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ANJOS E DEMONIOS 4 / Dan Brown
ANJOS E DEMONIOS 4 / Dan Brown

 

 

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ANJOS E DEMONIOS

 

CAPÍTULO 103

Como jogador de pólo aquático, Robert Langdon já sofrera mais ataques debaixo d'água do que merecia. A selvageria competitiva que impera sob a superficie de uma piscina de pólo aquático, longe dos olhos dos árbitros, pode ser comparada à das mais grosseiras competições de luta livre. Langdon já tinha sido chutado, arranhado, retido e até mesmo, uma vez, mordido por um zagueiro frustrado, de quem procurara se desviar durante o jogo todo. 

Agora, porém, lutando nas águas gélidas da fonte de Bernini, Langdon reconhecia estar a anos-luz da piscina de Harvard. Aquele não era um jogo por pontos, mas pela própria vida. Era a segunda vez que os dois estavam lutando. Sem árbitros. Sem revanche. Os braços que lhe forçavam a cabeça de encontro ao fundo exerciam tamanha pressão que não deixavam dúvidas sobre sua intenção de matar. 

Num gesto instintivo, Langdon girou o corpo igual a um torpedo. Livrar-se da pega! Mas o atacante, aproveitando-se da vantagem que nenhum jogador de pólo aquático jamais teve, a de estar com os pés firmes no chão, girou-o de volta. Langdon se contorceu, tentando apoiar os pés. O Hassassin parecia estar firme. 

Langdon convenceu-se de que não iria conseguir subir à superfície. Fez, então, a única coisa que lhe passou pela cabeça. Parou de fazer força para subir. Se não dá para ir para o norte, vá para leste.

Juntando as últimas forças que lhe restavam, bateu as pernas como um golfinho e movimentou os braços por baixo do corpo em uma desajeitada braçada de estilo borboleta. Seu corpo avançou para frente. 

A repentina mudança de direção pegou o Hassassin desprevenido, O movimento lateral de Langdon empurrou os braços do outro para os lados, prejudicando-lhe o equilíbrio. Ao sentir uma leve diminuição

de pressão, Langdon bateu as pernas de novo. A sensação foi como se um cabo de reboque se partisse.

De repente, Langdon estava livre. Expirou o que lhe restava de ar nos pulmões e, num arranco, foi para a superfície. Respirar uma única vez foi tudo o que conseguiu. Com uma força arrasadora, o Hassassin estava de novo em cima dele, as palmas das mãos nos ombros de Langdon, todo o peso do seu corpo sobre o adversário. Langdon tentou levantar-se, mas uma perna do Hassassin projetou-se para a frente, derrubando-o. 

E ele afundou outra vez. 

Os músculos de Langdon queimavam enquanto tentava desvencilhar-se. Dessa vez, todas as investidas foram em vão. Através da água borbulhante, Langdon vasculhava o fundo atrás da arma. Tudo estava embaçado, as borbulhas cada vez mais densas. Uma luz ofuscante bateu-lhe no rosto quando o assassino o empurrou para baixo, na direção de um refletor instalado no fundo. Langdon esticou os braços e agarrou a caixa do refletor. Estava quente. Langdon fez força para arrancá-la, mas estava fixada por meio de dobradiças, girou em sua mão e ele perdeu o apoio. 

O Hassassin empurrou-o mais ainda para baixo. 

Foi então que Langdon o viu. Fincado nas moedas, bem na frente de seus olhos. O cilindro estreito, preto.

O silenciador da arma de Olivetti! Langdon se esticou, mas quando seus dedos seguraram o cilindro não sentiu o contato com metal, mas com plástico. Ao puxá-lo, uma mangueira flexível veio molemente em sua direção como se fosse uma cobra. Tinha uns 60 centímetros e as bolhas de ar jorrando de uma das pontas.

Langdon não tinha encontrado arma nenhuma. Era um dos muitos spumanti, inocentes aparelhos de fazer bolhas de ar, instalados na fonte. 

Bem perto dali, o cardeal Baggia sentia a alma deixando-lhe o corpo. Embora tivesse se preparado a vida inteira para aquele momento, jamais imaginara que seu fim seria desse jeito. Seu corpo sofria intensamente - havia sido queimado, machucado e mantido submerso sob um peso intolerável. Lembrou- se de que o próprio sofrimento não era nada se comparado com o de Jesus. 

Ele morreu pelos meus pecados... 

Baggia escutava os golpes da luta violenta que se desenrolava por perto. Era demais pensar que quem o tinha capturado estava também quase terminando com outra vida, a do homem de olhos bondosos que tentara socorrê-lo. 

Quando a dor aumentou, Baggia mirou, através da água, o céu escuro que encobria tudo. Por um momento, pensou ter visto estrelas. 

Era chegada a hora. 

Libertando-se de todo medo e dúvida, abriu a boca e expeliu o que seria o último sopro de sua vida. Observou seu próprio espírito gorgolejar na direção do céu em um jorro de bolhas de ar transparentes. Então, em uma reação involuntária, respirou. A água penetrou como finos punhais de gelo em seus flancos. A dor durou apenas alguns segundos. 

Depois, veio a paz. 

O Hassassin ignorava o pé que doía, concentrado apenas em afogar o americano, que agora mantinha imobilizado sob o peso do seu corpo, no meio da água turbulenta. Destruí-lo por completo. Apertou com mais força ainda, sabendo que desta vez Robert Langdon não sobreviveria. Conforme havia previsto, sua vítima mostrava cada vez menos reação. 

De repente, o corpo de Langdon ficou rígido. Começou a tremer loucamente. Sim, pensou o Hassassin. Os tremores.

Quando a água afinal chega aos pulmões. Os tremores, sabia, iriam durar uns cinco segundos. 

Duraram seis. 

Então, exatamente como o Hassassin havia calculado, o corpo da vítima de repente ficou flácido. Como um imenso balão que perdesse o ar, Robert Langdon  relaxou. Estava morto. O Hassassin ainda o segurou por mais uns trinta segundos, para que a água inundasse todo o tecido pulmonar. Aos poucos, sentiu que 

o corpo de Langdon afundava por conta própria. Afinal, o Hassassin o soltou. 

A imprensa encontraria uma dupla surpresa na Fonte dos Quatro Rios. 

Tabban!, praguejou o Hassassin, saindo da fonte e examinando o dedo do pé que sangrava sem parar. A ponta da bota estava arrebentada e a extremidade do dedo grande havia sido arrancada. Furioso consigo mesmo pelo descuido, rasgou a bainha da calça e enfiou o tecido pelo buraco da bota, comprimindo-o contra a ferida. A dor subiu-lhe pela perna. Ibn al-kalb!

Cerrou os punhos de dor e empurrou o pano com mais força. O sangramento foi diminuindo até restar apenas um filete de sangue. 

Tirando seus pensamentos da dor e voltando-os para o prazer, o Hassassin entrou no furgão. O trabalho em Roma estava terminado. Sabia muito bem o que lhe aliviaria o incômodo. Vittoria

Vetra estava amarrada e à sua espera. O Hassassin, mesmo com frio e ensopado, sentiu-se sexualmente excitado. 

Fiz por onde merecer meu prêmio. 

Do outro lado da cidade, Vittoria acordou toda dolorida. Estava deitada de costas. Todos os músculos estavam duros como pedra. Tensos. Retesados. Os braços doíam. Tentou se mexer, mas sentiu espasmos nos ombros. Levou poucos segundos para compreender que suas mãos estavam amarradas nas costas. A primeira reação foi de confusão. Estou sonhando? Mas, quando quis levantar a cabeça, a dor lancinante na base do crânio avisou-a de que estava totalmente acordada.  

A confusão inicial deu lugar ao medo, e ela examinou o lugar. 

Encontrava-se em uma sala despojada, grande e bem mobiliada, iluminada por tochas acesas e com paredes de pedra. Uma espécie de antigo salão de reuniões. Havia bancos antiquados dispostos em círculo mais adiante. 

Vittoria sentiu uma brisa, agora fria, percorrer-lhe a pele. Não longe de onde estava, um conjunto de portas duplas abria-se para uma sacada. Através das brechas da balaustrada, Vittoria podia jurar ter visto o Vaticano.

 

CAPÍTULO 104

Robert Langdon jazia deitado sobre uma camada de moedas no fundo da Fonte dos Quatro Rios, a mangueira de plástico ainda na boca. O ar que era bombeado através do tubo dos spumanti para fazer a fonte borbulhar vinha poluído e sua garganta ardia. Não podia reclamar, porém. Afinal, estava vivo. 

Não tinha certeza se sua imitação de um afogado fora convincente, mas, tendo passado a vida inteira em contato com a água, Langdon já ouvira muitas descrições de afogamentos. Fizera o melhor que podia. Quase no final, teve de expirar todo o ar dos pulmões e parar de respirar para que a massa muscular levasse seu corpo para o fundo. 

Por sorte, o Hassassin engolira a história e o soltara. 

Agora, deitado no fundo da fonte, Langdon esperou o quanto pôde. Estava prestes a morrer asfixiado. Tentou adivinhar se o Hassassin ainda estaria lá fora. Aspirou o ar queimado que vinha do tubo, entregou os pontos e atravessou nadando o fundo da fonte até encontrar a elevação da parte central. Bem devagar, subiu acompanhando-a e emergindo sem ser visto nas sombras projetadas na água pelas imensas figuras de mármore. 

O furgão tinha ido embora. 

Era tudo o que Langdon precisava ver. Respirou bem fundo, enchendo os pulmões de ar, e voltou para o local onde o cardeal Baggia afundara. Langdon sabia que o homem já estaria inconsciente e que as chances de sobrevivência eram mínimas, mas tinha de tentar. Quando encontrou o corpo, abriu as pernas sobre ele e apoiou bem os pés, abaixou as mãos e agarrou as correntes que envolviam o cardeal. Então, Langdon puxou. Quando o cardeal saiu da água, Langdon viu que os olhos dele já estavam revirados para cima, salientes. Não era um bom sinal.

Não havia respiração nem pulso. 

Sabendo que jamais conseguiria levantar o corpo e fazê-lo passar pela borda do tanque da fonte, Langdon puxou o cardeal Baggia pela água até uma concavidade sob a elevação central. Ali era mais raso e havia uma espécie de saliência inclinada. Langdon arrastou o corpo nu para cima da saliência o mais que lhe foi possível. E pôs-se a trabalhar. 

Comprimiu o peito coberto de correntes do cardeal e bombeou a água para fora dos seus pulmões. Depois aplicou a ressuscitação cardiopulmonar, fazendo a contagem com todo o cuidado, cheio de determinação e resistindo ao instinto de soprar com força demais ou depressa demais. Durante três minutos, Langdon tentou reanimar o cardeal. Passados cinco minutos, reconheceu que não havia mais nada a fazer. 

Ii preferito. O homem que teria sido Papa. Morto diante dele. 

De algum modo, mesmo naquelas circunstâncias, caído no escuro sobre a pedra meio submersa, o cardeal Baggia ainda mantinha um ar de serena dignidade. A água agitava-se mansamente sobre o seu peito, parecendo arrependida, como se pedisse perdão por ter sido a assassina final, como se quisesse purificar a ferida da queimadura que tinha o seu nome. 

Delicadamente, Langdon passou a mão no rosto do homem e fechou-lhe os olhos. Ao fazê-lo, sentiu dentro de si um estremecimento e lágrimas de exaustão inundaram seus olhos. Espantou-se com isto. E, pela primeira vez em anos, Langdon chorou. 

 

CAPÍTULO 105

A nebulosa sensação de esgotamento emocional foi sedissipando aos poucos à medida que Langdon, andando dentro da água, se afastava do cardeal morto e voltava para o trecho mais fundo. Extenuado e só, ele pensava que fosse desmaiar no meio da fonte. Mas, em vez disso, sentiu uma nova compulsão ir crescendo em seu íntimo. Incontestável. Veemente. Seus músculos se retesaram com uma súbita firmeza. A mente, ignorando a tristeza do coração, pôs de lado os acontecimentos passados para dar lugar à única e arriscada tarefa que tinha pela frente. 

Encontrar o refúgio dos liluminati. Ajudar Vittoria. 

Virando-se para o centro montanhoso da fonte de Bernini, Langdon reuniu suas esperanças e lançou-se na busca do último marco dos Illuminati. Tinha certeza de que em algum lugar, no meio das massas contorcidas de figuras, estava a pista que indicaria o refúgio. Enquanto vasculhava a fonte, entretanto, suas esperanças esvaíram-se rapidamente. As palavras do segno pareciam vir, zombeteiras, do burburinho das águas que o rodeavam. Que os anjos o guiem em sua busca sublime. Langdon olhava para as figuras à sua frente. A fonte é pagã! Não há nenhum anjo em lugar algum! 

Depois de terminar sem resultado a busca na parte central, seu olhar instintivamente subiu pela altiva coluna de pedra. Quatro marcos, pensou, espalhados por Roma em uma cruz gigantesca. 

Examinou os hieróglifos que cobriam o obelisco e ficou imaginando se haveria uma pista escondida nos símbolos egípcios. Rejeitou a idéia imediatamente. Os hieróglifos eram anteriores a Bernini em muitos séculos e só tinham sido decifrados depois da descoberta da Pedra de Rosetta. Ainda assim, Langdon arriscou, quem sabe Bernini teria esculpido ali mais um símbolo? Um símbolo que passasse despercebido no meio dos hieróglifos? 

Sentindo uma centelha de esperança, Langdon caminhou ao redor da fonte, mais uma vez analisando as quatro fachadas do obelisco. Levou uns dois minutos e, quando chegou ao final da última face, suas esperanças desapareceram. Nada nos hieróglifos se destacava como sendo qualquer tipo de acréscimo. E muito menos havia anjos. 

Langdon verificou o relógio. Onze horas em ponto. Não saberia dizer se o tempo estava voando ou andando devagar. Imagens de Vittoria e do Hassassin começaram a obcecá-lo enquanto circundava a

fonte, impaciente, a frustração crescendo a cada volta inútil. Abatido e exausto, Langdon estava a ponto de cair. Levantou a cabeça para gritar para a noite. 

O som ficou preso na sua garganta. 

Langdon estava olhando direto para o topo do obelisco. O objeto empoleirado era um que vira antes sem dar qualquer importância. Dessa vez, porém, ele o fez parar. Não era um anjo. Longe disso. Na verdade, não o havia percebido como parte da fonte de Bernini. Pensou que estivesse vivo, que fosse mais um dos pequenos animais que ciscavam nas ruas da cidade, encarapitado em cima da torre. 

Um pombo. 

Langdon apertou os olhos na direção do vulto, a visão embaçada pela névoa luminosa à volta. Era um pombo, não era? Via nitidamente o contorno da cabeça e do bico contra um aglomerado de estrelas. No entanto, o pássaro não se movera desde a chegada de Langdon na praça, mesmo com todo aquele alvoroço em baixo. Estava exatamente na mesma posição. Empoleirado no alto do obelisco, mirando tranqüilamente o oeste da cidade. 

Langdon olhou fixo para ele por um momento e depois mergulhou a mão na fonte, agarrou um punhado de moedas e arremessou-as para cima. Bateram com um ruído seco contra a parte superior do obelisco de granito. O pássaro não se mexeu. Tentou de novo. Dessa vez, uma das moedas atingiu o alvo. Um leve som de metal contra metal ecoou pela praça. 

O maldito pombo era de bronze. 

Você está procurando um anjo, não um pombo, lembrou-o uma voz em sua cabeça. Tarde demais. Langdon já fizera a associação. Percebeu que a ave não era propriamente um pombo comum. 

Era uma pomba. 

Sem se dar conta dos próprios atos, Langdon saiu espalhando água para o centro da fonte e começou a escalar a montanha de mármore travertino, subindo em imensos braços e cabeças, cada vez mais alto. A meio caminho da base do obelisco conseguiu vencer a camada de névoa que encobria todo o tanque e ver melhor a cabeça do pássaro. 

Não tinha dúvida. Era uma pomba. A enganadora coloração escura do pássaro era resultado da poluição de Roma, que manchava o tom original do bronze. E o significado ficou claro para ele. Vira, horas antes, um par de pombas no Panteão. Um par de pombas não representa nenhum símbolo. Essa pomba, porém, estava só. 

A pomba solittfria é o símbolo pagão do Anjo da Paz. 

A descoberta praticamente transportou Langdon pelo resto do percurso para o obelisco. Bernini escolhera um símbolo pagão para o anjo de forma a poder disfarçá-lo em uma fonte pagã. Que os anjos o guiem em sua busca sublime. A pomba é o anjo! Langdon não poderia conceber pouso mais sublime para o último marco dos liluminati do que no alto desse obelisco. 

O pássaro apontava para oeste. Langdon tentou acompanhar sua mirada, mas não conseguia enxergar por cima dos prédios. Subiu mais. Uma citação de São Gregório de Nyssa veio-lhe à mente: Quando o espírito é iluminado, toma a magnífica forma de uma pomba. 

Langdon subiu rumo ao céu. Rumo à pomba. Quase voando. Alcançou a plataforma que servia de base para o obelisco, de onde não poderia subir mais. Mas bastou uma olhada ao redor para saber que isso não seria necessário. Roma se estendia diante dele. A vista era deslumbrante. 

À esquerda, a iluminação caótica dos carros da imprensa em torno de São Pedro. À direita, a cúpula envolta em fumaça de Santa Maria delia Vittoria. Em frente, à distância, a Piazza dei Popolo. Abaixo dele, o quarto e último marco. Uma cruz gigantesca de obeliscos. 

Trêmulo, Langdon olhou para a pomba lá em cima. Virou-se para a direção correta e depois abaixou os olhos para a linha do horizonte. 

Em um instante, viu tudo. 

Tão óbvio. Tão claro. Tão tortuosamente simples. 

Observando-o agora, Langdon achava quase inacreditável que o refúgio dos Illuminati tivesse permanecido secreto por tantos anos. Tinha a impressão de que a cidade toda desaparecia aos poucos em torno da monstruosa estrutura de pedra do outro lado do rio, diante dele. Um dos muitos prédios famosos de Roma. Ficava às margens do rio Tibre, próximo, em diagonal, ao Vaticano. A geometria da construção era perfeita - um castelo circular construído dentro de uma fortaleza quadrada e, do lado de fora dos muros, rodeando toda a estrutura, um parque em forma de pentagrama. 

As antigas muralhas de pedra diante de Langdon recebiam uma iluminação suave vinda de holofotes, com um efeito espetacular. No alto do castelo, o colossal anjo de bronze. O anjo apontava sua espada para baixo, para o centro exato do prédio. E, como se não bastasse, levando única e exclusivamente para a entrada principal do castelo, havia a célebre Ponte dos Anjos, uma impressionante via de acesso, ornamentada com 12 majestosos anjos esculpidos por ninguém menos que o próprio Bernini. 

Em uma última revelação sensacional, Langdon concluiu que a cruz de obeliscos de Bernini, que abarcava toda a cidade, também marcava a fortaleza da forma mais condizente com os princípios dos liluminati: o braço central da cruz passava diretamente pelo meio da ponte do castelo, dividindo-a em duas metades idênticas. 

Langdon pegou o paletó de lã, segurando-o afastado do corpo que pingava. Entrou no carro roubado e apertou o acelerador com o sapato encharcado, saindo a toda velocidade pela noite. 

 

CAPÍTULO 106

Eram 11h07. O carro de Langdon corria pela noite romana. 

Descendo a Lungotevere Tor di Nona, paralela ao rio, Langdon via seu destino avolumando-se à direita como uma grande montanha. 

Castel Sant'Angelo. Castelo do Anjo. 

Sem indicação prévia, o acesso à estreita Ponte dos Anjos - a Ponte Sant'Angelo - surgiu de repente.

Langdon enfiou o pé no freio e deu uma guinada. Conseguiu, mas a ponte estava fechada com barreiras.

Ele derrapou uns três metros e bateu em uma porção de pequeninas colunas de cimento que lhe barravam o caminho. Langdon cambaleou para a frente e o motor do carro afogou, falhando e estremecendo. Não sabia que a Ponte dos Anjos, para ser preservada, agora se convertera em área exclusiva para pedestres.

Desconcertado, Langdon saltou do carro amassado desejando ter escolhido um dos outros acessos.

Tremia de frio, a roupa molhada da água da fonte. Vestiu o casaco de tweed em cima da camisa úmida, contente com o forro duplo que o fabricante colocava nos casacos. O fólio do Diagramma continuaria seco. À sua frente, erguia-se a fortaleza feita de pedra. Enfraquecido, doido, Langdon saiu correndo, as passadas pouco firmes. 

Dos seus dois lados, como uma escolta enfileirada, o cortejo de anjos de Bernini ia ficando para trás, fechando o percurso e encaminhando-o para seu destino final. Que os anjos o guiem em sua busca sublime. O castelo aumentava conforme ele avançava, montanha impossível de escalar, inatingível, ainda mais intimidador do que São Pedro lhe parecera. Correu para lá em meio aos vapores da noite, vendo o anjo descomunal brandindo a espada no alto do núcleo circular da cidadela. 

O castelo parecia deserto. 

Langdon sabia que, no decorrer dos séculos, a construção fora usada pelo Vaticano como tumba, fortaleza, esconderijo do Papa, prisão para inimigos da Igreja e museu. Pelo jeito, o castelo tivera igualmente outros inquilinos - os Illuminati. De certa forma, até que fazia um sentido sinistro. Apesar de ser propriedade do Vaticano, o castelo só era utilizado esporadicamente e Bernini realizara diversas reformas ali ao longo dos anos. Hoje acredita-se que ele seria um labirinto de entradas secretas, passagens e câmaras escondidas. Langdon tinha certeza de que o anjo e o parque pentagonal que o cercava eram também trabalho de Bernini. 

Ao chegar às descomunais portas duplas da entrada, Langdon empurrou-as o mais que pôde. Como era de se esperar, as portas não se moveram. Possuíam duas aldravas de ferro penduradas na altura do rosto de uma pessoa. Langdon não fez caso delas. Recuou alguns passos, examinando a parede externa até em cima. Aquelas muralhas tinham resistido a exércitos de bérberes, pagãos e mouros. Achou que suas probabilidades de penetrar ali à força eram exíguas. 

Vittoria, pensou Langdon, será que você está aí dentro? 

Langdon contornou a parede externa. Deve haver outra entrada! 

Rodeando a segunda muralha a oeste, chegou ofegante a um pequeno estacionamento próximo à Lungotevere Casteilo. Nessa muralha encontrou uma segunda entrada para o castelo, uma espécie de ponte levadiça, suspensa e trancada. Langdon olhou para cima outra vez. 

