Karen empurrou a secretária contra a parede e entrou. A ação foi bem simples, por sinal.

 

       – Não vou vender os meus bangalôs nem o terreno! – gritou para o homem concentrado em escrever coisas num papel.

 

       Dolejal ergueu a cabeça lentamente e quase sorriu ao vê-la a poucos passos do descontrole.

 

       – Baixe o tom de voz, Karen.

 

       – Não entendo por que quer me ferrar se vai casar com uma texana rica. – balançou a cabeça exasperada e completou tentando impor firmeza à voz: – Por que ainda faz tanta questão em dificultar tudo?

 

       – Carlos lhe fez uma proposta meramente comercial. Pondere a respeito e depois nos traga uma resposta coerente. – falou com frieza, dando a entender que os papéis à sua frente eram mais importantes que ela.

 

       – A resposta é NÃO e sempre será NÃO. – gritou, as mãos na cintura.

 

       – Certo, então, outro dia conversamos. – baixou a cabeça e tornou a ignorá-la.

 

       Como se isso fosse possível.

 

       Ela odiava a pose de superior arrogante que ele sempre exibia para tentar diminuí-la. Pouco importava se essa atitude fosse uma proteção contra os anos de violência do avô garimpeiro. Que se danasse!, todo mundo tinha uma merda qualquer no passado e não era por isso que se decidia esmagar outras pessoas por aí. Ainda mais ela. Ainda mais eles. A história deles, podre ou não, era uma história.

 

       Assustou-se consigo mesma com o que falou e com a calma que revelou ao decretar:

 

       – Jamais pagarei o que lhe devo, porque quem me deve é você.

 

       Thales encarou-a com uma expressão que revelava curiosidade e divertimento.

 

       – É mesmo?

 

       – Sim, pode mandar um dos seus pistoleiros acabar comigo.

 

       – Você, especificamente, não me interessa.

 

       Karen gelou, mas manteve a pose.

 

       – O coronel machucaria a minha família, disso não tenho dúvida, mas você... – a voz falhou.

 

       – A promissória de sua dívida será protestada, Karen, e isso independe de minha vontade. Tenho uma empresa, e você contraiu empréstimos junto a ela. O meu diretor deu-lhe todas as informações de que necessitava saber para resolver a questão da forma mais sensata e racional possível...

 

       – Tudo isso é por causa do Albuquerque, não? – interrompeu-o num tom maldoso: – Detestou saber que um diretorzinho de escola pública transava comigo, com a sua amante constante. – riu-se com cinismo e emendou: – Engraçado, acabei de descobrir a minha função em sua vida, eu era a sua amante constante. Só quando acaba a gente entende o que aconteceu.

 

       Ele esboçou um leve sorriso na máscara de aço:

 

       – Se você fosse minha noiva ou esposa, com certeza me importaria com suas infidelidades. – deu de ombros, indiferente, e completou com cinismo: – Mas uma amante, constante ou não, como você disse, é só aquela usada para se aliviar.

 

       – Pois é, e mesmo a amante servindo somente para isso, ainda assim consegue deixá-lo abalado ao ponto de mobilizar um diretor financeiro para me atacar. – afirmou, encarando-o sagazmente.

 

       – Não se dê tanta importância, Karen. Já deixei bem claro que é o seu terreno que me interessa. – retribuiu, impassível.

 

       – Isso nunca terá. Prefiro pôr fogo em tudo e encher aquele solo de veneno a entregar para você. – declarou com raiva.

 

       Dolejal suspirou profundamente e disse com calma:

 

       – Atitude de uma mulher acéfala. Parece que a sua teimosia é maior que a sua inteligência. Com quase 300 mil pode dar a si mesmo e a sua família uma ótima vida. Como pagará a faculdade do Johnny? E o convênio médico da sua avó? E os seus sonhos?,não tencionava conhecer o Marrocos? – alçou a sobrancelha, interrogativo.

 

       Karen engoliu em seco. Ele estava certo.

 

       – Eu tenho o que você quer e não o darei. – empinou o nariz, altiva. – O resto resolvo, sempre resolvi. – completou, sorrindo com uma segurança que estava longe de sentir. Mas ele não o sabia.

 

       – Mensagem recebida. Agora, por favor, volte à sua vidinha de proprietária de casebres. – disse com um esgar de lábios que sugeria profundo desprezo e baixando a cabeça a fim de encerrar a conversa.

 

       Foi então que Karen percebeu duas portas. Uma delas, à sua frente e fechada; outra, atrás, aberta. Uma moça na faixa dos trinta fitava-a a espera de algo, como se tivesse apostado um punhado fichas nela. A moça havia presenciado a cena desde o início e aguardava o desfecho. Um punho fechado esmurrava a ponta de uma faca. E era Karen esmurrando o próprio coração.

 

       – A primeira vez que nos encontramos, você vestia preto e tinha os olhos mais velhos que eu jamais havia visto. Pensei que voltasse de um enterro ou que tivesse acabado de matar alguém que amava. – parou, esperando que ele demonstrasse alguma emoção por trás do véu de ferro; enfim, continuou, lutando para chegar até o fim sem desabar: – Em nome desses dez anos, Thales, me deixe partir em paz. Planejei tudo, poderei pagá-lo em um ano. – puxou todo o ar do recinto, observando que as sobrancelhas dele uniam-se e isso era um claro sinal de que se formava uma tempestade: – Me deixa criar o meu filho na minha casa, no lugar que meus pais construíram. Você tem tanto... – fez um gesto amplo com as mãos: – O que é um terreninho de nada...

 

       Pela primeira vez, Karen viu Thales Dolejal sorrir. Um sorriso suave, bonito, com duas covinhas em cada lado das bochechas.

 

       – Escute, Karen, vou dizer mais uma vez, empréstimos são com o departamento financeiro. – disse com calma, saboreando cada palavra. A seguir, acionou o interfone e ordenou com a mesma tranquilidade: – Senhorita Freitas, preciso de seguranças aqui na minha sala, por favor.

 

       – Sim, senhor Dolejal.

 

       Ela saiu antes de ser jogada na calçada como o tratamento dispensado aos bêbados e briguentos do Bar do Gringo. Não saiu com dignidade nem tentou demonstrar indiferença. Fingir não lhe era o forte. Mas sobreviver sim, tinha de ser. Antes de dar às costas ao fazendeiro, permitiu que uma lágrima se suicidasse do alto de sua pálpebra e escorregasse lentamente pelo rosto e, mais que isso – uma vez que por ser mulher não chorava – permitiu que o seu algoz visse a lágrima. E daí? Nada mudou. Não lhe nasceram sentimentos no peito nem arco-íris despontaram no horizonte. Ele pouco se importava. E ela tentava também ser assim.

 

       Nova sabia quem era a locomotiva de cabelos negros quase azul marinho. O povo dizia à meia-boca que fisgara de jeito um dos donos da cidade. Quando chegara a Matarana descobrira que as notícias mais interessantes não estavam no jornal. Na barbearia, butiques, salões de beleza, debaixo dos toldos das sorveterias e nas agências funerárias. Por todo o lado, comentaristas, narradores e repórteres amadores averiguando, fuxicando e observando a vida de todos. Na redação do Jornal, cogitavam até mesmo se Nova era lésbica e Cris gay ou se eram amantes. Nem um nem outro.

 

       Pelo visto a situação da vaqueira mudara drasticamente. Debaixo daquele chapéu, tinha uma mulher tomada por uma explosão hormonal capaz de pôr abaixo um prédio. E saíra do escritório do fazendeiro chispando fúria, disposta a pôr fogo no cerrado.

 

       Interessante a situação criada. Nova seria demitida e espancada, já que o chefe agora devia estar querendo arrancar a pele da primeira mulher que visse. Excluindo, obviamente, a mulher barbada. Apertou ainda mais o bolsão contra o corpo, tentando ignorar uma incipiente cólica intestinal. O homem era frio e ambicioso, dominador e controlador, estalaria os dedos e Nova Monteiro desapareceria. O negócio era não enfrentá-lo, não bater de frente. Com certeza, Thales Dolejal era do signo de leão. E como uma legítima libriana que dançava conforme a música e sem esquecer o charminho, teria de fingir que lhe admirava o poder e a importância para a cidade que – diga-se de passagem – era uma grande bosta.

 

       Conduzida à arena, ela esperou a secretária fechar a porta atrás de si e receber o olhar sério daquele que, sinalizando para a cadeira, convidou-a a sentar-se. E a sentença foi promulgada.

 

       – Li o seu artigo esta manhã. – falou, voz grave ligeiramente baixa e rouca, sem emoção alguma.

 

       Certo, podia dizer que escrevera com uma arma apontada contra sua têmpora esquerda.

 

       – Não quis ofender os colonizadores da cidade, de forma alguma, ainda mais sendo eu me-mera forasteira. – tentou fazer charme.

 

       Não funcionou. Ele a fitava tentando extrair algo de seu cérebro. Parecia com o tipo de olhar do maldito delegado, desconfiado e perturbador. Na verdade, o pessoal que chegara antes em Matarana era um bando de desconfiados e para eles, os que vieram depois, tão forasteiros quanto os próprios, não prestavam.

 

       – Não ofendeu, senhorita...

 

       – Mon-Monteiro...desculpe, não é Mon-Monteiro, é só Monteiro. Eu mo-moro com o doutor Cristiano Bittencourt, pediatra do hospital, do único hospital e sou muito muito amiga do delegado, o...o Malverde... Não é engraçado Malverde?,parece algo bem contrário à consciência ecológica.

 

       Pronto. Fodera tudo. Gaguejava e falava idiotices. O que esperar senão um alçar de sobrancelhas? Bom, pelo menos ele saberia que a idiota que escrevera o artigo não representava perigo.

 

       – Você está bem? – perguntou, intrigado.

 

       – Desculpe, não posso ser demitida. Cantar no Bar do Gringo não é a minha primeira opção.

 

       Thales escorou-se no encosto da cadeira estofada e observou a funcionária com mais atenção.

 

       – Acalme-se, não vou demiti-la. – disse, incisivo.

 

       Nova respirou fundo e tocou com a mão no gravador dentro da bolsa.

 

       – Não vai me demitir? – perguntou, alteando o volume da voz.

 

       – É surda? – direto e seco.

 

       – Um pouco. – sorriu meio sem jeito. – Gosto muito de trabalhar no Jornal. Sinto-me realizada profissionalmente. – mentiu até a raiz do cabelo.

 

       Dolejal mexeu o canto do lábio do jeito que as pessoas que ponderavam sobre algo o faziam. Depois, cruzou as mãos debaixo do queixo e indagou-lhe sobriamente:

 

       – Foi você mesma quem escreveu o artigo?

 

       – Cla-claro.

 

       É, ele acreditava que ela era uma idiota.

 

       – Estou investigando um gato que anda rondando a região e trazendo trabalhadores de outros estados para serem escravizados nas fazendas do coronel Marau. – analisou os efeitos de suas palavras na expressão cerrada do inimigo do coronel.

 

       – Tem provas?

 

       – Ainda não, mas quando as tiver preciso de sua permissão para lançar a bomba. –sondou-o.

 

       – Acha mesmo que isso é uma “bomba”? – enfatizou a palavra com um arquear de sobrancelha. Havia ironia naquele tom de voz. Nova estremeceu.

 

       – Isso não interessa o senhor?

 

       Ele deu de ombros, indiferente:

 

       – É peixe pequeno, Nova Monteiro. Traga-me algo maior e lhe darei a editoria do Jornal do Cerrado. Tem muita gente acomodada naquela Redação.

 

       Dolejal acreditava nela. Pela primeira vez alguém não lhe barrava o caminho. Ajeitou-se na cadeira cheia de energia.

 

       – Descobrirei a sujeira mais profunda de Marau e a lançarei contra o ventilador. –prometeu.

 

       O fazendeiro olhou-a de um jeito como os ateus olham para os religiosos:

 

       – Certo, certo. Antes, porém, preciso contratar os seus serviços de jornalista. Quero contar a história de Matarana, a sua colonização. Um registro histórico, em forma de livro, se faz necessário para qualquer cidade. E os cidadãos saberão que oficialmente o principal colonizador de Matarana foi Onório Dolejal, o meu avô.

 

       Os olhos de Matarana. Quase uma premonição. Venderia tais órgãos a quem lhe pagasse mais ou seria fiel aos seus princípios? Diante de si, a escada para subir e subir. No canto da escada, Cris esperando a resposta e Malverde sorrindo com ironia, sabendo que ela toparia subir os degraus do poder.

 

       Pegue seus valores, a sua liberdade e a sua honra. Embrulhe para viagem. Nova assentiu sem falar. Temia estragar tudo e dizer que contaria, sim, a verdade da colonização, e não um lado da história. Parecia até que o fazendeiro esperava por essa sua reação, pois, depois de apertarem as mãos, ele ainda manteve um olhar expectante sobre ela. Deu-lhe chance para acatar a voz de sua consciência. Deu-lhe chance para ser uma pessoa boa em busca da verdade. Ora, Sócrates, me poupe, você tinha escravos!

 

       – Todos os acertos serão comigo, isso é pessoal. Portanto, quero que vá à minha casa amanhã à tarde, a fim de tratarmos de valores e agendas.

 

       O elevador panorâmico mostrou-lhe que se distanciava do céu e chegava lentamente – andar por andar – perto do chão. E era no chão que os humanos viviam. Assim, decidiu comemorar a promoção bebendo no lugar onde, às quintas e sábados, fingia também – mas que era Dolly Parton – e não alguém dedicada a uma causa.

 

       Nova Monteiro estava tão feliz e satisfeita que prometeu presentear-se assim que pudesse. Bastava esperar Cris voltar do hospital. Havia melhor presente que levar para cama o homem que amava?

 

       Parou o Fusca em frente à entrada do condomínio, tirou a chave da ignição e saiu para a calçada. Ajeitou o chapéu na cabeça e acompanhou com o olhar atento a saída de um casal. Atrás, o zelador. Outros que desistiam de alugar um dos bangalôs. Qual teria sido a desculpa desta vez?

 

       – É a pintura, patroa. Eles foram pintados há vinte anos, as paredes estão encardidas e manchadas. – declarou Alemão com as mãos nas ancas. – Temos de pintar as casinhas ou diminuir o valor do aluguel e deixar as putas tomarem conta. Seria um bom lugar para elas fazerem os programas. – disse, animado.

 

       – Se eu quisesse puta no meu condomínio, contrataria uma texana. – falou Karen com raiva e entrou no escritório.

 

       O zelador a seguiu coçando a cabeça quase calva. O que o Texas tinha a ver com as putas? Ele não entendeu. Apenas seguiu-a até vê-la encaminhar-se até o cofre, enquanto ele enchia a cuia do chimarrão com água quente.

 

       – Teremos de pintá-los, Alemão.

 

       – Debaixo desse sol? – fez uma careta.

 

       – Não, podemos esperar chegar a estação das chuvas e pintar debaixo d’água. – ironizou, mal-humorada.

 

       – Ou podemos contratar pintores profissionais para isso. – sugeriu.

 

       Karen contou as cédulas e tornou a fechar o cofre.

 

       – Pensa que estamos na Disney, é? Acorda, meu chapa, nós mesmos teremos de pôr a mão na massa.

 

       – A gente podia chamar uns amigos para nos ajudar ou levaremos mais de um ano pintando todos os bangalôs.

 

       – Ah, claro, boa ideia, junte seus amigos bêbados que eu juntarei os meus invisíveis.

 

       – Aonde vai?

 

       Ele a observou guardar o dinheiro no bolso traseiro do jeans, pôr os óculos escuros e pegar as chaves do carro. Ela nem se voltou para responder:

 

       – Comprar as tintas e arejar a cabeça.

 

       Coçou novamente o crânio, preocupado. Resolveu arriscar:

 

       – Ei, patroa, como foi com o Dolejal? – gritou.

 

       – Nada feito. – gritou de volta.

 

       Quando a poeira ergueu-se no ar, escura e pesada, o zelador já sabia o que teria de fazer. Não afundaria na canoa furada. Jamais fora adepto de vestir uniforme alheio sobre a pele suada de seu corpo de trabalhador. O coronel estava sempre contratando mão de obra. Havia também a empreiteira que construiria com os italianos a nova ponte. Voltou-se para a fachada discreta do condomínio e mentalmente despediu-se do lugar. Era um homem simples e criado para trabalhar para os outros, e não para se enterrar com os outros. Decidiu que aquela noite seria a última. Mas não foi a única decisão que tomou naquele momento. Digitou os números da delegacia e falou com Adele:

 

       – Avise o delegado que a Karen vai ao Bar do Gringo arejar a cabeça.

 

       – Humm, entendi.

 

       A escrivã relançou um olhar curioso a Rodrigo, que falava ao telefone na sua sala. À porta, ela parou e disse a contragosto:

 

       – Pretendia voltar mais cedo para casa hoje?

 

       Ele pôs o fone no gancho e gemeu baixinho:

 

       – Ai, o que aconteceu?

 

       – Uma frase apenas: Karen Lisboa foi arejar a cabeça no Bar do Gringo.

 

       A policial se pôs a rir ao ver a careta do delegado. Todas as vezes que isso acontecia, ele tinha de salvá-la de alguma briga. Noutras vezes, o próprio Dolejal mandava um de seus seguranças a fim de levá-la de volta a sua casa. Rodrigo suspirou, profundamente, e se afundou na poltrona. Telefonou para o fazendeiro.

 

       Karen perdeu muito tempo escolhendo o tipo de tinta, a cor e o melhor preço. Rodou por cinco ferragens, pesquisou catálogos, analisou a teoria das cores. Bajulada pelos proprietários, que ainda não sabiam do seu rompimento com Dolejal, conseguia bons descontos. Era engraçado ver os patrões empurrando para um canto os funcionários na vã tentativa de obter da amante do poderoso fidelidade eterna e, por extensão, a de Thales Dolejal também. O mais engraçado ainda era que, após a sua saída, um rastro de murmúrio venenoso seguia-lhe até o Fusquinha. E as palavras “amante”, “vaca”, “vadia” e “bêbada” tomavam carona no lombo das cinzas que desciam do céu.

 

       Voltou ao condomínio e deixou as latas no depósito. Escolhera um tom claro de verde e a quantidade necessária para se pintar apenas um bangalô. Tudo teria de ser feito aos poucos.

 

       Sobre a mesa da sala, um bilhete cuja letra não passava de garranchos de quem mais digitava do que escrevia à mão. Nele, Johnny comunicava a quem interessasse que ele dormiria na casa de um amigo. Karen pegou o papel com desânimo. Era difícil manter uma conversação leve com o filho por mais de meia hora. Tinha de disputar atenção com o computador, o vídeo game, a televisão e os amigos. Obviamente, conversar com a mãe não era o programa mais divertido da lista.

 

       Resvalou o olhar para o armário no canto da sala. Abriu-o e pegou uma garrafa quase vazia. Serviu-se de uma generosa dose de vodca e bebeu-a num gole só. Sabia que Ninita jantaria com o amigo advogado. Amigo recente, por certo. A avó guardava segredos. Mas, com certeza, não eram segredos sexuais.

 

        Sentou-se na banqueta em frente ao balcão do bar e cumprimentou Frederico, o barman, filho do gringo. O proprietário, tão brasileiro quanto qualquer cidadão de Matarana, recuperava-se de uma rinoplastia.

 

       – Tudo certo, Karen?

 

       – Uísque sem gelo. – foi a resposta.

 

      Frederico nunca achou Karen Lisboa simpática. As gorjetas eram miúdas, os olhos eram irônicos, tinha postura de homem ao sentar, ao caminhar e ao manter-se a noite inteira em silêncio enquanto esvaziava os copos. Mas havia algo nela que o atraía, talvez fosse a autenticidade. Ela era aquele tipo raro de mulher que expunha os defeitos e escondia as qualidades. E isso lhe dava uma aura de originalidade, ainda mais num lugar tão artificial quanto Matarana. Normalmente, as esposas e também amantes dos fazendeiros não passavam de peruas incultas, mulheres do interior que haviam enriquecido rapidamente, deslumbradas, exageradas. Ao passo que Karen com o seu eterno chapéu enterrado na cabeça, compunha o quadro do humano comendo poeira e recitando palavras contra o redemoinho de um tornado.

 

       – Espero que hoje não queira fazer dueto com nossa cantora. – brincou.

 

       Ela sorriu e, automaticamente, voltou-se para o palco. Avistou Nova cantando e dedilhando o violão. Apertou os olhos e reconheceu-a no minuto seguinte. Puta merda!,ela estava na antessala de Thales. Deu-lhe as costas e emborcou o uísque, fazendo uma careta horrível.

 

       – Quando desce o amargor, sobe o ardor. – brincou com o barman. – Mais um, amigo.

 

       Obedeceu-lhe e despejou o seu uísque mais barato. Estranhava que a proteção de um latifundiário não rendesse à mulher uma vida melhor ou pelo menos certos mimos. Lá estava ela, cabisbaixa, absorta em seus pensamentos, bebendo sozinha e, provavelmente, sendo objeto de comentários mordazes pelas mesas.

 

       Os acordes de When He LeavesYou ressoaram, e a voz de Nova era límpida e delicada. Karen pediu outra dose. Uma angústia tomava-lhe o peito, assemelhava-se a um balão de gás prestes a explodir. Bateu o punho fechado contra a madeira do balcão. O cliente ao lado olhou-a com as sobrancelhas franzidas. Reconhecendo-a, sorriu o sorriso tipicamente soberbo. Ela o encarou com uma baita vontade de feri-lo. Às vezes, sentia isso, vontade de machucar, tirar sangue, aliviar a dor batendo em cretinos.

 

       – Por que está me olhando, velhote?

 

       De pronto, Frederico surgiu atrás do balcão e fitou sério o desgraçado com bigode de mexicano e quase seis décadas curvando-lhe os ombros:

 

       – Acho que o amigo já terminou de beber, não?

 

       O amigo riu com vontade e apontou para Karen:

 

       – Ué, mulher bonita não é para se olhar?

 

       – Não essa aqui. – enfatizou Frederico.

 

       Se usasse a linguagem de Johnny, diria para o barman apertar a tecla F5 e atualizar-se.

 

       – Por quê? – perguntou em tom de desafio e quase teve pena da expressão perplexa em seus olhos castanhos.

 

       – Acho que o nosso amigo não sabe que você é protegida do Dolejal. – afirmou com um sorriso cúmplice.

 

       Imediatamente, o camarada cheio de si contraiu-se na cadeira e a olhou como se ela tivesse três chifres. Reação natural por parte de alguns homens, afastavam-se temendo bater de frente com o fazendeiro e seus capangas. Outros, porém, agiam de forma oposta. Eram atraídos pela aventura de conquistar a mulher de um homem tão admirado quanto temido pelos demais colonizadores. Os que ergueram Matarana a partir de um acampamento de lonas haviam conhecido a árvore da qual o fazendeiro rendera fruto, o avô garimpeiro, o mal encarnado.

 

       – Protegida ou propriedade, Fred? Apenas sirva as bebidas, ok? Fiz dezoito ontem. – debochou.

 

       – Como quiser. – disse ele, balançando a cabeça, resignado.

 

       Esvaziou novamente o copo. Limpou a boca com o dorso da mão. A visão turvava-se e o lábio inferior estava anestesiado. Boa calibragem. A perfeita. Virou-se para trás a fim de apreciar melhor a apresentação da cantora. O público do Bar do Gringo era melhor que o do Colono Tranquilo. O que não diferenciava quase nada. Talvez o fato de ter música ao vivo e não possuir mesas de sinuca, elevava um pouco o nível do Gringo. Filhos de fazendeiros, gerentes de banco, empresários e advogados compunham uma parcela dos frequentadores que, ignorando a boa educação e a boa música, permaneciam conversando entre si. O som das vozes e copos a irritavam. Levou um cigarro aos lábios e, antes mesmo de tirar o isqueiro do bolso do jeans, a cabeça de um fósforo em chamas surgiu-lhe em frente ao rosto. Aceitou o gesto, segurando entre as suas as mãos do homem.

 

       – Obrigada...

 

       – Júlio. – disse-lhe, acrescentando a essa informação um sorriso.

 

       – Certo, Júlio.

 

       Karen testou a resistência do chão, estava firme. Ergueu-se sobre as botas e ajeitou o chapéu. Sacou umas notas amassadas e pôs sobre o balcão. Tentou sorrir para o barman, já que ele parecia emburrado. Paciência, quando Fred soubesse que Dolejal a dispensara, as suas gentilezas também sumiriam. E os proprietários das ferragens, padarias, lojas de roupas e até mesmo o diretor da escola de Johnny, todos, também a dispensariam.

 

       Incitou os primeiros passos seguindo uma linha reta imaginária. O problema era que o desenho que ela formava no assoalho gasto possuía curvas e atalhos; seguia, então, por uma via em ziguezague. Quando alcançou a porta, descansou, encostando-se contra a parede.

 

       – Acho que não está em condições de dirigir. – falou uma voz masculina e gentil bem perto do ouvido, e, havia pouco tempo, ouvira-a pronunciando a palavra “Júlio”. Virou a cabeça em direção ao cara que podia estar em um outdoor.

 

       – Deus me guia. – ironizou, poupando-se de sorrir.

 

       Queria apenas entrar no carro e enfiá-lo contra uma árvore.

 

       – Já me apresentei? – sorriu com charme e estendeu a mão: – Deus. E você, como se chama?

 

       Cantada original no pedaço, pensou Karen, retribuindo o sorriso e apertando-lhe a mão.

 

       – Não sabe? Todos o sabem. Tenho uma etiqueta grudada na nuca e um selo de propriedade no rabo.

 

       Júlio riu, divertido.

 

       – Adoro mulheres perversas. – brincou.

 

       – Perverso é beber e não conseguir sair do lugar. – debochou, impondo-se firmeza nos ombros e equilíbrio nas pernas.

 

       – Vamos, me deixe levá-la para casa. – insistiu.

 

       – Não vou pra casa. – decretou.

 

       O outro alçou a sobrancelha, surpreso. Podre de bêbada e não ia para casa?

 

       – Onde quer que eu a deixe?

 

       – Olha, Júlio, não estou a fim de papo. Obrigada pelo fósforo, mas dispenso o fogo, ok?

 

       – Me sinto na obrigação de levá-la até sua casa.

 

       – Acha que é a sua noite de sorte, companheiro? – debochou, batendo com a mão no ombro do homem.

 

       – Sim, é a minha noite de sorte. – declarou, sorrindo.

 

       – Então aproveita e dorme. – completou, mal-humorada.

 

       Soltou-se da parede tentando parecer convincente no papel de alguém que não precisava de apoio. À porta, parou e respirou fundo. Queria muito machucar alguém. Que merda de ser humano pensava assim?

 

       Ao abrir a porta do Fusca, o tal Júlio agarrou-a com força e deitou-a sobre o capô do automóvel. Bem, ela era uma mulher, e não uma princesa de contos de fada. Encarou a ousadia masculina como uma das maiores faltas de noção da década. E bastou-lhe erguer o joelho para pôr na lona a atitude dominadora do suposto macho alfa. Arqueado e gemendo baixo, Júlio afastou-se com o rosto vermelho. Karen jamais entenderia por que as bolinhas eram tão sensíveis.

 

       – Eu avisei. – balbuciou, apontando-lhe o dedo em riste e trocando as pernas.

 

       Arrancou fazendo vibrar o motor do liquidificador sobre rodas. Quase ficou com a bengala do câmbio na mão ao trocar a marcha, abandonando a resistência e apostando na velocidade. Pisou fundo, o veículo engasgou mas manteve a garra. Mirou os faróis na ruazinha que, em minutos, transformou-se numa estrada de chão batido. O carro se sacudia todo, e Karen imaginou se o seu baço não desceria para uma das panturrilhas. Fechou os vidros para não se asfixiar na terra que subia como o bafejo do diabo. Apesar dos solavancos, conseguiu manter as mãos no volante e o cano de descarga no lugar onde deveria estar. Trafegava sozinha com a cabeça cheia de álcool, as veias gordas de sentimentos extremos e o instinto de caçadora indicando-lhe o lugar onde encontrar o outro caçador.

 

       A direção era reta e poderia segui-la de olhos fechados, seguindo o cheiro da terra, da terra onde ele plantara a soja, fincara a primeira bandeira de pose, que lhe arrancara do peito a ingenuidade e o sorriso e entregara a ânsia pelo poder e a fome por dinheiro. O pioneiro que desbravara a região mais ao norte do centro-oeste, onde, mesmo sendo forte, não era o suficiente para sobreviver feliz. Desbravava, ela, agora, o núcleo mais profundo de Matarana, enquanto dirigia na estrada que levaria aos portões de entrada da Arco Verde. E, após ultrapassá-los, ainda tinha um bocado de estrada pela frente.

 

       Preparava-se para uma batalha. Não chegaria com tanta facilidade até a casa-sede da fazenda. Na segunda porteira, dentro da guarita blindada, dois seguranças armados. Passando por eles, teria apenas de concentrar-se nos pistoleiros espalhados pelo pátio e no braçodireito de Thales, Franco. O último, praticamente um filho de criação, andava para cima e para baixo de olho em tudo e em todos feito um legítimo paranoico dos infernos. Na cintura, a Glock; no cós traseiro do jeans, a Magnum. Em uma das botas, o canivete automático com lâmina de 105 mm. Talvez entre os dentes guardasse uma Beretta 21A Bobcat, Karen considerou. Se passasse por Franco, chegaria até Thales. O rapaz tinha 22 anos e perdera a virgindade com ela. Um homem seria mais fiel ao seu patrão ou à mulher que o tornara de fato um homem?

 

       Ela teria de descobrir na marra. Reduziu a velocidade, encurvou-se enfiando a mão debaixo do banco ao lado. Tateou até encontrar a amiga de viagem. Girou o tambor e seis garotas brincavam no parque. Sorriu, satisfeita. Melhor ainda se desta vez não atirasse no próprio pé.

 

       Diante da porteira fechada, parou o automóvel coberto de poeira. Girou a manivela, baixou o vidro. Enfiou a cabeça para fora e tentou sorrir. Os olhos vermelhos e as pálpebras inchadas detonaram o seu melhor figurino.

 

       – Ei, como vai a família, abre a porteira. – disse, num fôlego só.

 

       Charles Bronson nem disfarçou a pistola na cintura. Pelo contrário, exibiu-a como uma bem sucedida ereção. Karen já vira maiores.

 

       – Não vai dar, não, dona Karen.

 

       Ele falou sem pesar.

 

       – A vadia do Texas já está aí? – inclinou a cabeça em direção à porteira.

 

      – A senhora não tem mais permissão para entrar. – resmungou o velhote.

 

       – Depois de uma década, é isso que me sobra. Acha justo?

 

       A expressão carrancuda não mudou.

 

       – Ordens do patrão.

 

       – A ração aqui é boa, meu chapa?

 

       Engatou uma ré e manteve os olhos no camarada, que já levava a mão ao cós do jeans puído. Teria ordem para atirar nela?

 

       – O Dolejal mandou que atirasse em mim? – por via das dúvidas era melhor perguntar.

 

       – Caso use o revólver que está debaixo do banco, sim.

 

       Ela sorriu e teve de concordar com a prudência do homem.

 

       – Se não me querem aqui, que posso fazer? Tenho de cuidar da minha autoestima, sabe? – piscou o olho.

 

       Ganhou a distância que precisava, mudou a marcha, pisou na embreagem, a mão no câmbio, a dança sincronizada dos pés nos pedais, embreagem, acelerador. Fundo, rápido, inesperado. Trepidou e quase perdeu o fôlego, o Fusquinha riscou o chão de terra e atropelou a cerca de madeira, pondo abaixo as tábuas pintadas de branco. Ouviu o berro do segurança, mais parecia um grito de susto. Ele concentrara-se num tipo de arma; ela tinha outra.

 

       Um pedaço de madeira lançou-se pelos ares e quando voltou acertou em cheio o capô. Pedras batiam contra o assoalho e o motor dava tudo de si. O que não era grande coisa. Nem precisou usar o retrovisor para ver o segurança já com a .9 mm na mão correndo atrás do Fusca. Mais três pistoleiros surgiram detrás dos arbustos. Naquela cidade, pistoleiros caíam de árvores. Ao chegar próximo à varanda do casarão, diminuiu a velocidade e estacionou em oblíquo.

 

       Saltou do carro, deixando a porta escancarada, deu dois passos e tropeçou na cabeça de um cascalho. Chutou-o longe, praguejando. O revólver na mão que balançava para todos os lados. Os caras se esquivavam, avaliando um modo de abordar a ex-amante do patrão sem se ferirem.

 

       – Ele venceu. Você acabou de lhe conceder a vitória. Depois de tanto tempo lutando, jogou a toalha na lona e aceitou a superioridade de Thales. Que pena, Karen. Juro por Deus que apostava no seu time.

 

       Franco apareceu na varanda, as mãos erguidas, o jeans gasto e a camiseta de banda. Usava o tom de voz que acalmava os cavalos. Já usara em outra ocasião com ela também.

 

       – Vem cá, – ele disse – me dê essa coisa que acredita ser uma arma e vamos beber mais um pouquinho.

 

       – Onde está o Thales?

 

       – No interior de São Paulo, leilão de gado. – deu de ombros. – O que ele quer, faz. Sabe como esse tipinho é?

 

       – Mentira. – farejou no ar.

 

       Franco balançou os cabelos loiros, que lhe alcançavam pouco acima dos ombros.

 

       – Humm, nada como uma boa bebedeira para potencializar os instintos. Mas, infelizmente, deve estar sentindo o cheiro da colônia e não do homem.

 

       – Sinto cheiro de cretino. Logo, ele está em casa. – debochou.

 

       – É evidente que veio para se humilhar, mas, me diga: de quê forma? Tentando matar o Dolejal ou pedindo para voltar? – falou cheio de si.

 

       Bronson postou-se centímetros atrás dela. Voltou-se e apontou o .38 para ele. Bruce Willis dava de dez a zero nesse camarada.

 

       – Quer ter a pistola perfurada?

 

       – Menina, você está bêbada demais para saber o que está fazendo.

 

       – É só chamar a polícia, seu merda! – gritou, e, imediatamente, os cães latiram.

 

       – Se a gente tivesse soltado a cachorrada, a potranca não teria entrado! – gritou um do bando.

 

       – Cadê o respeito, Mendes? – Franco repreendeu-o.

 

      Mendes era um sujeito atarracado, feio e com os modos de um troglodita. Era o burro de carga dos caras que faziam a segurança da Arco Verde. Quarenta e poucos anos na telha, duas mulheres e cinco filhos. Morava no condomínio de casas dos funcionários da fazenda. Ele nunca fora com as fuças da mulher-macho que o patrão arranjara para transar. Mas Franco mandava e quando o garoto falava duro era melhor encolher-se e acatar. O mundo, agora, era dos jovens. Puta merda!,a humanidade estava bem fodida. Vez por outra, ele sentia uma coceira estranha na mão que o levava a pegar na espingarda e apontar para a cabeça do garoto. Caso um dia a coceira lhe subisse à cabeça, explodiria os miolos jovens do protegido do patrão e depois fugiria para a Bolívia.

 

       – Não estou para brincadeiras, vou usar essa merda no primeiro desgraçado que me impedir de entrar.

 

       Dito isso, o que aconteceu foi o contrário. Bronson enlaçou-lhe o pescoço e puxou-a contra si. O puxão foi tão forte que ela se chocou contra um tronco firme e preparado para o rugby. Aproveitando a deixa, Mendes atirou no .38 de Karen, que foi jogado longe. Um segundo depois, quatro seguranças caíram sobre ela, derrubando-a no chão. Por um momento, Franco manteve-se distante, observando a cena. Tentavam prender as pernas da mulher que os chutava e os acertava em várias partes do corpo. Eles riam e tornavam a tentar prendê-la, como faziam com os bezerros. Karen era alta, forte e, Deus Pai!,tinha gordurinhas bem localizadas, ancas, bunda, coxa – Franco ajeitava o chapéu cheio de tesão.

 

       Quanto mais ela gritava e esperneava, mais eles se divertiam. Rindo, tentavam amarrá-la pelos tornozelos. Podiam abandoná-la amarrada no mato para torrar debaixo do sol de quarenta e quatro graus ou atirá-la no Rio Verde até ser devorada por uma sucuri ou um jacaré. Podiam se divertir com ela numa das cabanas e currá-la. Karen Lisboa não era ninguém. Um lixo hospitalar indesejado. Descartada por Thales Dolejal, após dez anos de uso, havia perdido a proteção, o respeito e a condição de mulher decente ou, traduzindo, amante de latifundiário.

 

       – Chega, pessoal, vamos pô-la no Fusca. – Franco disse e deu fim à brincadeira.

 

       Ele tentou manter o sorriso ao desviar os olhos da mulher machucada, suja e deitada sobre a terra seca para os faróis que lançaram luz sobre o seu rosto.

 

       Teve um dia em que o Gringo sugeriu que ela usasse uma peruca loira e enchimentos debaixo do sutiã. Sugeriu assim como quem não quer nada. Ele não era doido, o Gringo, para se meter com a mulherada de Matarana. Bastou um olhar fulminante de Nova para fazê-lo dar meia-volta e postar-se atrás da caixa registradora. Ela não era uma cantora country; sua profissão era o jornalismo investigativo. Cantar em um bar fora obra do destino. No aniversário de um dos médicos do hospital, colega de Cris, havia um karaokê. Nova enchera a cara ao observar o assédio feminino sobre o amigo. Em todos os lugares era assim. Arranjavam desculpas furadas, como uma torção no pulso ou uma cutícula inflamada para fazerem manha e ganharem a atenção do médico. Cris, por sua vez, aceitava o assédio com um sorriso jovial e a distância segura de quem sabia onde pisar. Quando ele fazia sexo, ela não o sabia. Talvez frequentasse a mesma casa que Rodrigo. Pescavam juntos, bebiam juntos, arranjavam mulheres juntos. E de uma forma tão discreta que nem mesmo os fofoqueiros do Jornal, ou melhor, os colunistas, haviam descoberto. Que prato teriam para servir à comunidade sedenta por novidade! O delegado correto e que ainda chorava diante da lápide da esposa e o pediatra educado e gentil adorado pelas crianças e suas mães, ambos buscando o amor físico entre pernas de domínio público. Pensando, assim, Nova Monteiro armou-se do microfone e gritou para o cearense que mexia no karaokê:

 

       – Manda Parton!

 

       – Hã?

 

       Um caubói de Barretos orientou o outro. Em homenagem aos anos 80, mandou 9 To 5 para os ares. Empolgou-se, contorceu-se e se livrou do desejo de castrar a mulherada. Ainda sorria suavemente ao lembrar a expressão curiosa de Cris, segurando o copo de refrigerante, dando às costas a uma de suas fãs para vê-la se apresentar no palco improvisado. Naquele momento, ele fora totalmente seu. Porque de curiosidade, as nuances de seu rosto passaram para atenção e, por último, admiração. Sorria-lhe com tamanha ternura que ela se desculpou intimamente por amá-lo.

 

       A irmã de Gringo estava no evento. Era louca por música country e detestava o salão country local, onde a nata da alta sociedade mataranense se encontrava para contar dinheiro e hectare de terra dançando ao som da música dos caipiras da outra América, a do norte. Convencera o irmão então a contratá-la. Acertaram um cachê por noite e a bebida liberada. Duas noites por semana. Vez ou outra, Cris aparecia e vidrava os olhos nela. E mais uma vez ele era todo seu.

 

       Na varanda da casa da irmã, Rodrigo, sentado na cadeira de vime e enxugando a terceira latinha de cerveja, fumava calmamente à espera da tempestade. Os pés nus sobre as tábuas. Relançou um preguiçoso olhar para as botas encostadas contra a amurada de madeira. Elas chamavam-no ao trabalho. Deitou a cabeça para trás e fechou os olhos, exausto. O barulho da porta de entrada da casa fê-lo abrir um olho e esperar. Queria que fosse Jasmine no seu vestido florido e os pés descalços caminhando em sua direção. Chegava de mansinho e sentava no seu colo, enlaçando-lhe o pescoço e dizendo com os olhos que nada no mundo era melhor que compartilhar o mesmo ar. Por isso não se voltou para identificar a pessoa que arrastava os tamancos e resmungava ao cair pesadamente na cadeira ao seu lado.

 

       – Que foi, Rodrigo?

 

       Suspirou e espichou as pernas, cruzando-as.

 

       – Dilema de consciência. – começou, observando o franzir das sobrancelhas de Valéria. – Karen saiu para pôr fogo na cidade.

 

       – Falou para o Dolejal? – ela perguntou, emborcando o copo de limonada com cinco gelos e a metade de vodca.

 

      – Pois é, aí que está o problema. – bateu na perna e chamou Bonnie que, com as orelhas apontadas para cima, calculava o tempo de arrancada para atacar um pardal desavisado. – Ele não está na cidade.

 

       – Problema resolvido, querido, ela que se vire. – concluiu com naturalidade a irmã mais nova.

 

       – Com aquele gênio do cão vai acabar se encrencando. O Dolejal deixou bem claro que ela não é mais bem-vinda na Arco Verde e que estava por sua própria conta e risco. Sabe o que isso significa? – alçou a sobrancelha.

 

       – Que mais uma mulher tomou no cu. – respondeu com amargura.

 

       Rodrigo riu um riso áspero e rápido.

 

       – Val, meu Deus, o que o tempo faz, hein! Minha irmãzinha romântica se transformou numa cínica. – provocou.

 

       – O cinismo é a tábua de salvação para poucos, meu caro. – debochou.

 

       Valéria era alta e cheinha. Tinha o cabelo da cor do fogo e liso. Quando ela estava zangada – quase sempre, os olhos verdes escureciam-se e a cascata de fios longos dançava-lhe nas costas. Criara a filha de 17 anos trabalhando como professora e acreditando que jamais seria conspurcada outra vez pela paixão. Conseguiu. Mas, aí, quando se busca por tal objetivo, existe a chance de se perder os sentimentos que amortecem os passos na estrada e que tornam a viagem mais leve. Val trocou as ilusões por meia tonelada de cinismo e barganhou com Deus para que não lhe mandasse um homem, e sim a rotina de uma vida sem turbulências. Se não fossem Valéria e a sobrinha Sabrina, depois da morte de Jasmine, ele teria feito muita merda. Elas eram o seu suporte, o porto seguro, as mulheres da sua vida. Incluindo Bonnie que, distraída, perdeu o pássaro de vista.

 

       – É minha obrigação proteger quem precisa de proteção. – disse ele, pegando as botas e gemendo ao encurvar-se para calçá-las. – Ela ainda deve estar enchendo a cara no Bar do Gringo...

 

       – Larga isso aí e descansa um pouco. Se ela vai pôr fogo na cidade, vamos esperar primeiro pela fumaça.

 

       – A Karen tem um filho adolescente também, Val. – constatou, terminando de calçar a bota e levantando-se: – Vocês podiam ser amigas. O marido dela também não prestava.

 

       – Ei, quem disse que o pai da Sabrina não prestava? – censurou-o para, em seguida, completar com ironia: – Ele era um ótimo homem, é só olhar para a minha menina...

 

       – Certo, não quis ofender.

 

       – Que sorrisinho idiota é esse, Rodrigo, sabe muito bem que não faço a mínima ideia de quem seja o pai dela.

 

       – Sabe, sim. – declarou de forma incisiva e sem deixar de sorrir.

 

       – E daí? Que adianta saber, ele está aqui por acaso? – deu de ombros e prosseguiu: – O pai dela sou eu.

 

       – E eu sou quem? A mãe? – indagou, ajeitando o chapéu na cabeça.

 

       – Talvez. Você é a mulher que borda à espera do marido que foi para a guerra e, que mesmo sabendo que ele jamais voltará, não arrisca largar o bordado e reconstruir a própria vida. – disse isso tentando tirá-lo do lodo.

 

       Encararam-se por alguns minutos. Valéria sustentou o olhar exasperado do irmão. Era tabu naquela casa falar sobre o luto de dois anos dele, assim como perguntar o peso dela.

 

       – Quero que encontre alguém para ter uma família, um filho. Já está com 38 anos, precisa procriar. – mudou o tom, não queria brigar com ele.

 

       – Já tenho família.

 

       Deu-lhe as costas e entrou na camionete C 10. Bonnie latiu.

 

       – Estamos brigados? – ela gritou, indo até a amurada da varanda. Viu quando ele forçou um sorriso e tocou na aba baixa do chapéu.

 

       Estava tudo bem, então.

 

       Karen não estava no balcão do bar e, segundo testemunhas, em parte alguma. Frederico abordou-o com um sorriso animado. O rapaz ingeria muito café por dia, estava sempre acelerado, copos e garrafas engatilhados. Não herdara a lentidão obesa do progenitor, dono de bar no interior de Santa Catarina havia algumas gerações.

 

       – Early James? – disse, pondo a bunda do copo no balcão e se virando para pegar a garrafa atrás de si.

 

       – Velho Barreiro. – seco e direto.

 

       Rodrigo não viu o sorriso murchar. Frederico só conseguia negociar doses dos uísques importados quando Nova Monteiro anunciava a “Noite Shania Twain”.

 

       O delegado olhou ao redor e registrou rostos conhecidos. Casais dançavam na pista. Nova estava diante dele.

 

       – Foi demitida? – alfinetou-a.

 

       Ela sorriu com aquele tipo de segurança de mulher tentando ser corajosa:

 

       – Meu horário acabou. – melou a voz e estendeu-lhe a mão: – Veio me ver?

 

       Ele assentiu, levemente, apenas os olhos sorriam ao apertar-lhe a mão:

 

       – Já não a procurei à tarde?

 

       – Ah, é mesmo. Está se metendo na vida de quem, agora?

 

       Ele fez um beiço e abaixou um pouco a aba do chapéu. Noutros tempos, ao entrar num lugar, tirava o chapéu e segurava-o na mão. Acreditava que isso fosse sinal de respeito e educação. Depois entendeu que apenas significava falta de estilo. O chapéu era ele e ele o chapéu.

 

       – Você e a Karen são os motivos de deixarem meu cavanhaque cada vez mais grisalho e eu não tenho nem quarenta. – brincou.

 

       – É? – sorriu com charme e estendeu-lhe novamente a mão: – Vem dançar comigo, homem da lei.

 

       Rodrigo desviou os olhos dos dela e farejou a música no ar: I’m Your Man, Leonard Cohen enchia o ambiente de sedução. A menina do som também gostava de provocar incêndios.

 

       Ele não se fez de rogado e aceitou o convite, levando-a pela mão até onde outros dançavam. Puxou-a para si e colaram-se os corpos. Ela aproveitou para apertá-lo. Havia tanto tempo que não sentia uma coxa entre as suas, tanta vontade... E aquele cheiro de colônia amadeirada e virilidade...

 

       – Viu a Karen por aqui, hoje?

 

       Deitou a cabeça contra o tórax dele e viu a pele morena por entre a abertura da camisa xadrez:

 

       – Sim, um velhote tentou coisa e ela caiu fora.

 

       – Ela estava muito fora de órbita?

 

       – Mais do que sempre.

 

       Ele empurrou-a para longe e puxou-a de volta contra o seu corpo. Riram, divertidos.

 

       – Dolejal a humilhou hoje no escritório.

 

       – Como sabe? – ele perguntou, procurando manter o ritmo, a cabeça criando imagens e o raciocínio de policial encaixando-as.

 

       – Meu chefe adorou o artigo que escrevi chamando os colonizadores de assassinos. Enquanto eu aguardava na antessala, vi quando ele a dispensou com a frieza de um...

 

       – De uma pessoa ambiciosa que não se importa com os outros? – ironizou.

 

       Ela olhou para ele.

 

       – Está falando de mim?

 

       – Não, de mim. – debochou.

 

       – Que eu saiba você foi transferido como uma forma de punição. O que fez em Cuiabá, hein?

 

       Ele sorriu com ar moleque.

 

       – Usei chapéu de caubói.

 

       – Ah, sei.

 

       – Certo, chamei meu chefe de administrador de máquina expressa de suborno.

 

       – Uau!, você é dos bons.

 

       – E você não para de pisar nos meus pés.

 

       – Desculpa.

 

       A música acabou, e eles se soltaram.

 

       – Vai entrar na cabine telefônica e trocar de roupa?

 

       – É, acho que sim.

 

       Ela riu, gostava do jeito dele, desde que não se metesse nas suas investigações.

 

       – Adora salvar donzelas em apuros, não?

 

       Nova surpreendeu-se ao vê-lo baixar a cabeça e sorrir sem jeito.

 

       – Talvez, Nova Monteiro. Cuide-se. – deu-lhe um tapinha no ombro.

 

       Passou pelo balcão, emborcou a bebida, deixou algumas cédulas e saiu sem olhar para trás.

 

       Rodrigo encontrou a guarita da Arco Verde vazia.Instintivamente, tocou na pistola no coldre. Diminuiu a velocidade. Os faróis iluminaram a traseira de um Fusca e um grupo de homens conversando. Ao ouvirem a sua aproximação, o círculo desfez-se. Estacionou atrás do Volks e deixou o motor ligado ao descer e verificar o que havia no chão. Franco veio ao seu encontro com o sorriso autoconfiante tatuado no rosto.

 

       – Boa noite, delegado. – esticou a mão.

 

       Rodrigo não se deu ao trabalho de cumprimentá-lo.

 

       – Por que o carro da Karen está aqui? – perguntou, olhando ao redor.

 

       Antes que o outro respondesse, ele a viu tentando levantar-se do chão. Aproximou-se e se encurvou para falar-lhe:

 

       – Eles tocaram em você?

 

       Karen estava muito bêbada para entender.

 

       – Dolejal fugiu. – murmurou.

 

       O delegado agachou-se e analisou o seu estado. Tinha ferimentos nos cotovelos e o lábio sangrava. Afastou-lhe o cabelo do rosto e disse baixinho:

 

       – Falei com ele, está em São Paulo.

 

       – Rodrigo, ele vai vender Matarana para os texanos. – balbuciou, um filete de sangue descia-lhe pelo canto da boca.

 

       – Quem a feriu? – perguntou, estreitando os olhos de um jeito desconfiado e, ao mesmo tempo, contendo a raiva.

 

       – Mordi minha boca tentando morder esses animais.

 

       Ele ergueu a cabeça e mirou os olhos em Franco:

 

       – A ordem do Dolejal foi a de bater na Karen?

 

       – Ninguém bateu nela. – argumentou Franco. – Ela chegou armada e descontrolada. – dizendo isso, mostrou o revólver e o entregou.

 

       – Ela apontou o .38 para nós, estava fora de si. – atalhou Bronson.

 

       E Franco completou:

 

       – Veio para matar o patrão.

 

       Rodrigo pegou-a pelos ombros e a ajudou a caminhar até a picape.

 

       – Posso dirigir. – ela gemeu.

 

       – Claro que pode, Karen, mas eu seria irresponsável se a deixasse sentar atrás de um volante.

 

       – Levo o Fusca amanhã até a cidade. – prometeu solícito Franco.

 

       O delegado abriu a porta do passageiro e pôs Karen sentada com o cinto afivelado. A seguir, voltou-se para os seguranças que o fitavam com expressão de sarcasmo.

 

       – Quero ver o que o Dolejal fará com vocês quando souber que machucaram a mulher dele.

 

       – Ela nunca foi mulher dele. – debochou Franco.

 

       Bronson emendou:

 

       – O patrão disse para a gente não deixar ela entrar. Nós cumprimos a ordem dele.

 

       – Desse jeito? Ela está com escoriações de quem foi agredida. – acusou-os.

 

       – Que tipo de policial é você, afinal? – despontou do bando Mendes, mãos na cintura, nariz empinado: – Ela invadiu uma propriedade particular armada, e se o patrão estivesse tentaria matar ele. E somos nós os ameaçados por você. Quem paga o seu salário? Uma vagabunda bêbada que não se dá o valor?

 

       Franco sorriu, observando com atenção o rosto do delegado endurecer.

 

       Bronson pensou no dia em que crispou com o delegado, e ele o meteu na cadeia alegando vadiagem. Malverde gostava de usar a lei como os advogados, encontrando brechas e provocando distorções.

 

       Rodrigo disse para Karen:

 

       – Vamos à delegacia, e você registra queixa contra esses camaradas.

 

       Ela disse:

 

       – Os americanos mandarão nos brasileiros. O preço da terra, para eles, é muito barato. Comprarão o cerrado inteiro e poluirão o Rio Verde, terminarão de fazer o que os portugueses começaram...

 

       – Não se preocupe com isso. – disse Rodrigo com brandura.

 

       Fechou a porta da camionete e a contornou. Ainda havia algo pendente. E ele podia tocar nos elos de tensão e encaixá-los formando uma corrente. Na verdade, não era para tanto. Mendes não passava de uma alface inconveniente entre os dentes.

 

       – O Dolejal paga o meu salário tanto quanto a Karen. Ele vem dos impostos. Você também paga o meu salário, mas, hoje, especificamente, não estou a fim de trabalhar para você ou para os seus comparsas. – disse com insolência.

 

       Franco interveio:

 

       – A coisa fugiu do controle. A culpa foi minha e assumo a responsabilidade.

 

       Com a porta da picape aberta e meio corpo se preparando para entrar, Rodrigo disse:

 

       – Bonito gesto, Franco. Agora, telefona para o seu patrão e diga o que aconteceu aqui.

 

       Franco, instintivamente, mordeu o lábio inferior. Diante da perspectiva de narrar os fatos não tinha mais tanta certeza de que agira com sensatez. Contudo, disse com um arzinho pedante:

 

       – Quando Dolejal não está, eu tenho carta branca para agir.

 

       Rodrigo sorriu como quem diz: é mesmo?

 

       Numa parte da viagem de volta à cidade, Karen deitou a cabeça no ombro de Rodrigo e adormeceu. Foi, aí, que ele pensou em levá-la para a sua casa. Não queria que Johnny visse a mãe naquele estado. O menino andava numa fase em que qualquer tropeço dos pais é desculpa para um comportamento imbecil.

 

       Abriu a porta de casa com a parte lateral do corpo, carregando Karen no colo. Passou pela sala e sorriu ao ver a irmã arregalar os olhos que antes estavam vidrados num filme antigo.

 

       – Por que não a levou para a casa? – cochichou.

 

       – Se você bebesse além da conta, gostaria que a Sabrina lhe ajudasse a vomitar? –perguntou, arqueando a sobrancelha.

 

       – É mesmo. Perderia a autoridade sobre ela. Bem pensado, mano. – pulou do sofá e postou-se ao lado dele. – Deixa ela na minha cama e eu durmo no sofá. – sugeriu.

 

       – Não, ela fica no meu quarto.

 

       – Vai abusar de uma bêbada? – provocou-o.

 

       Ele fechou a cara.

 

       – Dormirei “eu” no sofá.

 

       Rodrigo deitou-a sobre a sua cama e ligou o ventilador.

 

       – Traz uma bacia, talvez ela precise. – deu de ombros.

 

       Karen Lisboa era bonita. Não, talvez ela não fosse propriamente bonita. Ela era – odiava a palavra, mas outra não lhe vinha à mente – gostosa. Coçou o cavanhaque ligeiramente inquieto. E além de gostosa, animava aquele corpo uma fera. Jasmine era delicada e argumentava com os olhos e com a voz baixa e quase infantil. Conseguia tudo dele. Punha-o de joelhos com um sorriso de devoção nos lábios. Mas Karen... Quem gostava de meter a mão numa colmeia: tinha Karen. Não duvidava que tivesse ido à fazenda para atirar em Dolejal. E também não duvidava que se ele soubesse que ela o faria, jamais teria ido a leilão algum. Estaria lá, à espera. Que tipo de amor havia naquele ódio entre eles? Parecia mais com orgulho, com uma queda de braço. O primeiro que precisasse do outro: perdia.

 

       Fechou a porta, repetindo a si mesmo que Karen pertencia a Thales Dolejal. Entrou no banheiro e abriu a portinha do armário sobre a pia. Retirou o iodo e um pacotinho com algodão. Sentou na beirada da cama, segurou-lhe o braço pouco acima do corpo e deslizou o algodão umedecido no iodo. Limpou os ferimentos dos cotovelos, levantouse e jogou os algodões no cesto do lixo do banheiro. Parou diante do espelho, tirou o chapéu e arou o cabelo com os dedos num gesto de exaustão. Voltou ao quarto e pegou um lençol e a manta que lhe serviria de travesseiro. Antes de jogar tudo sobre o sofá da sala, lançou um último olhar para a mulher que dormia profundamente em posição fetal. Ali, estava o abismo, diante dele e dormindo na sua cama, chamandoo para pular. De todas as mulheres de Matarana, a única que tinha chance de atingi-lo era a menos adequada para tal missão. Esboçou um sorriso fraco, do tipo que os lascados – sabendose nessa condição, sorriam.

 

       – Durma bem, perigo. – murmurou resignado e foi para o sofá.

 

       Ele não tinha talento como poeta, faltava-lhe, ironicamente, sentimentos. O desgraçado era piegas e adorador da rima fácil. Nova identificou graves problemas ortográficos. Evidenciava-se também uma obsessão pelas palavras: muro, duro, juro. Diante do caderninho de Pedro, ela lia todas as orações coordenadas, subordinadas e desgovernadas que ele escrevera. Nas entrelinhas, apenas suposições homossexuais. Nem alusão à senzala aparecia nas estrofes emaranhadas e retorcidas como arame farpado. O que sabia de fato sobre o camarada era o seguinte: Pedro chegara a Matarana na garupa de um de seus fundadores, Onório Dolejal, avô de Thales. Num dado momento, eles quebraram o pau, exibiram facas e dentes. Suspeita de roubo. O velho Dolejal desconfiava que todos o roubavam. Mania de perseguição ou não, Onório expulsou-o de suas terras. Pedro debandou para o lado do coronel e por ali ficou.

 

      Guardou o caderno dentro da mochila e ajustou-lhe as alças nos ombros. Tinha de entrar na casa de Pedro, dentro da Coração de Ouro, perto da casa-sede onde morava o balofo de pele cor-de-rosa. Esperaria a noite chegar para embrenhar-se estrada adentro. Teria de aproveitar a chance, uma vez que ele ainda estava atrás das grades. Rodrigo não conseguiria segurá-lo por muito tempo. Era estranho como, sem saber e sem querer, o delegado acabava sempre a ajudando. Mas estaria sozinha ao entrar na moradia de um suspeito de aliciar pessoas para o trabalho escravo. Sozinha e desarmada. Ela acreditava nas armas, via as pessoas matarem e morrerem por causa delas. Por isso prometera a si mesma que jamais se armaria. A sua arma eram as palavras. É claro que se encontrasse uma letra de concreto, iria se sentir mais segura.

 

        Na cozinha, Johnny bebia o achocolatado batido no liquidificador. Ele tinha o cabelo escuro e espetado. Era um garoto magro e bonito que aparentava quase vinte, tendo recém quinze anos. No colégio, era aquele tipo sôfrego nos estudos, ótimo nos esportes e disputadíssimo pelas garotas... de 12 anos. Típico adolescente. Às vezes, ele discutia lances existencialistas com as pálpebras semicerradas; noutras, gritava com qualquer um que se postasse entre ele e o vídeo game.

 

       – O Franco trouxe o Fusca. – comunicou, olhos pregados nela. – Onde dormiu? –não havia censura nem preocupação, apenas curiosidade.

 

       – Na casa da Valéria – preferiu não citar o nome do irmão dela.

 

       – Ah, a bisa saiu com a Veridiana.

 

       Karen pôs café solúvel no seu leite quente e bebeu aos golinhos.

 

       – Dona Ninita anda aprontando.

 

       O filho deu uma risada e comentou com ar de adulto:

 

       – Sabe quem também anda aprontando, dona Karen? Ele deixou um bilhete lá no escritório.

 

       Ela levou a caneca consigo e, no caminho, foi acendendo um cigarro. As janelas abertas e o computador ligado. Berrou para Johnny:

 

       – Você estava numa sala de bate-papo com Alemão, é?

 

       Vez ou outra, Johnny ajudava o zelador a arrumar uma namorada pela internet. Mesmo que já tivesse esposa e filhos. A empreitada era um fracasso, pois, apesar da tecnologia ter chegado a Matarana, as mulheres sensatas ainda não.

 

       – O Alemão não está mais entre nós. – disse o guri, acrescentando à informação um arroto.

 

      Karen sentiu o suco gástrico ferver no estômago. Encontrou, em seguida, o bilhete que o filho havia-lhe dito. Eram os garranchos do zelador pedindo desculpas e o dinheiro da rescisão, tencionava trabalhar para o coronel. Sim, a vida era feita de escolhas: umas péssimas; outras piores.

 

       Sentou na beirada da escrivaninha, os ombros encurvados, os cotovelos esfolados e alguns bangalôs para pintar. Suspirou pesadamente. Não havia tempo a perder. Abriu a gaveta e tirou os papéis ensebados, riscados com letras gregas, a assinatura do empregado. Armada de uma calculadora, somou todas as despesas que ela, sua patroa havia pouco mais de sete anos, pagara nos botecos e mercadinhos, onde ele deixava as compras do mês penduradas. Adicionou os cupons da farmácia, quando teve que lhe comprar remédio ao contrair malária.

 

       Trocou de roupa e levou uma lata de tinta até o bangalô mais próximo. Começaria pelos desocupados. Por último, seriam pintados os que já tinham o dinheiro do aluguel garantido, mesmo que atrasado. Ficou nessa tarefa interessantíssima de deslizar o pincel grosso de tinta sobre a alvenaria velha e rachada de infiltrações até sentir a musculatura dos braços e da coluna rija. O sol aproveitava as brechas por entre a camada de fumaça e queimava a pele numa temperatura que alcançava, sem dificuldade, os quarenta e um graus.

 

       Sentou-se na grama, abriu uma lata de cerveja e deixou a coisa acontecer.

 

       Naquela hora da manhã, os inquilinos estavam trabalhando. Quase todos eram comerciários e ralavam nove horas por dia, de pé, atrás dos balcões das lojas. Era uma vida de cão, a de todos.

 

       Cercada por casinhas de alvenaria que mais pareciam com quitinetes, um céu branco e grosseiro enviando raios cancerígenos, encharcada de suor, ela desfez-se do short, da camiseta e dos chinelos. Pulou de calcinha e sutiã na piscina. Fechou bem a boca para não ter uma infecção intestinal. Embaixo, na água, a vida era mais leve. Quando emergiu, observou as pontas de um par de botas.

 

       – É alguma contravenção dirigir a própria vida embriagada? – perguntou, um olho fechado e outro com os cílios pesados de água.

 

       Rodrigo Malverde sorriu e virou-se para contar o número de latas de cerveja que a mulher na piscina havia emborcado. Parecia um homem rude bebendo. Aí, verificou que havia peças de roupas jogadas pelo gramado verde um tanto amarelado. Parecia, então, com uma mulher rude.

 

       – Como está, Karen? – não queria mais sorrir para ela.

 

       – Bem. Obrigada pela cama, é muito macia.

 

       – Não está às ordens. E mantenha-se longe da Arco Verde. – apontou-lhe o dedo, sentindo no dorso, agulhadas de calor.

 

       – Ok, diga ao patrão que não voltarei mais ao seu reduto. – debochou.

 

       – Direi, pode deixar. – ajeitou o chapéu, contrariado, e falou: – Bebeu um monte de cerveja e quer nadar como a Pequena Sereia psicótica.  Vem, sai da água!

 

       Ele se agachou e deu-lhe a mão.

 

       – Não posso. – ela disse, rindo com vontade.

 

       – Vamos, Karen, não quero voltar aqui e encontrar o seu corpo boiando. – viu quando lhe deu as costas e nadou para o outro lado da piscina. – Porra, mulher, está sempre bêbada. Precisa de tratamento! – irritou-se.

 

        – Como entrou, delegado? – gritou, segurando-se na borda.

 

       – Tenho a chave de todos os lugares. – resmungou.

 

       – Quê? – berrou.

 

       – A porta estava escancarada, Karen. – respondeu e emendou exasperado: – O que... O que está fazendo? – ele ergueu-se rapidamente ao vê-la jogar no meio da água o que parecia ser o sutiã.

 

       O delegado fitou a peça íntima boiando, pôs as mãos na cintura e declarou como se fosse um pai zangado com os modos da filha:

 

       – Quando amadurecerá? Você age assim desde os 25! Parece até que está mais pirada que antes! Deus, Karen, acha mesmo que sou seu guarda-costas!

 

       – Vem para cá esfriar a cabeça. – acenou para ele e, com isso, ao erguer o braço exibiu um dos seios.

 

       – Não, não irei.

 

       Deu-lhe as costas e juntou as roupas ao redor da piscina. Aproximou-se da borda e esticou-as para ela.

 

       – Vista-se, e vamos almoçar na cidade. Tudo certo? – tentou sorrir.

 

       – Apaga o meu fogo, delegado. – pediu, encarando-o com desafio.

 

       Ele ignorou o pedido. Respirou fundo procurando as palavras certas.

 

       – Olha, com o tempo a dor ameniza, não para, não cessa de todo, mas dá para se conviver com  a falta. – disse, tentando controlar a impaciência, afastando uma mecha de cabelo da testa dela.

 

       –Você está falando da sua esposa, e eu de satã.

 

       Malverde riu.

 

       – Bom, enfrente as forças do mal...fazendo o bem a si mesma. – estendeu-lhe a mão. –Nos conhecemos há duzentos anos, Karen, e sei muito bem que o fogo que a consome é o fogo da rejeição.

 

       Por um momento, ele até pensou que a parada estava ganha e que pela primeira vez conseguira pôr juízo na cabeça daquela mulher das cavernas. Ela encarou-o com a expressão de quem ponderava e, depois, disse:

 

       – Dois anos se masturbando deixam o cara frouxo, né? – alçou a sobrancelha, desafiando-o com um sorrisinho.

 

       Rodrigo fechou a cara e tentou puxá-la, mas Karen mergulhou rapidamente e nadou até a extremidade oposta. Ouviu o barulho de alguém se atirando na água, um braço duro como um elástico bem apertado trouxe-a ao encontro de uma estrutura rígida que parecia um corpo masculino ou podia ser o tronco de uma árvore aquática. Ela não teve tempo de concluir a ideia e foi arrancada da piscina. Esperneou o quanto pôde, sentindo a água escorrer-lhe pela pele nua. Foi jogada por sobre o ombro de quem saía da piscina subindo os degraus e segurando-se com uma mão no corrimão, a fim de não perder o equilíbrio.

 

       Quando abriu os olhos e percebeu a sua situação de mulher retirada à força da água e tratada como um saco de batatas inútil, bem, ela não gostou nadinha. Ainda mais ao ver a expressão divertida do delegado aproximando-se e baixando a aba do chapéu para tentar disfarçar o incipiente sorrisinho que se formava debaixo dos olhos que diziam: Cadê a espertinha, agora?

 

       A voz dura e seca ressoou perto do ouvido de Karen e ela quase teve outro filho:

 

       – Onde estava a dificuldade para tirá-la da água? – perguntou ele para Rodrigo, por cima do ombro livre.

 

       Vestido de camisa e calça sociais, botas de caubói, Thales Dolejal haviase atirado na piscina para trazê-la à realidade. Sem delicadeza. E, misteriosamente, ela ainda esperneava. Recebeu uma sonora palmada no traseiro, enquanto se debatia e gritava atravessada sobre seu ombro.

 

       Rodrigo disse ao fazendeiro:

 

       – Falou com Franco. – não era uma pergunta.

 

       – Falei, e eles têm ordem de não deixar a senhorita Lisboa entrar na minha propriedade.

 

       O delegado apertou os lábios, estreitando os olhos. Dolejal nunca fora uma pessoa fácil, mas em relação a Karen sempre procurara protegê-la.

 

       – Sei, então eles podiam também humilhá-la?

 

       – EU ESTOU AQUI. NÃO FALEM COMO SE EU FOSSE UMA RETARDADA SURDA! – ela gritou.

 

       O fazendeiro deitou-a no gramado e esperou que Rodrigo lhe jogasse a blusa a fim de enfiar em Karen. Ela o empurrou, mas foi contida por um par de braços um tanto ágeis que, em dois segundos, enfiaram a blusa pela sua cabeça.

 

       – Não, Rodrigo, não dei ordem para humilhar ninguém. Excederam-se, com certeza. – disse, ignorando a mulher que tentava soltar-se dele.

 

       – Ah, claro, eles estavam dispostos a me convidar para jantar...

 

       – Karen, por favor... – o delegado fez-lhe um sinal para que se calasse.

 

       Dolejal conteve o riso, contraiu os maxilares e ajeitou a gola da blusa de Karen que parecia ter sido arreganhada por um lutador de vale-tudo.

 

       – Por isso, vim aqui, senhorita Lisboa. Meus homens estão à sua disposição para o que precisar. Trabalharão para você, se quiser, ainda mais que o Alemão a deixou.

 

       Karen bufou.

 

       – Ô cidade de fofoqueiros! Foi você que contou para ele, Rodrigo?

 

       Malverde alçou a sobrancelha, surpreso:

 

       – Para mim, isso é novidade.

 

       – Pois é, ninguém aguenta a senhorita Lisboa por muito tempo. – disse o fazendeiro erguendo-se.

 

       Ela ameaçou abrir a boca, mas relançou os olhos para o delegado e vendo a sua expressão séria, apenas praguejou baixinho e vestiu o short. Deixaria os dois conversando à beira da piscina, enquanto juntava as latas de cerveja e as levava até a lixeira coletiva do condomínio. Antes de afastar-se não resistiu e disse:

 

       – Dolejal, querido, você sabe muito bem onde deve enfiar os seus homens, não é? –deu-lhe as costas, depois de observar a expressão divertida no seu olhar.

 

       Os dois ficaram por um tempo admirando o corpo molhado, vestido no shortinho e na blusa, rebolando suavemente enquanto abaixava-se, erguia-se, tornava a abaixar-se para, depois, ir até a parte detrás dos bangalôs.

 

       Quando Rodrigo, por fim, voltou-se para falar com o fazendeiro, viu os olhos azuis ainda postos numa Karen que já não era mais visível. Estalou os dedos, e o outro o encarou.

 

       – Quando cheguei na Arco Verde, ela estava deitada no chão, machucada. – pôs lenha na fogueira.

 

       Dolejal não mexeu um único músculo da face ao falar:

 

       – Franco me contou tudo, inclusive que a Karen chegou armada, querendo meter uma bala na minha cabeça. – disse, com a calma de sempre.

 

       Rodrigo riu.

 

       – Acha mesmo que ela queria lhe machucar? – deu de ombros e completou: – Sabe muito sobre o tal agronegócio e quase nada sobre mulheres.

 

       Dolejal encarou-o, os maxilares forçando a pele do rosto.

 

       – Conhece bem a Karen, não é?

 

       – Sim, o suficiente para saber que ela foi à fazenda para chamar a sua atenção. – afirmou, o dedo em riste, apontado para o segundo homem mais importante da região.

 

       Os olhos azuis, quase brancos, do fazendeiro esquadrinharam a expressão do delegado. O investigador que contratara fora taxativo: o delegado não constava na lista.

 

       – Esse assunto não é da sua conta, Rodrigo. – falou com naturalidade e preparou-se para sair.

 

       – É verdade, cuidar dos meus amigos não é da minha conta. – ajeitou o chapéu e fez um movimento em retirada.

 

       Dolejal parou e virou-se:

 

       – Por que estava aqui? – estava sério e, como sempre, analisando a expressão do outro.

 

       Rodrigo ergueu os olhos para o céu e suspirou profundamente. Era um saco lidar com o ciúme e a desconfiança crônicos do outro.

 

      – Queria saber se ela estava bem, já que tive de levá-la para minha casa. A Karen anda bebendo muito, muito mesmo. Dá para ver, não? – fez um gesto com a mão mostrando-lhe o gramado, agora, sem as cervejas. – Mas eu também esperava que você fizesse algo, se desculpasse com ela pelo ocorrido...

 

       – Foi o que vim fazer. – disse com ar arrogante, arando o cabelo molhado com a mão, para trás.

 

       Como conseguiam ser amigos, o delegado não o sabia direito.

 

       – Falou para ele que estou toda esfolada?

 

       Rodrigo suspirou fundo e alto, contendo a irritação. Aproximou-se de Karen, pegou o copo de sua mão e cheirou-o. Era vodca.

 

       – Me dá minha bebida! – ela pediu num tom de voz alto.

 

       – Beba até ter o fígado dissolvido, dane-se. – disse Malverde, afastando-se dela e passando por Dolejal. – E quanto a você, o coronel está movimentando seus homens pela cidade, é bom andar com os seus se quiser acordar no outro dia.

 

       Dados os respectivos recados, Rodrigo Malverde endereçou um longo olhar a Karen e, em seguida, ao fazendeiro. Suspirou balançando a cabeça. Falava com as plantas e as pedras, pelo visto.

 

       Através do reflexo do vidro da cozinha, ela via o rosto dele, os olhos brilhando, o cabelo castanho claro cortado como o de um executivo. Conhecia aquele olhar assim como conhecia aquele homem. Mas nunca seria fácil entre eles. Tentou ignorá-lo e concentrar-se em lavar a louça da manhã. Podia oferecer-lhe um café, um copo de uísque ou um pedaço do seu coração. Podia oferecer-lhe, sim. O problema era que ele queria tudo e mais ainda. Um colonizador jamais queria pouco do colonizado, tinha de explorá-lo até secar a seiva, até não mais ter o que arrancar.

 

       Havia tantas armas por ali. Podia abrir uma gaveta e atirar um martelo contra a cabeça do seu credor.

 

       – Vim curar seus ferimentos. – ele disse.

 

       Ela engoliu em seco.

 

       – Cauterizando-os? – debochou.

 

       – Pedindo desculpas pelo comportamento dos meus funcionários. – não havia emoção na voz e o rosto parecia esculpido em aço.

 

       – Você e os seus capangas são ridículos. – deu de ombros e emendou, virando-se para ele: – Acha mesmo que é meu dono e dono da cidade?