As únicas luzes no castelo eram as dos holofotes externos que iluminavam a fachada. Todas as diminutas janelas no interior estavam às escuras. Os olhos de Langdon foram subindo. No ponto mais alto da torre central, 30 metros acima,

precisamente sob a espada do anjo, projetava-se uma sacada isolada. O parapeito de mármore reluzia ligeiramente, como se o aposento adjacente estivesse iluminado por uma tocha acesa. Langdon parou, com um calafrio súbito em seu corpo encharcado. Uma sombra? Ele esperou, tenso. E viu a sombra outra vez!

Um arrepio percorreu sua espinha. Há alguém lá em cima! 

- Vittoria! - gritou, incapaz de se conter, mas sua voz foi engolida pelo rugir do rio Tibre atrás dele. 

Andou em círculos, perguntando-se onde estaria a maldita Guarda Suíça. Será que tinham ouvido sua transmissão? 

Do outro lado do estacionamento havia um grande caminhão de alguma emissora parado. Langdon correu para ele. Um homem barrigudo com fones de ouvido na cabeça estava sentado na cabine ajustando seu equipamento. Langdon bateu com a mão na lateral do caminhão. O homem deu um pulo, viu as roupas molhadas de Langdon e arrancou os fones da cabeça. 

- Qual o problema, companheiro? - tinha um sotaque australiano. 

- Preciso usar seu telefone - Langdon estava frenético. 

O homem deu de ombros. 

- Não tem sinal. Estou tentando há horas. Os circuitos estão todos congestionados. 

Langdon praguejou em voz alta. 

- Viu alguém entrar aí? - e apontou para a ponte levadiça. 

- Para falar a verdade, vi, sim. Um furgão preto saiu e entrou uma porção de vezes esta noite. 

Langdon sentiu um peso na boca do estômago. 

- Sortudo desgraçado - disse o australiano, olhando para a torre e fazendo uma careta para sua vista obstruída do Vaticano. - Aposto que a visão de lá é perfeita. Não consegui passar pelo tráfego em São Pedro, por isso estou transmitindo daqui. 

Langdon não estava escutando. Procurava opções. 

- O que é que você acha? - perguntou o australiano. - Será que o Samaritano da Décima Primeira Hora é para valer? 

Langdon virou-se. 

- O quê? 

- Não ouviu? O capitão da Guarda Suíça recebeu um telefonema de alguém que diz ter informações de primeira. O cara está vindo para cá de avião. Só sei é que, se ele conseguir salvar a pátria, lá se vão os nossos índices! 

O homem deu uma risada. 

Langdon não compreendia. Um bom samaritano ia chegar de avião para ajudar? E sabia onde estava a antimatéria? Então, por que não dizia logo para a Guarda Suíça? Por que estava vindo em pessoa? Era tudo muito esquisito, mas Langdon não dispunha de tempo para tentar decifrar a questão. 

- Ei - disse o australiano, observando o rosto de Langdon mais atentamente -, você não é o sujeito que vi na televisão? O que tentou salvar aquele cardeal na Praça de São Pedro? 

Langdon não respondeu. Sua atenção fixara-se em um aparelho preso no teto do caminhão - uma antena parabólica com uma haste dobrável. Olhou de novo para o castelo. A muralha externa tinha uns 15 metros de altura. A fortaleza interior era ainda mais alta. Uma dupla defesa. Não daria para alcançar a parte de cima dali, mas talvez, se passasse do primeiro muro... 

Langdon girou nos calcanhares e apontou para o braço da antena. 

- Até que altura aquilo vai? 

O homem ficou meio desconcertado. 

- Quinze metros. Por quê? 

- Tire o caminhão daí. Estacione junto ao muro. Preciso de ajuda. 

- Que história é essa? 

Langdon explicou. 

O australiano arregalou os olhos. 

- Ficou maluco? Aquilo ali é uma extensão telescópica de 200 mil dólares. Não é uma escada! 

- Quer seus índices? Tenho informações que vão fazer você ganhar o dia. 

Langdon estava desesperado. 

- Informações que também valem essa nota toda? 

Langdon disse a ele o que revelaria em troca do favor. 

Noventa segundos mais tarde, Robert Langdon encontrava-se agarrado à ponta de um braço de antena parabólica, balançando na brisa a 15 metros do solo. Inclinando-se, segurou a beirada da primeira muralha, arrastou-se para cima da parede e pulou para dentro do bastião mais baixo do castelo. 

- Agora mantenha sua promessa! - gritou lá de baixo o australiano. - Onde ele está? 

Langdon sentiu-se culpado por revelar essa informação, mas trato era trato. Além do mais, o Hassassin provavelmente daria a informação à imprensa de qualquer maneira. 

- Piazza Navona - gritou Langdon. - Ele está dentro da fonte. 

O australiano recolheu sua antena parabólica e foi atrás do maior furo de sua carreira.

Em uma câmara de pedra acima da cidade, o Hassassin tirou as botas encharcadas e enfaixou o dedo do pé ferido. Doía muito, mas não tanto que o impedisse de se divertir. 

Dirigiu-se para seu prêmio. 

Ela estava em um canto do aposento, deitada em um divã primitivo, as mãos atadas atrás do corpo e amordaçada. O Hassassin encaminhou-se para ela. A mulher estava acordada. Isso o agradou.

Surpreendentemente, viu fogo em seus olhos em vez de medo. 

O medo virá. 

 

CAPÍTULO 107

Robert Langdon percorreu rapidamente a muralha externa do castelo, satisfeito por poder contar com a iluminação dos holofotes. O pátio abaixo dele parecia um museu das guerras da Antiguidade - catapultas, pilhas de balas de canhão feitas de mármore e um arsenal de terríveis artefatos.

Partes do castelo eram abertas aos turistas durante o dia, e o pátio fora parcialmente restaurado e devolvido ao seu estado original. 

Do outro lado do pátio encontrava-se o núcleo central da fortaleza. A cidadela circular elevava-se mais de trinta metros até o anjo de bronze que a encimava. Na sacada do alto ainda havia luz. Langdon queria chamar, mas achou melhor não o fazer. Teria de encontrar uma forma de entrar. 

Olhou o relógio. 

11h12 da noite. 

Descendo depressa a rampa de pedra que contornava o interior do muro, Langdon chegou ao pátio. De volta ao nível do chão, oculto pelas sombras, circundou a fortaleza no sentido dos ponteiros do relógio.

Passou por três pórticos, todos hermeticamente fechados. Como o Hassassin entrou? E Langdon prosseguiu. Passou por duas entradas modernas, ambas trancadas por fora com cadeados. Não foi por aqui. E continuou a correr. 

Já rodeara quase todo o prédio quando viu um caminho de cascalho cruzando o pátio. Numa das extremidades do caminho, na parede externa do castelo, viu a ponte levadiça que levava à saída. Na outra extremidade, o caminho desaparecia dentro da fortaleza. Parecia dar em uma espécie de túnel  - uma abertura para o núcleo central. Ii traforo! Langdon lera sobre o traforo desse castelo, uma gigantesca rampa em espiral que circulava dentro do forte, usada pelos comandantes para ir a cavalo da base ao topo com mais rapidez. O Hassassin entrou de carro! O portão de ferro do túnel estava aberto, levantado, indicando por onde Langdon deveria seguir. Ele se sentia quase exultante ao correr para o túnel. Quando se aproximou da abertura, porém, seu entusiasmo arrefeceu. 

O túnel descia em espiral. 

O caminho não era aquele. Aquele trecho do traforo, pelo jeito, ia para as masmorras, não para cima. 

Parado junto ao poço escuro que penetrava fundo na terra, ele hesitou, levantando os olhos mais uma vez para a sacada. Seria capaz de jurar que vira algum movimento ali. Decida-se! Sem outra opção, entrou no túnel. 

Lá em cima, o Hassassin debruçava-se sobre sua presa. Correu a mão pelo braço dela. A pele era macia como seda. A expectativa de explorar os tesouros do corpo daquela mulher o inebriava. De quantas maneiras poderia violentá-la? 

Sabia que merecia a mulher. Servira bem a Janus. Ela era um espólio de guerra e, quando terminasse, a empurraria do divã e a obrigaria a ficar de joelhos. E a mulher o serviria de novo. A submissão extrema.

Então, no momento em que ele atingisse o clímax, cortaria a garganta dela. 

Ghayat assa'adah, como diziam. O prazer extremo. 

Mais tarde, saboreando sua glória, ficaria na sacada para apreciar o apogeu do triunfo dos Iliuminati, uma vingança desejada por tantos durante tanto tempo. 

O túnel tornou-se mais escuro. Langdon descia sem parar. 

Depois de uma volta completa sob a terra, a luz se fora por completo. O piso nivelou-se e Langdon diminuiu o ritmo, pressentindo, pelo eco de seus passos, que entrara em uma grande câmara. Na sua frente, em meio às trevas, julgou ter vislumbrado ligeiros lampejos, vagos reflexos luminosos. Avançou, estendendo a mão. Encontrou superficies lisas. Vidro e metais cromados. Era um veículo. Tateou a superficie, encontrou uma porta e a abriu.

A luz interna do veículo acendeu-se. Langdon deu um passo atrás e reconheceu o furgão preto.

Uma onda de aversão o fez parar um instante, mas logo ele entrou, revirando tudo na esperança de encontrar uma arma para substituir a que perdera na fonte. Não encontrou nenhuma. Achou, contudo, o telefone celular de Vittoria. Quebrado, sem condições de uso. Ao vê-lo, sentiu medo.

Rezou para não ter chegado tarde demais. 

Acendeu os faróis do furgão. O ambiente iluminou-se, sombras severas projetaram-se em uma câmara simples. Langdon deduziu que o local talvez já tivesse sido usado para guardar cavalos e munição. Era, além disso, um beco sem saída. 

Vim pelo caminho errado! 

Angustiado, saltou do furgão e examinou as paredes ao redor. Nenhuma porta nem portão.

Lembrou-se do anjo acima da entrada do túnel e pensou se teria sido uma coincidência. Não!

Ouviu de novo as palavras do matador na fonte. Ela está na Igreja da Iluminação, esperando a minha volta. Langdon não chegara tão longe para falhar no final. Seu coração batia com força. A frustração e o ódio estavam começando a prejudicar seus sentidos. 

Quando viu sangue no chão, seu primeiro pensamento foi para Vittoria. Todavia, acompanhando as manchas de sangue, percebeu que eram pegadas. Os passos eram grandes. Os borrões vermelhos eram produzidos apenas pelo pé esquerdo. O Hassassin! 

Langdon seguiu as pegadas, que iam na direção de um ângulo do aposento, sua sombra espalhada se tornando menos nítida a cada passo. À medida que se aproximava da parede, ficava mais intrigado. As marcas de sangue pareciam ir diretamente para aquele canto e depois sumiam. 

Ao chegar perto da quina, mal pôde acreditar no que viu. Ali, o bloco de granito do piso não era quadrado como os outros. Langdon encontrava-se diante de mais um sinalizador. O bloco fora esculpido na forma de um perfeito pentagrama, com uma extremidade apontando para o canto.

Engenhosamente disfarçada por paredes superpostas, uma estreita fenda na pedra servia de saída. Langdon esgueirou-se por ela. Saiu em um corredor. Mais adiante, viu os restos da vedação de madeira que antes estivera fechando aquele túnel. 

Além, havia luz. 

Langdon correu. Passou por cima dos pedaços de madeira em direção à luz. 

O corredor logo chegou a outra câmara, maior do que a anterior. Ali, uma  única tocha acesa reluzia, presa na parede. Langdon estava em um setor do  castelo onde não havia luz elétrica, um setor que nenhum turista jamais veria. 

A sala teria sido assustadora mesmo à luz do dia, mas a tocha tornava-a mais  horripilante ainda.

Havia lá dezenas de minúsculas celas de prisão, as barras de ferro da maioria já carcomidas pela ferrugem.

Uma das celas maiores, porém, permanecia intacta e, no chão, Langdon viu algo que quase fez seu coração parar. Batinas negras e faixas de seda vermelha espalhadas. Foi aqui que ele prendeu os cardeais! 

Junto à cela, na parede, um batente de porta feito de ferro. A porta estava escancarada e, além dela, dava para ver uma espécie de passagem. Ele correu para lá, mas parou antes. A trilha de sangue não seguia pela passagem. Ao ver as palavras que haviam sido esculpidas na arcada, entendeu por quê. 

Ii Passetto. 

Ficou atônito. Ouvira falar daquele túnel muitas vezes sem saber exatamente onde seria a entrada. Ii

Passetto - a Pequena Passagem, ou Corredor - era um túnel estreito de 1.200 metros construído entre o Castelo Sant'Angelo e o Vaticano. Fora usado por vários Papas para escapar em segurança durante cercos ao Vaticano, bem como por alguns Papas menos piedosos para visitar secretamente suas amantes ou supervisionar as torturas infligidas a seus inimigos. Atualmente, as duas extremidades do túnel estavam supostamente trancadas com cadeados da maior segurança cujas chaves deviam ser guardadas em algum cofre do Vaticano. Langdon desconfiava que sabia agora como os Illuminati tinham entrado e saído do Vaticano. Deu por si tentando adivinhar quem teria traído a Igreja e entregado as chaves aos inimigos.

Olivetti? Alguém da Guarda Suíça? Nada disso importava mais.  

O sangue no chão levava ao lado oposto da prisão. Langdon seguiu-o. Surgiu um portão enferrujado coberto de correntes. O cadeado fora retirado e o portão estava aberto. Depois dele, havia uma subida íngreme por escadas em espiral. O chão naquele ponto também fora marcado com um bloco em forma de pentagrama. Langdon olhou para o bloco, trêmulo, pensando se Bernini em pessoa teria segurado o cinzel que talhara aquela peça. Acima, a arcada fora enfeitada com um diminuto querubim esculpido. Era tudo. 

A trilha de sangue subia as escadas. 

Antes de subir, Langdon ponderou que iria precisar de uma arma, qualquer uma. Encontrou um pedaço de barra de ferro de mais ou menos um metro junto a uma das celas. Tinha uma ponta aguda, despedaçada.

Apesar de absurdamente pesado, era o melhor que poderia conseguir. Esperava que o elemento surpresa, combinado com o ferimento do Hassassin, fossem suficientes para equilibrar a balança a seu favor. Mais do que tudo, entretanto, esperava que não fosse tarde demais. 

Os degraus da escada em espiral estavam gastos e inclinavam-se muito para cima. Langdon subiu, atento a qualquer som. Nenhum. Conforme subia, a luz que vinha da prisão ia aos poucos ficando fraca. Logo, a escuridão tornou-se completa e foi preciso manter uma das mãos na parede. Imaginava o fantasma de Galileu naqueles mesmos degraus, ansioso para partilhar suas visões do céu com outros homens de ciência e de fé. 

Ainda se sentia em estado de choque a respeito da localização do refúgio dos Illuminati. A sala de encontros dos Illuminati era dentro de um prédio que pertencia ao Vaticano. Seguramente, enquanto os guardas do Vaticano saíam para revistar as casas e os porões de cientistas conhecidos, os Illuminati se reuniam ali, bem debaixo do nariz da Igreja. Tudo parecia de repente tão perfeito. Bernini, como o arquiteto que chefiara as reformas, teria acesso ilimitado àquela estrutura, reformando-a de acordo com suas próprias especificações sem ter de explicar nada a ninguém. Quantas entradas secretas Bernini teria acrescentado ao prédio? Quantos embelezamentos sutis para apontar o caminho? 

A Igreja da Iluminação. Langdon estava perto dela. 

Quando as escadas começaram a se estreitar, Langdon sentiu o corredor se fechando em torno dele. As sombras da história sussurravam no escuro, mas ele foi em frente. Ao divisar uma faixa horizontal de luz, percebeu que estava alguns degraus abaixo de um patamar, onde o brilho da tocha passava sob a soleira de uma porta em frente dele. Silenciosamente, subiu mais. 

Não sabia em que lugar do castelo se encontrava naquele momento, mas sabia que subira o bastante para estar perto do ponto mais alto. Imaginou o anjo colossal no topo do castelo e calculou que deveria estar justamente acima daquele ponto. 

Olhe por mim, anjo, pensou, empunhando a barra de ferro. Então, sem ruído, estendeu a mão para a porta. 

No divã, os braços de Vittoria doíam. Ao acordar e descobrir que estavam amarrados atrás de suas costas, achou que conseguiria relaxar o corpo e soltar as mãos. Mas o tempo se esgotara.

A besta-fera estava de volta. Agora, ele estava de pé junto dela, o peito nu largo e robusto, cheio de cicatrizes das batalhas que lutara. Os olhos pareciam duas fendas negras analisando o corpo dela. Vittoria pressentiu que naquele momento ele imaginava as façanhas que estava prestes a realizar. Devagar, como para escarnecer dela, o Hassassin tirou o cinto molhado e deixou-o cair no chão.

Vittoria sentiu uma repulsa horrível. Fechou os olhos. Quando os reabriu, o Hassassin estava segurando um canivete. Fez a lâmina saltar com um estalo bem na frente do seu rosto. 

Vittoria viu o próprio rosto aterrorizado refletido no aço da lâmina. 

O Hassassin virou a lâmina e correu a parte de trás pela barriga dela. O metal gelado deu-lhe arrepios. Com um olhar de desdém, ele deslizou a lâmina por dentro do cós do short cáqui. Ela prendeu a respiração. Ele moveu a lâmina de um lado para outro, lentamente, perigosamente mais baixo. Então, curvou-se para ela, o hálito quente em seu ouvido, e sussurrou: 

- Foi com esta lâmina que arranquei o olho de seu pai. 

Naquele instante, Vittoria descobriu que era capaz de matar. 

O Hassassin virou de novo a lâmina e começou a cortar o tecido do short. De repente, parou e levantou a cabeça. Havia mais alguém na sala. 

- Afaste-se dela - uma voz profunda soou raivosa da porta. 

Vittoria não podia enxergar quem falara, mas reconheceu a voz. Robert! Ele está vivo! 

O Hassassin tinha a expressão de quem vê um fantasma. 

- Senhor Langdon, o senhor deve ter um anjo da guarda. 

 

CAPÍTULO 108

Na fração de segundo de que dispôs para avaliar o ambiente, Langdon percebeu que se encontrava em um lugar sagrado. Os ornatos na sala oblonga, apesar de velhos e desbotados, estavam repletos de uma simbologia conhecida. Azulejos em forma de pentagrama, afrescos representando os planetas. Pombas. Pirâmides. 

A Igreja da Iluminação. Pura e simplesmente. Ele chegara. 

Na sua frente, emoldurado pela abertura da sacada, estava o Hassassin. Tinha o peito nu e junto dele, deitada e amarrada mas bem viva, estava Vittoria. Langdon sentiu um grande alívio ao vê-la. Por um instante, seus olhos se encontraram e uma torrente de emoções fluiu entre os dois - gratidão, desespero e pena. 

- Quer dizer que nos encontramos de novo - disse o Hassassin. Viu a barra de ferro na mão de Langdon e deu uma risada alta. - E desta vez é com isso que vem atrás de mim?

- Solte-a. 

O Hassassin encostou a faca no pescoço de Vittoria. 

- Vou matá-la. 

Langdon não duvidava de que ele fosse capaz de tal coisa.

Forçou-se a falar em um tom calmo. 

- Imagino que ela gostaria muito disso, considerando-se a alternativa. 

O Hassassin sorriu ao ouvir o insulto. 

- Tem razão. Ela tem muito a oferecer. Seria um desperdício. 

Langdon deu um passo à frente, segurando com firmeza a barra enferrujada, e mirou o Hassassin com a ponta quebrada. O corte em sua mão ardeu fortemente. 

- Deixe-a ir. 

Por um momento, o Hassassin deu a impressão de estar refletindo a respeito. Suspirando, descaiu os ombros. Era nitidamente um gesto de rendição e, no entanto, naquele instante exato, o braço do homem acelerou-se de modo inesperado. Os músculos escuros formaram um borrão e a lâmina veio reluzindo pelo ar na direção do peito de Langdon. 

Se foi instinto ou exaustão o que na hora vergou os joelhos de

Langdon, ele não soube, mas o canivete passou rente à sua orelha esquerda e caiu nochão com um ruído metálico. O Hassassin, imperturbável, sorriu para Langdon, que se ajoelhara, segurando a barra de ferro. O matador deixou Vittoria e encaminhou-se para seu adversário como um leão que avança para a presa. 

Langdon levantou-se apressado erguendo outra vez a barra - a camisa e a calça molhadas tolhendo-lhe os movimentos. O Hassassin, seminu, movia-se com mais rapidez, a ferida no pé aparentemente em nada o atrapalhava. Aquele homem devia estar acostumado à dor. Pela primeira vez na vida Langdon desejou

estar segurando um revólver muito grande. 

O Hassassin rodeou-o devagar, com ar divertido, sempre fora de alcance, tentando se aproximar da faca no chão. Langdon pôs-se no meio do caminho. Então, o matador voltou para perto de Vittoria. Mais uma vez, Langdon interpôs-se. 

- Ainda há tempo - arriscou Langdon. - Diga onde está a antimatéria. O Vaticano pode lhe pagar mais do que os liluminati jamais fariam. 

- Você é ingênuo. 

Langdon dava estocadas com a barra. O Hassassin desviava-se. Langdon contornou um banco segurando a arma diante de si, tentando encurralar o outro na sala oval. Esta sala desgraçada não tem cantos!

Curiosamente, o Hassassin não se mostrava interessado em atacar ou fugir. Fazia apenas o jogo de Langdon. Esperando, com frieza.

Esperando o quê? O matador continuava se deslocando em círculo, um mestre na arte de se posicionar.

Era como um interminável jogo de xadrez. A arma na mão de Langdon ia ficando pesada e logo ele achou que sabia o que o Hassassin esperava. Ele está me cansando. E está dando certo. Uma onda de fadiga invadiu-o, a adrenalina sozinha não bastando para mantê-lo alerta. Tinha de tomar uma iniciativa qualquer. 

O matador pareceu adivinhar os pensamentos de Langdon e mudou de posição outra vez, como se tencionasse levá-lo para junto da mesa que ficava no centro do aposento. Langdon reparou que havia alguma coisa em cima da mesa. Algo que reluziu à luz da tocha. Uma arma? Langdon manteve os olhos fixos no Hassassin e manobrou para chegar antes dele perto da mesa. Quando o outro lançou um olhar inocente, prolongado, para a mesa, Langdon tentou não engolir a isca. Mas o instinto prevaleceu.

Relanceou os olhos para lá. E fez- se o estrago. 

Não se tratava de arma nenhuma. O que viu momentaneamente o fascinou. 

Sobre a mesa havia uma arca primitiva de cobre coberto de pátina. Tinha a forma de um pentágono. A tampa estava aberta. Arrumados dentro dela em cinco compartimentos acolchoados estavam cinco ferros de marcar, grandes instrumentos com fortes cabos de madeira. Langdon já sabia o que diziam. 

ILLUMINATI, EARTH, AIR, FIRE, WATER. 

Virou rápido a cabeça de volta, temendo que o Hassassin fosse aproveitar para atacar. Mas ele não o fez.

Esperava, quase como se aquele jogo o descansasse. Langdon esforçou-se para recuperar a concentração e o contato visual com seu oponente, arremetendo com o cano. A imagem da arca, porém, não lhe saía da cabeça. Embora a visão dos próprios ferros de marcar fosse quase hipnótica - poucos estudiosos dos

Illuminati sequer acreditavam que tais objetos existissem -, ele notou que havia algo mais na arca que lhe despertara um mau presságio. Quando o Hassassin fez uma nova manobra, Langdon lançou outro olhar para baixo. 

Deus meu! 

Dentro da arca, os cinco ferros estavam dispostos em cinco compartimentos em torno da borda exterior.

No centro, porém, havia outro compartimento. Vazio, naquele momento, mas claramente o lugar onde era guardado mais um ferro, muito maior do que os outros e todo quadrado. 

O ataque veio como um raio. 

O Hassassin precipitou-se sobre ele como uma ave de rapina. Langdon, cuja concentração fora magistralmente desviada, tentou revidar, mas a barra de ferro pesava como um tronco de árvore em suas mãos. Deu um golpe devagar demais. O Hassassin esquivou-se. Quando Langdon tentou puxar a barra de novo para si, as mãos do outro projetaram-se para a frente e agarraram-na. O homem tinha muita força nas mãos, o braço ferido não parecia afetá-lo mais. Os dois lutaram violentamente. Langdon sentiu o outro arrancar-lhe a barra e, ao mesmo tempo, uma dor lancinante na palma da mão. No instante seguinte, Langdon encarava a ponta quebrada da barra de ferro. O caçador virara caça. 

A sensação era a de ser atingido por um ciclone. O Hassassin rodeava-o, sorrindo, encurralando-o contra a parede. 

- Como é mesmo aquele ditado? - zombava ele. - Aquele sobre a curiosidade e o gato? 

Langdon mal conseguia se concentrar. Amaldiçoou seu descuido enquanto o adversário se aproximava mais. Nada fazia sentido. Uma sexta marca Illuminati? Frustrado, falou sem pensar: 

- Nunca li nada sobre uma sexta marca dos Iliuminati! 

- Acho que deve ter lido, sim. - O matador deu uma risadinha, fazendo Langdon se deslocar ao longo da parede oval. 

Langdon estava perdido. Seguramente, nunca soubera da existência dela. Havia cinco marcas Illuminati.

Recuou, procurando na sala alguma coisa que lhe pudesse servir de arma. 

- Uma união perfeita de antigos elementos - disse o Hassassin. - A marca final é a mais brilhante de todas. É uma pena, mas acho que você nunca a verá. 

Langdon receava que deixasse de ver muita coisa dentro de pouco tempo. Continuou a recuar, buscando uma opção de defesa na sala. 

- E você já viu essa marca final? - perguntou Langdon, tentando ganhar tempo. 

- Pode ser que algum dia eles me dêem essa honra. Conforme eu provar meu valor. - E deu uma estocada em Langdon, como se aquilo fosse um jogo animado. 

Langdon deslizou para trás mais uma vez. Tinha a sensação de que o Hassassin conduzia-o ao longo da parede para um ponto desconhecido. Para onde? Não podia se permitir olhar o que havia atrás. 

- E essa marca - perguntou -, onde está ela? 

- Não está aqui. Janus é aparentemente o único que a usa. 

- Janus? - Langdon não reconheceu o nome. 

- O líder Illuminati. Vai chegar em breve. 

- Ele está vindo para cá? 

- Para fazer a última marcação.

Langdon lançou um olhar assustado para Vittoria. Ela parecia estranha- mente calma, os olhos fechados para o mundo a seu redor, os pulmões bombeando o ar devagar, fundo. Seria ela a vítima final? Seria ele? 

- Que presunção - desdenhou o Hassassin, acompanhando o olhar de Langdon. - Vocês dois não são nada.

Vão morrer, claro, isto é certo. Mas a vítima final de que falo é um inimigo verdadeiramente perigoso. 

Langdon tentou dar sentido às palavras do Hassassin. Um inimigo perigoso? Os cardeais mais importantes estavam mortos, O Papa estava morto. Os Illuminati tinham acabado com todos eles. Langdon encontrou a resposta no vácuo dos olhos do Hassassin. 

O camerlengo. 

O camerlengo Ventresca fora o único homem que funcionara como um farol de esperança para o mundo através de todas aquelas atribulações. O camerlengo fizera mais naquela noite para condenar os Illuminati do que décadas de teorias conspiratórias. Tudo indicava que pagaria um preço por isto. Era ele o alvo final dos Illuminati. 

- Você nunca chegará até ele - Langdon desafiou-o. 

- Eu, não - replicou o Hassassin, obrigando Langdon a recuar mais contra a parede. - Essa honra está reservada para o próprio Janus. 

- O líder dos Illuminati em pessoa pretende marcar a fogo o camerlengo? 

- O poder tem seus privilégios. 

- Ninguém vai conseguir entrar no Vaticano agora! 

O Hassassin observou, com ar pretensioso: 

- A não ser que ele tenha um encontro marcado. 

Langdon custou a entender. A única pessoa esperada no Vaticano naquele momento era o tal personagem que a imprensa estava chamando de Samaritano da Décima Primeira Hora, a pessoa que Rocher dissera ter informações que poderiam salvar... 

Deus do Céu! 

O homem riu um riso afetado, claramente se divertindo com o choque de Langdon. 

- Também me perguntei como Janus conseguiria entrar. Então, quando vinha para cá, ouvi no rádio do carro a notícia sobre o Samaritano da Décima Primeira Hora. - Ele sorriu. - O Vaticano vai receber Janus de braços abertos. 

Langdon quase perdeu o equilíbrio. Janus é o Samaritano! Tratava-se de um disfarce impensável. O líder dos liluminati teria uma escolta real até os aposentos do camerlengo. Mas como Janus enganou Rocher?

Ou será que Rocher está de alguma forma envolvido? Langdon sentiu um calafrio. Desde que quase morrera asfixiado nos arquivos secretos deixara de confiar inteiramente em Rocher. 

O Hassassin deu uma espetadela súbita, acertando o lado do corpo de Langdon. 

Ele saltou para trás, cheio de raiva. 

- Janus não vai sair vivo de lá! 

O outro deu de ombros. 

- Existem causas pelas quais vale a pena morrer. 

O assassino falava sério. Janus iria à Cidade do Vaticano em uma missão suicida? Era uma questão de honra? Em segundos, a mente de Langdon reconstruiu todo o aterrorizante processo. O ciclo da trama dos Illuminati estava se fechando. O sacerdote que os Illuminati tinham inadvertidamente levado ao poder ao matarem o Papa surgia como um adversário de peso. Em um ato final de desafio, o líder dos Illuminati iria destruí-lo. 

Inesperadamente, a parede atrás de Langdon desapareceu. Uma lufada de ar frio envolveu-o e ele recuou cambaleando dentro da noite. A sacada! Agora sabia o que o Hassassin tinha em mente. 

Langdon sentiu logo o precipício às suas costas - uma queda de 30 metros no pátio abaixo. Tinha visto ao entrar. O Hassassin não perdeu tempo. Com um impulso vigoroso, investiu. A lança improvisada mirou o tronco de Langdon. Ele se desviou e a ponta passou rente, pegando somente sua camisa. Outra vez, a ponta da barra de ferro veio para cima dele. Langdon deslizou mais para trás, quase encostado na balaustrada. Certo de que o golpe seguinte o mataria, tentou o absurdo. Girando para o lado, estendeu a mão e agarrou a barra, sentindo uma ferroada de dor na palma ferida. Mas não a largou. 

O Hassassin não se abalou. Os dois puxaram durante um momento, cada um para um lado, face a face, o hálito fétido do Hassassin junto às narinas de Langdon. A barra começou a escorregar, o Hassassin era muito forte. Num último gesto de desespero, Langdon esticou a perna, arriscando perigosamente seu equilíbrio, tentando pisar no dedo ferido do pé do Hassassin. Mas o homem era um profissional e sabia como proteger seu ponto fraco. 

Langdon dera sua cartada final. E sabia que perdera a mão. 

Os braços do Hassassin explodiram para cima, fazendo Langdon ir de encontro à grade da sacada. Só havia o espaço vazio atrás dele agora, já que a grade chegava apenas à altura de suas nádegas. O Hassassin segurou a barra na horizontal e pressionou-a contra o peito de Langdon. As costas dele arquearam-se no espaço. 

- Ma'assalamah - zombou o Hassassin. - Adeus. 

Com um olhar impiedoso, deu o empurrão final. O centro de gravidade de Langdon deslocou-se e seus pés levantaram-se do chão. Apelando para a última esperança de sobrevivência, Langdon agarrou-se à grade quando seu corpo virou e passou por cima dela. A mão esquerda escapuliu, mas a direita se manteve. Ficou pendurado de cabeça para baixo, preso pelas pernas e por uma das mãos, fazendo força para não se soltar. 

E viu o Hassassin assomar no alto com a barra erguida acima da cabeça, preparando-se para descê-la em sua direção. Quando a barra começou a se acelerar, Langdon teve uma visão. Talvez fosse a iminência da morte ou simplesmente o medo cego, mas naquele momento uma aura cercou o vulto do Hassassin. Um clarão fulgurante foi aumentando por trás dele vindo do nada, como uma bola de fogo chegando. 

No meio do movimento de ataque, ele largou a barra e gritou de dor. 

A barra de ferro passou por Langdon e desceu retinindo na escuridão. O matador virou-se e Langdon viu a enorme queimadura da tocha nas costas dele. Langdon puxou o corpo para cima e viu Vittoria, os olhos dardejantes, agora enfrentando o Hassassin. 

Ela agitava a tocha diante de si, a vingança em seu rosto resplandecendo nas chamas. Como ela escapara,

Langdon não sabia nem queria saber. Ele subiu pela grade para voltar para a sacada. 

A batalha não duraria muito. O Hassassin era um oponente mortal. Com um urro furioso, ele arremeteu contra ela. Ela tentou se esquivar, mas ele segurou a tocha e estava prestes a tirá-la da mão dela. Langdon não esperou. Pulou da grade da sacada e lançou o punho fechado na queimadura das costas do homem. 

O berro dele pareceu ecoar até o Vaticano. 

O homem se imobilizou um instante, as costas curvadas em agonia. Soltou a tocha e Vittoria então a comprimiu com toda a força no rosto de seu inimigo. A carne queimada chiou, o olho esquerdo dele crepitou. O homem deu outro urro, levando as duas mãos ao rosto.  

- Olho por olho - disse Vittoria, a voz sibilante. 

E, dessa vez, girou a tocha como um bastão que, quando atingiu o alvo, fez o homem recuar vacilando de encontro à grade da sacada. Langdon e Vittoria correram ao mesmo tempo para ele, ambos levantando-o e empurrando. O corpo do Hassassin tombou de costas por cima da grade e mergulhou na noite. Não houve mais gritos. O único som foi o de sua espinha dorsal se partindo quando ele caiu de braços abertos em cima de uma pilha de balas de canhão no pátio. 

Langdon virou-se e olhou para Vittoria, perplexo. As cordas ainda pendiam, frouxas, da sua cintura e dos ombros. Os olhos relampejavam, ameaçadores. 

- Houdini fazia ioga.

 

CAPÍTULO 109

Enquanto isso, na Praça de São Pedro,a barreira formada  pelos homens da Guarda Suíça gritava ordens e tentava fazer a multidão recuar para uma distância segura. Não adiantava. A massa de gente era densa demais e, pelo jeito, estava muito mais interessada na catástrofe iminente do Vaticano do que na própria segurança. Os telões da imprensa instalados na praça transmitiam ao vivo a contagem regressiva da bomba de antimatéria - em imagem direta do monitor de segurança da Guarda Suíça -, com os cumprimentos do camerlengo. Infelizmente, a imagem do contador em nada contribuía para afastar o povo. As pessoas olhavam para a gotinha minúscula de líquido em suspensão no tubo e aparentemente concluíam que não era tão ameaçadora quanto haviam pensado. Também podiam ver agora os números no contador - faltavam pouco menos de 45 minutos para a detonação. Tempo mais do que suficiente para ficar ali e observar tudo. 

Mesmo assim, a Guarda Suíça era unânime em admitir que a corajosa decisão do camerlengo de contar a verdade ao mundo e em seguida fornecer à imprensa a prova visual da traição dos Iliuminati tinha sido uma hábil manobra. Os Illuminati com certeza esperavam que o Vaticano adotasse sua atitude reticente habitual diante das adversidades. Isso não acontecera naquela noite. O camerlengo Carlo Ventresca provara ser um adversário respeitável. 

Dentro da Capela Sistina, o cardeal Mortati ia ficando inquieto. Passava de 11h15. Muitos cardeais continuavam a rezar, mas outros haviam se agrupado perto da saída, visivelmente aflitos com a hora. Alguns começaram a bater na porta com os punhos. 

Do outro lado da porta, o tenente Chartrand ouvia as batidas e não sabia o que fazer. Verificou seu relógio. Estava na hora. O capitão Rocher dera ordens rigorosas, determinando que não deixasse os cardeais saírem enquanto ele não mandasse. As batidas na porta se intensificaram e Chartrand sentiu-se embaraçado. Será que o capitão simplesmente se esquecera? Ele vinha agindo de modo muito estranho desde o misterioso telefonema. 

Chartrand tirou seu walkie-tajkje. 

- Capitão? Aqui é Chartrand. Já passou da hora. Devo abrir a Sistína?

- A porta permanece fechada. Acho que já lhe dei essa ordem. 

- Sim, senhor, é que... 

- Nosso visitante deve estar chegando. Leve alguns homens para cima e vigiem a porta do escritório do Papa. O camerlengo não pode sair de lá sob hipótese alguma. 

- Como disse, senhor? 

- O que é que não está compreendendo, tenente? 

- Não foi nada, senhor, estou a caminho. 

Lá em cima, no escritório do Papa, o camerlengo contemplava o fogo em silenciosa meditação. Dê-me forças, meu Deus. Faça um milagre. Atiçou as chamas da lareira, pensando se sobreviveria àquela noite. 

 

CAPÍTULO 110 

Onze horas e vinte e três minutos. 

Vittoria estava na sacada do Castelo Sant'Angelo, ainda trêmula, o olhar na cidade de Roma, os olhos úmidos de lágrimas. Queria muito abraçar Robert Langdon, mas não podia. Seu corpo parecia anestesiado, reajustando-se, acomodando o que ocorrera. O homem que matara seu pai jazia lá embaixo, morto, e ela quase se tornara também uma vítima dele. 

Quando a mão de Langdon tocou o ombro dela, a infusão de calor magica- mente desfez aquela sensação enregelante. Seu corpo estremeceu de volta para a vida. A névoa se levantou e ela se virou. Robert encontrava-se em um estado lastimável, molhado, o cabelo todo emaranhado - era evidente que passara por um verdadeiro purgatório para vir salvá-la. 

- Obrigada... - ela murmurou. 

Ele deu um sorriso cansado e lembrou-lhe que era ela quem merecia os agradecimentos. Sua habilidade para praticamente deslocar os ombros acabara de salvar ambos. Vittoria enxugou os olhos. Gostaria de ter ficado ali para sempre com ele, mas a trégua seria breve. 

- Temos de sair daqui - disse Langdon.

A mente de Vittoria estava em outro lugar. Ela olhava na direção do Vaticano. O menor país do mundo encontrava-se a uma proximidade perturbadora, imerso na luz branca dos refletores da imprensa. Para espanto seu, grande parte da Praça de São Pedro ainda estava cheia de gente! A Guarda Suíça aparentemente só conseguira isolar uns cinqüenta metros - a área diretamente fronteira à basílica -, o que constituía menos de um terço da praça. A área restante da praça estava compactada com os que estavam a uma distância segura pressionando para ver melhor e encurralando os outros na parte de dentro. Estão perto demais! Pensou Vittoria. Perto demais! 

- Vou voltar para lá - disse Langdon, categórico. 

Vittoria virou-se para ele, incrédula. 

- Para o Vaticano? 

Langdon contou-lhe sobre o Samaritano e que se tratava de um ardil. O líder dos Iliuminati, um homem chamado Janus, chegaria em pessoa para marcar a fogo o camerlengo. Um gesto de dominação final dos Iliuminati. 

- Ninguém no Vaticano sabe - disse Langdon. - Não tenho como fazer contato com eles e esse sujeito deve chegar a qualquer minuto. Preciso avisar os guardas antes que o deixem entrar. 

- Mas você não vai conseguir passar por essa multidão! 

A voz de Langdon soou confiante. 

- Há um jeito. Confie em mim. 

Vittoria pressentiu mais uma vez que o historiador sabia de algo que ela desconhecia. 

- Também vou. 

- Não. Por que nos arriscarmos os dois... 

- Tenho de encontrar um modo de tirar aquela gente dali! Estão correndo grave perigo. 

No mesmo instante, a sacada começou a tremer. Um rugido ensurdecedor abalou todo o castelo. Em seguida, uma luz branca vinda da Praça de São Pedro cegou-os. Vittoria só pensou em uma coisa. Oh, Deus! A antimatéria aniquilou- se antes da hora! 

Em vez de um estrondo, porém, uma ruidosa saudação ergueu-se do povo. Vittoria apertou os olhos contra a luz. Uma barreira de luz de refletores vinha da praça e, ao que parecia, agora apontava para eles! Todos se voltavam na direção deles, apontando e chamando. O ronco ficou mais alto. A atmosfera na praça de repente dava a impressão de estar mais alegre. 

Langdon estava desnorteado. 

- Que diabos...

Um rugido ecoou pelo céu. 

Por trás da torre, sem aviso, surgiu o helicóptero do Papa. Trovejou uns 15 metros acima da cabeça deles, indo em linha reta para a Cidade do Vaticano. Quando passou, brilhando à luz dos refletores, o castelo tremeu. As luzes acompanharam o percurso do helicóptero, deixando Langdon e Vittoria de novo no escuro. 

Vittoria teve a sensação desconfortável de estarem atrasados ao ver o enorme aparelho deter-se acima da Praça de São Pedro. Levantando uma nuvem de poeira, o helicóptero desceu no trecho vazio da praça, entre a multidão e a basílica, tocando o solo na base das escadarias da basílica. 

- Falando sobre entrar no Vaticano... - disse Vittoria. 

Destacando-se contra o fundo de mármore branco, viu ao longe a figura diminuta de uma pessoa sair do Vaticano e dirigir-se para o helicóptero. Nunca teria reconhecido quem era se não fosse pela boina vermelha na cabeça. 

- Recebido com tapete vermelho. É Rocher. 

Langdon deu um soco na grade. 

- Alguém tem de avisar a eles! - e fez meia volta para sair. 

Vittoria segurou o braço dele. 

- Espere! 

Acabara de ver algo mais, algo em que se recusava a acreditar. Com os dedos trêmulos, apontou para o helicóptero. Mesmo à distância, não havia engano possível. Descendo pela prancha de desembarque vinha uma outra figura, que se movia de maneira tão peculiar que só poderia ser um homem. Embora estivesse sentado, ele acelerou pela praça aberta sem esforço e a uma velocidade surpreendente. 

Um rei sentado em um trono elétrico. 

Era Maximilian Kohler. 

 

CAPÍTULO 111

Kohler estava enojado com a opulência do saguão do Belvedere. Só revestimento de ouro do teto daria para financiar um ano de pesquisas sobre o câncer. Rocher subiu com ele uma rampa, conduzindo-o por um caminho tortuoso ao Palácio Apostólico.

- Não tem elevador? - perguntou Kohler. 

- Estamos sem luz. - Rocher mostrou as velas acesas em torno deles no edifício escuro. - É parte de nossa estratégia de busca. 

- Estratégia que certamente falhou. 

Rocher concordou. 

Kohler teve outro ataque de tosse e ocorreu-lhe que talvez fosse um dos últimos de sua vida. Não era um pensamento de todo desagradável. 

Ao chegarem ao andar de cima e entrarem no corredor que levava ao escritório do Papa, quatro guardas suíços correram na direção deles com ar preocupado. 

- Capitão, o que estão fazendo aqui em cima? Pensei que esse senhor tivesse informações que... 

- Ele só vai falar com o camerlengo. 

Os guardas recuaram, desconfiados. 

- Avise ao camerlengo - disse Rocher, em tom enérgico - que o diretor do CERN, Maximilian Kohler, está aqui para vê-lo. Imediatamente. 

- Sim, senhor! 

Um dos guardas saiu apressado para o escritório do camerlengo. Os outros mantiveram suas posições.

Observavam Rocher com ar constrangido. 

- Só um momento, capitão. Vamos anunciar seu visitante. 

Kohler, porém, não se deteve. Deu uma guinada repentina e manobrou sua cadeira, contornando os sentinelas. 

Os guardas giraram e saíram trotando ao lado dele. 

- Fermati! Senhor! Pare! 

Kohler sentia aversão por eles. Nem a força de segurança mais elitista do mundo estava imune à pena que todos sentiam pelos aleijados. Se Kohler fosse um homem saudável, os guardas o teriam segurado. Os aleijados são impotentes, pensou Kohler. Ou o mundo acredita que eles são. 

Kohler sabia que dispunha de pouco tempo para levar a cabo o que tinha vindo fazer. Sabia também que poderia morrer ali naquela noite. Ficou surpreso ao constatar quão pouco se importava. A morte era um preço que estava pronto para pagar. Suportara coisas demais em sua vida para que seu trabalho fosse destruído por alguém como o camerlengo Ventresca. 

- Signore! - gritaram os guardas, correndo na frente e formando uma fila de lado a lado do corredor. - O senhor tem de parar! - Um deles puxou uma arma e apontou-a para Kohler. 

Kohler parou. 

Rocher interpôs-se, contrito.

- Senhor Kohler, por favor. Só vai levar um momento. Ninguém entra no escritório do Papa sem ser anunciado. 

Kohler viu nos olhos de Rocher que não tinha escolha a não ser esperar. Muito bem, pensou, vamos esperar. 