 

       O fazendeiro pôs as mãos dentro dos bolsos da calça encharcada e, numa posição de insolência e soberba, olhou para o corpo de Karen ostensivamente. Era o gesto de quem respondia que sim.

 

       – Quando chega a noivinha texana? – ela mudou de assunto, desviando os olhos dos olhos que lhe puxavam para o abraço, para o beijo, para a paixão maligna e viciosa.

 

       Karen queria muito ser uma pessoa saudável como Rodrigo havia-lhe sugerido. Algumas mulheres tentavam ser normais e bem comportadas, mas, felizmente, a coisa não acontecia para elas.

 

       – Isso é com a minha secretária. – respondeu mal descolando os lábios, aproximando-se como uma sucuri com fome.

 

       – Tenho pena da coitada...

 

       – É uma transação econômica, nada mais.

 

       – Ela sabe?

 

       – Vamos para cama, Karen – não perguntou.

 

       Ela riu e afastou-se dele.

 

       – Acha que é assim? Vem aqui e me leva para cama como se eu fosse uma vadia... –voltou-se imediatamente para ele tentando perceber algum gesto irônico, um alçar de sobrancelhas, um ar de “e não é?” Não havia expressão que apenas os olhos claros espelhassem, algo entre desejo e saudade, muito de pedido e urgência, havia também tristeza.

 

       Nada bom; tudo intenso.

 

       – Quero que vá embora de Matarana. – a voz soou firme.

 

       Karen estreitou os olhos, intrigada:

 

       – Como?

 

       – O que ouviu, quero que saia da cidade. – repetiu com calma.

 

       – Sempre desconfiei que fosse bipolar! – exclamou, pondo as mãos na cintura e zanzando pela cozinha. Precisava esfriar a cabeça.

 

       – Compro seu terreno, agora, se for o caso.

 

       – Sabe que nunca venderei para você, não sei por que insiste. – disse com desprezo.

 

       – Porque tenho como consegui-lo sem pagar um tostão. – afirmou com frieza, cruzando os braços.

 

       – O quê, seu maldito? – tentou não gritar.

 

       – Vou deixar sua imaginação trabalhar.

 

       Ela precisou de meio minuto para compreender o tipo de ameaça que pairava no ar.

 

       – Estou dando a chance de vender para mim um pedaço de terra com um punhado de casebres decaídos, que derrubarei em dez minutos, por uma alta soma em dinheiro vivo, na mão, e com a única condição de não ter de vê-la nunca mais na minha frente. – disse, quase sorrindo, mas, caso o estivesse, seria um sorriso mau.

 

       Encarou-o com lágrimas nos olhos e ergueu o nariz com altivez. Ele jamais a veria chorar, a não ser que ela quisesse. Agora, não. Mesmo se sentindo magoada e usada.

 

       – Queria que morresse. – falou entredentes, a voz falhando.

 

       – Muito maduro de sua parte desejar a minha morte. – disse impassível e completou num tom de fingido lamento: – Bem, se não vamos fazer sexo, tenho de ir.

 

       Quando viu, a faca já havia voado de sua mão. O cabo acertou em cheio a nuca do latifundiário, que se voltou para trás com o olhar ainda incrédulo. Por um momento, ele apenas esfregou a parte inferior do crânio. Deu três ou quatro passos e estendeu as mãos para agarrá-la pelos ombros e sacudi-la.

 

       – Errou a extremidade da faca. Que erro idiota! – elevou a voz como um trovão dos infernos.

 

       Assim estava bom, ela pensou, elevando o joelho até a virilha dele. Thales foi mais rápido e segurou-lhe a perna. Enlaçou-a entre os braços e pressionou-a contra o próprio corpo. Com uma mão atrás da cabeça dela, puxou-lhe uma mecha do cabelo até virar o seu rosto para cima. Karen gritou e teve a boca esmagada por outra boca. Um beijo forte e rápido, como se a marcasse como quando marcava o gado com ferro e fogo. Ele soltou-a, lentamente, avaliando-lhe os sentimentos na expressão do seu rosto. Karen sorria. E, ainda sorrindo, esbofeteou-o com força.

 

       Thales não esperava pela bofetada. Aturdido, manteve-se olhando fixo para ela, tentando compreender os motivos do golpe. Ela reforçou o ato e o esbofeteou outra vez. Num átimo, ele a puxou novamente para si e a abraçou. Abraçou com tanta força que ela pensou que nesse gesto havia uma intenção homicida. Mas quando percebeu que a musculatura do corpo dele tremia, sentiu que trafegava por uma via nebulosa e tudo que fora dito ou feito talvez não fosse ainda tudo.

 

       Ele disse junto ao seu ouvido:

 

       – Junte os seus trapos e saia da cidade em quarenta e oito horas.

 

       Quando se separaram, Karen se questionou sobre o que ele havia dito de fato. Pois, antes de se afastar, o fazendeiro lançou-lhe um longo olhar e os seus olhos congestionados exibiam no canto de cada pálpebra um esboço de lágrima. Se ele fosse humano, teria chorado, ali, ao comunicar que ela também seria expulsa de Matarana, assim como ocorrera com alguns de seus casos. Mas Thales era apenas um latifundiário ganancioso.

 

       Nova admirava a mansão que poderia estar em Beverly Hills. O lugar sofisticado e decorado por um profissional da alta roda, não se parecia com a casa-sede de uma fazenda. Mesmo que essa fazenda ocupasse a vastidão de terra que ocupava, como diziam, a perder-se de vista. Mármore, escadarias, terraços e móveis caríssimos.

 

        A governanta levou-a até o escritório de Dolejal, onde ele a aguardava digitando algo no notebook. A sala era arejada, o ar-condicionado mantinha a temperatura em torno dos vinte e dois graus. Antes de ele erguer a cabeça, Nova observou a perfeita e neurótica organização de sua mesa, a lisura de sua camisa azul e os seus gestos contidos e tranquilos diante do computador. Via-se claramente que era um homem de negócios. Diferente do coronel Marau, que ostentava o porte de fazendeiro nas roupas velhas e esturricadas no abdômen proeminente contrapondo-se ao Rolex de platina e as camionetes importadas. Em relação a Dolejal não havia contradição, a imagem que passava era o que ele era: mercador de terras.

 

       Ele a olhou rapidamente e indicou-lhe a cadeira em frente a sua mesa de vidro e mármore. Preferia a pedra à madeira. Nova sabia que era dono de duas madeireiras. Consciência ecológica? Não teve tempo de pensar a respeito, visto que o patrão comentou ao desligar-se da máquina:

 

       – Aqui está o seu pagamento. Acho que é mais justo que receba por dia.

 

       Um rapaz loiro entregou-lhe um envelope e tornou a sentar-se no sofá num canto do escritório. Ela sabia que ele era o braço direito do fazendeiro. Rodrigo comentara certa vez que o garoto era um psicopata, e se trabalhasse para o coronel, já estaria agindo efetivamente como tal. Thales Dolejal lhe tolhia os passos trazendo-o a rédeas curtas.

 

       Contou as notas de cem reais; eram muitas, por sinal.

 

       – Não sei quanto vale o serviço de um ghost writer. Caso esteja abaixo do que o melhor da área recebe, queira me informar, por favor. – afirmou, sério.

 

       No envelope, havia um mês do seu salário no Jornal e de Cris no hospital, juntos.

 

       – Isso tudo por dia? – teve que perguntar, espantada.

 

       – Sim, senhorita Monteiro. – falou com naturalidade; em seguida, fez um sinal para o segurança: – Chame o doutor Navarro. – voltou-se para ela e comunicou: – É necessário que assine o contrato de prestação de serviço. Há uma cláusula sobre a proibição expressa de qualquer veiculação de informação que eu lhe repasse a não ser o registro no próprio livro. Isso significa que tudo que for dito aqui terá dois destinos apenas: o livro ou o esquecimento. De acordo?

 

       – Sim, já estou acostumada a proteger minhas fontes. – sorriu.

 

       Ele escorou-se contra o encosto da poltrona, juntou as mãos como se rezasse e fitou-a com atenção:

 

       – Me diga uma coisa, senhorita Monteiro, tem provas de que sou um assassino?

 

       Era nessa hora que ela torcia para que um telefone qualquer tocasse. Pigarreou ganhando tempo. Ignorou o cruzar e descruzar de pernas do segurança sentado no sofá. O fazendeiro à sua frente, que, por sinal, era o seu chefe, esperava impassível a sua resposta:

 

       – Não falei especificamente sobre o senhor, uma vez que Matarana foi colonizada por muitas pessoas e, dentre elas, – Nova tentou amenizar o tom de voz ao completar: – não se pode negar, grileiros e outros bandidos.

 

       Dolejal esboçou uma reação de quem pouco se importa com o que acaba de ouvir.

 

       – Quando não se especifica, obviamente, acaba-se generalizando. Eu poderia processá-la por calúnia e difamação.

 

       – Mas preferiu me contratar a peso de ouro. – ela concluiu por ele, sorrindo com ironia.

 

       – Está trafegando pela via errada, não sou assim. – ele apertou o interfone sobre a mesa e perguntou: – O que bebe?

 

       Nova sentia a garganta seca, porém não estava com sede. Havia algo demoníaco no modo sereno e controlado do fazendeiro tratá-la, assim como naquele guri com olhos de assassino queimando-lhe a pele da nuca.

 

       – Um su-suco, por favor.

 

       Pronto, voltara a gaguejar – pensou, irritada consigo mesma.

 

       A governanta surgiu à porta.

 

       – Gosta de graviola, senhorita Monteiro? – indagou-lhe o chefe.

 

       Ela tentou sorrir e assentiu.

 

       – Traga-nos o suco, por favor. – pediu à governanta com polidez.

 

       Quando a funcionária saiu do escritório, Franco postou-se atrás do patrão, contornando a poltrona de espaldar alto. Ostensivamente, ele enfiou os dois polegares no cós do jeans, baixando-o o suficiente para que ela visse a arma.

 

       – O que sabe sobre a colonização de Matarana?

 

       – Já começamos, senhor?,pois preciso ligar o gravador, caso não se importe. – ela disse, abrindo a bolsa e puxando o aparelho.

 

       Dolejal negou acenando vagarosamente com a cabeça.

 

       Nova pensou se o diabo loiro ficaria o tempo inteiro atrás do patrão ou se sairia do escritório.  Apertou o “play” do gravador, abriu o bloco de anotações, posicionou a esferográfica azul sobre o papel e encarou o dono de metade da cidade:

 

       – O que sei sobre a colonização de Matarana é o que se conta pelas ruas e que não consta nos livros, claro.

 

       – Claro. – ele repetiu num murmúrio. – Continue.

 

       – Um grupo de sulistas vindos do interior desbravou o centro-oeste bravio, ergueram lonas, mataram onças... Ah, e uma das onças, a mais terrível, se chamava Ana, e ela matou alguns pequenos produtores de soja... Parece que atacava à noite, faminta, pelo pasto verde e alto, e se nutria de colonizadores de pouco poder aquisitivo. Por isso a cidade passou a ser chamada de Matarana, Matar-Ana, porque alguns homens se armaram a fim de matar a onça de péssimo hábito alimentar...

 

       Franco gargalhou. Dolejal alçou as sobrancelhas, surpreso.

 

       – Matar Ana? – ele se voltou para Franco e comentou com ironia: – Como não pensei nisso antes?

 

       – Estávamos ocupados caçando a onça, patrão. – riu-se, o segurança.

 

       Nova sentiu o sangue subir às bochechas.

 

       – Pelo menos foi o que me disseram quando cheguei. – justificou-se num fiapo de voz.

 

       – Nunca investiga suas fontes?

 

       – Sim, senhor, mas acontece que todo mundo falava a mesma coisa...

 

       – Você era uma forasteira, logo todos a tratavam do mesmo jeito, com menosprezo. –falou quase como se fosse o professor ensinando a malícia e a falta de educação mataranenses. – É importante que cheque sempre o que lhe digo. Confronte-me, se for o caso. Preciso estar atento a qualquer contradição no meu discurso, na história oficial de Matarana. – enfatizou com um alçar de sobrancelhas.

 

       Franco sorriu para ela com ar superior para, em seguida, dar-lhe as costas e observar o movimento do pátio da casa-sede através da janela aberta. Enquanto Thales Dolejal dobrava as mangas longas de sua camisa social até os antebraços e dizia:

 

       – A fundação de Matarana possui várias versões, assim como a escolha do nome da cidade. Caso a senhorita fosse a Coração de Ouro, o coronel contaria outra história. Se abordar qualquer outro colonizador menor, ele também apresentará dados e detalhes que modificarão a minha versão e a do coronel também. – ele quase sorriu e emendou: – Mas se ouvir indiscriminadamente todas as versões ficará perdida e não conseguirá escrever a verdade. E a verdade é aquela que fala mais alto e que se impõe.

 

       – A do dinheiro? – desafiou-o.

 

       – Não valorize demais o dinheiro. Antes de tê-lo, temos de ter inteligência, senão nos tornamos escravos da terra, do capital e do patrimônio. E ser escravo de bens materiais é um tanto medíocre, não acha?

 

       Nova umedeceu os lábios, apesar de saber que deveria mordê-los. Tarde demais perguntou:

 

       – Então, por que continua aumentando o poder econômico do seu feudo?

 

       Ele ameaçou sorrir.

 

       – Porque gosto de jogar. – respondeu, simplesmente, sem se abalar, enumerando as demais razões: – Pelo prazer de vencer os adversários, porque sou bom no que faço e... – parou e pensou por um segundo ou dois, emendando sem pesar: – porque é o que me resta, já que não tenho ninguém.

 

       Por um momento, a voz grave e baixa parecia ainda ressoar pelo ambiente. O silêncio se tornou constrangedor. Dolejal, por certo, arrependera-se do que dissera e preparava-se para sair. Franco vigiava a jornalista.

 

       – Escreva no seu bloco, senhorita: Ninguém queria se enfiar nesse fim de mundo, nessa terra quente e áspera, no lugar onde só havia bichos e índios. Viemos porque também queríamos sobreviver, como qualquer filho bastardo do capitalismo. – disse o fazendeiro, devagar – Áreas imensas despovoadas. Terras férteis desperdiçadas. Todos nós precisamos comer, e é a terra que nos dá o alimento. Foi por isso que na década de 1970, o governo federal ofereceu aos fazendeiros do sul e sudeste incentivos como valor baixo das terras e empréstimos financeiros. Em troca, tínhamos de partir do zero, adentrar a mata virgem, sermos atacados por animais, adquirir doenças e, ainda assim, produzir para a nação crescer feliz e próspera. – emendou num leve tom de escárnio e amargura.

 

       Maldizia a própria ambição?

 

       – Escreva isso também: o meu avô, Onório Dolejal, que deu ao garimpo anos de vida saudável e ganhou dele a malária, inúmeras infecções intestinais e alguns quilos de ouro, chegou a Matarana em 1979 e comprou um lote de terra para tocar a vida. Quando já tinha construído sua casa, uma milícia armada o expulsou da sua terra. Ele estava sozinho e teve de pôr o rabo entre as pernas. Foi entãoque chamou o meu pai, Pedro Dolejal, para tentar a sorte na terra de ninguém. Os meus pais venderam o sítio que possuíam e acreditaram que enfim tirariam o pé do lodo. – não havia emoção alguma quando disse: – Mas os coitados ficaram pela estrada antes mesmo de chegar ao centro-oeste. – em seguida, ele ergueu-se e estendeu-lhe a mão: – Outro dia continuamos. Tenha uma boa tarde, senhorita.

 

       Nova ainda estava tomada pela narrativa. Automaticamente, apertou a mão do homem que tinhas as palmas macias e um aperto firme. Viu quando Franco atravessou a sala e abriu a porta para que ela saísse.

 

       Diante do volante e sendo sacudida pelos buracos na terra de chão batido, Nova considerou o que o fazendeiro havia-lhe dito. No fundo, sabia que teria apenas a versão oficial e politicamente correta. Inclusive, a única versão, já que ouviria apenas o lado de Dolejal. Relançou um rápido olhar para o assento do banco ao lado, torcendo o canto dos lábios ao ver o contrato assinado. Dr. Navarro selara o acordo de privacidade.  A multa quanto à quebra de sigilo era altíssima. Entretanto, o que Thales Dolejal lhe diria de tão secreto que já não fosse sabido por todos?

 

       Parou o automóvel, desceu correndo e vomitou no acostamento. O que estava fazendo ali? Perguntou-se, apoiando as mãos nos joelhos, o corpo encurvado para frente. O que diabos estava fazendo com a sua vida, ali? Voltou para o carro, pegou a pasta no banco ao lado e folheou antigas anotações. Encontrou um rascunho de um artigo que jamais poderia ser publicado no Jornal do Cerrado:

 

       “Algumas colonizadoras do centro-oeste obtiveram títulos do governo estadual, nos anos de 1970, por meio de projetos de colonização formados por listas de famílias aliciadas, que funcionavam como “laranjas”. O esquema era simples: os aliciadores, que trabalhavam para os colonizadores, traziam famílias pobres do sul e sudeste, a fim de que assinassem os documentos nos cartórios. O colonizador, por sua vez, somava cada porção de terra adquirida por cada família até formar o grande feudo e ele se tornar o único proprietário de toda a colônia. No caso de Matarana, mais de um colonizador utilizou-se do subterfúgio da grilagem para se consolidar como dono da região. Assim, enquanto eles enriqueceram, os “laranjas” – muitas vezes enganados e iludidos pelos aliciadores – voltaram sem nada para suas cidades de origem ou formaram do outro lado da BR-163, vilas com casebres miseráveis, instalações de luz clandestinas, esgoto a céu aberto, disseminação de dengue, malária, febre amarela e subnutrição.”

 

       Os olhos da noite enxergam como sóis nucleares. E nada escapa de ser resgatado da escuridão, muito menos uma mulher pequena, agachada atrás de um arbusto, a respiração irregular e a ingenuidade dos ambiciosos dilatando as narinas. Ela observava o entorno como se, nesse gesto, estivesse salva de ser observada.

 

       Engatinhou até encontrar um buraco na cerca de arame farpado, esgueirou-se e atravessou-o devagar, entrando oficialmente na propriedade do coronel. Sentia-se absolutamente viva, uma vez que suas pernas batiam uma na outra em espasmos nervosos e o coração movimentava forte o sangue. Era preciso retomar o controle da situação, ou melhor, abaixar-se o suficiente para não ser vista pelos seguranças da Coração de Ouro. Numa relançada rápida de olhar, identificou os vultos de pelo menos dez deles. Zanzavam de um lado para outro, conversando, rindo, carregando nos ombros espingardas e nas cinturas, automáticas. Esse era o sinal mais do que evidente da presença do coronel Marau na casa-sede.

 

       Embrenhou-se pelas árvores que circundavam a fazenda, escondendo-se atrás dos troncos nodosos até alcançar a estrada vicinal de gramado amarelado e seco. Já na estrada, verificou que a iluminação era escassa, visto que apenas algumas lâmpadas dos postes de madeira funcionavam exibindo uma tênue claridade.  Deu uma olhada por cima do ombro e sentiu-se encorajada a voltar a caminhar como o homo sapiens aprendera, a coluna ereta. Acatou o impulso imediato de correr. Sabia exatamente qual era o casebre onde Pedro vivia. Apressou o passo de modo a atravessar o prado até chegar à frente da construção de alvenaria.

 

       Um lugar feio e malcuidado. O reboco parecia desprender-se da fachada sem janela e porta de madeira. Nova olhou mais uma vez ao redor e pensou se a coisa não estava fácil demais. Parou diante da porta, tentando ouvir através dela. Tocou na maçaneta como se a mesma estivesse fervendo. Baixou-a com extremo cuidado, mordendo o lábio inferior para, inutilmente, conter a tensão. Entrou, puxando do cós da calça a lanterna. Fechou a porta atrás de si enquanto lançava um jato de luz para o canto esquerdo do recinto. Apenas uma mesa, uma cadeira e um colchão sobre o piso de cimento. Na testa porejava o suor. Era uma armadilha. Ninguém podia habitar um lugar assim, sem móveis e cheirando a cachorro molhado. Deu um passo para trás ouvindo o barulho típico do campo e as risadas, agora, próximas, de dois caubóis. Falavam sobre futebol ou montaria – Nova, ao lado da porta e com o corpo colado à parede, entendia metade de algo e inventava a outra. Manteve o ar nos pulmões e mirou a luz da lanterna numa oscilação lenta e detalhista, procurando esquadrinhar cada canto da biboca que se dividia em um cômodo e um banheiro. Com certeza, Pedro não fazia suas refeições ali. Não havia espaço para uma cozinha. O tipo de vida do capanga do coronel era viajar para dentro do cerrado e enganar os pobres coitados com falsas promessas de prosperidade.

 

       Havia algum tempo que a polícia civil de Matarana contava com apenas três funcionários. Adele – a escrivã que dividia seu tempo entre interceptar os bolinhos de chocolate para Rodrigo, presenteados por Rita, dona da confeitaria em frente ao distrito policial, e a dedicação obsessiva ao seu hectare de terra virtual no Facebook. O outro funcionário era uma pessoa menos perturbadora que Adele, chamava-se Lucas, 28 anos e havia sido ator pornô em Curitiba antes de entrar para a polícia. Omitira o passado ligado à arte pornográfica, uma vez que o único filme em que atuara havia rodado apenas no Paraguai.

 

       Rodrigo entrou no corredor onde havia duas celas, lado a lado. Olhou para a galinha presa em uma delas. O bicho fora motivo de discussão entre dois fazendeiros de pequeno calibre, um mais morto de fome que o outro. Um deles alegava que a galinha era sua, comprada com o seu dinheiro, criada com suas outras galinhas; o outro contestava a propriedade já que a mesma se alimentava diariamente no seu terreno, se tornara então sua. A galinha fora apreendida por Lucas e trazida para a DP. Na outra cela, o aliciador.

 

       Encostando-se displicentemente contra a parede, o delegado lançou um olhar debochado ao prisioneiro. Pedro, sentado sobre o catre, parecia envolvido em seu próprio mundo. Acostumado a ser preso por um delito ou outro, adquirira a técnica de projetar a alma para fora do corpo, algo como cuspir o chiclete da boca ou coisa assim. Rodrigo admirava pessoas que fugiam da realidade e depois voltavam.

 

      – Pois é, Quintana, ninguém ainda se pronunciou ao seu favor. Às vezes, o coronel fica chateado com as mancadas dos seus pistoleiros. – disse, baixinho, quase murmurando, era uma forma de chamar a atenção da alma que voejava no teto da delegacia.

 

       E ela voltou.

 

       – As coisas funcionam no seu tempo certo, delegado. – falou em tom profético.

 

       – É, tem razão. – tocou na aba do chapéu e ensaiou partir.

 

       – Delegado?

 

       Rodrigo voltou-se, encarando o homem que o olhava sem expressão alguma.

 

       – Fiz uma longa viagem e não tenho paciência para gracinhas. O coronel é um homem atarefado e jamais deixa na mão os seus homens. Agora, preste bem atenção... – fez um sinal com o dedo em gancho, indicando para Rodrigo se aproximar: – Quando eu sair daqui, vou convidar aquela galinha para jantar comigo.

 

       Rodrigo arqueou a sobrancelha, intrigado, relançando um rápido olhar para o bicho na cela ao lado e, depois, para o prisioneiro humano:

 

       – Não poderá, amigão, ela está detida sem direito a habeas corpus. – ironizou, dando as costas ao homem e se encaminhando em direção à porta que, após um longo corredor e outra porta, chegava-se à sala principal, a do delegado de Matarana.

 

       Uma voz rouca e arrastada como a voz de pessoas com mais de cinquenta anos e milhares de carteiras de cigarro coladas nas paredes dos pulmões e alvéolos vociferou forte no ambiente, espantando a galinha e fazendo com que Malverde se voltasse para compreender o que ouvia:

 

       – Vou jantar a “galinha”, a que está solta ciscando ao meu redor, delegado.

 

       Rodrigo voltou-se e estreitou os olhos, procurando absorver devagar a ameaça do meliante.

 

       – É estranho um homem que nem sabe ao certo se sairá detrás das grades, fazer uma ameaça velada para um delegado de polícia. Você é o quê, Pedro, burro ou débil mental?

 

       Diante da cela do aliciador, o delegado parou e pôs as mãos na cintura. Pedro continuava sentado à beira do catre, imóvel, fitando o vazio à sua frente.

 

       – Não ameacei o senhor e ninguém, a não ser que a lei considere uma galinha um ser humano. – falou com calma.

 

       – Entendi, você é supostamente poeta e deve cultuar figuras de linguagem, – debochou e emendou num tom de ameaça: – mas, de minha parte, como humilde agente da lei sem dotes artísticos digo que, se simbolicamente ou não, está se referindo à jornalista, espero que use o tempo que ficará aqui detido e, pelo visto, será muito tempo, para reconsiderar o que me disse. Para o seu próprio bem, ô asno. – completou, com desprezo.

 

       Era a quinta vez que Cris ligava para o celular de Nova. Ela não o atendia. Como teria folga do hospital, aproveitou para esvaziar as latas de algumas cervejas. Antes de sair para a varanda, deitar na espreguiçadeira e sorver a bebida, abriu o forno e deu uma olhada no assado. Estava no ponto, como Nova gostava, com uma leve cobertura tostada. Girou o botão do fogão e fechou o gás. Como a salada que preparara era um vidro de pepino, o jantar já estava pronto. Bastava Nova chegar da Arco Verde.

 

       Era raro estar em casa sozinho. Normalmente, era Nova quem ficava sem ninguém, às vezes, por dias. Quando tinha de fazer dois plantões consecutivos, cochilava e tomava banho no hospital. Era uma rotina cansativa e, com o passar do tempo, se tornava cada vez mais comum. Cinco anos vivendo sob o peso da exaustão e culpa, e ele ainda não se acostumara. Mas se acostumara a ter Nova em casa, ao seu redor, contando sobre o seu dia, os seus planos e as fofocas que rolavam no Bar do Gringo. Assim como se acostumara a tê-la em sua vida havia quase trinta anos. Uma vida inteira. E jamais passara um dia sem se falarem. Uma loucura também. Era-lhe natural conversar com a amiga sobre tudo e todos, como se ela fosse a extensão de si mesmo.

 

       Perguntava-se, não raras vezes, se não tivesse quase levado à morte a sua paciente, a sua vida não seria outra. Estaria ainda em Belo Horizonte trabalhando na clínica do pai? Vivendo na parte mais alta de um edifício, num condomínio arborizado, com piscina e quadra de tênis? E se Nova escondesse dele suas investigações acerca do próprio marido e jamais revelasse o caso entre ele e Júlia, sua esposa? Júlia ainda viveria com ele? Estariam ambos felizes no bairro mais arborizado de Belo Horizonte?

 

       No ano em que a bomba de Nova explodiu, ele e Júlia haviam decidido começar a ter filhos. Casados havia cinco anos, ela protelava a ideia todas as vezes que Cris tocava no assunto. Não escolhera a pediatria por acaso, gostava de crianças e desde adolescente tencionava seguir o modelo mais comum e normal da vida: crescer, amar e procriar. Mas, por acaso, escolhera amar a pessoa errada.

 

       Verificou a hora no relógio de pulso e já passava das dez da noite. Bocejou, juntou as latas ao redor e entrou na cozinha. Sentia-se estranhamente inquieto e, mais do que isso, incomodado. Tentou outra vez se comunicar com Nova. A mensagem eletrônica avisava que o celular estava fora de área.

 

       Era meia-noite quando Cris atravessou o centro de Matarana pisando fundo no Camaro que trouxera ele e Nova à cidade para recomeçar do zero. O cenho franzido pronunciando o sulco fundo entre os olhos e as têmporas latejando, ele era um homem atingido em cheio por um mau pressentimento. Ignorou o sinal vermelho e acelerou até alcançar a secundária que o levaria a Arco Verde. No caminho, ligou para o celular de Dolejal. Apertou os lábios com raiva ao constatar que as ligações caíam na caixa postal.

 

       O céu crivado de estrelas parecia despencar sobre as árvores retorcidas e o prado aberto. Os faróis do automóvel iluminavam a estrada de chão batido, deserta. Apenas o som dos grilos e corujas naquela calma pacífica que antecedia as tragédias. E era por isso que ele sentia a garganta seca e uma angústia dos diabos na boca do estômago. Nova era cabeça dura, e na terra de ninguém, as pessoas simplesmente desapareciam. Ela andava mexendo com gente que não devia, com a ingenuidade de um coelhinho na toca do leão. Precisava vigiá-la mais de perto e prestar atenção nos seus movimentos.

 

       Reduziu a velocidade ao perceber um veículo parado no acostamento. Reconheceu o jipe, mas não viu a motorista. Parou e contornou o próprio carro, observando ao redor. Nem sinal da amiga. O ar estava áspero rasgando a garganta e a traqueia. Ou seria o nervosismo dificultando a sua respiração?

 

       – Nova! – gritou, abrindo a porta do jipe e encontrando a bolsa no banco ao lado.

 

       A luz dos faróis do Camaro iluminava o jipe, e a lua despejava claridade argêntea por sobre o mato queimado pelo sol. O cheiro forte da terra seca e do estrume erguia-se no ar cuja temperatura alcançava a marca dos trinta graus.

 

       Ele mexeu na bolsa e pegou o celular. Aquilo o deixou ainda mais tenso.

 

       – Nova! – insistiu, olhando ao redor, desamparado.

 

       Rodrigo havia-lhe dito que Nova estava encrencada. Perseguia um funcionário do coronel e chamara os fundadores da cidade de assassinos. Ela, que era forasteira e vivia havia somente cinco anos em Matarana. Dolejal empregara-a com o propósito de lhe calar a boca, era óbvio. Então não a faria mal. Entretanto, havia ainda o outro fundador. Cris pulou fora do jipe, apertando as têmporas para controlar a tensão. Precisava pensar, pensar...

 

       Quando o seu celular vibrou, o médico quase teve um infarto. Atendeu-o no segundo toque sem ver de onde vinha a ligação.

 

       – Algum problema, Cristiano?

 

       Era Thales Dolejal.

 

       – Acabo de encontrar o jipe da Nova na estrada.

 

       – Onde você está?

 

       – Pouco antes da Arco Verde. – respondeu e emendou com ansiedade: – Ela ainda está com você?

 

       – Já faz algum tempo que saiu daqui. – disse e, em seguida, completou solícito: – Acredito que tenha tentado falar com ela pelo celular, assim o ideal é pôr alguns homens para procurá-la. Mandarei o Franco com os rapazes.

 

       – A bolsa também está no carro... Ela sumiu, Thales. – disse, preocupado.

 

       – Ninguém desaparece, Cris, a gente sabe o que acontece de fato. – afirmou, convicto.

 

       – Tenho de falar com Rodrigo...

 

      – Espera, não formalize ainda o desaparecimento. Se foi obra do coronel, acionando a polícia, ele se manterá atento.

 

       – Sim, mas o que faço?

 

       – Vá para casa e aguarde. – ordenou.

 

       Pegou a bolsa e a deitou sobre suas pernas enquanto dirigia de volta para casa. Precisava controlar a vontade de telefonar para Rodrigo e pedir ajuda. Mas Dolejal conseguia entrar com facilidade no reduto do coronel sem precisar de mandados. Era evidente que ele tinha um dos seus infiltrado na Coração de Ouro.

 

       Bateu com força a mão no volante, irritado, ao lembrar a última briga que tivera com Nova. Por Deus, se alguém tocasse num fio de cabelo dela, ele seria capaz de desenhar com o bisturi estradas tortuosas na pele do desgraçado.

 

       Estacionou diante de casa e desligou o motor do carro. Olhou para a fachada de alvenaria com a luz do lustre iluminando o jardim de rosas secas e o gramado ralo e amarelado. Nova tentava manter as rosas bonitas durante a estiagem; era impossível. Abriu a sua bolsa e a vasculhou, a fim de encontrar alguma pista sobre o seu desaparecimento. Havia de tudo, só faltavam ferramentas pesadas. Tesoura, grampeador, gravador, comprimidos de Paracetamol, chicletes, bloco de anotações, batom, perfume, escova de cabelo e uma fotografia.

 

      Cris pegou a fotografia na mão, e estava escrito “Meu amor para sempre”. Engoliu em seco. Aí estava a pista que precisava para descobrir por onde ela andava. Nova teria um amante? Um namorado? Franziu o cenho intrigado e sentindo-se um cretino completo ao mexer nas coisas dela. Pôs a fotografia no lugar de volta sem ver a imagem do homem, do amor para sempre da amiga. Queria mesmo que ela fosse feliz com alguém. Mas não podia ser qualquer um, tinha de ser um homem decente, maduro e que a admirasse e a amasse em cada detalhe seu, de sua personalidade ora difícil quase insuportável, ora doce e divertida.

 

       Acendeu um cigarro e suas mãos tremiam. Paralisado, observou o rosto do homem e logo o reconheceu. Tragou mais uma vez o cigarro e, sabendo que seria impossível acabar com ele, falou para si mesmo:

 

       – Puta merda.

 

        Diante de Karen, sentado à mesa para o jantar, o namorado de sua avó. Aparentava uns setenta anos, mesmo que afirmasse ter sessenta e dois. Vestia-se como o pessoal da década de 1940, terno, gravata e chapéu. Cheiravam a naftalina, ele e o terno. Cheio de manias – como Karen bem pôde observar – não se aproximava da geladeira com medo de resfriar-se. Durante o jantar, escolheu apenas legumes e verduras, ignorando a carne vermelha, o álcool e a sobremesa açucarada. Encolheu-se num canto distante do ar-condicionado. Fez cara feia quando Karen acendeu um cigarro. Desculpando-se, ela se postou à janela.  O advogado falou algo como fumante passivo, câncer e morrer definhando. Formado em Direito, dominava o latim e o português rebuscado. Frequentava a igreja, acreditava no Apocalipse, na Unção dos Enfermos, fora seminarista, pugilista e comunista. Chegara a Matarana para fazer fortuna rápida. Perdeu o pedaço de terra para o banco e abriu uma imobiliária. Podia até advogar, podia mesmo. Preferia, no entanto, comprar e vender imóveis. Era um corretor nato.

 

       Ninita olhava-o enquanto ele falava usando as mãos como um italiano e lavando as palavras no ouro em pó. A namorada fazia caretas, discordando do discurso do namorado. Ela queria uma companhia para dançar, e não um marido. O doutor Vilela era um velhinho magro e cansativo. Movido a pilhas gastas, lerdo, quase surdo e tagarela. Era visível o tédio que o advogado provocava na sua avó.

 

       – Acha que na minha idade é fácil conseguir um homem?

 

       Na cozinha, lavando a louça enquanto o advogado conversava com Johnny sobre a importância do jiló para a nutrição de um jovem, neta e avó teciam comentários sobre o recente jantar e o convidado.

 

       – E pra quê arranjar sarna pra se coçar? – alfinetou-a.

 

       – Melhor se coçar do que ficar parada feito uma múmia esperando a morte chegar. – retrucou com ar de indignação. – Além do mais, ele paga todas as despesas quando eu e a Veridiana saímos. É um docinho! – riu-se.

 

       – Doce enjoa. – objetou Karen, quase deixando um prato cair no chão.

 

       – Presta atenção, guria! – exclamou Ninita crispando os lábios. – Pelo menos não tenho dois dias para ser expulsa da cidade pelo meu namorado.

 

       – Primeiramente, o Dolejal não é meu namorado. Aliás, namorado é um termo usado pelos adolescentes, vó. A senhora tem é um amante, um caso. – depois, emendou tentando diminuir a tensão do tema: – E quanto à expulsão, ele estava blefando, tentando me intimidar. Imagina, não estamos no Velho Oeste americano.

 

       – Ah, é? E o pessoal escoltado para além do portal da cidade? Isso não é uma expulsão? – ironizou, enquanto terminava de preparar o café.

 

       – O que acha que acontecerá? O Thales mandará o psicopata do Franco me pegar pelos cabelos com uma arma apontada para a minha cabeça e me enfiará num ônibus para o sul? – riu-se.

 

       – É bem possível.

 

       – Eu o conheço. Ele jamais chegaria a esse ponto. – afirmou, terminando de lavar a louça e fechando o registro da torneira com força.

 

       – Querida, está se iludindo se acredita que o Thales agirá diferente com você. – pegou o rosto da neta entre as mãos e continuou sem poupá-la: – Terei de ser dura, mas a verdade deve ser dita: você não é especial para ele. Aquele homem é movido pelo poder e pelo ego. E você pisoteou no ego dele chifrando-o descaradamente. A cidade inteira sabe que o poderoso latifundiário é corno, é cheio de guampas, é praticamente um alce.  E caso tenha sido ele o causador da fuga de todos, repito, todos os seus ex-namoradinhos, imagina o que lhe aguarda, meu anjo. O certo era nós juntarmos nossas coisas e pegarmos a estrada. – completou, a senhora de cabelos meio loiros meio grisalhos, sobrancelhas grossas, semblante duro e óculos de grau de armação antiga.

 

       Ela estava certa. E o certo era fugir correndo de Matarana.

 

       – Não posso voltar para o sul com o rabo entre as pernas e abandonar o que o pai e a mãe construíram aqui.

 

       – Isso é ego! – xingou a avó.

 

       – É sobrevivência! Chega dessa história de Darwin, da seleção das espécies, do mais forte sobreviver. Os fracos que imitam os fortes também têm direito de um lugar ao sol. Ficarei e lutarei pelo patrimônio do Johnny. Ficarei e lutarei para mostrar ao meu filho que ninguém é melhor que ninguém. Por Deus, vó, o pai dele fugiu...o pai dele era um fraco! Eu não tenho o direito de fraquejar. Eu não quero desistir de ser quem sou!

 

       – Ai, meu Deus, acabará nos condenando a morar com os índios. – lamentou a avó.

 

       – E daí?  Temos sangue indígena, não? – brincou Karen, puxando a avó para um abraço apertado: – Não se preocupe, Ninita, tenho um aliado forte, não jogo sem coringas.

 

       – Ah, sei, fala do Malverde... – a avó encarou fundo nos olhos e disparou: – Que eu saiba o delegado é mais amigo do Dolejal, não?

 

       Karen sorriu sem jeito.

 

       – Sim, parece que sim.

 

       – Sabemos muito bem o que significa a lealdade masculina. – conjecturou.

 

       A neta assentiu lentamente com a cabeça e suspirou resignada.

 

       – Terei de contar com o caráter do Rodrigo. – afirmou.

 

       Vó Ninita sorriu aquele seu sorriso malicioso de quem vivera muitas décadas no planeta e assistira a várias partidas de pôquer:

 

       – Ou usar os seus dotes naturais, criança.

 

       Karen também gostava de pôquer.

 

       Cris entrou pela porta dos fundos, que dava acesso primeiro à cozinha, antes do restante da casa. Estava tão preocupado e nervoso que, ao sair, esquecera-se de desligar as lâmpadas da casa. Depositou a bolsa de Nova sobre a mesa e esfregou a nuca, cansado. Uma mariposa sobrevoava a lâmpada sobre a mesa posta com os pratos, copos e talheres. Afastou uma cadeira e sentou-se pesadamente. O peso do mundo sobre os ombros e, ao mesmo tempo, a leveza de uma pluma na alma. Ouviu o barulho de uma porta abrir, atravessou o corredor e encontrou Nova segurando um cálice de vinho na mão, pálida, o cabelo molhado, o corpo magro enrolado num robe atoalhado e puído. Parecia tão indefesa e quase infantil que não pensou duas vezes e abraçou-a com força.

 

       – Quer me matar do coração? Onde estava? – falou baixinho, afagando-lhe o cabelo molhado.

 

       Ela deitou a cabeça contra o seu tórax, buscando o calor e o cheiro familiar que fazia dele o lugar para viver, ele, Cris, o seu país de origem e retorno.

 

       – Fui atrás de uma pista e acabei ficando apavorada. – a voz vacilante. – Invadi a Coração de Ouro, mas o coronel já havia limpado a casa do Pedro. Pensei que fosse uma emboscada e saí correndo pelo mato.

 

       Cris afastou-se ligeiramente dela, perscrutando-lhe a feição abatida, franziu o cenho e indagou sério:

 

       – Será que não chegou a hora de me ouvir?

 

       – Acho que sim. – respondeu num fiapo de voz e completou quase como se implorasse: – Mas, agora, preferia um longo abraço a um sermão de irmão mais velho.

 

       Ele a puxou para si e ajustou seus braços ao redor do corpo dela. Beijou-lhe a testa, fraternalmente.

 

       – Deixa essa gente de lado, Nova, por favor. Concentre-se no seu trabalho com o Dolejal. Estamos entendidos? – tentou sorrir e disfarçar a impaciência no tom da voz.

 

       – Sim, mas não prometo nada. – murmurou.

 

       – Prometa, sim, prometa que deixará de lado esses tipinhos. – pediu, segurando-lhe o queixo com dois dedos, forçando-a olhar para ele. – Vamos viver em paz a nossa vida, viemos para Matarana para recomeçar. Hoje você me deixou muito preocupado, não tenho estômago para viver assim, sem saber por onde anda, perdida no meio do mato, o carro abandonado na estrada, perseguindo capangas de fazendeiros... Não posso viver assim, Nova. Fica comigo, somente comigo. – completou, incisivo.

 

       – O que isso significa? – perguntou com os olhos cheios de esperança.

 

       Ele não hesitou em responder:

 

       – Que a gente já andou por vários lugares e com outras pessoas e nunca nos perdemos de nós mesmos, é isso que significa. – disse, fazendo-lhe um carinho na testa com o dorso da mão.

 

       – E o que isso significa? – insistiu.

 

       Queria mais dele, arrancar o que de fato queria ouvir, palavra por palavra. Era sempre assim, frases codificadas. Não bastava mais ser terno, carinhoso e delicado se não a amasse como mulher.

 

       Cris suspirou, profundamente, tentando desvencilhar-se da questão. Soltou-se dela e voltou à cozinha, comentando com forçada naturalidade:

 

       – A carne deve estar seca e dura. – postou-se diante da mesa e afastou a cadeira para Nova sentar, completando: – Antes de jantarmos, tenho de avisar o Dolejal de que você está sã e salva em casa.

 

       Nova manteve-se de pé, fitando-o à espera de algo, de um milagre de amor ou de um comentário impaciente. Cris, então, cruzou os braços diante do tórax e foi direto ao ponto, pela primeira vez, surpreendendo-a:

 

       – Sou o seu amor para sempre? – perguntou sério, quase como se a interrogasse sobre um crime.

 

       Ela engoliu em seco, mesmo desconfiada de que a bolsa aberta significava que o seu melhor amigo tivesse fuxicado no interior dela e encontrado, entre tantas outras coisas, a fotografia com a declaração de amor. Havia apenas uma resposta para essa pergunta:

 

       – Sim, você é o meu amor eterno. – afirmou, erguendo o nariz como se o desafiasse a contestá-la.

 

       Ele sorriu de leve, baixou a cabeça e tornou a encará-la:

 

       – Você também é o meu amor eterno, malandrovski.

 

       Quando inventava de chamá-la pelo apelido criado por ele mesmo, a declaração só tinha um entendimento: amor eterno de amigos. E isso já não lhe bastava. Era agora ou nunca, como cantava Presley.

 

       – Amor de amigos, Cris?

 

       – Mais do que isso, amor de humanos. – rebateu e, em seguida, pegou o celular da mesa e lhe fez um sinal, dizendo: – Se por acaso precisar de um órgão meu para transplante, ficarei feliz em doá-lo, mesmo que eu fique sem. Viu?,é esse o nível do meu amor por você. – piscou o olho com um sorriso charmoso e voltando-se para telefone, digitou nas teclas.

 

       Nova arrancou o celular da sua mão e fulminou-o sem esconder a exasperação:

 

       – E o seu pênis? Pênis é um órgão, não é? E, aí, doaria para mim esta noite? Vamos testar o nosso amor, Cris?

 

       Se não estivesse tão zangada e cansada da passividade do pediatra, teria rido da sua expressão. Parecia entre surpreso e assustado, o rosto congelado na mistura de tais sentimentos. Ele demorava a se refazer das investidas da amiga. Todo o jogo de cintura que tinha com as outras mulheres que davam em cima dele era inútil com ela. Cris travava diante de sua determinação.

 

       Como ele não reagia apenas olhando para ela sem articular palavra, a mão aberta no ar segurando o celular invisível, os olhos pregados nos dela e, por detrás deles, um cérebro se convulsionando em meio a um labirinto de respostas, perguntas, dúvidas e falsas saídas de emergência, Nova teve de agir. Já que jogara lenha na fogueira, agora, era a vez do álcool para inflamar a combustão.

 

       A investida não foi a das melhores. Como uma adolescente pulando no pescoço do professor de inglês, desengonçada, enlaçou-lhe o pescoço, cuidando para que não escapasse dos lábios que o beijaram. Pôs uma mão na nuca de Cris, forçando-o a acatar o beijo e compartilhar a viagem que o gesto os conduzia.

 

       Era o primeiro beijo na boca, o primeiro depois do encontro no parquinho quando ela o empurrou do balanço e lhe deu um tapa na cara e ele chorou.

 

       Ele percebeu que o homem dentro de si rosnava ferozmente para o amigo, mandando para o inferno a postura de bom-moço e apertou-a com força. Ela gemeu alto.

 

       Afastaram-se ofegantes e aturdidos. A dor que Nova sentiu nas costas fê-la, instintivamente, gritar.  

 

       – Está ferida. – Cris afirmou, virando-a de costas para si e apertando levemente as suas costelas, uma por uma.

 

       – Ai... Acho que não... Ui, ai, dói um pouquinho, bem pouquinho. – gemeu.

 

       – Afaste o robe, tenho de ver. – falou de um jeito impessoal, era o médico voltando ao corpo de quase possível amante: – Afaste só, Nova, não é para ficar nua, sim? – emendou, na defensiva.

 

       Ela continuou de costas para ele e abaixou a parte superior da roupa, deixando-a deslizar até a linha da cintura. Sentiu os dedos de Cris tocando-a com suavidade, sem conotação erótica. Suspirou resignada. Arrancara um beijo de língua, seria muita sorte uns amassos, sorte mesmo!

 

       – É grave, doutor? – provocou-o, debochando.

 

       – Superficial, apenas alguns arranhões. – concluiu e continuou já se afastando: – Vou pegar iodo para limpar.

 

       No caminho para o banheiro, a fim de pegar a caixinha dos primeiros socorros, digitou os números de Dolejal no celular. No entanto, o ronco do motor de um jipe ecoou em frente à casa e fê-lo desistir da ligação.

 

       – É o Franco... – avisou Nova e completou baixinho: – atirador.

 

       Ela abriu a porta frontal que dava para a varanda e saiu apertando-se no robe.

 

       Franco pulou para fora do jipe, depois de estacioná-lo em frente à garagem, o chapéu incrivelmente não caiu da cabeça. Contornou o veículo, subiu os três degraus da varanda e entregou-lhe a chave com um sorrisinho endemoniado.

 

       – Humm, então, está viva.

 

       – Sim, obrigada por trazer meu carro. – apontou para o jipe, mordendo o lábio inferior. Franco dava-lhe arrepios. Não temia tanto o coronel ou Pedro quanto temia aquele guri com cara de roqueiro psicopata.

 

       Cris apontou à porta e cumprimentou-o acenando com a cabeça.

 

       – Obrigado pela força, Franco.

 

       – De nada, doutor. – ainda sorrindo, voltou-se em direção à camionete que o esperava estacionada no acostamento e disse: – O patrão mandou o Mendes escoltar a dona Nova.

 

       – O-o que? – gaguejou ela, surpresa.

 

       Franco voltou-se e, ajeitando o chapéu, completou sempre sorrindo de forma presunçosa:

 

       – Isso o que ouviu, dona. O patrão mandou o Mendes ser o seu segurança particular.

 

       – Ótimo! – exclamou Cris, atrás dela, todo alegrinho.

 

       Nova franziu o cenho, contrariada. Não andaria pela cidade com um pistoleiro à sua cola.

 

       – Ninguém me viu na fazenda, saí de lá porque tive um chilique.

 

       – É mesmo? – Franco debochou, pondo as mãos na cintura e continuou: – A dona encontrou o que procurava?

 

       Cris respondeu por ela:

 

       – Além de não encontrar, quase caiu numa emboscada.

 

       – Obrigada, Cris, por ser meu porta-voz. – resmungou, mal-humorada.

 

       – Bem, acho que a dona está ferrada mesmo. Alguém do lado do coronel também está fazendo o seu dever de casa, e o patrão está certo ao oferecer proteção.

 

       – O coronel limpou o quarto do seu aliciador... – falou Nova devagar, tentando juntar as peças do quebra-cabeça.

 

       – Porque sabia que você ia lá. – Cris pôs a última peça que faltava no lugar.

 

       – Isso mesmo, doutor. Agora, a dona terá de se juntar a nós. – riu-se Franco e completou achando graça da desgraça alheia: – Por um lado até é bom, o livro sobre a fundação de Matarana ficará mais, digamos, autêntico. Você é uma das nossas, dona Nova.

 

       Deu-lhe as costas, descendo os degraus assobiando alegremente o capeta.

 

       – Eles pensam que me compraram. – murmurou Nova, sentindo sobre o ombro a mão de Cris.

 

       – Sabe quantas pessoas chegam baleadas ou esfaqueadas por semana no hospital? Essa briga não é nossa. Vamos limpar os seus ferimentos, vem.

 

       Adele bateu duas vezes antes de enfiar a cabeça entre a fresta da porta e perguntar:

 

       – Sabe da última?

 

       Rodrigo não sabia. Por isso fez um sinal com o dedo, apontando para a cadeira à sua frente, onde a escrivã sentou-se. Ele tomava o seu café preto com dois bolinhos feitos pela dedicada doceira. Adele espichou os olhos para os bolinhos, e o delegado ofereceu-lhe um:

 

       – Isso não é um suborno, Adele, mas pode me contar o que sabe. – brincou.

 

       Ela mordeu o bolinho, alguns farelos descansaram sobre a mesa do delegado.

 

       – Por que tudo que engorda é ma-ra-vi-lho-so, hein?

 

       – Não sei, é o mistério da existência. – comentou, piscando-lhe o olho.

 

       – Sabe, chefe, a jornalista amiga do doutor Cris sofreu uma emboscada ontem na Coração de Ouro. – declarou, revirando os olhos para o bolinho.

 

       Rodrigo empertigou-se rapidamente e espichou a mão para o telefone sobre a mesa. A funcionária sorriu, tranquilizando-o:

 

       – Ela está bem, conseguiu fugir.

 

       – Por que a Nova estava na fazenda do coronel? – perguntou Malverde, intrigado. – O Pedro está aqui, preso... Merda... Claro, o Pedro está aqui, preso, e ela foi xeretar onde o infeliz vive. – deduziu, irritado.

 

       – Uma vez vi um filme sobre um americano que se mete no Chile, na época da ditadura, e começa a investigar os chilenos e o conluio com os americanos para dar um golpe de Estado. Bem, o americano é assassinado pela polícia chilena, e os caras do consulado americano dizem ao pai do americano morto: “Seu filho sabia que aqui era uma ditadura e se meteu onde não devia. É como um chileno ir para Nova Iorque e investigar a máfia, sabe o que vai acontecer com ele também.” – arregalou os olhos, lambeu os dedos e completou: – Nova Monteiro vem para Matarana e se mete com o coronel, o que pode acontecer, hein?

 

       – Entendi a sua linha de raciocínio, Adele. – disse, levantando-se e dando o café por encerrado.

 

       – O que vai fazer? Xiii, o senhor está com aquela cara de Che Guevara do cerrado!

 

       Rodrigo riu e conferiu a munição de suas armas espalhadas e escondidas pelo corpo.

 

       – Sinto falta de tomar chimarrão. – fez uma careta e saiu.

 

       O ditado “se fosse uma cobra picava” cabia muito bem na circunstância em que Karen e Franco se encontravam. Ela entrou no quarto com a intenção de trocar de roupa e pegar no batente. O único bangalô que começara a reformar tinha a pintura pela metade.

 

       Empurrou a porta com o pé, fechando-a. Abriu o guarda-roupa e tirou o short jeans e uma regata branca. Puxou a camisa do pijama pela cabeça. Antes de vestir a camiseta, viu-se diante do pistoleiro. Sorriu com malícia, observando os olhos azuis fixos em seus seios. Permitiu tal liberdade ao rapaz em nome dos velhos tempos. Mas lembrou-se de ver esse mesmo prazer em seus olhos ao admirá-la esfolada no chão de terra batida. Tempo esgotado. Vestiu a camiseta e fez mais que isso, abaixou-se e tirou um taco de beisebol debaixo da cama. Voltou-se para ele, sorrindo:

 

       – Onde prefere, no crânio ou na coluna?

 

       Franco ergueu as palmas das mãos fingindo rendição, olhava ostensivamente para o short do pijama, entre as suas pernas, insolente:

 

       – Sei que entende de pau, mas larga isso aí, vai. – franziu o nariz como se fosse o coelhinho da playboy e ganhou alguns espaços até ela: – Só vim fazer uma visita de cortesia, Karen.

 

       – Qual é o recado do patrão, Hannibal Lecter?

 

       Ele riu, divertido. Sentiria falta dela, com certeza.

 

       – Nenhum, a não ser um lembretezinho: depois de amanhã estarei aqui para conduzi-la até a rodoviária. Deixarei você dentro do ônibus para Cuiabá, e depois pegará outro para Presidente Prudente...

 

       – Por que Presidente Prudente? – Karen franziu o cenho, batendo a ponta do taco contra a mão aberta: – Não estou entendendo esse suposto lembretezinho, ô pau-mandado!

 

       – É para lá que você vai, Karen. O patrão comprou uma espelunca para você e sua família viverem. – afirmou, ainda sorrindo e de olho no taco na mão dela.

 

       – Por que Presidente Prudente, animal? – elevou a voz e bateu o taco contra o colchão.

 

       Franco sorriu ainda mais. Ele adorava o caos, o desequilíbrio, a escuridão.

 

       – Acho que porque é paulista, sei lá. – deu de ombros. – Foi o Dolejal que fez todo o negócio. Sou apenas o mensageiro. – debochou.

 

       – Não vou para São Paulo nem para lugar algum que não esteja dentro dos limites de Matarana. Pega essa sua demência e arrogância e leve as duas de volta contigo para a Arco Verde e diz para o seu patrão que ele mesmo terá de me expulsar daqui! – ameaçou sem elevar a voz, sentindo a pressão entre os maxilares.

 

       Corpo a corpo, ela podia sentir o cheiro da colônia que Franco usava e, muito mais que a colônia, o tipo de loucura que lhe revestia a racionalidade. Ele não parava de sorrir.

 

       – Sou como 007, Karen, tenho licença para matar. – afirmou, pegando o taco e puxando-o com força até arrancá-lo da mão dela. – Posso estourar a sua cabecinha de vagabunda agora mesmo e enterrar o seu corpo gostoso em qualquer parte de Matarana. Se eu quiser, acabo com você.

 

       – É o que quer ou o que o seu amante quer? – provocou-o, empinando o nariz.

 

       – Você é uma vagabunda, sabe? Não é uma mulher, não alguém que mereça respeito e consideração. É uma cadela de rua sempre no cio. – ele parou de falar e jogou longe o taco de beisebol, voltou-se para ela e continuou num tom baixo e ameaçador: – Sabe, minha mãe também era um vagabunda, uma vadia de beira de estrada. Vivi com ela pouco tempo, e via os clientes que arranjava, caminhoneiros, garimpeiros e toda a corja em torno da 163. Gente sofisticada e profunda. – riu-se com amargura e completou: – Eu amava aquela pistoleira dos infernos e, ao mesmo tempo, queria vê-la esmagada debaixo das rodas de um caminhão. Papai do céu então atendeu o meu desejo e uma carreta que carregava toras de madeira carregou também a minha mãezinha. Quando parou, mamãe acordou no inferno. Eu tinha 12 anos quando conheci Dolejal, ele me criou, ele me constituiu quem eu sou e eu sou indestrutível! – sempre num tom baixo e controlado, mas os olhos, os olhos arregalados, as narinas dilatadas: – E se Deus quer que eu mande a vagabunda para o interior de São Paulo, a vagabunda irá para o interior de São Paulo.

 

       Karen recuou até encontrar a borda do colchão. Esvaída de forças, deixou-se murchar à míngua, expondo-se aos olhos do pistoleiro.

 

       Ele se recompôs, embalando as emoções num saco zipado e escondendo-as por detrás da máscara de frieza e arrogância.

 

       – Fui sua primeira mulher, isso não conta?

 

       – Por favor, não apele aos meus sentimentos. Sabe o quanto sou sensível. – riu-se e se sentou ao lado dela: – Além do mais, a gente transou uma vez só, não foram os três encontros tradicionais. Por que mereci menos, Karen? Pode falar a verdade, não me importo, sei que aos 17 não somos grande coisa, mas podia ter me dado uma segunda aula. – ironizou.

 

       – É melhor que se vá. – falou baixinho, sentindo-se derrotada.

 

       – Depois, percebi que você só se metia com coroas, né? Aí, entendi... precisava dos fracos para rebater o Dolejal, e eu não me enquadrava nisso...

 

       – Você é a sombra do Dolejal, a sombra anã dele. – falou, calmamente, fitando as portas arreganhadas do guarda-roupa.

 

       – Todo mundo diz isso, mas não desse jeito. Ninguém me chama de sombra anã. – brincou. – Por mim, você ficava em Matarana. Sério, toda a cidade pequena precisa de sua vaca louca.

 

       – E de um bastardo demente também. – disse ela, encarando-o.

 

       – Ah, claro, mas para isso temos o Johnny, não? – piscou-lhe o olho.

 

       – Falo de você.

 

       – É, tem razão, também sou um maldito bastardo. – admitiu, dando de ombros.

 

       – Me diz uma coisa, Franco, por que o Dolejal o escolheu para me levar até a rodoviária?

 

      – Depois da cena que fez na Arco verde, fui nomeado chefe da cavalaria. – brincou e continuou: – Sou o novo chefe da segurança, o Mendes ficou puto com isso.

 

       – Sabia que o Dolejal contratou um detetive para espionar a minha vidinha de vaca louca? – sondou-o.

 

       – Sim, é um cara do Rio, anda sumido, por sinal. Que tem ele?

 

       – Ele levantou o nome dos caras com os quais transei, e eles foram expulsos da cidade.

 

       – E...

 

       – E por que você ainda está aqui, em Matarana? – injetou o veneno na veia.

 

       Franco fitou-a, longamente, tentando avaliar a intenção do que ela havia dito.

 

       – Não estou na tal lista, se é que ela existe. – deu de ombros.

 

       – Está certo disso?

 

       – Se não fui expulso é porque não estou na lista. Não acha óbvio? – tentou sorrir, a segurança de antes, aos poucos, abandonava-o.

 

       – E por que não estaria na lista? – fingiu-se de desentendida.

 

       Ele se levantou da cama e pôs as mãos nos bolsos frontais do jeans, zanzando de um lado para outro no quarto, agora, preocupado:

 

       – Existe essa lista?

 

       Karen sorria por dentro.

 

       – Sim, deve estar no escritório do centro ou na fazenda. – ergueu-se e tocou no antebraço dele, conduzindo-o à porta: – Se você está na lista, e não há razão alguma para não estar, por que diabos o Dolejal esperaria todo esse tempo para resolver a sua situação. Veja bem, no seu caso é bem pior, é dupla traição. É provável que depois de cinco anos e, agora, com a minha partida, tenha chegado o momento da vingança. Sinceramente, acho que você não será expulso, Franco, e essa promoção veio mesmo a calhar, não?

 

       De repente, ele parou e a pegou pelos ombros:

 

       – Cobra! E isso que você é, uma maldita cobra!

 

       – Se o Dolejal não vai se vingar duramente de você, só pode ser por um motivo.

 

       – Não quero mais saber de suas palavras venenosas. – deu-lhe as costas e já ia abrir a porta quando se voltou: – Ele confia em mim, confia em mim, entendeu?

 

       – Ninguém confia em você. – ela sorriu e completou sagaz: – Mas talvez a sua mãe tenha dormido também com o neto de um garimpeiro...

 

       Ela pensou em parar, não seguir naquela direção. Havia tanto ódio nos olhos de Franco que a obrigou a dar dois passos para trás. As órbitas congestionadas e as lágrimas beirando as pálpebras.

 

       – O que está insinuando?

 

       – O que você sempre desconfiou...Se ele não o expulsou, é porque é filho dele. Você é filho do Thales, Franco.

 

       Num átimo, ele tomou o pescoço de Karen nas mãos e apertou-o, gritando contra a face dela.

 

       – SE EU FOSSE FILHO DELE NÃO TERIA SIDO CRIADO COMO UM VIRA-LATA PELA FAZENDA.

 

       Quando ela começou a tossir, largou-a.

 

       Era certo que Franco procuraria a lista e, uma vez encontrando-a, daria um jeito de descobrir sua ligação com Thales. Não sabia mais o que fazer e como lutar. O próximo passo era esperar que na Arco Verde o tempo fechasse.

 

       Eram seis horas da manhã quando Nova acordou. Deitou o antebraço sobre a testa e suspirou. Faltava-lhe ânimo para sair da cama. O expediente no Jornal começava as oito e, depois, a uma da tarde, a fazenda Arco Verde. Mas não era o trabalho que a desanimava, e sim sua situação com Cris. 

 

       Após a saída de Franco, ele lhe entregara o iodo e o algodão para que limpasse os arranhões. Em silêncio, concentrara-se em aquecer o jantar. A quietude do ambiente era tanta que a intimidara a persistir no assunto. Era evidente que ele não fazia questão alguma de mudar a situação entre ambos. Assim, jantaram mal trocando palavras. Algo como “alcança um guardanapo” ou “ a carne está muito boa” e nada mais. Pareciam dois estranhos, ou tão íntimos ao ponto de se estranharem. E essa estranheza a magoava e a intimidava. Como ele tinha feito o jantar, cabia a ela lavar a louça. No entanto, ele se ergueu e mandou-a dormir. Alegou que estava machucada e passara por um trauma. Nem lhe beijou a testa nem desejou bons sonhos. Tirou os pratos da mesa, e a noite morreu naquele gesto.

 

       Olhou-se no espelho do banheiro e viu as pálpebras inchadas. Lavou o rosto e decidiu chorar pela última vez. Pelo menos, por ele.

 

       Ao afastar a cortina da sala, percebeu que o dia à sua frente não seria tão terrível. Apesar da fumaça das queimadas, um rasgo de azul, no céu em chamas, forçava dissipar-se e tomar conta do imenso toldo sobre Matarana. E se a natureza vencia as aberrações do homem, ela, Nova Monteiro, venceria a vontade de se ajoelhar diante de Cris e suplicar por seu amor.

 

       Preparou o café sentindo-se bem melhor. Vez por outra, enfiava os olhos no céu e via o azul vencendo o branco; sorria. Teria enfim um dia claro e límpido. Uma raridade. Talvez ela fosse uma desgraçada otimista. Ou apenas mais uma iludida. Acreditar em dias melhores era quase como rezar. O resultado poderia ser nulo, mas a intenção fazia um bem danado. Ainda sorrindo, despejou o café na xícara e aspirou a sua fragrância. Mentalmente, programou o seu dia. Após o trabalho, chamaria Valéria para saírem. Havia um bom tempo que não iam ao salão country. Ambas eram livres, independentes e tinham uma vida inteira pela frente, e, como lidar com ela – com essa vida de altos e baixos – essa parte, bem, era a melhor de todas.

 

       Ele apareceu na cozinha com o cabelo úmido do banho recente, jeans surrado e camiseta de mangas curtas. Parecia um moleque trintão, a gola V um tanto efeminada. Havia feito a barba e cheirava a colônia amadeirada. Ela quase se ajoelhou. Mas, depois dos trinta, se ficasse de joelhos, não sairia mais dessa posição. E isso não se relacionava apenas a questões físicas. Uma vez na lona, tornaria a voltar. Nessa altura do campeonato, jogando com três atacantes e ninguém na zaga, era mais inteligente armar o meio de campo. E foi o que fez. O diabo foi que ele sorriu.

 

       – Bom dia. – falou baixinho, de um jeito meigo.

 

       Coração na garganta. Tentou ser forte.

 

       – Bom dia, Cris. O café está pronto. Tenho de ir para o Jornal. Até mais. – disse tudo junto num fôlego só.

 

       Largou a caneca na ponta da pia, que deslizou para fora e se espatifou no chão. Abaixou-se rapidamente a fim de juntar os cacos, bateu com o cotovelo no encosto da cadeira que acabou virando para trás, ficando de pernas para o ar e puxando, com uma das pernas, a toalha da mesa e o arranjo de flores que a enfeitava.

 

       Cris se abaixou e tentou ajudá-la com os pedaços da xícara.

 

       – Deixa comigo. – afastou-se o quanto pôde.

 

       – Vamos fazer as pazes, tá? – pegou um caco e sorriu para ela.

 

       Nova ficou de pé e disse de forma afetada:

 

       – Se faz tanta questão, limpe para mim. Estou atrasada pro trabalho.

 

       Quase correu para o corredor. Trocou de roupa, pegou a bolsa e as chaves do jipe. Ao passar pela cozinha para sair pela porta dos fundos, Cris passava um pano molhado no piso. Voltou-se assim que a viu entrar.

 

       – Não fica zangada comigo, Nova. – pediu com aquele jeitinho que lhe amoleciam pernas e coração.

 

       – Vai pro diabo – dessa vez não convenceu.

 

       – Escute!,por favor, me escute – pegou-a pelos ombros e a fez encará-lo: – Você é importante demais para eu arriscar perdê-la ou tornar a nossa amizade um relacionamento medíocre. Se a gente avançar nisso que vivemos hoje, que é tão perfeito, podemos um dia nos separar nos odiando ou sentindo desprezo um pelo outro. E, então, ficaremos de fato sozinhos. Você voltará para Minas, arrependida por ter largado tudo e vindo comigo para cá. E eu ficarei sozinho aqui, completamente só, sem amor, sem amiga, sem uma parte de mim. Entenda o meu medo. – as mãos subiram dos ombros para o rosto de Nova, mantendo-o preso, e continuou, sério, muito sério: – Casei com a Júlia para ser até o fim da vida e somente a deixei porque você provou que ela me traía. Caso contrário, ainda estaria com ela. Sabe por quê? Por que quando amo, amo todo, corpo inteiro, me atiro de cabeça e nada mais importa. É para ser eterno, completo e profundo. Não faço malabarismos com os meus sentimentos, Nova. E não quero arriscar perder você, mesmo que para isso, infelizmente, acabe perdendo. Peço apenas que seja sensata. – ponderou.

 

       Ela deixou que ele falasse tudo. Essas coisas de amor eram assim mesmo, contraditórias, esquisitas e, às vezes, até infantis. Mas o assunto não era apenas amor. Precisavam falar sobre coragem, lealdade e verdade. Esse discurso bonitinho funcionaria se ela aparecesse com um cara em casa? E ela, aguentaria vê-lo se casar de novo?

 

       – Vai pro inferno. – foi a resposta às suas inquietações e mais: – Sou muito azarada mesmo, me apaixonei pelo homem mais sem atitude do planeta. Acho que você tinha de ter umas aulinhas com o Rodrigo e o Dolejal. Quando eles querem uma mulher não ficam de frescuras, de draminhas efeminados! Eles querem, eles pegam!

 

       Cris fechou a cara e largou-a com desprezo:

 

       – Claro, eles são exemplos de conquistadores mesmo. Um é apaixonado por uma morta, e o outro por uma louca.

 

       – E você? – ironizou. – Por uma mulher idealizada que deve guardar a sua vagina num pote.

 

       – Não seja vulgar. – censurou-a.

 

       – Vou dizer uma coisa, – apontou-lhe o dedo e continuou bem devagar para que ele assimilasse a ideia: – não quero mais essa vida pra mim, tenho 34 anos na cabeça e quero ter um bebê meu. O tempo está passando e, pelo visto, nada mudará entre nós. Assim, só me resta partir. Não quero vê-lo com outra mulher que não seja eu. Não vou assistir a isso novamente e nem me casar com o primeiro imbecil para tentar curar meu coração...

 

       –Não vá embora, Nova... – ele tornou a puxá-la para si e abraçou-a. – Não vá embora, eu não tenho ninguém e não penso em ter. Minha vida é só trabalhar e ficar em casa com você...

 

       – Mas eu falei, quero bebês!  – reclamou e perguntou num misto de zombaria e amargura: – Faremos o quê sobre isso? Adotaremos uma criança como um casal gay?

 

       Ele riu baixinho e olhou-a com atenção:

 

       – Não sei o que dizer.

 

       – Eu sei, se até o fim desse mês nada mudar entre nós, corto relações com você e volto para Belo Horizonte. De qualquer forma, me perde. – ela suspirou controlando as lágrimas: – Você é o meu melhor amigo e o meu amor. E, por isso, se não for para tê-lo como homem e pai dos meus filhos, não quero nada, nada de você.

 

       – Por que tudo tem de ser oito ou oitenta? – falou baixinho, a voz embargada.

 

       – Isso se chama ultimato, e eu dei o meu.

 

       Quando ela alcançou a porta, ele perguntou melindrado:

 

       – Vem almoçar, pelo menos, ou decretou guerra contra mim?

 

       – Não interessa, você é “só” meu amigo, não precisa saber sobre meus horários ou o meu dia. E, – parou em frente ao jipe e voltou: – nada de me controlar pelo celular, ok?

 

       – Nunca fiz isso. – afirmou, exasperando-se. – Mas quando a senhorita desaparece, tenho de descobrir onde está.

 

       – De hoje em diante, esse problema também não é mais seu. Ah, e tem outra coisa, “meu amigo”, – ela parou junto à soleira da porta e completou com maldade: –deixa a casa arrumada, você tem plantão, e eu posso querer trazer alguém aqui para me a-li-vi-ar um pouco.

 

       – Isso é muito vulgar. – falou, balançando a cabeça, contrariado.

 

       Ela postou-se diante do volante e pisou fundo levantando poeira. Antes, porém, gritou por cima do ronco do motor:

 

       – Eu sou vulgar, Cristiano Bittencourt, você é que é o asséptico!

 

       O capanga que conduzia Rodrigo até o coronel era baixo, quase careca e devia pesar menos de 60 quilos. Um galinho, por assim dizer. No lombo, a vida dura do sertão e o fracasso do garimpo. Tentara a sorte em Matarana, no início de tudo. O máximo que conseguira fora o emprego como um dos seguranças de Marau. E era ele, Vitorino, que o levava ao avarandado que contornava fora a fora a construção de alvenaria da casa-sede. Debaixo do alpendre, sentado numa cadeira de balanço, cabeça branca e bombachas nas pernas, o latifundiário que vendera tudo que tinha no interior do Rio Grande para enriquecer na presente encarnação. E conseguira para mais duas.

 

       Rodrigo calculou rapidamente que o coronel engordara, depois de terem se encontrado havia alguns meses. As banhas de suas ancas desabavam pelas laterais da cadeira. Desconfiava que o fazendeiro tivesse problema de tireoide, ou era mesmo um glutão. Ao lado da térmica com água quente, um prato com bolo de chocolate. Talvez não fosse o caso de se culpar qualquer glândula. Ainda mais que, pela extensão de terras de sua propriedade, era claro que a gulodice fazia parte de sua personalidade.

 

       Parou em frente ao coronel, olhou ao redor e por cima, captando vultos ali e acolá, os capangas posicionados.

 

       – Faz muito tempo, hein, garoto. – disse o coronel, apontando a cadeira à sua frente.

 

       O delegado preferiu manter-se de pé. Os dois nunca tiveram muito assunto mesmo.

 

       – É, as coisas andam realmente calmas, tirando o fato de que tenho um homem seu apodrecendo numa das celas da minha delegacia. – disse de um jeito jocoso. – Acho que sabe de quem estou falando, o Pedro, o cara que alicia uns coitados para suas fazendas.

 

       O coronel puxou fundo o mate da bomba, ajeitou-a na cuia e disse com naturalidade:

 

       – Se a gente não usa filtro, não tem jeito. Eu não sei o que andam pondo nessas ervas de hoje, nunca precisei enfiar nada para poder chupar. – riu-se, a risada rouca e forte. – Mas, olha, delegado, o Pedro está por conta própria, viu? Se ele catou gente por aí e... sei lá o que fez... é coisa dele. Aqui, na minha parte da cidade, só trabalha gente certinha, com registro. Às vezes, um ou outro tenta ganhar dinheiro por fora. Mas o que posso fazer se até a polícia trabalha assim também, não?

 

       – Não. – afirmou, encarando a face rosada e redonda do velho, e continuou: – Isso significa que ele...

 

       – Olha aqui, ô delegado, você está me tomando por trouxa? – começou o coronel num tom sério, sem deixar de cavoucar a bomba na erva. – O meu finado pai dizia que era falta de respeito um homem entrar na sua casa e não tirar o chapéu. É o que está fazendo, agora, me afrontando?

 

       Rodrigo sorriu e levou a mão à aba do chapéu, sem movê-lo.

 

       – Aqui é a casa do seu pai? – olhou ao redor, fingindo procurar o progenitor do coronel.

 

       O velho ajeitou o traseiro largo na cadeira, que gemeu ao balançar suavemente.

 

       – Não, – riu-se e disse: – mas não custa ser educado.

 

       – Se eu quiser, sou educado. Posso ser até formal, coronel, posso sim. E além de tudo isso, consigo ainda ser rápido e eficiente.

 

       – Com suas armas? – interrompeu o coronel, fitando a cintura de Rodrigo e tendo nos olhos o brilho do deboche. – Quando pensar em pegar sua automática, terá dois buracos no crânio.

 

       Rodrigo riu com vontade. Era divertido ouvir aquelas coisas e pensar, num fragmento de segundo, que de fato poderia desabar por cima do velho com projéteis enfileirados nos cornos. Ainda assim, seria uma boa morte.

 

       – Qual a minha motivação para tentar matá-lo, coronel? Não, não... – fez um sinal com a mão e prosseguiu: – não precisa responder. Tentarei me expressar melhor, desculpe. – falou, sorrindo de forma irônica: – A rapidez e a eficiência se aplicam a duas questões que me fizeram vir aqui. Primeiro, por que está interessado na jornalista ao ponto de mandar segui-la?