Os guardas, por maldade talvez, tinham feito Kohler parar junto a um espelho de moldura dourada que ia do teto ao chão. A visão de sua figura disforme causava-lhe repulsa. A velha raiva mais uma vez veio à tona. Fortalecia-o. Estava no meio do inimigo naquele momento. Aquelas eram as pessoas que o haviam privado de sua dignidade. Eram elas mesmas. Por causa delas, nunca sentira o corpo de uma mulher, nunca se levantara para receber um prêmio. Qual é a verdade que essa gente possui? Que provas, malditos sejam? Um livro de fábulas antigas? Promessas de milagres que estão por vir? A ciência produz milagres todos os dias! 

Contemplou seus olhos de pedra. Esta noite pode ser que eu morra nas mãos da religião, pensou. Mas não será a primeira vez. 

E voltou aos seus 11 anos. Deitado em sua cama na mansão de seus pais em Frankfurt, os lençóis que o envolviam, feitos com o melhor linho da Europa, estavam empapados de suor. O jovem Max sentia o corpo em fogo, uma dor inimaginável torturando-o. Ajoelhados ao lado de sua cama, de onde não saíam já fazia três dias, estavam seu pai e sua mãe. Ambos rezavam. 

Nas sombras do quarto encontravam-se três dos melhores médicos de Frankfurt. 

- Insisto que pensem melhor! - disse um dos médicos. - Olhem para o menino! A febre está aumentando. Ele está com dores terríveis. E corre risco de vida! 

Max, todavia, sabia o que sua mãe responderia antes mesmo que ela abrisse a boca. 

- Gott wird ihn beschuetzen. 

Sim, pensou Max. Deus vai me proteger. A convicção na voz de sua mãe deu- lhe forças. Deus vai me proteger. 

Uma hora mais tarde, Max sentia dores tamanhas, como se seu corpo estivesse sendo esmagado por um carro. Sequer conseguia respirar para gritar. 

- Seu filho está sofrendo demais - disse outro médico. - Deixe-me ao menos aliviar as dores dele. Tenho na minha mala uma injeção simples de... 

- Ruhe, bitte! - O pai de Max fez o médico calar-se sem ao menos abrir os olhos, continuando a rezar. 

- Papai, por favor! - Max queria gritar. - Deixe que ele faça a dor parar! 

- Mas suas palavras perderam-se em um espasmo de tosse.

Uma hora depois, a dor tinha piorado ainda mais. 

- Seu filho pode ficar paralítico - advertiu um dos médicos. - E até morrer! Temos remédios que podem ajudar! 

Frau e Herr Kohler não permitiram. Não acreditavam em remédios. Quem eram eles para interferir nos planos divinos? Rezaram com maior intensidade. Afinal, se Deus os abençoara com aquele menino, por que Deus o levaria embora? Sua mãe sussurrou-lhe que fosse forte. Explicou que Deus o estava testando como na história de Abraão na Bíblia, um teste de fé. 

Max tentava ter fé, mas as dores eram excruciantes. 

- Não agüento ver isso! - disse afinal um dos médicos, saindo às pressas do quarto. 

Ao amanhecer, Max estava semiconsciente. Todos os seus músculos contraíam-se em espasmos de agonia. Onde está Jesus? Delirava. Ele não me ama? Max sentia a vida esvaindo-se de seu corpo. 

Sua mãe adormecera ao lado da cama, as mãos ainda entrelaçadas em cima dele. O pai estava junto à janela, do outro lado do quarto, vendo o dia clarear. Parecia estar em transe. Max escutava o murmúrio de suas súplicas incessantes por misericórdia. 

Nesse momento Max divisou a figura pairando acima dele. Um anjo? Ele não enxergava direito. Seus olhos estavam muito inchados. A figura cochichou em seu ouvido, mas não era a voz de um anjo. Max reconheceu a voz de um dos médicos, o que estava sentado em um canto havia dois dias, sem desistir, rogando aos pais de Max que o deixassem administrar na criança um novo remédio vindo da Inglaterra. 

- Nunca vou me perdoar - sussurrou o médico - se não fizer isso. - E, com delicadeza, pegou o braço frágil do menino. - Gostaria de tê-lo feito mais cedo. 

Max sentiu uma pequenina espetadela no braço, que mal distinguiu em meio a tanta dor. 

O médico então guardou suas coisas em silêncio. Antes de sair, pousou a mão na testa de Max. 

- Isto vai salvar sua vida. Tenho muita fé no poder da medicina. 

Poucos minutos depois, Max sentiu como se uma espécie de espírito mágico fluísse em suas veias. O calor espalhou-se por seu corpo e amorteceu a dor. Finalmente, pela primeira vez em dias, Max dormiu. 

Quando a febre cedeu, seu pai e sua mãe proclamaram que era um milagre de Deus. Mas, quando ficou evidente que o filho estava aleijado, ficaram melancólicos. Levaram-no à igreja em uma cadeira de rodas e pediram que um padre os aconselhasse.

- Foi apenas pela graça de Deus - disse o padre - que esse menino sobreviveu. 

Max escutava sem dizer nada. 

- Mas nosso filho não anda mais! - chorava Frau Kohler. 

O padre sacudiu a cabeça, com ar triste. 

- Sim. Parece que Deus o puniu por não ter fé suficiente. 

- Senhor Kohler? - era o guarda suíço que correra na frente quem falava. 

- O camerlengo disse que concederá uma audiência ao senhor. 

Kohler resmungou algo, acelerando de novo pelo corredor afora. 

- Ele está surpreso com a sua visita - disse o guarda. 

- Estou certo que sim - Kohler respondeu, prosseguindo. - Gostaria de vê-lo a sós. 

- Impossível - disse o guarda. - Ninguém... 

- Tenente - falou Rocher, ríspido -, a reunião será como o senhor Kohler deseja. 

O guarda olhou fixo para ele, incrédulo. 

Do lado de fora do escritório do Papa, Rocher autorizou seus guardas a tomarem as precauções de praxe antes de deixar Kohler entrar. O detector de metais manual perdeu toda a utilidade com os inúmeros aparelhos eletrônicos instalados na cadeira de rodas de Kohler. Os guardas o revistaram, mas sua deficiência evidentemente os encabulou e não o fizeram como deveriam. Não encontraram o revólver escondido sob a cadeira. Nem o outro objeto, aquele que, Kohler sabia, fecharia de modo inesquecível a seqüência de acontecimentos daquela noite. 

Quando Kohler entrou no escritório do Papa, o camerlengo Ventresca estava sozinho, ajoelhado, rezando ao lado do fogo quase extinto da lareira. Não abriu os olhos. 

- Senhor Kohler - disse o camerlengo. - O senhor veio para me transformar em um mártir?

 

CAPÍTULO 112

O túnel estreito chamado ii Passetto estendia-se em linha reta diante de Langdon e Vittoria enquanto os dois corriam rumo à Cidade do Vaticano. A tocha na mão de Langdon só produzia claridade para que enxergassem uns poucos metros adiante. As paredes eram muito próximas e o teto era baixo. Havia um cheiro desagradável de umidade no ar. Langdon avançava depressa pela escuridão com

Vittoria seguindo-o de perto. 

O túnel inclinava-se de modo acentuado ao sair do Castelo Sant'Angelo, prosseguindo em sentido ascendente por dentro da parte inferior de um bastião de pedra semelhante a um aqueduto romano. Ali, o túnel se estabilizava e continuava seu percurso secreto na direção da Cidade do Vaticano. 

No caminho, os pensamentos sucediam-se como um caleidoscópio de imagens confusas na cabeça de Langdon - Kohler, Janus, o Hassassin, Rocher, uma sexta marca? Você já ouviu falar da sexta marca, dissera o matador. A mais brilhante de todas. Langdon tinha certeza de que não ouvira. Nem nas teorias conspiratórias havia qualquer referência a uma sexta marca, real ou imaginária. Sabia de boatos sobre barras de ouro e sobre um diamante liluminati sem qualquer jaça, mas nunca ouvira menção alguma a uma sexta marca. 

- Kohler não pode ser Janus! - afirmou Vittoria, correndo pelo túnel atrás de Langdon. - É impossível! 

Impossível era uma palavra que Langdon deixara de usar naquela noite. 

- Não sei - gritou ele para trás, sem parar. - Kohler tinha um ressentimento sério e também exerce uma grande influência. 

- Esta crise fez o CERN parecer monstruoso! Max nunca faria nada para prejudicar a reputação do CERN! 

Por um lado, Langdon sabia que o CERN ficara desacreditado naquela noite devido à insistência dos Iliuminati em fazer daquilo tudo um espetáculo público. Por outro, ponderava o quanto de fato o CERN teria sido prejudicado. As críticas da Igreja não eram novidade para o CERN. Na verdade, quanto mais Langdon pensava a respeito, mais achava que a crise iria na realidade beneficiar o CERN. Se o negócio era publicidade, a antimatéria ganhara o grande prêmio da loteria naquela noite. No planeta inteiro só se falava dela. 

- Sabe o que dizia o promotor P. T. Barnum? - disse Langdon por cima do ombro. - "Não me importo que falem mal de mim, contanto que escrevam meu nome certo!" Aposto como já deve ter uma fila de gente interessada em obter a licença da tecnologia da antimatéria. E depois que virem o que ela é capaz de fazer à meia-noite de hoje... 

- Não tem lógica - disse Vittoria. - Fazer publicidade de avanços tecnológicos não é mostrar seu poder destrutivo! Isto é terrível para a antimatéria, acredite! 

A tocha de Langdon estava quase no fim. 

- Então deve ser mais simples do que isso. Talvez Kohler tenha apostado que o Vaticano manteria segredo sobre a antimatéria para não fortalecer os Illuminati. Kohler esperava que o Vaticano se comportasse com a sua reserva de costume sobre a ameaça, mas o camerlengo mudou as regras. 

Vittoria ficou calada enquanto prosseguiam. 

Aos poucos, as coisas foram fazendo mais sentido para Langdon. 

- É isso! Kohler não contava com a reação do camerlengo. O camerlengo quebrou a tradição de segredo do Vaticano e foi a público falar da crise. Ele foi tremendamente franco. Chegou a pôr a antimatéria na TV! Foi uma reação brilhante, Kohler jamais a esperava. E a ironia de tudo é que o tiro dos Illuminati saiu pela culatra. Sem querer, produziu um novo líder da Igreja na pessoa do camerlengo. E agora Kohler está chegando para matá-lo! 

- Max é um canalha - declarou Vittoria -, mas não é um assassino. E nunca estaria envolvido no assassinato do meu pai. 

Na mente de Langdon, foi a própria voz de Kohler que respondeu: Leonardo era considerado perigoso por muitos puristas do CERN. Unir ciência e Deus é a suprema heresia científica. 

- Talvez Kohler tenha descoberto sobre o projeto da antimatéria há semanas e não tenha ficado satisfeito com as implicações religiosas. 

- E matado meu pai por causa disso? Ridículo! Além do mais, Max Kohler não sabia que o projeto existia. 

- Enquanto você estava fora, talvez seu pai tenha sucumbido e consultado Kohler, pedindo orientação.

Você mesma disse que seu pai estava preocupado com as implicações morais de criar uma substância tão mortal. 

- Pedir orientação moral a Maximilian Kohler? - desdenhou Vittoria. - Acho que não! 

O túnel desviava-se ligeiramente para oeste. Quanto mais depressa corriam, mais fraca se tornava a luz da tocha. Langdon começou a temer que ficasse totalmente escuro, como se tivessem apagado a luz. Trevas totais. 

- Além disso, por que Kohler teria se incomodado em ligar para você hoje de manhã cedo para pedir ajuda se ele próprio estivesse por trás de tudo? 

Langdon já tinha considerado a possibilidade. 

- Ao ligar para mim, Kohler estava cobrindo suas bases. Daí em diante, ninguém poderia acusá-lo de omissão em um momento de crise. Provavelmente não contava que fôssemos tão longe. 

A idéia de ter sido "usado" por Kohler irritou Langdon. Seu envolvimento dera credibilidade aos Illuminati.

Suas qualificações e seus trabalhos publicados haviam sido citados a noite inteira pela imprensa e, por mais ridículo que fosse, a presença de um professor de Harvard na Cidade do Vaticano de certa forma afastara a possibilidade de que toda aquela situação pudesse ser um delírio paranóide, também convencendo os céticos do mundo todo de que a fraternidade dos Illuminati não era apenas um fato histórico, mas uma força a ser levada em conta. 

- Aquele repórter da BBC - disse Langdon - acha que o CERN é o novo refúgio dos Illuminati. 

- O quê! -Vittoria tropeçou atrás dele. Pôs-se de pé e alcançou-o. - Ele disse isso?! 

- No ar. Comparou o CERN às lojas maçônicas. Uma organização inocente abrigando a fraternidade dos liluminati dentro dela. 

- Meu Deus, isso vai destruir o CERN. 

Langdon não tinha tanta certeza. De qualquer maneira, a teoria agora parecia mais coerente. O CERN era o supremo paraíso científico, onde viviam cientistas de mais de dez países. Aparentemente, dispunham de inesgotável financiamento privado. E Maximilian Kohler era o diretor. 

Kohler é Janus. 

- Se Kohler não está envolvido - argumentou Langdon -, o que veio fazer aqui? 

- Provavelmente tentar impedir que essa loucura continue. Demonstrar apoio. Talvez ele esteja realmente agindo como o Samaritano! Pode ter descoberto quem sabia sobre o projeto da antimatéria e veio trazer informações. 

- O matador disse que ele viria para marcar o camerlengo a fogo. 

- Preste atenção no que está dizendo! Isto seria uma missão suicida. Max jamais sairia vivo daqui.  Langdon refletiu. Talvez seja esta a questão. 

Os contornos de um portão de ferro delinearam-se à frente bloqueando-lhes  a passagem. O coração de Langdon quase parou. Quando se aproximaram, entretanto, encontraram o velho cadeado solto. O portão podia ser aberto  à vontade. 

Langdon suspirou aliviado, percebendo, como já desconfiava, que o velho túnel fora usado. Recentemente. Naquele mesmo dia. Agora não tinha dúvidas de que quatro cardeais aterrorizados haviam sido conduzidos por ali secretamente horas antes. 

Continuaram a correr. Dava para ouvir agora o som do caos à esquerda. Era a Praça de São Pedro. Estavam chegando. 

Passaram por outro portão, este mais pesado e também destrancado. O barulho na Praça de São Pedro diminuiu de intensidade atrás deles e Langdon calculou que tinham ultrapassado o muro externo da Cidade do Vaticano. Perguntava-se onde terminaria aquela antiga passagem. Nos jardins? Na basílica? Na residência do Papa? 

Então, inesperadamente, o túnel chegou ao fim. 

A incômoda porta que lhes obstruía o caminho era uma grossa muralha de ferro rebitado. Mesmo à luz bruxuleante da tocha, agora em seus últimos lampejos, dava para ver que a porta era inteiriça - sem maçaneta, sem puxadores, sem buraco de fechadura, sem dobradiças. Sem jeito de entrar. 

Sentiu uma onda de pânico. Em linguagem de arquiteto, aquele raro tipo de porta era chamado de senza chiave: uma passagem de sentido único, usada para fins de segurança, só operável de um dos lados - do outro lado, no caso. As esperanças de Langdon apagaram-se junto com a tocha em sua mão. 

Olhou para o relógio. Mickey brilhava no escuro. 

11h29. 

Com um grito de frustração, Langdon atirou longe a tocha e começou a esmurrar a porta. 

 

CAPÍTULO 113

Algo estava errado. 

O tenente Chartrand encontrava-se do lado de fora do escritório do Papa e, pela postura constrangida do soldado que montava guarda com ele, percebia que ambos partilhavam a mesma ansiedade. O encontro particular que estavam protegendo, dissera Rocher, poderia salvar o Vaticano da destruição. Portanto,

Chartrand não compreendia por que motivo seu instinto de preservação estava tão aguçado. E por que

Rocher estaria agindo de modo tão estranho? 

Decididamente, algo estava errado.

O capitão Rocher encontrava-se à direita de Chartrand, olhando fixo para a frente, seu olhar arguto estranhamente distante. Chartrand mal reconhecia o capitão. Rocher nem parecia o mesmo naquela última hora. As decisões dele não faziam sentido. 

Alguém tinha de estar presente lá dentro durante este encontro, pensou Chartrand. Escutara Maximilian Kohler trancar a porta depois de entrar. Por que Rocher permitira aquilo? 

Mas havia muito mais coisas incomodando Chartrand. Os cardeais. Os cardeais ainda estavam trancados na Capela Sistina. Isso era uma insanidade total. O camerlengo queria que eles tivessem saído 15 minutos antes! Rocher passara por cima da decisão e não informara o camerlengo. Chartrand demonstrara preocupação e Rocher quase arrancara a cabeça dele. A cadeia de comando nunca era questionada na Guarda Suíça, e agora quem mandava era Rocher. 

Meia hora, pensou Rocher, discretamente verificando seu cronômetro suíço à luz mortiça do candelabro que iluminava o saguão. Por favor, apressem-se. 

Chartrand gostaria de poder escutar o que estava acontecendo do outro lado das portas. Ainda assim, sabia que ninguém melhor do que o camerlengo para lidar com aquela crise. O homem passara por provas duríssimas naquela noite sem esmorecer. Enfrentara o problema de cabeça erguida - verdadeiro, franco, brilhando, um exemplo para todos. Chartrand estava sentindo orgulho de ser católico. Os Iliuminati tinham cometido um engano ao desafiarem o camerlengo Ventresca. 

Naquele momento, porém, os pensamentos de Chartrand foram abalados por um som inesperado. Batidas.

Vinham do fundo do corredor. As batidas soavam distantes e abafadas, mas incessantes. Rocher levantou a cabeça. O capitão fez um sinal para Chartrand. Chartrand compreendeu, ligou sua lanterna e foi investigar. 

As batidas soavam mais desesperadas agora. Chartrand percorreu 30 metros do corredor até um cruzamento. O barulho parecia vir de algum ponto depois da curva, além da Sala Clementina. Chartrand estava perplexo. Só havia um aposento ali - a biblioteca particular do Papa, que estava trancada desde a morte de Sua Santidade. Não podia haver ninguém lá! 

Chartrand entrou depressa no segundo corredor, dobrou mais uma esquina e correu para a porta da biblioteca. O pórtico de madeira era diminuto, mas surgia no escuro como uma austera sentinela. As batidas vinham de dentro. Chartrand hesitou. Nunca estivera antes na biblioteca particular. Poucos tinham estado. Ninguém tinha autorização para entrar ali a não ser acompanhado pelo próprio Papa.

Tateando, encontrou a maçaneta e virou-a. Como previra, a porta estava trancada. Encostou a orelha na porta. As batidas ficaram mais altas. Então, ouviu mais alguma coisa. Vozes! Alguém chamando! 

Não distinguia as palavras, mas notava o pânico nos gritos. Alguém estaria  preso na biblioteca? Será que a Guarda Suíça não evacuara completamente o  prédio? Chartrand estava indeciso, sem saber se deveria voltar e consultar  Rocher. Ora, ele que se danasse. Chartrand fora treinado para tomar decisões e  era o que faria agora. Tirou a arma da cintura e deu um único tiro no trinco. A  madeira estourou e a porta se abriu. 

Lá dentro, Chartrand só viu escuridão. Apontou a lanterna. A sala era retangular -tapetes orientais, altas estantes de carvalho cheias de livros, um sofá de couro e uma lareira de mármore. Chartrand ouvira histórias sobre aquele lugar - três mil livros antigos lado a lado com centenas de revistas e jornais modernos, qualquer coisa que Sua Santidade solicitasse. A mesa baixa de centro estava coberta de publicações especializadas sobre ciência e política. 

As batidas estavam mais nítidas agora. Chartrand dirigiu o foco da lanterna para o lado oposto, de onde vinha o som. Na parede do fundo, além do conjunto de sofá e cadeiras, havia uma enorme porta de aço. De aparência tão impenetrável quanto a de um cofre. Tinha quatro fechaduras colossais. O que estava escrito em letras pequeninas bem no centro da porta tirou o fôlego de Chartrand. 

IL PASSETTO 

Chartrand estava boquiaberto. A saída secreta do Papa! Já escutara comentários sobre o Passetto, é claro, e até ouvira falar que antigamente existia uma entrada ali, pela biblioteca, mas não se usava o túnel havia séculos! Quem poderia estar do outro lado? 

O rapaz pegou a lanterna e bateu com ela na porta. Soou uma exclamação abafada de alegria do outro lado.

As batidas cessaram e as vozes gritaram mais alto. Chartrand não distinguia direito as palavras através da barreira. 

- Kohler... mentira... camerlengo... 

- Quem está aí? - gritou Chartrand. 

- ...ert Langdon... Vittoria Ve... 

Chartrand compreendeu, mas não assimilou logo o que ouviu. Pensei que estivessem mortos! 

- ... a porta - gritaram as vozes. - Abra...! 

Chartrand olhou para a porta de aço e achou que seria preciso usar dinamite para abri-la.

- Impossível! - gritou de volta. - Grossa demais! 

- . . .encontro . . .impedir . . .erlengo... perigo... 

A despeito de seu treinamento sobre os riscos do pânico, o guarda foi acometido por uma onda de medo ao ouvir as últimas palavras. Será que compreendera direito? Com o coração acelerado, virou-se para voltar correndo para o escritório. Ao fazê-lo, porém, estacou. Seu olhar parou em algo na porta - algo mais impressionante ainda do que a mensagem que vinha do outro lado. Presas em todos os buracos das enormes fechaduras da porta havia chaves. As chaves estavam ali? Como? Ele piscava, estático, sem acreditar. As chaves daquela porta supostamente deveriam estar guardadas em algum cofre! Aquela passagem nunca era usada - não nos últimos séculos! 

Chartrand pousou sua lanterna no chão. Virou a primeira chave. O mecanismo estava enferrujado e duro, mas ainda funcionava. Alguém o abrira recentemente. Abriu a segunda fechadura. E a seguinte. Quando a última lingüeta se soltou, ele puxou a porta. O bloco de aço abriu-se com um rangido. Ele pegou a lanterna e dirigiu-a para a entrada. 

Robert Langdon e Vittoria Vetra tinham o aspecto de duas aparições ao entrarem cambaleantes na biblioteca. Ambos estavam em frangalhos e cansados, mas bem vivos. 

- O que houve? - perguntou Chartrand. - O que está acontecendo? De onde vocês vieram? 

- Onde está Max Kohler? - perguntou Langdon. 

Chartrand apontou. 

- Em um encontro particular com o camer... 

Langdon e Vittoria passaram por ele e correram para a porta da biblioteca. Chartrand, por instinto, levantou o revólver para as costas deles. Mas logo abaixou a arma e foi atrás dos dois. Rocher provavelmente os ouviu se aproximando porque, quando chegaram à porta do escritório do Papa, ele se posicionara com as pernas afastadas e apontava-lhes o revólver. 

-Alto! 

- O camerlengo está em perigo! - berrou Langdon, levantando os braços e parando. - Abra a porta! Max

Kohler vai matar o camerlengo! 

Rocher parecia zangado. 

- Abra a porta! - disse Vittoria. - Depressa! 

Mas era tarde demais. 

De dentro do escritório do Papa veio um grito pavoroso. Era o camerlengo.

 

CAPÍTULO 114

O confronto durou apenas alguns segundos. 

O camerlengo Ventresca ainda estava gritando quando Chartrand passou por Rocher e arrebentou a porta do escritório do Papa com um tiro. Os guardas entraram correndo, com Langdon e Vittoria atrás deles. 

A cena com que se depararam era estarrecedora. 

O aposento só contava com a iluminação de velas e do fogo quase apagado da lareira. Kohler estava perto da lareira, de pé, desajeitado, junto à sua cadeira de rodas. Brandia uma pistola, apontada para o camerlengo, que jazia no chão a seus pés, contorcendo-se de dor. A batina do camerlengo estava rasgada e seu peito nu fora marcado a fogo. Langdon, do outro lado da sala, não conseguiu distinguir o símbolo, mas um grande ferro de marcar quadrado encontrava-se no chão perto de Kohler. O metal ainda estava em brasa. 

Dois guardas suíços agiram sem vacilar. Abriram fogo. As balas penetraram no peito de Kohler, jogando-o para trás. Kohler caiu em sua cadeira de rodas, o sangue jorrando. O revólver resvalou pelo chão. 

Langdon, aturdido, não passou da porta. 

Vittoria ficou paralisada. 

- Max... - murmurou. 

O camerlengo, ainda se revirando no chão, rolou o corpo na direção de Rocher e, tendo no rosto a expressão de terror exaltado dos primeiros caçadores de bruxas, apontou o dedo indicador para Rocher e berrou uma única palavra: 

- ILLUMINATUS! 

- Seu canalha - disse Rocher, correndo para ele. - Seu canalha hipócrita... 

Dessa vez foi Chartrand quem reagiu por instinto, metendo três balas nas costas de Rocher. O rosto do capitão bateu primeiro no piso de azulejos e ele escorregou inerte em seu próprio sangue. Chartrand e os guardas correram então para o camerlengo, que se contraía todo, com dores atrozes. 

Os guardas soltaram exclamações horrorizadas ao verem o símbolo marcado no peito do camerlengo. O segundo guarda viu a marca de cabeça para baixo e recuou cambaleante, cheio de medo. Chartrand, igualmente perturbado pelo símbolo, puxou a batina rasgada do camerlengo para cima da queimadura, escondendo-o. 

Langdon teve a sensação de estar delirando ao cruzar o aposento. Em meio à bruma de insanidade e violência, ele tentava entender o que estava presenciando.

Um cientista aleijado, num gesto final de autoridade simbólica, voara até a Cidade do Vaticano para marcar a fogo o personagem mais eminente da Igreja. Há coisas pelas quais vale a pena morrer, dissera o Hassassin. Langdon se perguntava como um deficiente fisico poderia ter dominado o camerlengo. Mas Kohler estava armado. Não importava como o fizera! Kohler cumprira sua missão! 

Langdon aproximou-se da cena medonha. O camerlengo já estava sendo assistido e Langdon foi atraído pelo ferro fumegante caído perto da cadeira de Kohler. A sexta marca? Quanto mais olhava, menos compreendia. A marca parecia ser um quadrado perfeito, bastante grande e seguramente viera do sagrado compartimento central da arca que estava no refúgio dos Illuminati. A sexta marca, dissera o Hassassin. A mais brilhante de todas. 

Langdon ajoelhou-se ao lado de Kohler e estendeu a mão para pegar o objeto. O metal ainda irradiava calor. Segurou o cabo de madeira e levantou-o. Não sabia o que esperava ver, mas decerto não era isso. 

Olhou fixamente para a peça durante um longo e confuso momento. Nada fazia sentido. Por que os guardas tinham gritado, apavorados, ao ver a marca? Era um quadrado de rabiscos incompreensíveis. A mais brilhante de todas? Era simétrica, dava para notar ao girá-la na mão, mas era um deboche. 

Ao sentir a mão de alguém em seu ombro, Langdon ergueu a cabeça, pensando que era Vittoria.

A mão, porém, estava coberta de sangue. Pertencia a Maximilian Kohler, que a estendia de sua cadeira de rodas. 

Langdon deixou cair o ferro de marcar e levantou-se apressadamente. Kohler ainda estava vivo! 

O corpo afundado na cadeira, o diretor agonizava mas ainda estava respirando, embora com dificuldade, arquejante. Seus olhos encontraram os de Langdon com a mesma expressão dura que o recebera no CERN horas antes. Parecia ainda mais severa na hora da morte, com a aversão e a animosidade vindo à tona.

O corpo do cientista ainda se agitava em leves convulsões e Langdon achou que ele estava tentando se mexer. Todos na sala se concentravam no camerlengo naquele momento. Langdon quis chamar alguém, mas não foi capaz de reagir. Fascinava-o a intensidade que emanava de Kohler nos segundos finais de sua vida, O diretor, com esforço, trêmulo, levantou o braço e tirou um pequeno objeto do braço de sua cadeira.

Do tamanho de uma caixa de fósforos. Segurou-o no ar, oscilante. Langdon chegou a pensar que Kohler tivesse uma arma. Mas era outra coisa. 

- En... tregue... - a voz não passava de um sussurro entrecortado. - En... tregue isto... à imprensa. 

Kohler tombou, imóvel, e o aparelho caiu em seu colo. 

Abalado, Langdon olhou para o aparelho. Era eletrônico. As palavras SONY RUVI estavam impressas na frente. Tratava-se de uma dessas pequenas câmeras de vídeo em miniatura que cabem na palma da mão.

Que audácia desse sujeito, pensou. Kolher provavelmente gravara alguma mensagem suicida e queria que a imprensa a divulgasse - sem dúvida algum sermão sobre a importância da ciência e os maleficios da religião. Langdon decidiu que já fizera demais pela causa daquele homem naquela noite. Antes que

Chartrand visse a pequenina câmera, Langdon enfiou-a no bolso mais fundo de seu paletó. A mensagem final de Koller que vá para o inferno! 

Foi a voz do camerlengo que quebrou o silêncio. Ele tentava se sentar. 

- Os cardeais - disse ele a Chartrand, ofegante. 

- Ainda estão na Capela Sistina! - exclamou Chartrand. - O capitão Rocher ordenou... 

- Faça-os sair agora. Todos. 

Chartrand despachou às pressas um dos outros guardas para soltar os cardeais. 

O camerlengo fez uma careta de dor. 

- O helicóptero.., aí na frente... para me levar para um hospital.

Na praça em torno dele era tão grande que a barulheira abafava o som de seus rotores ligados. Aquela não era certamente uma daquelas vigílias solenes à luz de velas. Não sabia como ainda não havia acontecido um tumulto pior. 

Faltavam menos de 25 minutos para a meia-noite e as pessoas ainda estavam amontoadas lá, umas rezando, outras chorando pela Igreja, algumas gritando obscenidades e proclamando que era isso mesmo o que a Igreja merecia, outras entoando versículos apocalípticos da Bíblia. 

A cabeça do piloto latejava mais quando os focos de luz das emissoras passavam pelo seu pára-brisa, ofuscando-o. Apertava os olhos para a massa turbulenta. Cartazes e faixas eram agitados pela multidão. 

A ANTIMATERIA É O ANTICRISTO! 

CIENTISTAS- SATANISTAS, 

ONDE ESTÁ SEU DEUS AGORA? 

O piloto gemia, a cabeça piorando. Ponderava se deveria cobrir o pára-brisa com a proteção de vinil para não ver nada, mas achava que iria levantar vôo em questão de minutos. O tenente Chartrand acabara de falar com ele pelo rádio dando notícias graves. O camerlengo fora atacado por Maximilian Kohler e estava seriamente ferido. Chartrand, o americano e a mulher iriam sair com o camerlengo para que ele fosse levado a um hospital. 

O piloto sentia-se pessoalmente responsável pelo ataque. Censurava-se por não ter agido com mais audácia. Pouco antes, ao pegar Kohler no aeroporto, percebera algo estranho nos olhos mortos do cientista. Não sabia definir, mas não gostara nada. Não que isso importasse. Rocher era quem mandava e ele insistira que era aquele sujeito. Pelo jeito, enganara-se. 

Um novo clamor ergueu-se da multidão. O piloto levantou os olhos e viu uma fila de cardeais indo solenemente do Vaticano para a Praça de São Pedro. O alívio dos cardeais por saírem da zona de risco era rapidamente superado pelas expressões de espanto diante do espetáculo que se desenrolava fora da igreja. 

O alarido intensificou-se mais ainda. A cabeça do piloto latejava. Precisava de uma aspirina. Talvez de três.

Não gostava de voar depois de tomar remédios, mas a aspirina seria decerto menos debilitante do que aquela dor de cabeça furiosa. Pegou o estojo de primeiros-socorros, guardado junto com diversos mapas e manuais em uma caixa presa entre os dois bancos dianteiros. Quando tentou abri-lo, porém, estava trancado. Olhou em torno procurando a chave e finalmente desistiu. Aquela não era mesmo a sua noite de sorte. Voltou a massagear as têmporas.

 

CAPÍTULO 115 

Na Praça de São Pedro,o piloto da Guarda Suíça estava sentado na cabine do helicóptero do Vaticano estacionado e esfregava as têmporas. O caos

Dentro da basílica às escuras, Langdon, Vittoria e os dois guardas avançavam, ofegantes, para a saída principal. Sem conseguirem encontrar nada mais adequado, os quatro transportavam o camerlengo ferido em cima de uma mesa estreita, o corpo inerte equilibrado entre eles como em uma maca. Lá fora, o ruído distante da aglomeração humana tornou-se audível. O camerlengo encontrava-se à beira da inconsciência.

O tempo estava se esgotando.

 

CAPÍTULO 116

Eram 11h39 quando Langdon saiu com os outros da Basílica de

São Pedro. Uma claridade ofuscante atingiu-o. A iluminação da imprensa refletia-se na brancura do mármore como a luz do sol na tundra coberta de neve. Langdon apertou os olhos, procurando refugiar-se atrás das enormes colunas da fachada, mas a luz vinha de todas as direções. Na sua frente, uma coleção de enormes telas de vídeo destacava-se acima da multidão. 

Do alto da magnífica escadaria que se projetava para a praça, Langdon sentiu-se um ator relutante no maior palco do mundo. Em algum ponto além das luzes ofuscantes, ouviu um motor de helicóptero ligado e o rumor de milhares de vozes. À esquerda, a procissão dos cardeais continuava seguindo para a praça.

Todos pararam, visivelmente pesarosos com a cena que naquele momento se desenrolava nas escadarias. 

- Com cuidado, agora - recomendou Chartrand, concentrado, quando o grupo começou a descer as escadas a caminho do helicóptero. 

Langdon tinha a sensação de que se moviam debaixo d'água. Seus braços doíam com o peso do camerlengo e da mesa. Perguntava a si mesmo se poderia haver momento mais constrangedor do que aquele. E logo teve a resposta. Os dois repórteres da BBC, que deviam estar atravessando a praça para voltar à área da imprensa, tinham mudado de idéia ao ouvir o vozerio das pessoas. Glick e Macri vinham correndo na direção deles, a câmera de Macri funcionando. Lá vêm os abutres, pensou Langdon. 

- Alt! - gritou Chartrand. - Para trás! 

Mas os repórteres não se detiveram. Langdon calculou que as outras emissoras levariam uns seis segundos para também começar a transmitir aquela cena ao vivo. Estava errado. Levaram dois. Como se unidas por uma espécie de consciência universal, todas as telas na piazza interromperam a transmissão das imagens da bomba de antimatéria e das opiniões de seus especialistas em Vaticano e passaram a mostrar a mesma coisa - uma seqüência oscilante das escadarias da basílica. Agora, para qualquer ponto que se olhasse, via-se o corpo inerte do camerlengo em dose colorido. 

Isto não está certo!, pensou Langdon, com vontade de descer as escadas e intervir, mas sem poder. Não teria ajudado nada, porém. Se foi a algazarra do povo ou o ar frio da noite a causa de tudo o que se seguiu, Langdon jamais saberia, mas o fato é que, naquele momento, o inconcebível aconteceu. 

Como se o camerlengo acordasse de um pesadelo, seus olhos se abriram de repente e ele se sentou ao mesmo tempo. Tomados inteiramente de surpresa, Langdon e os outros atrapalharam-se com o deslocamento do peso. A parte da frente da mesa tombou e o camerlengo começou a deslizar. Eles tentaram recuperar o equilíbrio colocando a mesa no chão, mas já era tarde demais. O camerlengo escorregou para a frente. Inacreditavelmente, ele não caiu. Seus pés apoiaram-se no mármore, ele oscilou um pouco e depois se aprumou. Permaneceu parado um instante, meio desorientado, e então, antes que alguém pudesse impedir, precipitou-se escada abaixo, as passadas incertas, na direção de Macri. 

- Não! - Langdon gritou. 

Chartrand correu, tentando segurar o camerlengo, que, entretanto, se virou para ele dizendo com ar desvairado, enlouquecido: 

- Largue-me! 

Chartrand deu um pulo para trás. 

A cena foi de mal a pior. A batina rasgada do camerlengo, que Chartrand apenas puxara para cima de seu peito, abriu-se e começou a cair. Por um segundo, Langdon pensou que a roupa fosse agüentar, mas o segundo passou. A batina se rompeu, descendo pelos ombros dele até a cintura. 

A exclamação que veio da multidão pareceu percorrer o mundo inteiro e voltar em um instante. As câmeras rodaram, os flashes espocaram. Nas telas de televisão de todos os lugares projetou-se a imagem do peito do camerlengo marcado a fogo, ampliado e em horríveis detalhes. Algumas telas chegaram a congelar a imagem e girá-la 180 graus. 

A suprema vitória dos Iliuminati. 

Langdon viu a marca nas telas de televisão. Apesar de ser a impressão produzida pelo ferro quadrado que tivera nas mãos pouco antes, o símbolo agora

fazia sentido. Completo. O poder impressionante da marca atingiu-o com o impacto de um trem. 

Direção. Langdon esquecera a primeira regra da simbologia. Quando é que um quadrado não é um quadrado? Também esquecera que os ferros de marcar, assim como os carimbos de borracha, nunca se parecem com a marca que produzem. São invertidos. Langdon olhara para o negativo da marca! 

À medida que aumentava o caos na praça, uma velha citação dos Illuminati ecoou em sua mente com um novo significado: "Um diamante sem jaça, nascido dos antigos elementos com tamanha perfeição, que todos os que o viam ficavam extasiados."

Agora sabia que o mito era verdadeiro. 

Terra, Ar, Fogo, Água. 

O diamante Iliuminati.

 

CAPÍTULO 117

Robert Langdon não duvidava que o caos e a histeria que se alastraram pela Praça de São Pedro naquela ocasião tivessem suplantado tudo o que o Vaticano já vira. Nenhuma batalha, crucificação, peregrinação ou visão mística - nada na história de dois mil anos do santuário poderia se igualar às dimensões e à dramaticidade daquele momento. 

Enquanto a tragédia se desenrolava, Langdon sentia-se estranhamente distante, como se pairasse ali ao lado de Vittoria no alto da escadaria. A ação pareceu distender-se como uma deformação do tempo, toda aquela insanidade passando cada vez mais devagar.

O camerlengo marcado a fogo, delirando para o mundo inteiro ver. 

O diamante Iliuminati revelado em toda a sua diabólica engenhosidade. 

A contagem regressiva do relógio da antimatéria registrando os últimos 20 minutos da história do Vaticano. 

O drama, porém, estava apenas começando. 

O camerlengo, como se estivesse vivendo um transe pós-traumático, mostrou-se repentinamente cheio de vigor, possuído por demônios. Balbuciava, murmurava coisas para espíritos invisíveis, olhando para o céu e levantando os braços para Deus. 

- Fale! - gritou ele para os céus. - Sim, estou escutando! 

E Langdon compreendeu. Foi como se um peso caísse dentro dele. 

Vittoria também compreendera. Ficou pálida. 

- Ele está em estado de choque - disse. - Está tendo alucinações. Acha que está falando com Deus. 

Alguém tem de impedir que isso continue, pensou Langdon. Era um final lamentável, embaraçoso. Levem esse homem para um hospital! 

Ao pé da escadaria, Chinita Macri instalara-se em um ponto ideal e estava filmando tudo. As imagens apareciam instantaneamente nas enormes telas atrás dela na praça, como filmes intermináveis de cinema ao ar livre, mostrando a mesma tragédia angustiante. 

A cena toda tinha um tom épico. O camerlengo, a batina rasgada, a marca da queimadura no peito, parecia uma espécie de paladino ferido que tivesse ultrapassado todos os círculos do inferno por aquele momento de revelação. Ele bradava para os céus. 

- Ti sento, Dio! Estou ouvindo, Deus! 

Chartrand recuou, o rosto cheio de temor. 

Um silêncio espalhou-se pela multidão, instantâneo, absoluto. E foi como se o planeta inteiro mergulhasse no mesmo silêncio. Todas as pessoas ficaram rígidas diante de suas televisões, prendendo a respiração em conjunto. 

O camerlengo parou nas escadas, diante do mundo, e abriu os braços. Igual a Cristo, despido e machucado. Levantou os braços e, olhando para cima, exclamou: 

- Grazie! Grazie, Dio! 

Nenhum ruído rompeu o silêncio. 

- Grazie, Dio! - repetiu o camerlengo. Como a luz do sol passando através de nuvens de tempestade, uma expressão de alegria indizível de repente iluminou o rosto dele. - Grazie, Dio! 

Obrigado, Deus? Langdon assistia à cena, sem compreender. 

O camerlengo mostrava-se radiante agora, a misteriosa transformação já completa. Ainda olhava para o céu, sacudindo a cabeça, arrebatado. Gritou para o céu. 

- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!" 

Langdon conhecia a frase, mas não entendia por que o camerlengo a pronunciara. 

O camerlengo voltou-se para o povo e gritou outra vez para dentro da noite. 

- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!" - E, com os braços erguidos, riu alto, repetindo uma vez mais: - Grazie,

Dio! Grazie! 

O homem indiscutivelmente enlouquecera. 

O mundo assistia, hipnotizado. 

O climax de tudo aquilo, entretanto, foi algo que ninguém esperava. 

Com um exultante brado final, o camerlengo deu meia-volta e disparou para dentro da Basílica de São Pedro. 

 

CAPÍTULO 118

11h42.

Langdon nunca imaginou que fosse um dia fazer parte de uma comitiva frenética como a que se lançou atrás do camerlengo, muito menos que fosse ele a sair na frente. Era ele quem estava mais próximo da porta e acabou agindo por instinto. 

O camerlengo vai morrer aqui, pensou Langdon, correndo para o interior escuro da basílica. 

- Camerlengo! Pare! 

A escuridão com que Langdon se deparou era absoluta. Suas pupilas estavam contraídas por causa da claridade do lado de fora e seu campo de visão limitava- se a alguns metros. Ele parou. Em algum ponto lá dentro ouviu o farfalhar do tecido da batina do camerlengo, que corria às cegas para o fundo da basilica. 

Vittoria e os guardas vieram logo atrás. As lanternas foram acesas, mas as luzes já estavam fracas e não bastavam para alcançar as profundezas do templo. Os fachos de luz iam e vinham, mostrando apenas colunas e o chão vazio. Não se via o camerlengo em parte alguma. 

- Camerlengo! - gritou Chartrand, com medo na voz. - Espere! Signore! 

Um tumulto na porta atrás deles fez todos se virarem. O volumoso vulto de Chinita Macri assomou na entrada. Uma luz vermelha brilhando na câmera apoiada no ombro dela revelava que ainda estava transmitindo tudo. Glick vinha correndo atrás, microfone na mão, gritando-lhe que fosse mais devagar. 

Aqueles dois eram inacreditáveis. Não é hora disso, pensou Langdon. 

- Fora! - exclamou Chartrand. - Isto não é para os seus olhos! 

Mas Macri e Glick não pararam. 

- Chinita! - a voz de Glick soava amedrontada. - Isto é suicídio! Vou voltar! 

Macri não fez caso dele. Apertou um botão em sua câmera. O projetor em cima dela acendeu-se, ofuscando todos. 

Langdon protegeu o rosto com a mão e abaixou a cabeça, zonzo. Droga! Quando a levantou, porém, a igreja estava iluminada uns 30 metros em torno deles. 

A voz do camerlengo ecoou em algum ponto distante: 

- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!" 

Macri direcionou sua câmera para o som. Lá longe, na área cinzenta além do alcance da luz do projetor, viu-se ondular um tecido escuro, revelando uma forma conhecida que corria pela nave principal. 

Seguiu-se um instante fugaz de hesitação enquanto todos os olhos acompanhavam a imagem bizarra. Depois, rompeu-se o dique. Chartrand passou por Langdon e lançou-se no encalço do camerlengo. Langdon foi logo atrás. Depois, os guardas e Vittoria. 

Macri fechava a retaguarda iluminando o caminho de todos e transmitindo a caçada sepulcral para o mundo. Glick praguejava em voz alta enquanto a acompanhava a contragosto, assustado. 

A nave central da Basílica de São Pedro, calculara certa vez o tenente Chartrand, era mais comprida do que um campo de futebol. Naquela noite dava a impressão de ser o dobro. Correndo atrás do camerlengo, o guarda se perguntava para onde ele estaria indo. O homem estava em choque, seguramente, abalado pelo trauma fisico e por ter presenciado aquele massacre terrível no escritório do Papa. 

Mais além, depois do trecho iluminado pelo projetor da BBC, a voz do camerlengo soava jubilosa: 

- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!" 

Chartrand sabia que ele estava citando a Bíblia - Mateus, 16:18, se não se enganava. Sobre esta pedra edificarei minha igreja. Uma inspiração quase cruel de tão inadequada - a igreja em questão estava prestes a ser destruída. O camerlengo com certeza enlouquecera. 

Ou ele? 

Por um momento, a alma de Chartrand alçou vôo. Sempre tinha considerado as visões celestes e as divinas mensagens como ilusões, o produto de mentes excessivamente zelosas que ouviam o que desejavam ouvir. Deus não interagia diretamente! 

Logo em seguida, contudo, como se o próprio Espírito Santo descesse para persuadi-lo de Seu poder, Chartrand teve uma visão. 