 

       O coronel puxou fundo a bomba, fez careta e escorou-se contra o encosto da cadeira, olhando para Rodrigo com um sorriso antipático:

 

       – Que jornalista?

 

       – Nova Monteiro, do Jornal do Cerrado. – informou sem se abalar.

 

       – Só leio jornal on-line.

 

       – Certo. – o delegado reconsiderou a cadeira em frente ao coronel, sentou-se nela e encurvou o corpo para frente, encarando-o: – Alguém da sua fazenda, então, deve estar agindo por conta...

 

       – Impossível, sei de tudo. – olhos falaram juntos, debochados. Na última tragada, a bomba roncou, e ele disse: – Mas se alguém tenta invadir minha propriedade sem autorização, pode levar chumbo, sim. Isso eu não nego, delegado. Portanto, avise a mocinha para agendar visita se quiser falar comigo.

 

       O coronel encheu a cuia com água quente e estendeu-a para Rodrigo. A primeira tragada desceu rascante. Recriminou-se por ser cortês ao aceitar o chimarrão, mais uma vez descobriu que odiava a bebida.  Era um gaúcho que vivera boa parte da vida no interior de São Paulo, no meio dos caubóis latinos, enfiado em delegacias minúsculas como as de Matarana. Ao voltar a Porto Alegre, sem saber, havia-se tornado um deles também, um tipo de caubói, não aqueles que montavam em cavalos ou trabalhavam em fazendas, uma espécie rara, um caubói da lei, por assim dizer. E esse caubói com influência castelhana, europeia e caipira preferia o café do cara de escritório à erva mate daqueles que sentam para descansar.

 

       – Como sabe que ela invadiu?

 

       O coronel deitou os olhos argutos sobre o seu oponente do momento:

 

       – Me poupe, Rodrigo Malverde, eu sei porque mandei segui-la, estou preocupado em ser descoberto no meu terrível crime! – fingiu exasperar-se; entretanto, no fingimento notas de impaciência e continuou, agora, num tom mais azedo: – Não mandei seguir ninguém, mas tenho meus dois olhos cravados diretamente nos forasteiros e pouco me importa se eles estão aqui há cinco meses, cinco semanas ou cinco dias. Quem não viveu debaixo de barracas de lona com os primeiros, sempre será um forasteiro. E, agora, garoto, ou você me diz qual a outra “questão” ou encerramos por aqui a conversa.

 

       Imediatamente, como um espectro à espera do chamado do médium, Vitorino surgiu por detrás da porta de vidro da varanda, olhando fixo para o homem da lei. Rodrigo sabia que não era diplomático entregar a cuia sem fazer roncar a bomba. Esvaziou o líquido amargo ganhando tempo para compor mentalmente a próxima abordagem. Um pouco de erva descansava debaixo da língua. Por sorte, a bomba entupiu. O coronel ofereceu-se para ajeitá-la. Num átimo, arrancou a bomba fora e jogou-a longe, dizendo:

 

       – Hoje em dia está tudo, assim, descartável.

 

       O delegado balançou a cabeça devagar, concordando e foi direto ao ponto:

 

       – Existe a possibilidade de um corretor da morte ter sido contratado para dar fim a Thales Dolejal?

 

       O coronel manteve a expressão impassível ao responder:

 

       – Engraçado você comentar isso, me disseram que tem um corretor por aí, na cidade, disfarçado. – olhou ao redor e voltou-se como se fosse fazer uma confissão: − Mas, pelo o que me disseram também, foi contratado pelo Dolejal. Será, delegado, que a bichinha cosmopolita tenciona se matar?

 

       Cris estava certo sobre o que fazer. Sentado ali, naquele bar, em Santa Fé. Abriu sem vontade o cardápio que a garçonete lhe entregou. Agradeceu com um sorriso fraco, olhando o ambiente e se perguntando por que não resolvera a questão por telefone. A resposta veio rápida. Não podia fazê-lo, não era certo nem justo. Qualquer relacionamento que fosse – afetivo ou sexual, merecia um término decente. Compartilhar uma cama era diferente de se compartilhar uma vida, era verdade. O fato de manter por três anos uma relação puramente sexual não justificava um final medíocre. Afinal, o “puramente sexual” na acepção estrita da expressão contrariava a maneira de pensar do médico. Encontros eventuais em duas ou três horas de sexo também rendiam conversas agradáveis.

 

       Gostava da companhia daquela que deixava Matarana e se entregava sem reservas a ele. Acostumara-se a sua companhia, ao seu estilo, ao seu modo de fazer sexo e, depois, vestir-se e sair. Por força do hábito ou da vontade, permitira que a situação entre ambos se sedimentasse. Mesmo consciente da falta de sentimentos profundos por ela, mesmo assim, vê-la duas ou três vezes por mês se tornara um hábito. Tão nocivo, agora, quanto o cigarro que fumava enquanto a amante não chegava.

 

       Quando a porta dupla da lanchonete de beira de estrada abriu-se e ela apareceu sorrindo como se antecipasse as horas que teriam na cama, ele se sentiu mal, triste até. Temia magoá-la. Longe de suas intenções feri-la. Verdade fosse dita, porém, sentia-se mal também por saber que alguém em Matarana amava-o e confiava nele. Por isso telefonara para doutora Janete e pedira que fosse encontrá-lo a caminho da cidade onde fingiam não serem colegas do mesmo hospital.

 

       Admirou-a por um minuto ou dois, o cigarro no canto dos lábios, o sulco profundo entre as sobrancelhas, já se despedia sem lhe comunicar o fato. Ela era bonita, segura de si e aceitava a ideia da amizade com benefícios. Provinha de família rica, pecuaristas do Mato Grosso do Sul. Cursara Medicina em Dourados e, recém-formada, prestara concurso para trabalhar em Matarana. Janete tinha 29 anos, era pragmática e decidida. Jamais insinuara que o fato de ele viver com outra mulher os impedissem de ir para cama. Era provável que se Cris fosse casado, ela também aceitaria ser a sua amante. Ela não tinha qualquer tipo de preconceito. Ou escrúpulos, ele não sabia ao certo qual dos dois.

 

       Antes que ela desferisse palavras doces e maliciosas, antecipou-se, a fim de evitar qualquer constrangimento. Foi, cirurgicamente, preciso:

 

       – Nova me deu um ultimato, e eu preciso reorganizar a minha vida, pensar. – tragou fundo o cigarro e continuou, olhando-a fixo: – Acho melhor não nos encontrarmos mais. Espero que me compreenda, porque você é linda e uma grande amiga. Mas... Nova... Nova é alguém que preciso manter na minha vida a qualquer custo.

 

       Janete permaneceu sorrindo como uma princesa drogada de contos de fada.

 

       – Posso pedir algo para beber?

 

       – Desculpe, claro, sim. – fez sinal para a garçonete.

 

       – Aqui, não, Cris. Vamos para o nosso quarto de hotel, bebemos, conversamos e nos despedimos. – tentou sorrir, o lábio inferior tremia.

 

       – Não, Janete, não mais. – balançou a cabeça devagar. – Sinto muito. Acredito que não tenha lhe dado muita esperança, mas...

 

       – Não, você sempre deixou as coisas bem claras. – interrompeu. – A gente tinha um caso, só isso. – disse, olhando pela janela o movimento da estrada. – Nunca pensei que a sua “outra” amiga o controlasse a esse ponto.

 

       Ele sorriu com timidez, parecia envergonhado mas não ao ponto de esconder a verdade.

 

       – É, ela exerce um poder terrível sobre mim.

 

       – Como a sua ex-mulher, não é? – indagou, sagaz.

 

       – Sim, e como você. – fitou-a, longamente, e completou: – Depois de dois anos, você venceu a minha resistência e nos tornamos íntimos. E nesse tempo em que estivemos juntos, somente estive com você.

 

       – Obrigada. Que gentil. – ironizou. – Mas não foi capaz de se apaixonar por mim.

 

       – Não.

 

       – E por que não?

 

       – Porque amo Nova, e você sabia.

 

       – Amor de amigo, não é? – acusou-o, desconfiada.

 

       – É, Janete, amor de amigo.

 

       – E por que temos de terminar?

 

       – Porque ela me ama como mulher, e eu não quero perdê-la.

 

       – Meu Deus, que absurdo! – exclamou, franzindo o cenho e emendou: – Não entendo. Vai se tornar celibatário?

 

       Ele riu baixinho, enrubescendo:

 

       – Não sei.

 

       – Me diz uma coisinha só, a Nova é o seu tipo de mulher, digo, iria para cama com ela?

 

       Cris bebeu o restinho de café preto da caneca de cerâmica, esmagou a bagana no cinzeiro e levantou-se. Janete ultrapassara a fronteira entre eles e a sua outra vida, ele e Nova. Quase saiu sem lhe dirigir palavra, tomado que estava por um sentimento que beirava a irritação e tinha tudo de outra coisa, de inquietude, talvez. Por uma questão de educação, estendeu à mão à antiga companheira de cama e deu-lhe a resposta merecida:

 

       – Nunca tive qualquer pensamento erótico em relação à Nova, se quer saber.

 

       Ela aceitou-lhe a mão e sorriu com gentileza:

 

       – Obrigada por mentir.

 

       Ao meio-dia, Nova despediu-se do pessoal da Redação e se encaminhou para o estacionamento. Como queria dar um gelo no doutor Bittencourt, decidiu aceitar o convite de Valéria para almoçar na sua casa. Antes, no entanto, parou em frente à delegacia.

 

       Entrou na casa de alvenaria que, no lugar da sala espaçosa para uma família de quatro pessoas, um largo balcão separava o saguão de entrada das três mesas com computadores obsoletos, impressoras, armários e arquivos de aço. Era um lugar sem graça como qualquer repartição pública. Cortinas beges e pesadas sobre janelões de vidros. Quadros com as bandeiras de Matarana, do estado e do país. Duas samambaias gigantes penduradas no arco do teto, que dividia o pequeno saguão do corredor que conduzia à sala do delegado. Nova sabia, contudo, que para chegar até lá, tinha de enfrentar um obstáculo de olhinhos argutos e vozinha anasalada.

 

       – Oi, Adele, como está?

 

       A escrivã ergueu a cabeça da papelada à sua frente e sorriu aquele sorriso disposto a arrancar algo do outro. Foi até o balcão balançando os quadris cheinhos.

 

       – Joia, e você? Bem, invadindo propriedade privada... não deve estar muito bem, não é?, pelo menos, da cabeça.

 

       Direta e inconsequente, pensou Nova, tentando não se intimidar.

 

       – É, eu andei perdendo alguns parafusos. – relevou com um sorriso sem graça e perguntou, olhando em direção ao corredor: – E o Rodrigo?

 

       – Numa diligência com o Lucas. – informou, desinteressando-se da jornalista.

 

       – Oh, que pena, preciso falar com ele...

 

       – E ele com a senhorita. – interrompeu, tornando a se sentar diante do computador: – Bem, o delegado não está, logo... – fez um sinal para a saída.

 

       – Certo. – assentiu Nova, decepcionada, e incapaz de entender os motivos que levariam a escrivã a dividir o mesmo ambiente com uma galinha solta pela delegacia. Deu de ombros. Cada uma que se via naquela cidade!,pensou, percebendo que o bichinho não tinha a menor intenção de fugir da polícia.

 

       Minutos depois, comia galinha frita com polenta e lambia os dedos. Valéria era talentosa na cozinha, lembrava aquelas nonas italianas com nuances de irlandesa beberrona. Como uma legítima matriarca, preocupava-se com a filha, o irmão e os amigos. Entretanto, não era o mesmo tipo de preocupação que o seu irmão dispensava. Valéria insistia para que eles comessem, se vestissem adequadamente, usassem protetor solar, ingerissem vitaminas e dormissem pelo menos oito horas por dia. Preocupação típica de mãe. Tal comportamento irritava a filha adolescente, na sua ânsia por autoafirmação e motivos para se rebelar. Isso era visível para Nova toda a vez que almoçava ou jantava na casa dos Malverde.

 

       – O delegado não virá almoçar em casa hoje?

 

       Val lançou um rápido olhar para a filha e, com um sorrisinho, respondeu:

 

       – Se não chegou até agora... – em seguida, deu dois goles no suco de graviola e indagou maliciosa: – O que quer com o meu irmão?

 

       Nova riu-se.

 

       – Quero saber sobre o seu prisioneiro. – depois, apontou para a rua e disse: – Viu?,sou uma celebridade, tenho até segurança particular.

 

       – O Mendes, eu vi. Acho que o Rodrigo não vai gostar que ande com esse pistoleiro...

 

       – Coisa do meu chefinho, não fui eu que pedi. – defendeu-se.

 

       – Esse camarada é o maior encrenqueiro da paróquia. – falou Sabrina, filha de Valéria, balançando o garfo no ar. – Foi o tio quem disse.

 

       – O que posso fazer? Estou entre a cruz e a espada, garotas. – brincou Nova.

 

       – Por que não namora logo o tio e ele lhe protege, ora? – disse Sabrina, piscando o olho de forma marota.

 

       Estava demorando para as duas entrarem no assunto que mais rendia audiência naquela casa: ela e Rodrigo. Valéria declarara que ela, Nova, era a mulher perfeita para o irmão. Possuía todas as qualidades que o atraíam, além de ser íntegra, bonita e louca para ter bebezinhos. Era evidente que Valéria queria ser titia.

 

       – Falei com o Cris, pus as cartas na mesa. Até o fim do mês, ou vai ou racha. – declarou olhando de uma para a outra.

 

       – Está certa do que fez e do que pode perder?

 

       Nova negou com a cabeça, mordendo o lábio inferior.

 

       – Foi mais uma tentativa, não sei mais o que fazer. Nada dá certo.

 

       – Acho que o Cris é bobo. – falou Sabrina e completou como se contasse algo extraordinário: – Lá, no meu curso, as garotas, todas, tooodasss, se inscreveram para estagiar na ala pediátrica do hospital, e não é só por causa das criancinhas, não! Pelo menos, umas cinco da turma do curso técnico de enfermagem querem ser enfermeiras para tentarem coisa com o “doutor”.

 

       Valéria riu alto, servindo-se de mais um pouco do suco batizado. Nova, por sua vez, sentiu o suco gástrico despejar no estômago.

 

       – É, ele sempre foi muito disputado mesmo. – balbuciou.

 

       – Então não é inseguro. – constatou Val.

 

       – Claro que não. Por que diz isso? – perguntou, intrigada.

 

       – Nada.

 

       – Fala, Val, pelo amor de Deus!

 

       – A mãe acha que ele não sente vontade de fazer coisa com você, porque não sente tesão, sabe? É como se a visse como um cara, um amigo, um brother. – desferiu Sabrina, sem poupá-la.

 

       – Cala boca, guria! – xingou Valéria e voltou-se para Nova com olhar bondoso: – Desculpe, não queria magoá-la, mas acho que só você não vê que esse amor é impossível. Pensa bem, ele jamais tentou beijá-la ou demonstrou ciúme, digo, sei lá...– fez um gesto evasivo com a mão e completou: – em relação ao Rodrigo, por exemplo. Parece que o Cris é meio fora do planeta, aéreo, desligado mesmo. É provável que até considere pecado pensar em você nua.

 

       – Eu gostava de um guri assim também, um legítimo tonga. Nós éramos amigos e nos divertíamos juntos. Até que eu avancei o sinal, e ele se afastou por completo de mim. Hoje está namorando um tipo que faz engenharia em Cuiabá. – comentou Sabrina, com o olhar distante. – Vai ver o Cris é bicha mesmo.

 

       Nova tinha os olhos rasos de lágrimas.

 

       – Que bicha nada, Sabrina! – ralhou a mãe.

 

       – E mesmo se fosse gay, ainda assim quem ama sou eu, só eu, sozinha nesse amor estúpido! E, se fosse alienígena, bipolar ou debiloide, eu ainda o amaria, porque a coisa toda está dentro de mim...merda...

 

       – Olha, Nova, ele está divorciado há cinco anos. Pensa bem, um homem saudável, jovem e bonito. Acha mesmo que não tem ninguém? E o fato de não procurá-la como mulher, já não levanta a suspeita de que tenha alguém?

 

       As palavras de Valéria atingiram-na como um punhal.

 

       – Será? – a voz vacilante.

 

       – Não digo que ele tenha um amor ou algo assim. – afirmou Val procurando as palavras certas: – Falo de sexo, nada mais que isso. Afinal, ele nunca foi visto com ninguém pela cidade.

 

       – Os caras casados vão para outras cidades sacanear, mãe! O pai de uma amiga minha tem uma amante em Belo Quinto, com filhos e tudo. – advertiu Sabrina.

 

       Nova desandou a chorar.

 

       Imediatamente, mãe e filha levantaram-se e abraçaram a amiga. Valéria se arrependeu de ser sincera e expor o que de fato pensava. Temia que Nova continuasse a se iludir por uma causa perdida. A verdade até podia arder, mas a mentira, a mentira queimava e deixava cicatrizes.

 

       – Não vivo sem ele, não tem como. – murmurava entre lágrimas e espasmos que lhe sacudiam os ombros. – Quero tanto o Cris que chega a doer. Dói sabe?,fisicamente dói...

 

       – Eu sei como é, parece que estão esmagando o nosso coração com uma prensa. – disse Sabrina, que recebeu um longo olhar preocupado da mãe. Ela então esclareceu: – Acha que só as velhas amam?

 

       Valéria apertou os lábios e sacudiu a cabeça, diante da limitada maturidade da filha. Voltou-se para Nova que tentava se controlar. Sentia tanto carinho e pena daquela sofredora, que imaginou uma situação digna de um romance romântico e capaz de, por ser tão maluca e improvável, dar certo. Apertou o rosto da amiga entre suas mãos, conquistando a atenção dela, e falou:

 

       – Vamos acabar com a segurança do doutor. É isso aí, companheira, vamos chutar o seu pedestal e vê-lo cair de bunda no chão.

 

       – Não entendi.

 

       – Nem eu, mãe. Acho que a vodca afogou as graviolas. – cogitou Sabrina apontando para o copo vazio sobre a mesa.

 

       – Prestem atenção, tolinhas, – disse Valéria toda empolgada: – o Cris precisa de um concorrente e um concorrente de peso, digamos, um macho alfa. – estalou os dedos no ar e completou feliz da vida: – Qual é o macho alfa mais macho da cidade?

 

       – O Dolejal? – murmurou incerta Nova.

 

       O sorriso de Valéria murchou diante da resposta inesperada. Antes de anunciar o tal macho alfa, Sabrina fez a sua tentativa:

 

       – Franco, o diabo das planícies. – disse de forma teatral.

 

       – Estou falando sério, porca miséria! – censurou a filha e emendou mais solene: – Falo do Rodrigo. Afinal, o seu Jornal, Nova, fez a aquela pesquisa que lhe deu o segundo lugar de homem mais cobiçado da cidade. – disse com ar superior e anunciou como Martin Luther King poderia ter feito se não tivesse sonhado ao invés disso. – Eu tenho um plano.

 

       – Quanto tempo levaremos para pintar todos os bangalôs? – perguntou Johnny descendo da escada e admirando o trabalho feito pela manhã.

 

       Karen pulou do quinto degrau da escada de madeira, encostada na parede do bangalô, toldou os olhos com as mãos e avaliou a questão. Olhou para o filho com um sorriso sem graça e respondeu dando de ombros:

 

       – Não tenho como comprar tinta para todos. Assim, demorará mais.

 

       Johnny ajeitou o Ray-Ban e sorriu. Havia matado aula para ajudá-la a pintar o primeiro bangalô. Dona Ninita andava pela cidade com Veridiana e almoçaria com o namoradinho no centro. Era um milagre Johnny não ter outro compromisso que o levasse para longe do condomínio e do trabalho, obviamente. Lançou um olhar de admiração para o filho de 15 anos. Ele era um gatinho, moreno, alto e genioso como a mãe. Num impulso, cada vez mais raro de sua parte, estendeu o braço e o puxou para um abraço apertado.

 

       – Obrigada pela ajuda.

 

       O garoto ficou sem jeito, uma vez que mãe e filho não eram chegados a abraços e beijos. Sentiu-se estranho passando os braços ao redor das costas da mãe num gesto rápido e desajeitado. Em seguida, separaram-se, cada um pensando sobre o que fariam após. Foi Johnny quem falou primeiro:

 

       – Hoje, tenho inglês.

 

       – Gosta do curso? – Karen perguntou, ajeitando a escada na parte de alvenaria à espera da tinta e completou: – Eu sempre gostei de inglês. Dá para se comunicar com o mundo inteiro, sabia?

 

       Ele assentiu e falou:

 

      – Com mímica também. – brincou e continuou: – Vou esquentar a comida, tá? Estou com o estômago nas costas. O Alemão, hein, baita safado!

 

       – A gente dá um jeito. O importante é cuidarmos uns dos outros. – pôs o chapéu para trás e piscou o olho.

 

       – Mãe...

 

       Karen voltou-se e fitou o filho, que parecia inseguro encarando-a, como se não tivesse coragem de falar. Ele baixou, enfim, a cabeça e entrou em casa. Ela ajeitou o chapéu e voltou a trabalhar. Era provável que Johnny fosse pedir algo. O melhor a fazer era não insistir no assunto.

 

       Meio-dia em Matarana significava o ápice do calor e do mormaço. O sol era bloqueado pela camada de fumaça das queimadas. Mesmo assim, bloqueado, ele estava lá no céu branco, aquecendo a estufa quase sem mata nativa, a planície aberta e seca, o solo arenoso, os grãos de areia, grossos, por sobre telhados, calçadas e as poucas ruas asfaltadas. Era difícil respirar numa atmosfera tão seca e áspera. Às vezes, tinha-se a sensação de farelos de terra no interior das narinas e na garganta. Essa secura levava à lotação do hospital público.

 

       Desceu mais uma vez da escada e emborcou água mineral direto da garrafa. O suor escorria-lhe dos cabelos como o sangue da coroa de espinhos. A blusa manchada com nódoas de suor e o short jeans, grudado no corpo. Encurvou-se para frente, vencida pelo calor e cansaço. Virou a água por sobre a cabeça, encharcando o cabelo e aproveitando para lavar o rosto. Ao erguer a cabeça, pontinhos pretos ao seu redor como as órbitas de saturno. Estendeu a mão para frente, a fim de se apoiar na parede do bangalô. Respirou fundo e sentou-se na grama seca. Estava cansada, mais do que isso, exaurida. Vencida fisicamente, o corpo latejando, a coluna ardendo e jorrando água pelos poros. Alcançava a marca dos 3.5 sem muita avaria, contando com a sorte e a péssima alimentação. Era um poço de estresse e no sangue, excesso de adrenalina. Tentava fazer tudo ao mesmo tempo e o tempo inteiro. Na maior parte das vezes, sentia-se terrivelmente sozinha. A solidão chegava com tamanha intensidade que lhe arrancava do eixo. E toda a sua força esvaía-se em lágrimas detidas à beira das pálpebras. Por cinco ou dez minutos, ela pedia a Deus para livrá-la da solidão e lhe dar um presente, um presente bom, fosse qual fosse, ela o aceitaria de bom grado. Estar só para quem se bastava era realmente lindo. No entanto, para Karen, quando baixava a guarda e via-se à deriva no meio da imensidão de uma existência dura e fugaz, temia por si mesma. Sabia que era uma mulher cínica, uma pessoa complicada, uma predadora quase cruel. Talvez em vez de um homem bom, Deus lhe enviasse raios, era provável. Mas como nem mesmo Ele a protegia, o que ela, uma pobre mulher sozinha, podia fazer? Seguir seus instintos, por certo. E foram eles que a alertaram sobre a intromissão em sua propriedade. Trincando os dentes com raiva, virou-se para encontrar a sucuri do cerrado. Tentou sorrir ao verificar o engano. Era apenas o homem da lei.

 

       – Ensaiando para cometer um homicídio? – indagou o delegado com um sorrisinho de canto de lábio.

 

       – Não sabe mais tocar a campainha, não?

 

       – Entrei pela garagem, está sempre aberta como a casa da mãe Joana. – brincou, largando duas latas de tinta no chão. Apontando para elas, disse: – Estavam na garagem lá de casa, lacradas. Não as usaremos mais. A casa já foi reformada e sobrou. É verde, mas não o mesmo tom desse aí.

 

       Karen observou a cor da tinta quando Rodrigo abriu a tampa e mostrou. Era um verde mais escuro. Estalou a língua no palato e ajeitou o chapéu, olhando para a parede que acabara de pintar.

 

       – Quantas latas têm dessa mesma cor?

 

       – O suficiente para mais um bangalô. – afirmou, agachado e mexendo na tinta com um pauzinho. – Posso conseguir mais um pouco. O Cris e a Nova pintaram a casa deles há uns meses, deve ter sobrado material também. O problema é que é um tom bem claro de lilás.

 

       – Certo, o meu condomínio parecerá um bordel. – disse, olhando ao redor e concluindo dando de ombros: – Bom, é melhor um bordel alugado a um condomínio desocupado. – constatou.

 

       – Por que o alemão caiu fora? – perguntou Rodrigo, curioso.

 

       Karen riu-se com amargura.

 

       – Descobriu que o Dolejal me largou e ficou com medo de afundar comigo.

 

       – Preferiu afundar sozinho? – alçou a sobrancelha com ironia e falou: – Não quero ofendê-la, mas não conseguirá tocar o barco sozinha. Sabe disso, não?

 

       – Sei, sim, portador das Boas Novas. – debochou. – Tentarei cair na lama de forma elegante, Rodrigo, e não farei escândalo, prometo.

 

       – Ok, durona, vim ajudá-la. Tenho duas horas de almoço e as usarei para arrumar o seu negócio – brincou. – Talvez, assim, você volte a sorrir, cheirar as flores e ser mais agradável.

 

       Dizendo isso, ele se levantou e tirou a camisa xadrez, pendurando-a no galho de uma árvore. Tornou a ajeitar o chapéu na cabeça, enquanto era revistado pelos olhos da mulher. Sorriu e encaminhou-se até o bangalô onde Karen estava pintando.

 

       Ela prendeu o ar nos pulmões. Já o havia visto sem camisa; porém, à época, o corpo não era tão sarado. O dorso nu e moreno exibia marcas definidas da musculatura, os tríceps estendidos e rijos debaixo da pele e o abdômen, desenhado em quadradinhos sugados, sem um pingo de gordura. Ombros salientes e largos, cintura estreita e um traseiro pequeno e estufando o jeans. Ao se ver devorado pelos olhos alheios, ele sorriu de forma presunçosa e disse:

 

       – Comprei uns equipamentos de academia e instalei lá na garagem de casa, sabe? Tenho de estar em forma para escapar das emboscadas.

 

       O sangue demorou a voltar ao cérebro de Karen. Vendo aquele homem todo, ali, um metro e noventa bem distribuídos, sem mais nem menos. Transpirava macheza. Impulsivamente, falou:

 

       – Seu corpo está legal.

 

       Ele sorriu, amplamente, consciente do poder que exercia sobre a mulherada. O problema era que Karen não era uma mulher, e sim uma abelha com ferrão nos olhos. Antes que ela o atacasse, desferiu, voltando-se em seguida para a parede e pintando uma faixa larga e comprida de verde claro:

 

       – Sugiro que troque de camiseta, Karen. Branca e molhada, isso não é bom.

 

       – Puta merda! – ouviu-a praguejar e se encaminhar em direção ao seu bangalô.

 

       Sóbria e calma, Karen Lisboa era encantadora, pensou Rodrigo, olhando descaradamente para o traseiro dela.

 

       Dolejal deixara material escrito para o livro. Foi o que constatou Nova ao entrar no escritório sendo seguida de perto por Mendes. Irene dissera que o patrão fora para o interior resolver um problema. Interior? Nova não entendera, uma vez que eles já estavam no interior. A explicação veio rápida e através do próprio Mendes: interior era o meio do mato, onde ficavam algumas fazendas. O interior do interior era o núcleo da cidade, como uma espécie de região metropolitana ao redor da capital. E era lá que estava o seu chefe. Ele lhe deixara atividades para fazer como os professores faziam ao faltar ao trabalho.

 

       Sentou-se atrás da mesa localizada num canto do escritório de Dolejal. Irene informara-lhe que aquele “cantinho simpático” fora designado pelo próprio patrão. Nova percebeu a sutileza da informação. Tinha certeza absoluta de que, na ausência do fazendeiro, ela não poderia se afastar muito do seu cantinho.

 

        A mesa de aço e vidro esperava pelo seu notebook. Depositou-o sobre ela e, antes de começar a digitar o texto do chefe, leu-o em silêncio. Terminou a leitura com a sensação de que acabara de ler um conto da Carochinha. Heróis imbuídos por uma missão cívica, abnegados, abandonaram suas terras natais para desbravarem as planícies áridas e as matas fechadas do centro-oeste. Só lhes faltavam a capa e a espada. Tencionava ignorar o tal texto, apesar de saber que a intenção feria o código de ética entre profissional e cliente. O que podia fazer? Thales Dolejal inventava uma história cor-de-rosa para encobrir assassinatos, desapropriações indevidas, grilagem e o diabo a quatro. Por outro lado, o coronel Marau protegia aliciadores e também carregava no lombo a mesma carga de imundícies que Dolejal. Pois bem, podia abandonar o jornalismo e se manter como cantora no Bar do Gringo. Podia mesmo, até o momento em que abriu a gaveta e encontrou um punhado de cédulas de alto valor, o seu pagamento do dia.

 

       Após uma hora digitando o texto e enxertando-o com a gravação do dia anterior, foi até a janela para admirar o jardim verde e florido ao redor da piscina. Esguichos no solo espirrando água vinte e quatro horas por dia.

 

       Suspirou e apertou a nuca com a mão. Deu de cara com uma loira estendida na espreguiçadeira se bronzeando. Aliás, se queimando, uma vez que a pele branca estava varada de manchas vermelhas. Só podia ser a gringa, a texana. O cabelo era longo, liso e amarelo. O corpo comprido e magro sugeria que um dia ela atravessara uma passarela. As pernas finas e longas. Os pés grandes, nus. Usava apenas a parte debaixo do biquíni, e era bastante visível o formato arredondado e artificial da prótese de silicone. Brevemente, essa seria a senhora Dolejal, refletiu Nova, estranhando o fato do chefe preferir uma perua esquálida a uma mulher de verdade como Karen.

 

       Ela ficou tentada a oferecer-lhe um protetor solar. O sol não era visível, mas, de qualquer forma, fustigava a pele. O delegado não era moreno o suficiente para resistir aos seus açoites. Após quarenta minutos, no segundo degrau da escada, o braço esticado pincelando a alvenaria, ele exibia lanhaços flamejantes de queimaduras nas costas. A pele brilhava devido a uma fina camada de suor. E o cabelo, úmido, aderia às mechas junto à testa e às têmporas.

 

       Largou o pincel ao lado da lata, entrou em casa e abriu a gaveta da cômoda. Verificou a validade do produto e foi até a cozinha pegar outra garrafa de água mineral gelada. Encontrou Johnny pondo a mesa.

 

       – Filho, o Rodrigo almoçará conosco. – avisou-o.

 

       O garoto sorriu alegremente. Por algum motivo que nem a ciência ou a filosofia podia explicar, o seu Johnny planejava fazer Direito para se tornar, no futuro, delegado de polícia.

 

       – Ele veio ajudar a gente? – perguntou, empolgado.

 

       – Sim, veio dar uma força aos lascados. – resmungou.

 

       Ao alcançar o bangalô pintado de verde claro e pronto para ser alugado, parou e cutucou as costas do delegado com o bico da garrafa. Ele se virou e aceitou a bebida, sorvendo-a em dez segundos.

 

       – Aqui está o protetor solar, suas costas parecem que foram tostadas na grelha. Quero ver como dormirá hoje. – disse, torcendo o lábio.

 

       Ele riu baixinho e pegou o protetor. Por um momento, ficou olhando para o objeto, já destampado. Depois, desceu para o gramado e falou para Karen:

 

       – Como é que passarei esse troço nas costas?

 

       Ela deu de ombros e disse:

 

       – Sei lá, o problema é seu.

 

       Crispando os lábios, despejou um pouco do creme na palma e virou o braço para trás, acertando parte das costas e espalhando-o.

 

       – Ô Karen, não seja má, passa para mim mais pra cima, vai. – gemeu como um garoto mimado e se controlando para não rir.

 

       – Pra quê? Para achar que estou dando em cima de você? Que se lasque, Rodrigo.

 

       – Jamais pensaria isso, só quero que espalhe o protetor nas minhas costas. Pelo amor de Deus, mulher, estou todo queimado por sua causa. Não seja ingrata.

 

       Ela suspirou alto, resignada, e foi até ele.

 

       – Senta na grama, então. – falou sério, a cara amarrada.

 

       – Ah, não, se é para fazer de má vontade, está dispensada. – reclamou, erguendo-se e se afastando dela, encaminhando-se até a árvore onde descansava a sua camisa.

 

       – Volta aqui, Rodrigo. – fez um sinal com o dedo em gancho chamando-o e emendou, posicionando-se atrás dele: – A gente podia pintar esses troços logo que anoitecer. Que acha?

 

       Ele se sentou no gramado, devagar e gemendo. Ponderou sobre a última proposta, puxando na memória a escala de plantões na delegacia. Era possível, sim, e menos arriscado à saúde pintar os bangalôs à luz do luar e das estrelas.

 

       – Pode ser. Quando for meu plantão na delegacia, você descansa também. – determinou.

 

       – Descansarei quando acabar o dinheiro ou a tinta, o que vier primeiro. – afirmou, apertando o tubo sobre as costas dele e espalhando o produto com a mão aberta e espalmada. – A coisa aqui está feia, delegado. – riu-se, divertida.

 

       – Que nada, nem dói.

 

       – Sei, duvido muito que consiga dormir de costas. – debochou.

 

       – Hum, acho que você não aguentaria o meu peso a noite inteira.

 

       Assim que a frase lhe escapou, arrependeu-se imediatamente de tê-la dito. Esperou pelo trovão. Não devia brincar com Karen e com o seu humor instável e explosivo. Era diferente de Nova, Valéria, Adele ou qualquer outra mulher que conhecia e conversava. Com Karen, cada passo devia ser medido e avaliado. Agora, por exemplo, as mãos continuavam a deslizar por sobre suas costas de forma a não machucá-lo, acariciando a pele com uma leve pressão e descendo cada vez mais em uma direção que ele tinha certeza de que não estava bronzeada.

 

       – Talvez o delegado não me conheça o suficiente para acreditar que não aguento. – disse ela, sem pressa, avançando a mão por baixo do jeans e fazendo uma pequena manobra em direção à parte frontal.

 

       Rodrigo engoliu em seco, tentando se recompor e dominar a situação. Urgia pôr os pensamentos em ordem e refrear o desejo que enchia sua cabeça de imagens sensuais.

 

       – É verdade. Afinal, quando cheguei a Matarana você já era do Dolejal – afirmou, tentando amenizar a tensão. – Aliás, somente agora está livre, não é, Karen?

 

       A resposta quase veio quando ela desceu a mão até o cós da cueca e parou. Rodrigo suspirou pesadamente e percebeu que estivera de olhos fechados. Abriu-os e viu o rosto de Karen bem perto do seu, a boca quase roçando a sua, os olhos brilhando. Ela castigava-o? Desafiava-o? O que, diabos, aquele inferno gostoso de mulher queria?,ele pensou, querendo morder-lhe a boca e avançar sobre ela como um bicho.

 

       – Nunca serei livre. Mais do que nunca, sei que sempre haverá um grilhão me prendendo o tornozelo. – falou baixinho, a voz rouca e arrastada: – Por que não me oferece proteção, delegado? Sou justa, saberei retribuí-lo.

 

       Rodrigo estreitou os olhos, sondando-a.

 

       – Quer que eu a proteja do Dolejal?

 

       – Sim, preciso, Rodrigo. – murmurou, mordiscando-lhe o queixo suavemente: – Amanhã o Franco tentará me expulsar da cidade a mando dele, do Dolejal. Ele anda me ameaçando, porque quer se apropriar do condomínio.

 

       – É mesmo? E por isso está se oferecendo a mim? Para que eu fique contra o meu próprio amigo? – perguntou, sério.

 

       – Sei que é mais amigo do Dolejal do que meu, coisa de homem, entendo perfeitamente. – os lábios buscaram e encontraram o lóbulo da orelha dele e se concentraram em chupá-lo. Murmurando, a voz rouca, continuou: – Mas o que você quer e precisa, ele não pode dar.

 

       – O que, Karen? Me fale todas as palavras e bem devagar, por favor. – gemeu com rouquidão.

 

       – Não sou mulher de falar; eu faço, meu bem.

 

       Dizendo isso, empurrou-o contra a grama e beijou-o com ímpeto. Rodrigo girou-a deitando-a no gramado e pondo-se sobre ela, tomando-lhe a boca e enfiando a língua para sugar a dela. As mãos desceram e apertaram um dos seios, afastando-o do sutiã e se apropriando do mamilo entre os dedos. Ouviu-a gemer debaixo de si. Ergueu a cabeça e fitou uma mulher com os olhos congestionados de desejo e os lábios inchados. Baixou a boca até o seu pescoço e esfregou-a, entreaberta, aspirando o cheiro dela, a quentura e maciez. Uma mistura de sensações e sentimentos fez com que ele pensasse besteira. Teve vontade de pô-la sobre um ombro, levá-la para o quarto e amá-la durante o resto da estiagem. Ser-lhe a segunda pele também foi outro pensamento maluco, e esse apontou quando ela enfiou a mão dentro da sua calça e apertou-lhe o pênis duro. Ele gemeu e bebeu nela um pouco mais de veneno. O segundo beijo foi tão violento e urgente que na sua saliva misturou-se o sangue de Karen, e ele se intoxicou ainda mais. Ferrado até o último fio de cabelo, Rodrigo Malverde, delegado de Matarana, sujeitava-se ao poder daquela que enlouquecera um latifundiário sem coração.

 

       Afastou-se com dificuldade, deitando a cabeça na grama e pondo o antebraço sobre os olhos.

 

       – Quem pensa que sou, Karen? – perguntou num tom que assustou a si mesmo. Não era para ter saído de forma tão seca e abrupta.

 

       – Como assim? – ela apoiou-se, de costas, sobre os cotovelos e o encarou.

 

       – Nesses dez anos, me diz, quando não a protegi? – ele se sentou e arou o cabelo com os dedos, impaciente e trêmulo: – Porra, o que é isso? O que está fazendo?

 

       Ela também se sentou e abraçou os próprios joelhos.

 

       – Estou com medo e desesperada. Dona Ninita sugeriu que usasse os meus dotes naturais e seduzisse você. Foi o que tentei fazer. – sorriu sem graça.

 

       Rodrigo fitou-a severamente:

 

       – Ah, certo, então agora está culpando uma velhinha. Por que não assume que não possui um pingo de amor próprio?

 

       – Tudo bem, assumo, não me amo nadinha, mas tenho uma avó e um filho para cuidar e não posso ser escorraçada por um fazendeiro filho da puta. Para de me julgar ou se sentir ofendidinho e me ajuda... de novo. – pediu, fingindo uma delicadeza e meiguice que estava longe de possuir. Ele bem o sabia.

 

       Suspirou irritado. O vento quente bagunçou-lhe o cabelo. Havia perdido a compostura, o respeito próprio e o chapéu. Virou-se para ela e viu a garota na sua cama, dormindo em posição fetal. Viu também a garota ferida e humilhada, no chão, na Arco Verde. Viu, além disso, a mulher sozinha que tentava sobreviver do jeito que conseguia e podia.

 

       – O que acha que estou fazendo aqui, hoje? Trouxe tinta, vim ajudá-la a pintar os bangalôs... Puta merda, acredita mesmo que deixaria ser expulsa da cidade? Esse tipo de ação nem tem base legal, o Franco é só um pobre diabo que segue a cartilha do Dolejal. – parou, buscou o chapéu, enfiou na cabeça e pôs-se de pé: – O Thales é mais meu amigo que você quando está certo. – afirmou convicto.

 

       – Rodrigo...

 

       Ele vestiu a camisa de costas para ela.

 

       – Ficamos por aqui, certo? Darei um jeito de vir pintar à noitinha.

 

       – Falei pro Johnny que almoçaria conosco e ele ficou tão feliz. – falou, segurando-o pelo pulso.

 

       – Acho melhor eu ir. – apertou os lábios e os maxilares despontaram debaixo da pele: -– Sabe, Karen, eu podia ter aproveitado a chance e tê-la levado pra cama. Vontade não me faltou, mas o que me enoja é essa sua cegueira. Você está tão imbuída nessa missão de odiar e desprezar os homens que não vê mais nada ao seu redor.

 

       – Desculpe, Rodrigo, desculpe. – tentou abraçá-lo, porém ele a afastou com delicada firmeza.

 

       – Quando o Franco chegar amanhã, liga para o meu celular. – determinou, incisivo.

 

       – Obrigada e desculpe. – falou, apertando as próprias mãos, ansiosa. – Fica para almoçar, por favor, senão o Johnny vai achar que fiz besteira...

 

       – Está bem. – concordou a contragosto.

 

       Karen sorriu satisfeita. A caminho do bangalô e percebendo que a irritação de Rodrigo se dissipara, ela arriscou:

 

       – Se eu não tivesse feito merda, teria ido para cama comigo?

 

       Sem fitá-la, ele disse simplesmente:

 

       – O problema é que você sempre dá um jeito de foder tudo.

 

       – Faria sexo comigo?

 

       – Não insista nesse assunto, Karen. Nada aconteceu e não acontecerá. – disse com impaciência.

 

       – Faria sexo comigo, Rodrigo? – ela parou e pôs as mãos na cintura e ordenou: – Seja homem e responda!

 

       Ele parou, olhou para o céu buscando o autocontrole adquirido a duras penas, voltou-se para a mulher e disse quase com raiva, os maxilares tesos:

 

       – Não, Karen, não faria sexo com você.

 

       Ela tentou sorrir, visivelmente constrangida. Karen sem jeito? Novidade para ele.

 

       – Que coisa!,por essa eu não esperava. É óbvio que está mentindo.

 

       – Acha mesmo?

 

       – Talvez. – mordeu o lábio inferior, incerta: – Você sempre foi tão diferente dos outros, digo, é bruto e sensível ao mesmo tempo. Não é como o Dolejal que tem gelo derretido nas veias. Você é humano mesmo, quente, acolhedor, sentimental até. E, por outro lado, másculo, forte e, bem, violento também...

 

       – O que quer, agora, Karen? – estreitou os olhos.

 

       – Odeio ser injusta com alguém e acho que ainda não me perdoou. Estou sentindo um peso danado no estômago. – fez uma careta, esfregando a barriga.

 

       Malverde baixou a cabeça e tocou-lhe o queixo, erguendo seu rosto.

 

       – Faria amor com você a noite inteira, mais do que sexo. Entende a diferença, moça?

 

       – Não, nunca fiz amor. – admitiu com honestidade. – Como é, Rodrigo, como é isso?

 

       Ele encarou-a longamente, balançou a cabeça como se discordasse dos próprios pensamentos e, vencido, afirmou sério:

 

       – Um dia eu lhe mostro.

 

       Tirou o pino da granada e lançou-a no campo amigo, sobre o próprio colo. Afastou-se dos olhos brilhantes que ensaiavam um lampejo de cinismo. Deixou-a para trás, entrou na cozinha e cumprimentou Johnny:

 

       – O que temos para o almoço, parceiro?

 

       O convite fora feito durante o almoço e Nova aceitou-o. Costumava sair à noite com Valéria quando Cris estava no hospital. Nas suas folgas, ela ficava em casa, assistiam a filmes antigos, jogavam pôquer ou mudavam os móveis de lugar. Às vezes, ele aparecia em casa com um acessório decorativo ou um móvel novo ou saíam juntos, como um casal recém-casado, iam às compras na única loja de decoração da cidade. Escolhiam objetos para enfeitar o lar, diante das prateleiras, comparando-os entre si e tirando conclusões. Depois, almoçavam numa churrascaria à beira da 163 ou seguiam para a sala de cinema de Santa Fé. Nova temia ter de levar a termo o ultimato dado.

 

       Terminou de maquiar-se diante do espelho e sorriu ao ver Valéria arregalar os olhos e assobiar.

 

       – Nada como uma bela produção para erguer nosso ânimo! – disse com entusiasmo.

 

       Ela mesma estava linda no vestido prateado e curto, sobre saltos altíssimos e o cabelo vermelho balançando sedoso em cascata sobre os ombros.

 

       – Espero que essa blusinha tomara-que-caia não caia. – riu-se, ajeitando o tecido azul sobre os minúsculos seios. Deu dois passos para trás e se avaliou: – Caramba!,pareço uma tábua!

 

       Valéria riu e deu-lhe um tapa amistoso no traseiro.

 

       – Mulher pequena tem de ter pouco peito, senão parece que está roubando melões. – disse ela, tentando consolar a amiga.

 

       O quarto de Val era amplo e dividido em dois ambientes. Numa parte a cama de casal e o guarda-roupa e noutra, onde estavam se arrumando para irem ao salão country, havia um espelho de corpo inteiro na parede, um tapete felpudo e um sofá de dois lugares, ladeado por mesinhas de madeira, onde descansavam duas taças de champanhe barato.

 

       Sabrina apareceu e bateu palmas para as duas. A garota passaria a noite na casa de uma amiga. As duas tentavam se preparar psicologicamente para a aula do dia seguinte, quando teriam de dissecar um cadáver. Vendo as balzaquianas acotovelarem-se diante do espelho, em meio à atmosfera de perfume e spray para cabelo como duas adolescentes preparando-se para o baile, ela falou:

 

       – O tio não vai gostar nadinha do comprimento do seu vestido, mãe.

 

       Nova riu com vontade e empurrou a amiga com o ombro para lado, aproveitando para admirar o efeito do conjunto de brincos com a gargantilha. Valéria, por sua vez, jogou os cabelos para trás num gesto afetado, dizendo:

 

       – Seu tio é um quadrado.

 

       – Que horas marcou com a Karen? – perguntou Nova, consultando o seu relógio.

 

       – Ela já está chegando. Parece que conseguiu prender dona Ninita em casa para ficar com o Johnny. Isso é um verdadeiro milagre. – asperjou mais perfume no pescoço e completou: – Espero que não chegue calibrada. Nunca quis sair com ela por causa disso, está sempre se metendo em brigas porque bebe demais, se irrita demais e, para ela, tudo é sempre demais. Mas o Rodrigo, sabe como ele é, insistiu para que eu a integrasse. Quando Jasmine estava viva, ela estava sempre por aqui. As duas eram muito amigas, grudadas, se viam todos os dias. A bem da verdade, ela monopolizava a minha cunhada... E é por isso que o Rodrigo se preocupa com a Karen. Às vezes, quando o Dolejal estava fora da cidade, os três acampavam para pescar. Acha que o Rodrigo me convidava? Que nada, a Jasmine preferia a Karen e o Rodrigo fazia as vontades dela. Que Deus a tenha, claro! – fez o sinal da cruz e deslizou o batom sobre os lábios.

 

       – Lembro como se fosse ontem o enterro dela. – afirmou Nova, reflexiva, sentando no sofá e sorvendo o champanhe: – O Rodrigo e a Karen chorando como crianças. Eles eram muito unidos mesmo. O Cris desconfia de que as bebedeiras da Karen começaram depois da morte da Jasmine.

 

       – Não duvido. Quem aguenta Karen Lisboa? Já reparou que ela não tem amigos? O único que insiste em permanecer ao seu lado é o meu irmão, mas isso por causa da Jasmine. Toda a vez que ela vai para o centro da cidade, ele tem de largar tudo para tirá-la de alguma confusão. É incrível!

 

       Nova pensava sobre o que Val dizia. Pessoas diferentes relatando a mesma versão dos fatos. Queria conhecê-la para tirar suas próprias conclusões. Pressentia que esse tipo de mulher assustava as demais, intimidava-as. Por outro lado, quando conquistada, era provável que fosse a mais leal de todas as amigas.

 

       Ouviram o barulho característico do motor de um Fusca. Sabrina surgiu à porta anunciando em um tom brincalhão:

 

       – Cinderelas decadentes, o tornado acabou de chegar!

 

       Parou diante da casa de Rodrigo e respirou fundo. Havia poucas horas tentara seduzi-lo sem o menor escrúpulo. Deveria sentir-se culpada ao pôr a mão no marido de Jasmine. Se a amiga estivesse viva, não teria posto a mão no seu marido. Entretanto, voltar àquela casa era pedir para lembrar-se dela. E talvez fosse isso que a fazia se sentir sem ar, oprimida. Dois anos não era grande coisa para quem perdia alguém importante. Ela fora-lhe mais do que uma amiga; uma confidente, uma irmã. E era por isso, por sua amiga, que aceitava a interferência de Rodrigo sem espernear como o faria se fosse outro homem.

 

       Naquela noite sem estrelas aparentes, a opressão também advinha da roupa que escolhera para usar. Substituíra o eterno jeans e camiseta por um vestido fino, com flores miúdas, um corte romântico pouco abaixo das coxas. Sentia-se estranha, como um pugilista vestido de bailarina clássica. Tivera de suportar os comentários indiscretos da avó e debochados do filho. Todos apontando numa direção, que ela se vestira para agradar às outras mulheres, no caso, Valéria e Nova. Podia até ser que sim, mas tencionava arranjar alguém para distraí-la da incipiente opressão. Um cara fácil de conquistar e fácil de descartar, um produto em oferta, alguém para usar.

 

       Pisou com as botas firmes no chão de terra e contornou o automóvel. Tragou fundo o cigarro enquanto esperava alguém abrir a porta. Na lâmpada sobre o avarandado, bichinhos voadores e barulhentos. Sabrina sorriu ao vê-la e cedeu-lhe passagem.

 

       – Nossa, Karen, nem sabia que você tinha pernas! – brincou a garota.

 

       Karen sorriu, o cigarro parado no canto da boca, e disse:

 

       – O vestido vem com as pernas.

 

       A garota riu e sinalizou em direção à cozinha.

 

       – A mãe fez uns troços para vocês comerem antes de ir.

 

       O salto de madeira fazia barulho no assoalho. Atravessou a sala seguida pela adolescente que, sem dúvida alguma, analisava a sua vestimenta. Abrira mão do jeans e do chapéu, porém não faria o mesmo com as botas.

 

       – Eta!, Karen, botou pra quebrar, hein! – exclamou Valéria, fingindo que não estava mamada.

 

       Karen sorriu sem jeito, tinha problemas para aceitar elogios. Avistou Nova do outro lado da mesa, enfiando uma pasta grossa no interior de canudinhos folhados. Cumprimentou-a com a cabeça e olhou ao redor à procura de um cinzeiro. Foi a cantora do Gringo que veio em seu auxílio, estendendo-lhe um.

 

       – A gente se conhece de vista. Sou Nova Monteiro e trabalho para o Dolejal. – enfatizou o nome do chefe, a fim de observar a reação da mulher.

 

       Ela concordou, sorrindo.

 

       – Pensei que cantasse no bar do Gringo. – disse apenas.

 

       – É, costumo dividir meu tempo como jornalista e cantora. Um dia descubro minha verdadeira profissão. – brincou.

 

       Karen também brincou:

 

       – Mulher de médico.

 

       Nova e Valéria entreolharam-se. Percebendo a tensão no ar, Karen adiantou-se com bom humor:

 

       – Não, Nova, não dormi com o doutor.

 

       – Desculpe, nem pensei isso... – disse Nova, vermelha como um pimentão.

 

       – Fama é fama, não é, Karen? – interferiu Valéria, ajeitando os canudos numa travessa de inox. – Quer um suco ou água mineral?

 

       Sobre a mesa, a garrafa de champanhe pela metade. Karen entendeu a intenção e a mensagem. Aceitou a água mineral, sentou-se à mesa e tentou ser agradável, como Rodrigo sugerira:

 

       – Vocês conseguirão boas transas hoje, estão muito bonitas.

 

       Valéria engasgou-se com a saliva. Nova estreitou os olhos tentando captar o que acabara de ouvir. Sabrina gargalhou do quarto. Tentando consertar a situação, ela emendou:

 

       – Digo, homens. Na verdade, o bar do Gringo é frequentado pelos valentões, os que comem poeira; no Colono Tranquilo só tem a chinelagem e no salão country, os almofadinhas. Às vezes, vai o pessoal do comércio e pequenos empresários, mas grande parte é filho de fazendeiro e dono de agropecuárias e madeireiras. É um lugar bom para caçar. Eles estão sempre loucos para torrar dinheiro e marcar pontos no placar das conquistas rápidas. – riu e emborcou toda a água do copo.

 

       Um breve silêncio antecipou-se à fala de Valéria que, abrindo o pacote de guardanapos, distribuiu-os pela mesa.

 

       – Você caça muito?

 

       Nova desviou o olhar de Karen para Valéria, percebendo um leve tom maldoso na pergunta. Não gostou do que ouviu e de como a questão fora posta. Era visível que ela não facilitava as coisas para a antiga amiga de Jasmine.

 

       – Às vezes. – respondeu, simplesmente.

 

       – Podia dar umas dicas para nós, somos inexperientes nessa área.

 

       – Que área? – Nova antecipou-se, encarando Valéria com bastante atenção.

 

       Ela deu de ombros e encheu vários canudinhos com a pasta de frios, depositando-os sobre a tigela.

 

       – Amor, área do amor, Nova. – retrucou com ironia.

 

       No fundo, Karen sabia que deveria ficar em casa e desentupir duas privadas dos bangalôs desocupados. Ainda tinha de limpar a piscina. Um dos moradores, do bangalô 10, plantara maconha no quintal detrás. Precisava adverti-lo ou seria responsabilizada pela plantação. Havia tantas coisas pendentes, tanto para fazer, e ela decidira aceitar o convite – forçado, diga-se de passagem – da irmã de Rodrigo.

 

       Deveria cortar o mal pela raiz.

 

       – Olha, Valéria, não precisa me engolir. A gente diz pro Rodrigo que saímos e adoramos. – levantou-se e emendou com indiferença: – Foi uma bela tentativa, mas se não deu certo antes, não dará também agora.

 

       – É verdade, Karen. – concordou a outra, sem levantar os olhos dos salgados perfilados à sua frente. – O Rodrigo quer que volte a ser como quando Jasmine determinava tudo aqui em casa. E você faz parte disso.

 

       – Claro. – assentiu e estendeu a mão a Nova: – Foi um prazer conhecê-la. Acho que deveria se concentrar em cantar, é só uma ideia. – disse, sem graça.

 

       – Espera, não vá embora. Nós três vamos sair, sim. – falou Nova olhando para Karen e Valéria: – Depois quando dizem que as mulheres não são unidas ficamos ofendidinhas. Dane-se o passado. A noite está linda e dançaremos até o amanhecer.

 

       Karen lançou um olhar interrogativo a Valéria, esperando que ela se manifestasse. Tudo dependia da outra, da sua reação. A outra sorriu e sinalizou para Karen tornar a se sentar.

 

       – Ponto para as meninas! – exclamou Nova, alegremente.

 

      Havia dois anos que o corretor tentava vender aquele armazém de grãos. A dificuldade para livrar-se do imóvel se devia ao fato de que o depósito tinha uma história. Uma história sobre um incêndio no Natal. Alguns fazendeiros de pequeno porte inventaram criar uma associação. Compraram o tal armazém e guardaram nele os frutos da colheita. Em 25 de dezembro, o fogo assou a soja. A safra perdida. O armazém reformado e posto à venda. Mas não havia compradores. Os bancos exigiam o pagamento do empréstimo pelos fazendeiros. A associação dissolveu-se após a primeira crise. E a suspeita de um incêndio criminoso, à época, fora descartada. A investigação do delegado de Matarana apontou um curto-circuito numa das lâmpadas internas da instalação. O presidente da associação dos fazendeiros alegou que estava em atraso com algumas prestações do seguro; o dinheiro na sua conta particular. Durante os anos que se passaram o corretor tentara vender o armazém para os homens fortes da região. O dinheiro da venda se reverteria para os associados e, agora, endividados agricultores. A resposta era a mesma: “não temos interesse”. Se era para ferrar as suas órbitas, Júpiter até implodiria se fosse o caso.

 

       Teobaldo Vilela, proprietário da Imobiliária Vilela, abrigava-se debaixo da sombra de uma mangueira e acompanhava com o olhar o produtor de uma dupla sertaneja. O rapaz alto e gordo, que lhe dera carona na Hilux tinindo de nova, avaliava a possibilidade de transformar o armazém de grãos em armazém de música, uma boate afastada da cidade, um reduto para os endinheirados caipiras se fartarem até dizer: “quero mais, muito mais”. E o corretor tinha também muito a oferecer. Ele satisfazia impulsos de terceiros. Conhecia os anseios mais profundos da alma humana. Sabia como consumar um desejo. Pelo menos intermediava a consumação deles. Não sujava as mãos nem a roupa. Mantinha o nome intacto e a dignidade, caso coubesse entre a unha e o dedo mindinho.

 

       Foi ele quem viu a gula e a ganância nos olhos empapuçados do produtor de sucessos. O outro, bem, não viu nada além do que queria. Apertaram as mãos e fecharam o negócio. Mais um para explorar o solo alheio. Desta vez, apenas a superfície. Puxou na memória a informação que lhe fugia. Pela manhã, ao sair da cama, verificara sua pressão sanguínea. Doze por oito, nada mal para a idade. Em seguida, constatara que estava sem colírio e paracetamol.

 

       Ao sair da farmácia, ainda tinha aquela sensação fugidia de esquecimento. Consultou a posição do sol e depois o relógio. Irritava-se consigo mesmo, com a velhice que limitava os seus passos seguros e a doença, fosse ela qual fosse, que o comia por dentro. A doença que ainda não fora diagnosticada por médicos nem revelada em exames. Sabia que estava doente, assim como sabia que desde os vinte anos era idoso, nascera idoso. Tentava compreender a fome por vida de Ninita. Que merda era essa?

 

       Ao ligar a televisão, sorriu ao ver a imagem de Giuliano Gemma. Teobaldo era fã do faroeste espaguete. Mesmo que imitassem os norte-americanos. Mesmo que na Europa jamais houvera caubóis e pistoleiros. Mesmo que Gemma não fosse Eastwood. Ainda assim, sentou na poltrona sem tirar o paletó úmido de suor. Pneumonia... Retirou o paletó úmido de suor com os olhos assustados. Lembrou-se, então, do que deveria lembrar já que na sua verdadeira profissão o esquecimento poderia ser fatal. Detestava levar trabalho para casa. Mas quando se era o intermediário numa negociação, isso, às vezes, acontecia.

 

       Teobaldo Vilela cuidava da saúde como um monge da alma. Preservava o corpo para entregar-se por inteiro ao trabalho. E quando ele trabalhava era o melhor da região. Usava uma pistola .380 e atirava no rosto.

 

       Apesar dos boatos, ele não era o diabo materializado. Sua hospedeira abrigara-o por quase oito meses. Conscientemente, ela tentara abatê-lo com Citotec. A placenta, no entanto, absorvera a droga e o protegera da artilharia. Reconheceu-o como hóspede, e não inimigo. O órgão esponjado e parecido com uma panqueca permitiu a aceitação por parte da mãe do material genético cinquenta por cento diferente do seu. Durante o tempo de formação no útero, Franco não foi destruído pelo sistema imunológico de Sofia. Os dois organismos somente se enfrentaram após as últimas contrações. Até os cinco anos, ele falava por monossílabos e voava a mente na asa dos pássaros. À beira da estrada, juntava pedras lascadas. E enquanto a mulher loira e bonita, minissaia vermelha e olhar melancólico catava do asfalto um cliente, o filho juntava as sílabas para dizer o que sentia. Mas ele não conseguia e a culpa era das consoantes, o som delas, sempre sem sentido. Então ele chorava para chamar a atenção. Na maior parte das vezes era ignorado. Criança era apenas criança. Outras vezes, o cliente comprava-lhe refrigerante e o deixava no banco da lanchonete. No estacionamento, dentro da boleia do caminhão, traçava sua mãe.  Ela era uma puta que cobrava. O problema não era esse, pelo menos, para Franco. Sofia podia vender o que quisesse para sobreviver no cerrado, até a sanidade. O que ele jamais aceitara fora a rejeição, a falta de zelo e sentido de pertinência. O filho pertencia ao mundo – como cansavam de dizer as pessoas sensatas – os filhos não pertenciam às mães. O mundo, por sua vez, que cuidasse de Franco e o formasse gente, decidira Sofia. Porque ela, definitivamente, não nascera para ser uma placenta.

 

       Comeu o último pedaço da costela malpassada. Sentado à mesa da cozinha, ele era o único empregado que podia se alimentar no interior da casa-sede. Claro que sua prerrogativa limitava-se à cozinha. E não passava disso. A fronteira entre um homem e outro, de castas diferentes, era determinada pelo lugar em que ocupavam para se alimentarem. O resto do pessoal que fazia a segurança da Arco Verde pastava no refeitório.

 

       Irene surgiu à porta e falou:

 

       – O patrão quer que suba até o escritório.

 

       E foi o que ele fez.

 

       – Quero que leve Mary Jessica com você hoje à noite. – disse Dolejal, concentrado em digitar algo no notebook.

 

       Franco olhou para Mary Jessica sentada no sofá com as pernas cruzadas. A texana compreendia o português. Havia adquirido a fluência no idioma, após um curso intensivo no Texas. O sotaque era forte, os erros de pronúncia e concordância existiam e a troca de palavras também. Entretanto, Franco tinha de dar o braço a torcer, a americana se esforçava para agradar ao noivo. Na fazenda, a futura esposa do patrão era conhecida como Amely. Ela era submissa, dócil, flexível. Combinava com a leveza de uma pluma no ar, voejando de um lado para outro, indo para lugar nenhum. Sempre ao sabor do vento. Franco jamais conhecera uma mulher como Amely. Ela seria de verdade?

 

       – Bar ou restaurante? – viu-se perguntando para ela, sabendo de antemão que a texana lançaria um olhar interrogativo ao noivo.

 

       – Onde costuma ir às sextas? – sem esperar pela resposta, Dolejal concluiu: – Leve-a para onde for.

 

       O segurança estreitou os olhos e fitou longamente a mulher que descruzava as pernas e se posicionava atrás do noivo, enlaçando-lhe o pescoço com carinho:

 

       – Non querer ir xunto com gente?

 

       – Não. – negou com firmeza e no mesmo tom acrescentou: – Mas você é jovem e precisa se distrair. Saia com gente da sua idade. – o recado foi para o empregado e dizia claramente: agora, você também é chofer, além de chefe da segurança e meu braço direito.

 

       Franco suspirou profundamente procurando ocultar a incipiente irritação. Coçou a cabeça e arou o cabelo com os dedos. Era difícil manter os insetos calmos dentro de sua cabeça. Eles batiam as asas agitados. E quanto mais se agitavam, mais ele se agitava. Uma nuvem escura ofuscava-lhe a visão. Consumido pela raiva, por uma raiva intensa sem explicação. Nada mais fazia sentido. O arquivo no escritório do centro. A ausência do seu nome na lista de amantes de Karen Lisboa. Que tipo de investigador o patrão contratara? Só podia ser uma cilada. O seu nome fora apagado por Dolejal. Essa era a explicação. O silêncio, a ruminação de anos, a vingança em doses homeopáticas.

 

       – Preciso falar com o patrão. – afirmou, encarando fixamente a texana.

 


       A moça tentou sorrir e juntar as palavras, a fim de justificar sua presença entre eles. Dolejal fez-lhe um sinal com a mão para sair, nem falou. Assim que a porta se fechou, o fazendeiro entendeu que o assunto era sério e inédito entre ambos. Empertigou-se na cadeira, apoiou os antebraços sobre a mesa e ergueu o olhar como o suserano ao vassalo.

 

       – Na sua situação, Franco, é melhor que seja rápido e direto. Você não tem muita munição.

 

       Franco tinha 22 anos e matara um camarada que andava estuprando estudantes pela região. Quando lhe fez a primeira incisão no abdômen, viu o sangue subir devagar à superfície da pele e, depois, escorrer rápido até o mato seco. Tocou no sangue, esfregou a ponta do dedo indicador nele e provou o seu sabor. Sangue humano era doce e bom. E era um desperdício perdê-lo à míngua. Como o sangue era importante, Franco sufocou o pervertido.

 

       Diante do homem que podia ser o seu pai ou seu algoz, o prazer de provar o sangue alheio pareceu bem menor que o de enfrentá-lo.

 

       – Por que não estou na sua lista? – perguntou, quase sorrindo, sentindo asas negras e imensas abrindo-se atrás das costas, justificando-lhe a imortalidade.

 

       Pedro partiu à noite. Algemado e escoltado por dois policiais militares. Destino: Presídio de Santa Fé. O coronel de fato lavara as mãos, aquele problema com o cara de cavalo não era mais dele.

 

       Rodrigo bateu com o chapéu sobre o jeans empoeirado enquanto observava a camionete distanciar-se, levantando um escudo de terra e poeira até dobrar a esquina em direção à BR-163. Sentiu a presença de Lucas atrás de si e voltou-se sorrindo:

 

       − Lá se vai o poeta das ameaças vazias. – ironizou, tornando a toldar o crânio com o Stetson surrado.

 

       − Pelo visto, o coronel falava sério. – considerou o investigador, seguindo a camionete com os olhos semicerrados. – Não mexeu um dedo para tirar o capanga detrás das grades. – emendou, tragando fundo o cigarro.

 

       − É como ele mesmo diz, as coisas hoje em dia são descartáveis. – ponderou o delegado com um sorrisinho maldoso nos lábios: − O que não falta nesta terra são pessoas dispostas a enganar as outras. Mas uma coisa é certa, às vezes a lei escreve certo em linhas tortas. Sem provas o suficiente para prendê-lo por aliciamento de trabalhadores, o melhor que consegui foi pegá-lo por porte ilegal de arma. De qualquer forma, a justiça foi feita, meu chapa. – ele tocou na aba no chapéu, levemente, ajeitando-a para frente num de seus vários trejeitos de caubói.

 

       − Mas logo voltará a Matarana.

 

       − E nós ficaremos de olho nele.

 

       − Acha que fará mal à jornalista?

 

       − Não sei, − balançou a cabeça devagar − acho que o Pedro mais fala do que faz, principalmente, quando não representa os interesses do coronel Marau.

 

       O ar fresco da noite aberta se espalhava na escuridão. O mormaço cedera ao clima de primavera, e os policiais preferiram ficar por ali, na calçada em frente à delegacia, fumando e olhando o movimento da rua.

 

       O delegado jogou no chão a guimba do cigarro e esmagou-a com a sola da bota.

 

       − O que sabemos sobre Teobaldo Vilela? – perguntou a Lucas, como quem não queria nada.

 

       Lucas deu de ombros, desinteressado, e respondeu:

 

       − Sei que é um velhote, tem uma imobiliária mal das pernas e, como os das antigas falam, mantém uma amizade colorida com a avó da Karen. Parece que chegou à cidade faz uma porrada de tempo. Por que, chefe?

 

       − Meu rim esquerdo diz que esse camarada é um agenciador.

 

       − Mas não de imóveis, claro. – completou a ideia Lucas e continuou: − Temos, então, um corretor da morte em Matarana. O pessoal de Santa Fé prendeu um desses no mês passado. O cara usava boleto bancário para os clientes fazerem o pagamento. – riu e prosseguiu com o raciocínio: − Isso é que se chama serviço terceirizado de matar! Mas, sem brincadeira, por que temos um agenciador se o que não falta na cidade é pistoleiro?

 

       − Pois é. – respondeu o delegado, pensativo.

 

       − A encomenda deve ser valiosa. – constatou o jovem policial.

 

       − Sim, e o agenciador fará a ponte entre o mandante e o executor. Não será ele quem sujará as mãos. É provável que contrate alguém de fora e isso significa que a futura vítima é bem relacionada. – analisou Rodrigo, os olhos varrendo a iluminação vacilante da rua.

 

       − Só pode ser coisa do Marau.

 

       − Acho que desta vez ele está limpo, Lucas. – cogitou, esfregando a mão no queixo.

 

       Lucas fitou o delegado e sorriu. Podia quase ver os pensamentos do chefe rolando de um lado para o outro como bolas de bilhar.

 

       − Quem mais, além do Dolejal e do coronel, teria cacife e interesse em bancar um corretor?

 

       − Alguém que deseja muito a morte de alguém. – disse Rodrigo, enganchando os polegares no cós do jeans.

 

       − Quem? – insistiu, mais para si mesmo. No fundo, não apostava muito naquele velhinho esquisito como um intermediário de assassinatos.

 

       − Há muitas pontas ainda para se amarrar. Quem de fato é o agenciador? Por que está aqui? Quem o contratou? E quando agirá?

 

       − Acho que está na hora de conversarmos com o velhinho caspento. – constatou Lucas, cuspindo longe a saliva.

 

       − Amanhã você vai até a imobiliária e tenta juntar os fios.  – bocejou alto e despediu-se: − Daqui a pouco, volto para liberá-los.

 

       Acenou de longe para a escrivã, à porta, degustando um pedaço de pizza. Ela e Lucas fariam o plantão na delegacia, pelo menos, até a hora de Rodrigo rendê-los. Abriu a porta da picape e ouviu chamarem-no.

 

       − Está indo para casa, chefe? – gritou Adele.

 

       Voltou-se, o corpo entre a camionete e a porta:

 

       − Hã?,vou pintar um pouco e depois me enfiar na cama. Estou morto.

 

       − Pintar?

 

       − É, Adele, resolvi dar uma de Renoir. Em breve, serão convidados para minha exposição. – brincou, sentando-se diante do volante e puxando a porta.

 

       Talvez a próxima exposição fosse a do seu corpo dentro de um caixão. A verdade era que suspeitava da aproximação repentina do senhor Vilela para os lados da família de Karen. Curvou o canto dos lábios para baixo num ricto de amargura. Podia estar errado, e Vilela ser apenas o que aparentava ser: inofensivo e cheio de caspa. O problema era esse, ele parecia inofensivo demais. Ou será que o fato de outro homem se intrometer com a família de Karen irritava-o ao ponto de suspeitar do advogado? Teria ciúme dele? E mais: queria mesmo que Karen e sua família precisassem dele e da sua proteção como delegado e homem? Queria mesmo que Karen precisasse dele?

 

       É, ele queria.

 

       A construção de tijolo à vista fora bancada por um catarinense que não vivia em Matarana. Ele investira o dinheiro da rede de bingos, ilegais e subterrâneos, no salão onde somente tocava música gringa. A pista de dança com direito a um esboço de palco resumia-se à mesa de som do rapaz que entendia de country music, na maior parte do tempo. Nas noites de lua cheia, ele arriscava algo francês e sutil. Era vaiado. Voltava à atmosfera do Kentucky e jurava a si mesmo retorno a Curitiba. Gente estúpida, de mente estreita, ele pensava, imitando os caipiras americanos e se achando fashion. O pior era quando uma turma de universitários da capital, em férias na fazenda dos pais, inventava de dançar quadrilha à moda Kings of Rodeo. E o melhor era quando mulheres de cabelos longos e vermelhos dançavam diante da mesa do som completamente envolvidas pela música. Do jeitinho exato que a irmã do delegado fazia naquele momento. Mãos na cintura, erguendo o pé direito para trás, deslocando o quadril e a vez do pé esquerdo. Uma graça, pensou o paranaense com ar sonhador.

 

       Quando Valéria retornou à mesa, encontrou Nova e Karen conversando como amigas de anos.  Nova, diante da caneca de chope, fazia planos para uma imediata mudança de vida. Desenhava na toalha xadrez, branca e azul, com o palito de dentes, uma casinha sem chão. E boa parte do que lhe escapava dos lábios tinha chance de não vingar. Na outra ponta da mesa, uma Karen serena e sorridente, ouvia o drama sentimental que tinha tudo, tudo mesmo, para ser resolvido em dois toques. Bastava apenas que o casal de amigos desse atenção aos seus instintos. Algo básico como o que se ensinava na catequese: Crescer e se multiplicar.

 

       Os pensamentos da mulher foram cortados abruptamente ao desviar os olhos da morena para a ruiva que se aproximava, transpirando, olhos reluzentes na iluminação de boate do salão country.

 

       – O vaqueiro tinha uma pegada tão forte que minhas trompas esgoelaram o útero! – declarou com os olhos arregalados e satisfeitos, enquanto sentava-se pesadamente na cadeira de madeira com assento estofado da cor da toalha, e continuou: –Esses caras enlaçam a gente como fazem com os bezerros.

 

       – É que alguns meninos confundem macheza com força física. –filosofou Karen, entre um gole e outro de cerveja.

 

       Podia se dizer que Valéria afundou na cadeira, mas o móvel era duro. Ajeitando a coluna no encosto, ela olhou para Nova e, depois, para Karen e disse:

 

       – A texana já se instalou na Arco Verde. E aí, vai deixar barato?

 

       Nova chutou levemente a perna da irmã do delegado por baixo da mesa. Cacete! Pra quê cutucar a onça?,perguntou com os olhos.

 

       – Que faça bom proveito.  – ela disse.

 

       – Você está bem melhor sem ele, Karen. – Nova sorriu com simpatia, tentando consertar a mancada da outra.

 

       – Sério? E quando foi que eu estive com ele? – ela emborcou o resto da bebida numa golada só e levantando-se, falou: – Amiga, já dizia o sábio: nessa estrada só quem pode me seguir sou eu.

 

       As mulheres à mesa ficaram durante um tempo em silêncio, enquanto Karen seguia em direção ao banheiro. Até que Nova não se aguentou e repreendeu Valéria:

 

       – Qual é o seu problema?

 

       – Nenhum, ora, só acho que esse tipo de mulher suja o movimento.

 

       – Que movimento?

 

       – Sei lá, não gosto dessas ‘liberadas’ que transam como homens, a gente não é assim, mulher não é assim, não. – reclamou Valéria, sorvendo o terceiro copo de caipirinha.