Uns 50 metros à frente, no centro da igreja, um fantasma apareceu, um vulto diáfano, reluzente. A figura pálida era a do camerlengo seminu. O espectro parecia transparente, irradiando luz. Chartrand estacou, com um aperto no estômago. O camerlengo está brilhando! O corpo passou a reluzir mais ainda. Então, começou a afundar, mais e mais, até desaparecer, como por um passe de mágica, no chão escuro. 

Langdon também vira o fantasma. E, por uma fração de segundo, também pensou ter tido uma visão mágica. No entanto, ao passar pelo aturdido Chartrand em direção ao ponto onde o camerlengo desaparecera, percebeu o que havia acontecido. O camerlengo chegara ao Nicho dos Pálios - a câmara rebaixada e iluminada por 99 lamparinas de óleo. As lamparinas dentro do nicho iluminaram-no como um fantasma, de baixo para cima. Depois, quando o camerlengo desceu as escadas no meio da luz das lamparinas, pareceu desaparecer sob o chão. 

Langdon chegou ofegante à borda do recinto rebaixado. Olhou para baixo, para as escadas. No fundo, sob a luminosidade amarelada das lamparinas de óleo, viu o camerlengo atravessar a câmara de mármore rumo

às portas de vidro que levavam ao aposento onde fica a famosa arca dourada. 

O que ele está fazendo, perguntou-se Langdon. Será que acha que a arca dourada... 

O camerlengo escancarou as portas e entrou. Entretanto, não tomou conhecimento da arca dourada, passando direto por ela. Mais ou menos um metro e meio depois da arca, caiu de joelhos e começou a tentar levantar uma grade de ferro presa no chão. 

Deus do céu, não! E desceu depressa as escadas ao encontro dele. 

- Padre! Não!

Assim que Langdon abriu as portas de vidro e correu para o camerlengo, este suspendeu a grade de ferro, que, ao girar nas dobradiças, caiu, abrindo-se com um estrondo ensurdecedor e revelando uma abertura estreita com uma escada quase a prumo. Quando o camerlengo já se encaminhava para a abertura, Langdon segurou seus ombros nus e puxou-o de volta. A pele estava escorregadia de suor, mas Langdon conseguiu detê-lo. 

O camerlengo virou-se rapidamente para ele, espantado. 

- O que está fazendo! 

Langdon surpreendeu-se quando seus olhos se encontraram. O camerlengo não tinha mais aquela expressão de quem está em transe. Estava alerta, cheio de lúcida determinação. O aspecto da queimadura em seu peito era aflitivo. 

- Padre - instou Langdon com toda a calma possível -, o senhor não pode entrar aí. Temos de sair da basílica. 

- Meu filho - disse o camerlengo, a voz extraordinariamente sensata -, acabei de receber uma mensagem. Eu sei que... 

- Camerlengo! - Chartrand e os outros tinham chegado. Desceram correndo as escadas sob a luz da câmera de Macri. 

Quando Chartrand viu a grade aberta no chão, seu rosto se encheu de medo. Fez o sinal-da-cruz e lançou um olhar agradecido a Langdon por ter impedido o camerlengo. Langdon compreendeu. Lera o suficiente sobre a arquitetura do Vaticano para saber o que havia depois da grade. Era o local mais sagrado da cristandade. Terra Santa. Solo sagrado. Alguns chamavam-no de Necrópole. Outros, de Catacumbas.

Segundo os relatos dos poucos religiosos que ao longo do tempo haviam descido ali, a Necrópole era um labirinto escuro de criptas subterrâneas que poderia engolir um visitante se ele se perdesse. Não era um bom lugar para correr atrás do camerlengo. 

- Signore - suplicou Chartrand -, o senhor está em estado de choque. Temos de sair daqui. Não pode descer aí. É suicídio. 

O camerlengo pareceu estóico de repente. Estendeu o braço e pousou a mão com serenidade no braço de Chartrand. 

- Obrigado por sua preocupação e seus préstimos. Não sei como lhe dizer. Nem tenho como lhe dizer o quanto o compreendo. Mas tive uma revelação. Sei onde está a antimatéria. 

Todos olhavam para ele, estáticos. 

O camerlengo voltou-se para o grupo. 

- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja." Esta foi a mensagem. O significado é claro. 

Langdon ainda não Conseguia compreender a convicção do camerlengo de que falara com Deus e muito menos de que decifrara a mensagem divina. Sobre esta pedra edificarei minha igreja? As palavras que Jesus proferira ao escolher Pedro como seu primeiro apóstolo. O que tinham a ver com a situação? 

Macri aproximou-se para conseguir um ângulo melhor. Glick estava mudo, como quem tomou um grande susto. 

O camerlengo falava rapidamente, explicando. 

- Os Illuminati colocaram seu instrumento de destruição na própria pedra angular desta igreja. Nas suas fundações. - Fez um gesto para as escadas abaixo. 

- Na pedra sobre a qual esta igreja foi construída. E eu sei onde essa pedra está. Langdon achava que chegara a hora de subjugar o camerlengo e sair dali. 

Por mais que parecesse lúcido, o padre não estava dizendo coisa com coisa. Uma pedra? A pedra angular das fundações? Aqueles degraus não levavam às fundações, mas à Necrópole! 

- A citação é uma metáfora, senhor. Não existe uma pedra de verdade! 

O rosto do camerlengo ficou estranhamente triste. 

- Existe uma pedra, sim, filho - e apontou para a abertura. - Pietro é la pietra. 

Langdon congelou. Tudo ficou claro. 

A austera simplicidade daquilo deu-lhe arrepios. Ali, de pé com os outros, olhando para a longa escada que descia, percebeu que havia de fato uma pedra enterrada nas trevas sob aquela igreja. 

Pietro é la pietra. Pedro é a pedra. 

Pedro tinha uma fé tão sólida em Deus que Jesus o chamava de "a rocha" - o discípulo resoluto sobre cujos ombros Jesus construiria sua igreja. Naquele lugar exato, a Colina Vaticana, Pedro fora crucificado e enterrado. Os primeiros cristãos ergueram um pequeno santuário em cima de sua tumba. À medida que o cristianismo se espalhava, o santuário foi crescendo pouco a pouco, culminando com aquela colossal basílica. A fé católica fora construída, de modo bastante literal, em cima de São Pedro. Da rocha. Da pedra. 

- A antimatéria está na tumba de São Pedro - disse o camerlengo com voz cristalina. 

A despeito da suposta origem sobrenatural da informação, Langdon reconhecia que havia lógica nela.

Colocar a antimatéria na tumba de São Pedro agora parecia dolorosamente óbvio. Os Illuminati, num gesto de desafio simbólico, tinham escondido a antimatéria no âmago da cristandade, literal e figurativamente. A suprema infiltração. 

- E se vocês precisarem de provas concretas - disse o camerlengo, agora impaciente -, acabei de encontrar esta grade destrancada - e mostrou a grade aberta no chão. - Nunca fica destrancada. Alguém esteve aqui embaixo recentemente.

Todos olharam para dentro da abertura. 

No instante seguinte, com insuspeitada agilidade, o camerlengo pegou uma das lamparinas e desceu as escadas. 

 

CAPÍTULO 119

Os degraus de pedra seguiam em declive acentuado paradentro da terra. 

Vou morrer lá embaixo, pensou Vittoria, segurando o corrimão feito de corda pesada ao enveredar pela passagem estreita atrás dos outros. Embora Langdon tivesse feito um movimento para impedir que o camerlengo entrasse na abertura da escada, Chartrand interferira segurando Langdon. Pelo jeito, o jovem guarda convencera-se de que o camerlengo sabia o que estava fazendo. 

Depois de uma breve luta, Langdon soltara-se e seguira o camerlengo, com Chartrand em seus calcanhares. Instintivamente, Vittoria fora atrás de ambos. 

Agora precipitava-se por uma descida íngreme em que qualquer passo em falso poderia causar uma queda fatal. Bem abaixo, distinguia o brilho dourado da lamparina de óleo do camerlengo. Na retaguarda, ouvia os repórteres da BBC, que se apressavam para chegar perto deles. O refletor da câmera lançava sombras retorcidas nas profundezas, iluminando Chartrand e Langdon. Era inacreditável que o mundo estivesse testemunhando aquela loucura. Desligue a maldita câmera! Mas logo depois admitia que sem a luz da câmera nenhum deles saberia aonde estava indo. 

Enquanto aquela corrida louca prosseguia, os pensamentos de Vittoria agitavam-se, tempestuosos. O que o camerlengo poderia fazer ali embaixo? Mesmo que encontrasse a antimatéria? Não havia mais tempo! 

Vittoria surpreendeu-se ao descobrir sua intuição lhe dizendo que o camerlengo provavelmente tinha razão.

Colocar a antimatéria tão fundo dentro da terra era uma opção quase nobre e misericordiosa. Àquela profundidade - tal como no laboratório do CERN -, o aniquilamento da antimatéria seria parcialmente contido. Não haveria o deslocamento de ar quente nem os fragmentos voando para ferir as pessoas, só uma abertura bíblica da terra e uma gigantesca basílica desmoronando dentro de uma cratera. 

Teria sido este o único gesto de generosidade de Kohler? Poupar vidas?

Vittoria ainda não compreendia o envolvimento do diretor. Aceitava que tivesse ódio da religião, mas aquela conspiração apavorante não combinava com ele. Será que a aversão fora assim tão profunda? A ponto de destruir o Vaticano? De contratar um assassino? E planejar os assassinatos do pai dela, do Papa e de quatro cardeais? Parecia impensável. E como teria Kohler induzido toda aquela traição dentro dos muros do Vaticano? Rocher era o contato de Kohler, pensou Vittoria. Rocher era um Iliuminatus. Devia ter as chaves de todos os lugares - dos aposentos do Papa, do Passetto, da Necrópole, da tumba de São Pedro, de tudo. Ele próprio poderia ter colocado a antimatéria na  tumba de São Pedro - um local altamente restrito - e depois ter recomendado que seus guardas não perdessem tempo procurando nas áreas restritas do Vaticano. Rocher sabia que ninguém jamais encontraria a antimatéria. 

Mas Rocher não contava com a mensagem que o camerlengo recebera do alto. 

A mensagem. Vittoria ainda lutava para acreditar nela. Deus teria realmente se comunicado com o camerlengo? Em seu íntimo, Vittoria dizia que não e, todavia, a sua especialidade como cientista era a física do entanglement, ou emaranhamento - a da interconexão. Presenciava comunicações milagrosas todos os dias - ovos gêmeos de tartarugas marinhas separados e colocados em laboratórios a quilômetros de distância um do outro que eclodiam no mesmo instante, milhares de águas-vivas dentro d'água pulsando no mesmo ritmo como se fossem uma só. Existem linhas invisíveis de comunicação em toda parte, refletiu. 

Mas também entre Deus e o homem? 

Vittoria desejou que seu pai estivesse ali para dar-lhe fé. Ele certa vez explicara-lhe a divina comunicação em termos científicos e fizera com que acreditasse. Ainda lembrava que o vira rezando e perguntara: 

- Pai, por que se dá ao trabalho de rezar? Deus não pode responder. 

Leonardo Vetra interrompera suas meditações e olhara para ela com um sorriso paternal. 

- Minha filha cética. Quer dizer que você não acredita que Deus fale com o homem? Deixe que lhe explique com uma linguagem que você compreende. - Pegou um modelo do cérebro humano em uma prateleira e colocou na frente dela. - Como já deve saber, Vittoria, os seres humanos normalmente utilizam apenas uma parcela muito pequena de sua capacidade cerebral. Contudo, se forem expostos a situações emocionalmente intensas, como traumas físicos, alegria ou medo extremos, meditação profunda, de repente seus neurônios começam a se acelerar como loucos, o que resulta em um aumento enorme de clareza mental.

- E daí? - argumentou Vittoria. - Só porque alguém pensa com clareza não significa que fale com Deus. 

- Ah! - exclamou Vetra. - No entanto, soluções extraordinárias para problemas supostamente impossíveis costumam ocorrer nesses momentos de clareza. É o que os gurus chamam de consciência elevada. Os biólogos, de estados alterados. Os psicólogos, de superpercepção - e ele fez uma pausa. - E os cristãos, de preces atendidas. - Com um sorriso largo, acrescentou: - Às vezes, a revelação divina significa simplesmente adaptar seu cérebro para escutar o que seu coração já sabe. 

Agora, descendo as escadas sombrias, sentia que talvez seu pai tivesse razão. Seria tão difícil assim acreditar que o trauma sofrido pelo camerlengo tivesse posto a mente dele em um estado que lhe permitira "perceber" a localização da antimatéria? 

Cada um de nós é um Deus, dissera Buda. Cada um de nós sabe tudo. Precisamos apenas abrir nossas mentes para escutar nossa sabedoria. 

Naquele momento de clareza, descendo ao fundo da terra, Vittoria sentiu sua mente se abrir, sua sabedoria vir à tona.

Sabia agora sem sombra de dúvida quais eram as intenções do camerlengo. Aquela conscientização fez Vittoria sentir um medo tão grande como nunca experimentara antes. 

- Camerlengo, não! - gritou. - O senhor não está entendendo! - Vittoria lembrou da multidão em torno da Cidade do Vaticano e seu sangue gelou nas veias. - Se levar a antimatéria para cima, toda aquela gente vai morrer! 

Langdon descia pulando de três em três degraus, ganhando terreno. A passagem era apertada, mas ele não sentia claustrofobia. Seu antigo medo paralisante fora sobrepujado por um terror mais profundo. 

- Camerlengo! - Langdon ia diminuindo a distância que o separava do brilho da lamparina. - O senhor tende deixar a antimatéria onde está! Não há outro jeito! 

Ao mesmo tempo em que pronunciava aquelas palavras, Langdon custava a acreditar no que dizia. Não só aceitara como verdadeira a revelação divina ao camerlengo da localização da antimatéria, como estava argumentando a favor da destruição da Basílica de São Pedro - uma das maiores proezas arquitetônicas da Terra e de toda a arte que ela continha. 

Mas há pessoas do lado de fora, é o único jeito. 

Parecia uma cruel ironia que a única forma de salvar as pessoas fosse a destruição da igreja. Langdon imaginava que os Illuminati estivessem achando graça no simbolismo. 

O ar que subia do fundo do túnel era frio e úmido. Em algum ponto lá embaixo ficava a sagrada Necrópole, onde tinham sido enterrados São Pedro e inúmeros outros primeiros cristãos. Langdon sentiu um calafrio, esperando que aquela não fosse uma missão suicida. 

Subitamente, a lamparina do camerlengo parou. Langdon logo o alcançou. Os degraus terminavam abruptamente. Um portão de ferro batido com três caveiras em relevo fechava a base das escadas. O camerlengo empurrou o portão e o abriu. Langdon pulou na frente e o fechou, bloqueando o caminho do camerlengo. Os outros vieram descendo às carreiras, fazendo barulho, todos fantasmagóricos sob a luz branca do refletor da BBC, sobretudo Glick, cada vez mais lívido. 

Chartrand puxou Langdon. 

- Deixe o camerlengo passar! 

- Não! - exclamou Vittoria, ofegante. - Temos de abandonar este lugar agora mesmo! O senhor não pode tirar a antimatéria daqui! Se levá-la para cima, todos os que estão lá fora vão morrer! 

A voz do camerlengo estava extraordinariamente calma. 

- Todos vocês têm de ter confiança. Temos pouco tempo. 

- O senhor não entendeu - disse Vittoria. - Uma explosão ao nível do chão seria muito pior do que uma explosão aqui embaixo! 

O camerlengo olhou para ela, os olhos verdes resplandecentes e firmes. 

- Quem falou de explosão ao nível do chão? 

Vittoria espantou-se. 

- O senhor vai deixá-la aqui? 

A convicção do camerlengo era hipnótica. 

- Não haverá mais mortes esta noite. 

- Padre, mas... 

- Por favor, tenham um pouco de fé - a voz dele adquiriu um tom de quietude irresistível. - Não estou pedindo a ninguém que me acompanhe. Sintam-se todos livres para ir embora. Só peço que não interfiram com a vontade de

Deus. Deixem que eu faça o que me foi determinado fazer - o olhar do camerlengo ficou mais intenso. - Tenho de salvar esta igreja. E posso fazê-lo. Juro por minha própria vida. 

O silêncio que se seguiu teve o mesmo efeito de uma trovoada.

 

CAPÍTULO 120

11h51.

Necrópole significa literalmente "cidade dos mortos". 

Nada do que Robert Langdon lera sobre aquele lugar o havia preparado para o que encontrou. A colossal cavidade subterrânea estava repleta de mausoléus em ruínas, como pequenas casas dentro de uma caverna. O ar cheirava a ausência de vida. Uma canhestra rede de caminhos serpenteava entre os monumentos deteriorados, a maior parte deles feita de tijolos fragmentados e placas de mármore.

Semelhantes a colunas feitas de pó, inúmeros pilares de terra não escavada erguiam-se para apoiar um céu também de pó, que se estendia, pesado e baixo, sobre o pequeno povoado imerso na penumbra. 

Cidade dos mortos, repetiu Langdon, dividido entre o deslumbramento acadêmico e o medo puro e simples. Ele e os outros enveredaram correndo pelas trilhas sinuosas. Será que fiz a opção errada? 

Chartrand tinha sido o primeiro a sucumbir ao fascínio do camerlengo, escancarando o portão e declarando que confiava nele. Glick e Macri, por sugestão do camerlengo, tinham nobremente concordado em fornecer luz para a busca, embora, levando-se em conta os louvores que os esperavam caso saíssem vivos dali, suas motivações fossem no mínimo suspeitas. Vittoria fora quem mostrara menos entusiasmo e Langdon vira nos olhos dela uma cautela que se parecia um bocado com uma inquietante intuição feminina. 

Agora é tarde, pensou, enquanto ele e Vittoria corriam junto com os outros. Já estamos envolvidos. 

Vittoria ia calada, mas ele sabia que ambos pensavam a mesma coisa. Nove minutos não bastam para sair da Cidade do Vaticano se o camerlengo estiver errado. 

Rodeando os mausoléus, Langdon começou a sentir as pernas cansadas, notando com surpresa que o grupo esta'a subindo uma elevação acentuada. Ao perceber o motivo, sentiu arrepios. A topografia sob seus pés era a do tempo de Cristo. Estavam subindo a Colina Vaticana original! Já ouvira especialistas em

Vaticano afirmar que a tumba de São Pedro ficava quase no alto da Colina Vaticana e sempre se perguntara como eles poderiam saber. Agora compreendia. A maldita colina ainda existe! 

Tinha a impressão de estar percorrendo páginas de um livro de história. Em algum ponto adiante encontrava-se a tumba de São Pedro - a relíquia cristã por excelência. Era difícil conceber que a sepultura original tivesse sido assinalada de início apenas com um modesto santuário. Não mais. À medida que se espalhou a importância de São Pedro, novos santuários foram construídos por cima do antigo e agora a homenagem prolongava-se quase 135 metros para o alto, até o topo do domo de Michelangelo, cujo ápice fora posicionado diretamente acima da tumba original com uma insignificante margem de erro. 

A subida tortuosa continuava. Langdon olhou o relógio. Oito minutos. Começava a achar que ele e Vittoria em breve fariam companhia permanente- mente àqueles mortos. 

- Cuidado! - Glick gritou atrás deles. - Buracos de cobra! 

Langdon viu-os a tempo. Uma sucessão de pequenos orificios pontilhava o caminho à frente. Deu um pulo, esquivando-se. 

Vittoria pulou também, quase pisando nos buracos. Perguntou, inquieta, enquanto seguiam adiante: 

- Buracos de cobra? 

- Não exatamente - disse Langdon. - Tenho certeza de que não vai querer saber o que são. 

Os orificios eram tubos de libações. Os primeiros cristãos acreditavam na ressurreição da carne e usavam aqueles buracos para literalmente "alimentar os mortos", derramando leite e mel nas criptas sob o chão. 

O camerlengo sentiu-se fraco. 

Mas não se deteve, as pernas encontrando forças no cumprimento de seu dever a Deus e aos homens. Quase chegando. Sentia dores incríveis. A mente pode causar muito mais dor do que o corpo. Ainda

assim, sentia-se cansado. Sabia que dispunha de muito pouco tempo. 

- Vou salvar sua igreja, meu Pai. Juro. 

Apesar da luz da BBC atrás dele, pela qual era grato, o camerlengo levava sua lamparina de óleo com o braço levantado. Sou um farol na escuridão. Sou a luz. O óleo balançava conforme ele corria e, por um instante, receou que o líquido inflamável se derramasse e o queimasse. Sua carne já fora queimada demais por uma noite. 

Quando se aproximou do alto da colina, estava encharcado de suor, com a respiração difícil. Ao atingir o topo, entretanto, sentiu-se renascer. Parou cambaleante sobre o trecho plano de terra onde já estivera muitas vezes. O caminho terminava ali. A Necrópole chegava abruptamente ao final em uma parede de terra. Um marco diminuto trazia a inscrição: Mausoleum 5.

La tomba di San Pietro. 

Havia uma abertura na parede que lhe chegava à cintura. Sem nenhuma placa dourada. Sem ostentação. Somente uma simples cavidade na parede, além da qual havia uma pequena gruta e um sarcófago pobre, esfacelando-se. O camerlengo lançou um olhar lá dentro e deu um sorriso cansado. Ouvia os outros se aproximando. Pousou sua lamparina de óleo no chão e ajoelhou-se para rezar. 

Obrigado, meu Deus. Está quase acabando. 

Do lado de fora, na praça, rodeado pelos cardeais atônitos, o cardeal Mortati acompanhava pela tela grande o drama que se desenrolava na cripta. Não sabia mais em que acreditar. Será que o mundo inteiro vira o mesmo que ele? Deus teria mesmo falado com o camerlengo? Será que a antimatéria iria de fato aparecer na Basílica de São... 

- Olhem! - o povo prendeu a respiração. 

- Está lá! - todos apontavam para a tela. - É um milagre! 

Mortati olhou para cima. A câmera não estava firme, mas a imagem era bem clara. E inesquecível. 

Filmado de trás, o camerlengo estava rezando ajoelhado no chão de terra. Na frente dele, um buraco tosco cavado na parede. Dentro, em meio a pedregulhos e terra acumulados pelo tempo, havia um caixão de terracota. Mortati vira-o apenas uma vez na vida, mas sem dúvida sabia o que continha. 

San Pietro. 

Mortati não era ingênuo a ponto de achar que os gritos de alegria e espanto que ressoavam pela praça eram de exaltação por contemplarem uma das mais sagradas relíquias do cristianismo. As pessoas não estavam caindo de joelhos em orações e agradecimentos espontâneos por causa da tumba de São Pedro, mas por causa do objeto que se encontrava em cima da tumba. 

O tubo de antimatéria. Lá estava, no mesmo lugar onde estivera escondido o dia todo: na escuridão da Necrópole.

Sorrateiro. Incansável. Mortal. A revelação do camerlengo estava certa. 

Mortati olhava perplexo para o cilindro transparente. O glóbulo de líquido pairava no meio dele. A gruta que o continha refletiu a luz vermelha intermitente do contador marcando os cinco minutos finais das baterias. 

Também pousada dentro da tumba, a centímetros de distância do cilindro, encontrava-se a câmera sem fio da Guarda Suíça, que apontara para o tubo e transmitira sua imagem todo aquele tempo.

Mortati benzeu-se com o sinal-da-cruz, certo de que se tratava da imagem mais assustadora que vira em toda a sua vida. Um momento mais tarde, porém, percebeu que estava prestes a ficar ainda pior. 

O camerlengo levantou-se repentinamente. Agarrou o tubo de antimatéria  e virou-se para os outros, o rosto completamente em foco. Passou pelos outros  e começou a descer a Necrópole do mesmo modo como subira, correndo  ladeira abaixo. 

A câmera pegou Vittoria Vetra paralisada de terror. 

- Onde o senhor está indo? Camerlengo! O senhor não disse que... 

- Tenha fé! - exclamou ele, sempre correndo. 

Vittoria dirigiu-se a Langdon. 

- O que fazemos agora? 

Robert Langdon tentou barrar o caminho do camerlengo, mas Chartrand agora o protegia, aparentemente confiante na decisão dele. 

A seqüência que vinha da câmera da BBC ficou igual à de uma corrida de montanha-russa, sacudindo, subindo e descendo, fazendo voltas. Surgiam de vez em quando lampejos de confusão e pavor enquanto o cortejo excêntrico voltava aos tropeções para a entrada da Necrópole. 

Na praça, Mortati deixou escapar uma exclamação amedrontada. 

- Ele vai trazê-la aqui para cima? 

Nas televisões do mundo todo, em tamanho grande, o camerlengo saía a toda a velocidade da Necrópole segurando o recipiente da antimatéria nos braços estendidos. 

- Não haverá mais mortes esta noite! 

Mas o camerlengo estava enganado. 

 

CAPÍTULO 121

Exatamente às 11 h56 o camerlengo irrompeu pelas portas da Basílica de São Pedro para oespaço aberto. Vacilou à claridade estonteante dos holofotes, carregando a antimatéria nas duas mãosestendidas como se fosse uma oferenda divina. Seus olhos ardiam, mas ele via sua própria figura, semi-nua e ferida, em proprorções gigantescas nas telas das redes de emissoras espalhadas pela praça. O clamor que se ergueu da multidão na Praça de São Pedro foi algo que ele nunca tinha ouvido antes - choros, gritos, ladainhas, rezas, uma mistura de veneração e terror. 

Livrai-nos do mal, ele murmurou. 

Sentia-se completamente esgotado por sua corrida para sair da Necrópole. Aquela saída quase terminara em desastre. Robert Langdon e Vittoria Vetra tinham tentado interceptá-lo e levar o tubo de volta ao esconderijo subterrâneo, pretendendo depois correr para fora e se abrigar. Tolos, cegos! 

O camerlengo via agora, com assustadora clareza, que jamais teria vencido aquela corrida em qualquer outra noite. Naquela, porém, Deus estivera com ele mais uma vez. Robert Langdon quase o alcançara, mas fora impedido por Chartrand, sempre confiante e leal aos seus rogos para que tivessem fé. Os repórteres, evidentemente, estavam enfeitiçados demais e sobrecarregados com muito equipamento para interferirem. 

O Senhor trabalha de maneira misteriosa. 

O camerlengo ouvia os outros vindo atrás dele agora - via-os nas telas, aproximando-se. Reuniu o resto de suas forças e levantou a antimatéria acima da cabeça. Então, endireitou os ombros nus, num gesto de desafio à marca dos Illuminati em seu peito, e desceu depressa as escadas. 

Ainda haveria um ato final. 

Vou com Deus! Vou com Deus! 

Quatro minutos... 

Langdon pouco enxergou assim que saiu da basílica. Mais uma vez o mar de luzes agrediu suas retinas. Só vislumbrava a silhueta indistinta do camerlengo, direto à sua frente, descendo depressa as escadas. Por um instante, refulgente com seu halo de luzes, o camerlengo pareceu celestial, uma espécie de divindade moderna. A batina caíra-lhe até a cintura e envolvia-o como um sudário. O corpo tinha sido queimado e ferido pelos inimigos e mesmo assim ele resistia. Corria para as massas com o corpo ereto, exortando o mundo a ter fé, levando a arma de destruição. 

Langdon seguiu-o. O que ele está fazendo? Vai matar toda essa gente! 

- A obra de Satã - gritava o camerlengo - não tem lugar na Casa de Deus! 

E corria na direção das pessoas, agora apavoradas. 

- Padre! - chamava Langdon atrás dele. - Não há mais para onde ir! 

- Olhe para o céu! Esquecemos de olhar para o céu! 

Ao entender para onde o camerlengo se encaminhava, Langdon sentiu aquela magnífica verdade invadi-lo. Embora as luzes dos refletores não o deixassem enxergar, sabia que a salvação estava justamente acima deles. 

No céu da Itália repleto de estrelas. 

O helicóptero que o camerlengo solicitara para levá-lo ao hospital estava esperando ali perto, o piloto na cabine, as pás zumbindo em ponto morto. Correndo atrás do camerlengo, Langdon foi tomado por uma repentina e avassaladora alegria. 

Uma enxurrada de pensamentos passou-lhe rapidamente pela cabeça. 

Primeiro, veio a imagem do espaço aberto do mar Mediterrâneo. A que distância ficava dali? Oito quilômetros? Quinze? Sabia que a praia em Fiumicino ficava somente a uns sete minutos de trem. Mas de helicóptero, a mais de 400 quilômetros por hora, sem paradas... Se conseguissem levar o tubo bem longe acima do mar e jogá-lo do helicóptero... Havia outras opções ainda, lembrou, sentindo-se quase sem peso enquanto corria. La Cava Romana! As pedreiras de mármore ao norte da cidade ficavam a menos de cinco quilômetros de distância. Qual era o tamanho delas? Cinco quilômetros quadrados? Deviam estar desertas àquela hora! Jogar o tubo de antimatéria ali... 

- Para trás! - berrava o camerlengo. Seu peito doía enquanto ele corria. 

- Saiam daí! Agora! 

A Guarda Suíça postada em torno do helicóptero olhava boquiaberta para o camerlengo que se aproximava. 

- Saiam! - o padre gritava. 

Os guardas se afastaram. 

Com o mundo inteiro assistindo embasbacado, o camerlengo contornou o aparelho até a porta do piloto e a escancarou. 

- Saia daí, meu filho! Já! 

O piloto pulou fora. 

O camerlengo avaliou a altura do assento da cabine e percebeu que, exausto como estava, precisaria das duas mãos para subir. Virou-se para o piloto, trêmulo a seu lado, e pôs o cilindro de antimatéria nas mãos dele. 

- Segure isto. Me entregue quando eu estiver sentado. 

Ao subir, o camerlengo ouviu Langdon gritando com grande excitação chegando perto do helicóptero.

Agora você compreendeu, pensou o camerlengo. Agora você tem fé!

O camerlengo acomodou-se no assento, ajustou algumas alavancas que já conhecia e debruçou-se para pegar o cilindro. 

O piloto, porém, estava de mãos vazias. 

- Ele o pegou! - exclamou. 

O camerlengo sentiu um baque no coração. 

-Quem? 

O piloto apontou. 

-Ele! 

Robert Langdon surpreendeu-se ao verificar como o tubo era pesado. Correu para o outro lado do helicóptero e pulou para o compartimento traseiro onde ele e Vittoria tinham sentado poucas horas antes.

Deixou a porta aberta e afivelou o cinto de segurança. E gritou para o camerlengo no banco da frente. 

- Decole, padre! 

O camerlengo virou a cabeça para Langdon, o rosto branco de susto. 

- O que vai fazer? 

- O senhor pilota! Eu jogo o tubo! - vociferou Langdon. - Não há tempo! Faça o bendito helicóptero levantar vôo! 

O camerlengo pareceu momentaneamente paralisado, a iluminação forte penetrando na cabine e acentuando os vincos em seu rosto. 

- Posso fazer isto sozinho - murmurou. - Tenho de fazer isto sozinho. 

Langdon não lhe deu ouvidos. Decole!, ouviu-se gritar. Agora! Estou aqui para ajudar! Olhou para o cilindro e sua garganta se apertou ao ver os números. 

- Três minutos, padre! Três! 

O número fez o camerlengo voltar a si. Sem titubear, voltou-se para os controles. Com um rugido, o helicóptero levantou vôo. 

Através de uma nuvem de poeira, Langdon viu Vittoria chegar correndo. Seus olhos se encontraram e depois ela sumiu, como uma pedra que afunda na água.

 

CAPÍTULO 122

Dentro do aparelho, o barulho do motor e a ventania que entrava pela porta aberta assaltaram os sentidos de Langdon com um caos ensurdecedor. Firmou-se contra a força ampliada da gravidade à medida que o camerlengo acelerava o helicóptero para cima em linha reta. O brilho da Praça de São Pedro encolheu abaixo deles até se transformar em uma elipse luminosa, radiante no mar de luzes da cidade. 

O tubo de antimatéria era como um peso morto nas mãos de Langdon. Segurava-o com força, as palmas das mãos escorregadias de suor e sangue. Dentro do cilindro, o glóbulo de antimatéria oscilava calmamente, pulsando sob a luz vermelha do relógio em contagem regressiva. 

- Dois minutos! - gritou Langdon, tentando adivinhar onde o camerlengo pretendia jogar o tubo. 

As luzes da cidade lá embaixo espalhavam-se por todas as direções. Para oeste, ao longe, ele avistava o contorno cintilante da costa do Mediterrâneo - uma orla pontilhada de luminescências, além da qual estendia-se uma infindável e escura extensão de nada. O mar parecia mais longínquo agora do que Langdon imaginara. Além disso, a concentração de luzes na costa era um lembrete amargo de que, mesmo bem longe, uma explosão no mar poderia ter conseqüências devastadoras. E ele nem chegara a considerar os efeitos de uma onda gigantesca de dez quilotons atingindo o litoral. 

Ao olhar para a frente, através da janela da cabine de comando, ficou mais esperançoso. As sombras ondulantes dos contrafortes de Roma surgiam no meio da noite, salpicadas de luzes - as vilias dos muito ricos -; entretanto, a pouco mais de um quilômetro ao norte, as colinas ficavam escuras. Não havia nenhuma luz ali, só um enorme espaço negro. Nada mais. 

As pedreiras! Langdon pensou. La Cava Romana! 

Avaliando o trecho estéril de terreno, Langdon achou que seria grande o bastante. E parecia próximo, além disso. Mais próximo do que o mar. Animado, achou que era de fato para lá que o camerlengo planejava levar a antimatéria! O helicóptero estava apontado para aquela direção! As pedreiras! O estranho, porém, é que os motores faziam um ruído cada vez mais alto, o helicóptero movia-se no ar, mas as pedreiras não ficavam mais próximas. 

Desconcertado, lançou um olhar pela porta lateral para se localizar. O que viu transformou sua animação em pânico. Diretamente abaixo deles, distantes, brilhavam as fortes luzes da imprensa na Praça de São Pedro. 

Ainda estamos sobrevoando o Vaticano! 

- Camerlengo! - chamou ele, engasgado de aflição. - Vá em frente! Já subimos bastante! Temos de começar a seguir em frente! Não podemos jogar o tubo de volta na Cidade do Vaticano! 

O camerlengo não respondeu. Aparentemente, concentrava-se em pilotar o aparelho. 

- Temos menos de dois minutos! - gritou Langdon, levantando o cilindro. 

- Estou vendo daqui! La Cava Romana! Uns dois quilômetros ao norte! Não temos... 

- Não - disse o camerlengo -, é perigoso demais. Sinto muito. - O helicóptero continuou subindo, O camerlengo virou-se e deu um sorriso triste para Langdon. 

- Preferia que não tivesse vindo, meu amigo. Você fez o supremo sacrificio. 

Langdon olhou para o rosto cansado do camerlengo e então compreendeu. Seu sangue congelou. 

- Mas deve haver algum lugar para onde possamos ir! 

- Para cima - respondeu o camerlengo, a voz resignada. - É a única alternativa garantida. 

Langdon mal conseguia pensar. Interpretara de modo completamente errado o plano do camerlengo. Olhe para o céu! 

O céu, só agora entendia, era literalmente para onde estavam indo, O camerlengo nunca tivera a intenção de lançar fora a antimatéria. Estava simplesmente se afastando o máximo possível da Cidade do Vaticano.

Aquela era uma viagem sem volta.

 

CAPÍTULO 123

Na Praça de São Pedro, Vittoria olhava para cima. O helicóptero não passavade um pontinho agora que as luzes dos refletores não o alcançavam mais. Até o barulho dos rotores transformara-se em um zumbido distante. Parecia que o mundo inteiro se concentrava no alto, emudecido antecipadamente, os rostos de todos voltados para o céu - todas as pessoas, de todas as crenças, todos os corações batendo como se fossem um só.

As emoções de Vittoria eram um turbilhão de agonias. Quando o helicóptero desapareceu, ela lembrou o rosto de Robert, afastando-se dentro dele. O que será que ele pensou? Será que não compreendeu? 

Em torno da praça, as câmeras de televisão sondavam a escuridão, esperando. Milhares de rostos voltavam-se para o céu, unidos em uma contagem silenciosa. Todos os telões mostravam a mesma cena tranqüila: o céu romano pontilhado de estrelas brilhantes. Vittoria sentiu as lágrimas começarem a brotar. 

Atrás dela, na escadaria de mármore, 161 cardeais olhavam para cima em silenciosa reverência. Alguns tinham as mãos juntas em oração. A maioria permanecia imóvel, aturdida. Alguns choravam. Os segundos passavam. 

Nas casas das pessoas, em bares, escritórios, aeroportos, hospitais do mundo todo, os espíritos se uniam em testemunho universal. Homens e mulheres davam-se as mãos. Outros seguravam seus filhos. Como se o tempo pairasse no limbo, as almas suspensas em uníssono. 

Então, cruelmente, os sinos de São Pedro começaram a tocar. 

Vittoria deixou as lágrimas virem. 

E, com o mundo inteiro assistindo, o tempo se esgotou. 

O silêncio mortal do acontecimento foi seu aspecto mais aterrorizante. 

Muito acima do Vaticano, um ponto de luz apareceu no céu. Por um instante fugaz, um novo corpo celeste nasceu, uma centelha de luz pura e branca como nunca se vira. 

Depois, tudo começou. 

Um lampejo. O ponto luminoso encapelou-se, como se se alimentasse de si mesmo, desenrolando-se pelo céu em um raio que se dilatava, de um branco ofuscante. Projetou-se para todas as direções, acelerando com indizível rapidez, devorando sofregamente a escuridão. À medida que a esfera de luz crescia, também se intensificava, como o rebento de um demônio preparando-se para consumir o céu inteiro. Correu para baixo, na direção deles, ganhando velocidade. 

Estarrecidos, os milhares de rostos iluminados pela luz implacável arquejaram juntos, as mãos protegendo os olhos, todos deixaram escapar um grito estrangulado de medo. 

A luz se propagou em todas as direções e, súbito, deu-se o inimaginável. Como se fosse contido pela própria vontade de Deus, o raio crescente pareceu bater em uma parede, como se de alguma forma a explosão ficasse retida dentro de uma gigantesca esfera de vidro. A luz ricocheteou, aguçando-se, ondulando sobre si mesma. A onda parecia ter alcançado um diâmetro predeterminado e pairava ali. Durante aquele instante, uma perfeita e silenciosa esfera de luz brilhou sobre Roma. A noite virou dia. 

Então houve o impacto. 

A concussão foi profunda e surda - uma estrondosa onda de choque vinda de cima. Desceu sobre eles como a ira do inferno, sacudindo as fundações de granito da Cidade do Vaticano, golpeando o ar para fora dos pulmões das pessoas, fazendo-as cambalear. A reverberação percorreu a colunata, seguida por uma repentina lufada de ar quente. O vento se abateu sobre a praça, soltando um gemido sepulcral ao sibilar entre as colunas e fustigar as paredes. A poeira redemoinhava no ar, as pessoas se encolhiam, testemunhas do Armagedon. 

Em seguida, tão depressa quanto surgira, a esfera implodiu, sugando-se a si própria, comprimindo-se, retornando ao diminuto ponto de luz de onde viera.

 

CAPÍTULO124

Nunca antes tantos tinham ficado em silêncio ao mesmo tempo.

Os rostos na Praça de São Pedro, um a um, desviaram os olhos do céu escuro e voltaram-se para baixo, cada pessoa em seu momento particular de assombro. Os refletores da imprensa fizeram o mesmo, baixando seus focos luminosos para a terra, como em reverência pelas trevas que se instalavam acima deles. Parecia que o mundo inteiro curvava a cabeça junto. 

O cardeal Mortati ajoelhou-se para rezar e os outros cardeais acompanharam-no. A Guarda Suíça baixou suas longas lanças e imobilizou-se. Ninguém falava. Ninguém se mexia. Em toda parte, emoções espontâneas abalavam os corações. Consternação. Medo. Espanto. Crença. E um respeito temeroso pelo novo e impressionante poder cuja manifestação tinham acabado de presenciar. 

Vittoria Vetra permanecia, trêmula, ao pé das amplas escadarias da basílica. Ela fechou os olhos. Através da tempestade de emoções que percorriam seu corpo, uma única palavra soava triste como o dobrar de um sino distante.

Intacta. Cruel. Ela tentava afastá-la, mas a palavra voltava e voltava. A dor era grande demais. Vittoria procurou ocupar-se com as imagens que inflamavam as mentes das outras pessoas - o poder inquietante da antimatéria, a salvação do Vaticano, o camerlengo, gestos de bravura, milagres, desprendimento.

E a palavra ainda ecoava, soando através do tumulto com uma amargura pungente. 

Robert. 

Ele fora atrás dela no Castelo Sant'Angelo. 

Ele a salvara. 

E agora fora destruído pela criação dela. 

Enquanto rezava, o cardeal Mortati conjeturava se ele também ouviria a voz de Deus como o camerlengo tinha ouvido. Temos de acreditar em milagres para vivenciá-los? Mortati era um homem moderno que pertencia a uma antiga religião. Os milagres nunca tinham representado qualquer papel em sua crença.

Sua religião sem dúvida falava de milagres - chagas nas mãos, ascensão dos mortos, marcas em sudários - e, contudo, a mente racional de Mortati sempre explicara esses relatos como parte do mito. Eram simplesmente o resultado da maior fraqueza do homem - sua necessidade de provas. Os milagres eram nada mais que histórias a que nos apegávamos porque desejávamos que fossem verdade. 

No entanto... 

Será que sou tão moderno que não consigo aceitar o que acabei de ver com meus

próprios olhos? Foi um milagre, não foi? Sim! Deus, ao sussurrar umas poucas palavras no ouvido do camerlengo, interferiu e salvou Sua Igreja. Por que seria assim tão dificil de acreditar? O que teríamos a dizer sobre Deus se Deus não tivesse feito nada? Que o Todo-Poderoso não se importa conosco? Que Ele não tinha poder para impedir a desgraça? Um milagre era a única resposta possível! 

Mortati ajoelhou-se, reverente, e rezou pela alma do camerlengo. Deu graças pelo jovem camarista que, apesar da pouca idade, abrira os olhos de um velho para os milagres da fé inquestionável. 

Mortati jamais poderia suspeitar, porém, até que ponto sua fé seria testada. 

O silêncio na Praça de São Pedro foi quebrado por um leve ruído a princípio, que se transformou em murmúrio. E, então, repentinamente, em bramido. Sem aviso, a multidão gritava a uma só voz. 

- Olhem! Olhem! 

Mortati abriu os olhos e voltou-os para o povo. Todos apontavam para um mesmo lugar atrás dele, na fachada da Basílica de São Pedro. Estavam pálidos. Alguns caíram de joelhos. Alguns desmaiaram. Outros desataram a chorar. 

- Olhem! Olhem!

Mortati, atarantado, acompanhou com o olhar as mãos estendidas que mostravam o nível mais alto da basílica, o terraço no telhado onde imensas estátuas de Cristo e dos apóstolos velavam pelo povo. 

Ali, à direita de Jesus, com os braços estendidos para o mundo, estava o camerlengo Carlo Ventresca.

 

CAPÍTULO 125

Robert Langdon não estava mais caindo.

Acabara-se o pavor. E a dor. E o som sibilante do vento. Havia apenas o barulho suave da água, como se ele estivesse confortavelmente dormindo em uma praia. 

Num paradoxo de autoconsciência, Langdon pressentiu que aquilo era a morte. Ficou contente.

Deixou-se levar pelo entorpecimento que tomava conta dele. Deixou que o levasse para onde tivesse de ir. Sua dor e seu medo tinham sido anestesiados e ele não os queria de volta de jeito nenhum. A última lembrança que tinha só poderia ter sido conjurada no inferno. 

Leve-me. Por favor... 

Mas o barulho da água que o acalentava com uma longínqua sensação de paz também estava trazendo-o de volta. Tentava despertá-lo de um sonho. Não! Deixe-me! Ele não queria acordar.

Entrevia demônios que o aguardavam nas fronteiras de sua bem-aventurança, insistindo em despedaçar sua beatitude. Imagens imprecisas giravam. Vozes gritavam. O vento agitava tudo.

Não, por favor! Quanto mais lutava, mais a fúria se infiltrava através de sua consciência. 

Então, duramente, reviveu tudo... 

O helicóptero prosseguia em sua subida vertiginosa. Ele estava preso lá dentro. Pela porta aberta via as luzes de Roma distanciando-se mais a cada segundo. Seu instinto de sobrevivência dizia-lhe para lançar fora o cilindro imediatamente. Langdon sabia que levaria menos de 20 segundos para o tubo cair uns 800 metros. Só que cairia em uma cidade cheia de gente. 

Mais alto! Mais alto! 

Calculava a que altura estariam. Jatos pequenos costumavam voar a altitudes de cerca de seis mil metros. Aquele helicóptero já devia estar a uma boa parcela disto. Três mil metros?