 

       – É mesmo? Mulher é como? – indagou Nova com ligeiro tom de deboche.

 

       – Como você e eu, cacete!

 

       – Como você e eu?

 

       – Sim, mana, a gente se preserva, se valoriza.

 

       – Que merda.

 

       – Que foi?

 

       – Estou louca para dar.

 

       Valéria desandou a rir e falou:

 

       – Dá, minha filha, a gente se preserva, se valoriza, a gente pode dá pra qualquer um.

 

       – Se ajeita aí, Val, o seu maninho acabou de chegar e não vai gostar nadinha de lhe ver chumbada.

 

       – Dá pra ele, Nova, dá! – exclamou Valéria, às gargalhadas. – Ai, Cristo, vou me mijar!

 

       O caubói da lei contornou os casais que dançavam no meio do salão, aproximando-se com um leve sorriso no rosto ao ver as garotas à mesa, desacompanhadas. Sem cerimônia, puxou a cadeira onde Karen, até poucos minutos ocupava, e sentou-se suspirando cansado.

 

       – Querem uma carona de volta para casa?

 

       Valéria gargalhou batendo de forma amistosa no ombro do irmão.

 

       – Mal chegamos, querido.

 

       Rodrigo lançou um olhar intrigado à Nova e comentou:

 

       – Mas pelo nível do tanque já está bem abastecida, não?

 

       – A Val bebe vodca como água, fazer o quê?  – disse Nova num tom divertido e completou com ar malicioso: – Sabia que ela quer me empurrar para você?

 

       Ele sorriu sem timidez e fez um sinal para Veridiana, sem deixar a interrogação passar batida:

 

       – E o que faríamos com meu amigo Cris?

 

       Nova riu, divertindo-se com a ideia de sedução:

 

       – Acho que isso abriria os olhos do doutor.

 

       – É mesmo? – o delegado voltou sua atenção à mulher a sua frente e encarou-a fundo nos olhos: – Significa então que dormirá comigo hoje?

 

       Valéria virou o copo com a bebida sobre a toalha fazendo com que Nova se erguesse rapidamente para não ter a roupa molhada.

 

       – Gente, desculpa, mas esse copo estava escorregadio feito sabão. – voltou-se para Veridiana e disse: – Amoreco, porra, tem de lavar melhor a louça.

 

       – Tem esponja e sabão na cozinha, a-mo-re-co – retrucou a amiga da vó Ninita.

 

       – Acalme-se, Veridiana, a Val não quis ofendê-la. – abrandou os ânimos Rodrigo e, voltando-se para Nova, estendeu-lhe a mão e falou, agora, sem sorrir: – Vamos conversar enquanto dançamos, moça.

 

       Ele a conduziu para a pista, por entre os casais que seguiam Kenny Rogers e Sheena Easton na balada romântica. Puxou-a firme para si, incitando os primeiros passos com a segurança de quem gostava de dançar. Uma mão ao redor da cintura da mulher enquanto a outra, com os dedos entrelaçados nos dela. Dançavam devagar, passos curtos e cadenciados. Nova deixava-se levar pelo parceiro que, vez por outra, dobrava levemente os joelhos e a apertava-a contra si. E ela então sentia coisas que havia muito tempo lhe eram negadas.

 

       – A Val me falou sobre o plano adolescente de provocar ciúme no Cris. – falou baixinho, a boca junto à orelha dela, a voz rouca e grave.

 

       Ela não podia falar. O corpo poderia dizer o que a mente tentava racionalizar. Por isso, devido ao silêncio, o delegado a jogou para frente e a trouxe de volta para os seus braços. Havia um ar de divertimento nos olhos sérios.

 

       – Por que está tão quieta?

 

       – Nada, só não consigo dançar e pensar ao mesmo tempo. – disse, com mau humor.

 

       – Pobre garota de um neurônio só. – debochou, apertando-a firme ao ponto de fazê-la erguer a cabeça para encará-lo, interrogativa: – E, agora, o que foi? Acho que depois dessa dança, o pessoal poderá tranquilamente espalhar pela cidade que o delegado tem um caso com a amiga do médico. Não é o que você quer? – alçou a sobrancelha com ironia.

 

       – Para falar a verdade, não.

 

       – Aceite o que a vida pode lhe oferecer, Nova.

 

       – A vida quem faz somos nós.

 

       – Que lindo, leu a pérola na embalagem de um bombom?

 

       – É estranho que um eterno viúvo deboche dos sentimentos dos outros. – considerou com escárnio.

 

       – Primeiro, não sou um eterno viúvo. – enfatizou a última palavra arqueando as sobrancelhas e continuou, pacientemente: – Segundo, em hipótese alguma estou menosprezando seus sentimentos, mas devo considerar os do meu amigo também. E, de certa forma, ele tem razão. O Cris é um cara ponderado e sensato, e devo tirar o chapéu para ele, o camarada está abrindo mão de... muitas coisas para manter o principal.

 

       – Quê muitas coisas, Rodrigo? Me diz! – provocou-o, enfiando os olhos nos dele e controlando a vontade de chorar.

 

       – O que poderia ter de você, é disso que falo.

 

       Ela riu com amargura.

 

       – Sou apenas uma mulher obcecada por um amor impossível.

 

       – Não, você é durona, livre, impetuosa. – ele parou de dançar e tomou-lhe o rosto entre as mãos, encarando-a: – Você é capaz de jogar um homem na lona apenas com um olhar. – ele riu e emendou, soltando-a e pondo as mãos na cintura: – Falei alguma coisa com sentido?

 

       – Sim, Rodrigo, mas não sou essa pessoa que disse.

 

       Ele avaliou devagar o que Nova falou e, antes que esboçasse um contra-argumento, ouviu:

 

       – Acabou de descrever a Karen.

 

       – Não, falei de você. – disse, num fiapo de voz.

 

       – É mesmo? E desde quando alguém tem medo de mim? – desafiou-o com um sorriso zombeteiro: – Está falando dos seus sentimentos pela Karen, delegado, e é você quem tem medo dela, é você quem pode cair na lona por causa dela.

 

       – Está adorando brincar de psicóloga de araque, não? – fez troça e pegou-a pela mão, levando-a de volta à mesa, onde Val espetava dez fritas no palito: – É engraçado como você, a Val e a Sabrina sabem mais sobre a minha vida do que eu mesmo.

 

       – Todo mundo sabe que tem uma queda pela Karen. – insistiu Nova, puxando-o pela mão e fazendo-o se virar para ela.

 

       – Defendo e protejo a Karen como faço com você e com todos que precisam de mim. Acho que é esse o papel da polícia, ou estou enganado? – arqueou a sobrancelha com ironia.

 

       – Mas dá uma atenção especial a ela, vai negar? – indagou, sorrindo amplamente.

 

       – Atenção especial? Não seja injusta, Karen Monteiro, eu prendi um camarada por sua causa, o Pedro, lembra? – apontou-lhe o dedo em riste, ainda sorrindo mas ligeiramente corado.

 

       – Karen Monteiro? – Nova espicaçou com malícia. – Humm, ato falho dos bons, hein! Ai, ai, ai, Rodrigo, você está mais ferrado do que eu e o Cris pensávamos.

 

       – Falei Nova Monteiro, Nova, ouviu direito agora?

 

       Ele afastou a cadeira para ela sentar e, em seguida, olhou com severidade para a irmã:

 

       – Olha só, sou um homem adulto, com responsabilidades, ok? Represento a lei aqui nessa merda de cidade e não quero que me envolva em planinhos de ciúme com suas comadres. – apontou-lhe o dedo.

 

       – Engraçado, se importa com seu amigo Cris, mas está a fim de sacanear o seu amigo Thales. – disse Nova, ajeitando os canudinhos do seu suco natural e controlando a vontade de rir.

 

       – O que? O que, meu Deus? Não me diga, Rodrigo, que você se meteu com a Karen? – quase berrou Valéria com olhar feroz.

 

       – Quem meteu o quê em mim?

 

       O delegado nem precisou se virar para trás, a fim de saber que a voz acusadora era a de Karen. Olhou para cima e suspirou. Voltou-se, enfim, para ela e atacou:

 

       – Fui ao seu condomínio para pintar e a dona Ninita não abriu a porta, disse que eu não era o delegado, que estava fingindo para entrar e estuprá-la. Por acaso, a única pessoa normal na sua família é o Johnny?

 

      – Ela nunca abre a porta depois das dez, nem para mim. – afirmou Karen, calmamente, sentando-se na cadeira e terminando de beber a cerveja long neck. – O que a torna a melhor porteira da cidade. O alemão, por sua vez, levava umas piranhas para compartilhar o quarto com ele. Sabe como são os homens, não? Por sexo fazem qualquer coisa, até porem a vida em risco.

 

       – É?,os homens? Todos, Karen? Claro que todos, já que a senhora adora generalizar. – disse Rodrigo, debochando, mas revelando os primeiros sinais de irritação. Fitou Val e foi taxativo: – Vamos para casa, você já bebeu demais e eu pego cedo na DP.

 

       – Acha que é a porra do meu dono, é? – indagou ela, rindo muito.

 

       – Certo, terei de ser radical, – dizendo isso, puxou a cadeira e sentou descansadamente, as pernas esticadas e o chapéu empurrado para frente dos olhos. – Vou tirar um cochilo. Quando quiserem ir embora, levo as três para casa.

 

       – Duas, – corrigiu Karen, – vim de carro, amigo.

 

       Ele nem levantou a aba do chapéu para responder:

 

       – Como também está bebendo, voltará comigo na picape.

 

       – É, veremos.

 

       – Quer apostar que vai comigo na picape?

 

       Nova relançou um olhar para Val, que esperava a resposta de Karen, depois, fitou a última com ligeira ansiedade.

 

       – Quer apostar que além de não ir com você na picape, quebro essa garrafa de cerveja na sua cabeça?

 

       Ele abriu um olho e fitou-a, sonolento:

 

       – Quer apostar que se quebrar essa merda na minha cabeça, eu a deixo apodrecer numa cela?

 

       – Quer apostar que para quem enfrenta pistoleiros e latifundiários, a polícia é fichinha?

 

       – Quer apostar que algemada a sua valentia se evapora?

 

       – Quer apostar que está pra nascer um macho que irá me algemar?

 

       Ele sorriu com o canto dos lábios e falou tranquilamente:

 

       – Quer apostar que já nasceu e está sentado do seu lado?

 

       Ela nem se abalou.

 

       – Quer apostar que suas ameaças me excitam mais do que me assustam?

 

       – Quer apostar que eu estou só começando?

 

       Nesse ponto, Karen parou e emborcou mais um pouco de cerveja. Nova arregalou os olhos e viu quando Val fez o sinal com o dedo fazendo um corte invisível no próprio pescoço. Rodrigo baixou, enfim, a aba do chapéu até esconder completamente o rosto e deitou a cabeça contra a parede. Era estranho e praticamente impossível, mas ele dormiu sentado.

 

       – Estou esperando. O que quer comigo, Franco?

 

       – Por que não estou na lista?

 

       Dolejal franziu o cenho, intrigado.

 

       – Que lista?

 

       – Dos amantes da Karen, essa lista.  – respondeu, incisivo.

 

       O outro se escorou na cadeira, relaxadamente, e ficou balançando a caneta entre os dedos.

 

       – Quem falou sobre tal lista? – perguntou, desconfiado.

 

       – A própria.

 

       – A lista falou sobre a lista? – ironizou Dolejal, arqueando a sobrancelha.

 

       Franco fechou a cara e crispou os maxilares.

 

       – Não, a Karen me disse sobre a existência de uma lista com o nome dos amantes dela que foram expulsos da cidade.

 

       – Você transou com a Karen enquanto ela estava sob minha proteção? – perguntou sem emoção.

 

       – Sabe que sim. – respondeu com petulância e acrescentou sem um pingo de sensatez: – O que quero saber é por que não estou na lista. Por que não fez nada contra mim?

 

       O fazendeiro quase sorriu diante da ansiedade do seu homem-bomba.

 

       – Simples, Franco, você era o único que, para mim, valia mais do que a Karen.  – disse com indiferença e completou: – Expulsei os idiotas para dar um bom recado aos meus inimigos. Essa gente nunca me importou, se quer saber. Explicado?

 

       Franco acreditou na franqueza do patrão.

 

       – Não me arrependo do que fiz. – afirmou, erguendo o queixo.

 

       – Sabe, quando o encontrei à beira da estrada, eu sabia que você tinha potencial. Mas ainda não sabia bem para quê. – Thales parou e mirou o arco antes de soltar a flecha no alvo: – Dizem que filho de meretriz tem sete vidas.

 

       Franco retesou os maxilares.

 

       – Gato tem sete vidas, patrão. – corrigiu, mal descolando os lábios para falar.

 

       – Gato, aliciador, filho de puta, michê, tudo a mesma porcaria, filho. – retrucou impassível e, em seguida, fez um gesto com a mão: – Está dispensado, preciso trabalhar. Leve a sua patroa para algum lugar interessante e demore a voltar. Caso queira, pode comer essa também. Quando foi que não comeu resto, hein, garoto?

 

       Dito isso, baixou cabeça e tornou a se concentrar no notebook à frente.

 

       – Dormiu com a minha mãe?

 

       O fazendeiro desviou o olhar do monitor para o empregado:

 

       – Nunca fiz sexo com uma puta de beira de estrada, se quer saber.

 

       – É, era isso que eu queria saber.

 

       – Satisfeito?

 

       – Bastante.

 

       Quando Franco saiu do escritório teve vontade de quebrar algo ou alguém. Foi para o seu quarto e soqueou a parede até tirar sangue da mão. Depois, agachado no chão, envolveu os joelhos com os braços até parar de tremer de raiva.

 

       Na manhã seguinte, descobriria que o patrão era vingativo. Mendes se tornaria, da noite para o dia, o chefe da segurança e para ele sobraria bancar a babá da jornalista. Franco só pensava em juntar dinheiro e cair fora.

 

       Quando Rodrigo acordou estava sozinho à mesa. Ergueu a aba do chapéu e bocejou, olhando ao redor. Avistou Valéria dançando com o farmacêutico queixudo, e Nova com alguém que ele não reconheceu de imediato. Nenhum sinal de Karen. Levantou-se, cruzou o salão e sem cerimônia parou o casal no meio de um rodopio. Pegou o camarada pelo antebraço e perguntou diretamente:

 

       – Quem é você e onde trabalha?

 

       – Rodrigo, que é isso? – reclamou Nova, ao seu lado.

 

       – Trabalho na agropecuária do seu Paulo, aquela na segunda via, seu delegado.

 

       Segunda via era a segunda avenida, visto que o centro de Matarana era cortado por apenas duas largas avenidas, separadas por um canteiro com gramado e flores. Na estação da estiagem, a grama rala era amarelada e as flores, meros galhos retorcidos. Todavia, a razão de fazê-lo tirar o traseiro da cadeira fora plenamente compensada, conhecia a agropecuária do Paulo e agora se lembrava da cara do sujeitinho à sua frente.

 

       – Ok, está liberado para dançar com a Nova.

 

       – Obrigado, senhor. – disse ele, envergonhado, parecendo querer desaparecer do salão country para sempre.

 

       – Isso é totalmente arbitrário, Rodrigo. – reclamou Nova, exasperada.

 

       O delegado baixou a cabeça e cochichou-lhe ao ouvido:

 

       – Esqueceu-se da armação do coronel para encobrir o Pedro, e o fato de que você tem de andar pela cidade com guarda-costas? Todo o cuidado é pouco, minha amiga, esse dançarino tosco aí pode ser outro tipo de emboscada.

 

       – Até parece. Acho que chegou a hora de você se aposentar da polícia e começar a carreira de escritor de histórias policiais.

 

       – Olha, Nova, pode ficar irritadinha à vontade, só estou fazendo o meu trabalho. E, agora, desembucha, onde está a Karen?

 

       – Se pegando com algum caubói. – disse, dando de ombros.

 

       Rodrigo engoliu em seco e olhou com raiva para os casais na pista.

 

       – Sabe os Três Mosqueteiros?

 

       – Hã?

 

       – Em Matarana, temos as três mosqueteiras, mas do mal, as três mosqueteiras tresloucadas! – exclamou Rodrigo, impaciente.

 

       Nova riu ao vê-lo se afastar irritado.

 

       A última coisa que ele faria era se atracar com outro cara por causa de Karen. Encaminhou-se para a longa sacada que contornava o andar superior do salão country. Tirou um cigarro da carteira, riscou o fósforo e fez a magia do fogo acontecer. A intenção era fumar e se acalmar. Ficar de olho em três mulheres não era tarefa fácil, ainda mais quando elas se consideravam aptas para viverem sem a proteção da polícia, dos amigos e até de Deus. Às vezes, sentia falta do tempo em que se preocupava apenas com Jasmine. Depois de sua morte e a realidade concreta da brevidade e fragilidade da existência, ele se tornara, de certa forma, controlador. Temia perder mais pessoas pelo caminho. Como aquela que também fumava apoiada com os antebraços na amurada de madeira, sozinha, fitando o céu sem estrelas.

 

       – Jasmine adorava vir aqui e dançar. – ela disse, quando o viu aproximar-se.

 

       – É verdade.

 

       – Por outro lado, ela detestava Matarana.

 

       – Outra verdade. – concordou, tragando fundo o cigarro. – Seis meses antes de morrer, eu havia pedido transferência para Santa Fé. – deu de ombros e continuou: – Acho que minha transferência se perdeu na papelada. De que adianta, agora, não é?

 

       – Podia refazer sua vida sem tantas lembranças. – considerou Karen tentando confortá-lo.

 

       – Não sou do tipo que foge das lembranças. Quando a vida está dura demais, me refugio nelas para não me embrutecer também. – disse com simplicidade.

 

       Karen prestou a atenção nele, no rosto entristecido, na voz abafada e no corpo apoiado contra a amurada.

 

       – A Val sabe que a Jasmine havia pedido o divórcio na semana em que morreu?

 

       – Não, ninguém sabe. – disse taxativo.

 

       – Ela não entende bem a nossa situação.

 

       – Que situação, Karen?

 

       – A nossa amizade, quero dizer. A Val acha que estraguei alguma coisa entre você e a Jasmine. – disse sem jeito.

 

       – Eu e Jasmine nos amamos até onde deu, no máximo que pudemos e na limitação de nossas vidas aqui em Matarana. Desde que chegamos, ela queria voltar para o sul e isso detonou a nossa relação. Quando você apareceu, amenizou os efeitos nocivos da cidade. O melhor que tivemos, eu e a Jas, foi a sua amizade. – falou, incisivo.

 

       – E é por causa dela que me enche tanto o saco? – brincou.

 

       – Também. – sorriu.

 

       Ela esmagou a bagana do cigarro com a sola da bota e disse com naturalidade:

 

       – Que tal a sua solidão fazer companhia a minha solidão?

 

       Ele pensou por alguns minutos e falou baixo, como se contrariasse a própria natureza:

 

       – Sei das suas regras, dos três encontros e tchau. Se eu entrar nessa, a minha solidão sentirá falta da sua solidão e se arrependerá de ter se metido com ela. Vamos pular essa parte da vida e seguir em frente, ok? Acho que dinamite e nitroglicerina combinam até a hora de uma delas explodir.

 

       – Isso é um não?

 

       – É, Karen, desculpe.  – afirmou, sem desviar seus olhos dos dela.

 

       – Certo, claro, você não é obrigado a se sentir atraído por mim.

 

       – Não é essa questão. – ele ergueu-se e ensaiou bater em retirada: – É justamente o contrário. Não sou homem para três encontros.

 

       – Não, não é.

 

       Rodrigo parou diante da firmeza da voz dela.

 

       – Quer que eu lhe peça em casamento? – ela brincou.

 

       – Seria um bom começo. – respondeu ele com um esboço de sorriso: – Mas podemos começar com um namoro, algo básico.

 

       Karen franziu o cenho.

 

       – O quê? Voltamos ao século XIX?

 

       – Sou um homem das antigas. Por que acha que uso chapéu e banco o xerife? – indagou, sorrindo com timidez. Em seguida, tirou o chapéu, pegou a mão dela e perguntou, encarando-a sem desviar: – Quer namorar comigo, Karen Lisboa?

 

       – Ai, Rodrigo, não complica tudo, vai. – disse Karen na defensiva.

 

       – Não vejo complicação alguma num pedido de namoro. Que eu saiba não é uma transação econômica internacional envolvendo petroleiros árabes.

 

       – Está se irritando, e eu não gosto nada disso. Me pede em namoro e, depois, fica irritadinho.

 

       – Karen, por favor, estou calmo. O problema é que sei aonde quer chegar com essa sua conversinha e não serei enrolado.

 

       Ela suspirou resignada e falou:

 

       – Eu propus que juntássemos nossas solidões numa noite de sexo, só isso. Desculpe se dei a entender mais do que realmente posso oferecer.

 

       – Você pode mais, Karen, mas não quer.

 

       – Talvez tenha razão. – deu de ombros e procurou se afastar. – Fui picada por abelhas, meu caro, agora fica difícil degustar o mel, entende?

 

       – Entendo. – disse, contrariado.

 

       – Gosto de você, caubói, muito.

 

       – Esta assoprando a ferida? – debochou.

 

       Ela riu.

 

       – Deixa de ser bobo, dentro do meu coração, que é bem pequeno por sinal, estão o meu filhote, minha vó, você e o meu cavalo. Sabia? Que honra, hein!

 

       Rodrigo puxou-a contra a sua boca e o beijo durou alguns minutos até soltarem-se ofegantes.

 

       – Obrigado por alugar um pedaço do seu coração, dona Karen, mas saiba que irei comprá-lo em breve. – prometeu, sorrindo com charme.

 

       Ela não duvidava nadinha.

 

       Mais tarde, ele esperou Nova entrar em casa para partir. Verificou a picape de Mendes do outro lado da rua e piscou os faróis, sinalizando para ele, e sendo retribuído por outra piscada. A poucos metros dali ficava a sua casa e o condomínio de Karen. Na bifurcação da estrada teria que decidir se deixava Val ou Karen em casa. Não era uma simples escolha de ordem de entrega, havia nisto uma decisão ainda maior. Ela estava colada ao lado dele, coxa com coxa.

 

       – O convite ainda está de pé? – perguntou sem se virar.

 

       – Sim. – foi tudo o que ela disse.

 

       Ele endereçou um rápido olhar para a irmã, que dormia com a cabeça contra o vidro.

 

       – Tenho de deixar primeiro Aramis em casa.

 

       – Tudo bem. – ela falou baixinho.

 

       – Teremos pouco tempo. – lamentou.

 

       Ela sorriu e falou:

 

       – Humm, espero que suas costas não estejam ardidas.

 

       – O que planejo fazer com você não envolve as minhas costas. – sugeriu com malícia e completou: – Não serei eu que ficarei do avesso.

 

       Karen baixou a cabeça e devolveu com um sorriso jovial:

 

       – É o que pensa.

 

       Ao chegar, contornou a picape e ajudou Valéria a entrar em casa. Teve de segurá-la pela cintura e, por pouco, não a carregou nos braços. Ela reclamou do salto da sandália, do calor da noite, dos pernilongos e de não ter dinheiro para uma lipo. Rodrigo apenas concordava com tudo, ansioso em voltar e estar com a mulher que o esperava.

 

       – Está tudo bem, Val?

 

       – Claro, por quê?

 

       – Vou passar a noite fora.

 

       – Certo. – disse ela, enquanto arrancava dos pés as sandálias e se atirava no sofá: – Se Deus quiser, encontro um soft pornô para assistir. – disse, enquanto apertava os botões do controle remoto da tevê.

 

       Ele despediu-se e fechou a porta atrás de si. Alcançou a picape, abriu a porta e entrou. Sentou-se diante do volante e suspirou profundamente.

 

       – Seguirei suas regras, moça. Sei que não leva seus, digamos...amigos para casa. Então, para qual hotel prefere ir? Sei que frequenta um perto de Santa Fé. Quer ir para lá?

 

       – Continua...

 

       – O quê? – perguntou, confuso.

 

       – Continua a falar o que sabe sobre minhas aventuras eróticas. – disse num tom azedo. – Parece que andou me investigando como um cão farejador da polícia.

 

       – É o que sou, não? – falou com bom humor e continuou, agora, levando a situação a sério: – Mas não a investiguei, Karen. Todo mundo sabe sobre os seus hábitos. Discrição nunca foi o seu forte.

 

       Ela fez uma careta e comentou:

 

       – Cidade pequena é foda.

 

       Quando a picape passou em frente ao condomínio, Rodrigo diminuiu a velocidade e observou ao redor:

 

       – Está tudo tranquilo, pelo visto.

 

       – É, devem estar dormindo. Meus inquilinos são pessoas legais, sabe, pelo menos quando pagam. Ficaremos por aqui, nada de hotel.

 

       – Tem certeza?

 

       – Tenho, Rodrigo. – disse com segurança e, depois, em tom de brincadeira completou: – Além do mais, quando você partir, poderei ficar cheirando o lençol onde deitou.

 

       – Gosto desse seu lado romântico, Karen.

 

       – Ah, é? Que mais gosta em mim?

 

       – Quando não usa maquiagem, por exemplo.

 

       – Machista.

 

       – E quando está dormindo.

 

       Cris entrou no quarto e acendeu a luz do abajur no criado-mudo ao lado da cama. A frágil luz revelou um rosto bonito devastado pelo choro. Pálpebras inchadas e nariz avermelhado. Ela sofria. Ele tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. Temia acordá-la e ser pego em flagrante delito de adoração. Beijou-lhe a ponta do nariz e desceu vagarosamente para a boca. Um toque tão suave quanto um roçar de um lenço de seda. Provou mais uma vez o sabor e a textura dos lábios dela. Afastou-se antes que fosse tarde demais. A possibilidade de uma ruptura medíocre seria substituída pelas recordações felizes e saudáveis. Trocaria a mulher pela pessoa, a vida a dois pela amizade eterna, o êxtase sexual pelo amor constante. Mesmo que para isso ele sofresse o diabo, como, agora, vendo-a dormir e prestes a partir. Deixou que as lágrimas deslizassem pelo seu rosto. Preferia sofrer por deixá-la ir embora e, assim, permitir que enfim fosse feliz a oferecer o que não foi capaz de manter com ninguém. Ele era incompleto e não sabia como manter as pessoas dentro da sua vida. Com certeza, com o passar do tempo, as insatisfações de Nova voltariam por um motivo ou outro. E o que seria deles? Da vida deles? Acusações e ressentimento.

 

        A única forma de proteger o amor era não vivê-lo completamente. E com esse último pensamento, facilitou as coisas para ela, deixando o celular com as mensagens de Janete à sua disposição. Fingindo que esquecera o aparelho e abrindo os olhos da amiga para o seu caso antigo e extinto, ele saiu de casa e voltou para o hospital.

 

       Procurou não fazer barulho, uma vez que a casa estava imersa num silêncio incomum. À noite, vó Ninita deixava a televisão ligada até pegar no sono e Johnny conectava-se ao computador, com os fones de ouvido a mil, podia-se ouvir o ruído vibrante de um rock pesado. Uma delicada rotina que acalmava Karen durante os dias tormentosos. E era assim que manteria as frágeis estruturas da sua vida, no cerrado, debaixo do céu branco e grotesco. Mesmo que ao seu lado, na profundidade da madrugada, o delegado da cidade deslizasse as pontas dos dedos pelas suas costas nuas e beijasse cada vértebra de sua coluna, esfregando delicadamente o cavanhaque ralo e macio. E ela apenas se deixasse levar pelas ondas de torpor que, minutos atrás, nada mais eram que tsunamis selvagens varrendo-lhe da mente a lucidez.

 

       – Aonde pensa que vai? – ele indagou, sem deixar de lhe beijar atrás da orelha, e era mais um gemido que uma fala, um arrastar manhoso de vogais e consoantes.

 

       – Não está com sede? – ela conseguiu falar enquanto soltava o ar dos pulmões aos poucos, sentindo cada terminação nervosa pulsando em reflexo ao toque do homem.

 

       Ouviu-o rir baixinho.

 

       – Vem cá, Karen, me beija para matar a minha sede. – pediu.

 

       Ela se virou para comentar algo espirituoso, mas foi surpreendida pela boca que capturou a sua, dois lábios separando os seus, a língua devastando e sugando, trazendo e querendo. Braços enroscando-se e corpos se modelando. Surpreendida também pela sensação que ameaçava transpor sua limitação e se transformar em sentimento, Karen tomou o rosto de Rodrigo entre as mãos. Ofegante, afastou-se para encará-lo diretamente. E ele retribuiu o olhar persistente e demorado, um olhar que tentava arrancar verdades e soldar na alma a vontade. Ela queria dizer a ele coisas bonitas e leves, floridas e românticas. Mas as espartanas tinham medo de serem felizes demais. Temiam a punição de alguma divindade invejosa. Preferiu romper o momento, enfiando a ponta da agulha na bolha de sabão.

 

       Ela disse ao afastar-se:

 

       – Preciso beber algo, senão acabarei desidratando.

 

      Ele ficou na cama, apoiado nos cotovelos, o lençol cobrindo-lhe a cintura, a suave claridade da noite caída sobre parte do tórax, parte do abdômen. No rosto, um leve sorriso.

 

       Diante da janela da cozinha, Karen sorveu o conteúdo da garrafinha de água mineral. Observou que as lâmpadas dos alpendres dos bangalôs, todas, estavam desligadas. Franziu o cenho, intrigada. Que uma ou outra queimasse era natural. Às vezes, Alemão tinha de repô-las e descontar o valor na taxa do condomínio. Entretanto, todas as lâmpadas queimadas era um tanto estranho.

 

       Depositou a garrafa sobre o balcão de madeira e saiu para averiguar a situação. Com o condomínio às escuras, a entrada de bandidos ou animais se tornava ainda mais fácil, uma vez que o zelador demitira-se. Desde que a notícia se espalhara feito rastilho de pólvora, os marginais já sabiam que os bangalôs à beira do Rio Verde eram alvos vulneráveis. Como se antes, quando o zelador enchia a cara e fingia vigiar a portaria não o fosse, considerou Karen, suspirando e avançando a passos largos em direção ao bangalô que se localizava no lado oposto da piscina.

 

       Imaginava se os inquilinos haviam percebido a escuridão que os cercavam. Não podia diretamente culpá-los. Afinal, ela mesma só observara o incidente porque acordara àquela hora da madrugada com sede, após ter feito amor – como Rodrigo fizera questão de nomear o ato sexual entre ambos – por devastadoras três horas. O último pensamento fê-la sorrir, aquele tipo de sorriso bobo que nascia no rosto sem autorização explícita do cérebro. Ele era bom, oh, como ele era bom.

 

       Subiu os três degraus e parou em frente ao bangalô da garota que trabalhava numa loja de brinquedos. Ajustou o robe ao corpo, ficou na ponta dos pés e rosqueou a lâmpada para retirá-la. No segundo movimento, a luz se fez. Por um segundo ou dois, Karen ficou imóvel olhando para a lâmpada acesa à espera de uma brilhante ideia.

 

       Olhou ao redor, a cara fechada e uma ruga funda sulcando-lhe a testa. Mordeu o lábio inferior sentindo o suco gástrico descendo quente no estômago.  Nem precisaria averiguar o fato nos demais bangalôs. Alguém a espreitava na escuridão. Era incrível como a adrenalina coçava debaixo da pele, dilatando veias e fazendo com que ela aspirasse no ar o cheiro do seu predador. E não era bom, nem um pouco bom. Voltou o olhar para onde morava, a porta da cozinha encostada. No quarto, debaixo da cama, o taco de beisebol; em cima, um policial treinado e armado. Na segunda gaveta da cômoda, junto com suas calcinhas, o .38. Dentro do pote plástico escrito “Candies”, na estante da sala, a munição do revólver. Imagens rápidas relampejavam-lhe na mente. Mas ela sabia que não teria tempo para se defender com qualquer arma que fosse. Na têmpora esquerda, colada à sua pele, o cano de uma automática.

 

       – Podemos fazer a coisa de dois jeitos, dona Karen, com escândalo ou sem escândalo. Do primeiro jeito, a senhora acorda todo mundo e envolve gente inocente na situação. Acho que não quer ver o seu filho ser machucado, não é? Mas, do segundo jeito, a senhora me acompanha até a picape, troca de roupa e vai comigo até a capital. De lá, pegamos um avião para São Paulo. Está tudo prontinho, o patrão cuidou de tudo. A senhora até ganhou um terreninho em Presidente Prudente para plantar seja lá o que for. Depois, levamos o guri e a velhota. Agora, seja boazinha e me acompanhe sem dar um pio.

 

       Regra básica da vítima em apuros: não se mexer.

 

       – Por que você, Mendes? Onde está o Franco?

 

       Ele riu, o mais detestável capanga de Dolejal. O que era vantajoso para Karen, uma vez que o mais detestável não era necessariamente o mais perigoso.

 

       – Acredita que ele peitou o patrão? Guri idiota, ainda vira guisado de segunda. – falou, rindo baixinho.

 

       Franco era o mais perigoso.

 

       – Você adoraria acabar com ele, não é?

 

       – Por certo me tornaria o herói da cidade.

 

       – E por que não tenta? – perguntou, sem se importar com a resposta, precisava ganhar tempo para pensar.

 

       Se fosse Franco, por mais instável que fosse, não tinha problemas em relação ao ego, não se sentia inferior como o pobre diabo ao seu lado. Mendes era o típico capanga sem moral, insignificante, figurante de terceira classe, mesmo entre todos os pistoleiros e capangas de Matarana. Ele era malvisto por ser um “garganta”, ou seja, mais falava do que fazia. Entretanto, um dia, para calar os demais, ele teria de fazer. Mas não seria hoje nem com ela.

 

       – Franco está morto, só falta enterrá-lo. Agora, chega de papo e vem comigo.

 

       – Não.

 

       – Eu sabia que não seria fácil. – murmurou, contrariado, e com ligeiro tom de tédio.

 

       Mendes desferiu um soco centímetros abaixo da têmpora de Karen.

 

       Quando a noite era curta tudo acontecia mais rápido.Acordou de um sono com dor. Aturdida, recuperou aos poucos a consciência. A cabeça contra o vidro fechado da picape, a dor no maxilar. Ao lado, dirigindo com os olhos fixos na estrada federal, o homem que cheirava a suor morno. Ele tinha todo o aspecto daqueles condenados à segunda divisão mas que, num dado instante de suas vidas, punham na cabeça a liderança da divisão principal. Procurou não se mover, varrendo com os olhos o painel à sua frente. O que poderia usar como arma? Com um troglodita palavras não funcionavam. Argumentos ou pressão emocional atingiam apenas os civilizados. E era isso que Karen não entendia. Por que Mendes, e não Franco? O pistoleiro frio, inteligente e dedicado ao patrão. Por que Dolejal enviara o vira-lata da fazenda, o mais chulo deles?

 

       Ele virou a cabeça em sua direção e falou:

 

       – Pensa que me engana, sei que está tramando coisas dentro dessa sua cabeça de vadia. – voltou a olhar para a estrada, reduziu a velocidade e emendou: – Abre a sacola aí e veste estas roupas. Temos um bom pedaço de estrada para vencer até a próxima parada. Não sou o Franco, viu? Se pensa que me importo que esteja pelada debaixo desse robe, se enganou.

 

       – Por que, Mendes, prefere homem?

 

       Como resposta teve uma mecha do cabelo, da parte detrás da cabeça, puxada até quase encostar a orelha no banco. Gemeu alto sentindo as lágrimas nos olhos.

 

       – É por isso que estou no lugar do garoto, por causa das suas artimanhas, piranha.

 

       Karen esfregou a cabeça, calculando a extensão de seus ferimentos caso pulasse da picape a 120 por hora. Que se danasse, era isso que faria. Pegou as roupas da sacola.

 

       – Sabe que pode ser preso por sequestro?

 

       – Não pedi resgate. – disse, fingindo ser inteligente.

 

       – E daí, seu idiota, está me sequestrando, ora.

 

       Mendes estacionou a picape no acostamento e virou-se para ela:

 

       – Preste a atenção no que vou dizer, vaca louca. O patrão mudou de ideia, é isso aí. Mudou de ideia sem mais nem menos. Então, pensei, o cara fraquejou e precisa de ajuda. Quem deveria se importar com o patrãoé o Franco, mas o Franco está cada dia mais louco. O Bronson só faz o trabalho dele, não pensa além, sabe? Não tem tutano. – disse, batendo dois dedos na própria testa e continuou: – Os outros caras, bem, pastam pela fazenda planejando onde gastar o salário depois do dia 15. Mas eu não, eu sou um homem de visão. Não é o que dizem na tevê?,homem de visão? Aí, juntei as ideias e pensei, vou fazer o que o patrão quer sem sujar a barra pra ele, vou livrar a cidade da vaca louca...

 

       – Então não tem Presidente Prudente...

 

       – Não, senhora, não tem nada para além daquela curva. Agora, veste estas roupas, desce da picape comigo e vamos passear no meio do mato.

 

       Karen riu.

 

       – Vai me matar? – perguntou, incrédula.

 

       – Claro que não, eu não. Quando encontrarem o seu corpo, pensarão que foi um de seus casos, afinal estamos a poucos quilômetros de Santa Fé.  Aliás, um de seus amantes não, o amante. Olha só o que tenho aqui. – afastou a jaqueta jeans e tirou do bolso um canivete: – Esse bichinho é do Franco, sabia, né? Pois é, não serei eu quem vai matar você, vai ser o Franco.

 

       Ela olhou para o canivete, hipnotizada. De repente, a familiar vontade de machucar se sobrepôs ao seu instinto de sobrevivência. Queria muito enterrar a ponta e, depois, todo o canivete até o cabo, na barriga de Mendes. Mas o faria devagar, sentindo a carne ceder, perfurando-o, vendo-o suplicar e urinar de medo. Refém desse sentimento tão puro e belo de fúria, ela sorriu como talvez Franco sorrisse diante de suas vítimas ou qualquer outra pessoa que estivesse frente a frente com a morte e resolvesse simplesmente cuspir nela.

 

       – Franco me matou esta noite?

 

       Mendes não queria prolongar a conversa. Ele era limitado nessa área.

 

       – Ele resolveu por conta própria expulsar a senhora e, no meio do caminho, vocês brigaram e ele te furou toda.

 

       – Mas onde está o Franco?

 

       O pistoleiro riu.

 

       – O garoto se acha esperto... Ele tomou uma cachacinha batizada e está dormindo feito um anjo. Caramba!,não acredita que está tudo planejado? Acha mesmo que sou burro, né? Vou te matar e esconder teu corpo. E quando for encontrada com o canivete do Franco, ele será preso. Pensei em tudo, meu bem.

 

       – Thales não me quer morta, você mesmo disse que ele mudou de ideia sobre me expulsar da cidade...

 

       – Chega de papo, desce! Não quero sujar a picape. – ordenou, irritado.

 

       – Espera!,não existe crime perfeito. Os outros caras da fazenda podem ter visto o Franco dormindo ou você mesmo pode ter sido visto indo para o meu condomínio...

 

       – Cala a boca, piranha, não caio nas suas artimanhas, já disse!

 

       Ele a empurrou para fora do veículo. No acostamento, Mendes jogou as roupas em cima dela e apontou-lhe a automática:

 

       – Troca de roupa!

 

       Karen vestiu o jeans por baixo do robe, de olho em Mendes e na arma apontada em sua direção. Retirou o robe e pôs a camiseta de mangas curtas. Pronto, estava vestida para morrer. Tremia tanto que mal conseguia caminhar.

 

       Mendes fez um sinal com a mão para ela seguir adiante, para dentro do mato seco e queimado. Ela obedeceu-lhe. Caminhavam devagar, o capim baixo cedia às pisadas e fazia barulho a cada passo. Quando ouviu o barulho do motor de um caminhão na 163, nem se deu ao trabalho de tentar se salvar. O Volvo trafegava no mínimo a 100 por hora na estrada deserta entre Matarana e Santa Fé. Não era oportuno pensar em Rodrigo naquela hora, mas, horas atrás, os dois quase também trafegaram em direção a um hotel de quinta categoria, em Santa Fé. Se o tivessem feito, ela não estaria sendo conduzida ao matadouro.

 

       A questão era que não morreria nas mãos de um chinelo como Mendes. Tinha de ter sangue frio e esperar o melhor momento para surpreendê-lo. Ao ouvi-lo falar, sentiu oque era impossível acontecer: seu sangue gelou nas veias.

 

       – Ficamos aqui.

 

       A última vez que sentira medo zanzava de um lado para o outro em frente a UTI do hospital municipal. Cristiano estava ao seu lado, e ambos esperavam notícias sobre o estado de Jasmine. O médico da unidade apareceu minutos depois. Até hoje Rodrigo não lembrava o que lhe dissera, mas sabia que a sua mulher havia morrido antes mesmo de ele abrir a boca. Vira a morte em seus olhos, e ela era escura, feia e fria. Nada de beleza espiritual ou passagem serena para a próxima vida. A morte era o fim, o desaparecer. E, enquanto ele corria feito um louco na estrada, novamente sentia os dedos gelados da morte sobre seus ombros.

 

       Ao atingir a guarita da Arco verde, nem se deu ao trabalho de parar e mandou para o alto a porteira recém reconstruída. Pelo retrovisor, viu Bronson correndo atrás da picape com a mão na cintura.

 

       Diante da escadaria, Rodrigo pisou no freio, abriu a porta e desceu sem desligar o motor da picape. Avistou pelo menos cinco pistoleiros em seu encalço. Ignorou-os, subindo os degraus de dois em dois até alcançar o alpendre que circundava o casarão. Bateu forte na porta e voltou-se para trás, desafiando os capangas de Dolejal com o olhar. Os camaradas pareciam aturdidos com a intromissão da polícia àquela hora da madrugada e daquele jeito. A qualquer momento, o diabo loiro apareceria com o seu sorrisinho arrogante e era melhor que ele aparecesse mesmo. Caso contrário, era certo que estava com Karen.

 

       A porta foi aberta por uma Irene descabelada e zonza de sono.

 

       – Delegado... o senhor Dolejal está... – ela tentou completar a frase, mas foi interrompida.

 

       – Onde está Franco?

 

       – Desculpe, não sei...

 

       Rodrigo passou pela mulher e subiu outro lance de escada. No segundo andar, abriu a porta do quarto de Dolejal e o encontrou dormindo ao lado da texana. Acendeu a lâmpada a fim de acordá-lo, e assim que o fez, o fazendeiro sentou-se e fulminou-o com o olhar:

 

       – O que está acontecendo?

 

       – Você mandou expulsar a Karen da cidade? – foi direto e ríspido.

 

       – Não.

 

       – Onde está o psicopata?

 

       – Quem?

 

       – Onde está o maldito psicopata? – insistiu com raiva, retesando os maxilares.

 

       – O que você quer, Rodrigo? Que absurdo é esse? – perguntou, estreitando os olhos e sondando o delegado com secura.

 

       – O Franco sequestrou a Karen. E você sabe disso.

 

       A texana mexeu-se ao lado de Dolejal até acordar e ficar sobre os antebraços, olhando-os sem compreender o que passava.

 

       – Sai do quarto, Mary Jessica. – disse o fazendeiro num português bem claro.

 

       Ela nem perguntou o motivo, afastou o lençol e vestiu o robe por cima da camisola longa de seda. Atravessou o cômodo fitando diretamente Rodrigo. Após a sua saída, Dolejal foi até o closet e, calmamente, vestiu o robe por cima do pijama. A tranquilidade do outro irritou ainda mais Rodrigo.

 

       – Quero que me diga onde está o Franco.

 

       – É o que farei. – fez um sinal ao delegado e emendou: – Vem comigo, vamos a sua casa.

 

       À porta do quarto do fazendeiro, Bronson e outro cara apontaram em defesa do patrão. Com um gesto evasivo de mão, Thales dispensou-os, dizendo com uma irônica indiferença:

 

       – Não se preocupem, estou com a polícia.

 

       Os camaradas cederam passagem para ambos cruzarem o corredor. Desceram a escadaria e saíram em direção ao conjunto de casas dos empregados da fazenda. No caminho, Dolejal perguntou:

 

       – Como sabe que o Franco está com a Karen?

 

       – Ela me disse que você o mandaria buscá-la para expulsar da cidade. – disse, tentando se controlar ao máximo.

 

       Dolejal assentiu, levemente, e continuou:

 

       – É, a Karen às vezes me irrita ao ponto de eu falar esse tipo de merda. No entanto, não tinha qualquer intenção de expulsar ninguém, uma vez que nem tenho poder para isso. Talvez o Franco o tenha feito por vontade própria, sabe como ele é meio estranho.

 

       – Ontem falei com o coronel e ele teve a mesma atitude que você, Thales, jogou a sua responsabilidade pra cima dos ombros de um empregado.

 

       – Sabe que pouco me importo com o que você acha ou deixa de achar. Posso processá-lo por ter invadido minha propriedade e mexer os pauzinhos para ser transferido para um buraco ainda menor que Matarana. Que tal um lugar onde garimpeiros e índios tentam se matar o tempo inteiro?

 

       – Olha só, a única coisa que me interessa nesse momento é saber onde está a Karen e com quem. Então, se quiser me processar, transferir ou enforcar, faça-o. Não espere o tempo passar, Thales, cumpra as ameaças. Já estou cheio de você e cheio de tudo que fez para Karen.

 

       – Entendo. – comentou, sem se abalar; em seguida, perguntou argutamente: – Está dormindo com ela, não é?

 

       Nesse ponto da conversa, Dolejal parou e encarou o delegado com os olhos avaliativos.

 

       – Saiba que não será o único. – completou sério e emendou num tom maldoso: – Aliás, agora mesmo, você está histérico atrás dela e ela deve estar transando com outro.

 

       – É essa a casa do Franco?

 

       Eles pararam e Dolejal assentiu com a cabeça.

 

       – É melhor sacar sua arma, ele está sempre pronto para atacar. Ainda mais se estiver comendo a Karen.

 

       Rodrigo não tirou a pistola do coldre ao chutar a porta e abri-la com um golpe só. Atravessou a sala e alcançou a primeira porta aberta que viu. Era um quarto pequeno, com guarda-roupa e uma cama de casal. Acendeu a luz e encontrou Franco deitado de bruços, vestindo apenas o jeans e descalço. Puxou a pistola do coldre e apontou para o pistoleiro:

 

       – Acorda, desgraçado!

 

       Ele nem se mexeu.

 

       – Vamos, Franco, acorda! – insistiu Dolejal, contornando a cama e balançando com força o empregado: – Era só o que faltava!  Ele está morto.

 

       O delegado era o tipo do cara que acreditava na máxima: vaso ruim não quebra. Assim, postou-se ao lado do fazendeiro e tomou a pulsação de Franco.

 

       – Está inconsciente. – declarou, enfiando a arma no coldre e ajeitando o chapéu num tique nervoso.

 

       – Bom, então o caso foi resolvido. Franco ingeriu sonífero em função de uma provável insônia e a Karen está ciscando pela cidade. – concluiu Dolejal, debochando.

 

       Rodrigo olhou ao redor à procura do frasco de sonífero. Foi ao banheiro, abriu o armarinho sobre a pia e não o encontrou. Voltou ao quarto e disse:

 

       – O sonífero que ingeriu não era dele.

 

       Dolejal encheu uma jarra com água e pedras de gelo e, encaminhando-se até a cama de Franco, falou:

 

       – Já vamos descobrir se ele se dopou ou foi dopado.

 

       Despejou a água gelada sobre o empregado que mal se mexeu. O fazendeiro parecia, agora, irritado. Era como se o funcionário não obedecesse à ordem de acordar. Rodrigo saiu para pôr os pensamentos em ordem. Ela saíra do quarto para ir à cozinha, a fim de beber água. Enquanto isso, ele ficara esperando por ela, pensando num jeito de transformar uma transa eventual em algo sério e duradouro sem assustá-la. Perdido em teorias e abordagens psicológicas, somente após meia hora, percebera que já era tempo de Karen estar de volta ao quarto. Fora, então, até a cozinha e encontrara a porta dos fundos aberta. Em seguida, vestira-se e fora atrás de Franco. Agora, com Franco praticamente desmaiado na cama, ele já não sabia o que acontecera com Karen. Uma coisa era certa: ela não saíra de casa por livre e espontânea vontade. Primeiro, não tinha motivo e segundo, vestia apenas um robe. Alguém entrara no condomínio e a pegara.

 

       Ouviu um grito de dor no quarto.

 

       – Ficamos aqui. – ela ouviu a voz nojenta de Mendes.

 

       Sabia que chegara a hora de suplicar pela própria vida ou...

 

       Correr. Se Mendes queria tanto culpar Franco pela sua morte, teria de usar o canivete e, para isso, chegar bem perto dela. Mas caso ela corresse e ele se sentisse obrigado a pará-la usaria a sua pistola automática. O que faria dele – caso acertasse o alvo, ela mesma – o assassino. Na atual circunstância, Karen não tinha muito a perder. Podia aceitar a morte próxima ou protelá-la por mais alguns minutos. Por mais que sentisse que chegara a sua hora, ainda não caíra a ficha. Era inadmissível que tudo terminasse tão rápido, no meio do mato, numa noite sem estrelas. Não teve tempo de pensar em Johnny, pois a dor aguda que sentiu fê-la perder o ar.

 

       – Nada pessoal, amiga. – falou, exibindo no ar o canivete ensanguentado.

 

       Na segunda investida, com o corpo arqueado, ela se jogou para frente e deslocou a fúria do peito para as pernas. Correu, ora tropeçando, ora aumentando ainda mais a velocidade. O outro resmungava alto atrás de si, reclamando que quanto mais ela corresse, mais furo ele faria nela.

 

       – Isso, corre, vadia! Vou transformar você numa peneira!

 

       Instintivamente, pôs a mão sobre o ferimento, abraçando-se ao próprio corpo, numa vã tentativa de estancar o sangue.

 

       Quando Mendes alcançou-a, ela caiu de joelhos. O pistoleiro ergueu-a do chão pelos cabelos e pressionando a lateral do canivete contra o seu pescoço.

 

       – Implora para eu não te matar, implora! – ordenou com raiva.

 

       – Por favor, não me mate! – pediu, chorando.

 

       – Pede de novo, vadia! Vamos, vaca louca!

 

       – Não me mate... não me mate, por favor!

 

       Ele a empurrou para o chão e desferiu-lhe o segundo golpe. Karen virou-se a tempo de não ter o peito perfurado. Girando, rapidamente, ela pulou sobre o pistoleiro e segurou-lhe o pulso cuja mão apontava o canivete, o maldito canivete de Franco. O homem era forte e não estava ferido. Ela o mordeu no pescoço como um bicho. Ele gritou alto, forçando o próprio corpo a girar para dominá-la. Como não era mais um jovem ágil e magro, se tornou prisioneiro da própria dor e peso. Ela enterrou ainda mais os dentes no pescoço dele, sentindo não só o gosto do sangue, como também a sua textura densa e morna.

 

       – Me larga, sua louca! Louca! – gritava, tentando livrar-se da mulher sobre o seu corpo.

 

       Percebendo que ele se recuperava, avançou para o pulso e mordeu-o com força para, em seguida, bater com a própria testa na testa do homem.

 

       Rodrigo voltou ao quarto de Franco e encontrou-o sentado e encurvado, o rosto vermelho e desfigurado pela dor. Endereçou o olhar interrogativo a Dolejal que, serenamente, observava o ex-braço direito recobrar a consciência.

 

       – Tive de lhe dar uma porrada no saco. – disse Dolejal, a título de informação, o semblante cerrado.

 

       – Consegue falar, Franco? – perguntou Rodrigo, impaciente.

 

       Ele tossiu e assentiu com a cabeça.

 

       – Ingeriu alguma coisa antes de dormir?

 

       Franco negou e completou ainda vermelho de dor:

 

       – Nunca tomei remédio na vida.

 

       – Então por que estava dopado? – indagou Dolejal, forçando interesse pelo caso.

 

       – O quê?

 

       – Franco, o que fez antes de dormir? Saiu com alguém? Bebeu com alguém?

 

       Ele foi direto:

 

       – O Mendes, seja o que for, foi o Mendes. Veio com uma conversa fiada pra cima de mim, disse que fazia tempo que a gente não conversava e o escambau. Bebi com ele, depois de trazer a dona Mary Jessica para casa.

 

       – Onde está o Mendes, Dolejal?

 

       O fazendeiro deu de ombros.

 

       – Dormindo, acho. – suspirou resignado e completou: – Certo, vamos até a casa do cara então. Que horas poderei também dormir? – perguntou, irritado.

 

       – Quando tudo estiver esclarecido. Caso contrário, você será considerado o principal suspeito pelo desaparecimento da Karen. – afirmou Rodrigo, fechando a cara e cedendo passagem para o outro sair.

 

       No pátio da casa de Franco, Thales Dolejal voltou-se e encarou o delegado:

 

       – Como ousa falar comigo nesse tom na frente de um subalterno meu?

 

       – É você quem tem de baixar a bola comigo ou o prendo por desacato.

 

       – Não tente bancar o policial pra cima de mim, Rodrigo. – ameaçou.

 

       – Eu sou um policial, Thales, e somente eu poderia expulsá-lo da cidade. Posso mandá-lo para Santa Fé, para o presídio de lá, para ser mais especifico.

 

       Dolejal tentou sorrir e não obteve sucesso.

 

       – Está se rebelando por causa de uma vagabunda?

 

       – Isso é com a polícia federal, meu caro.

 

       – É, também gosto do tipo, se é que a sua intenção foi xingar minha noiva. – disse com desdém.

 

       – Qual é a casa do Mendes?

 

       O fazendeiro apontou adiante e foi taxativo:

 

       – A próxima vez que tencionar entrar na minha propriedade terá de trazer consigo um mandado.

 

       Ao que Rodrigo retrucou no mesmo tom:

 

       – A próxima vez que chegar perto da Karen terá um braço da lei ao redor do seu pescoço.

 

       – Imagino que para isso se venderá ao coronel feito uma puta barata.

 

       – Não faço conchavos. Se antes o protegia, Thales, era em nome da nossa amizade.

 

       – Que, pelo visto, despreza em função de uma mulher. – considerou Dolejal e emendou com menosprezo: – Mulher que não valoriza homem algum, egoísta, desleal e, ainda por cima, deve dinheiro a mim e ao coronel. Você sabe muito bem escolher as suas amizades, delegado. Meus parabéns.

 

       Mendes não estava em casa. E a sua mulher informara-lhes que o marido viajara para o Pará a pedido do patrão.

 

       – Judite, o patrão aqui não mandou o seu marido para lugar algum, não seja idiota.

 

       Quando os últimos pontos pretos se dissiparam, Karen olhou para baixo e verificou aliviada que o pistoleiro sucumbira. Sim, ela era mais cabeça dura que ele. Sentia-se aturdida e, além da ferroada longa e constante onde recebera o golpe, uma náusea dos infernos. Era possível que a qualquer momento desmaiasse. Mas não podia. Depois de enfrentar o pistoleiro e nocauteá-lo, não podia perder. Enfiou as mãos nos bolsos da calça de Mendes, revistando-o. Procurava as chaves da picape ou o celular. Encontrou o segundo e ligou para Rodrigo. A ligação não se completou. O aparelho emitia um ruído fraco, que avisava sobre o estado precário de sua bateria.

 

       Ergueu-se do chão com dificuldade, uma mão sobre a parte lateral do abdômen. Ainda sangrava. Incitou os primeiros passos, um tanto vacilantes, em direção à estrada. Apesar da dedicação e vontade de alcançar a estrada e procurar ajuda, tinha plena consciência de que o que o seu cérebro queria não seria efetivamente obedecido por seu corpo. Havia chegado, para ela, aquele momento denso e crucial na vida de algumas pessoas, quando se encontravam frente a frente com o abismo de sua finitude e observando-o nos olhos, descobriam o verdadeiro sentido da existência.

 

       Tentou mais uma vez falar com aquele que poderia salvar a sua vida.

 

       Todos os homens de Dolejal reunidos ao redor das três picapes. A ideia era começar a caçada a Mendes, como o latifundiário assim acentuou diante dos seus capangas. Franco, mais do que todos, tencionava não somente caçar como abater o camarada que tentara envolvê-lo em suas sujeiradas. Tinha o olhar azul-fúria, as órbitas oculares avermelhadas e os lábios crispados. Calado o tempo inteiro, a única coisa que ele pensava era alcançar o pescoço do filho da puta e rasgá-lo fora a fora. Ainda por cima roubara o seu canivete de estimação.

 

       – Ele está armado e fora de si, portanto, tenham cuidado. – disse o fazendeiro e emendou, numa mensagem subentendida: – Todos nós conhecemos o suficiente o Mendes para saber que ele é capaz de tudo. – a tradução era: assim, vocês têm ordem para executá-lo. Foi o que os capangas de Dolejal ouviram.

 

       Rodrigo entrou na picape, deu ré e, antes de atravessar o espaço entre a casa-sede e a porteira arrebentada, encarou duramente Dolejal. O outro lhe sustentou o olhar e, em seguida, fez sinal para os seus homens.  Ele não os acompanharia, uma vez que o assunto somente o interessava na medida em que um de seus funcionários estava envolvido. O que acontecesse com Karen pouco ou nada o afetava. E tal constatação nauseou-o. Isso não era certo. Mesmo com todas as desavenças, ela era uma pessoa digna, uma boa mãe, e Dolejal tinha de vê-la assim também, como Rodrigo a via. Questionou-se intimamente se ainda valia a pena mantê-lo na sua lista de cartões de Natal.

 

       Alcançou a estrada sendo seguido por mais duas picapes em alta velocidade. Numa delas, quatro pistoleiros; dois na cabine e os demais na caçamba. Na picape mais judiada, comprada num ferro-velho e mexida numa oficina de Santa Fé, clandestina e receptadora de peças automotivas roubadas, Franco ao volante, sozinho, uma vez que não dividia espaço com nenhum de seus colegas de trabalho. E eles pouco faziam questão em acompanhá-lo.

 

       Através do retrovisor, Rodrigo viu quando Franco acelerou ainda mais, emparelhando ao seu lado, e gritou:

 

       – É possível que ele tenha seguido para fora da cidade.

 

       O delegado assentiu, pegou o celular e ligou para a delegacia:

 

       – Lucas, o Mendes sequestrou a Karen. Emita um alerta para a brigada bloquear todas as saídas de Matarana, agora!

 

       – Ok, e para a polícia rodoviária também. – completou, solícito.

 

       – Certo. – afirmou e completou incisivo: – Manda uma viatura para o condomínio da Karen, mas, Lucas, discretamente. Não quero que a vó e o Johnny sejam acordados.

 

       – Deixa comigo.

 

       Com a pequena guarnição da polícia militar de Matarana, as chances de barrar o pistoleiro eram poucas. Por isso ele pisou no acelerador. Quando o celular tocou, atendeu-o com os olhos fixos na estrada. Amanhecia.

 

       – Rodrigo...

 

       Era Karen. Dois segundos para reconhecer-lhe a voz.

 

       – Você está bem? – perguntou tenso e preocupado.

 

       – Nada bem... – a voz sumida.

 

       – Onde está? Karen, onde você está? – perguntou devagar, tentando pôr em ordem os sentimentos, todos fortes, desembestados, numa direção apenas: ela.

 

       – Não sei...no mato...

 

       Ele sentia que ela estava partindo para algum lugar.

 

       – Karen...Karen, meu amor, está muito ferida?

 

       – Hã...?

 

       – O que vê ao seu redor, me diz, me diz para encontrá-la! – perguntou, impaciente, com um nó na garganta.

 

       – Quatro queijos... – murmurou.

 

       Suspirou, tentando controlar o medo, e insistiu:

 

       – Ok, certo, querida. Agora, me diz o que você vê ao redor, me oriente, Karen, por favor...

 

       – Quatro queijos...

 

       O delegado reduziu a velocidade, ligou o pisca e entrou no acostamento. Para onde iria? Qual direção tomar?

 

       – O que quer dizer com.... – de repente, a luz. – Onde está o Mendes?

 

       – Não sei mais... estou no mato, depois da Quatro queijos...a bate...

 

       A ligação foi cortada, e doeu em Rodrigo. Ele ainda ficou olhando para o aparelho. Voltou à estrada e parou ao lado da camionete de Franco, que o aguardava também no acostamento, alguns metros à sua frente.

 

       – Ela está nas proximidades da lanchonete Quatro Queijos em direção a Santa Fé! – gritou.

 

       Franco assentiu, endurecendo os lábios com determinação.

 

       – Sei de um atalho fora da 163. – gritou de volta.

 

       Rodrigo assentiu com a cabeça e o seguiu. Sentiu o calor grudento do suor escorrendo-lhe nas costas, um suor nervoso. Adentraram uma das secundárias de chão batido, as pedras soltas batiam contra o assoalho da picape e os solavancos testavam a eficiência dos amortecedores. Como ele não poupou a camionete, insistindo em manter o ponteiro do velocímetro na faixa dos 100 km/h, em um dado instante, avistou pelo retrovisor, uma parte do veículo ficar pelo caminho. Pisou ainda mais, trincando os maxilares e exigindo o que podia e não podia do motor velho. Ao ver os faróis traseiros da picape de Franco acionados, pisou no freio bruscamente e fez sinal de luz para ele. Viu quando ele desceu com uma lanterna na mão e encaminhou-se em sua direção:

 

       – Por aqui é mato fechado. Vamos seguir a pé, senão podemos acabar esmagando a Karen debaixo das nossas rodas.

 

       O delegado concordou em silêncio, absorvendo a tensão no ar. Abriu o porta-luvas e retirou a lanterna. Antes de descer, porém, verificou suas automáticas. Seguiu logo atrás de Franco. Quando o alcançou, perguntou intrigado:

 

       – Por que deixou seus companheiros para trás?

 

       Franco nem tentou esconder a intenção:

 

       – O Mendes é meu.

 

       – Não, Franco, o Mendes é da polícia. – considerou com ênfase.

 

       O outro não se fez de rogado:

 

       – Então ele é de quem pegar primeiro.

 

       – A lei aqui sou eu e, se tentar bancar o justiceiro, prendo você também.

 

       – É? – ironizou.

 

       O céu apresentava as primeiras ondas de vermelho e laranja antes de despertar branco por completo. Os bichos faziam seus barulhos matinais, enquanto o mato amarelado se erguia duro e retorcido acima dos joelhos dos dois. Era possível que fossem picados por uma cobra ou que dessem de cara com uma onça, assim como, por detrás de uma das muitas moitas por ali, surgisse o animal que havia sequestrado Karen.

 

       Franco parou e fez um sinal para Rodrigo. Este não ouvira nada em particular, mas confiava nos instintos do diabo. Num gesto lento e significativo, ele indicou a clareira cujo matagal, já queimado e ralo, abria-se à esquerda de ambos. Encaminharam-se para lá, enquanto debaixo dos pés, amassavam a grama seca. Ao perceber um vulto, Rodrigo engatilhou e gritou:

 

       – Polícia, Mendes! Acabou, cara!

 

       Um segundo depois, Franco correu em direção ao vulto. Rodrigo não teve tempo de detê-lo, e era como se o guri fosse dominado por um espírito a jato ou tivesse uma super-turbina nos pés. Quando viu, ele já estava se atirando para cima da silhueta roliça, as mãos abertas em forma de garra, a intenção explícita de apertar um pescoço. O corpo aberto sem proteção alguma, como se fosse revestido por uma armadura blindada invisível ou como se fosse um louco varrido sem medo de levar um tiro e morrer.

 

       O delegado correu até onde Franco caíra e o encontrou sobre um Mendes cuja testa expunha um hematoma.

 

       – Onde está a Karen? – vociferou Rodrigo, apontando a pistola para o camarada.

 

       Franco o puxou pela gola e o pôs de pé. Depois, revistou-o, a fim de pegar de volta o seu estimado canivete e não o encontrando perdeu o controle:

 

       – Cadê o meu canivete, seu porra?!

 

       Mendes riu, a boca sangrando devido à última investida de Franco, os olhos vidrados no guri.

 

       – Na barriga da vaca louca.

 

       Franco soltou-o com repulsa, virou-se e olhou para o delegado como quem dizia: agora é contigo.

 

       – Temos de procurá-la. – disse, entre os dentes, os maxilares duros.

 

       – Que faço com esse lixo?

 

       Mendes foi algemado à caçamba da camionete de Franco.

 

       – Você pediu para eu matar a vaca louca, Franco, só fiz o que me pediu. – grunhiu o outro, cuspindo a saliva com sangue.

 

       Franco voltou e, num gesto rápido, sacou a pistola e atirou na perna de Mendes.

 

       – Agora não irá para lugar nenhum!

 

       – Filho da puta! – gritou de dor, dobrando-se sobre o próprio corpo.

 

       – Antes também não ia, Franco. – constatou Rodrigo num murmúrio, controlando a vontade de atirar na outra perna de Mendes.

 

       Ligou novamente para o número que Karen usara para falar com ele e a mesma mensagem de “fora da área ou desligado” se repetia. Continuou caminhando e agitando a lanterna para todos os lados, chamando por ela.

 

       – Nos filmes, a polícia rastreia as ligações dos celulares. – constatou Franco, lançando um rápido olhar ao delegado.

 

       – Fora dos filmes também, mas Matarana não faz parte dessa realidade. – disse, com um esgar de menosprezo e tornou a gritar: – Karen!

 

       – Se ela perdeu muito sangue, já está inconsciente, nem adianta gritar. – considerou, impassível.

 

       Rodrigo se voltou para ele e fulminou-o:

 

       – Aquela mulher põe você e todos os capangas do Dolejal no chinelo! Não a subestime! Você não sabe quem é ela, ninguém sabe.

 

      – É, pelo estado da cabeça do Mendes, a luta foi puxada. – disse Franco, aceitando o argumento do delegado: – Quero que saiba que jamais fui a favor de expulsar a Karen da cidade, mas quando o patrão manda, tenho de obedecer. Ordens são ordens, mesmo idiotas e sem sentido. – deu de ombros.

 

       De repente, Franco parou, parecia Bonnie farejando algo no ar.

 

       – Sinto cheiro de sangue... não sente?

 

       Rodrigo gelou e meneou a cabeça em negativo.

 

       – Eu sinto, cara, sinto cheiro de sangue morno... Ela está por aqui. – dizendo isso, apontou a lanterna até o volume alguns metros à frente.

 

       Rodrigo correu até Karen e a encontrou imóvel.

 

      O café desceu quente e amargo. Ela não conseguiu sorver toda a bebida, porque sentia nojo, muito nojo. Bisbilhotando o celular de Cris, encontrara as mensagens de texto da doutora Janete piranha-dos-infernos.

 

       Nova detestava hipocrisia e mentiras desnecessárias. Outro dia havia-lhe dito que não tinha ninguém, que sua vida era o hospital e a casa deles, que vivia para ela. E entre o hospital e a casa deles, escapadas com a doutora. Valéria acertara em cheio a respeito da vida dupla de Cris. Um homem saudável jamais ficaria sem sexo por longos cinco anos. E uma mulher saudável também não. A menos que tivesse sido profundamente magoada ou enganada ou, como no seu caso, profundamente iludida por um amor sem futuro.

 

       Cinco anos se guardando para o príncipe encantado com o estetoscópio ao redor do pescoço, enquanto ele traçava a colega de trabalho. E porque não a traçara, diabos?!, exasperou-se, batendo a base da caneca na mesa. A resposta veio-lhe como um raio: ele não a desejava como mulher. Mais uma vez Valéria Malverde estava certa.

 

      Puxou a cadeira e sentou-se. Vazia, era assim que se sentia. De repente, mais nada fazia sentido e não via futuro algum à sua frente. E mais do que vazia, sozinha, solitária no seu mundo de faz-de-conta, onde ela era a guerreira do amor, ultrapassando todos os obstáculos, obstinada em defesa do amor, do seu amor de infância, de adolescência, de vida inteira. Quisera ela amá-lo como amiga, como irmã. Teria de nascer de novo e com outro tipo de coração. Aquele entre as suas costelas, dentro do peito, era um órgão obsoleto e inútil, que ainda acreditava em contos de fada e pensamento positivo. Ainda acreditava em finais felizes e missões impossíveis. E enquanto ela acreditava em todas essas bobagens, o homem que amava transava e vivia de acordo com a realidade, mais do que isso, de acordo com a sua vontade.

 

       Olhou ao redor, as paredes de tijolo à vista da cozinha, os móveis rústicos, as cortinas xadrez azul e branco, os tapetes.

 

       O que fazia ali? O que fazia naquele fim de mundo correndo o risco de ser assassinada? Por quem deveria morrer? E por que viver sem amor? Nova amava a ideia do amor muito mais que amava os homens. Por isso ela sempre sofria mais que todas.

 

       Imersa na sensação de vácuo no peito, uma vez que nem chorar conseguia, ouviu a buzina de um automóvel ao longe. Apoiou a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa. Não tinha ânimo para ir à Redação e olhar para aquelas caras de sempre. Ficou olhando, então, para a caneca sobre a mesa e aquele era o seu campo de visão, a caneca, a superfície de madeira do móvel e, mais adiante, o açucareiro.

 

       Escavou na memória qualquer recordação que denunciasse a razão de amar Cris tanto e por tanto tempo. Algo no comportamento dele, gesto, movimento ou palavra, tinha de tê-la incentivado para essa direção. Não era possível que tivesse inventado uma paixão, criado uma entidade mística entre ambos, que tivesse alimentado um sentimento nascido da admiração assexuada e descomprometida. Não era possível que tivesse inventado aquele amor.

 

        Quando o vento morno entrou e agarrou-a pelos tornozelos nus, ela virou a cabeça e olhou para a porta aberta. Junto com o vento, uma nesga de sol miúdo, um par de botas e o diabo. Por um momento, o suco gástrico jorrou forte em seu estômago. Depois, ela apenas chorou baixinho. Fechou os olhos à espera do seu destino. Podia ser somente um holograma, e ele não entrara em sua casa para matá-la. Até dois minutos atrás não sentia nada e agora se enchia de vida, aspirando no ar a atmosfera densa e vibrante que provinha do seu assassino. Ele exalava fragrância cítrica e outro odor, místico, odor característico da imortalidade. Era-lhe tão inconcebível tal ideia, que se obrigou a encará-lo nos olhos. Franziu o cenho tentando captar a sua humanidade, o seu rastro de mortalidade, visto que anjos e demônios não conviviam dentro de igual matéria. Então, Nova viu-lhe nos olhos um abismo profundo que a tragou para o seu magma. Matizes azuis, vários tons de azul, mergulhados no mel. À medida que a luz matinal incidia sobre aqueles olhos, eles mudavam de cor, numa metamorfose espectral. Entretanto, quando o homem entrou na cozinha, pisando com decisão sobre o assoalho de madeira, o mel vingou e o azul sucumbiu. As mechas do cabelo loiro desabaram por sobre a testa, escondendo-lhe as intenções. Porque ele apenas franzia o cenho discretamente tentando compreender a situação.

 

       Nova empertigou-se na cadeira, fechou os olhos e disse:

 

       – Seja rápido e eficiente.

 

       A primeira vez que se tinha coragem não se esquecia jamais, mesmo que fosse a última vez. Ao sentir o cano frio da arma na pele de sua testa, respirou fundo, mal se mexendo, absorvendo a densidade do momento final. Até que ouviu Franco rir.

 

       – A dona tem medo de mim?

 

       – Não posso morrer agora. – falou baixinho, sem abrir os olhos.

 

       – A dona é louca. – murmurou, divertido.

 

       Quando abriu os olhos, viu-o guardar a pistola no cós do jeans e olhar ao redor, curioso. Apontou para a caneca com velado interesse:

 

       – Quero um desses, dona Nova. – como ela ainda o fitava sem entender, completou com deboche: – Ah, esqueci de dizer, sou a sua nova babá. O patrão quer que eu cuide da senhora.

 

       Nova ergueu-se com dificuldade da cadeira. Viva, morta, viva de novo. Que brincadeira era essa? Estreitou os olhos avaliando o pistoleiro à sua frente. Ele tinha um sorrisinho arrogante desenhado nos lábios e um olhar beligerante descendo e subindo pelo corpo dela. Incomodou-a o sorriso, não os olhos.

 

       – Não sairei por aquela porta com você. Prefiro enfrentar os homens do coronel. – afirmou, determinada.

 

       Franco nem se abalou. Serviu-se de café do bule, pôs a caneca no micro-ondas e virou-se para ela:

 

       – Acha que um minuto é o suficiente?

 

       – É alguma brincadeira? – exasperou-se.

 

       Ele alçou a sobrancelha fingindo espanto:

 

       – Claro que não. Estou louco de sono e preciso de um café. A dona não sabe o que é passar a noite escavando valas para enterrar corpos de jornalistas.

 

       – Nem é de todo imbecil pensar que veio me matar. Afinal, Matarana inteira sabe que você não é uma pessoa normal, Franco. – irritou-se.

 

       – Um minuto? – insistiu, ignorando o último comentário dela.

 

       – É, é, que saco! – contornou a mesa e postou-se diante dele disposta a enfrentá-lo de igual para igual: – Não gosto de você. Aliás, nunca gostei. E isso expõe claramente a nossa situação, rapazinho, que é a seguinte: eu não ando ao seu lado.

 

       Franco observou a pose de professora durona da mulher à sua frente e sorriu do jeito que sorria para as crianças que o imitavam pela fazenda. Depois, deu-lhe as costas e concentrou-se em aquecer o café na caneca. Enquanto começava a contagem regressiva, ele se virou e ela ainda o fitava com as mãos na cintura, disposta a brigar.

 

       – Acha que gosto de bancar a babá? – perguntou sem titubear, aproximando-se cada vez mais, até chegar bem perto e falou: – Fui rebaixado de posto. Não deu para perceber? O patrão quis me humilhar, me dar uma lição e mandou cuidar da senhora. Então, não torra o meu saco e me obedece, ok?

 

       – Não fala assim co-comigo. – a munição acabava.

 

       – Como, dona? Como devo falar com a senhora? – os olhos fixos nos lábios dela.

 

       – Com respeito, garoto. Sabe o que é isso? – sentindo-se acuada, deu dois passos para trás, batendo com o traseiro no balcão de madeira.

 

       Ele sorriu divertindo-se com a situação e falou com naturalidade:

 

       – Não lhe faltei com respeito, dona Nova, só acho que a senhora devia deixar de ser uma vaca, só isso.

 

       – Não quero pistoleiro comigo. Volte à fazenda e diga ao seu chefe que me viro sozinha. – afastou-se o quanto pôde do homem que não parava de avançar, ultrapassando o espaço que os separavam.

 

       – Nosso chefe, não é? – parou e baixou a cabeça até próximo à boca de Nova: – Achou mesmo que eu fosse matar a senhora? Fiquei emocionado com a honra, achei meigo até. Ver a dona de olhos fechados e totalmente entregue ao seu destino, desejando e temendo a morte ao mesmo tempo. Gostou?,digo, gostou de quase beijar a morte?

 

       Nova bateu as costas contra a parede e se viu encurralada. Franco permaneceu avançando até parar e encará-la nos olhos:

 

       – Gostaria de ser morta por mim?

 

       Ela engoliu em seco e começou a tremer. Realmente, ele era doido.

 

       – Na-não, talvez outra hora, mas hoje, especificamente, não.

 

       – Olha, dona, – ele ergueu a camisa, revelando o tórax enxuto e a musculatura rija do abdômen: – olha essa cicatriz, – apontou pouco abaixo da linha do coração, – essa é a marca do beijo da morte. – tornara a sorrir, mas, agora, era um misto de desafio e amargura. – Quer uma marca dessas? A gente passa a ver a vida de outra forma, sabe?

 

       Ela assentiu sem falar. Faltava ar no recinto, e ele estava perto demais.

 

       – Mais um pouquinho e a bala estourava o meu coração. Que coisa, sou um cara de sorte.

 

       – Se levou um tiro, acho que o que menos tem é sorte. – arriscou.

 

       Ele a olhou sério e perscrutador:

 

       – Quem é a senhora para dizer que não tenho sorte?

 

       – Desculpe...

 

       – Pelo o quê? Me diz, dona. Por se achar melhor que eu? Ou por medo do louco do Franco perder o controle e dar cabo na senhora? Se desculpa porque falou merda e pela consequência que essa merda trará a senhora? Por mim, eu mandava a dona e o patrão se foderem. Para quê arriscar a minha vida por uma pessoa metida à besta como a dona é. Grande bosta ser jornalista, grande bosta!

 

       Nova compreendeu a irritação que aflorava mansamente na expressão facial de Franco, e era como uma criança birrenta que testava os limites dos pais e se magoava ao descobrir a força deles.

 

       – Posso aquecer novamente o seu café, Franco. – declarou com brandura.

 

       Ele a fitou aturdido. A manobra o confundira.

 

       – Deixa...tomo frio mesmo. – disse, emburrado.

 

       – Não, – ela decidiu, apertando as teclas do micro-ondas – beberá um café quente e forte, e se livrará dessas olheiras horríveis. – falava com calma, mesmo que as pernas tremessem.

 

       Afastando-se, ele ainda mantinha o olhar fixo nela. As sobrancelhas unidas e os lábios crispados. Ele tentava compreender a mudança na direção dos ventos. E ela sabia que apesar de ele ser durão, ainda era um guri sem mãe. Resolveu não temê-lo tanto.

 

       – Fiz pão. Qual foi a última vez que comeu pão caseiro? – perguntou, tentando sorrir.

 

       Ele franziu o cenho, intrigado, e respondeu:

 

       – Ontem.

 

       Maldita Irene, pensou.

 

       – Ah, claro, – disse sem graça e afirmou: – mas nunca comeu o meu pão caseiro.

 

       – Não, o seu eu nunca comi. – disse sério, sem deixar a insinuação perder-se no timbre rouco da voz.

 

       – Vamos tomar o nosso café da manhã, depois você me leva ao Jornal. Pode ser? – perguntou, fingindo uma leveza que estava longe de sentir.

 

      – Certo, dona Nova. – ele puxou a cadeira sem cerimônia e, sentando-se, disse com a naturalidade do pessoal de vinte e poucos anos: – Não quero ofendê-la, jamais ofenderia uma pessoa educada e chique, uma “jornalista”, – enfatizou com escárnio e prosseguiu: – mas lá na fazenda a gente tinha uma égua como a senhora. Eu adorava aquela égua, tinhosa que só. Mas aí o patrão vendeu a bichinha porque, bem, é nesse ponto que a dona lembra muito a Dolores, a égua do patrão, viu?

 

       Sem deixar de retirar a caneca de café do micro-ondas e entregá-la a Franco, Nova, a contragosto, comentou:

 

       – Imagino que a égua era covarde.

 

       Franco riu baixinho, assoprou a bebida e deu um belo gole.

 

       – Queima e machuca, – disse, fazendo careta e, piscando o olho, continuou: – muito bom o seu café. Mas não, dona, a égua não era covarde. Era assim como a dona, bipolar. Li isso outro dia numa revista da Irene, esse negócio aí de bipolar. Pois é, a égua era assim mesmo, bipolar. Bonito de se ver, tinha dia que ela me derrubava da montaria e noutros, vinha toda dengosa pro meu lado.

 

        – Eu sou uma égua bipolar?  – ela perguntou num misto de desafio e curiosidade.

 

       O café foi sorvido rapidamente. Ele ergueu-se, endereçou-lhe um olhar significativo, ajeitou o chapéu na cabeça e avisou:

 

       – Espero a dona na picape.

 

       Deu-lhe as costas e saiu. A resposta, concluiu Nova, era sim.

 

       Cristiano abotoava o jaleco enquanto quase corria pelo corredor até a UTI. Ainda estava no estacionamento reunindo forças para retornar ao trabalho, quando recebera a ligação de Rodrigo. Karen estava ferida, dissera-lhe rapidamente, ainda ao volante, na estrada, a caminho do hospital. Havia poucos minutos, ela dera entrada no hospital, e a equipe do doutor Maya se pusera a postos para recebê-la.

 

       Alcançou o corredor, com bancos de madeira ao longo da parede até as portas duplas da unidade de terapia intensiva, e avistou o delegado de pé, amassando e desamassando o chapéu nas mãos. Quando ele ergueu o rosto, o médico diminuiu o passo, surpreso e assustado num só tempo. À sua frente estava um homem devastado e pálido. Revivia a mesma cena de dois anos atrás? Ou sofria pela amiga de longa data?

 

       – Ela está com a melhor equipe da região. – tentou confortá-lo.

 

       Rodrigo assentiu devagar.

 

       – Eu sei, Cris. Obrigado pela prontidão.

 

       – Sabe se perdeu muito sangue?

 

       – Sim, perdeu, encontrei-a inconsciente... – olhou para cima, incapaz de prosseguir.

 

       – O Mendes foi atendido no ambulatório. – procurou mudar de assuntou dando-lhe tempo para se refazer e acrescentou: – Pelo visto, o Franco acertou para imobilizá-lo apenas. O estrago poderia ter sido pior, caso ele quisesse que o fosse.

 

       – Dá pra acreditar, o cara ia matar a Karen para mostrar serviço ao patrão? – perguntou com amargura, balançando a cabeça sem entender ou quase perto de compreender tudo: – Ele tentou armar para o Franco, incriminá-lo. Isso, sim, entra na minha cabeça. O Franco desperta o ódio de qualquer um. Mas usar a Karen para esse fim? Que estupidez! – crispou os lábios. – Agora, o filho da puta quer assumir a responsabilidade toda para si, mas, Cris, quem me diz que não é coisa do Dolejal? O Mendes é um idiota pau-mandado sem eira nem beira.

 

       – O que o Mendes ganharia matando a Karen, é o que quer dizer?

 

       – Na verdade, eu sei. Quase nada. Um reconhecimento doentio, quem sabe. – deu de ombros, irritado: – Como matar alguém traz reconhecimento pessoal? A não ser, claro, que o Dolejal quisesse e revelasse esse desejo de ver a Karen morta. O patrão falando aos quatro cantos, durante anos, o quanto a amante o traiu, o quanto lhe deve dinheiro, o quanto ela não presta. E, um belo dia, o burro de carga da fazenda resolve tomar o lugar do braço direito do patrão e concretiza o seu sonho. Mata dois coelhos com uma paulada só. Elimina o Franco e ganha o respeito do Dolejal...

 

       – Mas o desejo do Dolejal é um homicídio. – completou a ideia Cris, reflexivo: – Sem sujar as mãos, aos poucos, ele plantou a semente no solo mais fértil que encontrou.

 

       – E a gente sempre pensou que a arma do Dolejal fosse o Franco. – considerou.

 

       – Pois é, mas o Franco é bem diferente, ele é inteligente e possui aquele tipo de dedicação que convém aos seus interesses. Ao passo que o Mendes... – deixou a intenção no ar.

 

       Rodrigo pegou-a facilmente:

 

       – Ele jamais confessará que o Dolejal pediu para matar a Karen.

 

       – É, para a polícia não. – afirmou Cris, endereçando um olhar enigmático ao delegado e acrescentando com estudada indiferença: – Por que não pede pro diabo loiro descobrir?

 

       Rodrigo balançou a cabeça devagar.

 

       – Se o tal diabo loiro tentar arrancar uma confissão, não terá validade alguma.

 

       Cristiano olhou para o seu relógio de pulso, deu um tapinha amistoso no ombro do amigo e disse:

 

       – Vou ver como ela está.

 

       – Obrigado, Cris. – agradeceu, mal descolando os lábios.

 

       Durante todo o percurso Franco manteve-se atento ao volante, o cigarro se consumindo no canto da boca, a aba do chapéu abaixada, o Ray-Ban esportivo. Ao seu lado, no banco e quase colada à porta, Nova observava de soslaio o rapaz. Possuía um perfil bonito, o nariz reto, os lábios cheios e os pontos de barba por fazer sobre a pele que um dia fora branca mas que, após torrar por anos a fio debaixo do sol do centro-oeste, se tornara dourada. O cabelo loiro escuro, com mechas irregulares, amareladas, queimadas pelo sol, até a linha do queixo, jogava-se contra a face cujas sobrancelhas eram ligadas por um sulco profundo na testa. Se Franco era bonito? Muito, Nova considerou, uma beleza fresca, selvagem e quase feminina.

 

       Ao passarem pelo condomínio de Karen, Nova mexeu-se no lugar e tocou ligeiramente no antebraço do motorista ao lado:

 

       – Fico por aqui, obrigada.

 

       Ele nem se deu ao trabalho de reduzir a velocidade e, ignorando-a, seguiu em direção a 163 para, em seguida, alcançar o retorno e entrar direto no centro da cidade, onde se localizava o prédio de três andares, a sede do Jornal do Cerrado.

 

       Nova arregalou os olhos e disparou:

 

       – Por que não parou?

 

       – Tenho meus motivos. – afirmou, dando de ombros, indiferente.

 

       – Por que não parou, Fran-co? – cerrou os punhos com raiva.

 

       – Se acalma, dona. – resmungou.

 

       – Olha aqui, não estou para brincadeiras, viu? Onde está o Mendes? Não quero mais você como guarda-costas ou seja lá o que for. Aliás, não quero ninguém.

 

       De repente, ele se virou para ela e perguntou curioso:

 

       – Por que as malas?

 

       Ela concluiu que Franco percebera as suas malas prontas na sala.

 

       – Não interessa.

 

       – Vai sair da cidade?

 

       – Faz o retorno e me leva até a Karen! – tentou não gritar.

 

       – Como?

 

       – Quero que me leve até a Karen! – gritou.

 

       Nova quase parou na China quando Franco pisou bruscamente no freio. Voltou-se para ela com os olhos chispando de raiva e apontou para a porta:

 

       – Desce! Agora! Pensa que manda em mim, ô perua?

 

       – Na-não... – teimou, mesmo gaguejando e olhando ao redor. Estavam a poucos metros do centro urbano, mas ainda na estrada, que, por sinal, recebia um intenso fluxo de caminhões e automóveis. – Não pode me abandonar assim. Vou te delatar para o Dolejal!

 

       – Desce, agora! – ordenou, sem elevar a voz.

 

       Como ela apenas fitava-o tentando compreender a extensão e beligerância da ordem, Franco desceu e contornou a camionete com obstinação. Abriu a porta lateral e puxou a mulher pelo braço, arrastando-a até o acostamento. Atrás da picape, uma fila de automóveis se formava e os mais irritadinhos metiam a mão na buzina. Um caminhão carregado de madeira fez barulho ao frear, o motorista enfiou a cabeça para fora da janela e distribuiu palavrões pela pista.

 

       – A dona pede carona se quer ver a amiguinha. Ela está no hospital, porque o seu querido Mendes meteu a faca nela. – declarou com frieza.

 

       Dito isso, deu-lhe as costas e entrou na picape.

 

       Ela correu e se pôs diante do veículo. Ele teria de atropelá-la se quisesse deixá-la à beira da estrada.

 

       – Está falando isso para me assustar! É mentira! – gritou.

 

       Ele jogou a bolsa pela janela e disse:

 

       – Telefona para ela ou para o delegado e saberá a verdade.

 

       – Foi você quem a esfaqueou. Ela me disse que quem a expulsaria da cidade seria você. Você, diabo! – gritou com raiva.

 

       Franco engatou a marcha e deixou a camionete deslizar para frente. Apesar do sorrisinho arrogante era evidente que não havia a intenção de passar por cima dela. Então, Nova, diante da fila de carros e caminhões exasperados, buzinando, como se o mundo fosse acabar caso passassem mais alguns minutos parados, subiu sobre o capô e, ajoelhada, encostou o rosto no vidro frontal.

 

       – Me leva até a minha amiga, seu infeliz! – gritou e emendou apontando para baixo: – Vou riscar a bosta dessa lataria velha até fazer buraco.

 

       Ele sorriu. Pela primeira vez, ela viu um sorriso de verdade, amplo, quase alegre. Haviam se comunicado enfim. Dois loucos se reconheciam debaixo do toldo branco que quase os asfixiava. Franco abriu a porta lateral sem desviar os olhos de Nova e, antes que ela entrasse, avisou:

 

       – Vai deixar a bolsa no chão, dona Nova? – depois, baixou a cabeça e riu.

 

       Ignorando os comentários machistas e vulgares dos demais motoristas e com toda a dignidade de uma mocinha de cidade grande, ela se agachou para juntar a bolsa, uma vez que estava com um vestido solto e curto. Retornou à picape com o nariz erguido, uma nobre que acabara de ter mais um chilique. Sentou-se e esperou que Franco acelerasse e partisse. Foi direta ao perguntar:

 

       – Ela está mal?

 

       Ele meneou a cabeça em negativo e acrescentou:

 

       – Não sei. Estava viva quando a ambulância chegou.

 

       – Meu Deus! Meu Deus! – Nova ergueu as mãos apavorada: – Essa cidade nojenta não dá sossego pra ela! Ela estava bem, o Rodrigo foi deixá-la em casa! – virou-se para Franco e sacudiu-o no ombro: – Por que aquele cretino fez isso? Ela nunca fez nada pra ele! Ela tem filho! Me diz! Me diz! – gritou, as lágrimas à borda dos olhos.

 

       Franco olhou para ela, os maxilares retesados, os olhos duros:

 

       – Dona, se tocar em mim mais uma vez, por Deus, vai ter o mesmo fim que a Karen.

 

        Ainda o encarando aturdida, ela apenas sorriu e encolheu-se no banco. Ao pararem em frente ao hospital, pegou a bolsa e pulou fora. Não olhou para trás. Suava frio.

 

       Na recepção, Jussara, que a conhecia devido a sua ligação com Cris, informou-lhe onde estava Karen Lisboa. Atravessou o saguão de triagem dos pacientes, observando o grande número de pessoas que aguardavam para serem atendidas. Alcançou o longo corredor que levava à UTI e, na antessala, viu Rodrigo de pé, encostado contra a parede, abatido. Assim que se aproximou, ele ergueu a cabeça e tentou sorrir para ela.

 

       – E aí? Como está a Karen? – perguntou, angustiada.

 

       – A hemorragia cedeu e está sedada no momento. Mas é só para se refazer do trauma, porque está tudo evoluindo bem. A Karen é mais forte do que eu pensava. – afirmou ele com um leve sorriso, uma ruga de preocupação riscava-lhe a testa ao meio.

 

       – Como sabia que ela estava aqui?

 

       Quem lhe fez a pergunta estava até poucos minutos sentado no banco, apenas a olhando chegar, passar por ele e ignorá-lo. Cris levantou-se e prestou bastante atenção nela, insistindo:

 

       – Quem a escoltou até aqui?

 

       Nova tornou a ignorá-lo e respondeu para o delegado:

 

       – O Franco foi me buscar e ele mesmo me disse sobre o que o Mendes fez. Pelo amor de Deus, o que está acontecendo com essa cidade?

 

       – Não acho que seja bom você andar com os capangas do Dolejal. – afirmou Cris, olhando para ela e para o delegado em busca de apoio.

 

       – Cuide-se com o Franco, Nova, não sei se podemos confiar nele. – disse Rodrigo; em seguida, perguntou: – Você pode entrar e ficar no quarto até ela acordar?

 

       – Claro, fico sim. Até prefiro, lá no quarto com a Karen não sinto cheiro de hipocrisia. – alfinetou o médico.

 

       Rodrigo estreitou os olhos e fitou o amigo, tentando compreender o que a mulher havia dito. Não foi difícil captar a mensagem: Nova queria mais do médico e ele não atendia às suas expectativas. Observou quando ela entrou no quarto abrindo a porta devagar. Voltou-se para o pediatra, pôs o chapéu na cabeça e falou:

 

       – Vou falar com o Mendes e o Lucas no ambulatório.

 

       – Quer que eu avise a família da Karen e a traga para cá? – perguntou Cris, solícito.

 

       – Obrigado, mas eu mesmo vou buscá-los. – ao alcançar a recepção, disse: – Se for possível, Cris, queria que ficasse por perto. Não sei como ela acordará, passou por momentos de extrema violência, não foi nada fácil.

 

       – Não se preocupe, ficarei por aqui até você voltar.

 

       O delegado assentiu e encaminhou-se para o corredor. No caminho tentava pôr em ordem os pensamentos. Um deles era descobrir se Dolejal mandara diretamente ou induzira o empregado a tentar matar a ex-amante. Era praticamente impossível que Mendes incriminasse o homem mais poderoso da região. Além da devoção cega ao latifundiário, havia o medo da retaliação. Thales Dolejal ou qualquer outro de seus pistoleiros jamais deixariam tamanha traição passar impune. Afinal, a Arco Verde, mais do que uma fazenda de grandes proporções, era um feudo, o feudo Dolejal. E, nele, viviam tanto o fazendeiro e sua noiva texana quanto os pistoleiros, agricultores e demais funcionários e suas famílias. Um abalo no alicerce do feudo comprometeria sua estrutura em todas as demais camadas. Havia anos que por aquelas bandas o que se ouvia eram maledicências a respeito de Karen, ditas, muitas vezes, pelo próprio Thales. Era possível também que ele não estivesse envolvido no ataque de Mendes. De qualquer forma, analisando-se de um ângulo ou de outro, a culpabilidade do fazendeiro não podia ser desconsiderada. Teria pela frente uma missão ainda mais complicada: levantar provas dessa culpa e seu envolvimento, provas que o mandassem direto para a prisão mesmo com uma equipe de caríssimos advogados à sua disposição.

 

       A pergunta que não queria calar irrompia devastadora: quem, em sã consciência, em Matarana, iria depor contra Thales Dolejal? Se o último estivesse de fato envolvido na tentativa de homicídio de Karen, precisaria de provas e testemunhas a fim de mandá-lo definitivamente para trás das grades.

 

       Após Lucas relatar que a imobiliária de Teobaldo estava limpa e cheirosa e que não encontrara nada que o indicasse como corretor da morte, ele chamou o chefe num canto e cogitou:

 

       – Sei de alguém que poderá produzir provas contra o Dolejal, caso seja preciso.

 

       O sorriso sagaz do agente revelou a identidade daquele que, aos poucos, se mostrava crucial ao desfecho da história do fundador da cidade.

 

       – Não aposte todas as suas fichas nisso, Lucas. – considerou o delegado, resoluto.

 

       Pisou no carpete de seis milímetros de espessura deixando marcas por onde passava. Duas vezes levou a mão até o chapéu e o ajeitou, num gesto que denunciava que o seu estado normalmente irreverente e debochado, por vezes arrogante e excêntrico, sofrera um abalo. Os óculos escuros foram abandonados no porta-luvas da picape, e o caubói seguia a reta certa que o deixaria na sala do patrão, no escritório do centro, com os janelões de vidro expondo de forma nua e crua as duas avenidas da cidade e o topo do hospital municipal. Era de lá que ele vinha, o homem com uma missão. E assim que a secretária o anunciou ao chefe e retirou-se discretamente – uma vez que ela detestava o indivíduo mal-educado que ignorava questões básicas de civilidade como um “bom dia” ou “boa tarde”, por exemplo, ele irrompeu numa sucessão de palavras trôpegas:

 

       – A mulher é louca! Grita por qualquer coisa! É irritante, esnobe, mimada! Uma fresca imatura e cagona! A doida conseguiu parar o trânsito na estrada com uma ceninha digna de... de... levar uns tabefes! Não vou tapar buraco do Mendes! Pego na enxada, limpo merda de cavalo, ajudo a Irene na cozinha, qualquer coisa, menos acompanhar essa... essa jornalistinha cabeça oca!

 

       Thales Dolejal, do outro lado da escrivaninha, permaneceu imóvel e impassível diante do desabafo do pistoleiro, o melhor deles, o imprevisível e dúbio Franco. Conhecia-o havia dez anos e jamais lhe perguntara o sobrenome, e era possível que até mesmo o garoto não o soubesse. Melhor para todos.

 

       – E o Mendes?

 

       Era um legítimo duelo aquele: de um lado a força obscura, mística e hormonal; do outro, a invisível e inexorável força da razão, do autocontrole. Predadores, isso sim. Enquanto Thales absorvia a energia carregada de emoção e vida do pistoleiro de 22 anos recém-completos, este, por sua vez, recebia na pele as partículas de frieza de alguém acostumado às tempestades alheias.

 

      Franco respirou fundo, sentindo-se de repente um idiota diante do patrão, um garoto birrento como a jornalista dera a entender.

 

       – Tiro na perna. – disse, mal-humorado.

 

       – Pensei que o delegado fosse aproveitar a deixa para fazer uma faxina. Mas, pelo visto, preferiu seguir a cartilha do policial cristão. – declarou o fazendeiro, levantando-se e, com um gesto de mão, convidando o capanga para segui-lo até a sala ao lado.

 

       Entraram no lugar onde Thales guardava uma estante de livros, falsa. Bastava apertar um botão lateral e a mesma girava 180 º graus e, em vez de livros e cultura ocidental, pistolas, revólveres e até granadas. O homem que não andava armado colecionava armas.

 

       – Essas garotas desenham um sorriso em nossos lábios, não é, Franco?

 

       Franco sorriu, mas manteve as mãos enfiadas nos bolsos do jeans. Temia ceder à tentação de tocar na coleção cuidadosamente limpa, polida e organizada do patrão.

 

       – Ninguém sabe sobre elas. – endereçou-lhe um olhar significativo e prosseguiu: – Apenas eu e você. E muitas coisas que aconteceram nesses últimos dez anos, Franco, ficaram somente entre mim e você. Não temos família, não temos ninguém que se importe conosco e nós dois não nos importamos com ninguém; não é mesmo?

 

       – Eu me importo com o senhor. – foi taxativo.

 

       – Acredito em sua devoção, por isso mesmo comeu a minha amante. – ironizou.

 

       – Sempre quis ser o senhor...

 

       – Ser “como” o senhor, Franco. – corrigiu-o com um leve sorriso.

 

       – Não, não uma imitação. Queria ser o senhor e ter o que tinha. Não me leve a mal, tenho o senhor como referência paterna, fazer o quê? Foi o senhor quem me tirou da estrada e me abrigou.

 

       – Tentei ser um pai para você, garoto, isso é verdade. Limpei suas cagadas pela região, mostrei a todos que você era intocável, o meu preferido. – afirmou, pondo as duas mãos sobre os ombros do outro: – E ainda é o meu preferido. Tive de puni-lo para que tornasse a valorizar a sua posição na fazenda. Uma punição de pai, Franco, nada mais.

 

       – Entendi, patrão. – considerou Franco, encarando-o nos olhos.

 

       – Você é a única pessoa que confio. – enfatizou, acrescentando à fala a pressão do aperto nas omoplatas do pistoleiro e emendou: – Jamais esquecerei que levou um tiro para me salvar. Arriscou a própria vida por mim, por que vê em mim mais do que um patrão, não é mesmo, Franco?

 

       – Sim... – engoliu em seco, baixou a cabeça e disse: – O senhor é o meu pai.

 

       Dolejal voltou-se para suas armas e declarou sem emoção, como se dissesse para uma criança escolher um doce:

 

       – Pega uma para você, Franco, qualquer uma.

 

       Franco estreitou os olhos, desconfiado. Dolejal viu-se na obrigação de prosseguir na mesma direção para ser entendido:

 

      – Um presente, digamos, de pai para filho. – piscou-lhe o olho, sem sorrir.

 

       Ak-47, espingarda calibre 12, 9 mm Luger, 357 Magnum, Fuzil 762, pistola .380. Não era um arsenal; apenas uma coleção, como a de terras. Thales entregou-lhe a última como quem entregava a filha ao noivo no altar.

 

       – Em quem devo usá-la? – perguntou, colocando o carregador e puxando para trás a corrediça.

 

       O fazendeiro cruzou os braços e, por um minuto ou dois, avaliou o garoto que esfregava o cano da arma no jeans, a fim de que seu corpo reconhecesse a sua extensão.

 

       – No infeliz que fez o que não devia. – respondeu com menosprezo.

 

       – Mendes? – fez-se de desentendido.

 

       – O que acha?

 

       – O patrão quer que eu dê cabo no Mendes? – insistiu.

 

       – De um jeito limpo e sem testemunhas, como fez com aquele pervertido. Se é que não é um tipo de lenda urbana. – ironizou.

 

       Franco sorriu e enfiou a PT 380 no cós do jeans.

 

       – Mas perderei o presente depois de usá-lo, patrão. – reclamou.

 

       – Esse não é de fato o presente, Franco, a Taurus é o instrumento, nada mais. – deu-lhe as costas, voltando ao escritório e afirmou: – O presente é a volta à chefia da segurança e, mais tarde, quando concluir os seus estudos, a gerência da Arco Verde.

 

       Ele foi até o pequeno bar e encheu dois copos com uísque. Permitia, assim, que Franco absorvesse a informação, dissolvesse-a debaixo da língua como cristais do mais puro e delicioso veneno: o sonho. Observou-o de esguelha baixar a cabeça e aceitar o fardo sobre os ombros. Atingira-o na fonte de seus desejos e no ponto mais profundo de sua ambição. O filho da prostituta galgando os degraus da emancipação financeira e do respeito dos mataranenses e forasteiros. O garoto pobre e órfão que se fizera sozinho, por suas próprias mãos e projéteis. Era isso que passava pela cabeça de Franco, acreditava o fazendeiro.

       Ele estava errado.

 

       Nova fechou as cortinas do quarto e tornou a se sentar na poltrona ao lado do leito de Karen. Adormecida e abatida, ela parecia a Branca de Neve, pensou a jornalista, à espera do beijo do príncipe para recobrar os sentidos.

 

       Levantou e ajeitou o lençol até os ombros da amiga e lhe fez um carinho no rosto. Desde que chegara a Matarana, admirava a mulher que galopava pela cidade com seu chapéu de vaqueira e uma faca afiada entre os dentes. Ela não tinha medo de nada, desafiava a todos e a tudo, costumes e regras. Bebia demais, dava vexame, criava um filho sozinha e partia corações masculinos. Atrás de Karen, um rastro de destruição. No fundo, Nova queria ser como ela e também não ter medo. Em Belo Horizonte, com os pais, o medo foi-lhe ensinado como um sentimento negativo. Crescera ouvindo a mãe dizer “não tenha medo, querida”. Nova ainda não sabia que sentir medo era bom. Navegava por águas turvas, desviando de todos os tipos de medo, de morrer, de envelhecer sozinha, de não se tornar mãe, de perder Cris, de levar um tiro, de ser sequestrada, de comer comida estragada, de ter uma doença degenerativa, de desenvolver um câncer, de perder a memória, de perder alguém que amava, de quebrar os dentes da frente, de ser atropelada por uma carroça, de inseto voador e de Franco.

 

       Cris entrou, analisou a prancheta aos pés da cama e disse sem levantar os olhos da papelada:

 

       – Quando voltará a Belo Horizonte?

 

       – Não vou sair de Matarana, só decidi morar no condomínio da Karen. – respondeu, ajeitando uma mecha do cabelo da amiga para detrás de sua orelha.

 

       O médico endereçou um longo olhar à paciente e, depois, à amiga.

 

       – Posso visitá-la?

 

       – Pode, pode fazer o que quiser. – deu de ombros e acresceu com fingida indiferença: – Pode levar a namoradinha também. Sou outra mulher, sabe? Quero namorar muito, largar o jornalismo, me dedicar à música, curtir meus amigos e não perder mais tempo com nada que não seja realmente importante. Aliás, a primeira coisa que farei será me livrar do jugo do Dolejal, romper de vez com aquele calhorda e, depois, ter o meu bebê.

 

       Ele ponderou sobre o volume de informações que ela derrubava sobre o piso azulejado e foi direto ao ponto:

 

       – Não me entenda mal, mas você ainda não está pronta para ser mãe.

 

       Ela sentiu o sangue subir à face. Controlou-se para não arremessar o vaso com flores sobre a mesa que ladeava o leito hospitalar. Respirou fundo.

 

       – Você não me conhece, Cris, pensa que me conhece mas não me conhece nadinha. Sabe tanto sobre sua profissão e suas crianças, que é incapaz de ver que também está envelhecendo e não está construindo nada. Onde estão seus filhos?

 

       Ele tentou sorrir.

 

       – Quero apenas que seja feliz, Nova.

 

       – Já me disse isso, inúmeras vezes, por sinal. Acho até que decorou a frase para repeti-la quando não tem mais nada para falar.

 

       O médico apertou os lábios formando uma linha amarga que tornava sua face envelhecida e hostil.

 

       – Sugiro que telefone para o seu segurança, a fim de vir buscá-la. O sedativo que foi aplicado na Karen perderá o efeito somente daqui a duas ou três horas. Além disso, o Rodrigo foi buscar o Johnny, e é ele quem deve estar aqui quando ela acordar. – e não uma mera amiga de curta data, ele insinuou, Nova percebeu.

 

       Endereçou um olhar à mulher adormecida e assentiu tirando da bolsa o celular. Ligou para Franco porque, dessa vez, preferia o medo à tristeza profunda.

 

       – Franco... Pode vir me pegar? – perguntou num fiapo de voz.

 

       Relançou um rápido olhar para o homem de branco que a fitava com o semblante cerrado.

 

       – Por favor... – murmurou com a voz embargada.

 

       – Onde está? – perguntou Franco com brusquidão.

 

       – No hospital.

 

       Do outro lado da cidade, sentado sobre uma rocha cravada no meio da planície seca, sem chapéu e fitando a arma que dançava de uma mão para outra estava Franco. Quando o celular tocou, ele não quis atender. Agora, pensava num jeito de ter alguém inocente ao seu lado.

 

       – Por que está chorando?

 

       A pergunta a pegou de surpresa, e ela lutou para não desabar.

 

       – Porque não tenho ninguém. – falou, enquanto engolia uma lágrima.

 

       – Já estou chegando. – disse para acalmá-la. Ele, que quase a expulsara de sua vida.

 

       – Não demora. – pediu num gemido. Ela, que temera morrer em suas mãos.

 

       Cristiano contemplou a mulher que saía do quarto, guardando o celular na bolsa e fingindo que assoava o nariz num lenço descartável. Podia contê-la antes de atravessar a porta, dar cinco ou seis passos, tomá-la nos braços e desafiar os seus próprios princípios. Nadar contra a maré também hidratava o corpo. Mas tudo o que ele fez foi contemplá-la devastada, tentando colar os seus pedaços.

 

       À tardinha, perto das quatro horas, chovia cinzas. Todos os dias, durante a estiagem, desciam do céu cinzas provenientes dos inúmeros focos de queimada. Colavam-se às roupas nos varais, nos cabelos, nos automóveis. Mas antes de chover seco, havia o sol encoberto pelas nuvens de fumaça e o calor que beirava os quarenta e um graus. A terra escura erguia-se do asfalto das poucas ruas pavimentadas. E a noite ganhava o coro de corujas, sapos, grilos e outros animais que o pessoal da cidade grande havia esquecido a existência. E, como num mundo mágico, ao final de seis meses, uma tempestade que escurecia a cidade em plena luz do dia acompanhada por chuva elétrica e um ciclone extra-tropical anunciava a troca das estações. O inverno com suas chuvas previsíveis entre duas e três horas da tarde, torrenciais e pacíficas, enchia o Rio Verde, verdejava o prado, coloria as árvores e canteiros e permitia ao céu ser novamente azul com sol amarelo. No entanto, antes de toda essa transformação, vingava o griséu, o mormaço e o calor intenso. Assim, ainda era verão no centro-oeste quando debaixo da poeira escura, a amiga do médico avistou a picape vermelha caindo aos pedaços.

 

       Ao vê-la atravessar a avenida para encontrá-lo, automaticamente, Franco olhou para trás a fim de ter certeza de que não seria atropelada. Ele era cheio de manias. Comportamento típico de quem perdera gente cedo demais. Por outro lado, talvez fosse apenas o reflexo natural de proteção. Afinal, ele logo voltaria a ser o chefe da segurança da Arco Verde.

 

       Ela percebeu o cabelo loiro balançando ao sabor do vento morno, o antebraço deitado sobre a janela aberta, o chapéu puxado para frente e o rosto sério virando-se em direção à entrada do hospital. Atravessou a avenida sem olhar para os lados, pois não adiantaria. Um dique ameaçava romper compotas e transbordar diante de seus olhos. Como nunca fora mulher de reprimir sentimentos e tampouco se importava em chorar em público, preocupou-se apenas em se apertar contra o bolsão para não perder o equilíbrio e cair. À medida que se aproximava do veículo, o motorista olhava-a com a fisionomia ainda mais severa. Quando entrou, ele perguntou:

 

       – A Karen morreu?

 

       Nova fez um sinal negativo com a cabeça, puxou a porta e bateu. O que poderia lhe dizer? Que temia abandonar a causa pela qual lutara a vida inteira...sozinha?

 

       Percebeu que ele manobrava, ligava o pisca e acelerava em direção à estrada federal. Voltava pelo atalho que usara ao levá-la até o hospital. A boca apertada, os maxilares retesados e a atenção toda na estrada. Ele a deixaria na casa onde ainda dividia com Cris, o defunto vivo.

 

       Ela deitou a cabeça contra o vidro e chorou todas as lágrimas que ainda lhe sobravam. Procurou não fazer barulho, temia irritar o pistoleiro e acabar sendo jogada numa vala. E, por temer chamar atenção, seu corpo absorveu os espasmos com tamanha intensidade que era difícil conter os solavancos da musculatura. Pela décima vez, jurava que era a última que chorava por ele.

 

       O volante sofreu uma guinada à esquerda e os pneus aceitaram o mato baixo e seco debaixo de si. A picape atravessou a clareira até alcançar um conjunto de árvores de copas altas e cheias, troncos carbonizados.

 

       Franco girou a chave na ignição, deitou a cabeça para trás e tragou fundo o cigarro, exalando a fumaça pelas narinas.

 

       – Como é não ter medo? – Nova perguntou numa voz de choro.

 

       Ele não a olhou e respondeu com sinceridade:

 

       – Uma bosta. – virou a cabeça, deitada contra o encosto do banco, e falou: – Quando eu era criança e me sentia pior que um vira-lata, vinha aqui e ficava tacando pedra no rio. Na minha inocência de menino burro, achava que podia secar o rio de tanta pedra. Depois, descobri que era mais divertido tomar banho pelado. – sorriu e acrescentou: – Eu ficava debaixo d’água o máximo que podia, enquanto a Irene me chamava para comer. Sabia que quando a gente chora debaixo d’água ninguém percebe? nem a gente? – dito isso, ele baixou os olhos como se fosse tragado para um redemoinho de recordações.

 

       Nova respirou fundo. O homem supostamente mau ou, pelo menos, o mais perigoso da região, expunha a ferida ainda aberta. Não seria ela a lhe jogar o sal.

 

       – Me ensina a não ter mais medo, Franco? – a intenção era o pedido; o tom da voz, de apelo.

 

       Ele voltou-se para ela e experimentou o gosto do silêncio contemplativo. Era a primeira vez que a via de fato, de frente, de igual para igual. Mergulhou naquela expressão de súplica, fragilidade e tristeza que se estampava no seu rosto. Conhecia aquela expressão, vira-a diversas vezes no espelho, quando ele próprio tinha menos de dez anos de idade. Era fragilidade e tristeza antes de se tornar órfão. Depois, com o passar dos anos, a vida dura o forjara para a luta e, talvez, muito mais para a sobrevivência. Mas quando ele tinha dez, seu rosto era radioso de suave luz, a cálida luz da inocência e do sonho. Dona Nova não era uma pessoa cheia de truques e jogadas de estilo. Estava na cabine da camionete de um estranho com as pálpebras inchadas e o nariz com a ponta avermelhada. Ela era simples e básica, sem a força e a malícia das predadoras oficiais. Perderia no mundo das mulheres. Era pequena, magra, tinha o corpo de um garoto de 14 anos. E, além de tudo, confiava nele ao ponto de expor-se indefesa. Para ele, agora, urgia livrar-se de todas as armas e se libertar.

 

       Começaria pelas roupas. Desceu da picape, parou diante das águas verdes do rio que ainda não estavam poluídas e se despiu. Jogou-se de cabeça, porque era assim que ele sempre agia.

 

       Alcançou o lodo gosmento, abrindo os braços e as pernas para ganhar velocidade e voltar à superfície devagar, bem devagar. Ou não voltar. Considerou ficar por ali, em posição fetal no falso útero. Tinha a genética ruim, como lhe disseram Bronson e Mendes. Mesmo que eles ainda não soubessem do envelope na terceira gaveta da escrivaninha do patrão, no escritório do centro, a única gaveta chaveada. Quando fora procurar pela lista dos amantes de Karen, tivera de levar um amigo consigo, um arrombador de portas de automóveis. Enquanto o rapaz gastava os trocados ganhos com o serviço no Colono Tranquilo, Franco descobria que possuía sobrenome. Não era diabo loiro nem psicopata. Recolhera o envelope e se sentara na poltrona onde somente os visitantes possuíam a honra de usufruir. Retirara a folha timbrada com curiosidade. Lera o pequeno texto com atenção. Lera-o dez vezes. Um laboratório de Cuiabá atestava a paternidade do filho da puta e batizava-o a partir daquele momento como Franco Dolejal.

 

       Havia cinco anos, ele, o pistoleiro que comia com a empregada na cozinha, recebia o mesmo salário que Bronson, vivia num casebre no condomínio dos empregados da Arco Verde e jamais viajara para outro lugar que não fossem Santa Fé e Belo Quinto, havia cinco anos que ele era oficialmente o filho de um dos homens mais ricos da região. E, agora, esse homem, o seu pai, pedia para que ele matasse uma pessoa. O problema não era o crime em si. Mendes era praticamente um assassino e teria esfaqueado Karen até a morte. O que o enojava ao ponto de se recusar a buscar pelo oxigênio e permanecer no lodo, no fundo do rio, era o fato do patrão saber há tanto tempo que era seu pai e que ele, Franco, era o seu único filho.  Ele sabia; Franco não. E mesmo sabendo nada mudara. Nenhum gesto, nenhuma pista a não ser a proteção irrestrita àquele que estaria sempre à sua disposição pronto a protegê-lo e salvá-lo, mesmo que para isso se interpusesse entre as balas e o corpo do patrão, como quando quase morrera. Não, ele não voltaria.

 

       Nova admirava as águas que se mexiam em ondas delicadas. O mato ralo debaixo de seus pés nus não fazia barulho, porque havia uma camada de barro preto que o umedecia. Incerta do que fazer, já que Franco desaparecera de seu campo de visão, ela coçou a cabeça e olhou ao redor. Para onde teria ido? Que estava mais sério do que nunca era verdade. O sorrisinho arrogante que acompanhava a postura irônica e superior cedera a uma imagem de introspecção. Ele parecia voltado para dentro, como se tentasse ajeitar a mente, arrumar a bagunça dos pensamentos ou aquietar a alma. Ele estava pacífico. Mas até mesmo essa passividade era agressiva. Começou a ficar nervosa ao conjecturar que ele poderia ter sido atacado por um bicho.

 

       – Franco! – gritou, descendo a encosta do rio, meio escorregando, meio se segurando nas raízes expostas das árvores.

 

       A terceira tentativa escapou-lhe da voz de um jeito esganiçado e histérico. Jamais tivera que salvar alguém na vida. A bem da verdade, ninguém nunca precisara dela para isso. Sem pensar duas vezes, porque se o fizesse, não pularia nas águas profundas e traiçoeiras do Rio Verde, mergulhou de boca e olhos fechados. Despencou para um abismo longo até bater os pés numa gosma com pedrinhas pontiagudas. Imediatamente, impulsionou o corpo para cima até respirar o ar úmido da clareira. A água alcançava-lhe o peito, caso ficasse saltitando feito um astronauta na lua. Pulando, revezando um pé e outro, ela chamava por Franco. Vez por outra, engolia um pouco de água e tossia. Mergulhou e tentou abrir os olhos. Não conseguiu, pois tinha um medo bestial e ilógico de ficar cega. Emergiu num salto forte e gritou, abrindo tanto a boca que metade do rio desceu junto com a sua saliva. Engasgou-se e começou a tossir, desesperadamente. A aflição só aumentou quando já não conseguia mais tocar o fundo do rio com os pés. Debatia-se como as pessoas que se afogavam o faziam antes de afundarem.

 

       Franco surgiu à sua frente como um daqueles monstros aquáticos gigantescos dos filmes japoneses. Os olhos de um azul claro quase verde, límpidos, fixados nela. Estendeu-lhe o braço e enrodilhou-lhe a cintura, trazendo-a para si. Um gesto rápido e exato, e ela estava segura nos braços dele.

 

       Nova tossiu mais um pouco até conseguir falar, ofegante:

 

       – Pensei que tivesse se afogado.

 

       Ele sorriu e manteve o braço ao redor do corpo dela, boiando juntos, próximos o suficiente para serem confundidos como uma só pessoa.

 

       − A senhora não quer perder o medo de ter medo? – disse de um jeito desafiador, o olhar quente percorrendo-lhe cada parte da sua face.

 

       − Você, − afirmou. − esse “senhora” me envelhece. – tentou sorrir, a boca tremia e não era de frio, mas também não havia medo. Não aquele tipo de medo que ela já sentira dele. Não, não aquele.

 

       − Dona, eu não sou uma boa pessoa. – avisou, retirando uma tira de mato, grudada na testa dela.

 

       − Eu acho que também não sou. – falou baixinho, sentindo que ele a puxava para junto do seu corpo.

 

       − Primeira lição, então, dona...quer dizer, Nova, − riu-se e continuou: − Você se atirou num rio traiçoeiro, cheio de armadilhas como buracos e pedaços de garrafas quebradas que o pessoal atira aqui dentro, ou seja, um rio cheio de lixo que pode lhe causar uma infecção daquelas se rasgar apele. Além, é claro, das cobras em busca de refeição. Reconheço a sua disposição em me salvar de um possível afogamento, mas, em momento algum, eu me debati pedindo ajuda; pedi, dona? – alçou a sobrancelha, debochado.

 

       Ela somente ouviu uma parte do que ele falou.

 

       − Aqui te-tem co-cobra? – arregalou os olhos.

 

       − Ahan, enguias, sucuris de pequeno porte e umas cobrinhas sem graça que eu não sei o nome, mas, fritas, são deliciosas. – comentou, sorrindo, exibindo os dentes alvos.

 

       − Me tira daqui, pelo amor de Deus! – gemeu.

 

       Ergueu as pernas olhando para todos os lados. A qualquer movimento suspeito subiria nos ombros do pistoleiro.

 

       − Tem que pagar pedágio. – disse, incisivo.

 

       − O quê? Deus, senti um negócio estranho perto da minha bunda. Cadê o teu outro braço, Franco? – exasperou-se.

 

       − Aqui, dona, − ergueu os dois braços, soltando-a na água e disse num tom divertido: − Não passei a mão na sua bunda, não.

 

       Ela pulou no colo dele e enlaçou-lhe o pescoço pedindo com a feição pálida:

 

       − Não tem problema, pode pôr a mão na minha bunda, mas pelo amor que devota ao seu armamento pesado, me tira daqui!

 

       − Paga o pedágio! – ordenou, sorrindo.

 

       − Caramba, qual a idiota se atiraria no rio com a carteira de dinheiro?

 

       Até alguns minutos atrás, o mundo de Franco era um mundo artificial, de relações artificiais. Ninguém tentara salvá-lo ou protegê-lo, uma vez que era ele o segurança. Ou porque tinha a genética ruim? Ele não estava bem certo da resposta. Entretanto, a mulher de um metro e meio e possíveis quarenta e poucos quilos tentara resgatá-lo sem se importar em se afogar também. Era por isso que Franco sorria e exigia o pagamento do pedágio.

 

       − Me beija, dona, é esse o pedágio.

 

       Como se recebesse um golpe no meio do crânio, ela o fitou à espera de ver um sorriso irônico. E viu Franco.

 

       − Está de brincadeira, não é? – falou baixinho, sondando-o: − Olha, garoto, não quero lhe desanimar, mas eu tenho pelo menos dez anos a mais que você e...

 

       A boca de Franco era macia e, ao mesmo tempo, firme. Ela gemeu ao contato quando ele decidiu lhe calar com um beijo profundo. Nova beijara vários homens e conhecera vários tipos de beijo. Era experiente, viajada, culta e falava três idiomas fluentemente. Naquele momento, enlaçada pelos braços musculosos de Franco era posta do avesso sem muito esforço. Quando ela gemeu ao percebê-lo se afastar, descobriu que não era essa a sua intenção. Mordiscando-lhe o lábio inferior enquanto prendia-lhe o corpo colado ao seu, avançava língua, demarcando território de posse e deixando-a louca de desejo.

 

       A senhora de cabelos aloirados e ralos gesticulava ao contar como havia sido sua manhã ao ser acordada pela polícia. Os vincos ao redor da boca aprofundavam-se enquanto ela relatava as palavras do delegado ao bater à porta do seu quarto e dizer de forma branda mas incisiva: “Vó, a Karen precisa de sua ajuda”.

 

       – Olha, menina, por pouco não caí da cama. – disse Ninita, levando a mão ao peito de um jeito afetado. – Quando vi que não era brincadeira e que era mesmo o delegado, vesti meu robe, abri a porta e me assustei com a palidez desse homem! Puta que pariu, Karen, o que você foi fazer no meio do mato com o capanga daquele safado do Dolejal?

 

       – Ô, bisa, a senhora não sabe o que é um sequestro? – perguntou Johnny com as mãos na cintura em desafio e continuou parecendo zangado: – É quando a pessoa é pega à força, sabe? Que coisa!

 

       – Sei o que aconteceu, só estou brincando, seu fedelho. – ralhou, piscando o olho para a neta, deitada na cama e recém-regressa do mundo espetacular dos sedativos intravenosos. – Tudo o que tem a fazer agora é descansar e deixar que eu e o fedelhinho tomemos conta do condomínio, viu?

 

       A paciente em questão sorriu, debilmente, feliz em poder rever a sua família. Principalmente, Johnny. Ao abrir os olhos, dera de cara com o rosto belo e jovem do garoto, e ele parecia mais velho, fosse pela ruga de preocupação no meio da testa ou dos olhos castanhos profundos que revelavam um tempo maior que seus 15 anos no planeta. Fora ele quem primeiro sorrira e dissera que estava tudo bem. Como sempre, Karen acreditou nele.

       – Certo, mas me mantenham informada. – disse ela. – Ouvi o médico dizer que me daria alta em dois dias, caso tudo corresse bem. Não é mesmo? – endereçou um olhar interessado em direção aos dois médicos presentes, o clínico e Cris. Foi o segundo que respondeu:

 

       – O quanto antes deixar o hospital melhor para você, Karen, pois estará livre do contágio de outras doenças. Mas, claro, temos de ter certeza antes de liberá-la. De qualquer forma, o corte não atingiu nenhum órgão, ele simplesmente penetrou nessas gordurinhas laterais que temos.

 

       – Quer dizer, doutor Cristiano, que minhas gorduras localizadas me salvaram? – indagou, despreocupada.

 

       Ele sorriu e assentiu.

 

       – É, por aí. Digamos que se você fosse magrela, o prejuízo causado pelo ataque teria sido pior, sim.

 

       Ela exclamou com certo ar de amargura:

 

       – Mulher de sorte!

 

       – Sim, mulher de sorte. – assegurou Cris, gravemente. – Quando tenho de encontrar uma mãezinha no corredor tremendo de medo de perder o filho para a dengue hemorrágica ou a malária ou a pneumonia e digo a ela que o seu filhinho está resistindo bravamente contra a doença, falo a mesma coisa, “seu filho é um garoto de sorte”, já que está tendo a chance de lutar pelo menos.

 

       Karen percebeu que o médico estava mal-humorado, e o seu colega também o percebeu, pois o interrompeu adicionando um sorriso à fala:

 

       – Dez pontinhos, não se preocupe, todos costurados por dentro da pele. Daqui a uma semana, terá de ir ao posto de saúde para retirá-los.

 

       Karen sorriu, evitando encarar o doutor Bittencourt.

 

       – Obedecerei aos meus médicos, quero muito ter alta. – prometeu.

 

       – É bom que queira mesmo, porque nem sempre temos o que queremos. – afirmou de forma convicta Cristiano Bittencourt, crispando os lábios e endurecendo os maxilares.

 

        O clínico encolheu os ombros como se dissesse “o meu colega deve estar numa fase ruim” e assinou o papel na prancheta. Ao passo que Karen manteve o sorriso frágil no rosto, desconfiando que o ultimato da amiga houvesse balançado as estruturas do pediatra. E, como se o mesmo lesse os seus pensamentos, acrescentou:

 

       − Nova esteve aqui há pouco. – meio contrariado, completou: − Logo voltará para vê-la. Ah, e o Rodrigo também. – comentou, casualmente.

 

       Ouvir o nome de Rodrigo provocou em Karen uma sensação agradável de vínculo e intimidade. Tanta coisa havia acontecido nas últimas horas. Dois mundos em colisão sem, no entanto, provocarem catástrofes ou destruição.

 

       − E o Mendes, doutor?

 

       Cris voltou-se com atenção para a paciente, farejando no ar a intenção da pergunta, que não lhe pareceu casual.

 

       − Pelo o que o Rodrigo falou, ele será indiciado por sequestro e tentativa de homicídio. No momento, está no ambulatório com o Lucas. Mas você não deve pensar nele, e sim juntar forças para voltar à ativa. A enfermeira lhe ensinará a limpar os pontos. Terá de ser mimada por um tempo, Karen. Veja quem pode cuidar de você.

 

       A porta foi aberta, e o delegado surgiu com o chapéu na mão e uma sombra nebulosa no rosto. Ainda não se barbeara e o tom azul dos pelos ralos despontava sobre os maxilares. Tinha os olhos toldados pelo cansaço físico, parecia que não dormia havia semanas. Cumprimentou todos com um gesto discreto com a cabeça e endereçou sua atenção à moça deitada sobre dois travesseiros, com um lençol verde, de hospital, cobrindo-a até a altura dos ombros.

 

       Ele não sabia o que dizer. Vendo-a frágil no leito, as palavras, as melhores, haviam-lhe escapado. Um misto de alívio, alegria e preocupação se revezavam sem lhe poupar o coração. Manteve-se à porta, permitindo que os médicos, Johnny e vó Ninita ocupassem o espaço ao redor do leito de Karen. Apesar do ocorrido nas últimas horas, de tê-la resgatado das garras do maluco do Mendes, ainda assim não sabia em que pé estava sua situação com ela. No fundo, não se sentia nada bem. O infeliz a sequestrara debaixo do seu nariz. Que tipo de proteção podia lhe oferecer depois disso?

 

       − O Mendes está com um hematoma na testa bem maior que o seu. – constatou Rodrigo, sorrindo, encabulado.

 

       Ela retribuiu o sorriso tentando se pôr sobre os cotovelos. Sentiu uma ferroada latejante na parte lateral do abdômen e recuou, tornando a deitar. O clínico ajeitou os travesseiros com uma expressão severa na face:

 

       − É muito cedo para a senhora se sentar. Mais tarde, aos poucos, poderá voltar a se mexer mais.

 

       − Paciência é a alma do negócio. – brincou a vó.

 

       – Paciência e iodo. – acrescentou o clínico com bom humor. Voltou-se para Karen e falou: – Mais tarde, venho lhe fazer outra visitinha.

 

       Acenou com a cabeça para todos e saiu após o delegado ceder-lhe passagem. Rodrigo, definitivamente, não tinha coragem de se aproximar de Karen.

 

       Mas ela estava disposta a falar e, por isso, tentou ajeitar-se melhor na cama. Cris aproximou-se rapidamente antes que ela derrubasse o soro ou o arrancasse da veia.

 

       – Quer erguer mais a cama? – perguntou, solícito.

 

       Karen observou que ele tentara sorrir, e era possível que estivesse constrangido pela oscilação de humor de antes. Assentiu levemente com a cabeça, esperando que a parte superior do leito fosse levantada. O médico girou a manivela até obter uma inclinação suave.

 

       – Está melhor?

 

       – Sim, obrigada, doutor. – agradeceu e, endereçando um olhar curioso ao filho, perguntou: – Matou aula hoje, não?

 

       – Claro, não tenho cabeça pra estudar com você aqui. – afirmou como se fosse um homenzinho.

 

       – A gente tem de voltar ao condomínio, querida. Agora, sem zelador, está vazio. Ah, por falar nisso, os inquilinos ficaram preocupados com você e lhe desejaram melhoras... mas como eles já saíram para o trabalho, está tudo às moscas. – disse a vó.

 

       – Posso levá-los para casa. – ofereceu-se Rodrigo.

 

       – Acho melhor não, delegado, – falou Ninita e completou: – Se o povo vê o senhor gastando gasolina de um veículo público para resolver algo de cunho pessoal, vai dar o que falar. Conheço essa gente, quando não tem o que fazer, falam demais da conta!

 

       Rodrigo sorriu de forma simpática e falou:

 

       – É verdade, vó, mas o veículo não é público nem a gasolina. Abasteço a minha picape do meu bolso e, assim, posso carregar para lá e para cá as minhas passageiras. Inclusive, – começou dizendo num tom divertido: – se a senhora não se importa em dividir espaço com uma cadela ciumenta, podemos ir agora mesmo.

 

       Karen abraçou o filho e beijou-lhe a bochecha:

 

       – Cuida de tudo por lá

 

       Ele assentiu com a cabeça, sorrindo, autoconfiante:

 

       – Pode deixar, mãe.

 

      Beijou e abraçou a avó, e acenou levemente com a cabeça para Rodrigo. Ele estava diferente, na defensiva, a distância. Karen não gostou dessa atitude.

 

       – Voltará? – perguntou a ele procurando ocultar o interesse pela resposta.

 

       Rodrigo relançou um olhar para Cris, que telefonava para alguém no celular e, voltando a atenção para ela, disse sem entonação pessoal na voz:

 

       – Claro, precisamos conversar para agilizar as investigações.

 

       – Que investigação? Você já sabe que foi o Mendes.

 

       – Sei, sim, Karen. – disse de forma a encerrar o assunto por ali. Abriu a porta e afastou-se, a fim de ceder espaço para a passagem de Johnny e sua bisavó.

 

       Karen precisava de mais respostas, já que ficaria o dia inteiro deitada sem fazer nada.

 

       – É só pô-lo atrás das grades e pronto.

 

       – As coisas não são simples assim. – assegurou a ela e emendou: – Além do mais, preciso reunir provas para uma acusação consistente. Não o queremos de volta às ruas, não é?

 

       – Fala de digitais? Essas coisas?

 

       Cris acompanhava a conversa dos dois com um meio sorriso nos lábios. A curiosidade de Karen lembrava a de Nova. Mais que curiosidade havia nisso, também, nessa sede por informação, algo como controle. As duas tentavam controlar o incontrolável. E era visível que o delegado não abriria o jogo para nenhuma delas.

 

       – Muitas coisas, Karen. Procure descansar que eu já volto. – levou a mão à aba do chapéu num gesto de despedida, sorriu e deu-lhe as costas.

 

       – O Rodrigo acredita que foi o Thales que mandou o Mendes me matar, não é? – indagou ela, voltando-se para o pediatra.

 

       – Não é somente ele quem pensa isso.

 

       – O Mendes me disse que o Thales havia desistido da ideia de me expulsar da cidade. Por que ele mentiria sobre isso se ia me matar?

 

       – Olha, Karen, não sei o que passa pela cabeça das pessoas. O que sei é o que aconteceu, o Mendes a esfaqueou e, agora, está tendo um projétil retirado da perna. – declarou Cris quase que se lamentando: – Desde que cheguei aqui tento me acostumar com o fato das pessoas andarem armadas e, lhe digo, não é nada fácil para mim. Eu e a Nova sempre fomos contrários às armas. – ele suspirou resignado e continuou – No entanto, ela anda por todo o lado com um bandido armado.

 

       – É verdade, o Mendes era o segurança da Nova... – disse Karen, pensativa.

 

       Cris mordeu o lábio inferior, tenso.

 

       – Era, sim. Que belo segurança, hein! E, agora, ficou melhor ainda. Ela me disse que pedirá demissão do Jornal e deixará de escrever o livro do Dolejal. Mas pelo visto não abrirá mão do segurança.

 

       – Como não? O cretino está preso.

 

       – Quem supostamente a protege agora é o Franco. Dá para acreditar nisso? – indagou com ironia. – Ela sempre morreu de medo dele.

 

       Karen fitou-o com atenção.

 

       – Por que você não a protege, então?

 

       Ele sorriu mesmo que sentisse na boca do estômago o punho fechado da mulher que o fitava em desafio:

 

       – Eu salvo vidas. A parte da proteção não é o meu forte.

 

       – Tudo bem, doutor. Se quer entregar de bandeja sua amiga ao diabo... problema seu. Quando minha pele estiver grudada de novo, terei uma boa conversinha com o Franco. Deixarei bem claro que se ele falhar com Nova, acerto o meu taco de beisebol no crânio de psicopata dele. – assegurou sem sorrir.

 

       Cris franziu o cenho, preocupado:

 

       – Ele tem problemas psiquiátricos mesmo ou é exagero?

 

       – Não sei, um pouco de cada, talvez.

 

       – Quem são os pais desse garoto?

 

       – A mãe era uma vadia de rua, mas não tinha problemas mentais, pelo o que eu sei. E o pai, sei lá, dizem que era o demônio. – falou Karen, dando de ombros.

 

       – O Rodrigo me falou que o Franco é fichado por vandalismo, desacato e desordem. Mas que, extraoficialmente, ele torturou e matou um suspeito de estupro e pedofilia. Dá para perceber que de forma alguma Nova estará segura ao lado desse criminoso. – constatou Cris, com o semblante novamente cerrado.

 

       – A Nova não me parece burra. É um pouco ingênua, sonhadora, aérea, sabe? Mas não é burra. Se achar que está realmente em perigo ao lado do Franco, com certeza, pedirá ajuda ao Rodrigo. – consolou-o Karen.

 

       – Mas jamais pedirá a mim. – murmurou num tom amargo: – Pus tudo a perder.

 

       Karen concordou em silêncio, pensando nas partidas de futebol que assistia com o pai pela televisão. O velho sempre dizia que time que não fazia gol, tomava. Pois é, vendo o médico lhe acenar com a cabeça se despedindo e saindo do quarto, ela pensou a mesma coisa sobre Cris e o seu modo de lidar com Nova. Era provável que Cris fosse rebaixado à segunda divisão.

 

       Quando deitou a cabeça contra os travesseiros, suspirou profundamente. A dor desaparecera devido ao analgésico. Por um momento, ainda pensou em Nova, considerando os motivos de iniciarem amizade somente agora, mesmo tendo dois amigos em comum como Cris e Rodrigo. Não podia dizer que admirava a recente amiga o suficiente para se identificar com ela. Era difícil entender e aceitar que uma mulher vivesse à sombra de um homem e de um relacionamento unilateral e sem futuro. Mas também não seria essa a razão para evitar a companhia da jornalista-cantora. Havia em Nova uma graça e um frescor de quem ainda acreditava em dias melhores, em homens confiáveis e na força do amor. Ela era diferente de Valéria, por exemplo, com uma aspereza regada à lucidez e álcool. Nova era como um girassol em busca da luz. E ela, Karen, era mais como uma mariposa queimada. Verdade universal: luz demais cegava ou feria.

 

       Ele tentou se afastar mais uma vez. Via-se no azul de seus olhos o quanto tentava se controlar. As narinas dilatadas, as órbitas oculares congestionadas, a feição inteira clamando pela consumação final do ato. A boca úmida e inchada pedia para que ela o beijasse novamente, ainda e sempre, como há vinte ou trinta minutos o faziam. Era para ser um simples pedágio, uma taxa simbólica revertida num selinho inofensivo. Contudo, tratando-se de Franco, nada era inofensivo. E, ao vê-lo se retrair num gesto discreto de afastamento, ela observou que o loiro à sua frente parecia-se mais com um anjo do que com o diabo. Apenas a barba rala destoava da face bonita e angelical. O que mudara após um simples beijo? Ele já não era mais um pistoleiro perigoso? Ela já não mais o temia? Nova sorriu para Franco e considerou que o pistoleiro perigoso provocava-lhe mais medo do que nunca, um medo bom e excitante.

 

       Ela buscou-lhe os lábios outra vez. Um vício recente e delicioso, o sabor daquela boca feita para beijar e ser beijada. Cada terminal nervoso de seu corpo despertava, revivia e explodia provocando-lhe minúsculos espasmos elétricos. Aprofundou a investida, a mão apertando-lhe a nuca sobre o cabelo molhado, pressionando-lhe o rosto contra o seu. Ao redor de suas costas, dois braços agarravam-na como boias seguras sobre o oceano selvagem. Nunca se sentir tão cheia de vida lhe pareceu tão erótico. Mas ele quebrou o momento ao se afastar de forma abrupta:

 

       – O que foi? – ela o queria.

 

       Franco fez um sinal negativo com a cabeça.

 

       – Não posso, dona.

 

       Ela riu sem jeito.

 

       – Precisa pagar pedágio, Franco.

 

       Ele encarou-a com os lábios crispados e disse mal os descolando:

 

       – Acha mesmo que tem condições de jogar comigo?

 

       – Eu... eu só estava brincando. – corou.

 

       – Não brinque, dona Nova, meu senso de humor é limitado. Ainda mais quando estou pelado e louco de tesão. A senhora não faz ideia do quanto estou me segurando para não fazer uma besteira... – ele puxou o ar e expirou-o profundamente, completando, ainda sério: – Errei e peço desculpas. O patrão diz que sou um merda impulsivo, e é a mais pura verdade. Mas, porra, estou tentando fazer a coisa certa agora. A senhora é uma mulher decente e...

 

       – Ah, entendi. – não escondeu a frustração: – As meninas boas devem ser cortejadas e as más, comidas.

 

       Franco franziu o cenho, intrigado. Mesmo assim, afastou-se, nadando em direção à beira do rio, abandonando-a.

 

       – Mais um cretino que me rejeita. – murmurou, irritada. O que teria de fazer para transar naquela cidade?

 

       Encontrou-o à porta da picape, vestido no jeans e dentro de suas botas. O chapéu enterrado na cabeça e um olhar significativo percorrendo-lhe o corpo. Apontou para a própria camiseta sobre o capô e falou:

 

       – Tire essa roupa molhada e vista a camiseta. Espero que goste do Led Zepellin.

 

       Ela deu de ombros, torcendo a boca com menosprezo. Antes que pudesse pegar a roupa seca, ele a puxou pelo pulso e disse baixinho:

 

       – Eu teria sido mais homem se tivesse estuprado a senhora no rio?

 

       – Não, Franco. – respondeu, encarando-o.

 

       – Então não me olhe com essa cara de superior. – disse com rispidez sem, no entanto, elevar o tom da voz: – Não costumo ser tão cavalheiro. Tome tal atitude como um elogio a sua pessoa.

 

       Ela riu com amargura.

 

       – Obrigada. – em seguida, comentou: – Ouvi por aí que já dormiu com quase todas as garotas de Santa Fé, que o seu critério é bastante sofisticado, basta que sejam maiores de idade.

 

      – Falam demais, essa é a verdade. – interrompeu-a com um sorriso fraco, parecia sem graça. – Sou apenas um homem tentando viver o tempo que ainda me resta.

 

       – Por acaso está doente?

 

       – Claro que não. Mas, caramba, sou um desgraçado com algumas armas pelo corpo e um punhado de inimigos. Se eu passar dos vinte e cinco é lucro. – disse, indiferente. – Por isso, não faça como as menininhas de Santa fé, não se apegue a mim. – completou de forma arrogante.

 

       Nova riu e bateu amistosamente no ombro dele.

 

       – Nossa, Franco, você faz uma força danada para afastar as pessoas, não é?

 

       – E, graças ao bom Deus, eu consigo. – debochou.

 

       – Claro que consegue, ainda mais que com isso se ressente do triste destino que o bom Deus lhe concedeu. – devolveu o deboche. – Pobre bastardo, filho de prostituta, malvadão e sem escrúpulos.

 

       – Ai, ai, começou a terapia.

 

       – E terminou por aqui. – afirmou ela e continuou: – Todo mundo sofre, Franco, uma hora ou outra a bomba explode, é a vida. E a gente pode catar os pedaços e continuar vivendo ou virar a vítima do destino. Ninguém passa ileso pelo planeta, meu bem.

 

       – Pensei que a senhora fosse uma pessoa boa. – estreitou os olhos, avaliando-a.

 

       – Pensou errado, Franco, eu sou má, muito má. Por isso, já lhe aviso, não se apaixone por mim também, não quero que sofra ainda mais – afirmou em desafio.

 

       Ele sorriu de um jeito preguiçoso, armando o sorriso devagar nos lábios, sorvendo a provocação e convite dela.

 

       – Vou dar uma volta enquanto a dona troca de roupa. Depois pensarei numa forma eficiente de puni-la por ser... como disse... má. – enfiou as mãos nos bolsos traseiros do jeans de um jeito jovial e displicente.

 

       Antes que ele se afastasse de todo, Nova provocou-o sem sorrir. Ela estava muito irritada com os homens.

 

       – Não tenho certeza de que seja um bom segurança, Franco, pelo menos enquanto não vê-lo manejar a sua pistola.

 

       Franco parou, considerou o que acabara de ouvir e riu alto, dizendo:

 

       – A dona é doida.

 

       Ao alcançarem a avenida central, Franco virou a cabeça em sua direção e perguntou:

 

       – Hospital ou casa?

 

       –Seria interessante andar por aí vestida numa camiseta que mais parece um minivestido e, ainda por cima, sem calcinha. – ironizou, observando o movimento no centro da cidade.

 

       Ele se confundiu com os pedais e o veículo sacolejou o suficiente para soltar parte do para-choque traseiro.

 

       – Opa, merda! – exclamou Franco contornando a situação e voltando-se para ela, incrédulo: – A senhora está sem calcinha?

 

       – Não interessa. – disse mal-humorada, de olho na avenida e nos carros à frente.

 

       – É melhor que troque de roupa, depois levo a senhora até o hospital.

 

       – Certo. – disse, simplesmente.

 

       Naquela hora, as calçadas recebiam os transeuntes e suas sacolas de compras. Algumas pessoas, tementes ao sol e ao câncer de pele, abrigavam-se debaixo de sombrinhas coloridas e guarda-chuvas pretos. Junto ao meio-fio das calçadas, inúmeras bicicletas estacionadas.

 

       Ela olhou o motorista de esguelha e viu-o voltado para o trânsito. Mas ele não estava com a cabeça dentro do corpo.

 

       – Quer dormir comigo, dona Nova? – foi simples e direto.

 

       Ela sentiu o coração bater feito um doido entre as costelas. O ar faltou e a garganta competia em aridez com o deserto do Arizona. Jamais teria paz com esse homem. Endereçou-lhe um longo olhar, no qual se lia vontade e desejo. Respondeu que sim.

 

       Ele assentiu levemente com a cabeça, acatando-lhe a decisão. E completou com um sorriso:

 

       – Conheço um hotel fora da cidade.  – e isso resumia tudo o que ela precisava saber.

 

       Medo e excitação. Nova, aos poucos, soltava as amarras de uma vida conhecida e antiga. Provavelmente, em extinção.

 

       – Preciso resolver um negócio antes, mas não demorarei. – voltou-se para ela e piscou o olho: – Se mudar de ideia é só me avisar, não quero forçar a barra. Tem o meu celular, é só ligar.

 

       – Digo o mesmo para você. – cogitou ela, sem fitá-lo.

 

       Ouviu-o rir baixinho.

 

       – É impossível que eu mude de ideia... – em seguida, tocou-lhe no joelho e perguntou: – A senhora é boa no gatilho?

 

       Ela engoliu em seco, mas não perdeu a pose:

 

       – Para falar a verdade, não sou muito boa com as automáticas. Só tive intimidade com um .38 com cinco anos de uso e problemas de travamento.

 

       – Deixa comigo, então. Teremos bastante tempo para praticar. – considerou ainda lhe segurando com firmeza e erotismo. – Tem algum compromisso para os próximos dias?

 

       É, de fato, com esse homem ela jamais teria paz – pensou Nova, adorando a previsão.

 

       Karen conhecia Rodrigo desde quando ele era casado. Chorara ao seu lado ao enterrar a sua mulher. Sabia tudo sobre os seus trejeitos de caubói, seu jeitão brusco de falar, os rictos do seu rosto e, depois da última noite, sabia quase tudo sobre o seu corpo e a sua maneira de amar. Sim, eles haviam feito amor. E fora a primeira vez de Karen. Com Rodrigo, tudo era diferente. Admirava-o como pessoa, homem e profissional. Assim, tê-lo como amante era estender tal admiração para a cama. Gozara como uma fêmea e também se sentira acarinhada, querida, amada como mulher e pessoa. Um mundo novo e estranho. Um lugar onde sensações e sentimentos se misturavam sem se perderem, a nuance de um ressaltando o melhor do outro. Um lugar para o qual os seus pensamentos se voltavam frequentemente. Fechava os olhos e podia aspirar na atmosfera a fragrância amadeirada da pele dele, sentir as mãos grandes segurando-lhe debaixo das nádegas enquanto a penetrava fundo, todo, beijando-lhe o pescoço e balançando-a ao sabor das ondas do mar.

 

       Ele estava no quarto, segurando o chapéu e encarando-a, tentando descobrir se haviam feito sexo casual ou sexo com música.

 

       – Como se sente? – ele perguntou.

 

       Em relação a nós?,ela quase devolveu a pergunta.

 

       – Bem melhor que ontem. – sorriu e estendeu-lhe a mão. – Você me salvou de novo, Superman.

 

       Ele pegou-lhe a mão e sorriu sem jeito.

 

       – Se o Superman estivesse atento, o Mendes jamais a teria sequestrado. Desculpe a falha, Karen. – lamentou.

 

       – Deixa de ser bobo, Rodrigo. Ele já devia estar me vigiando há algum tempo. A qualquer momento me pegaria. – disse, incisiva.

 

       Rodrigo levou a mão dela aos lábios e a beijou.

 

       – Você quase me matou, guria. – disse, sorrindo com ternura.

 

       – Desculpe, estou ficando velha, noutros tempos dava um jeito no pançudo. – comentou em tom de brincadeira.

 

       – Mas não se preocupe com ele, amanhã receberá alta e dormirá no catre de cimento da delegacia. Dolejal o demitiu e disse que não designará advogado para defendê-lo. – sentou-se na cadeira ao lado do leito e completou: – Parece que o alvo era o Franco, e ele apenas a usou como meio.

 

       – E é essa a conclusão final de suas investigações?

 

       – Não, Karen, essa é a premissa inicial.

 

       Ela tentou sentar-se e gemeu. O delegado ergueu-se rapidamente e segurou-a pelos ombros a fim de auxiliá-la.

 

       – Tudo bem, tenho de forçar um pouco, não posso ficar deitada o tempo inteiro. – argumentou.

 

       – É, mas não força demais também, dona Karen. – censurou-a. – Quer que eu abaixe a cama?

 

       – Não, está ótimo. – respondeu com um meio sorriso e indagou com interesse: – Vai descartar o seu amiguinho das investigações?

 

       Rodrigo sorriu e fez um sinal negativo com a cabeça.

 

       – A única pessoa descartada é o Franco, e isso porque o encontrei completamente grogue na cama. – ele ajeitou-lhe uma mecha de cabelo atrás de sua orelha e disse com gentileza: – Assim que melhorar tomarei seu depoimento. Agora, o importante é que se recupere.

 

       – Foi ele, Rodrigo. – murmurou, apertando entre os dedos a barra do lençol. – Ele me disse que queria que eu desaparecesse de sua vida.

 

       – As pessoas falam coisas no calor de uma discussão e depois se arrependem. – ponderou o delegado. – Isso não significa que eu esteja protegendo-o, viu? Mas preciso ser objetivo e imparcial. Se ao longo dos depoimentos suspeitar de Dolejal, ele será tratado da mesma forma que o Mendes. Você me conhece, já estava aqui quando cheguei, e sabe muito bem que pode confiar em mim. Estou a serviço do que é certo, e não de um coronel ou de um... de alguém que já considerei como amigo. – disse, gravemente.

 

       – Romperam relações? – indagou, unindo as sobrancelhas numa expressão de desconfiança.

 

       Ele suspirou resignado e a olhou por um longo momento.

 

       – Então... suspeita dele, não é?

 

       – Prefiro não falar sobre isso. – crispou os lábios e desviou os olhos dos dela, baixando a cabeça e admirando as mãos delicadas e femininas descansando sobre o tergal verde.

 

       − Está cansado, vá para casa dormir. – disse ela, preocupada com o seu estado físico.

 

       Ele suspirou e falou:

 

       − Quando tudo se resolver, eu descanso.

 

       − E depois diz que a Nova é teimosa. – brincou e foi recompensada com um sorriso.

 

       − A Nova é teimosa e encrenqueira, pobre Cris. – balançou a cabeça devagar. – Agora, ela resolveu ignorá-lo, está fazendo um jogo duríssimo, a minha amiga.

 

       − Rodrigo... – ela começou a falar, mas as palavras lhe fugiram ao vê-lo encará-la com suavidade à espera de algo bom e bonito.

 

       − O que foi, Karen?

 

       Ela molhou os lábios secos com a língua e disse tudo de uma vez:

 

        − Preciso de um tempo para mim. Não consigo parar de reviver a última noite, pensei que morreria e achei tão ridículo morrer sem ter feito nada que prestasse...

 

       − Fez o seu filho. – assegurou com firmeza.

 

       − Claro, é verdade. Mas... preciso quitar minhas dívidas.

 

       − Posso ajudá-la com isso.

 

       − É claro que sim, mas não quero mais nenhum homem interferindo na minha vida, entende? Todos eles, de um jeito ou de outro, acabam me ferrando. O coronel, o Dolejal, o meu pai, o Mendes e até o filho da puta do Alemão.

 

       Rodrigo fechou a cara e falou secamente:

 

       − Mas têm os que a ajudam, como o Johnny, o Cris e eu. Se quer saber, até o Franco fez de tudo para encontrá-la ontem. Não generalize, como sempre.

 

       − Nenhuma promessa foi feita. – disse num fiapo de voz.

 

       Ele riu com desprezo e levantou-se batendo em retirada.

 

       À porta, voltou-se e sentenciou:

 

       − Um relacionamento é construído por duas pessoas, Karen, e você é apenas uma delas. Nada está decidido ainda.

 

        Franco esperou na picape enquanto ela trocava de roupa. Escolheu um vestido tomara-que-caia longo, de verão, com flores miúdas e calçou sandálias de salto baixo. Admirou-se em frente ao espelho e sorriu. Estava com as emoções à flor da pele e, ao mesmo tempo, sentia-se diferente, como se um fio delicado de eletricidade lhe percorresse o corpo. Os pelinhos na nuca arrepiados e um calor de expectativa na boca do estômago. Asperjou perfume, pegou a bolsa e uma mochila com poucas roupas e acessórios de higiene e saiu.

 

       Podia ter deixado um bilhete para Cris. Gostaria de vê-lo ler: “Passarei uns dias com Franco. Na cama com Franco. Fazendo sexo com Franco. Alguém me quer, Cristiano Bittencourt. Alguém viu o que você não foi capaz de ver. Cuide-se. Beijos. Sua amiga, Nova”. Se ele fora insensível ao ponto de deixar o celular para ela ler as mensagens da doutora Janete, por que deveria poupá-lo?

 

       Decidiu, por fim, deixar um bilhete sobre a mesa, escrito apenas: “Passarei uns dias com um amigo”.

 

       Ao deixá-la em frente ao hospital, Franco disse-lhe que faria algo por ali e, em seguida, voltaria para buscá-la. Salientou mais uma vez que se mudasse de intenção, que não se sentisse constrangida para lhe telefonar. Enfatizou cada palavra com os olhos sérios e cravados nos dela. Em momento algum ela cogitou tal possibilidade.

 

       Conversou por meia hora com Karen. O suficiente para resolver o seu problema de moradia. Já havia decidido que não tornaria a dividir o mesmo teto com o médico. Era verdade que mudava de ideia a todo instante. Porém, a decisão de ter o seu próprio espaço, sozinha, enchia-a de energia, revigorava-a sobremaneira. Acertaram o valor do aluguel e o dia da mudança.

 

       − O mais rápido possível. – acrescentou Nova.

 

       Karen sorriu diante da expressão facial radiante da outra.

 

       − Fique com o bangalô recém-reformado, acho que é o único que não tem infiltração. – depois emendou com malícia: − Se está tão doida para ter o próprio canto é porque arranjou alguém.

 

       − É possível. – corou e cruzou os braços para trás, sem jeito.

 

       Como Karen reagiria se dissesse que o seu novo “alguém” era o pistoleiro que a ameaçara expulsar da cidade a mando do examante?

 

       − Ele é bom pra você?

 

       A pergunta pegou-a de surpresa.

 

       − Ainda não sei, é muito recente. – respondeu ela, procurando desviar os olhos da amiga.

 

       − Fique esperta, está carente por causa da situação com o Cris. Não acredite em qualquer malandro, sabe o quanto os homens se aproveitam quando estamos fragilizadas. Se não quer se machucar, pense neles como adversários e não como salvadores ou protetores. Digo isso porque gosto de você.

 

       − Ganhei uma irmã mais velha, bom, pelo menos, um ano mais velha. – disse Nova rindo e completou com bom humor: − Entendo sua preocupação, mas eu não sou tão idiota quanto pareço. Além do mais, tenho certeza de que se o camarada se aproveitar de minha inocência, o “seu” salvador, Karen, o senhor delegado, cairá em cima dele.

 

       − É, o Rodrigo tem a síndrome de super-herói, e tenta salvar até quem não está em busca de salvação. − disse, resignada.

 

       − Não seja dura com ele, Karen, o homem está apaixonado.

 

       Karen controlou a risada, não queria sentir dor.

 

       − Você é uma romântica, Nova, vê amor e paixão em tudo. – ironizou.

 

       A outra fitou as próprias mãos e concluiu:

 

       − Sempre fui assim,sabe? Lia historinhas de amor e acreditava que um dia viveria uma de verdade. – deu de ombros, indiferente. – Agora, só quero encontrar alguém que me dê um bebezinho. Ou vai dizer que o amor entre você e o Johnny não é verdadeiro? – provocou-a.

 

       Karen sentiu uma onda tépida e amorosa percorrer-lhe a corrente sanguínea, suspirou fundo e sorriu ternamente:

 

       − É o maior de todos os amores, Nova. Mas, sinceramente, não acredito que queira usar os caras como meros reprodutores. Acho que pensa assim para se sentir melhor. Cuidado com as armadilhas que a gente cria para nós mesmas. Falo isso por experiência própria, eu sempre fui a minha maior inimiga... e acho que continuo sendo. – disse, pensativa. A imagem de Rodrigo saindo do quarto com os olhos cheios de mágoa não a deixava em paz.

 

       − E eu não sei? Afundei minha carreira jornalística, aqui, em Matarana. E o que é pior? O único Jornal da cidade é do Dolejal e quero distância dele e dos seus... e de alguns dos seus pistoleiros. Sabia que era o Mendes o meu segurança? – indagou de um jeito teatral.

 

       − Duvido muito que alguém do coronel esteja lhe vigiando, é mais provável que o Thales tenha oferecido seus seguranças para que ele próprio fique de olho nas suas investigações sobre os colonizadores. – considerou Karen e perguntou: − Por acaso está com Franco?

 

       Nova se engasgou com a saliva e tossiu muito antes de responder, gaguejando:

 

       − Po-pois é, ele foi, como bem me disse, punido pelo patrão...

 

       − É isso aí, Nova, o Franco agora é quem está vigiando os seus passos e relatando tudinho para o patrão. Ninguém da Coração de Ouro tem interesse em você, ainda mais quando o Pedro cumpre pena em Santa Fé e não é mais problema do coronel. – afirmou, convicta.

 

       − Bem, o Franco vai se ralar, porque não penso mais em livrar Matarana da mentira de sua fundação. Meu objetivo agora é continuar cantando no Gringo e ter o meu bebezinho.  – tentou manter o sorriso leve enquanto suas pernas tremiam.

 

       Após deixar Nova em frente ao hospital, ele contornou o quarteirão e estacionou. Conhecia um caminho que o levava para dentro do ambulatório sem chamar a atenção, era pela entrada dos funcionários, ao lado das lixeiras. Deixou o chapéu no banco e pôs um jaleco branco sobre a camiseta e o jeans.  Ganhou o corredor que o levaria até Mendes. Não era a primeira vez que invadia o hospital a fim de soltar um amigo detido pela polícia ou marcado por outro pistoleiro. Na verdade, era a primeira vez que o fazia para um inimigo declarado.

 

       Caminhava com a naturalidade de um residente de medicina, visto que recolhera de um leito da emergência, a prancheta de um pobre moribundo. Fingiu que compreendia os garranchos do médico que receitava choques elétricos e suicídio coletivo. Ele achou graça; era divertido ser um doutor, ainda mais quando imaginava o que não conseguia ler. Parou em frente à porta do ambulatório onde outras três camas, divididas por biombos, recebiam pacientes que eram rapidamente suturados e despachados para casa. Menos, era claro, o meliante algemado à guarda do leito. Se Franco não fosse experiente na arte do resgate de criminosos de lugares públicos, teria entrado antes de certificar-se de que o policial conversava sem muito interesse com um enfermeiro, entre os biombos do primeiro e segundo leitos.

 

       Franco girou nos calcanhares, pôs a prancheta debaixo do braço e digitou uns números no celular. Ao alcançar o corredor que dava acesso aos banheiros, entrou e escorou-se contra a parede azulejada, as pernas cruzadas displicentemente. Reconheceu a voz do outro lado da linha:

 

       − É o Franco, Lucas. Tenho uma coisa quente para você. – segurou o riso. Detestava a polícia. Principalmente, Lucas, o agente esnobe.

 

       O policial digeria a frase e se preparava para obter mais dados:

 

       − Sobre o quê? – sério.

 

       − Mendes.

 

       − Sei, − disse desconfiado. – me encontra na delegacia mais tarde, então.

 

       − Agora, Lucas. Não falo com o Malverde, ele é amigo do patrão. – foi incisivo.

 

       − Estou com Mendes no hospital... – considerou por um ou dois minutos. Voltou-se para o prisioneiro algemado e com uma faixa pouco abaixo do joelho. Era certo que o pistoleiro não fugiria. – O que tem pra mim?

 

       Franco controlou-se para não responder torto.

 

      − Posso provar que o patrão mandou o Mendes matar a Karen. – afirmou.

 

       Pausa.

 

       − Você tem provas contra o Dolejal? – ironizou.

 

       Aguenta firme, pensava, retesando os maxilares.

 

       − Fiz o trabalho de vocês e mais rápido. O Mendes queria me foder e fui atrás descobrir porque. Mais não conto, só pessoalmente. E o negócio é o seguinte, po-li-ci-al, estou na 163, na Quatro Queijos. Daqui há vinte e três minutos me mando.

 

       Desligou.

 

       Franco deitou a cabeça na parede do hospital, sorrindo. Por que não dissera que o esperava em dezessete minutos e meio? Esgueirou-se até a saída do corredor para ver o policial, mexendo com agilidade no celular, deixar para trás o prisioneiro ferido e algemado. Retirou do cós do jeans, a pistola com o silenciador, o braço escondido por trás da aba do jaleco. Esperou a saída do enfermeiro e entrou no ambulatório. Passou pelo primeiro biombo e encontrou o leito vazio. Sem pressa, seguiu a procissão dos biombos até alcançar o último, no canto da sala com cheiro de éter. A figura atarracada de Mendes, deitado de costas, o jeans rasgado numa perna até a altura do joelho, a faixa branca ao redor do ferimento. Parecia sedado ou dormindo.

 

       − Na cabeça. Não erra, bastardo. – a voz grossa e pastosa.

 

       Mas estava fingindo.

 

      Franco sorriu o seu sorriso mau e apontou para entre as pernas do outro.

 

       − Eu sabia que viria me matar. – rosnou. – Está no seu sangue essa vontade de destruir, rapazinho, no seu sangue.

 

       − Não fui eu quem esfaqueou uma mulher desarmada. Quem é o mal, aqui, velhote? – ironizou, olhando para a porta à espera do enfermeiro. – Que tal tomarmos um chazinho mais tarde e discutirmos quem é o mais malvadão dos dois, hein? Agora, pouca-sombra, tenho de levá-lo daqui. Levanta o rabo da cama se ainda quer viver.

 

       Mendes sentou-se sem deixar de encará-lo com os olhos apertados, entre aturdido e desconfiado:

 

       − Faz o serviço aqui, diabo!

 

       − Sabe quem me mandou acabar com você? – perguntou com um sorriso arrogante que tirava o outro do sério.

 

       − Atira logo, moleque! Seja homem!

 

       Franco retirou do bolso traseiro do jeans o objeto que mudou a perspectiva de vida, morte e vingança de Mendes. Apertou o play do gravador e disse antes da voz de Dolejal aparecer nítida e clara: “Um presente, digamos, de pai para filho...”:

 

       − Hoje, o nosso patrão me chamou ao escritório para me dar de presente essa mocinha aqui, silenciosa e domesticada. Escuta só, Mendes, − tornou a apertar a tecla que deixava a fita rolar e revelar, agora, a voz de Franco: “Em quem devo usá-la?”.

 

       Mendes captou a resposta no ar, estreitando os olhos e torcendo o lábio num esgar de desprezo.

 

       − “O patrão quer que eu dê cabo no Mendes?”

 

      − “De um jeito limpo e sem testemunhas, como fez com aquele pervertido. Se é que não é um tipo de lenda urbana.” – a voz de Thales Dolejal ressoou firme e perfeita.

 

       Franco endereçou um olhar de deboche a Mendes, que apertava os lábios com raiva. Em seguida, falou:

 

       − Então, ele pediu para você me matar. – afirmou com ressentimento. – Depois de tudo o que fiz...

 

       − É, a vida é dura para quem confia nos patrões. – zombou.

 

       − Está se sentindo no topo, não é, bastardinho? Sabia que ele queria matar dois coelhos com uma cajadada só? Acabava com a piranha para ter o terreno do condomínio e, bem, a melhor parte, com você também, atrás das grades.

 

       − Eu já sabia, Mendes. Mas não é o condomínio, é a Karen. – afirmou e deu de ombros ao dizer: − E quanto a mim... bem, e essa é a melhor parte, sou um Dolejal, amigo, sou o único herdeiro de tudo o que aquele filho da puta tem. – riu-se, destilando veneno. – Vem, Mendes, vamos passear na floresta enquanto o Dolejal não vem. – puxou o capanga pelo antebraço.

 

       − Não saio daqui, porra! Me mata aqui mesmo!

 

       − Não grita, imbecil. – pôs a mão sobre a boca de Mendes e emendou quase num sussurrou: − Arranjei um lugar para te esconder e enganar o patrão. Ele vai acreditar que você morreu. Sou um cara justo, não sou? Puxei a minha mãezinha que está no inferno. – olhou ao redor e decidiu: − Se me ajudar a foder o Dolejal, salvo a sua vida miserável, sem graça e medíocre. Topa?

 

       − Vai à merda, bastardo!

 

       Franco enfiou a pistola no cós traseiro do jeans e disse indiferente, aprontando-se para deixar o quarto:

 

       − Aposta quanto que até amanhã tem outro pistoleiro aqui para explodir os seus miolos de velho cachaceiro?

 

       Mendes considerou a ideia. Queima de arquivo. Não importava quem riscaria o fósforo, fosse Franco ou qualquer outro. Talvez fosse melhor aceitar a oferta do bastardo arrogante e salvar a própria pele. Mesmo porque o guri tinha seus dias contados. O corretor da morte, contratado por Dolejal, dera sinal verde para Everaldo acabar com Franco.

 

       A algema foi baleada e rompeu-se.

 

       Mancando e chamando Franco de todos os sinônimos para aqueles que nasciam do ventre de prostitutas, Mendes seguiu para a picape e, depois, para uma casinha de madeira com uma cama e um cooler com garrafas de água e cachaça. Estavam na divisa de terras entre as fazendas de Dolejal e Marau, e o casebre fora construído por Franco, aos 14 anos. Era para lá que ele fugia quando descobria algo a mais sobre o seu passado.

 

       − Tudo o que precisa, velas, papel higiênico, bebida, pão velho e salame com fungo. Amanhã, venho ver se ainda está vivo.

 

       − Acha que é melhor que eu porque salvou minha vida, mas não é mesmo! Nunca vai herdar nem um hectare sequer. Ele jamais daria suas terras de mão beijada para o vira-lata da fazenda.

 

       − É o que veremos, amigo, – disse Franco, consultando o relógio de pulso, e emendou desinteressado pelo assunto – a vida não é uma roda-gigante mas dá voltas. Bem, tenho de ir. Preciso devolver o gravador que roubei. Certos hábitos a gente nunca perde. Mas não se preocupe, não, viu? A sua confissão também foi gravada.

 

       − Filho da puta! – grunhiu.

 

       − Cara, cada vez mais me orgulho dessa condição. – riu-se com escárnio.

 

       Deixaria Lucas à espera da prova prometida, em frente à lanchonete Quatro Queijos. Quem dava as cartas, era ele, Franco Dolejal.

 

       Era a quarta vez que Nova consultava o relógio do saguão do hospital. Mordeu a cutícula do polegar esquerdo, ansiosa. Quarenta minutos de espera. Ele mudara de ideia. Talvez fosse o tipo que dava bolo na última hora, quando a ficha caía, oferecendo-lhe tempo o suficiente para pensar. Não, seu sexto sentido dizia que não acontecera isso. Franco aparentava certeza sobre sua decisão. “Aparentava”, essa era a verdade. O quanto o conhecia para apostar suas fichas nele e na sua palavra?

 

       Ao redor, pessoas debilitadas esperavam pelo atendimento médico. Eram dores reais. Problemas reais. Nova sentiu-se pior ainda. Seus ideais românticos eram patéticos e inacessíveis. O fato de ter sido paparicada a vida inteira pelos pais a tornara egoísta e fútil, censurava-se, mentalmente. Era culpada por estar sozinha, sentada num banco de madeira, na recepção de um hospital público, à espera de um destino perigoso e incerto.

 

       Levantou-se num átimo e resolveu fazer a ligação que contrariava a vontade de seu corpo. A voz eletrônica informava que o celular estava fora de serviço. Nova bufou, ajeitou o bolsão no ombro e decidiu pegar um táxi para casa.

 

       Ao chegar à calçada, parou e digitou novamente os números do celular de Franco. Fora de serviço. Olhou ao redor, diante da avenida dupla cortada pelo canteiro de capim ralo, e percebeu o sinal de luz dos faróis de um veículo. Franziu o cenho e identificou a picape vermelha. Ocultou o sorriso de satisfação. Pelo menos, ele tinha palavra, pensou, atravessando a avenida e ganhando duas quadras curtas até alcançar a camionete.

 

       A cabine cheirava à colônia cítrica, e o caubói, ainda com o chapéu característico, havia se barbeado. Ao redor do pescoço, uma gargantilha de couro com a cruz de prata, sem o Cristo. Camisa preta, jeans escuro e botas. Havia-se preparado para ela. E, debaixo do céu estrelado, olhos azuis claríssimos avaliavam-lhe a fisionomia.

 

       – Desliguei o celular para você não ter chance de me deter. – disse, com um leve sorriso.

 

       Ela odiaria ter de fazê-lo.

 

       − Tudo isso para mim? – não ocultou a malícia no mel da voz.

 

       Ele piscou o olho com charme e afirmou convicto:

 

       − Pode apostar que sim, dona.

 

       Rodrigo passou pela porta dos fundos, atravessou a cozinha e alcançou o corredor, sendo seguido de perto por uma Bonnie faceira, agitando o rabo. Entrou no banheiro e bateu a porta com força, deixando-a do lado de fora. Irritado, jogou o chapéu longe e encarou a face abatida, escurecida debaixo dos olhos e marcada pelos sulcos na testa. Os pontos da barba cresciam e escureciam a pele quase morena. Arou o cabelo com a mão num gesto que denunciava o estado de suas emoções. Urgia acalmar-se e parar de pensar nela, na mula teimosa chamada Karen Lisboa. Fechou o punho e o desferiu contra o balcão de madeira da pia. Ouviu a batida na porta.

 

       − Tudo bem, Rodrigo? – era Valéria, apreensiva.

 

       − Nada bem, mas você não vai resolver. – respondeu com maus-modos.

 

       Ela ainda pensou em lhe dizer que estava à sua disposição para conversar, mas se o irmão mais velho acreditava que ela não resolveria a situação, o melhor a fazer era se afastar e deixá-lo esfriar a cabeça.

 

       Ele girou o registro do chuveiro, despiu-se e se abandonou debaixo do jato de água fria.

 

       No quarto, vestiu um jeans e uma camiseta sem mangas, branca, que aderia aos seus músculos. Acendeu um cigarro e se sentou na cama, os pés descalços, a água do banho escorrendo do cabelo castanho curto. Sentia-se completamente inútil. Karen no hospital, sozinha. E ele tendo de se manter afastado quando o que mais queria era estar lá com ela.

 

       − O jantar está pronto, querido. – anunciou a irmã.

 

       − Obrigado, Val, já estou indo.

 

       Endereçou um longo olhar para o porta-retrato com a fotografia de um casal que não mais existia. Ele e Jasmine, abraçados, à margem do rio. Ela não sorria, porque já não tinha mais motivos para sorrir. Mas ele mostrava os dentes numa felicidade estúpida. Mal sabia que algumas horas depois, ela falaria em voltar ao sul, em reconstruir a sua vida, em não ser compatível com o cerrado e a poeira. E o que Rodrigo fizera? Batera à porta de Karen para pedir conselhos e até admirara a posição parcial da amiga de Jasmine, dizendo-lhe que deveria fazer a vontade da sua mulher. Pois, não era o lugar, não eram as pessoas ou a vida em Matarana. O problema de Jasmine sempre fora ela e a sua busca incessante e conflitante por si mesma. Fora o que Karen lhe dissera, sóbria e séria. Rodrigo assentira em silêncio e, de certa forma, frustrado por não ouvir palavras mágicas que o livrassem da frustração. Lembrava também, nitidamente, que sentira algo mais, algo como ternura pela melhor amiga de sua mulher, uma ternura que a partir daquele momento crescera ao ponto de se transformar em um caleidoscópio de sentimentos confusos e contraditórios, mas nem por isso menos profundos e intensos. Era impossível manter-se estável e equilibrado quando o assunto era Karen.

 

       Comeu sem falar. Um mau humor dos infernos. Aceitou a carne assada, a salada verde e o arroz feito na manteiga. Ouvia partes soltas da conversa entre a irmã e a sobrinha. Até descobrir a novidade:

 

       − O que? – indagou à irmã, curioso.

 

       − Está com a cabeça aonde, hein? Acabei de dizer que falei com a Karen e ela terá alta amanhã. Perguntei se queria ajuda em função dos pontos e tal, e ela disse que a Nova vai se mudar para o condomínio... Aí, eu disse “daí, sacana?, sou mãe também, sei cuidar de pessoas, e a Nova mal sabe cuidar dela.” – Valéria deu de ombros e triturou a alface entre os dentes, completando: − Bom, me ofereci pra ajudar, e ela recusou.

 

       − Não importa o que ela quer ou diz, Val. – decidiu, retesando os maxilares. – Amanhã, vou buscá-la no hospital, e deixo você no condomínio.

 

       O telefone tocou na sala. Sabrina levantou-se para atendê-lo e quase deixou a cadeira cair. Valéria revirou os olhos e falou:

 

       − Hum...mais um suspirando de amores pela casa.

 

       Rodrigo sorveu o resto de sua latinha de cerveja e devolveu no mesmo tom de deboche:

 

       − Pelo menos nós não temos a ilusão de sermos uma ilha.

 

       − Oh, é mesmo? Engraçado você me criticar com tanta mulher levando docinhos e bolinhos na delegacia só para tentar consolá-lo da viuvez e, no entanto, resolveu se envolver com...

 

       Ele a interrompeu com um olhar firme:

 

       − Com aquela que me disse para aceitar a vida como era e deixar a Jasmine voltar para o sul, como ela mesma queria. Eu perdia a mulher e ela a amiga, e mesmo assim, a Karen se pôs no lugar de outra pessoa. Sabe o que é isso, Val? Chama-se empatia. Consegue memorizar a palavra?

 

       − Consigo, Rodrigo. – afirmou contrariada e emendou em desafio: − Conhece a Karen há uns dez anos, não é? Por acaso, alguma vez viu alguém feliz ao lado dela?

 

       − Essa é fácil, ela nunca teve ninguém ao seu lado.

 

       − Porque ela os espanta.

 

       − É, mas eu sou feito de outra substância.

 

       − Você é só um homem, meu irmão.

 

       Ele disse seguro:

 

       − Não, não só um homem, Val. Acho que você e a Karen deveriam rever suas concepções de homem.

 

       − Tio, o Lucas está puto ao telefone.

 

       Antes de se levantar, piscou o olho para a irmã do jeito que fazia quando era moleque e lhe dizia que passaria a conversa nos pais para Valéria livrar-se de uma possível bronca ou castigo. Ele sempre obtinha sucesso na empreitada. O charme de Rodrigo era à prova de balas.

 

       − O que foi? 

 

       − O diabo pegou o Mendes, chefe.

 

       − Merda! – crispou os lábios com raiva. Era o fim da investigação. – Quem o matou?

 

       Lucas riu baixinho apesar da vontade de esganar Franco.

 

       − Não sabia que o senhor era católico, mas não, o Mendes não foi para o inferno... O pistoleiro psicopata deu fuga ao gorducho.

 

       − Por que o Franco faria isso...? – pensou alto.

 

       − Ele é metido a justiceiro. O desgraçado inventou que tinha provas contra o Dolejal.

 

       − O que? – a garganta seca.

 

       − Foi o que disse, que o Dolejal mandou o Mendes fazer o serviço e incriminá-lo. Dá para acreditar? Logo o Franco, o homem-forte dele! Mentirada! E, eu, idiota, caí nessa e fui encontrá-lo na rodovia. Era um truque para me afastar do hospital e eu caí feito um pato retardado. – disse, irritado.

 

       − Fica calmo, Lucas. – baixou o tom de voz e afirmou: − Vamos dar uma varredura pela região até encontrarmos esses dois e resolvermos a questão. Não quero mais ninguém envolvido nisso, ok?

 

       − Entendi, chefe. – quando a circunstância de um crime envolvia alguém poderoso da região, tudo era feito de modo discreto até se ter a certeza de se poder apertar o botão vermelho. − Temos de pegar logo o Franco...

 

       − Antes dos outros. – completou Rodrigo, já pensando na longa noite que teria pela frente.

 

       A estrada de chão batido provocava solavancos na picape que estalava, sacolejava, e era açoitada pela poeira contra os vidros fechados. Franco acionara o ar-condicionado. Naquela região, era suicídio não possuir um desses. Vez ou outra eram ultrapassados por automóveis e caminhões a caminho do norte do estado. Ele, então, reduzia a velocidade e permitia-lhes a passagem. Dirigia sem pressa, curtindo o momento, endereçando-lhe olhares misteriosos que ora escapavam para o decote de seu vestido, ora para o seu rosto. Em seguida, oferecia-lhe um sorriso de promessa e tornava a ocupar-se da estrada. Em certo momento, tocou-lhe o joelho com delicadeza e falou:

 

       – Conheço um restaurante entre Santa Fé e Belo Quinto.

 

       Isso significava mais de cem quilômetros de Matarana. Ela sorriu e assentiu, acrescentando:

 

       – Nunca fui a Belo Quinto.

 

       – É menor que Matarana. O ar é pesado por causa das madeireiras. Na verdade, Belo Quinto é praticamente uma madeireira – informou com um sorriso divertido: – Dizem que as cinzas que caem sobre Matarana à tardinha são dos corpos carbonizados dos forasteiros desavisados.

 

       Ela riu e afirmou:

 

       – Já ouvi esse papo por aí. Aliás, quem não é forasteiro em Matarana?

 

       –Quem nasceu há menos de trinta anos, por exemplo. – respondeu com naturalidade, endereçando um rápido olhar para o retrovisor.

 

       – Você?

 

       – Não sei onde nasci. – respondeu com descaso.

 

       – Como?

 

       Ele a olhou mantendo o mesmo sorriso de antes.

 

       – Não sei, dona, fazer o quê? Quando ia perguntar à minha mamãe, ela já estava colada no asfalto.

 

       – Não fala assim, Franco! – censurou-o, fechando a cara.

 

       – É verdade, dona. O dia que tive coragem para perguntar a Sofia sobre minha origem, ela estava chapada e se atravessou na frente de um caminhão. – deu de ombros e completou: – Dias atrás descobri que sou um legítimo mataranense dos infernos. Até hoje não sei o que minha mãe veio fazer aqui. Quem a conheceu, como o Bronson, por exemplo, disse que ela tinha chegado junto com os fundadores, e enquanto eles abriam estradas, ela abria as pernas. Mamãe não era mole, não. – fez troça.

 

       Ela viu a mão novamente sobre o seu joelho e, ao erguer os olhos para ele, encontrou os seus olhos presos nos dela.

 

       – Vou lhe perguntar uma coisa e quero que responda com sinceridade.

 

       – Não, dona, nunca me prostituí. – brincou.

 

       – Gracinha. – fez uma careta e perguntou: – Por acaso está comigo por que tenho quase idade para ser sua mãe ou para poder me vigiar?

 

       Ele a olhou, demoradamente, coçou a cabeça e respondeu:

 

       – Não sinto falta do que nunca tive. Logo, descarto a primeira opção. Mas quanto à segunda, bem, tem um pouco de verdade. Vigio a senhora desde que começou a trabalhar na casa do patrão. E posso afirmar com toda a certeza do mundo, a dona é uma gata.

 

       Nova sentiu o rosto ficar muito quente, desviou os olhos dele e encarou a estrada escura à frente.

 

       – Falta muito? – desconversou.

 

       Ele acelerou, trocou a marca e tornou a descansar a mão sobre a perna dela, agora, na coxa.

 

       – A senhora é muito gata, aquele tipo de gatinha que a gente tem de cuidar para não machucar, que é frágil e, ao mesmo tempo, com garras afiadas.

 

       – Não vem com esse papo, Franco. O Dolejal mandou ficar de olho em mim, não foi? – endureceu o tom de voz.

 

       – Ele não tem medo da senhora. A única pessoa que pode ferrar o patrão é a Karen, e ó – fez um gesto esfregando o polegar no dedo médio e disse: – rapidinho. Ela desmonta o cara, é impressionante.

 

       O restaurante em questão era um bar sobre palafitas. Debaixo do piso de madeira rústica, as águas caldosas do rio. Sobre as tábuas largas, mesas com toldos coloridos e vasos com plantas frondosas criando uma espécie de jardim como amurada. A fachada era de tijolo à vista e pedras. Sobre as mesas, candelabros para três velas.

 

       Durante o jantar, Nova conheceu melhor o homem a sua frente. Ele escolheu o prato para ambos, tambaqui na grelha. Ela pediu vinho; ele, cerveja. Enquanto equilibrava as ervilhas na ponta do garfo, ele comia de colher o peixe e a farinha temperada. Não havia em Franco um pingo de sofisticação que não se restringisse à colônia que usava. No mais, ele era o que aparentava ser: um caubói. Mas esse caubói, rústico e simples, acostumado à vida dura, sabia como ninguém dominar a arte da paquera. Sim, ele a paquerava de um jeito que ela perdia o fôlego, absolutamente invadida por sensações que jamais sentira. Num dado instante, teve vontade de levantar-se e partir, deixar pratos e copos sobre a mesa e ir embora, para ele segui-la e amá-la na estrada, ao ar livre, sobre o capô da picape. E nas vezes que ele falava algo bonito e completava com humor negro, torcendo os lábios ou franzindo o nariz de forma infantil, imaginava-o pertencendo a ela.

 

       Ele havia tirado o chapéu e deixado sobre a cadeira ao lado. O cabelo loiro era agraciado pelo vento morno, e o reflexo das velas tingia-o de brilho, assim como valorizava os olhos azuis claríssimos. Nova prendeu o ar nos pulmões admirando a beleza do garoto. Perfeição. Era somente essa palavra que podia descrever aquela face simétrica. A boca parecia preparada para beijar, o centro ligeiramente inchado em relação às comissuras finas, sobre o queixo com a covinha charmosa que lhe dava um ar de moleque. O que ele praticamente o era, cogitou Nova, embevecida com a bela paisagem que sorria ao lhe contar sobre os modos maternais de Irene para com ele. Gesticulava como se fosse o maestro de uma orquestra. Tudo em Franco era incontido, intenso e impetuoso. Como um animal selvagem que jamais seria adestrado fosse pelas circunstâncias, fosse pelas pessoas. A voz grave e rouca possuía invariavelmente um tom de ironia, denunciando sua constante desconfiança de todos e tudo. Revelava uma precoce maturidade. Vivera, por certo, muito mais que a própria idade.

 

       − Seus olhos me lembram os de alguém. – ela afirmou, tentando desvendar o mistério.

 

       Ele parou de sorrir, sorveu o resto da cerveja e disse:

 

       − Tenho um rosto comum, dona.

 

       − Ah, não tem não. – retrucou, balançando a cabeça devagar. Percebendo a cilada, corou, emendando aos tropeços: − Quis didizer que...é um rosto que não apenas a mãe pode amar.

 

       Franco enviou um daqueles seus olhares de grosso calibre.

 

       − Essa frase não fica legal em relação a mim.

 

       − Desculpe, não fiz por mal...

 

       Ele riu baixinho e apontou para ela:

 

       − Suas bochechas estão vermelhas.

 

       Um buraco, por favor. Sorriu sem jeito e sorveu um gole do vinho.

 

       − Fique sóbria, dona. – avisou com um sorriso malicioso.

 

       Ela queria escapar daqueles olhos que a sondavam e atraíam-na.

 

       − Hã...? – indagou, desconcertada, e completou rapidinho, mas de forma impulsiva: − Bem, e aí, Franco, o que o Dolejal tem que o faz quase morrer por ele?

 

       O pistoleiro estreitou os olhos, avaliando-a:

 

       − Nada.

 

       − Como, nada? Está há dez anos na Arco Verde, sob o jugo dele, deve existir pelo menos uma relação de amizade.

 

       Ele endureceu a boca transformando-a numa linha reta e amarga.

 

       − Dona, quando estivermos juntos não falarei de trabalho, assim como quando estiver trabalhando, não pensarei na senhora.

 

       − Mas eu sou o seu trabalho. – afirmou num fiapo de voz.

 

       − É um dos meus trabalhos. – enfatizou.

 

       − Franco...

 

       Ele interrompeu-a fazendo um gesto ao garçom e, depois, voltou-se para ela e disse:

 

       − Pergunte o que quiser agora, assim não se arrependerá mais tarde. – cruzou os braços e aguardou sem deixar de encará-la.

 

       Nova umedeceu os lábios, incerta.

 

       − Posso deixar de ter medo de você?

 

       O que ela viu valeu mais que as palavras que dois minutos depois foram ditas. O semblante carregado, aos poucos, transformou-se num sorriso suave e ele foi taxativo:

 

       − Jamais machucarei a senhora. Prometo.

 

       Ela não suportou a força do seu olhar, baixou a cabeça e fitou as mãos deitadas sobre as coxas. Ouviu-o completar quase num sussurro:

 

       − Mesmo que me machuque.

 

       A princípio, ela não entendeu quando ele estacionou a picape atrás de um posto de combustíveis. Cogitou indagá-lo a respeito, uma vez que teriam de caminhar um bom pedaço até o hotel à beira da estrada.

 

       − Por que não deixa no estacionamento do hotel? – considerou, observando-o chavear as portas.

 

       − Melhor assim. – economizou na explicação.

 

       − Isso significa que não quer me dar satisfações. Entendi, moço. – brincou.

 

       Ele ajeitou o chapéu e olhou ao redor, certificando-se da presença da polícia ou de capangas do coronel. Estava tudo limpo. Havia apenas os atendentes do posto e o segurança. Voltou-se para Nova, pegou-a pela mão e passou pelo rapaz que fazia a segurança do lugar. Franco conseguira serviço temporário para o camarada na Arco Verde. Por isso ele podia deixar a picape escondida nos fundos do posto. Cumprimentou-o com um leve aceno de cabeça e, de mãos dadas com Nova, encaminhou-se para o acostamento da 163.

 

       − Uma boa caminhada faz bem para a saúde. – declarou, puxando-a para si. – Tem medo de caminhar à noite? – provocou.

 

       − Não, mas não entendo por que não estaciona dentro do hotel. – insistiu.

 

       − Humm... deixa eu ver... ah, já sei... acho que porque eu quero deixar aqui. – ironizou.

 

       − Para que não nos encontrem.  – deduziu, rapidamente.

 

       − Matou a charada, dona – havia rispidez na voz mesmo que ainda sorrisse: − E por que será, hein? – não lhe deu tempo para responder. − Para podermos ficar um pouco em paz, somente nós dois, sem coronel ou Dolejal ou o resto da cidade.

 

       − Ou por que aprontou alguma?

 

       − Pode ser. – encolheu os ombros, indiferente.

 

       − O que fez?

 

       − Teve oportunidade de fazer essa pergunta há vinte minutos no restaurante. Agora, sem chance. Somente saberá se dormiu com o herói ou com vilão quando já for tarde demais para se arrepender... ou não.

 

       Ela parou e tentou se afastar, mas Franco a conteve, apertando-a com força contra o seu corpo, o braço ao redor dos ombros dela:

 

       − Mudei de ideia.

 

       − Não pode.

 

       − Seja um cavalheiro e me leve de volta para casa. – pediu, tentando se afastar.

 

       − Isso não é ser cavalheiro. – declarou franzindo o cenho e completou: − Voumostraro que é ser cavalheiro, dona, mas na cama.

 

       − Franco, não quero me envolver com coisas ilícitas.

 

       Ele riu com vontade, puxando-a para si num abraço que lhe envolveu o corpo. Aspirou o cheiro da pele fresca debaixo da camisa.

 

       − A dona é doida. – falou às gargalhadas.

 

       − Adoro o seu romantismo! – debochou, fazendo careta.

 

       − E isso, a senhora também adora?

 

       Ao virar-se para vê-lo foi surpreendida pela boca que buscava a sua com vontade e fome. Agarraram-se à beira da estrada, no acostamento com o mato que lhes alcançava próximo dos joelhos. Ela ergueu os pés e enlaçou-lhe pelo pescoço, puxando para baixo, para os seus lábios que desejavam aprofundar-se dentro dos dele. Deixou escapar um gemido de satisfação ao sentir duas mãos passeando por suas costas nuas, descendo pelo seu corpo até lhe alcançar o traseiro e apertá-lo, puxando-lhe o quadril contra o seu. Ele se encurvou para abraçá-la, e ao sentir a pressão dura contra o ventre, Nova empurrou-o devagar mas com firmeza.

 

       − Espera, nada de armas, não quero ser morta por causa de uns amassos.

 

       − Que armas? – indagou intrigado, tornando a puxá-la para si.

 

       Conteve-o espalmando as mãos contra seu peito, fitando uma boca inchada e úmida e os olhos turvos de desejos.

 

       − Nada de pistola, Franco, essa coisa vai acabar descarregando!

 

       Ele ergueu as mãos na defensiva e depois puxou as fraldas da camisa para cima.

 

       − Está no cós traseiro, a pistola que a senhora fala. – argumentou, baixando a camisa e completando com malícia: − Mas a arma que supostamente poderá descarregar só o fará na hora certa, viu?

 

       − Merda!, − gemeu, constrangida. – Pensei que... pensei que...

 

       Ele sorriu com petulância.

 

       − Pensou que fosse uma bazuca, não? – piscou o olho.

 

       − Certo, criança, foi o que pensei.

 

       − É, a dona perdeu o medo rapidinho. – concluiu com um sorriso divertido e puxando-a para si: − Quer aprender a atirar?

 

       Febre. Quarenta e dois graus. Ela abriu a camisa dele, puxando os botões das casas, arrebentando metade. Sôfrega, lançou-se contra o tórax nu e mordiscou-lhe os mamilos. Ele gemeu e murmurou algo inaudível. Ela não tinha como ouvir, porque escutava um tambor sensual dentro da cabeça, o código secreto que dizia para comê-lo, devorá-lo, amá-lo no acostamento da estrada federal.

 

       Franco pegou-a por baixo do traseiro, ergueu-a e a levou para o meio do descampado. Tirou a camisa e a jogou sobre a relva seca e judiada. Deitou-a sobre a proteção improvisada e beijou-lhe a face enquanto afastava-lhe as mechas de cabelo da testa e têmporas.

 

       − É a mulher mais linda do mundo. – sussurrou, o cabelo loiro caindo-lhe à frente do rosto e quase como uma súplica, pediu – Desculpa a falta de romantismo mas preciso ficar dentro de você senão morrerei.

 

       − Vem, vem ficar comigo, Franco. – aceitou, a voz arrastada como se estivesse drogada e, de certa forma, estava.

 

       Quando Franco penetrou-a pela primeira vez, ela olhava as estrelas e parecia que algumas delas caíam sobre eles. Nova pensou, é uma benção, nesse deserto hostil, é uma benção. Assim que ele entrou, doeu. A dor da falta, a dor da espera, a dor da esperança. Cruzou as pernas ao redor da cintura dele porque não queria perdê-lo e também tencionava mostrar-lhe como era aconchegante a sua morada. Ele gostou, agarrou-se a ela e visitou-a alcançando a profundidade onde se acomodou até se rebelar e voltar à superfície. E retornando ao fundo dela, encontrou o lugar que descarregava eletricidade por todo o corpo, provocando-lhe espasmos no sexo, nas pernas e em cada poro. Ele disse ao seu ouvido, arfando e rouco:

 

       − Agarre-se em mim, vamos subir.

 

       Ela obedeceu-lhe e, abraçados, foram para o alto, rajadas ígneas faziam-lhes vibrar a musculatura e trespassavam-lhes a pele. Ele não a deixou descer, não depois das investidas profundas e fortes.

 

       − Me deixa gozar, Franco, por favor... – implorou.

 

       Um beijo longo silenciou-a e, dentro do beijo, ele sussurrou:

 

       − Agora, sim, desça comigo. – e foi o que fizeram.

 

       A descida vertiginosa a arremessou contra o mato morno. Jogou os braços para trás e gritou. Libertou todas as mulheres medrosas que viviam encarceradas. Estavam livres, soltas pelo prado. Inteira e renovada, pôde enfim recebê-lo outra e outra vez.

 

       Tinha o cabelo úmido nas têmporas e, sob a pele dourada, uma leve camada de suor. Ela enxugou-lhe o fio de água que lhe deslizava pelo maxilar e beijou-lhe no queixo. Tentou ler os seus pensamentos, uma vez que o rosto de Franco demonstrava suas emoções. Ele estava triste.

 

       − Posso ficar mais um pouco?

 

       Ela o sentiu deslocar os quadris devagar, ajeitando-se dentro dela, procurando e encontrando o ponto mais agudo do prazer. Mal se mexia, olhando para ela como um menino perdido no supermercado.

 

       − Sim... sim... – balbuciou, recebendo-o todo e pronto, cadenciando o movimento de vaivém sem pressa, levando-a novamente para as alturas...

 

       No quarto, entrou antes dela e não acendeu a luz. Meio paranoico, por certo, pensou Nova, vendo-o agir. Vasculhou cada canto da espelunca para, depois, iluminar o ambiente composto por uma cama de casal, armário, mesa, duas cadeiras, televisão e o banheiro.

 

       − Isso aqui parece com aqueles hotéis mexicanos onde os traficantes fazem seus negócios. – ela comentou, tocando com nojo a ponta do dedo no lençol.

 

       − É, é uma merda. Já volto.

 

       − Não, tudo bem... – tentou alcançá-lo, mas foi em vão.

 

       Cinco minutos. O recepcionista e único funcionário de plantão acompanhava Franco até o quarto. Trazia nas mãos lençóis limpos, e no rosto palidez e olhos arregalados.

 

       − Obrigada. Pode deixar, eu arrumo a cama. – procurou ser simpática e gentil com o rapaz que olhava Franco de esguelha e se encolhia com timidez.

 

       Era óbvio que o havia intimidado. Ele abriu a janela e acendeu um cigarro. Olhava para o pátio de cascalhos, deserto, vazio de carros estacionados. O hotel era um conjunto de quartos térreos, perfilados lado a lado, formando um U. A mobília velha e gasta. Nova não falou nada, mas, do ralo da pia do banheiro, saíam baratinhas.

 

       Pelo espelho, observou-o passar por ela e abrir o registro do chuveiro. Ergueu a palma da mão, a fim de se certificar da temperatura da água, virou-se para ela e sorriu. Abraçou-a por trás, baixou a cabeça e mordeu-lhe o lóbulo com sensualidade.

 

       − Gosto do seu cheiro.

 

       Ela sorriu, vendo-o através do espelho beijar-lhe o pescoço com pequenos estalos, os lábios entreabertos, a suave pressão dos dentes frontais.

 

       − Eu não sou boa nisso, digo, se me quer como amante, essas coisas, não sou boa. Acho que não o agradei há pouco, mas é porque não tenho muita...quero dizer... você ficou decepcionado, eu sei, desculpe...eu...bem, só transei com o meu ex-marido, a vida inteira me preservei para o meu grande amor, para o Cris, sabe? Pois é, acabei virando uma coisa assexuada.

 

       As mãos grandes e macias baixaram-lhe a parte frontal do vestido, expondo os pequenos seios. Ele admirou-os sem tocar. Desviou o olhar para o rosto dela e perguntou:

 

       − Quem me decepcionou?

 

       − Agora vai ser cavalheiro, é? – sorriu, nervosa.

 

       − Não me decepcionou nadinha. Mas não precisa se passar por puritana, viu? Nem todas as mulheres são vadias como a minha mãe e a Karen. Eu não generalizo. Sei separar as decentes das vacas.

 

       − Não sou decente nem vaca, Franco. Faço parte do terceiro grupo, o maior deles, o das mulheres comuns.

 

       Ele sorriu.

 

       − Gosto desse grupo. – e completou com escárnio: − Só não entendo quando uma mulher comum trai o homem que ama.

 

       − Ele não me quer.

 

       − O doutor? – riu e, logo, se conteve. – O pessoal fala sobre vocês. Já vi o seu amorzinho em Santa Fé com uma doutora do hospital. – foi direto e completou prestando atenção nela: − Mas ele é uma boa pessoa.

 

       − É a melhor que conheço. – assegurou. – Porém, perdeu a chance, e a vida continua.

 

       − Em quê o doutor pisou na bola? – franziu o cenho, intrigado.

 

       − É um covarde. – afirmou, erguendo o queixo em desafio. – Alimentou um amor que jamais teve vontade ou coragem de consumar.

 

       Franco armou o seu melhor sorriso autoconfiante.

 

       − Anote no seu bloquinho, Nova Monteiro, eu tive, tive coragem de conquistá-la.

 

       − Grande merda!,− exasperou-se. − quero ver me manter. Se continuar cheio de segredos e de armas, duvido que dure mais do que dois dias.

 

       O sorriso desvaneceu-se.

 

       − Nunca desisto do que quero e quero você, muito. – afirmou, convicto.

 

       Às quatro horas da madrugada, ela mal conseguia se mexer. Tinha os músculos latejando e uma sensibilidade incomum na pele. Franco deslizava a mão sobre o seu abdômen, devagar, numa carícia mansa, observando a expressão do seu rosto e descendo os dedos até o vale morno entre as coxas.

 

       − Saberei o gosto de cada parte do seu corpo e, quando estiver longe, terei você dentro de mim, debaixo da língua. – murmurou de um jeito rouco e sensual, e era como se nesse murmúrio, no arrastar das palavras, deslizassem as letras, transbordando-as de sua boca, caindo.

 

       Ela gemeu forte ao ser tocada de forma íntima.

 

       − Tem alguém na sua vida, Franco?

 

       − Não tenho ninguém. – respondeu sem hesitar.

 

       Lembrou-se das palavras mentirosas de Cris.

 

       − Fala a verdade, Franco. Cadê a coragem?

 

       − Minha vida é trabalhar pro patrão, encher a cara de vez em quando e dormir com quem me queira, seja lá quem for, no lugar que for. É uma vida simples e fácil.

 

       − Paga por sexo?

 

       Ele ergueu a cabeça e sorriu.

 

       − Acha que preciso?

 

       − Não, claro que não. –disse,sem graça. Então, uma ideia brotou do calor do seu ventre e ela perguntou sem hesitar: − Quer ser meu homem?

 

       Franco sorriu do jeito que as pessoas obstinadas sorriam, mesmo sem razão para sê-las.

 

       − Não ouvi direito... Quer que eu seja o seu homem? – afastou-se centímetros e fingiu-se de desentendido. – Não sei o que isso significa.

 

       − Quer ou não? – insistiu, arfando.

 

       Ele sorriu plenamente satisfeito.

 

       − Sim, quero.

 

       − Certo. Agora me fecunde. – ordenou.

 

       Irene saiu do quarto de hóspedes incomodada por não entender o que se passava na cabeça do patrão ao pedir para que ela fizesse as malas da noiva. Nada mais dissera. Desde o rompimento com Karen, ele estava diferente, mais introspectivo do que nunca e imprevisível.

 

       De certa forma, não achou estranho que o noivado de poucos meses terminasse antes do casamento. A senhorita Mary Jessica era por demais fresca, mimada e bobinha, cercava o noivo de mimos e, ao mesmo tempo, esperava por carinho e atenção que Thales Dolejal jamais experimentara oferecer a alguém. Por isso Irene acreditava que a mulher certa para o patrão era Karen. Pelo menos ele era menos apático no tempo dela. Com a texana, ele vivia dias entediantes e mornos, mas mantinha-a ajustada à coleira da fidelidade.

 

       Ao passar pela porta do quarto do fazendeiro, suspirou resignada e pensou no quanto era pobre aquele homem tão rico.

 

       Thales acordou de um pesadelo. O mesmo que se repetia desde que entrara em contato com Vilela, a fim de dar um jeito em Franco. Sonhava com ele. Revivia a emboscada na estrada, quando foram atacados por um motoqueiro, na tarde em que o laboratório de Cuiabá divulgaria o resultado do teste de DNA. Franco morria durante o tiroteio. E ele chorava tendo o filho ensanguentado nos braços. Despertava com uma sensação de extrema angústia. Deveria também amar o filho ao acordar. Mas via Franco como seu funcionário, o mais leal e perigoso, sim, mas não o tinha como filho. E quando o traíra com Karen, guardara para si a melhor das vinganças, porque jamais tivera intenção de expulsá-lo da cidade ou despedi-lo da fazenda. Contratara o corretor da morte para que o serviço fosse rápido e, de preferência, sem causar muita dor ao garoto.

 

       Franco morto, pensou, ao erguer-se da cama e se postar à janela, admirando sem perceber, as vastas planícies encobertas pelo breu da noite.

 

       Sentia-se inquieto e incomodado. E não era em função do rompimento com Mary Jessica e o seu retorno aos Estados Unidos. Havia outro motivo para se sentir mal. Alguém com parte dos seus genes andava pela cidade como um alvo prestes a ser liquidado. Alguém que se pusera à sua frente para receber os tiros e, assim, salvar-lhe a vida. Alguém que obedecia às suas ordens com olhar de veneração. E, talvez, no futuro, seria apenas esse alguém a estar ao seu lado. Ele não podia amá-lo. Não sabia como fazê-lo. Ainda mais um garoto tosco que fizera sexo com a única mulher que Thales amou na vida.

 

       Fora criado pelo avô garimpeiro que o marcava as costas com o chicote. E nem sempre ele merecia o castigo. O avô gostava de espancá-lo. Era uma espécie de tradição na família não gostar dos seus.

 

       Ouviu a voz baixa e seca do corretor, que atendeu o celular após o quarto ou quinto toque. Dolejal foi direto ao ponto:

 

       − Cancele o serviço.

 

       − Como?

 

       −Cancele o serviço. Quero o Franco vivo, entendeu? – reafirmou, incisivo.

 

       Pausa.

 

       − Tem certeza? O senhor não vai mudar de ideia?

 

       − Sim, fique com o dinheiro.

 

       − Nem pensei em devolvê-lo. Mas quero saber quanto ao outro serviço, é para cancelar também?

 

       − Não.

 

       − Certo, o senhor é quem manda.

 

        A angústia ainda não passou. Digitou os números do celular de Franco. Tencionava avisar sobre os novos planos para Mendes. Duvidava que Franco conseguisse matá-lo. Oferecera-lhe o serviço de matador apenas como uma provocação, uma forma de mostrar ao rapaz qual era o seu lugar e que ele jamais seria um Dolejal de verdade.

 

       O celular de Franco desligado. Em seguida, o seu próprio vibrou.

 

       − Não sei como lhe dizer. – era Vilela.

 

       Thales não amava Franco. Ele era um vira-lata da fazenda.

 

       − O Everaldo já saiu para cumprir a missão e ele não usa celular, senhor Dolejal.

 

       Suor frio na testa.

 

       Dez anos vendo o moleque correndo pela fazenda, gritando, brincando, imitando-o.

 

       − Quero o meu filho vivo, ouviu?! – determinou, retesando os maxilares.

 

       Nova deu mais dois passos e se atirou. Durante a queda, uma luz azul atraiu-a com tamanha intensidade que acabou acordando-a com um espasmo.

 

       Franco olhava-a dormir. Afagava-lhe o cabelo quase como uma carícia de seda.

 

       − Saiu do corpo. – ele disse, sorrindo.

 

       − Sonhei que caía num buraco, um penhasco, não sei ao certo. – contou, ainda aturdida pelo sono e emendou: − Insônia?

 

       − Não, eu quase não durmo. Sempre foi assim. Quando criança tinha de ficar acordado à noite nos bancos das lanchonetes até terminar os programas da minha mãe. Aí, me acostumei a cochilar depois do almoço e pronto. – respondeu.

 

       − Precisa dormir de verdade. – censurou-o.

 

       − Não se incomode com isso, prefiro ficar acordado para poder lhe proteger enquanto dorme.

 

       − Me proteger dos pesadelos? – brincou.

 

       − Dos pesadelos que vivemos de olhos abertos, minha princesa.

 

       Ela estendeu-lhe a mão e puxou-o para si, encaixando sua cabeça entre os seios. Enlaçou-o entre os braços enquanto afagava-lhe os cabelos, cantando uma canção de ninar que ouvira a mãe entoar para sua irmã quando bebê. Fez apenas uma pequena modificação na letra, uma vez que o boi da cara preta “protegia” quem tinha medo de careta.

 

       − Que música é essa? – indagou, abraçando-se ainda mais a ela, a boca próxima a um mamilo.

 

       − Música para embalar bebês quando têm insônia e apenas cochilam depois do almoço.

 

       Ele levantou ligeiramente a cabeça e a fitou franzindo o cenho:

 

       − Está tentando cuidar de mim, dona?

 

       Ela sorriu e afirmou:

 

       − Sim.

 

       Tornando a deitar sobre os seios dela, Franco murmurou antes de adormecer profundamente:

 

       − Está fazendo um ótimo trabalho.

 

       Amanheceu o céu branco e o mormaço dos quarenta graus. Os pontos de queimada lançavam para os ares a fumaça branca e pesada, focos de incêndio ardiam na terra fulminada pela destruição. Assim, não foi o sol que a despertou penetrando pelo tecido da cortina ordinária do quarto de hotel. Foi o calor pegajoso do meio-dia.

 

       Ao abrir os olhos e fitar o teto pintado de azul, percebeu que estava sozinha na cama. Sentou-se rapidamente e puxou o lençol para se cobrir. Ouviu o barulho do chuveiro. Entrou no banheiro e viu-o de costas, a água deslizando pelo corpo esguio e musculoso, descendo generosa por sobre o traseiro pequeno e duro, lavando as coxas fortes e os pés magros. Algo chamou sua atenção para a região dos ombros, salpicada por delicadas sardas, marcas vermelhas, minúsculas porém várias delas. Levou a mão aos lábios contendo um palavrão. Eram marcas de unhadas. Ela havia-o machucado. O sangue subiu à face, louca de vergonha. Deixou o lençol cair aos seus pés e abraçou-o por trás.

 

       − Bom dia, príncipe.

 

       − Ah, que bom que acordou. – virou-se de frente para ela, levantou-a do chão e a beijou.

 

       A verdade era que não podiam se ver, um fio de eletricidade os atraía, conectando-os, um ao outro, inexoravelmente. Era como uma energia cuja voltagem poderia matar humanos normais, mas que para humanos em estado de amor bruto potencializava a paixão, o desejo e a entrega. E foi natural se apaixonarem em poucas horas, tão natural quanto Nova pegar-lhe o sexo e introduzi-lo no seu, abraçada nele, segurando-se com as pernas enlaçadas na cintura do homem que a beijava como se não houvesse uma segunda chance para os dois. Amaram-se debaixo do chuveiro. E depois que ele lhe secou o corpo com os olhos e com a toalha, amaram-se na cama, sobre os lençóis com restos do amor de antes, da noite, da madrugada. E, mesmo exaustos mas insatisfeitos, amaram-se sem se tocar, vigiando-se enquanto um se postava à janela para fumar ou o outro vestia a calcinha ou fingia que não percebia que era revirada pelo avesso de longe, do outro lado do quarto. Até quando não falavam se amavam. Mas, então, sem palavras, a falta, a saudade da voz. Ela dizia qualquer coisa para que ele completasse o sentido. Ele usava as suas melhores palavras porque, com ela, descobrira que podia ser sensível e belo sem perder a virilidade.

 

       Às duas da tarde, ele decidiu:

 

       − Vou buscar alguma coisa para a gente comer. – sentou-se na beira da cama e calçou as botas. – Você fica, princesa. Terei de voltar até o posto, lá tem aquelas lojinhas frescas que vendem de tudo. Aproveito e volto na picape, assim a gente se manda para outro lugar. Algo mais de acordo com o seu nível.

 

       Ela pôs o vestido e ajeitou o cabelo com os dedos.

 

       − Podemos continuar aqui. – fez um gesto amplo com as mãos e falou: − Nossa primeira vez foi aqui, agora é um lugar especial.

 

       − Segunda vez. – corrigiu-a com um sorriso significativo.

 

       Ela corou envergonhada pelo deslize.

 

       − É verdade. – sentou-se ao lado dele e perguntou forçando naturalidade: − Como é o protocolo nesse caso?,digo, quando eu tiver vontade de transar ou você, nos telefonamos? Quero dizer, como procede com suas garotas?

 

       Ele vestiu a camisa e se concentrou em fechar os botões, pensativo:

 

       − A gente não combinou que eu sou seu homem? – indagou sem fitá-la, parecia que a sondava, sondava a verdade de suas palavras.

 

       − Sim, claro, mas você mesmo não sabe o que isso significa.

 

       − E você sabe? – encarou-a, avaliando a expressão de seu rosto. Ele estava na defensiva.

 

       Falou o que ouviu gritar dentro da cabeça, nem cogitou ponderar a respeito:

 

       − Sou a sua dona, agora. – declarou com firmeza e desafio.

 

        Ele riu e beijou-lhe a ponta do nariz:

 

       − Certo, dona, valeu pela coragem. – ergueu-se da cama, enfiou o chapéu na cabeça e perguntou com um sorriso divertido nos lábios: − O que a dona quer comer? Acho que consigo uns hambúrgueres e cerveja. Que tal?

 

       Ela ainda o fitava com a expressão séria e obstinada:

 

       − Somos exclusivos. Consegue entender isso?

 

       Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, mantendo o mesmo sorriso.

 

       − Liguei meu celular. Qualquer coisa me telefona, hein. – apontou-lhe o dedo em riste e completou num tom de troça: − Consegue entender isso?

 

       Nova estava começando a se irritar.

 

       − Está debochando de mim?

 

       − Certo, certo. Estou indo... – ele enterrou ainda mais o chapéu na cabeça e olhou ao redor à procura das chaves da picape. – Não vamos brigar na lua de mel.

 

       − Franco, volta aqui!

 

       Ele parou à porta e se virou. Já não mais sorria.

 

       − Eu conheço esse tipo de cobrança, é bem típico das mulheres agirem assim. O que quer que diga? Por que preciso falar sobre isso? Não está na cara, porra! Eu disse que jamais lhe machucaria, eu disse que aceitava ser seu homem... O que mais quer ouvir? Até onde posso contar com você, me diz? Vai me machucar? Vai ser a minha mulher? Vai me pôr guampa com o doutor? Vai se arrepender de ter dormido com um pé de chinelo sem estudos, um merda que mal sabe ler e escrever? Ora, vá para o diabo! Acha que pode ter as pessoas porque simplesmente quer? Acha mesmo que é a primeira a tentar me prender? Inferno!

 

       Saiu, batendo a porta com força.

 

       Roeu a unha do polegar, nervosa. Olhou ao redor, a mobília feia, as cortinas sujas e a cama desfeita. Tinha consciência de que ultrapassara os limites do bom senso e, de certa forma, provocara a explosão de Franco. Queria arrancar dele a verdade. Havia-se entregado completamente sem se antecipar aos riscos. Atirara-se na piscina antes de saber se havia água. Estava envolvida pela magia da noite, dos olhares dele para ela, do carinho de um capanga de fazendeiro. Jamais imaginara que um pistoleiro armado até os dentes e tendo sido criado sem amor e proteção dos pais, pudesse ser tão envolvente e carinhoso, tão delicado e erótico, tão másculo e gentil. E ela estragara tudo o pressionando a falar as palavras supostamente certas para a ocasião. Talvez fosse por isso que Cris não quisesse transpor a fronteira da amizade.

 

       Meia hora depois da saída intempestiva de Franco, ela ouviu o motor de um veículo roncar no estacionamento. Afastou a cortina e viu um Monza tinindo de velho, tomado pela poeira da estrada, rebaixado e com ranhuras na pintura na porta do motorista. Procurou se esconder atrás do tecido estampado da cortina. Percebeu que, ao descer, ele não desligou o motor do automóvel. Deu uma espiada para fora. Usava dreads nos cabelos longos e um figurino bizarro para aquela região. Ele parou, pôs a mão embaixo do casaco jeans desbotado e puxou uma pistola. Olhou ao redor e enfiou o silenciador na arma.

 

       Nova gelou. Abaixou-se e engatinhou até a mesinha onde estava o celular. Suas mãos tremiam ao procurar o nome de Franco na agenda. No segundo toque, ele atendeu:

 

       − Desculpe a estupidez, minha princesa. Já estou no posto escolhendo...

 

       − Franco, tem um cara aqui com uma arma na mão. – sussurrou, a voz trêmula.

 

       − Se esconde, Nova, procure um lugar para se esconder! Chego aí em cinco minutos!

 

       A ligação foi cortada.

 

       Franco deixou o fardo de cerveja sobre o balcão do caixa, correu até onde estava estacionada a sua picape, girou a chave na ignição e meteu o pé no acelerador. Ao alcançar a 163 foi surpreendido pela lentidão de uma carreta carregada. Girou a direção a fim de ultrapassá-la e quase colidiu de frente com a Blazer que vinha no sentido oposto. Pisou no freio e na embreagem, girou todo o volante e ganhou o mato alto, no acostamento. O capim seco batia debaixo da lataria fazendo barulho, mas não competia com o som ensurdecedor do motor sendo exigido ao máximo. Emparelhou com a carreta e, em seguida, acelerou, o ponteiro do velocímetro alcançou a marca dos 100 km/h. A primeira brecha que teve cortou o pobre diabo ao volante e disparou feito um condenado pela estrada federal. Voou literalmente sobre os cascalhos, fulminou com os pneus queimando o estacionamento do hotel, alcançando a parte frontal dos quartos. Puxou o freio de mão e a picape girou em 180 graus. Franco pulou para fora como se o mundo fosse explodir em dois segundos. O chapéu foi levado pelo vento, redemoinhos de terra ao redor das botas, era o diabo encarnado alcançando a porta aberta do quarto que ocupava com Nova.

 

       Ao chegar, parou de respirar. Sobre a cama as marcas dos tiros. Três furos precisos na altura da cabeça.

 

       A mão que segurava a Glock tremia, os dedos perderam a força e a pistola deslizou para o piso de cimento. Não queria ir até a cama. Queria, sim, fingir que nada havia acontecido. Vivera um sonho. Podia voltar a dormir e repeti-lo. Puxou devagar o lençol e percebeu o engano. Franziu o cenho e constatou a habilidade de pensar rápido de sua parceira. Na péssima iluminação do quarto, no dia sem sol, o pistoleiro atirara da porta na pessoa deitada debaixo do lençol. Alvejara quatro travesseiros inofensivos.

 

       Voltou a respirar.

 

       − Nova!  – gritou, abrindo as portas do armário, olhando debaixo da cama, as mãos na cintura e os olhos aflitos. – Nova!

 

       Foi até o banheiro, abriu a torneira e lavou o rosto. Precisava esfriar a cabeça para pensar direito. Olhou-se no espelho e viu a face desfigurada da aflição. Arou o cabelo com os dedos, nervoso. De repente, parou. Deu um passo para trás e sentiu a presença. Agachou-se em frente ao balcão da pia e abriu as portas duplas devagar. Ela estava encolhida, os joelhos dobrados, a mão ainda segurava o celular.

 

       − Sempre dão um jeito de nos encontrar, não é mesmo? – disse, tentando sorrir para acalmá-la.

 

       Estendeu-lhe a mão e a trouxe para si, abraçando-a com força.

 

       Nova tremia e transpirava suor frio. Contou a Franco, aos tropeços, os olhos arregalados de susto e medo, que ao ver o desconhecido aproximar-se armado, lembrou-se do que assistira nos filmes policiais. Inventou um humano de travesseiros e se refugiou no minúsculo armário. Ouvira o pontapé contra a porta e, em seguida, os tiros. O camarada não tivera interesse em conferir o estrago.

 

       Ela chorou com o rosto colado na camisa dele. E, pela primeira vez na vida, ele também chorou por causa de alguém, por vê-la desesperada e desprotegida. O gosto das próprias lágrimas na garganta. E isso não estava certo.

 

       − Como ele era? Precisa me dizer, princesa. – pediu,a voz mansa.

 

       − Dreads longos... – falou, baixinho.

 

       Não precisava mais nada. Trancou o choro matando-o no peito, no mesmo lugar onde a cicatriz de um tiro provava o amor que nutria por aquele que enviava Everaldo para tirá-lo de sua vida. Endureceu os lábios e apertou a mulher pequena e frágil nos braços. Ela era todo o seu mundo. E tinha a obrigação moral de preservá-la viva.

 

       − Por que ele queria me matar?

 

       − Vamos sair daqui. – ele pegou-a no colo e a levou para a picape. – Você é mais inteligente do que eu pensava. Só falta aprender a atirar. – disse, tentando sorrir.

 

       − O que fiz para merecer levar bala?

 

       − Não se martirize com isso. Vamos almoçar e beber umas cervejas. A vida continua.

 

       − O que? Quase fui assassinada, e você pensa em comer e beber umas cervejas. Não consigo ser fria assim, não sou uma pistoleira, Franco.

 

       Ele puxou o cinto de segurança sobre ela e disse sem fitá-la:

 

       − O alvo não era você.

 

       Ela gemeu e fechou os olhos como se tivesse sido ferida.

 

       − Por que, Franco? Por quê?

 

       Ele sentou atrás do volante, engatou a primeira marcha e, lançando um olhar para trás, pelo retrovisor, disse simplesmente:

 

       − Porque meu pai não quer dividir o feudo com o herdeiro pé de chinelo.

 

       Ela o olhou com estranheza.

 

       − Meu Deus do céu, você é filho do coronel?

 

       Franco riu-se com amargura.

 

       − Não. – balançou a cabeça em negativo e completou: − Não quero envolvê-la nessa história imunda. É um mundo distante do seu, dona, digo, minha dona. – piscou o olho e sorriu.

 

       − Quero que saiba que estou do seu lado, viu? Se quiser, compro uma arma e aprendo a atirar. A gente caça esse filho da puta até o inferno! – anunciou resoluta, os punhos fechados.

 

       Franco puxou-a para si e a beijou.

 

       − Sou louco por você, garota. – disse, feliz em tê-la ao seu lado.

 

       A fumaça estava baixa naquele início de tarde, uma nuvem branca e densa que caía sobre o asfalto. Franco acreditava ter sido abençoado por conhecer Nova e amaldiçoado por ser filho de Dolejal. Mas se sentia ainda mais amaldiçoado por amar aquele que, não satisfeito em querer torná-lo um assassino, contratara Everaldo para matá-lo, como uma espécie de vingança.

 

       Rodrigo Malverde mordiscou a ponta de uma longa tira de capim e depois a cuspiu. Ajustou as luvas de silicone às mãos, aproximou-se do corpo e conferiu o que tinha de conferir. O homem sentado na cadeira era feio. A barriga mole e proeminente se esparramava para fora da calça. Os olhos estavam abertos e fixos num ponto qualquer da parede de madeira, esburacada. Ele parecia assistir ao último capítulo da novela, completamente alienado de sua condição de homem gordo, feio, com a perna enfaixada. E morto.

 

       Quando os peritos de Santa Fé chegaram, cumprimentou-os e deixou o local. Em frente à casa bastante rústica, de apenas uma peça, encontrou Lucas, fumando, a cara amarrada. O policial se corroia de raiva de si mesmo.

 

       − Dá pra acreditar que aquele psicopata tirou o Mendes debaixo do meu nariz?

 

       Rodrigo coçou a cabeça, sacou um cigarro da carteira e o deixou apagado entre os lábios.

 

       − O Franco é esperto, e não é de hoje que sabemos disso.

 

       − Era evidente que ele ia dar um jeito de matar o Mendes, claro, depois que o outro tentou incriminá-lo. Deve até ter o aval da Arco Verde.

 

       Rodrigo ponderou por um ou dois minutos, fitando as árvores retorcidas fincadas no mato seco. Riscou o fósforo e pôs fogo na ponta.

 

       − O Franco tem algo para nos oferecer. – disse, balançando a mão para cima e para baixo, pondo fim à chama: − Esse guri não é um assassino, apesar do que as más línguas dizem por aí. Além do mais, se quisesse mesmo apagar o Mendes, o teria feito no hospital.  Pra quê deslocá-lo para o corredor de terra entre os dois covis?

 

       − Simples, ganhar tempo para se vingar. Todo mundo sabe que ele não bate bem da cabeça. Caralho, há muito quero pôr as mãos naquele insolente filho da mãe. – afirmou Lucas, chutando uns cascalhos e levantando poeira.

 

       − Mas não será agora. Se o Franco teve todo esse trabalho para trazer o Mendes para cá é porque o queria vivo e seguro...

 

       Lucas franziu o cenho e completou:

 

       − Para nos entregar o patrão?

 

       Rodrigo torceu o lábio com azedume.

 

       − É, e o patrão, não confiando no seu braçodireito, enviou outro, digamos... funcionário para fazer o serviço. – deduziu, olhando ao redor e afirmando: − Bem, de qualquer forma, temos de encontrar o Franco e fazê-lo falar. Ele deve entender que ficando do nosso lado terá mais chance de continuar vivo.

 

       Lucas riu-se:

 

       − Pelo menos, até nos ser útil.

 

       Dois corvos sobrevoavam o terreno.

 

       − Não, Lucas, esse garoto ainda tem jeito. –ajeitou o chapéu e fitou o policial com um meio sorriso ao dizer: − Sabe o que dizem os entendidos sobre o comportamento humano?

 

       − Boa coisa não é. – resmungou o policial.

 

       − Que biologia não é destino. Eu não sei a origem desse moleque, mas sei como ele viveu até agora, se criando e se fazendo gente, sozinho. Quem sabe diante de tanta merda ao seu redor, ele não resolva simplesmente cair fora ao invés de se afundar?

 

       − O senhor tem coração mole. – debochou Lucas, rindo.

 

       − É, quiçá um coração de mãe. – deu de ombros, sorrindo e encerrou o assunto.

 

       A atendente deixou dois pratos com arroz, feijão, bife e batatas cozidas sobre a toalha de plástico. Ocupavam uma mesa discreta na lanchonete que recebia os ônibus que cruzavam a BR-163 em direção ao norte do país. Ainda se encontravam nos limites de Santa Fé, o que significava a proximidade com Matarana. E era como se eles voltassem aos poucos para suas vidas, suas realidades, testando a resistência dos novos sentimentos adquiridos ao longo das últimas vinte e quatros horas.

 

       Nova mordiscou um pedaço de carne e endereçou um olhar expectante ao rapaz que mastigava de boca fechada e abria bem os olhos vigiando quem entrava no lugar. Ele estava sério, as sobrancelhas quase juntas como se tentasse pôr em ordem sentimentos e pensamentos, tentando conciliá-los por categoria de importância.

 

       − Me ensina a atirar e vamos atrás desse bandidão. – falou, impondo força à voz.

 

       Franco não sorria mais. Apenas fez um sinal negativo com a cabeça, engoliu a comida e disparou à queima-roupa:

 

       −Ele me seguiu desde que saí do hospital. Vou devolvê-la ao doutor, não é seguro que ande comigo.

 

       Ela quase engasgou.

 

       − Que merda é essa? Vamos enfrentar juntos a situação.

 

       − Isso não tem nada a ver com você. – afirmou, torcendo o lábio para baixo numa expressão de menosprezo.

 

       − Se tem a ver com você, tem a ver comigo.

 

       − Por quê? Por causa do nosso amor de vinte e quatro horas? Nossa, uma vida inteira! – escarneceu.

 

       − Até parece!,bobão. – fingiu repreendê-lo, mas estava magoada. – Eu faria isso por qualquer ser humano injustiçado.

 

       − Você nem sabe por que o cara queria me matar, não inventa. Posso ter roubado o camarada ou comido a mulher dele. A dona precisa se livrar dessas ideias românticas idiotas.

 

       − Oh, como o Franco é previsível. Sei o que está tentando fazer. Finge que me despreza para, assim, eu ficar com raiva e acatar o seu plano de... como é mesmo...?,me devolver ao doutor. – ironizou.

 

       − A dona é bem esperta mesmo. – fez troça sem sorrir, parecia era irritado por ela não lhe obedecer. – Faz besteira ficando comigo, sabe disso? Venho de uma linhagem de predadores altamente destrutivos. Se a vida fosse um filme, com certeza, eu não seria o mocinho.

 

       − Seria a mocinha? – provocou-o, tentando pegar-lhe a mão por sobre a mesa: − Então me deixa protegê-la, princesa.

 

       Franco bem que tentou ficar sério, mas desistiu e acabou sorrindo a contragosto.

 

       − Preciso que fique em segurança para que eu possa me safar da situação em que me enfiei, entendeu?

 

       − Sim, entendo − ela suspirou, profundamente, e completou: − Vamos para Minas. Lá, as pessoas não andam com armas na cintura ou...

 

       − Trabalharei como o quê? Segurança de boate de striptease? Aqui é a minha terra, nasci desse chão e serei enterrado nele. – disse, o punho cerrado batendo na mesa.

 

       Ela precisava mostrar com quem estava lidando.

 

       − Olha, Franco, a verdade é que sou teimosa pra burro e não vou deixá-lo sozinho nessa.

 

       − Agradeço o empenho, mas também o dispenso. Essa briga é minha, só minha. – declarou, convicto.

 

       − A briga é minha também! – as lágrimas brotaram nos seus olhos. – Acha que pode entrar na vida de alguém e sair quando quer? E os meus sentimentos, hein?

 

       − Dona Nova, − arou o cabelo, nervoso. – o que posso fazer ou dizer para fazê-la acreditar que preciso da senhora viva?

 

       − Me deixa lutar com você. – pediu num fiapo de voz.

 

       − Não.

 

       Ficaram-se olhando até o momento dos celulares tocarem. Nenhum dos dois fez qualquer movimento para quebrar o instante. Mesmo que ouvissem a urgência dos longos toques, repetidos duas, três vezes.

 

       − Quando tudo estiver terminado, volto para você, princesa. – prometeu, o semblante carregado de tristeza.

 

       − Quem está atrás de você, Franco?

 

       Ele sorriu com o canto da boca.

 

       − Uma porrada de gente.

 

       Nova leu o nome de Rodrigo no visor do seu celular e perguntou temendo a resposta:

 

       − A polícia?

 

       Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, observando-lhe a reação.

 

       − No seu celular... – apontou para o aparelho.

 

       Franco sorveu o resto da cerveja da lata, pegou o celular da mesa e identificou o número de Dolejal.

 

       − O meu assassino. – disse, impassível.

 

       A frieza como foi dita a sentença e a coloração azul intensa dos seus olhos soou como um alarme em Nova. “Tenho um rosto comum”, ele dissera. Alto, claro, coluna empertigada como se fosse o dono do mundo, olhos azuis melancólicos. Violento e instável. Havia outro igual a Franco em Matarana.

 

       − Merda, o Dolejal. – deixou escapar com um gemido. – É ele o seu pai, não é?

 

       − Não, por favor. – ele esfregou os olhos, cansado, mas não era exaustão física. – Fique neste lado do rio, princesa, não vá para outra margem, é muito suja. – pediu com suavidade.

 

       Havia uma rocha entre os dois, começando a se tornar porosa, mas ainda assim uma rocha.

 

       − Você não é ele.

 

       − Trago ele dentro do meu maldito DNA e praticamente fui criado por ele. Mas isso não é nada, sabe? A droga toda é que mesmo sabendo que ele quer acabar comigo, que o meu pai quer... mesmo assim eu não consigo odiar o filho da puta. Não consigo! E sabe por quê? Por que sou tão maldito quanto ele. – fitou-a, intensamente. − Por isso aceite o que a melhor parte de mim pode lhe oferecer. Fique com o doutor até eu resolver a minha vida. Estou tentando ser uma boa pessoa! Me ajuda, Nova! Farei de tudo para me safar e vamos morar numa casinha no interior, plantar qualquer merda e criar galinhas. – completou com um sorriso triste.

 

       Ele ergueu-se, largou o dinheiro na mesa e olhou ao redor, averiguando a região.

 

       − Ligarei para o Cris vir me buscar. – acatou, procurando ajudá-lo naquele momento.

 

       − Vou me foder longe de você. – considerou com amargura.

 

       Na picape, no interior de uma das diversas clareiras à beira do rio, eles esperavam a chegada de Cris.

 

        − Acha que resolve tudo logo? – ela perguntou, ansiosa.

 

       − Ele me pediu para fazer uma coisa, e eu fiz outra. Terei de viver para saber. – disse com indiferença.

 

       Franco pegou-lhe o queixo com o dedo em gancho e aproximou-se para beijá-la. Mas não o fez. Fechou os olhos e aspirou-lhe o cheiro. Ela o imitou, procurando memorizar a fragrância cítrica da colônia impregnada na camisa e a aspereza morna de seu maxilar com pontos de barba de um dia.

 

       − Nunca acreditei em amor à primeira vista. – ele afirmou, beijando-lhe os olhos e tornando a fitá-la sem sorrir: − E não acredito.

 

       Ela sorriu e esfregou o nariz no nariz dele, devagar, um doce afago.

 

       − Eu acredito. – disse, meio sem jeito.

 

       −Adianta, princesa? Adianta mesmo acreditarmos ou não nesse tipo de coisa? – indagou com um leve sorriso. – Só de pensar que logo estaremos separados e nem sei quando poderei vê-la me dói muito mais do que o tiro que levei.

 

       − Se demorar muito para voltar, vou procurá-lo pelo cerrado inteiro. Gritarei seu nome, aí, sim, empunhando uma bazuca. – prometeu, limpando as lágrimas da face.

 

       − Pequeninha assim? Não dá conta de uma bazuca. – brincou.

 

       − É mesmo? – sorriu com malícia.

 

       − Você é a melhor parte de mim, – deu-lhe um beijo longo e profundo e, ao se separarem, falou com a boca ainda colada à dela: − é o gene dominante, o que me deixa ainda mais forte.

 

       Ela o abraçou com força.

 

       − Volta para mim, por favor. – pediu, baixinho, junto ao seu ouvido.

 

       − É tudo que eu quero. – sussurrou, sorvendo o calor e a materialidade do corpo dela. Ergueu a cabeça e afirmou num tom sério: − Isso se a polícia permitir.

 

       Ela acompanhou-lhe o olhar em direção à abertura da clareira Avistou a camionete de Rodrigo e a viatura da polícia com Lucas ao volante.

 

       − Fomos traídos. – murmurou Franco, olhando por cima do ombro dela para o policial que saía da viatura empunhando a pistola em sua direção.

 

       − Franco, sai devagar com as mãos para cima! – gritou Lucas, aproximando-se com cautela.

 

       Mas foi Rodrigo quem abriu a porta ao lado do motorista e o puxou para fora que, perdendo o equilíbrio, caiu de joelhos. O delegado aproveitou para desarmá-lo, pegando as pistolas e entregando a Lucas. O policial guardou o revólver no coldre e usou a Glock de Franco para mirar contra o próprio. Os policiais não esperavam pela atitude do pistoleiro. Ele permaneceu de joelhos e com as mãos erguidas, imóvel. Nas outras vezes que fora preso havia dado um trabalhão daqueles para Lucas.

 

       O delegado se aproximou e abaixou-se ao lado do pistoleiro.

 

       − Até ontem pensei que existia salvação para você, garoto, mas dar cabo no Mendes fodeu com tudo. – blefou, sondando-o.

 

       Franco sorriu e o encarou, desafiador:

 

       − Cadê o meu canivete? Ainda está enterrado na Karen?

 

       Lucas chutou o abdômen de Franco, e ele se encurvou para frente, dobrando o corpo de dor.

 

       − Ai, − gemeu − merda, merda... Eu já estava indo comer uma torrada de queijo contigo. – debochou em meio a uma crise de tosse.

 

       − Franco, vamos resolver a parada na delegacia, que é praticamente o seu segundo lar. – disse Rodrigo, fazendo um sinal com a mão, pedindo calma a Lucas. – Onde está a Nova?

 

       − Não sei. – falou, sendo erguido por Rodrigo pelo antebraço.

 

       − Quero que fique bem longe dela, ouviu? – ameaçou o delegado, puxando o preso até a picape.

 

       − Sabe que o Dolejal não vai te salvar dessa, né, ô diabo? – provocou-o Lucas. – Vai para o presídio de Santa Fé afinar a voz.

 

       − Então, policial, começa a cantar Like a Virgin! – gritou Nova, apontando a Taurus.

 

      Ela não viu Rodrigo estreitar os olhos, surpreso ao vê-la ali e, mais ainda, aturdido ao vê-la apontando uma arma para um policial para salvar a pele de um homem que até pouco tempo lhe causava calafrios.

 

       − O que é isso, Nova?

 

       − O Cris fez fofoca, né? – perguntou, balançando a arma, conforme se exaltava. – Era para ele ter vindo me buscar, só isso. Não posso confiar naquele hipócrita! Sabe de uma coisa?,adeus amizade!

 

       Franco sorria absorvendo no ar a tensão.

 

       Lucas engatilhou a pistola e ameaçou:

 

       − Abaixa a arma, senão vai se dar mal!

 

       − Atira nela, e eu arranco a tua pele com os meus dentes! – afirmou Franco, quase num sussurro, a expressão facial transtornada pelo ódio.

 

       − Baixa você a arma, Lucas. – foi a vez de Rodrigo interceder, sério, encarando Nova com um tipo de olhar muito parecido com a decepção. – É assim que protegerá o Franco? Deixando-o livre para ser abatido pelos homens do Dolejal?

 

       Nova vacilou e olhou para Franco em busca de uma pista sobre o que fazer. Ele veio em seu auxílio:

 

       − O meu pai não quer me matar.

 

       − Certo, agora, o Dolejal é o seu pai. Ontem, ele era o patrão que lhe deu a missão de executar o Mendes. Amanhã, ele será quem? O que o Dolejal prometeu para você?

 

       − Nada que me interessasse, delegado. – virou-se para Rodrigo e disse: − O patrão não tem nada a ver com o que aconteceu ao Mendes.

 

       − Então foi você?

 

       − Ele estava comigo. – disse Nova, ainda mantendo a mira em Lucas.

 

       − Eu nem disse quando o cara foi morto, Nova! Pelo amor de Deus, baixa a porra dessa arma e me deixa levar o Franco para a delegacia. Lá, ninguém terá chance de meter uma bala na cara dele. – e virando-se para Franco completou: − Ou acha que o cara que matou o Mendes vai deixar o serviço pela metade?

 

       − Não sei quem matou o Mendes.

 

       − Franco, entenda uma coisa, eu já sei que o Dolejal está por trás de tudo e, inclusive, depois que você matasse o Mendes, seria o próximo da lista. – declarou Rodrigo à beira de se impacientar. –Somente o Dolejal tinha interesse na morte do Mendes, e se não foi você quem o matou a pedido dele, o camarada que o fez está seguindo o seu rastro.

 

       − Prova, Rodrigo! Prova que foi o Franco! – gritou Nova.

 

       − Escuta, Nova, larga essa merda no chão e volta comigo pra cidade.

 

       − Larga as armas vocês dois aí, bem devagar, − ordenou Nova. – e se afastem do Franco. Principalmente, a bicha do Lucas.

 

       − A vadia nem sabe atirar. – afirmou o agente com desdém.

 

       Vendo Franco agitar-se, sendo contido por Rodrigo, ela falou num tom de voz mais alto do que esperava:

 

       − Eu sei, sim, é só puxar esse negócio e apertar o outro negócio. – declarou, engatilhando a Taurus, o barulho do metal batendo no metal.

 

       Lucas abaixou-se, flexionando os joelhos, e depositou a arma no chão, lentamente. Rodrigo percebeu que ela estava disposta a fugir com Franco e, com certeza, jamais tornaria a vê-la com vida. Tentou dissuadi-la mais uma vez:

 

       − Dou a minha palavra, Nova, que ninguém chegará perto do Franco. E, se ele cooperar conosco, nem chegará perto de Santa Fé. Basta apenas que nos deixe levá-lo para a delegacia. Se ele matou ou não o Mendes, acabaremos descobrindo. E se ele estiver protegendo o Dolejal, quem perderá feio serão vocês, porque o Dolejal nunca perde.

 

       Ela sorriu e, sem deixar de manter o cano virado na direção deles, juntou a pistola do chão. Caminhando de costas, jogou-a para dentro da picape.

 

       − Vem, Franco, vamos embora!

 

       Rodrigo virou-se ao ver Franco se soltar.

 

       − Não acredito que sinta algo por ela, mas é óbvio que ela está encantada por você.

 

       Franco voltou-se para Rodrigo com um sorriso superior:

 

       − É, acho que ela tem adoração pelo diabo.

 

       O delegado foi na jugular:

 

       − Meus parabéns pela conquista, espero que ainda não esteja morto quando os outros o encontrarem, porque quero vê-lo enterrando a sua mulher como eu enterrei a minha.

 

       O sorriso do garoto desapareceu e ele lançou um olhar aflito para a mulher que o esperava para ganhar a estrada e partir.

 

       Rodrigo aproveitou a fraqueza momentânea daquele que se julgava superior e caminhou em direção a Nova, surdo aos seus apelos para que se mantivesse no lugar onde estava. Ao alcançá-la, puxou a Taurus de sua mão e disse entre os dentes:

 

       − Que bela amiga você é. – dizendo isso, voltou-se para Franco: − Pode fugir e levá-la consigo.

 

       Antes de chegar à picape, Rodrigo ouviu a voz de Franco alta e clara:

 

       − Fui eu, delegado.

 

       − Mentira! – gritou Nova.

 

       − Enquanto você dormia. – disse para ela, firmando a voz em desafio e, voltando-se para Rodrigo, estendeu os braços para receberem as algemas, reafirmou: − Matei o Mendes.

 

       Quando Lucas avançou para pegá-lo, Rodrigo fez um sinal de contenção para o policial e indicou-lhe a viatura. Aproximou-se de Franco e o algemou.

 

       − Ganhou o meu respeito, rapaz. – falou, baixinho.

 

       − Ele está mentindo, Rodrigo. Você sabe que ele está mentindo. EU SOU A PORRA DO ÁLIBI DELE!

 

       O delegado manteve-se firme e tranquilo ao virar-se e dizer a ela:

 

       − Os dois voltam juntos comigo na picape.

 

       Vó Ninita ofereceu-lhe um café, mas Rodrigo sorriu dispensando-o. Cumprimentou Johnny com um aceno de cabeça. Ele fazia o papel de policial no jogo para computador.

 

       − A Karen?

 

       − Está no quarto. Acho que sabe onde fica, não? – sorriu, maliciosa.

 

       Ele ficou sem jeito e tentou sorrir:

 

       − É, eu sei, sim. Posso?

 

       Ela fez um gesto com a mão e voltou-se para a limpeza da cozinha. Era estranho ver a avó de Karen nas lidas domésticas.

 

       A cama desfeita revelava que ela a abandonara havia pouco, já que o quarto estava vazio. A porta do banheiro encostada. Ele deu dois toques e a chamou. Ouviu-a praguejar.

 

       − Tudo bem?

 

       − Ótimo. – o tom era de resmungo.

 

       − Precisa de ajuda?

 

       − Quer dar banho em uma aleijada?

 

       − Adoraria.

 

       − Então procure uma na rua. – seu humor não estava dos melhores. – Sabe quantas horas fiquei esperando por você naquele maldito hospital? Se não fosse o Cris, eu ainda estaria lá esperando pelo senhor!

 

       Ele afastou a porta devagar, pôs a cabeça para dentro e o chapéu lhe caiu. Toda a vez que estava com Karen perdia o chapéu e a razão.

 

       − Desculpe, queria muito tê-la buscado, mas tive de caçar um camarada.

 

       − Sabe o que é um celular?

 

      Ela estava de calcinha e sutiã, de pé, escorando-se no boxe do banheiro. O chuveiro aberto despejava uma forte torrente de água, e Karen parecia temer o efeito da torrente sobre a atadura do ferimento. Rodrigo aproximou-se e girou o registro, diminuindo o volume de água. Voltou-se para ela com um sorriso gentil e tentou acalmá-la. Quase sempre ele conseguia.

 

       − Me perdoa, nada que eu diga justifica a minha falta, nada. – falou quase num murmúrio. Uma coisa ele havia aprendido: falar baixo despertava mais atenção dos outros do que gritar.

 

       Verificou-lhe a palidez e isso o preocupou.

 

       − Deveria estar na cama.

 

       − Me deixou no hospital. – insistiu num tom que ele reconheceu como mágoa.

 

       Franziu o cenho, intrigado.

 

       − Já disse, Karen, não foi minha intenção. Estava envolvido no seu caso. O Mendes foi assassinado.

 

       Ela ergueu o rosto e perscrutou-lhe a feição.

 

       − O Dolejal o matou. Que mais falta para você pôr o seu melhor amigo na cadeia?

 

       Rodrigo retesou os maxilares, precisava ser paciente com ela.

 

       − O caso ainda não está encerrado. – ponderou. Em seguida, aproximou-se dela e disse com brandura: − Vem, deixa eu te ajudar com esse banho.

 

       Karen entrou no boxe e tentou despir-se do sutiã, mas o movimento dos braços para trás esticou a pele do abdômen, suturada. Gemeu e deixou os braços caírem ao longo do corpo.

 

       − Vire-se, eu ainda sei tirar uma lingerie. – disse Rodrigo, resoluto.

 

       − Não sei por que pus essa merda. – reclamou mal-humorada, obedecendo-lhe. – O Cris disse que tenho de deixar a água escorrer sobre os pontos, então, devo retirar a atadura.

 

       O delegado soltou a peça íntima e manteve-a na mão. Era uma renda suave, transparente e macia. Depositou-a sobre a pia de granizo e prendeu a respiração quando se voltou e viu-a seminua.

 

       − Acho que temos de puxar o esparadrapo bem rápido para não doer muito. – disse, incerta.

 

       − O que?

 

       − Quando parar de pensar com o pênis entenderá o que estou lhe dizendo. – censurou-o, zangada.

 

       − O que está falando? Que pênis o quê? – atrapalhou-se e tentou consertar as coisas, dizendo: − Vou molhar a ponta dessa toalha e soltar aos poucos o esparadrapo. Sei o que faço,ok?

 

       Depois de soltar a atadura, ajudou-a a se lavar. Ela não conseguia espichar os braços sem sentir uma leve fisgada na barriga. Ele pegou o sabonete, esfregou-o na mão e deslizou-a pelo corpo dela. Um toque suave e agradável.

 

       − Mãos delicadas. – ela disse, fechando os olhos, segurando-se nele.

 

       A água caía-lhe no corpo mesmo que ela se encurvasse em direção a ele. Sentia-lhe as mãos passeando por suas costas com tamanha ternura que, tomada por uma insuportável angústia, apertou-se nele, nas suas roupas secas, no seu corpo forte e sempre disposto a lhe dar suporte.

 

       Rodrigo percebeu que Karen entregava os pontos, jogava a toalha. Por um momento teve vontade de sorrir como um guri apaixonado pela primeira vez. Mas, depois, pensou na dor que tal entrega lhe causava. Ela era uma mulher durona, que acreditava que tinha de vencer um campeonato contra os homens, que encontrara pela frente camaradas que não valiam um tostão furado. E, enquanto apertava-se a ele exibindo sua fragilidade e expondo-se, sofria justamente por isso. Entrou no boxe, puxou-a para debaixo do chuveiro com ele e a abraçou.

 

       − Não quero assustá-la nem pedir nada. Juro que não é uma cobrança ou uma artimanha para prendê-la. – respirou fundo e afagou-lhe o cabelo molhado: − Preciso que saiba que sinto amor por você.

 

       − Só me abraça, Rodrigo, só me abraça. – ela pediu.

 

       E foi o que ele fez.

 

       − Estou errando muito com você. Cuido tanto das mais fraquinhas, a Nova e a Val, e deixo a mais durona na mão. – riu-se e declarou: − Casa comigo, Karen?

 

       − Já falamos sobre isso. – murmurou.

 

       − Não mudei de ideia. – afirmou, convicto.

 

       − O Thales acaba com você se eu aceitar o pedido.

 

       Rodrigo ergueu-lhe o rosto e o examinou por longos minutos. Estreitou os olhos como o fazia nos interrogatórios na delegacia, indagou:

 

       − Ainda é apaixonada por ele?

 

       − Me preocupo pela sua segurança. – reafirmou, sem sorrir, encarando-o: − Nunca fui apaixonada por ele ou por homem algum. – enfatizou com um alçar de sobrancelhas.

 

       Frustrado, só conseguiu balançar a cabeça em sinal afirmativo, fingindo que aceitava a situação, o fato de ela não ter se apaixonado por ele também. Girou o registro do chuveiro, cessando a torrente de água. Pegou uma toalha e secou-lhe o corpo, embrulhando-a nela em seguida. Pegou-a no colo e a deitou na cama.

 

       − Que roupa quer que pegue para você? – perguntou, ainda encurvado sobre ela, mas incapaz de encará-la, o rosto em direção ao guarda-roupa à espera do pedido. – Camisola, robe...? O que quer vestir?

 

       O longo silêncio obrigou-o a voltar-se para ela.

 

       − O que quer vestir, Karen? – insistiu, sério.

 

       − Até uma semana atrás. – começou e parou, incerta se deveria prosseguir por tal caminho.

 

       − O que tem uma semana atrás? – mexeu-se para se levantar, mas ela puxou-o pelo antebraço. – O que é?

 

       − Até uma semana atrás jamais tinha me apaixonado assim por um cara. Preciso me acostumar com essa fraqueza, esse tipo de debilidade mental. – disse, sorrindo meio sem jeito.

 

       Ele esboçou um sorriso e beijou-lhe a testa.

 

       − Fico feliz que se sinta mal ao descobrir que gosta de alguém.

 

       Ela percebeu que Rodrigo ainda não estava convencido.

 

       − Estou apaixonada por você, delegado.

 

       − Sei, não se esforce tanto. – disse, apertando-lhe a bochecha de um jeito paternal: − Olha, quero que me perdoe pelas falhas dos últimos dias. Prometo voltar a ser o seu fiel escudeiro e me dedicar mais a você do que a Nova e a Val. Palavra de policial. – tentou sorrir.

 

       −Certo, deixaremos as coisas assim, então. – disse num tom magoado e emendou: − Pode me ver uma camiseta, por favor?

 

       −Claro. – assentiu e comunicou: – Ficarei um pouco mais com você, se não se importa.

 

       Ele entregou-lhe a camiseta e riu diante do lapso. Tinha de vesti-la com gestos contidos.

 

       −Agora, a calcinha. – ela pediu com naturalidade.

 

       −Chamarei a sua vó para ajudá-la com isso. – declarou, alcançando a porta em dois segundos.

 

       − Rodrigo, não seja bobo. – reclamou.

 

       Ele parou e suspirou fundo.

 

       − Onde?

 

       − Na cômoda. Vê para mim uma de algodão, das grandes, tá? Nada sexy que fique apertando a bunda. – advertiu, divertindo-se.

 

       Mergulhou as mãos nas roupas íntimas e escolheu uma peça florida. Virou-se com a calcinha rodopiando nos dedos. Sentou-se na beirada da cama e deslizou a peça molhada pelas pernas dela até tirá-la de vez do corpo.

 

       Ele a vestiu com cuidado.

 

       − Fica comigo?

 

       − Fico, Karen. – assentiu, ternamente.

 

       Rodrigo retirou suas roupas molhadas, mantendo apenas a cueca boxer e deitou ao seu lado na cama. Karen aproximou-se, sendo abraçada possessivamente por um braço por debaixo de seu pescoço e outro na sua cintura. Aconchegou-se ainda mais junto a ele, gemendo baixinho como as crianças o faziam ao sentirem-se protegidas e amadas.

 

       Nova decidira passar um tempo em um hotel no centro da cidade antes de se mudar para o bangalô no condomínio de Karen. Compraria móveis e utensílios domésticos. Não tinha vontade de dividir os móveis e os objetos de decoração que comprara com Cris. Enquanto ajeitava as malas no jipe, pensava no seu futuro imediato e na situação em que Franco se metera.

 

       Ao chegar à delegacia com ele e Rodrigo, foram separados. Lucas encarcerou Franco em uma cela, e ela foi ouvir o Sermão da Montanha na sala do delegado e, depois, liberada. Havia-lhe proibido de visitar o prisioneiro. A única visita permitida era a de um advogado.

 

       Franco mantivera-se quieto, de cabeça baixa e introspectivo, durante o trajeto até Matarana. Nova pegara-lhe a mão em certo ponto da estrada, ousando sorrir para lhe dar força ou algo parecido. Sentia-se inútil diante das circunstâncias. Ele aceitara a mão, sempre sério e calado. Ao alcançarem o estacionamento da casa de alvenaria da DP, ela reforçou o seu apoio e lealdade ao seu ouvido. Ele virou-se para dizer algo, mas mudou de ideia. Os lábios ainda entreabertos se mantiveram silenciosos, mas os olhos, os olhos de Franco responderam que acreditava nela. Ela tentou beijá-lo na boca. Ele se afastou discretamente.

 

       Agora ela juntava suas coisas e partia de vez. Deixava a casa em que vivera por cinco anos a fantasia de um dia ser mulher de Cris. Ao volante, estalou a língua no palato num gesto que revelava a insensatez de tal ideia.

 

       Ao sair da garagem de ré, avistou pelo retrovisor a chegada do Camaro do médico, obstruindo-lhe a passagem. Ele foi até ela. As sobrancelhas juntas, o olhar severo.

 

       –Está fugindo? – perguntou com rispidez, ao lado de sua porta.

 

       –Estou me mudando, e você já tinha sido avisado. Caso fique alguma coisa minha por aí, por favor, me envie pelo correio. – avisou-o, impassível.

 

       –Eu levo pessoalmente, sei onde estará – declarou e completou com escárnio: – Ou me tornei uma persona non grata na sua vida?

 

       –Sinceramente, achei ridículo você ter avisado o Rodrigo sobre minha localização.

 

       –Não sabia que deveria ser segredo. – fingiu inocência.

 

       – Ah, é? Então, por que avisou especificamente a polícia? – indagou, com rispidez.

 

       –Porque sabia que estava com um criminoso procurado pela polícia, ou seja, pelo Rodrigo. – respondeu com naturalidade. – Me preocupo com você e, mesmo que resolva me odiar ou me ver como seu inimigo, ainda assim continuarei amando você, Nova, e muito. – enfatizou.

 

       –Você é um ser humano repugnante que usa as palavras para iludir e manipular as pessoas. Como fui cega! – exclamou com desprezo. – O que sabe sobre amor, seu cretino?

 

       Ele suspirou pesadamente e arou o cabelo com os dedos.

 

       –É melhor que a gente fique um tempo sem se ver. Não fiz o que fiz para que se torne minha inimiga. – disse, nervoso.

 

       –Ótimo. Você foi sempre sensato, não é, doutor? Mesmo quando prometia evasivamente para mim um tipo de vida que jamais teríamos juntos. E sabe por que fazia isso, Cris? Porque é um tremendo cagão!

 

       Ele se forçou um riso ácido e provocou-a:

 

       –É, o parâmetro de coragem que está usando não me parece confiável, afinal, está transando com um criminoso, um bandido, um camarada que seus pais adorariam ter como genro.

 

       –Um homem, Cris, que vai assumir a nossa vida juntos, sem se importar com as dificuldades, entendeu?

 

       –Claro que vai, é só você que pode perder. Ele é um gênio. – disse, irônico.

 

       Irritada, Nova deixou o jipe deslizar até tocar no para-choque do Camaro e falou:

 

       – Sai do meu caminho.

 

       Cristiano Bittencourt acelerou o veículo e alcançou a estrada de volta ao hospital. Soqueou o volante com raiva da cegueira e ingenuidade de Nova.

 

       Karen despertou aos poucos. Mal conseguia respirar, o nariz achatado contra o tórax de Rodrigo. Sorriu e abraçou-se ainda mais a ele, que dormia profundamente.

 

       O quarto estava na penumbra, a claridade da lua vencera a fumaça e trespassava a veneziana. A porta fechada os separavam dos barulhos do resto da casa. Ninita nas panelas fazendo o jantar, e Johnny hipnotizado no computador.

 

       Esfregou-se contra a muralha dura de seu peito e enfiou uma perna entre as dele, colando os corpos num encaixe perfeito. Podia ficar assim a vida inteira, colada nele feito um adesivo. Ajeitou-se mais um pouquinho, absorvendo-lhe a tepidez cheirosa da pele. Ergueu o joelho com delicadeza e tocou-o no sexo. Desejava aquele homem de um jeito que jamais quisera alguém. Nem mesmo Thales.

 

       Lambeu-lhe o queixo, a aspereza do cavanhaque na língua, o gosto de sua pele misturando-se à sua saliva. Afastou-lhe os lábios com os seus e disse dentro deles, num murmúrio rouco, apaixonado:

 

       – Deus do céu, como você é bonito.

 

       O radiorrelógio despertou para avisá-la sobre o horário do antibiótico. You’re Still The One ressoou baixinho, a voz da cantora despertou o delegado do sono protelado havia horas.

 

       Ele abriu um olho, desconfiado. Farejando no ar o movimento de sedução ao seu lado. Baixou a cabeça e foi recebido por um olhar de admiração.

 

       –Como se sente? – sussurrou sonolento, inclinando a cabeça para vê-la melhor.

 

       –Inteira. – respondeu, baixinho.

 

       –Está na hora do seu remédio? – perguntou interessado, percebendo a perna entre as suas. – Onde está ele?

 

       –Aqui. – ela respondeu com um leve sorriso, levando a mão até a parte frontal da cueca dele.

 

       –Karen... – ele gemeu ao ser tocado, pôs a própria mão sobre a dela e tentou afastá-la: – Não podemos fazer nada. Quer arrebentar os pontos?

 

       –Depois o Cris costura de novo. – falou decidida e incitando nova abordagem, agora, por dentro da peça íntima.

 

       Ele se deixou ser tocado por alguns minutos, completamente tomado pelo desejo, gemendo baixinho enquanto deslizava a mão para o interior da calcinha dela. As pálpebras semicerradas e a respiração arfante denunciavam o estado alterado de seu corpo.

 

       Karen pegou-lhe o membro duro na mão e, à medida que o cadenciava para cima e para baixo, era açoitada por dedos no seu sexo, minando-a de fogo e eletricidade pura. Num dado instante, ela gemeu alto e ele parou, assustado.

 

       –Viu?,Droga, Karen, não podemos, não podemos... – determinou, contrariado, ajeitando o pênis na cueca e desvencilhando-o da mão dela.

 

       Karen sorriu divertida, vendo o sulco na testa de Rodrigo aprofundar-se. O bom-moço tentava manter a duras penas a fama conquistada.

 

       – Não gemi de dor.

 

       – Eu sei, Karen – suspirou fundo: – Sei definir os tipos de gemido – disse mal-humorado e afastando-se dela: – Acha divertido abrir novamente o seu ferimento? Vim aqui para cuidar de você e não para estragar tudo.

 

       – Certo, Madre Tereza, não fique tão zangada. Serei uma boa menina. – puxou-o pelo antebraço e o beijou na bochecha. – Por que você tem que ser tão certinho em tudo, hein?

 

       Ele a olhou com um olhar sério e profundo.

 

       – É mais fácil viver quando seguimos o caminho certo e justo, Karen, só isso.

 

       – Até parece. – debochou e completou pegando o rosto dele entre as mãos: – O senhor delegado já prendeu muita gente distorcendo e até inventando leis. Então não venha cagar moral pra cima de mim. Seja sincero, Rodrigo, quer me impressionar, é isso, quer mostrar que não é um sacana filho da puta como os outros caras que tive. Tudo bem, acho bonito de sua parte, valorizo macho assim.

 

       – Karen, às vezes, você é insuportável. – falou com calma, mas era um xingamento.

 

       Ela riu com vontade.

 

       –É, eu sou foda mesmo. Sabe onde fica a porta, né?

 

       Foi a vez de ele sorrir. Todavia, era um sorriso triste:

 

       – Sei, sim.

 

       Ele saiu da cama e vestiu o jeans. Calçou as botas e reforçou o ato, dizendo:

 

       – Se precisar de alguma coisa, telefona para o Cris. Ele é médico, saberá mais do que eu o que fazer no seu caso. – deu de ombros e emendou: – Ou fala com a Nova... Acho que são somente esses dois amigos que você tem, não é mesmo?

 

       – Ridículo, ficou emburrado. Deus, Rodrigo, para quê tanta sensibilidade? – um fio de sarcasmo.

 

       Terminou de abotoar a camisa e olhou ao redor à procura do chapéu e do celular. Sem encará-la, respondeu:

 

       – Talvez, Karen, eu também seja foda. – apontou o dedo em riste e sentenciou: – Não vou deixar que faça o diabo comigo.

 

       – Uau, feri os brios do caubói! – debochou, rindo alto.

 

       Ele retesou os maxilares, marcando os ossos debaixo da pele, e isso era o gesto de alguém que controlava o próprio gênio. Pôs o chapéu e disse antes de sair:

 

       –Dê um jeito de ir à delegacia. O Franco foi preso pelo assassinato do Mendes e preciso tomar seu depoimento.

 

       – Certo, Rodrigo, irei.

 

       Ele não ouviu o que ela disse, pois já estava do outro lado da porta, recriminando-se por ter sido duro com ela, por ser tão mole com ela, por odiar ter de sair da sua cama e voltar ao trabalho.

 

       Naquela mesma noite, quando Rodrigo chegou à delegacia, encontrou um Lucas de olhos arregalados. Não era por menos, no estacionamento, três automóveis importados perfilados como num velório de celebridade. O delegado pulou da picape, e o policial veio até ele com o celular na mão e o número de Rodrigo no visor:

 

       – Poxa vida, chefe, estava telefonando pro senhor!

 

       – O que está acontecendo por aqui? – indagou, fechando a cara e dando uma boa olhada nas placas dos automóveis. Todos eram da capital.

 

       – O Dolejal enviou quatro advogados para livrar a cara do Franco. – afirmou, resignado.

 

       –É? Quero só ver, o Franco confessou o assassinato. – deu de ombros e completou coçando o cavanhaque, calmamente: – Tenho certeza de que não foi ele que matou o Mendes, mas sempre é bom brincar com o Dolejal. O que aconteceria se soltássemos o garoto, hã?

 

       Naquele mesmo dia, Franco adentrou a fazenda Arco Verde.


                             Duas Semanas Depois

 

        Karen virou a forma de alumínio redonda para baixo e bateu-a contra a superfície da mesa. No terceiro golpe, uma parte do bolo de chocolate despencou como numa avalanche homogênea e morna; a outra parte continuou intacta, grudada à forma. Por um momento, ela analisou a situação, ouvindo o riso baixo e contido de Nova do outro lado da cozinha, enchendo dois copos com cerveja gelada.

 

       – O que deu nessa merda? – alçou a sobrancelha, encafifada.

 

       – Acho que tinha de ter esperado a massa esfriar ou algo assim. – concluiu Nova.

 

       – Ah, cacete, por que não me avisou antes, ô obcecada-por-celular? – perguntou,num misto de deboche e decepção.

 

       A sugestão de apelido cabia muito bem à Nova e ela o aceitava sem contestar. Desde que saíra da prisão, Franco não mandara notícias e tampouco atendia as suas ligações. A princípio, compreendera a necessidade de acomodar-se à nova vida, uma vez que Thales Dolejal assumira publicamente a sua paternidade. Mas, com o passar dos dias, acatou a dica do destino e ela era bem clara: Franco tinha outros planos para si. Haviam feito amor num quarto de hotel à beira da estrada e nada mais. Como sempre o seu romantismo boboca a iludira ao ponto de crer que vivia uma história de amor.

 

       Evitara não ouvir os comentários dos seus amigos, todos, Rodrigo, Karen e Val, todos tentavam alertá-la em relação a Franco. Até mesmo Cris.  No entanto, ela era teimosa o suficiente para acreditar no seu coração, cego e ingênuo, e esperar que o filho do segundo homem mais rico da região se lembrasse de que ela era a sua princesa. Dessa vez, porém, não parou sua vida e seguiu outro caminho que fosse contrário à sua natureza. As horas passadas com Franco foram poucas, era verdade, mas intensas e profundas. Com ele aprendera a ser corajosa e obstinada. Jamais tornaria a viver a fantasia do amor contemplativo e abnegado. De posse desse novo papel, muito semelhante ao de Karen, mobiliou seu bangalô e aumentou o número de noites de apresentação no Gringo.

 

       Por uma questão contratual, viu-se obrigada a terminar o livro de Dolejal. A secretária do fazendeiro facilitou-lhe o trabalho, enviando por e-mail o resto da narrativa nebulosa do chefe. Assim, não precisava ir a Arco Verde com o coração aos pulos feito uma mulherzinha apaixonada e rejeitada. Queria, isso sim, que o celular tocasse e a voz rouca e arrastada como um gemido baixo de Franco lhe ressoasse aos ouvidos. Tivera tanto dele e em tão pouco tempo, que, por mais absurdo e incoerente que parecesse aos olhos dos mais sensatos, parecia-lhe um amor de anos e uma saudade de séculos. Tinha certeza absoluta de que viera para Matarana por causa de Franco, e não de Cris. O amigo e o seu amor por ele haviam-na trazido para o centro-oeste, a fim de conhecer o homem da sua vida.

 

       Voltou dos seus devaneios ao ver Karen despejar a calda de glacê sobre uma massaroca embolotada. Percebeu que a amiga havia soltado o bolo quente da forma com uma colher e o grudado como uma espécie de massa durepox, soldando-o, por fim, com o glacê duro.

 

       – O que está fazendo?

 

       – Quero fazer uma surpresa para o Rodrigo. – informou-a, decorando a cobertura com açúcar confeiteiro. – Semana passada ele me recebeu com uma cara de poucos amigos quando fui depor. Tinha de ver, parecia um policial de verdade.

 

       Nova riu e falou:

 

       – Mas ele é um policial de verdade.

 

       – Não comigo, já fiz horrores e ele nunca me prendeu. – comentou, casualmente, como se o feito fosse muito natural.

 

       – Porque ele a ama. – concluiu Nova e completou num tom azedo: – Um dia, ele ameaçou chutar minha bunda de volta pra Minas.

 

       – É bem coisa dele, falar grosso e depois cruzar os braços.

 

       – Epa!,só com a gente, querida! – riu-se. – O nosso xerife é terrível com quem transgride a lei.

 

       Karen limpou as mãos no jeans e esticou os braços, exibindo a obra prima: um bolo deformado cuja cobertura possuía fissuras de trincamento. Nova fez uma careta e apontou para o troço.

 

       – Está assado, pelo menos?

 

       Foi a vez de Karen rir meio sem jeito:

 

       – Não tenho certeza. – lavou as mãos na pia e voltou-se para a amiga, dizendo com um sorriso: – Mas ele não vive dizendo que me ama?,então que prove comendo esse...essa coisa alienígena.

 

       – Vai à delegacia?

 

       – Sim, é só o tempo de me trocar e encilhar o Prefontaine. – disse e se enfiou no quarto.

 

       Vestiu um jeans colado e a tarefa não foi nada fácil. Deitou na cama, contou até cinco e puxou com força a calça. Ao olhar-se no espelho e averiguar as curvas suaves e a camiseta colada aos seios, sorriu, pensando que valia a pena sofrer com a dieta de verduras, frutas e legumes. Mas, ainda assim, não estava magra. O que não lhe tirava o sono. Importava mesmo era o corte no abdômen ter cicatrizado com sucesso.

 

       Montou no manga-larga e fez um carinho em seu pescoço. Pôs a embalagem plástica com o bolo numa sacola de papel e, segurando as rédeas com uma mão, varou a cidade em alto estilo, galopando velozmente como desde sempre.

 

       Ao chegar ao estacionamento da delegacia, ouviu a voz de Adele antes mesmo de desmontar do cavalo.

 

       – É o segundo BO essa semana, e você continua apanhando. Já não está na hora de refazer a sua vida, Carlão?

 

       Karen tirou o chapéu e, equilibrando a sacola em uma das mãos, adentrou o recinto de olho no homem grande, careca e encurvado em uma posição humilde e desolada. Ele tinha lanhadas nos braços e, quando se virou ao vê-la chegar, um olho estava roxo esverdeado, ou seja, quase pronto para receber outro soco da sua amada, Karen considerou, endereçando um sorriso simpático à vítima de violência doméstica.

 

       Adele levantou os olhos do computador, identificou a cidadã e foi direto ao ponto:

 

       – O delegado está ao telefone com Cuiabá.

 

       Ela esperava que não fosse nada sobre sua transferência. Sentiu um frio no estômago e, meio atrapalhada com o pensamento de perdê-lo antes de fisgá-lo de vez, tirou a embalagem com o bolo destroçado e disse:

 

       – Vim trazer um bolinho para ele, foi a minha vó que fez e pediu que o trouxesse. – mentiu, mordendo o lábio inferior.

 

       Adele sorriu do jeito que as pessoas sabidonas sorriam, fingindo que acreditava que um morder de lábio não era um gesto clássico de mentira e ansiedade por estar mentindo. Caramba! Ela era policial também! Será que ninguém a via como tal?

 

       – Certo, Karen. Faz o seguinte, – parou para fazer suspense e esta era a melhor parte, quando fez um sinal com a mão em direção à banqueta de mogno junto à parede com um cesto de vime, e disse: – deixa ali, ó, junto com os outros doces que as mulheres trazem para o dele... a polícia. Somos muito bem conceituados pela população. Agradeça a sua avó, Karen. – tornou a se concentrar no homem que evitava erguer a cabeça.

 

       –De nada. – disse Karen, numa voz sumida. Encaminhou-se ao lugar das oferendas e observou as caixas de bombons finos, os muffins decorados e cupcakes.

 

       – Ah, desculpa, – ergueu meio corpo da cadeira e apontou para um rolo de etiquetas ao lado da cesta de vime: – se quiser personalizar o presente, escreva o seu nome numa etiqueta e cole sobre a embalagem. Não haverá nenhum privilégio, mas é sempre bom saber que valoriza o nosso trabalho. – piscou o olho com estudada gentileza.

 

       Karen deu uma espiada no seu bolo e, depois, em Adele. Tinha duas escolhas: etiquetar aquele lixo e se perder no meio da concorrência ou...

 

       Engatou a primeira marcha, ouvindo a cadeira da escrivã  riscar o assoalho de madeira e a sua voz esganiçada ecoar pelo ambiente:

 

       – Já disse, ele está ocupado!

 

       Se Karen se voltasse para dar satisfação a Adele, perderia tempo e moral. A vantagem de ser conhecida na cidade pelo apelido de vaca louca era a de fazer loucuras que somente uma vaca faria. Foi fácil abrir a porta da sala do delegado e vê-lo ao telefone, o semblante concentrado e a mão desenhado quadrados dentro de quadrados com a esferográfica azul sobre a folha A4.

 

       Ela entrou e fechou a porta como se fugisse de zumbis. Encostou-se contra a madeira, respirou fundo e estendeu a embalagem com o bolo para Rodrigo.

 

       Sem demonstrar surpresa, ele fez um sinal para a cadeira à sua frente. O rosto impassível e ainda focado no que lhe falavam no outro lado da linha. Por fim, disse:

 

       – Pois é, Elias, o problema do Grêmio é na zaga. Ajeitando a defesa, segue tranquilo.

 

       Sim, era essa a conversa com Cuiabá, sobre futebol, pensou Karen, sendo ignorada por mais sete ou oito minutos. Até que ele se despediu do outro delegado e fitou o bolo sobre a sua escrivaninha com curiosidade:

 

       – É só para mim ou tenho de dividir com os outros?

 

       Ela ficou desconcertada com a pergunta.

 

       – Depende. Se você gosta deles, come sozinho.

 

      Ele sorriu, abriu a embalagem e retirou uma faca de cortar pão da gaveta.

 

       –Não se preocupe, não uso essa arma em pessoas. – antecipou-se ante o seu olhar intrigado e emendou cortando uma generosa fatia do bolo: – Você que fez?

 

       Ela assentiu, esperando a sua reação após mastigar e engolir o doce. Pelo menos, não havia feito careta ou vomitado. Suspirou aliviada.

 

       –Está uma delícia, muito obrigado. Como adivinhou que eu estava faminto?

 

       –Temos uma conexão de anos, né?

 

       –É verdade. – partiu outra fatia e metade do bolo desapareceu. – Furou a fila. – afirmou com um sorriso cúmplice.

 

       – É, vi as oferendas de adoração à divindade. – ironizou. – Não sei como ainda está solteiro.

 

       Ele farejou no ar o princípio de uma briga e procurou cair fora o quanto antes:

 

       – Está plenamente recuperada?

 

       – Claro. Afinal, o tempo passa. – deu de ombros e falou num tom de acusação: – Se não tivesse sumido saberia que estou bem.

 

       – Muito trabalho, Karen.

 

       – Imagino que sim, já que assumiu a delegacia há duas semanas, né? – escarneceu.

 

       Ele arqueou a sobrancelha entre intrigado e irônico.

 

       –Não fui procurá-la, porque nós estamos brigando mais do que antes.

 

       – Ou seja, não sentiu minha falta. – concluiu, sem deixar de atacá-lo.

 

       – Senti, sim. Mas nunca fui impulsivo.

 

       – Claro que não, com uma cesta de vime cheia de propostas de sexo, é óbvio que pode estudar cada oferta com calma. – disse com rispidez, erguendo-se da cadeira.

 

       – Acabou?

 

       – Nada acaba antes de começar.

 

       – O que faz aqui, então?

 

       –Saber como estava. – encolheu os ombros e comentou: – Você mesmo disse que quase não tenho amigos, assim, os poucos que tenho gosto de saber se estão bem ou não.

 

       Ele assentiu em silêncio como se fingisse que acreditava nela.

 

       – Veio aceitar o meu pedido de casamento? – cogitou, sondando o terreno.

 

       Ela zanzou pela sala mexendo nos objetos na estante, avaliando os quadros com os diplomas dele, observando todo um conjunto de coisas que compunha a sala de um delegado de polícia do interior. Virou-se e disse com arrogância:

 

       –Por favor, não se precipite, fizemos sexo apenas uma vez e você fala em casamento.

 

       Ele ficou de pé, olhou para a porta e depois para ela, decidido a encerrar a partida. Rodrigo detestava jogar, fugia até mesmo do pôquer, aos domingos à noite, na casa de Adele, com ela, Lucas e um policial militar recém-chegado de Rondonópolis. Pegou Karen pelo antebraço, conduzindo-a para fora de sua sala, com bastante calma e objetividade.

 

       –Para variar, está sendo arbitrário. – ela reclamou, tentando se desvencilhar dele.

 

       –Cansei disso, Karen. – falou baixinho, incisivo, encarando-a com firmeza. – A Val está certa, me envolver com você, com uma mulher inacessível como você, – enfatizou sem reservas. – é um tipo de fuga da realidade. E como você mesma viu, propostas para um relacionamento afetivo não me faltam... – ele franziu o cenho e cogitou mais para si mesmo do qualquer outro: − Então, por que insisto em ser menosprezado por uma mulher?

 

       Ela sorriu com altivez e falou:

 

       –Porque sou a melhor da minha espécie. – e emendou arqueando a sobrancelha em desafio: – Jamais encontrará alguém como eu. Sei tudo sobre você, seus pontos fracos e fortes, sei ler a sua alma e o seu corpo, vivi com você os seus piores momentos e faço o seu sangue ferver nas veias. Não há mulher em Matarana para você, Rodrigo, somente eu. Pode até tentar comer os bolinhos sofisticados das outras, experimente-os, eu quero vê-lo ter indigestão. – fez uma pausa, controlando a incipiente irritação e continuou: – A Val não está certa, nada. Ela quer uma esposa para você, e não uma mulher, uma fêmea. É isso que sou e que represento. Jamais casarei outra vez. Esse é o tipo de erro que se comete apenas uma vez na vida. Nós dois sabemos disso mais do que ninguém.

 

       Adele bateu duas vezes na porta e, em seguida, abriu apenas uma fresta e pôs a cabeça para dentro:

 

       –Desculpe, chefe, o Carlão me atrapalhou e eu não consegui impedir a invasão da Karen. – disse, em tom de lamento.

 

       Rodrigo assentiu e acalmou a escrivã:

 

       –Tudo bem, Adele.

 

       Ela saiu depois de lançar um olhar exasperado à amiga do delegado.

 

       – O que realmente veio fazer aqui, Karen, além de se vangloriar? – indagou, sentando-se na beirada da mesa, cruzando os braços em frente ao peito e olhando-a com seriedade.

 

       – Aproximar-me novamente de você e dizer que o amo muito. E, principalmente, deixar claro que não preciso do seu sobrenome para ser respeitada.

 

       −Isso nunca me passou pela cabeça. Quando a pedi em casamento foi unicamente com o interesse de dividir a minha vida com você, não pensei na cidade inteira. – disse, encolhendo os ombros e fitando-a com olhar triste.

 

       Por um momento, ficaram se olhando sem nada dizer. As palavras certas para aquela ocasião ainda não haviam sido criadas e, as que já existiam, contradiziam os sentimentos, atrapalhando a comunicação entre ambos. Ela dizia que o amava, quê mais podia fazer? Ele dizia que a queria em sua vida para sempre, como fazê-la compreender? Por fim, foi a vez de Karen se aproximar de Rodrigo e passar os dedos por seu cabelo curto e sedoso. Ela adorava o cabelo dele, a cor castanha quase clara, a espessura fina dos fios, o corte irregular e a nuca exposta.  Beijou-lhe a testa e o abraçou.

 

       –Vamos fazer o seguinte, delegado, – ela disse, segurando-lhe o rosto entre as mãos: – eu deixo uma escova de dentes na sua casa e você deixa outra na minha. Pelo menos enquanto eu ainda tiver uma casa. – completou, torcendo o lábio para baixo.

 

       Ele franziu o cenho, preocupado:

 

       – O Dolejal tornou a ameaçá-la?

 

       –Não, meu amor, vou vender o condomínio para o coronel. – informou-o, decidida, e indicou o que faria após com um sorriso matreiro: – Planejo comprar o terreno ao lado de sua casa. O Vilela intermediará o negócio. Acho que assim ficaremos mais próximos, não?

 

       – Mais próximos? – ele sorriu, fazendo um sinal negativo com a cabeça e prosseguiu: – Por onde ando levo você comigo, dentro de mim, é difícil estar mais próximo do que isso, dona Karen.

 

       –Caramba, você diz tanta coisa bonita! – ela exclamou com os olhos brilhando de emoção: – Vou te amarrar com uma corda bem firme, caubói. – prometeu, selando a promessa com um beijo longo e profundo.

 

       Quando se afastaram loucos de desejo, ele disse:

 

       – Quero acompanhá-la quando for pagar sua dívida com o Dolejal e na negociação do terreno com o Vilela. – antes que ela esboçasse reação, advertiu: – Eu era advogado antes de me tornar delegado, é por isso. Pode pagar meus honorários com o seu corpo, não se acanhe.

 

       –Ouvi dizer que seus honorários são altíssimos. – declarou com um sorriso malicioso.

 

       –Tão caros que terá de começar a pagá-los, agora. Vamos para um lugar fazer amor. Estou louco de saudade de você. – disse, enfatizando a necessidade com os olhos turvos de vontade.

 

       Ele a puxou para si num abraço apertado. Em seguida, afastou-se e se impôs um autocontrole a duras penas. Olhou ao redor em busca do chapéu, do celular e da chave da picape.

 

       – Terá de ser na sua casa. – ela declarou, olhando-o fechar as gavetas e, contrariada, emendou: – Estamos com visita lá em casa, a Veridiana e um amigo do Johnny.

 

       –Então temos um problema. A Val está preparando o jantar para logo mais à noite, e ela pediu ajuda para uma de suas amigas do boliche. – falou Rodrigo sem graça. – Teremos de ir para um hotel.

 

       – Tudo bem, o que importa é a companhia.

 

       –Viu só como não será fácil? Se morarmos juntos, poderemos fazer amor a hora que quisermos. Mas, sem um lugar nosso, teremos sempre que depender dos outros como se fôssemos adolescentes. – reclamou, pegando-lhe pela mão.

 

       Antes que saíssem, ela o puxou pela mão e o fez virar para si.

 

       – Tem razão. Vou expulsar meu filho e minha vó da minha vida para morarmos juntos. – ironizou.

 

       –Não quis dizer isso. – disse, sem jeito, baixando os olhos por um momento antes de cravá-los nela: – Podemos morar todos juntos, minha família e a sua. Onde vivem três podem viver seis.

 

       Era uma loucura total, misturar ela e a Val, mais dois adolescentes e uma velhota com espírito festeiro de vinte anos de idade.

 

       – Está brincando?

 

       – Acha muito ruim?

 

       Uma família grande e domingos com churrasco e cerveja. Gente conversando, brincando e brigando. Confusão.

 

       – Seria muito doido e... excelente! Veja se é possível construir um segundo andar sobre a estrutura de sua casa. Com o dinheiro da venda do condomínio posso ampliá-la e abrir um negócio para mim, no centro da cidade.

 

       Ele sorriu e ajeitou a aba do chapéu, puxando-a para frente do rosto.

 

       – Pensei que teria que gastar todo o resto do meu charme para convencê-la.

 

       Franco cavalgava pela planície seca da Arco Verde. O vento bagunçava-lhe o cabelo e batia morno contra o seu rosto. O galope puxado exigia do cavalo a força de seus músculos. Nada mais importava do que correr o mais rápido possível. Projetou o próprio corpo para frente e mirou a vastidão de terras à sua frente. Um dia tudo aquilo e mais um montão de hectare seriam seus. Ele seria rico e poderoso. Ninguém mais em Matarana teria coragem de chamá-lo de diabo loiro, psicopata ou vira-lata. Seria chamado pelo sobrenome. Ele seria tão importante que os políticos da região iriam lhe pedir a benção para suas campanhas. Para isso, bastava que Thales Dolejal, o dono de tudo, morresse.

 

       Quando alcançou a margem do Rio Verde, apeou e conduziu o cavalo para debaixo de uma mangueira. Prendeu-o à árvore com uma corda. Despiu-se e se atirou no rio. Mergulhou fundo de olhos abertos.

 

       Cada vez mais estava difícil fechar os olhos em paz. Everaldo não fora localizado. E Dolejal insistia em se portar como um pai prestativo. Havia-lhe proposto a administração da Arco Verde. O controle absoluto da fazenda para que, enfim, pudesse voltar-se para outros negócios, como as fazendas no Pará. Franco teria carta branca para administrar a fazenda e o pessoal. Todos estariam subordinados a ele, inclusive, Bronson. Receberia como pagamento uma porcentagem dos lucros da fazenda, a casa-sede e uma camionete zero quilômetro à sua escolha. Havia muito tempo que Franco não acreditava em Papai Noel, e tampouco em papais arrependidos. Dolejal temia que ele abrisse a boca e revelasse o seu envolvimento no assassinato de Mendes e na tentativa de seu próprio assassinato. Pai e filho jamais haviam falado a respeito, um assunto tabu. Dolejal mantinha uma distância segura de Franco, comprando-o ao realizar o seu desejo de se tornar gerente da fazenda. Quanto a Franco, deixava-se comprar. Nem tanto pela promoção, mas muito mais pelo desejo de estabelecer entre ele e o pai um vínculo, fosse qual fosse, que os unisse. Assim, ele ia fazendo as vontades do fazendeiro. Acatava o novo cargo, deixava passar a tentativa de homicídio, não entregava a fita com a gravação de Mendes incriminando o fazendeiro e aceitava estudar em São Paulo como universitário, filho de latifundiário que, agora, o era. Cumpriria o protocolo oficial dos bem-nascidos da região. A graduação em Agronomia era a única exigência do pai e patrão, a fim de entregar-lhe as correntes da porteira de seu feudo. Sem instrução, nada de promoção. Sem promoção, ele continuaria a ser um pistoleiro sem eira nem beira.

 

       Franco ponderou por dias a respeito da oferta. Amava o pai e o perdoara por seu deslize quanto a Everaldo. A verdade era que ele havia-se arrependido, uma vez que não permitia a saída de Franco da fazenda sem pelo menos dois seguranças. Afinal, Everaldo parecia estar à espreita para atacar a qualquer momento.

 

       Bronson comentara certa vez que havia pistoleiros que cumpriam um serviço mesmo não sendo pagos, faziam-no por uma questão de honra e para, assim, valorizar o próprio passe, ou seja, aumentar o seu valor como matador de aluguel. Restavam, então, duas formas de parar Everaldo: a polícia encontrando-o, ou o matando. Caso a primeira opção ocorresse em primeiro lugar, o pistoleiro entregaria o mandante do assassinato de Mendes. Como Dolejal não era burro, possivelmente teria contratado um agenciador. Este, sim, seria delatado por Everaldo. De todo jeito, o delegado de Matarana chegaria até Dolejal. Porém, poderia evitar que a polícia pusesse as mãos no fazendeiro. Com a morte de Everaldo. O que Franco teria um especial prazer em promover. Só em lembrar o pavor estampado no rosto de Nova e a possibilidade de ele se aproximar dela novamente, fazia o seu sangue ferver dentro do cérebro. Poderia também matar o agenciador. De qualquer maneira, teria de sujar suas mãos com sangue. Entretanto, não era o sangue de inocentes.

 

       Naquela noite, no bar do Gringo, ela dispensou o violão. Concentrou-se no repertório mais romântico da música country. Ajeitou o microfone, sorveu um gole generoso da água mineral e esperou os primeiros acordes da melodia ressoar. You Are era sempre a mais pedida pelos frequentadores do Gringo, que, naquela sexta-feira, estava lotado.

 

       Entre uma estrofe e outra, Nova abria os olhos, envolvida pela letra de amor. Na segunda vez que cantou o refrão, avistou Cris sentado à mesa em frente ao palco, com um copo de uísque. Vestia uma camisa social sobre o jeans escuro e olhava diretamente para ela, com aqueles olhos adoradores de quando a admirava cantar. Engasgou numa fração de segundos, mas recuperou-se sem chamar atenção do público. Era estranho que todos estivessem admirando a sua apresentação, visto que, normalmente, concentravam-se em beber e conversar. A atitude dos clientes do Gringo motivou-a a dedicar-se ainda mais à canção. Endereçou um longo olhar a Cris e era como se lhe dissesse que estava tudo bem entre eles outra vez. Ele sorriu e piscou-lhe o olho com charme.

 

       O refrão exigia-lhe mais do que a capacidade técnica vocal, era o coração que cantava quando dizia “você é que me faz feliz/ você é tudo para mim”. Ao repeti-lo pela terceira vez, reconheceu a figura alta no fundo do bar. Ele estava com a mesma roupa de quando se amaram debaixo das estrelas. O chapéu na mão em frente ao corpo. Encarava-a com a expressão séria e obstinada. E foi para ele, então, que Nova dedicou a música e disse-lhe com todas as palavras que o amava e por mil razões; mas, principalmente, pelo o que ele era. Não conseguia mais desgrudar os olhos dele, era como um ímã que a puxava e a trazia ao seu encontro. Percebeu de soslaio quando Cris virou o corpo para acompanhar-lhe o olhar e, em seguida, voltar-se para frente e beber o resto do seu drinque.

 

       A música terminou, e ele partiu. E a música somente terminou porque ele partiu.

 

       Quando Franco deixou o bar, Nova abandonou o palco. Os músicos continuaram a tocar, e os clientes, espantados, viram a cantora correr para fora do lugar esbarrando contra as cadeiras e empurrando as garçonetes. Aflita em perdê-lo, tinha em mente um único objetivo: Franco.

 

       Alcançou o estacionamento tendo que suportar a opressão de um coração acelerado e a respiração pesada. Arregalou os olhos para enxergar melhor diante da péssima iluminação na via pública. Tencionava encontrar a picape vermelha que, ao longo das últimas semanas, tornara-se objeto de sua mais explícita e velada obsessão.

 

       Ao perceber o ronco de um automóvel, ela correu para a calçada e viu as sinaleiras traseiras do veículo maior que um carro. Desandou a correr e somente parou ao ver a picape piscar os faróis do outro lado da rua. Abandonou a perseguição ao veículo errado e atravessou a rua sem olhar para os lados.

 

       Franco pulou para fora da camionete. Um misto de medo e irritação fez despejar o suco gástrico forte no estômago. Nova tinha uma mania exasperante de atravessar a rua de forma imprudente. Temia que ela tivesse o mesmo destino que sua mãe. Ao recebê-la em seus braços, num aperto que lembrava o encontro de um náufrago com a sua boia de salvação, ele a afastou de si, sacudindo-a pelos ombros com violência.

 

       – Quer morrer? É isso? – gritou, sentindo tanto raiva quanto vontade de agarrá-la e fugir.

 

       Nova assustou-se com a sua reação e tentou se desvencilhar dele. Separaram-se por alguns instantes. Ele deu-lhe as costas, arou o cabelo com as mãos. Depois, mais calmo, voltou-se para ela e a puxou para um abraço aconchegante. Ela tremia sendo enrodilhada por seus braços.

 

       –Desculpe, princesa, mas tenho tanto medo... – interrompeu-se ao lhe beijar o topo da cabeça e completou fitando-a com um frágil sorriso: – Você é uma gata, mas não tem sete vidas.

 

       Franco com medo?,ela pensou, surpresa.

 

       –Por que demorou tanto?

 

       De repente, ele ficou sério, a expressão jovem e suave de sua face modificou-se, carregando-se e envelhecendo em minutos, como se revelasse nesse envelhecimento instantâneo os sentimentos. Não pareciam ser nada bons, Nova considerou, receosa.

 

        –Como não houve flagrante, o Rodrigo me liberou.

 

       – Justamente porque você não matou ninguém. – foi incisiva.

 

       Ele sorriu levemente.

 

       –Não, minha princesa. Mas isso é problema da polícia. Na verdade, vim atrás de você para me despedir.

 

       Se ela tivesse sido soqueada no meio do nariz não teria doído tanto quanto o que ouviu.

 

       –Vai atrás do Everaldo? – perguntou com aflição.

 

       –Até pensei em fazer isso. O desgraçado simplesmente evaporou, mas acho que o patrão o encontrará antes de mim. – ele fez uma pausa e olhou ao longe, para nenhum ponto em questão, apenas deixou os olhos vagarem para, depois, fixarem-se novamente nela. – Quero ser uma pessoa melhor, como o seu amigo doutor. Quero que tenha orgulho de mim e, acima de tudo, quero merecer estar com você, ser o seu homem, como você disse. – riu-se um tanto constrangido e continuou: – Vou para São Paulo estudar. O patrão quer que eu tenha um diploma de faculdade, sabe? Aí, me entregará a administração da Arco Verde. Isso vai mudar a minha vida, princesa, deixarei de ser um pistoleiro para ser um administrador de fazenda. Só assim poderei lhe oferecer a vida que merece, lá na Arco Verde, e com a nossa gurizada correndo pelo pátio infernizando a Irene.

 

       Quando terminou de falar e esperou por sua reação, ela demonstrou tristeza.

 

       –O que foi? – perguntou, aturdido.

 

       –Isso é muito injusto, muito injusto. Você é tão jovem, Franco, tem tanta coisa pela frente para viver. Deus do céu, faz apenas dois anos que entrou nos vinte e quer se envolver com família e filhos. – ela falou aos tropeços, confusa com a sua declaração de amor e de despedida, tudo ao mesmo tempo.

 

       –Não entendi. – automaticamente se afastou para enxergá-la melhor. Uma contradição que o ajudava a avaliar a situação. – O que está falando? Você disse que eu era o seu homem. Foi o que disse, eu não sou surdo nem doido. – insistiu, acusando-a.

 

       –Pensei que fôssemos namorar ou ter um caso. Não imaginei tantos anos à frente. Fiz isso uma vez e acabei me ferrando. – declarou com as mãos na cintura e mentindo descaradamente.

 

       –O que está me dizendo, Nova? – indagou, estreitando os olhos de forma perigosa.

 

       Ela respirou fundo e controlou a rouquidão da voz, pois era possível que pusesse tudo a perder ao revelar a dor que lhe rasgava o peito.

 

       – Admiro essa sua vontade de melhorar como pessoa e como profissional, mas não precisa fazer uma faculdade para ser importante para mim.

 

       Franco retesou os maxilares e endureceu ainda mais os olhos. Talvez fosse assim que o seu rosto ficava quando ele mirava a automática num alvo.

 

       –Em outras palavras, não irá esperar por mim merda nenhuma. Agora que é amiga da Karen vai virar piranha como ela?

 

       – O que? Não fala assim da Karen. Aliás, não fale assim de mulher nenhuma! – elevou a voz até esganiçá-la, as lágrimas desciam pela garganta e olhos quando falou: – Então vou lhe dizer de outra forma. Acha mesmo que quero um homem duas vezes por ano, nas férias escolares? Cacete, Franco, tenho 34 anos! Não sou mais uma garotinha iludida. Vocês sempre me deixam na mão, à espera, como uma maldita estepe, como alguém que se não encontrar coisa melhor, aí, sim, serve! – desabafou.

 

       –Deve falar isso para o doutor, não para mim. Só pedi que se preservasse, que se guardasse para mim, porque tudo o que eu fizer será para nós dois. Não estou mentindo ou querendo que seja uma peça reserva na minha vida. Só não quero que durma com outros caras, porra! É pedir muito? Tem tanto fogo aí que precisa apagar com qualquer um?

 

       –Por quê? Por que diz isso? Por que fui fácil para você? Por que você apagou rapidinho o meu fogo, Franco? – perguntou com raiva.

 

       O pistoleiro olhou ao redor, perdido. A conversa tomara um caminho estranho e ruim. Estava lá, diante dela, com o coração aberto e parecia que tudo o que dizia não soava particularmente bem para o seu lado.

 

       –Vamos conversar em outro lugar, não aqui, no meio da rua. – tentou pegar-lhe a mão, mas Nova não permitiu o contato. Tal gesto o machucou. – Não me rejeite, Nova, por favor. – pediu numa voz baixa e trêmula.

 

       Ele sentia frio. E era verão no cerrado.

 

       Nova sabia tudo sobre rejeição. Aceitou entrelaçar os dedos nos dedos dele. Entraram na picape e partiram para outro lugar.

 

       Objetos caros decoravam o ambiente sofisticado. O apartamento com sacada tinha vista panorâmica para uma rua estreita e asfaltada. No quinto andar do prédio no bairro nobre onde empresários e políticos investiam em imóveis.

 

       Cris praticamente afundou no sofá ao se sentar. Observou Janete dirigir-se ao bar e despejar uísque em dois copos. Ela usava uma saia justa, até os joelhos, scarpin e camisa social colada aos seios. Abrira a porta para ele outra vez.

 

       Depois de ver Nova correr desesperada atrás do pistoleiro, o médico buscava a cura para o seu coração ferido nos braços da substituta. E Janete sempre soube como desempenhar o papel. Sem cobrança e sem comparações. Oferecendo-lhe um copo de uísque puro, um sorriso terno e a mão. Conduzia-o então para o seu quarto, já que não precisavam mais se esconder em quartos de hotel.

 

       Sentados na beirada da cama, ela retirava-lhe a roupa sem deixar de fitá-lo e, depois, despia-se. Beijavam-se antes de desabarem sobre o colchão. Durante o sexo, Cris segurava as grades da cama com as duas mãos e arremetia-se forte para dentro dela. Enquanto buscava o prazer, ele gemia baixinho e deixava escapar palavras que apenas Janete aceitaria ouvir. Ela fingia não entender, porque se desse atenção a elas, o amante procuraria outra mulher para sua vida sexual. E, como nunca faziam planos e conversavam apenas trivialidades e coisas passadas dentro do hospital, ela não se sentia à vontade de esboçar qualquer revolução. Deixava como estava e aceitava o que ele podia oferecer.

 

       Naquela noite, quando Janete o chamou para tomar banho juntos, ele fingiu que estava dormindo. Cris não conseguia mais fingir com perfeição. Havia tantas mulheres em Matarana, por que fixar-se em uma? Jamais tornaria a sofrer se não se apegasse a mulher alguma. Com esse pensamento, ele se vestiu e partiu. Não se despediu nem agradeceu por tê-lo aceito e o permitido partir em paz, sem escândalo.

 

       Janete ouviu a porta abrir e se fechar. Mentalmente, disse-lhe adeus. Sabia que ele estava interessado em uma das enfermeiras da pediatria. Por certo, a garota dividiria a cama com o pediatra por alguns meses até ele ter uma recaída e voltar a vigiar a amiga de anos. Janete sorriu com tristeza pensando se a nova provável amante aceitaria ouvir, no auge do orgasmo, o nome de Nova ressoar como uma súplica por perdão.

 

       Ele dirigia com as duas mãos ao volante, enquanto a picape trepidava sobre a estrada de chão batido. Trafegavam por uma secundária estreita rodeada pelo mato alto. Os faróis exibiam a terra se erguendo formando um véu de poeira, na escuridão da noite, em direção ao interior de Matarana. A lataria atingida pelas pedras e cascalhos aguentava os cem quilômetros por hora mesmo aos solavancos.

 

       Nova relançou um olhar para Franco. Uma máscara cobria-lhe a feição bonita. As sobrancelhas juntas e o cenho franzido, o canto da boca puxado num esgar de amargura. Mesmo zangado, ainda assim era extremamente bonito, ela admitiu, observando que ele se afastava cada vez mais da civilização e se embrenhava para dentro do nada.

 

       Num átimo, a direção foi girada para a direita e o veículo entrou no acostamento, os pneus amassando o mato seco. Franco reduziu a velocidade, mas não parou, invadindo cada vez mais a planície.

 

       – Volta para a estrada, Franco. – ela pediu, tensa.

 

       Ele a ignorou, os olhos fixos no matagal que era atropelado pelas rodas potentes, o silêncio caindo sobre ambos como uma marquise de concreto.

 

       –Por favor... – balbuciou.

 

       Ele pisou no freio e, se não fossem os cintos de segurança, ambos teriam quebrado o vidro frontal da camionete com seus crânios. Voltando-se para ela, desafivelou o cinto, encurvou-se e a pegou pelos ombros.

 

       –Esqueceu quem eu sou? – indagou, mal descolando os lábios, os olhos fulminando-a, os maxilares forçando a pele do rosto com barba de dias.

 

       Ele esperava pela resposta, era evidente. Nova queria dizer que ele era o amor da sua vida. Sentia um nó na garganta, o bom e velho medo voltando à carga. Preferiu desviar os olhos dos dele, uma atitude menos arriscada.

 

       – Acha que sobrevivi à merda da minha vida se eu não fosse quem sou? Tenho o sangue desgraçado dos Dolejal, minha querida. Cavar sepulturas ou capinar debaixo de chuva não me abalam, é até um tipo de hobby. Portanto, não tente desafiar o diabo, Nova! Não diga como as coisas devem ser, porque você não está no comando. Às vezes tenho que melar a voz e afagar o seu ego para que não se assuste com minha brutalidade, mas é isso que sou, um bruto, um cara tosco e selvagem acostumado a lidar com os extremos. – ele parou e avaliou-lhe a expressão sem nada dizer.

 

       Nova umedeceu os lábios com a língua e, enfim, conseguiu falar:

 

       – Você conhecerá uma garota da sua idade, e quero que se sinta livre para...

 

       Ele a interrompeu enfiando os dedos nos cabelos curtos dela:

 

       – Sexo. É isso que tem medo? Que eu encontre outra mulher para fazer sexo? – perguntou com rispidez.

 

       –Não é medo, – começou sem muita coragem e prosseguiu: – é o mais natural a acontecer. Afinal, você sairá desse fim de mundo e irá viver numa metrópole. Seu estilo de vida mudará, sua cabeça mudará e estará cercado por pessoas jovens e interessantes. O seu mundo se expandirá, Franco, nada mais será como antes.

 

       –Vou para estudar e do jeito que sou burro terei de ficar grudado nos livros mais tempo que qualquer um. – interrompendo-se, ele suspirou irritado e continuou: – Não sou um garoto. Você me vê assim, mas eu não sou um garoto, Nova! Sou um homem como o doutor, como o delegado ou como qualquer um de seus amigos.

 

       – Eu sei, apenas aproveite sua nova vida sem se sentir preso a nada e a ninguém. Se o nosso destino é ficarmos juntos, voltará para os meus braços certo do que realmente quer. – declarou com carinho, odiando ter de dizer cada palavra.

 

       –Escuta uma coisa, Nova, – apontou-lhe o dedo em riste e prosseguiu falando baixo e pausado: – Você é minha, é isso aí, minha. O Bronson cuidará de você e a protegerá do Everaldo, está tudo arranjado. Ele ficará no meu lugar como segurança, e se você mijar fora do penico, por Deus, Nova, volto a tempo de cortar a garganta do infeliz que te tocar. – afirmou, em seguida, a boca perto do ouvido dela: – O Bronson me contará tudo! Por isso não preciso pedir que se preserve até eu voltar. Fui camarada e bonzinho antes, mas as pessoas nunca entendem as minhas boas intenções.

 

       Ela virou a cabeça para encará-lo e desferiu entre dentes:

 

       – Canalha!,enquanto eu tenho minha vida vigiada por um capanga de fazendeiro, você come todas na terra da garoa! – escarneceu.

 

       Os olhos de Franco brilharam como se ele estivesse com febre.

 

       –O seu corpo e a sua alma me pertencem, entendeu?

 

       –Não, Franco, não é assim. – gemeu, cansada. – Um relacionamento saudável não se constrói dessa forma.

 

       –Está repetindo as palavras do doutor? – debochou. – Que relacionamento saudável? Devemos então moderar na maionese e nas frituras? Vai para o diabo!  Eu falo de paixão, de amor, de tesão, de matar qualquer filho da puta que encostar um dedo em você! Falo de suor e de sangue! E da saudade que vai me foder a alma todos os dias como nessas duas semanas. E você vem me catequizar sobre relacionamentos? Não temos um re-la-ci-o-na-men-to, dona Nova! É mais que isso... é coisa do destino. Ninguém mandou a dona vir para a minha terra. Ninguém senão o destino. Isso é fato. – completou, por fim, encurvando-se por sobre ela.

 

       Duas mãos embarafustaram-se por baixo do vestido dela e puxaram-lhe a calcinha. Ela gemeu ao sentir-lhe os dedos deslizando por suas coxas. Mesmo desmanchando-se de vontade, ela tentou afastá-lo. Ele explorou-lhe o interior da boca com a língua morna e deliciosa. Não queria se afastar nunca mais.

 

       – O que é? – perguntou, ofegante, as narinas dilatadas, as pálpebras semicerradas, embevecido de emoção e desejo.

 

       – Acha certo me proibir do que terá em excesso?

 

       Ele a olhou, por um momento, confuso.

 

       –Fala de sexo?

 

       Depois que ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, ele tentou aproximar-se para acabar com o assunto com um beijo profundo. Ela não o permitiu.

 

       –Responde, Franco! – impacientou-se.

 

       Ele ergueu a cabeça e a encarou com impaciência:

 

       –Então, me diga uma coisinha, consegue mesmo ir para cama com outro?

 

       –Não interessa. – baixou a cabeça para não revelar que jamais conseguiria fazer sexo com outro homem enquanto estivesse apaixonada por Franco. – Você ainda não me respondeu! – insistiu com severidade.

 

       Franco sorriu e respondeu com naturalidade:

 

       – Fiquei 17 anos sem fazer sexo, posso aguentar cinco meses.

 

       – E acha isso justo? Se privar?

 

       – Santo Deus, Nova, é só sexo! Grande coisa!

 

       –Para as mulheres não é só sexo, significa entrega, envolvimento e lealdade. Se você sair de Matarana sem vínculo comigo e tiver vontade de fazer sexo com outra mulher, não estará me traindo. Eu não quero privá-lo de nenhuma experiência.

 

       –Nossa, que mulher fantástica eu tenho! – ironizou e completou a título de informação, pois não parecia desejar se gabar do feito: – Já fui pra cama com quase toda a população feminina de Santa Fé. Com certeza, transei mais do que o Dolejal, o Rodrigo e o seu doutorzinho juntos. Só quero que saiba que sexo é um bom esporte para não se morrer de tédio, e eu não estou mais entediado. Terá de acreditar na minha palavra.

 

       – E você na minha. – retrucou.

 

       –Acontece que sou inseguro e cheio de cicatrizes, por isso apenas a sua palavra não basta. – assegurou-lhe sem maquiar os defeitos.

 

       Ela gemeu baixinho, expelindo ao ar pela boca quando ele baixou a cabeça e chupou-lhe os mamilos, depois de afastar as alças do vestido.

 

       –Pare de pensar, Nova, e se entregue a mim. –ordenou, a voz firme, a boca encostada contra a pele do seio.

 

       –Oh, Deus, – ela gemeu alto, ofegando, enquanto ele lambia-lhe umbigo eroticamente – eu te amo, Franco.... Eu te amo e não quero que se esqueça de mim no meio das garotinhas...

 

       Ouviu-o rir baixinho e dizer, admirando-a com velado desejo no momento em que baixava o zíper do jeans:

 

       –Eu amo você muito mais, minha garotinha.

 

       Pressentia a aproximação de uma virose. Vilela reconhecia as limitações da carne, até onde podia ir e exigir do seu corpo. E os primeiros calafrios haviam começado há pouco mais de dez ou vinte minutos. Espasmos quentes atravessando a coluna vertebral.  O corretor não temia sucumbir a uma doença pulmonar. O seu medo real era o câncer; especificamente, no pâncreas, o órgão mais sem glamour do organismo.

 

       Estava morrendo de sede. Isso, sim, também era outro sintoma de uma virose. Arrastou os chinelos até a cozinha. Abriu a porta do armário aéreo e pegou a garrafa de água mineral. Girou a tampa e bebeu todo o seu conteúdo. Arrotou depois do último gole. Depositou a garrafa no lugar de onde a tirara. Interrompeu-se no gesto.

 

       Teobaldo Vilela mirou a figura no meio de sua cozinha. Rapidamente, seu pensamento deslocou-se para a segunda gaveta do armário debaixo da pia. Deitada ao lado da caixa de munição, descansava a sua .380. Quantos segundos ele precisaria para abrir a gaveta e se apoderar da pistola? Quantos outros para acertar a face do sujeito que elevava sutilmente o braço enquanto mantinha os olhos azuis serenos.

 

       –É impossível conter o Everaldo. – falou para ganhar tempo.

 

       O outro permaneceu em silêncio. Não havia nada a dizer.

 

       Quando Karen chegou à casa de Rodrigo, teve a nítida impressão de que Valéria ainda não sabia sobre sua presença no jantar. A ruiva sorriu com educação e polidez, endereçando um rápido olhar para a loira que dobrava os guardanapos ao lado dos pratos. Limpou a mão no avental imaginário e estendeu-a a Karen.

 

       – Como vai? Essa é Verônica... Ela trabalha na biblioteca pública, e jogamos boliche aos sábados à tarde.

 

       Verônica tinha mesmo cara de bibliotecária e ajeitara-a para a circunstância. Era evidente que Valéria havia arranjado um modo de aproximar a amiga do irmão.

 

       – Tudo joia, e vocês? – cumprimentou-as com um sorriso de quem sabia sobre o que pairava no ar. Acenou com a cabeça e emendou meio que se desculpando: – Não quero me intrometer no seu jantar, Val. Só vim acompanhar o seu irmão enquanto ele pega umas roupas. Passaremos a noite na minha casa.

 

       Tanto Valéria quanto sua amiga ficaram vermelhas. Que surpresa, pensou Karen, quase rindo, elas acreditavam que a separação de duas semanas poria fim ao amor que um sentia pelo outro. Meninas ingênuas, por certo. Uma história de anos não sucumbia em tão pouco tempo.

 

       – Por que não ficam? – a irmã do delegado adiantou-se, vendo Rodrigo passar por ela e postar-se diante da geladeira aberta.

 

       – Onde está a Sabrina? – perguntou ele, de costas, pegando duas garrafinhas de refrigerante e entregando uma delas a Karen.

 

       – Na casa do namorado. – disse Val, atrapalhada, olhando para a amiga e para Karen. Por fim, decidiu o seu lado: – Fica Karen, faz tanto tempo que a gente não conversa.

 

       Karen sorveu a bebida gelada e encolheu os ombros.

 

       – Claro.

 

       – Que namorado? – indagou Rodrigo, interessado, as sobrancelhas quase juntas, concentrado na irmã.

 

       – Ah, você o conhece, é o guri do Soares, dono da livraria na segunda via. Ele até já jantou aqui. Ai, Rodrigo, não começa, deixa a guria em paz. – reclamou Val, levantando os braços, impaciente.

 

       Ele riu e emborcou o resto da bebida numa golada só.

 

       – Só quero saber com quem minha sobrinha anda, dona Valéria Malverde. – disse, dando de ombros, fingindo desinteresse.

 

       – Sei, meu querido, assim como faz com a pobre da Nova e comigo. – balançando a cabeça, completou em tom de brincadeira: – Karen, mantenha o meu irmão ocupado, por favor! Como pode alguém ser tão controlador!

 

       – Tentarei monopolizá-lo. – prometeu, encarando nos olhos o carinha que lhe endereçava um daqueles olhares de matar.

 

       – Vamos tomar banho antes do jantar? – perguntou-lhe o delegado com um sorriso cheio de segundas intenções.

 

       Valéria sentiu pena de Verônica, mas não sabia que Karen amoleceria ao ponto de correr atrás de Rodrigo. Talvez ela estivesse errada sobre as intenções da moça. Certa ou não, a mulher que punha brilho nos olhos do seu irmão e um sorriso de verdadeira felicidade tinha de ter o seu aval e a sua cumplicidade. Que se danasse a bibliotecária!,pensou Val.

 

       Quando o casal encaminhou-se para o banheiro, Verônica aproximou-se, discretamente, parecia chateada e constrangida ao dizer:

 

       – Acho que estou sobrando.

 

       Valéria não era mulher de meias palavras:

 

       – Pois é, até poucas horas atrás, o Rodrigo era o melhor partido da cidade. – lamentou, as mãos na cintura e a expressão de pesar: – Mas sabe como é, homem é que não falta.

 

       – É verdade. – disse ela numa voz sumida. –Mesmo assim, vou abrir mão do jantar, querida.

 

       No “querida” Val captou uma fina ironia.

 

       – Certo, obrigada por ter feito o jantar. Tenho certeza de que o Rodrigo vai adorar o seu tempero, amiga.

 

       Franco era íntimo da dor. Mas nada lhe doía mais do que ver Nova partir. Sempre que ela descia de sua picape e dava-lhe as costas sem se virar e relançar um último olhar, doía, algo como uma ferroada de abelha, uma dor quente e ardida. Restava-lhe, então, respirar fundo e seguir em frente como um amputado.

 

       Ao ver o nome de Dolejal no visor do celular, contraiu os lábios num esgar de amargura.

 

       – Franco, estou no Jornal, venha me buscar. – ordenou e desligou.

 

       Suspirou, irritado. Tinha de fazer o trabalho de segurança e motorista particular do próprio pai. Em dez minutos, encostava ao meio-fio. Dolejal entrou e fez um sinal adiante com a cabeça.

 

       – Resolveu seus problemas na cidade? – perguntou sem desviar a atenção da avenida com pouco tráfego.

 

       – Sim. – endereçando um olhar de soslaio, indagou intrigado: – E o seu?,resolveu?

 

       Dolejal esboçou um sorriso rápido.

 

       – No momento certo.

 

       Franco não fazia ideia sobre o quê o patrão falava. Mas já obtivera preciosas informações apenas utilizando-se de perguntas despretensiosas. O homem ao seu lado considerava-se inteligente e sagaz, mas talvez não lembrasse que o seu capanga também nascera com parte dos seus genes.

 

       – Vamos pelo atalho – declarou o fazendeiro, impassível.

 

       Obedeceu-lhe, girando o volante e adentrando a estrada de chão batido.

 

       – Amanhã vá até o escritório do centro e converse com a senhorita Freitas. Ela é responsável por lhe arranjar acomodações em São Paulo e abrir uma conta bancária para você. – declarou, puxando o cinto de segurança em frente ao corpo. – Onde investe o dinheiro que ganha? Tenho certeza de que jamais gastou um centavo com essa lata-velha.

 

       Franco assentiu sem sorrir.

 

       – É, tenho minhas economias.

 

       – Debaixo do colchão? – ironizou.

 

       – Mais ou menos. – disse, encolhendo os ombros: – Um dia quero ter meu pedaço de terra.

 

       – Sabe quanto vale o hectare em Matarana? – havia um tom de divertimento e deboche na pergunta.

 

       – Andei me informando.

 

       – Quem você pensa que engana? Vai levar uma encarnação inteira juntando dinheiro e, no máximo, comprará um sítio do tamanho do hall de entrada da minha casa.

 

       – Não tenho pressa. – endereçou um olhar especulativo ao outro e disse: – Acho que um gerente de fazenda ganha bem. Posso deixar o dinheiro guardado, só empilhando as cédulas. – falou, decidido.

 

       Dolejal não resistiu. A vontade de machucar era mais forte que o bom senso.

 

       – Quer saber como foi concebido, Franco?

 

       Automaticamente, o motorista pisou ainda mais no acelerador. Alcançava a BR-163 e acabava de ultrapassar um caminhão transportando madeira.  Os dedos apertaram forte o volante. Ele conhecia aquele camarada no banco ao lado havia tempo o suficiente para saber que era um jogo. Procurou não revelar a raiva que lhe aflorava à pele, tingindo-a de vermelho como marcas de alergia.

 

       Como Franco continuasse quieto, o semblante fechado, o fazendeiro baixou ainda mais o vidro, escorou o cotovelo displicentemente na janela aberta e empenhou-se na narrativa.

 

      –Era uma noite absurdamente bonita. Eu tinha vinte anos e nada na vida, nada de nada. Trabalhava para o meu avô, – ele voltou-se para Franco e acrescentou de forma significativa: – o seu bisavô garimpeiro. – e continuou: – Bem, naquela noite, ele tinha bebido mais do que o de sempre e me chamara para um duelo no pátio da fazenda... a Minuano, a porcaria que eu transformei na Arco Verde. – deu de ombros e prosseguiu, falando mais para si do que ao filho: – O velho me chamou para um duelo de facas. Ele estava fora de si, não somente bêbado como também louco. Aí, fui tocado por Deus. Sabe quando a gente se sente superior aos humanos como se fôssemos indestrutíveis?,foi assim mesmo como me senti... Deixei o velho acertar a ponta da faca no meu braço. Ele ficou tão feliz que não tive coragem de revidar. Eu pensei: é só um velho bêbado dono de metade de Matarana, é só um idoso que se apossou das terras do governo e expulsou os índios e os nativos, é só um velhinho tolo que só tem a mim no mundo inteiro... É nessa parte que Deus ganha destaque. – ironizou – Fui atingido por uma luz reveladora que não me cegou. Atei uma corda no galho de uma árvore e suspendi o corpo magro e cheio de cachaça de Onório Dolejal. – ele parou como se organizasse a sequência das ações passadas e seguiu, absorvido pela viagem no tempo: – Quando o delegado chegou, eu disse que o velho tinha se enforcado. Não havia o que investigar. O delegado era bastante ambicioso. Ele sabia que eu herdaria as terras do velho Onório e seria o único homem a ter condições de bater de frente com Marau um dia. – Dolejal aproximou o rosto de Franco e falou baixinho, num tom de cumplicidade: – Tenho mais do que Marau, Franco, bem mais. Mas isso não importa, agora, pois quero que saiba como você vingou. – ele esboçou um frágil sorriso e falou: – Depois que enforquei o meu avô, enchi a cara com a garrafa de cachaça dele e ganhei a estrada. No caminho encontrei uma loira com cabelos longos, uma mulher linda e devastada. Ela disse que tinha a minha idade e sonhava ter uma vida digna. E eu disse que poderia transformá-la numa esposa de fazendeiro. Acho que a piranha se apaixonou por mim. O céu estava estrelado quando a levei para o acostamento e a deitei no mato. Uma vez apenas. Uma vez e a engravidei. Ela não cobrou, nunca me cobrou nada. Acho que ela tinha vergonha de ter acreditado na minha promessa de rapaz atingindo o orgasmo. Ou ela considerava você, Franco, tão inconveniente quanto eu. – declarou, num tom de indiferença e apontou para frente: – É melhor que desvie dos buracos, senão perderá pelo caminho o seu assoalho enferrujado.

 

       Franco ouvia o som da última gota.

 

       – Por que está me contando isso? – franziu o cenho, sério e atento.

 

       – Para que saiba que os Dolejal estão divididos em duas categorias, os espancadores e os assassinos. E você faz parte da segunda. – afirmou, encarando-o com firmeza. – Uma hora ou outra, terá de matar de verdade, como um legítimo pistoleiro, e não um justiceiro do cerrado.

 

       – Isso não é coisa que um pai deveria dizer ao filho. – disse Franco, enojado.

 

       Um leve sorriso aflorou nos lábios do latifundiário.

 

       – O que quer que eu lhe diga? Que minta? – indagou sem deixar de verificar com atenção os efeitos de suas palavras: – Como posso mentir para a pessoa que foi baleada para me salvar?

 

       Franco voltou-se a fim de constatar o tom da declaração.

 

       – É, Franco, é somente nisso que me apego quando tenho vontade de matá-lo por ter dormido com a vagabunda que eu amava. Você provoca isso nas pessoas, ódio e resignação.

 

       – Nunca vai me amar. – sentenciou sem energia para pedir que a afirmação fosse negada pelo pai.

 

       – Espancadores ou assassinos. – repetiu Dolejal, impassível.

 

       Ele estava no seu limite. De repente a curiosidade em ultrapassá-lo. Mais do que curiosidade, a necessidade de cruzar a linha, matar no peito o que viesse pela frente. Abandonar o amor rejeitado na estrada. Passaria a vida inteira de joelhos, esfregando a pele esfolada no asfalto, em busca da aprovação de quem não valia nada.

 

       – Quero que saia da minha vida, pai. – declarou com calma, destruindo com delicadeza o mundo até então conhecido.

 

       O fazendeiro estreitou os olhos e voltou-se para o trânsito à frente, desconsiderando o tom autoritário de Franco.

 

       – A fita do Mendes incriminando o senhor está no meu alojamento na fazenda. Pode pegar e destruir, não fiz cópia.

 

       Reduziu a velocidade até alcançar o acostamento, parou sem desligar o motor. A picape tremia, e o barulho dos demais veículos na estrada reverberava alto e rápido.

 

       Thales Dolejal nem se abalou ao encarar o filho com a expressão de poucos amigos:

 

       – Volte para a estrada.

 

       – Não quero mais nada seu.

 

       O outro sorriu e era um sorriso feio e cínico.

 

      – Então, é você quem deve descer. Tudo o que tem veio do meu dinheiro, não seja idiota.

 

       – Que seja, “patrão”. – enfatizou, num desafio irônico.

 

       Ele saiu e bateu a porta. Um segundo depois, jogava todas as roupas para dentro do veículo. Cada peça que retirava era como um gene Dolejal que se desprendia do seu DNA. Fora concebido na estrada. Conhecera o amor verdadeiro na estrada. Abandonaria o Franco pistoleiro também na estrada.

 

       Ouviu o ronco do motor da sua picape se distanciar e as buzinas dos automóveis e caminhões ao passar por ele. Era a primeira vez que andava desarmado. Mas não fora assim que nascera?

 

       – Gavetas reviradas, nada de dinheiro e a parabólica sem televisão. – constatou o delegado na cena do crime.

 

       –Chefe, vem vê uma coisa muito esquisita!–Lucas gritou do quarto de Vilela.

 

       Rodrigo parou à porta e franziu o cenho intrigado. O policial exibia um sorriso divertido enquanto apontava para as cinco gavetas abertas da cômoda. Nenhuma roupa e forração de cama. Centenas de caixas de remédio.

 

       – Hipocondríaco. – declarou Lucas, agachando-se ao lado do delegado e verificando o prazo de validade de uma ou outra caixa. – Faz dois anos que esse troço venceu e a caixa nem foi aberta. Será que saber que se tem o remédio em casa diminui os sintomas da doença? – debochou.

 

       Rodrigo levantou-se e olhou ao redor. O quarto impecavelmente arrumado.

 

       – Diminui os sintomas da doença original, que é a ansiedade. – em seguida, apontou para a colcha na cama. – Ele era meticuloso e organizado.

 

       – Vixe!,então não batia bem da cabeça. – brincou Lucas, jogando para o alto e pegando de volta uma caixa com supositórios.

 

       –Se era ele o nosso agenciador de matadores de aluguel, jamais saberemos. Uma pessoa assim não deixa rastro. Os arquivos que guarda são os mentais. – ponderou, parando à janela e dando uma espiada no pátio: – Podemos considerar um crime de latrocínio e começar as investigações. Quem o matou não precisou forçar a entrada.

 

       –Alguém conhecido ou... – Lucas acendeu um cigarro e completou depois de tragá-lo: – o velho se descuidou... Também ingerindo tanto remédio, já devia estar meio caduco.

 

       – Droga, lembrei agora que a vó namorou o Vilela. Terei de lhe dar a má notícia.

 

       – Roubaram o que puderam carregar. Isso está me cheirando aos pés de chinelo da Vila Zumbi. Estamos ficando modernos, aqui, em Matarana. O óxi está entre nós, chefe. – Lucas considerou, taxativo.

 

       – Viciados deixam digitais por tudo.

 

       – Puta merda, é mesmo. Por que nunca é simples, meu Santo Deus? – desabafou.

 

       Rodrigo riu e afirmou:

 

       – Mas é simples, Lucas, quando encontrarmos os trecos do Vilela na Vila Zumbi, teremos o assassino ou os assassinos.

 

       – Viciados? – indagou, desconfiado. Bom, o delegado dissera havia pouco que os viciados deixavam digitais por tudo que era parte, mas, o lugar estava limpo...

 

       – Ai, saco, é, viciados que roubaram um suposto agenciador de matadores de aluguel que era tão perfeito na sua profissão que a polícia jamais conseguiria levantar provas concretas para pô-lo na cadeia. – ajeitou o chapéu para trás e depois para frente, deixando-o como estava antes e continuou: – Somos três na delegacia, somente três. O que faremos, então? Descobrimos quem matou o Vilela? Quem matou o Mendes? Onde está o maldito Everaldo? Como prender o Dolejal? Como provar que o Marau utiliza mão de obra escrava em algumas de suas fazendas? Até que ponto o Franco é inocente? Temos de nos concentrar, cacete! Eu, particularmente, prefiro ir atrás do Everaldo. A Nova disse que ele apareceu no hotel perto das duas da tarde, ou seja, poucas horas após a morte do Mendes. Antes disso, ele seguiu o Franco desde o hospital. Por isso encontrou o Mendes e, depois, o lugar onde o Franco e a Nova estavam. Então, amigo, Everaldo na mira.

 

       – Sabe, chefe, a gente tinha de fazer greve. – falou o policial com as mãos na cintura, pensativo.

 

       – Acha mesmo? E largaremos a cidade à mercê dos pistoleiros? – fez um sinal negativo com a cabeça e foi incisivo: – Não, meu caro, enquanto eu for xerife quem manda sou eu.

 

       – Delegado...

 

       – O quê?

 

       – Delegado... o senhor disse xerife, é delegado. – corrigiu-o Lucas.

 

       – O que eu disse?

 

       – Xerife, chefe.

 

       – Nada disso, eu falei “delegado”, Lucas. Não enche.

 

       – Certo, o senhor disse “delegado” e eu ouvi “xerife”.

 

       Não era a primeira vez que o chefe trocava as palavras, pensou o policial, rindo por dentro. Seguiu-o porta afora. Os peritos de Santa Fé estavam trabalhando em um caso recente. Um líder de assentados do INCRA havia sido assassinado por não concordar em vender suas terras. Matarana e o seu cidadão suspeito teriam de esperar algumas horas.

 

      Bonnie balançou o rabo ao ver Rodrigo voltar à picapeladeado por Lucas. Os policiais entraram, e a cadela pulou para o colo do mais novo. Lucas fez um carinho na cabeça de Bonnie e perguntou ao delegado, sem tirar os olhos da fachada de alvenaria da casa do corretor morto.

 

       – A gente vai visitar o patrão do Everaldo?

 

       Rodrigo coçou o cavanhaque pensando por um minuto. A circunstância da morte de Mendes encaminhava-se para a queima de arquivo. Quem mandara sequestrar Karen, possivelmente, também era o responsável pela morte do pistoleiro de Dolejal. Everaldo também era funcionário de Dolejal...

 

       – Não tem jeito, não, todos os ventos apontam em uma direção. ― disse, contrariado, exalando a respiração e as palavras como quem assume para si uma missão postergada. ― Vamos para a Arco Verde.

 

       O céu naquela noite não estava agressivo. Havia apenas uma escuridão sem fim e um risco de estrada sendo iluminado pelos faróis dos veículos. O delegado tinha um sulco profundo entre as sobrancelhas, indicando o quanto o incomodava enfrentar a arrogância e falsidade do ex-amigo. Durante anos, tivera-o em alta conta, não ao ponto de se interpor entre um tiro e ele, como Franco. O que o rapaz fizera era algo para se levar em consideração. Não fora um ato meramente devido à sua profissão como segurança. À época, ele vira em tal gesto a marca indelével da devoção cega. Uma devoção, por certo, mal direcionada.

 

        Quando o veículo passou por ele, reduzindo a velocidade até parar, Franco pensou em catar uma pedra no chão. Ao ver o cabelo loiro, de espantalho, e a expressão cerrada de Lucas, resolveu também parar a fim de ver o que acontecia. Pôs as mãos no quadril e ergueu o queixo. Era uma atitude de altivez, mas, para Franco, sugeria que estava pronto para o combate.

 

       Na cabine da picape, Lucas agitou-se, puxando do cós do jeans as algemas:

 

       – Viu que o maluco está pelado? Atentado ao pudor, chefe.

 

       – Espera aí, que vou falar com ele. – conteve-o Rodrigo, com ar sério.

 

       Ele desceu e foi até o rapaz, que aguardava os acontecimentos calmamente.

 

       – Foi assaltado? – brincou sem sorrir.

 

       – Não, só estava com calor. – devolveu, erguendo ainda mais o queixo, na tentativa de se impor, mesmo nu, à autoridade.

 

       Rodrigo preferiu não se aproximar. O rapaz não estava armado, mas a sua nudez o constrangia.

 

       – O que deu na sua cabeça ficar pelado na estrada? –indagou com impaciência.

 

       – Olha só, ou me prende ou me deixa seguir o meu caminho.

 

       – Vai para casa da Nova desse jeito? Com toda a dignidade de um maluco? Não, de jeito nenhum. – fez um sinal negativo com a cabeça e perguntou: – Está chapado, Franco?

 

       – Não sou dessas coisas, delegado. – irritou-se.

 

       – Precisa vestir uma roupa antes de ver a sua amada. – afirmou, lançando um olhar para o policial já fora da picape e completou, voltando-se para Franco: – Vamos até a minha casa, toma um banho, se veste e se acalma um pouco. Não adianta erguer esse queixo trêmulo aí que não me assusta.

 

       Diante de si, Rodrigo via um garoto perdido. Era assim que ele costumava encarar algumas pessoas, com compaixão, vendo, primeiro, a parte triste ou os supostos defeitos. Principalmente, as mais complexas, de temperamento arredio, ou seja, as que mostravam os espinhos à superfície da pele, e não debaixo dela. Como Karen e Franco.

 

       Retirou a camisa que usava por cima da camiseta branca sem mangas e lhe ofereceu estendendo-a.

 

       – É melhor tapar esse negócio, senão o Lucas vai ficar ainda mais irritado com você.

 

       Franco olhou para a roupa e para o delegado. Parecia lutar entre dois pensamentos. Ceder à vontade do outro, da recente inimizade de seu pai, ou dar-lhe as costas e mandar tanto a lei quanto o resto devidamente à merda.

 

       – Ela quer um homem forte, e não um desequilibrado. Quando a Nova deixou de se iludir em relação ao Cris, ela viu em você, Franco, a coragem a toda prova e a sinceridade e a força. Não importa o que lhe aconteceu; o que importa mesmo é como você vai lidar com isso. – disse Rodrigo com calma, devagar, como se falasse com o próprio filho.

 

       Franco captou mais do que as palavras. Era como um aviso, uma mensagem. Ele entendeu que o delegado não se aproveitaria de sua situação para tentar arrancar-lhe informação sobre Dolejal ou pressioná-lo a entregar a prova contra ele. Aceitou a roupa e ajustou-a à cintura.

 

       – Não estou do seu lado. – afirmou, convicto.

 

       Rodrigo sorriu levemente e falou:

 

       – Mas eu estou do seu. Desde que me ajudou a procurar a Karen, percebi que ninguém o vê como você realmente é, a não ser a Nova, claro.

 

       Franco deu de ombros.

 

       – Melhor assim, não gosto de gente.

 

       Antes que Rodrigo pudesse dizer qualquer coisa, a picape dirigida por Dolejal parou ao seu lado, no sentido contrário a do delegado. Imediatamente, Lucas pôs a mão sobre o coldre na cintura e manteve atenção e corpo voltados para o motorista.

 

       Em dois minutos, Rodrigo entendeu os motivos de Franco ter perdido a cabeça. Quem dirigia a sua preciosa e inseparável camionete vermelha era aquele com quem havia brigado. Farejando uma possível reviravolta na trama, ele olhou para a expressão fechada do ex-diabo loiro e, em seguida, voltou-se para a máscara de cera que apenas pôs a cabeça centímetros para fora da janela e disse:

 

       – Entre, agora. – a voz era firme e impedia qualquer outra reação que não fosse a de baixar a cabeça e obedecer-lhe.

 

       Rodrigo voltou-se para Franco, que se fingia de surdo e fitava os automóveis trafegando na estrada. Intercedeu com visível prazer:

 

       – Acho que ele já tomou a sua decisão, Thales. O Franco volta comigo.

 

       A porta da picape foi aberta bruscamente. O latifundiário que jamais demonstrava suas emoções, pelo menos as reais, postou-se entre ambos, determinado a preencher a lacuna de espaço que o ameaçava. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e fitou o delegado com a arrogância que colocava cada pessoa em seu devido lugarzinho debaixo do sol.

 

       – Ele volta comigo. Você está dispensado, delegado. Agradeço sua atenção para com o meu filho. – disse, secamente.

 

       – Por que o “seu filho” está sem roupa à beira da estrada? – perguntou o delegado com interesse, mas também num tom de desafio.

 

       –Tivemos uma discussão. Os jovens são impulsivos. É claro que você não sabe como se deve lidar com isso, já que não tem filho.

 

       – É, ainda não tenho. – espicaçou.

 

       – Humm, domesticou a Karen ao ponto de cogitar engravidá-la? Ela deve ter cedido em função da sua historinha de viúvo desconsolado. Mas, agora, dê meia-volta e vá servir à comunidade, sim? – ironizou, os olhos frios e duros.

 

      Envelheceria naquela estrada se ficasse batendo boca com o fazendeiro, pensou Rodrigo. Voltou-se para aquele que ainda tinha jeito:

 

       – O que quer fazer, Franco?

 

       Dolejal intercedeu, dando as costas a Rodrigo e pondo duas mãos nos ombros do garoto:

 

       – Se quer recomeçar, como disse, pegue suas coisas no alojamento. Suas roupas, tudo aquilo que adquiriu com o seu trabalho, que, por sinal, foi um excelente trabalho.

 

       Dolejal não precisava gastar muito o seu português nem marinar seus argumentos para Franco ceder. Era incrível e angustiante o poder que tinha sobre ele. Enviando um olhar envergonhado, disse a Rodrigo:

 

       – Tenho um dinheiro guardado para viver com a Nova, por isso preciso voltar com o patrão.

 

       Dolejal cruzou os braços como se com tal gesto demonstrasse a sua soberania sobre Franco. Eu o fiz, cedi-lhe meus genes, ele é a extensão do meu poder na Terra, era isso que o delegado lia em sua postura.

 

       – Certo, Franco. – concluiu, por fim, Rodrigo e emendou para a surpresa dos dois: – Vou com você, tenho que conversar com o seu patrão e depois te levo até a Nova.

 

       Franco aquiesceu, satisfeito com o acordo. Dolejal deu as costas aos dois e esperou que Franco sentasse diante do volante de sua picape.

 

       Quando o delegado girou a chave na ignição, falou para o seu policial:

 

       – Quer ouvir uma piada triste? – ele não esperou a resposta e continuou: – Thales Dolejal é um ser humano.

 

       – É engraçado, isso sim. Dá vontade de rir até se engasgar.

 

       – Eu ainda não terminei de falar, Lucas. – interrompeu-o com o olhar sério. – De repente me passou pela cabeça uma ideia doida, um tipo de intuição bastante primitiva. E se o Dolejal mandou matar o Mendes por ele ter tentado matar a Karen? E se o Dolejal ainda ama a Karen, hein? Ele acabou de sentir empatia pelo filho. Claro, daquele jeito Dolejal de ser. Mas não duvido nada que o próprio Mendes tenha planejado acabar coma Karen e com o Franco. – ele balançou a cabeça devagar, com raiva e nojo do pistoleiro e disse: –Ainda que o Thales estivesse errado e tendo cometido um crime, por Deus, Lucas, ele fez o que eu estava louco para fazer.

 

       – Ainda bem que só a Bonnie ouviu isso.

 

       Era tarde da noite quando Rodrigo voltou para casa. Sentou-se na beirada da cama e livrou-se das botas com um gemido baixo. Antes de se abandonar debaixo da ducha, voltou-se para a mulher que dormia com ar sereno e feliz. Até pouco tempo, ele a considerava uma amiga complicada, cheia de problemas e gostosa. Mas se enganara; Karen também era inteligente, linda e companheira. Era, com toda a certeza do mundo, o amor da sua vida. Baixou a cabeça e beijou-lhe sobre as pálpebras. Adorava o seu cheiro.

 

       Ao sair do banho, o cabelo ainda molhado e o corpo relaxado, encontrou-a acordada, sentada contra os travesseiros com um sorriso sonolento:

 

       – Por onde andava, meu caubói?

 

       – Por tantos lugares, meu amor. – disse com um sorriso preguiçoso. Sentou-se ao lado dela e fez-lhe um carinho na face: – Mas o melhor lugar do mundo é com você.

 

       Ela sorriu e puxou-o pela nuca, beijando-o com vontade. O segundo beijo foi mais suave e o terceiro foi acrescido de um convite:

 

       – Então fique comigo para sempre.

 

       – É pouco. – afirmou, num gemido rouco.

 

       Ele ajeitou-se contra os travesseiros e a puxou para o seu corpo, oferecendo-lhe o tórax como apoio. Acariciou-lhe o cabelo sem pressa, saboreando o prazer do amor correspondido.

 

       –Trouxe alguém comigo. – disse ele, com cuidado.

 

       – Homem ou mulher? – perguntou Karen, voltando o rosto para ele.

 

       Rodrigo riu e abraçou-a:

 

       – Não sabia que a senhora era ciumenta.

 

       – Ué, que tipo de policial é o senhor? – brincou. E aproveitando o ensejo afirmou: – Andei sentindo umas coisas estranhas ultimamente. Pensei que fosse gastrite ou úlcera. Depois descobri que era ciúme mesmo. Me diz, então, quem trouxe consigo.

 

       Sentada e ansiosa, ela fitava o olhar amoroso do seu parceiro e o sorriso divertido que lhe dançava nos lábios.

 

       –Tem ciúme do Franco?

 

       Ela fez uma careta e ele gargalhou.

 

       –Oh, é mesmo?,a Nova deve estar flutuando! – riu-se. –Terei de tolerar o diabo loiro, é?

 

       Rodrigo fez que sim com a cabeça, mantendo o sorriso e acrescentando:

 

       – Não fique zangada com o que direi, meu amor, mas o Franco é muito parecido com você. – antes que ela esboçasse uma resposta malcriada, continuou: – Ele precisa de amigos, bons amigos. Aquele jeitão de bandido encobre alguém que desesperadamente quer trilhar o caminho do bem. E essa cidade, pelo amor de Deus, não facilidade nada para quem é diferente do convencional. Veja bem, amor, você e o Franco são os mais mal-afamados de Matarana. É ou não verdade? – perguntou, tocando-lhe a face com o dorso da mão.

 

       Karen deu o braço a torcer. Rodrigo estava certo quanto à sua semelhança com Franco. A impetuosidade, a agressividade e a vontade de chutar o balde a cada três ou quatro horas. Quando o tivera como amante de uma noite, ele era um adolescente arredio e de poucas palavras. Fizera o serviço sem saber ao certo o que fazia, e nunca mais a procurara, tampouco ela a ele. Nova, por outro lado, era a sua amiga, a mais próxima, a mais querida. E Karen queria muito que ela conseguisse encontrar a mesma paz devastadora e profunda que sentia com Rodrigo. Obviamente, preferia que Nova estivesse com Cris. Mas a vida era cheia de surpresas. Às vezes, uma surpresa pior que a outra; na maior parte das vezes, apenas de fácil assimilação.

 

       – Então o Franco é o mais novo integrante do nosso grupinho de sobreviventes de Matarana? – brincou.

 

       –Pode-se dizer que sim, já que ele é o único, único mesmo, que não é forasteiro.

 

       Ela encaixou-se entre os braços do seu amor e disse:

 

       –Que coisa!,o desgarrado de um dos fundadores da cidade é o legítimo filho da terra.

 

       – Ele e o nosso Johnny agora são minhas prioridades. – determinou Rodrigo.

 

       Karen voltou-se novamente e o encarou:

 

       –Pretende adotar o meu filho?

 

       –Nosso filho, Karen. Sei que ele tem o sobrenome do seu ex-marido também, mas, sim, quero criá-lo como meu filho. Algum problema?

 

       Ela sorriu e disse de um jeito engraçado enquanto brincava de jogo da velha nos quadradinhos do abdômen dele:

 

       –Nadinha, tudo bem, caubói.

 

       –Ótimo. – afirmou, dando-lhe uma palmada de leve no traseiro.

 

       –Mas quanto ao Franco... bem, acho que o Thales ainda não abriu mão do filho.

 

       –Dane-se o Dolejal. O Franco precisa de uma família, o guri tem jeito, dá para ver nos olhos dele.

 

       Ela adorava o coração generoso daquele caubói irresistivelmente humano.

 

       –Sabe de uma coisa, Rodrigo Malverde?

 

       –O que, Karen Lisboa?

 

       – Você é o meu super-herói preferido. – brincou.

 

       Com uma guinada de braço, ele deitou-se sobre ela. Foi puxado para uma boca faminta e macia. Mergulhou no beijo e abandonou-se ao carinho da mulher.

 

       Quando se afastaram para se despir, ela disse:

 

       –É tão fácil amá-lo.

 

        O delegado sorriu, sentindo-se pleno no alto da montanha sagrada que subira de joelhos.

 

       Ele parou debaixo de um fiapo de claridade. O castanho de seus olhos era mais claro do que ela lembrava. Durante anos fizera de tudo para ter a sua atenção. E, naquela manhã, quando Cris parava no meio da sua cozinha, diante da mesa do café posta e decorada por um vaso com duas rosas, Nova pensava que o amor era isso mesmo, descobrir as diversas possibilidades de tê-lo em sua vida.

 

       –Pão de queijo? – ele apontou para o forno com um esboço de sorriso.

 

       Ainda estavam estremecidos após a última briga. Entretanto, ambos sabiam que fora apenas a última, e não a definitiva.

 

       –Sim; é uma delícia esse cheirinho, não?

 

       –É o cheiro da nossa casa. – disse, fitando-a com intensidade.

 

       Nova baixou os olhos, evitando a cumplicidade que aquele olhar, aquele tipo de olhar, exigia. Indicou uma cadeira à mesa para o amigo, puxou outra e sentou-se.

 

       –O que o traz, aqui, especificamente?

 

       Ele aceitou a xícara de café que ela lhe entregava, esperou que também se servisse para responder:

 

       –Você fica linda de pijama. – elogiou-a com um sorriso charmoso e acrescentou antes que ela o interrompesse: – Sinto sua falta. Fiz tanta coisa para que conseguíssemos ficar juntos e acabamos brigando e nos distanciando. Eu não queria ter magoado você, não foi minha intenção.

 

       –Cris...

 

       –Espera! – fez um gesto de contenção com a mão para poder prosseguir: – Sei que me comportei de forma confusa e até dúbia. Concordo quando diz que talvez eu a tenha confundido também. Mas, acredite, jamais tentei manipulá-la. Sou um idiota covarde, admito; mas não um canalha, não um canalha... – a última frase foi pronunciada com a voz embargada.

 

       Nova sentiu uma angústia enorme encher-lhe o peito. Quando estava com Cris era sempre assim. Os sentimentos ganhavam uma amplitude avassaladora. Havia drama em excesso. Ela não queria mais isso. Porque, simplesmente, não era bom.

 

       –Eu também errei. – tentou sorrir e encarou-o sem desviar: – Se não fosse você e esse amor iludido que senti por você, jamais teria conhecido o verdadeiro amor. Por isso temos de superar essa fase e voltarmos a ser amigos.

 

       O médico sorriu um sorriso amargo.

 

       –Vou amá-la para sempre.

 

       –Claro, – ela assentiu de leve e insistiu: – os amigos verdadeiros se amam para sempre.

 

       –Vou amá-la como amiga e mulher. – enfatizou.

 

       Nova fechou a cara.

 

       –Não pode entrar na minha casa e dizer essas coisas. Isso é tão desrespeitoso. Sabe muito bem que estou com Franco...

 

       –Como até cinco anos atrás estava com o seu marido e não está mais. Amantes vêm, amantes vão. Enquanto eu estarei sempre com você, e você comigo. – ele aproximou-se, sustentando os cotovelos sobre a mesa e encarando-a fundos nos olhos: – Quanto tempo dá para esse relacionamentozinho, hein, Nova? Seja sincera. Analise racionalmente suas opções e quem é esse rapaz recém-saído da adolescência. O que você, uma mulher adulta, espera desse... moleque?

 

       – Não faça isso, por favor. – ela balbuciou, vendo o rosto dele por trás das lágrimas.

 

       –Não faça o quê? Não quer ouvir a verdade dos fatos? A função de um amigo é alertar e apoiar, e não apenas passar a mão na sua cabeça como os seus outros amigos o fazem.

 

       Ela fungou e limpou rapidamente as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Levantou-se e se postou diante do fogão. Abriu a porta do forno e espiou as bolinhas inchando e dourando. Voltou-se para o amigo e disse resoluta:

 

       –Sabe aqueles velhinhos que a gente vê de mãos dadas na rua? Aqueles que quando um morre, o outro não quer mais ficar no planeta e cai fora também? Acho que o que eles sentem um pelo outro não é paixão, não acha? – abraçou-se ao próprio corpo e disse meio sem jeito, tímida por revelar as coisas de sua alma: – Bem, Cris, é isso que sinto por Franco, um amor de velhinhos. Um amor sólido, de séculos, que nasceu antes de nós dois nascermos e que estava em Matarana à espera da nossa chegada. Não foi à primeira vista, não, – ela riu-se e desferiu o dardo entre as costelas dele, fitando-o de forma significativa: – foi quando descobri que o que sentia por você foi inventado também por mim. Você foi uma fantasia bem construída e o Franco, a realidade complexa, árdua e, ao mesmo tempo, maravilhosa. Terei filhos com ele. Sem dúvida alguma, quero ser a mãe dos filhos dele e aguentar as pontas quando ele precisar de suporte.

 

       –O seu lugar é na ficção, Nova, não no jornalismo. – falou sem elevar a voz, seguro do que dizia.

 

       –E o seu é no hospital cuidando de quem precisa de ajuda. O que não é o nosso caso, não é, princesa?

 

       Ele chegara de mansinho, vindo da cama, debaixo do lençol amarfanhado que lhes protegera os corpos após o sexo e durante o sono, abraçados, pernas enroscadas, pele na pele. Era de lá, daquele lugar dentro do quarto, que Franco vinha e se escorava com displicência contra o batente da porta, sorrindo, descabelado, vestido apenas no jeans, exibindo a juventude como trunfo, assim como ao usar o “nosso” justificava a pertinência. Ele era uma espécie de assentado e a sua terra, Nova.

 

       Cris se voltou ao ouvir-lhe a voz e, imediatamente, impôs-se a postura dos ponderados e racionais. Empertigou a coluna e se afastou centímetros do encosto da cadeira.

 

       –Quero deixar bem claro que não acredito que possa fazer a Nova feliz ou, pelo menos, ter algum tipo de relação saudável com ela. O que sei por aí, o que dizem sobre você, é que é um rapaz descontrolado e com ficha criminal. – foi duro.

 

       Nova atravessou a cozinha e abraçou Franco. Ele não se abalou com as palavras do médico.

 

       –Dizem por aí, também, que a Karen é piranha e que o senhor é bicha. – falou com naturalidade e emendou, passando o braço ao redor dos ombros de Nova: – Sabe, doutor, o patrão uma vez me disse uma coisa sobre o povo desta cidade que descreve direitinho como as coisas são por aqui. Ele disse que Matarana é um vespeiro envenenado. Só que quando a gente é picado não morre por causa do ferrão; a gente se torna outra vespa e passa também a espalhar o veneno.

 

       Cris engoliu em seco, acatando para si, na fala do outro, o papel medíocre que desempenhava na cena.  Ele não lutava para reconquistar o amor de Nova, e sim para destruir o sentimento que já se estabelecera entre ela e Franco. Ergueu-se decidido a abandonar o ringue antes do nocaute.

 

       –Você não passa de um garoto sem instrução. Como manterá uma família?

 

       –Não estamos nos anos 50, Cris. – interrompeu Nova, exasperada: – Eu também trabalho.

 

       –Um moleque que até pouco tempo era um pistoleiro com má-fama...

 

       –Até pouco tempo, o senhor também era alguém por quem eu respeitava pra caralho. Nunca fomos inimigos. Pra falar a verdade, acredito que o senhor, doutor, seja uma das poucas pessoas por quem o patrão nutre alguma admiração também. Não há quem em Matarana não admire o senhor, o modo como trata as crianças, os mais pobres, porra, o senhor é, simplesmente, diferente dos outros forasteiros. Sei que gosta da Nova, mas já teve a sua chance e comeu mosca. Agora, ela é minha, minha mesmo, daquele jeito machista que vocês da cidade grande torcem o nariz.

 

       O médico ajeitou a cadeira debaixo da mesa, num gesto que traduzia a sua necessidade em ganhar tempo e reconsiderar a sua opinião sobre o namorado de sua melhor amiga.

 

       –Desculpe, Franco, não quis ofendê-lo. – em seguida, completou direto e ameaçador: – Mas saiba que ficarei de olho em você. No seu primeiro vacilo perde a mulher.

 

       Nova sentiu a musculatura de Franco se contrair. Abraçou-o para contê-lo. Cristiano Bittencourt cutucava a onça com vara curta.

 

       –Combinado, doutor. – declarou, os maxilares marcando a pele com pontos de barba.

 

       Relançando um olhar profundo à amiga, um olhar que meio se despedia meio revelava que estaria à sua espera, Cris deu as costas ao casal. Antes de chegar à porta, foi alvejado pelas palavras que o acertaram no meio da coluna:

 

       –Saiba que também ficarei de olho no senhor, e se incomodar mais uma vez a minha mulher, cortarei as suas bolas com o seu próprio bisturi... doutor. – advertiu-o sem elevar a voz.

 

        Cris voltou-se e viu que Franco falava sério, abraçado na mulher cujos olhos entre divertidos e devotos confirmavam a verdade da sentença. Sim, ele era capaz de fazê-lo, Nova falava, dentro do silêncio de sua cumplicidade a Franco.

 

       A conversa com Dolejal rendera um endereço. Era quase meio-dia e um calor dos diabos fritava a paciência de qualquer um. Ainda mais de quem nascera impaciente como Rodrigo Malverde.

 

       Quem o atendeu à porta, com a cara amassada de sono, o cabelo loiro quase branco e um piercing no nariz foi a ex-mulher de Everaldo Viegas. Ela dançava em um inferninho à beira da rodovia, vivia numa casa de alvenaria solapada de mofo com mais duas amigas strippers e ajustava o robe atoalhado e puído ao corpo esquálido quando surgiu diante da autoridade.

 

       –Não fiz nada, delegado.

 

       Era certo que Lúcia Moela iria recebê-lo na defensiva. Apesar de ainda não ser fichada, ela fazia parte daquele grupo de pessoas atraídas pelo perigo e destruição. Bem, ela casara com Everaldo, pensou Rodrigo.

 

       –Não tenho nada contra você. Quero saber sobre o seu marido.

 

       –Ex, por favor, me livrei daquele traste faz quase dois anos. – disse, expirando pela boca e revirando os olhos: – O que ele aprontou dessa vez?

 

       Rodrigo olhou por cima do ombro ossudo da mulher e viu a mesa de madeira com pires e baganas de cigarro. Se espichasse ainda mais os olhos, encontraria coisinhas ilegais. Preferia ater-se à questão do momento.

 

       –Bom, ele andou plantando rosas em propriedades privadas. Que acha que foi, hein?! Que tal ajudar um pouquinho o mocinho da história? – provocou-a com um sorrisinho que, na maior parte das vezes, funcionava.

 

       –Vai te catar! – grunhiu com desprezo.

 

       Ameaçou fechar a porta. O delegado meteu o pé e impediu o movimento. É, com mulheres normais e lúcidas funcionava, considerou, torcendo o lábio num gesto de irritação.

 

       –Onde está o infeliz, Lúcia?

 

       –Não sei, cara, não vejo o Everaldo há uma pá de tempo.

 

       Ela parecia dizer a verdade.

 

       –Quem te fornece essas porcarias? É da Vila Zumbi?

 

       –Quê? Estou limpa faz três meses, ô delegado. Todo mundo acha que sou bebum ou chapada, só porque o meu raciocínio é um pouco lento. – reclamou, fazendo beicinho.

 

       –E está com conjuntivite. – ironizou, recostando-se no batente da porta e afirmando com a expressão séria: – Pouco me importa se anda fumando cachimbo de barro ou cheirando pó de arroz, o que quero saber é por onde anda Everaldo Viegas? O Dolejal disse que o seu funcionário simplesmente evaporou.

 

       –Olha, às vezes, ele está tomando trago no Colono Tranquilo. Isso ajuda?

 

       –Nada. – ele pôs as mãos nos quadris e fitou-a duramente: – É o seguinte, o seu ex-marido matou o Mendes.

 

       Ela riu alto, a cabeça deitada para trás, a boca arreganhada. Riu tanto que os olhos se encheram de lágrimas. Por um momento, Rodrigo cogitou uma crise histérica. Mas depois percebeu que ela estava realmente achando graça da situação.

 

       –Por que não disse antes?

 

       –Ah, é? Agora, a senhora sabe onde ele está?

 

       –Claro que não. – deu de ombros, indiferente e completou rapidinho ao ver o policial bufar: – Quando o Everaldo apronta, ele vai para a Bolívia e depois volta. Se ele desapareceu é porque está na Bolívia. Eu disse pra ele deixar de lado, sabe, aquele trouxa.

 

       O delegado ajeitou o chapéu ansioso e estreitou os olhos de forma a captar totalmente as palavras da mulher.

 

       –Deixar de lado o quê? – Por que ela já não dizia tudo, porra?

 

       A stripper aproximou-se e disse num tom baixo e confidente:

 

       –O Mendes devia 100 paus pro Everaldo das apostas das corridas de cavalo, sabe? Eu disse pra ele largar de mão. Que importava? Mas o idiota dizia que era uma questão de honra, que não era o valor do dinheiro e que o Mendes era o camarada mais insuportável da fazenda. Bom, vou te falar a verdade, o Mendes era o camarada mais insuportável da fazenda.

 

       –O Everaldo disse que ia cobrar a dívida do Mendes?

 

       –Não, a gente estava separado, hôme, como eu podia saber? Mas é típico do Everaldo matar alguém por cem reais, é a cara dele. – declarou com naturalidade.

 

       Ele olhou para aquele sorriso bobo na cara da stripper e insistiu:

 

       –Quando foi a última vez que o viu?

 

       –O dia mesmo não lembro. – ela balançou a cabeça, pensativa: – Mas sabe o que eu acho estranho? Já faz mais de semana que ele não me procura pra transar e ele, uau!,é muito cheio do fogo, jamais ficaria sem sexo por muito tempo.

 

       –Ah, certo, e é monogâmico, apesar de matar por duas notas de cinquenta. –debochou, olhando ao redor de forma avaliativa.

 

       –Delegado, a gente se gosta, mas, quando estamos juntos, a gente tem vontade de passar a faca um no outro, sacô? Isso não significa que não seja amor. Ele é fiel, sempre foi.

 

       Tinha de convir, a mulher tinha água no cérebro, pensou Rodrigo, batendo em retirada.

 

       –Quando falar com o fiel, diga que precisamos ter uma conversinha.

 

       –Pode deixar, claro que sim. – fez troça e gritou, rindo-se: – Li no jornal que o Mendes quase matou a mulher que o senhor está pegando. Se encontrar o Everaldo devia é lhe dar um troféu, não é mesmo, ô delegado?

 

       Rodrigo sentou diante do volante e apertou as têmporas. Aquele trabalho estava acabando com ele. Excesso de calor, de poeira, de mentira, de violência, de gente maluca. Olhou para o lado quando sua amiga peluda fez um barulho que parecia um lamento por atenção. Acariciou-lhe a cabeça e declarou decidido:

 

       –Sabe de uma coisa, Bonnie?,o Everaldo foi cobrar uma dívida, perdeu a cabeça e matou o Mendes por cem reais.

 

       Ou poderia ir até a Bolívia.

 

       –Ele já foi?

 

       –Nunca entendi por que chamam você de Bronson. – disse Lúcia, fechando a porta atrás de si.

 

       O pistoleiro que tinha a pele marcada por cicatrizes miúdas, os olhos empapuçados e um cabelo grosso cujas têmporas exibiam fios brancos, sorriu meio encabulado:

 

       –Me acham parecido com o ator.

 

       –Que ator?

 

       –O Charles Bronson, ora. – deu de ombros e, terminando de fumar, prosseguiu: – Se eu fosse parecido com o Costinha, me chamariam de Costinha...

 

       –Quem é esse Costinha? – ela perguntou, se sentando no sofá e ajeitando o cabelo para trás com as mãos, tentando ficar bonita como o era à noite.

 

       –Deixa pra lá, não é do seu tempo, menina. – respondeu o camarada, erguendo-se do sofá. –Não vejo a hora de me aposentar. Agora, sem o garoto, vai ficar cada vez mais difícil sossegar o rabo em casa. – reclamou.

 

       –E o dinheiro?

 

       –Aqui, minha querida, – disse Bronson, tirando do bolso um maço de cédulas de cem reais – mês que vem tem mais. Não se preocupe com o seu ex.

 

       –Uma hora ele vai voltar... ele sempre volta. – cogitou, receosa. – O que faço?

 

       –Me liga que eu resolvo a parada. – respondeu com gentileza.

 

      Lúcia também se levantou do sofá e acompanhou o pistoleiro até a porta.

 

       –Você é muito educado, senhor Bronson.

 

       Ele sorriu com simpatia e falou:

 

       –Obrigado, querida.

 

       –É tão difícil encontrar um homem assim em Matarana.

 

       Bronson tocou levemente no rosto de Lúcia e disse com a voz cheia de orgulho:

 

       –E você, minha flor, foi incrivelmente inteligente inventando aquela coisa de dívida para o delegado. A gente havia combinado outra história, a da traição e vingança, mas essa da dívida, puta merda, foi muito boa.

 

       Ela tinha vinte e quatro anos, e era o primeiro elogio que não estava relacionado ao seu corpo. Sorriu, encantada.

 

       Karen estacionou o Fusca em frente à delegacia e falou para a ruiva:

 

       –Está vendo aquele açougue ao lado da confeitaria da Rita?

 

       Valéria franziu o cenho, desconfiada. Karen e a cidade inteira sabiam que Rita era a fornecedora oficial dos bolinhos para os policiais; em especial, para o delegado. Viúva aos trinta anos, ela tinha o seu charme de forno e fogão. Fazia parte do coral da igreja, da associação da família cristã, do círculo de pais e mestres do casal de filhos, enfim, uma boa menina. A irmã do delegado desviou os olhos da fachada do açougue para a cunhada e sorriu, balançando a cabeça, resignada. Rodrigo era tão feliz ao lado daquela mulher indomável que ela só podia ser mesmo uma boa menina também. Mas não foi o que pareceu quando a ouviu dizer:

 

       –O Marau depositou a grana da venda condomínio, e eu já paguei minha dívida com o Thales, com um dos diretores dele, nem precisei ver a cara do cretino. – voltou-se para Val e completou com um sorriso matreiro: – Acabei de comprar aquele açougue.

 

       Valéria ainda se espantava com as atitudes de Karen.

 

       –Está brincando? Você nem sabe destrinchar um frango!

 

       Karen assentiu achando graça do que Val acabara de dizer. É, ela se complicava ao separar a coxa da sobrecoxa.

 

       – Sabe aquela máxima do capitalismo? Se você não pode com o seu concorrente, quebre-o?

 

       –Não existe essa máxima, merda nenhuma! – exclamou Valéria apavorada antes mesmo de saber sobre os planos da outra. – O que vai fazer, Karen? Agora não pode cometer mais loucuras, não. O Rodrigo é delegado de polícia, não pode se envolver em encrencas pesadas, viu?

 

       –Sei disso, mas acontece que o Rodrigo não vai mais comer bolinho de ninguém, só os meus. – enfatizou.

 

       –Imagino que isso seja uma metáfora.

 

       –Que nada, falo de bolinhos mesmo!,os de farinha e um monte de coisa. – esclareceu cheia de si: – A madame da confeitaria aí continua mandando as cestinhas do amor, aquelas com muffins coloridinhos e enfeitadinhos. E isso, para mim, significa que a Rita acredita que ainda está no páreo. Então tive a brilhante ideia de fazê-la falir.

 

       –Fazer falir? Sei, entendi. – comentou Val, fingindo aceitar o plano maluco de Karen, e perguntou como quem não queria nada: – Por acaso pretende evocar uma entidade que entenda de muffins? Sabe por que lhe pergunto isso, não é, cunhada?

 

       Karen desandou a rir.

 

       –Está se referindo aos meus dotes culinários?

 

       –Será que se precisa ter dotes culinários para abrir uma confeitaria?,ops!, me enganei...para se falir a concorrente? – ironizou.

 

       –Acho que sim. – encolheu os ombros, indiferente, e emendou controlando a vontade de rir da expressão espantada de Val: – Eu só vou entrar com a grana; o resto é com você. Estou lhe convidando para ser minha sócia.

 

       –Para quebrar a Rita?

 

       –Sim... Não... Quem sabe? O importante é sermos as melhores e manter a delegacia abastecida. – disse, entusiasmada.

 

       –Não é assim que se trabalha, Karen. A gente precisa estudar o mercado, traçar um plano de marketing, planejar...

 

       –Chega, que sacal! É por isso que você é a presidente operacional e eu, a financeira.

 

       –Acho que não existe “presidente operacional ou financeira”... – cogitou, incerta.  – Ai, meu Deus, onde amarrei meu jegue?

 

       Karen abriu a porta do Fusca e deu uma olhada geral ao redor. Diante da delegacia da cidade, ela teria a sua confeitaria com Valéria. Viu quando a cunhada aproximou-se com um sorriso no rosto e os olhos voltados para o sobrado de alvenaria onde se lia: Açougue Popular.

 

       –Sabe que estou adorando voltar a trabalhar fora?

 

       Karen passou braço ao redor dos ombros de Val e falou:

 

       –Precisamos de ajudantes. Eu estarei nas corridas de cavalo pela região... A gente pode chamar a Ninita para trabalhar meio turno e a Veridiana pode largar o Salão Country, já está velha demais para trabalhar à noite. Bem, isso é com você, sócia. Só faço uma exigência.

 

       –Qual? – voltou-se com um sorrisinho malicioso: – Não contratar mulher bonita?

 

       Karen soltou uma risada engraçada.

 

       –É só a Rita que me irrita... Na verdade, queria que o nome da confeitaria fosse uma espécie de homenagem minha ao povo de Matarana. – ela abriu os braços e fez um gesto como se mostrasse um painel invisível a sua frente: – Vaca Louca, confeitaria Vaca Louca. Lindo, não?

 

       Valéria gostou da piada, mesmo sendo séria.

 

       –Imagino até a decoração, estilo country, patchwork, cheio de detalhes com vaquinhas! Com certeza, os mataranenses cairão de quatro pela Vaca Louca. – a irmã de Rodrigo prometeu, sentindo-se renovada e rejuvenescida.

 

       Daria tudo de si para a confeitaria prosperar, ser a melhor da cidade e, de quebra, quebrar a concorrência.

 

       As notícias, além de correrem naquela região, voavam em jatos supersônicos. Quando Franco entrou no Gringo abraçado a Nova, percebeu um sujeito alto, largo, com um tipo de corpo que não cabia aos padrões brasileiros. Mas ele era de Goiás, dono de vastas extensões de terra por todo o centro-oeste. Amigo de longa data de Dolejal. Sentado em frente ao bar, bebendo uísque importado, fumando charuto e tendo sobre a superfície do balcão um Stetson gigantesco.

 

       Franco apertou o ombro de Nova e apontou para o chapéu do homem. Eles riram, e ele se acomodou à mesa em frente ao palco. Pediram as bebidas. Franco estranhou o pedido da namorada:

 

       –Hoje vou ficar no suco de laranja. Chega de cerveja, acabarei engordando feito um barril.

 

       Ele queria lhe dizer que era linda de qualquer jeito, mas sabia que ela poderia interpretar o elogio de outra forma, como se estivesse de fato considerando-a gorda. Às vezes, enquanto ela lhe falava sobre algo que acontecera no bar ou contava sobre seu passado, Franco ficava admirando-a, cada detalhe de seu rosto, do modo como expressava as emoções no rosto e o tom de voz que usava. Pela rua, andavam sempre de mãos dadas ou abraçados. Ela lhe mostrava coisas novas que jamais lhe haviam chamado a atenção, como livros, por exemplo. E, agora, ele lia tudo o que lhe caía nas mãos. Até o Jornal do Cerrado, do seu pai. Foi assim que descobriu quem era o grandalhão junto ao balcão, esperando-o para uma conversa de negócios. O camarada queria oferecer-lhe emprego como seu segurança particular.

 

       Franco ainda não sabia o que fazer com o dinheiro que juntara. Era pouco para comprar terras; era o suficiente para ajudar Nova com as despesas até ele arranjar um trabalho. O que ele sabia fazer? Cuidar dos outros. O que ele sabia fazer bem? Proteção armada. O que ele não aceitaria fazer: matar, matar por encomenda e se afastar de Nova. Então ele disse o seguinte para o seu futuro patrão:

 

       –Eu não saio de Matarana. No máximo, vou até Belo Quinto ou Santa Fé. É pegar ou largar. – estufou os peitos como um galinho de briga.

 

       Dolejal dissera-lhe que o filho era genioso, coronel Rodrigues pensou, avaliando se valia a pena fazer algumas concessões ao rapaz de ouro, como o amigo da Arco Verde afirmara: “Franco foi o melhor segurança que tive. Além disso, tem o sangue dos Dolejal. Contrate-o, mas não diga que eu o indiquei.”

 

       Sim, a atitude e a pose eram de um legítimo Dolejal.

 

       –Tudo bem, rapaz. Tenho outros dois seguranças, e eles viajarão para fora então. –concordou com um sorriso que custou a desaperceber da face, porque, enquanto sorria, pensava na coragem do filho de um latifundiário rico que largava tudo para ser empregado de outro. Que tipo de homem era Franco Dolejal?

 

       Uma trincheira de caixas de papelão entre a sala e a cozinha americana e, ao longo do corredor, outras tantas. Tapetes enrolados, cortinas acondicionadas, armários esvaziados. Sobre o piso de cerâmica do bangalô de Nova, vários rolos de fita adesiva. Vendido o condomínio, os inquilinos de Karen e ela mesma tinham o prazo de noventa dias para deixar o imóvel. A antiga proprietária já estava morando com o delegado. Johnny ainda dividia o quarto com vó Ninita e Valéria com a filha.  A ampliação da casa de Rodrigo estava bastante adiantada.

 

       Nova relançou um olhar carinhoso ao moço que forrava os pratos de vidro com as páginas do Jornal do Cerrado.

 

       –Ei, vamos parar um pouquinho? Estou com fome. – ela disse, terminando de revestir os copos com plástico-bolha.

 

       –Passou o enjoo? – perguntou, concentrado em empilhar prato sobre prato dentro de uma das caixas.

 

       Abrindo a geladeira e juntando tudo o que precisava para fazer dois belos sanduíches, ela respondeu, com o pensamento longe, mais precisamente, na caixa onde guardara as facas.

 

       –Ahhh, vem e vai, é esse calor desgraçado... Sabe onde estão os talheres?

 

       Franco olhou ao redor, levantou e foi até a sala. Voltou com uma caixa menor, cujas abas abertas completavam a palavra “talheres”. Ele caprichara na organização usando etiquetas rotulando todas as caixas de acordo com o cômodo da casa às quais pertenciam e, em seguida, com o pincel atômico, designara o seu conteúdo. Outro traço da personalidade do namorado, a objetividade.

 

       –Humm, cada dia uma surpresa diferente. – brincou, lançando-lhe um olhar malicioso por cima do ombro: – Traz aqui, fofinho, traz.

 

       Ele riu e se aproximou, teve de enfrentar alguns obstáculos ao longo do percurso. Deitou o talher sobre a pia e baixou a cabeça até próximo ao seu ouvido e sussurrou:

 

       –Tem que pagar pedágio.

 

       Num segundo, ela o beijou com paixão. Os braços fortes de Franco puxaram-na para si, envolvendo-a no seu frescor de homem jovem e viril, no seu odor natural misturado à colônia cítrica e ao calor de um corpo que estava sempre pronto para acolher e amar. Perdia as forças, tragada para o torvelinho de sensações não mais inéditas. Gemeu baixinho quando ele se afastou com os olhos brilhando.

 

       –Podemos continuar outra hora?

 

       Ela queria dizer que sim. A mudança para sua antiga casa com Cris podia esperar. O médico desocupara a casinha à beira do Rio Verde ao saber, por meio de Rodrigo, que o condomínio fora vendido e seus ocupantes teriam de arranjar outro lugar para morar. Ele sugerira que Nova voltasse. O delegado, ao relatar a conversa à amiga, salientara que Cris falara para Nova voltar, mas que, por fim, aceitara o fato de ela voltar com Franco. Entretanto, Cris não ficaria para recepcioná-los. Alugara um apartamento de solteiro a duas quadras do hospital.

 

       Apertou-se ao namorado como uma forma de consolá-lo antes de decidir:

 

       –Temos de continuar.

 

       –Ahhh, – fingiu manha e prendeu-a contra a pia, formando um arco com o seu corpo: – quero ver a dona fugir daqui. – brincou.

 

       Ela pôs as mãos no tórax dele e empurrou-o sem muita vontade.

 

       –Acho que estou nas mãos de um pistoleiro implacável.

 

       Franco puxou-a para si e separou-lhe os lábios com os seus, erguendo-a para cima do móvel. Surpreendida pela investida inesperada e extremamente erótica, Nova procurou ajeitar-se no minúsculo lugar, sentindo a torneira pressionando-lhe as costas. Pôs a mão sobre a superfície de inox buscando apoio, já que Franco parecia decidido a arrancar-lhe a língua, envolvido por completo num beijo daqueles. Gemeu baixinho ao sentir uma fisgada rápida e aguda no dedo. Afastando-se milímetros de sua boca, as palavras do namorado saíram por entre os seus lábios avermelhados e inchados.

 

       –Cama.Nova.Agora.

 

       Ele não estava pedindo. Pegou-a no colo com facilidade. Parou no meio da cozinha e a pôs novamente no chão.

 

       –Broxou, companheiro? – provocou-o.

 

       Ele lhe lançou um sorriso torto e apontou-lhe a mão:

 

       –Está sangrando. Deve ter se machucado naquela merda de faca. – virou-se e pegou o talher, mostrando a Nova o responsável pelo corte em seu dedo indicador.

 

       Um filete de sangue fininho escorreu da pele rasgada. Ao ver o sangue subindo à superfície, vários pontinhos pretos começaram a orbitar ao redor de sua cabeça, como aqueles passarinhos dos desenhos animados quando o personagem levava uma pancada no crânio. Ela ficou maravilhada com o que viu. Buracos negros aglomerando-se até formar um Portal, que a puxou para o seu interior, absorvendo-a no seu vácuo. Era tão bom deixar-se levar...

 

       Assim que abriu os olhos, suspirou, profundamente, perguntando a Franco:

 

       –Por que está sorrindo feito bobo?

 

       –Enjoo, desmaio, sei lá, não sou muito experiente com essas coisas mas....bem, você me mandou fecundá-la, lembra? – mordeu o lábio inferior como se tivesse dado uma mancada e disse: – Acho que consegui.

 

       Com o peito arrebentando de felicidade contida, quase escapando pelas orelhas, ela confirmou:

 

       –Conseguiu, meu amor. Eu ia contar quando estivéssemos na nossa casa. Ontem busquei o resultado do HCG e deu positivo. – sorriu com timidez. Ser mãe era tudo o que ela mais queria; mas, e ele?

 

       Ele a puxou para si e deitou-lhe a cabeça contra o tórax, acariciando-lhe o cabelo ternamente. Ela ouvia um coração batendo forte e rápido. Franco estava nervoso.

 

       –Está tudo bem. Cuido de tudo, não se preocupe. – confortou-o.

 

       A mão que lhe afagava caiu ao longo do corpo. Nova voltou-se para ele com a expressão perscrutadora:

 

       –Fala alguma coisa, por favor.

 

       O rosto de Franco estava sério, as veias no pescoço, nas têmporas e na testa grossas de sangue. Parecia que ele segurava o ar, evitando respirar. A expressão toda avermelhada. Os lábios apertados e o queixo, com os pontos de barba por fazer, tremendo.

 

       –Vai ter um AVC só por que será pai, Franco? Pelo amor de Deus, fala comigo! –impacientou-se.

 

       Por fim, mal descolando os lábios, ele deixou escapar num murmúrio rouco e arrastado, como os bêbados e aqueles que trancavam o choro murmuravam:

 

       – Isso é... danado de bom, dona. – ele parou, bruscamente, soltou-se dela e, erguendo-se do chão, completou, quase correndo para fora da cozinha: – Desculpe, tenho que assoar o nariz.

 

       Vendo-o se refugiar no banheiro para chorar, Nova sentou-se, acariciou a barriga e disse ao bebê:

 

       –Seu pai é tão sensível quanto sua mãe. Acho que você, filhote, será um poeta. – em seguida, crispou os lábios e disse num tom de falsa censura: – Mas não um poeta e aliciador como o Pedro, viu?

 

       Rodrigo despejou álcool sobre o carvão na churrasqueira. Riscou o fósforo e fez o fogo acontecer. Deu um passo para trás e admirou as labaredas. Voltou-se para Johnny com um sorriso de vitória.

 

       –Normalmente, tenho de ligar o ventilador para o fogo pegar. Nunca fui muito bom como churrasqueiro.

 

       O garoto puxou a aba do chapéu para frente do rosto, tomou um bom gole de coca-cola e falou como se soubesse das coisas:

 

       –Eu também não, mas a vó, nossa!,sabe assar uma picanha de lamber os beiços. Assim mesmo que ela fala, de lamber os beiços.

 

       –É mesmo? – o delegado riu-se e fez um sinal para a porta da cozinha: – Quem sabe ela não fica aqui para a gente poder lavar a picape?

 

       Johnny era louco pela camionete de Rodrigo. Bonnie, por sua vez, rosnava toda a vez que o garoto entrava nela para ouvir música ou se fotografar,a fim de postar nas redes sociais.

 

       –Ela disse que quando terminar de fazer chapinha vem. – avisou-o ao voltar de dentro de casa.

 

       Rodrigo deu uma espiada nas chamas e, depois, para a travessa com os espetos de carne e comentou:

 

       –Amanhã faremos um programa de macho, eu, você e o Franco.

 

       –Futebol? – alegrou-se, o caubói adolescente.

 

       –Futebol é só para o corpo. Vamos exercitar nossas almas de macho, – disse com um sorriso de guru indiano, mas vendo a decepção do enteado, completou de pronto: – pescando. Levaremos isopor com cerveja, e, para você, refrigerante, à beira do rio, de pé, sendo comidos por mosquitos, e pegaremos peixes que, claro, serão devolvidos ao rio. Eu e o Cris nunca matamos um peixe, sabia?

 

       O delegado era gente fina, considerava o filho de Karen, mas também meio estranho.

 

       –Onde entra a alma de macho nisso?

 

       Voltando-se para Johnny, Rodrigo disse com naturalidade:

 

       –A solidão contemplativa, meu caro filho.

 

       Johnny não entendeu a primeira parte da resposta. Contudo, a segunda significou muito para ele, que, devolvendo o chapéu ao delegado, falou:

 

       –Eu quero pescar, quer dizer, exercitar minha alma masculina.

 

       –O chapéu é seu.

 

       –Jura? – perguntou-lhe, empolgado.

 

       Ao que o outro respondeu, pegando-o pelo antebraço e levando-o até o portão. Depois, virou-se e apontou para a casa de dois andares e acrescentou teatralmente:

 

       –Um dia, senhor Johnny, isso tudo será seu. – vendo-o rir, brincou fingindo indiferença e dando de ombros: – E mais uns pés de alface lá atrás.

 

       Vó Ninita juntou-se a eles após meia hora alisando os cabelos. Antes que se interessasse pelos espetos espichados na churrasqueira, lançou um olhar avaliativo para o céu. Nuvens escuras juntavam-se formando um tapetão cinza-chumbo. Era a estação do estio chegando ao fim. 

 

       Em questão de horas, o inverno ou a estação da chuva transformaria a paisagem de Matarana. O pasto já teria sido preparado. E as queimadas, enfim, cederiam. O céu voltaria a ser azul, úmido, fresco e limpo, abrigando no topo dele, o sol. A primeira tempestade traria ventos fortes, serpenteariam raios pelo prado e, talvez, até riscasse de eletricidade uma árvore, deixando-a em chamas. Escureceria em plena luz do dia. Faróis e postes públicos acenderiam, e todos correriam em busca de abrigo. O primeiro temporal de inverno arrancaria árvores do solo pela raiz, limparia as calçadas de poeira, desintoxicaria pulmões e alvéolos pulmonares, tingiria de brilho e cor flores e folhas. Renascida das cinzas, Matarana, em todo o seu esplendor de cidade criada para exportar grãos, deslumbraria os novos forasteiros que, movidos pelo amor ao dinheiro, desceriam dos ônibus vindos de todas as partes do país, acreditando na Canaã do cerrado como um crente em sua bíblia. Porque Matarana, depois de uma chuva torrencial, brilhava como ouro, mesmo o falso.

 

       – Pelo jeito teremos de enfiar essa carne toda no forno! – reclamou Ninita, acendendo um cigarro e torcendo o lábio com desgosto.

 

       Rodrigo fez um sinal afirmativo com a cabeça. O que podia dizer? Ela sempre estava certa. Ao seu redor, não mais duas mulheres, mas o dobro delas.  Relançou um olhar ao enteado, que apertava a aba do chapéu para baixo e para cima, moldando-o à sua maneira. Ainda bem que recebera reforços, pensou, vendo que o reforço acabaria deformando o seu antigo e velho chapéu.

 

       Bem, ele tinha outros.

 

                                                                                Janice Diniz  

 

 

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