Quatro? Ainda havia uma chance. Se calculasse a queda perfeitamente, o tubo cairia só parte do caminho para a terra e explodiria a uma distância segura acima do solo e longe do helicóptero. Langdon olhou para a cidade que se espalhava lá embaixo. 

- E se você calcular errado? - disse o camerlengo. 

Langdon espantou-se. O camerlengo nem estava olhando para ele e provavelmente lera seus pensamentos vendo seu reflexo esbranquiçado no pára-brisa. Estranhamente, o camerlengo não estava mais ocupado com os controles. Suas mãos nem seguravam mais o manete. O helicóptero devia estar funcionando com o piloto automático, subindo sempre. O camerlengo levantou a mão para o teto da cabine e tirou de um compartimento de cabos uma chave, presa ali fora da vista. 

Langdon viu desnorteado o camerlengo destrancar rapidamente a caixa metálica instalada entre os assentos. Tirou de lá um grande embrulho de náilon preto, que colocou no assento a seu lado. As idéias de Langdon se embaralharam. Os movimentos do camerlengo eram calmos e deliberados, como se ele já tivesse uma solução. 

- Passe o cilindro para mim - disse, com um tom de voz sereno. 

Langdon não sabia mais o que pensar. Entregou o cilindro. 

- Noventa segundos! 

O que o camerlengo fez com a antimatéria pegou Langdon completamente de surpresa. Segurando o cilindro com cuidado, ele o colocou dentro da caixa metálica. Depois, fechou a tampa pesada e trancou-a. 

- O que está fazendo?! - perguntou Langdon. 

- Afastando de nós a tentação - e jogou a chave pela janela aberta. 

A chave mergulhou na escuridão da noite e Langdon sentiu sua alma caindo junto. 

O camerlengo então pegou o embrulho de náilon e enfiou os braços nas alças. Fechou a presilha de uma outra tira que lhe envolveu o estômago e ajustou tudo como se fosse uma mochila. Finalmente, disse a um estupefato Robert Langdon: 

- Sinto muito. Não era para acontecer desta maneira. 

Em seguida, abriu a porta e atirou-se no espaço. 

A imagem queimava no inconsciente de Langdon e com ela vinha a dor. Dor de verdade. Dor física.

Atormentando-o. Penetrante. Ele suplicou que fosse levado para que a dor terminasse, mas, com o som da água mais alto em seus ouvidos, novas imagens relampejavam em sua cabeça. O inferno apenas começara. Via pedaços dele, cenas esparsas de puro pânico. Encontrava-se entre a morte e o pesadelo, implorando para ser libertado, mas as imagens ficavam mais nítidas em sua mente. 

O tubo de antimatéria estava trancado e inacessível. A contagem de seu relógio diminuía ao mesmo tempo que o helicóptero aumentava a altitude. Cinqüenta segundos. Mais alto. Mais alto. Langdon agitava-se loucamente dentro da cabine, tentando compreender o que acabara de presenciar. Quarenta e cinco segundos. Procurou outro pára-quedas debaixo dos assentos. Quarenta segundos. Não havia mais nenhum! Trinta e cinco segundos. Foi para a porta aberta do helicóptero, exposto ao vento furioso, e olhou para as luzes de Roma embaixo. Trinta e dois segundos. 

Então, tomou sua decisão. 

A incrível decisão. 

Sem pára-quedas, Robert Langdon pulou do helicóptero. À medida que a noite engolia seu corpo, tinha a impressão de que o helicóptero subia como um foguete acima dele, o som de seus rotores dissipando-se no ruído ensurdecedor de sua própria queda livre. 

Na descida a prumo para terra, Langdon sentiu algo que não vivenciava desde o tempo em que praticava salto de plataforma - a inexorável atração da gravidade durante um mergulho. Quanto mais rápido caía, mais a terra parecia puxá-lo, sugá-lo. Desta vez, porém, o mergulho não era de 15 metros dentro de uma piscina, mas de milhares de metros em uma cidade - uma extensão infindável de concreto e asfalto. 

Em meio ao vento e ao desespero, a voz de Kohler ecoava do túmulo com as palavras que ele dissera naquela mesma tarde junto ao túnel de queda livre do CERN: Um metro quadrado de algo que ofereça resistência ao ar retarda a queda de um corpo em quase 20 por cento. Vinte por cento, Langdon constatava, nem chegava perto do que seria necessário para alguém sobreviver a uma queda como aquela. De qualquer modo, mais por inércia do que por esperança, apertou nas mãos com força a única coisa que agarrara ao pular do helicóptero. Era uma lembrança esquisita, mas que por um instante fugaz dera-lhe alguma esperança. 

A lona protetora do pára-brisa estava jogada na traseira do aparelho. Era um retângulo que se amoldava à forma côncava do pára-brisa do helicóptero parecido com um pára-quedas que se possa imaginar. Não tinha arneses, só alças elásticas em cada extremidade para ajustá-lo à curvatura do vidro. Langdon pegara a lona, enfiara as mãos nas alças e saltara no vazio. 

Seu último grande gesto de desafio juvenil. 

Não tinha mais ilusões sobre a vida além daquele momento. 

Langdon caía como uma pedra. Pés primeiro. Braços esticados para cima. Mãos agarradas nas alças. A lona ondulava acima de sua cabeça com o formato de um cogumelo. O vento se deslocava com grande velocidade em torno dele. 

Durante a queda, deu-se a explosão no alto. Mais longe do que ele esperava. Quase instantaneamente a onda de choque atingiu-o. O impacto comprimiu seus pulmões. Um calor repentino espalhou-se pelo ar em torno dele. Langdon lutou para não largar a lona. Uma parede quente veio de cima para baixo. O topo da lona começou a arder, mas não se rompeu. 

Langdon descia a toda a velocidade, no limiar de um véu ondulante de luz, sentindo-se como um surfista que tenta sair da frente de uma onda de quilômetros de altura. De repente, porém, o calor retrocedeu e ele voltou a mergulhar na fria escuridão. 

Por um instante, teve esperança. No momento seguinte, entretanto, a esperança se foi, tal e qual a onda de calor. Apesar de seus braços estendidos garantirem-lhe que a lona desacelerava sua queda, o vento ainda passava por seu corpo com uma velocidade espantosa. Ele não tinha qualquer dúvida de que estivesse indo depressa demais para sobreviver à queda. Seria esmagado quando batesse no chão. 

Cálculos matemáticos embaralhavam-se em sua cabeça, ele estava entorpecido demais para organizá-los - um metro quadrado de algo que ofereça resistência ao ar... quase 20 por cento de redução de velocidade. O máximo que conseguia raciocinar é que a lona acima de sua cabeça era grande o bastante para retardálo mais do que 20 por cento. Infelizmente, pela velocidade do vento, ele deduzia que a lona não bastava, por melhor que fosse. Estava caindo depressa demais, não sobreviveria ao impacto no mar de concreto que o esperava. 

Lá embaixo, as luzes de Roma espalhavam-se para todos os lados. A cidade parecia um enorme céu estrelado no qual Langdon iria cair, só interrompido por uma faixa escura que dividia a cidade em dois - uma fita larga e não iluminada que serpenteava por entre os pontos de luz como uma cobra gorda.

Langdon olhou para os meandros escuros ao longe. 

E, como a crista de uma onda inesperada, surgiu outra vez uma esperança. 

Com um vigor quase maníaco, Langdon deu puxões fortes na lona com a mão direita. A lona agitou-se mais, ondulando, procurando o ponto à direita, de menor resistência.

Langdon sentiu-se deslizar de lado. Puxou de novo, com mais força, sem fazer caso da dor na palma de sua mão. A lona inflou-se e Langdon notou que seu corpo voava para o lado. Não muito. Mas um pouco!

Olhou de novo para baixo, para a sinuosa serpente negra. Ficava bem para a direita, mas ele ainda estava bastante alto. Será que tinha esperado demais? Puxou com toda a força que pôde e daí em diante aceitou que estava nas mãos de Deus. Concentrou-se na parte mais larga da serpente e, pela primeira vez em sua vida, rezou por um milagre. 

O resto não passou de uma lembrança nebulosa. 

A escuridão se fechando por cima dele, os reflexos do mergulhador voltando, o instintivo posicionamento da coluna e das pontas dos pés, os pulmões se inflando para proteger os órgãos vitais, as pernas flexionando-se para funcionar como um aríete e, finalmente, a gratidão pelo ondulante rio Tibre estar cheio e revolto, o que tornava suas águas espumantes e cheias de ar três vezes mais macias do que a água parada. 

Depois houve o impacto e as trevas. 

Foi o barulho trovejante da lona batendo que fez o grupo tirar os olhos da bola de fogo no alto. O céu de Roma estivera cheio de visões naquela noite: um helicóptero subindo em linha reta como um foguete, uma enorme explosão e agora aquele estranho objeto que mergulhara nas águas agitadas do rio Tibre, ao largo da pequenina ilha que havia no rio, a Isola Tiberina. 

Desde o tempo em que a ilha fora usada para manter doentes de quarentena durante a praga que assolou Roma em 1656, dizia-se que possuía propriedades curativas místicas. Por esta razão, mais tarde fora ali instalado o Hospital Tiberina de Roma. 

O corpo estava bastante machucado quando foi puxado para a margem. O homem ainda tinha uma leve pulsação, o que era espantoso, pensaram. Especularam se não teria sido a lendária reputação da Isola Tiberina para a cura que de alguma forma teria mantido o coração dele batendo. Minutos depois, quando o homem começou a tossir e a lentamente recuperar a consciência, o grupo concluiu que a ilha devia ser mesmo mágica.

 

CAPÍTULO 126

O cardeal Mortati sabia que não existiampalavras em nenhuma língua capazes de

acrescentar o que quer que fosse ao mistério daquele momento. O silêncio da visão no alto da Praça de São Pedro era mais eloqüente do que um coro de anjos. 

Quando levantou os olhos para o camerlengo Ventresca, Mortati sentiu um choque paralisante entre seu coração e sua mente. A visão parecia real, tangível. E, no entanto, como era possível?

Todos tinham visto o camerlengo entrar no helicóptero. Todos tinham testemunhado a presença da bola de luz no céu. E agora, sem que se soubesse como, o camerlengo estava no terraço da basílica. Transportado por anjos? Reencarnado pela mão de Deus? 

Isso é impossível... 

O coração de Mortati queria acreditar, mas sua mente exigia razões. E os cardeais que o cercavam, evidentemente vendo o mesmo que ele via, olhavam para cima imóveis, deslumbrados. 

Era o camerlengo. Sem sombra de dúvida. Mas ele parecia de certa forma diferente. Divino.

Como se tivesse sido purificado. Um espírito? Um homem? Sua carne branca brilhava à luz dos refletores com uma leveza incorpórea. 

Na praça havia choro, vivas, aplausos espontâneos. Um grupo de freiras caiu de joelhos e entoou saetas. Um ruído ritmado elevou-se da multidão. Súbito, a praça inteira repetia o nome do camerlengo. Os cardeais, alguns com lágrimas rolando nas faces, uniram-se ao povo. Mortati olhou em torno de si e tentou compreender. Isto realmente está acontecendo? 

O camerlengo Carlo Ventresca, do terraço no telhado da Basílica de São Pedro, contemplava os milhares de pessoas voltadas para ele. Estava acordado ou sonhando? Sentia-se transformado, sobrenatural. Pensava se teria sido seu corpo ou somente seu espírito que tinha descido flutuando do céu para a maciez e a penumbra dos Jardins do Vaticano, pousando como um anjo silencioso nos gramados desertos, seu pára-quedas negro protegido da loucura pela sombra imponente da Basílica de São Pedro. Pensava se teria sido seu corpo ou seu espírito que tivera forças para subir a antiga Escadaria dos Medalhões até o terraço onde agora se encontrava.

Sentia-se leve como um fantasma. Embora as pessoas lá embaixo estivessem entoando seu nome, sabia que não era ele quem estavam saudando. Saudavam por um mero impulso de alegria, a mesma alegria que ele sentia todos os dias de sua vida quando meditava sobre o Todo-Poderoso. Vivenciavam o que todos sempre tinham desejado: uma garantia do alto, uma comprovação do poder do Criador. 

O camerlengo Ventresca rezara toda a sua vida por esse momento e, ainda assim, nem ele conseguia acreditar inteiramente que Deus encontrara uma forma para torná-lo manifesto. Queria gritar para as pessoas. Seu Deus é um Deus vivo! Atentem para todos os milagres que as cercam! 

Permaneceu um pouco ali, entorpecido e ao mesmo tempo sentindo tudo com mais intensidade do que jamais sentira. Quando afinal a disposição de espírito o fez mover-se, curvou a cabeça e recuou, afastando-se da beirada do terraço. 

Sozinho, ajoelhou-se e rezou. 

 

CAPÍTULO 127

Imagens imprecisas rodeavam-no, indo e vindo. Os olhos de Langdon lentamente começaram a vê-las em foco. Suas pernas doíam e seu corpo parecia ter sido atropelado por um caminhão. Estava deitado de lado no chão. Algo cheirava mal, como bílis. Ainda ouvia o ruído incessante de água. Não lhe soava tranqüilo como antes. Havia outros sons - gente falando perto dele. Entreviu vultos brancos, embaçados. Todos estavam vestidos de branco? Langdon concluiu que devia estar em um hospício ou então no céu.

Pelo ardor em sua garganta, achou que não poderia ser o céu. 

- Ele parou de vomitar - disse um homem em italiano. - Virem-no. - A voz era firme e profissional. 

Langdon sentiu mãos virarem seu corpo devagar para deitá-lo de costas. Sua cabeça girava. Tentou sentar-se, mas as mãos delicadamente o forçaram a permanecer deitado. Seu corpo submeteu-se. Então, sentiu alguém examinando seus bolsos, tirando coisas de dentro deles. 

Depois, perdeu por completo os sentidos.

O doutor Jacobus não era um homem religioso. A medicina fizera-o deixar de ser já fazia muito tempo.

Contudo, os acontecimentos daquela noite na Cidade do Vaticano tinham posto em teste sua lógica sistemática. Agora caem corpos do céu? 

O doutor Jacobus tomou o pulso do homem sujo e molhado que tinham retirado do rio Tibre. O médico admitiu que o próprio Deus entregara em mãos e em segurança aquele homem. O impacto com a água pusera-o inconsciente e, se não fosse Jacobus e sua equipe estarem na beira do rio assistindo ao espetáculo no céu, essa alma caída não teria sido notada e com certeza teria se afogado. 

- É americano - disse uma enfermeira, revirando a carteira do homem depois de o terem levado para terra firme. 

Americano? Os romanos costumavam caçoar que havia tantos americanos em Roma que os hambúrgueres deveriam passar a ser a comida oficial italiana. Mas americanos caindo do céu?

Jacobus piscou a luz de uma pequena lanterna nos olhos do homem para testar a dilatação da pupila. 

- Senhor? Está ouvindo? Sabe onde está? 

O homem estava inconsciente outra vez. Jacobus não se surpreendeu. Vomitara muita água depois que Jacobus lhe aplicara a ressuscitação cardiorrespiratória. 

- Si chiama Robert Langdon - disse a enfermeira, lendo a carteira de motorista da vítima. 

Todo o grupo reunido no cais parou de repente. 

- Impossibile! - declarou Jacobus. 

Robert Langdon era o homem da televisão - o professor americano que vinha ajudando o Vaticano.

Jacobus vira o senhor Langdon, poucos minutos antes, entrar em um helicóptero na Praça de São Pedro e voar quilômetros pelo ar. Jacobus e os outros tinham saído correndo para o cais para ver a explosão da antimatéria - uma fantástica esfera de luz, diferente de tudo o que já tinham visto. Como poderia ser a mesma pessoa? 

- É ele mesmo! - exclamou a enfermeira, afastando-lhe da testa o cabelo molhado. - Estou reconhecendo o casaco de lã dele! 

Subitamente, alguém gritou da entrada do hospital. Era uma das pacientes. A mulher berrava, parecia enlouquecida, segurando seu rádio portátil no braço estendido para o alto e dando graças a Deus. Dizia que o camerlengo Ventresca acabara de aparecer miraculosamente no telhado do Vaticano. 

O doutor Jacobus decidiu que, quando seu plantão terminasse, às 8h, ele iria direto para a igreja.

As luzes acima da cabeça de Langdon eram mais brilhantes agora, frias. Ele se encontrava em uma espécie de mesa de exame. Sentia o cheiro de desinfetantes, de estranhos produtos químicos. Alguém lhe dera uma injeção e tinham tirado suas roupas. 

Decididamente, não são ciganos, concluiu ele em seu delírio semiconsciente. Extraterrenos, talvez?

Já ouvira falar de coisas assim. Felizmente, esses seres não lhe fariam mal. Só queriam os seus... 

- De jeito nenhum! - Langdon sentou-se abruptamente, abrindo os olhos. 

- Attento! - gritou uma das criaturas, segurando-o. Usava um pequeno crachá onde estava escrito "Doutor Jacobus" Parecia bastante humano. 

Langdon gaguejou: 

- Eu... pensei... 

- O senhor está em um hospital. 

A névoa começou a se dissipar. Langdon sentiu uma onda de alívio. Detestava hospitais, mas decerto menos do que extraterrenos prestes a extrair seus testículos. 

- Meu nome é doutor Jacobus - disse o homem. Explicou o que acabara de acontecer. - Tem muita sorte por estar vivo. 

Langdon não se sentia muito sortudo. Mal concatenava suas próprias lembranças - o helicóptero, o camerlengo. Seu corpo doía todo. Deram-lhe um pouco de água e fizeram um curativo na palma de sua mão. 

- Onde está a minha roupa? - perguntou. Estava vestido com uma túnica de papel. 

Uma das enfermeiras mostrou-lhe um amontoado de pedaços rasgados de tecido cáqui e lã tweed pingando de cima de um balcão. 

- Estavam encharcadas. Tivemos de cortar tudo para tirá-las do senhor. 

Langdon olhou para seu tweed Harris em frangalhos e franziu a testa. 

- O senhor tinha uma porção de lenços de papel em seu bolso - disse a enfermeira. 

Só então Langdon notou os fragmentos de pergaminho espalhados pelo forro do paletó. O fólio do Diagramma de Galileu. O último exemplar do mundo se dissolvera. Ele estava abalado demais para saber como reagir. Ficou parado, apenas, olhando fixo para o balcão.  

- Conseguimos salvar seus objetos pessoais - ela lhe estendeu uma caixa plástica. - Carteira, câmera portátil de vídeo e caneta. Sequei a câmera o melhor que pude.

- Não tenho nenhuma câmera de vídeo. 

A enfermeira levantou as sobrancelhas e deu-lhe a caixa. Langdon olhou para os objetos que continha.

Junto com sua carteira e sua caneta havia uma pequena câmera de vídeo Sony. Agora se lembrava. Kohler entregara-a a ele, pedindo que a mostrasse à imprensa. 

- Nós a encontramos em seu bolso. Acho que o senhor vai precisar de uma nova. - A enfermeira abriu a tela de duas polegadas na parte de trás da câmera. 

- A tela está rachada. - Então, seu rosto se animou. - Mas o som ainda funciona! Mais ou menos. - Encostou a máquina no ouvido. - Fica repetindo a mesma coisa sem parar. - Escutou mais um pouco e depois ficou séria, entregando-a a Langdon. - São dois sujeitos discutindo, acho.  Intrigado, Langdon pegou a câmera e aproximou-a do ouvido. As vozes soavam anasaladas, metálicas, mas eram discerníveis. Uma, perto. A outra, longe. Langdon reconheceu ambas. 

Sentado ali, vestido com a túnica descartável do hospital, Langdon escutou espantado toda a conversa.

Apesar de não poder ver o que estava acontecendo, deu graças por ter sido poupado da parte visual ao ouvir o final chocante. 

Meu Deus! 

Com a conversa recomeçando do início, Langdon abaixou a câmera de seu ouvido e continuou sentado, impressionado, estupefato. A antimatéria, o helicóptero... A mente de Langdon começou a funcionar. 

Então, isso quer dizer que... 

Teve vontade de vomitar outra vez. Agitado, com uma raiva crescente, ele desceu da mesa e ficou de pé, as pernas bambas. 

- Senhor Langdon! - disse o médico, tentando impedi-lo. 

- Preciso de umas roupas - pediu Langdon, sentindo a corrente de ar em seu traseiro por causa da túnica aberta atrás. 

- Mas o senhor precisa descansar. 

- Estou saindo. Agora. Preciso de roupa. 

- Mas o senhor... 

- Agora! 

Todos se entreolharam, desconcertados. 

- Não temos roupas - disse o médico. - Talvez amanhã algum amigo seu possa trazê-las para o senhor. 

Langdon respirou fundo com uma expressão paciente e encarou o médico. 

- Doutor Jacobus, vou sair por aquela porta agora mesmo. Preciso de roupas. Vou para a Cidade do Vaticano. Ninguém pode ir para o Vaticano de bunda de fora. Deu para entender?

O doutor Jacobus engoliu em seco. 

- Dêem-lhe alguma coisa para vestir.

Quando Langdon saiu mancando do Hospital Tiberina, sentia-se como um lobinho, um escoteiro-mirim, só que crescido. Usava um macacão azul de paramédico com zíper na frente, enfeitado com distintivos de pano que aparentemente indicavam as numerosas qualificações do dono. 

A mulher que o acompanhava era robusta e usava um macacão igual ao dele. O médico garantira a Langdon que ela o levaria ao Vaticano em tempo recorde. 

- Molto traffico - disse Langdon, lembrando-lhe que a área em torno do Vaticano estaria congestionada por carros e pessoas. 

A mulher não se mostrou preocupada. Apontou orgulhosa para um dos seus distintivos. 

- Sono conducente di ambulanza. 

- Ambulanza? - Então estava explicado. Langdon achou que um passeio de ambulância viria a calhar. 

A mulher conduziu-o para a parte lateral do edificio. Em um aforamento de terra acima da água havia um deque de cimento onde o veículo a esperava. Quando Langdon o viu, parou. Era um velho helicóptero de transporte médico. Na carcaça estava escrito Aero-Ambulanza. 

Ele baixou a cabeça. 

A mulher sorriu. 

- Voar Cidade do Vaticano. Muito rápido. 

 

CAPÍTULO 128

O Colégio dos Cardeais estava em ebulição ao voltar para a Capela Sistina. Mortati, ao contrário, sentia crescer dentro de si uma confusão tão grande que quase poderia levantá-lo do chão e carregá-lo. Acreditava nos antigos milagres das Escrituras e, todavia, o que acabara de testemunhar era algo que não conseguia compreender. Depois de uma vida inteira de devoção, 79 anos, Mortati sabia que tais acontecimentos deveriam despertar nele uma piedosa exuberância, uma fé ardorosa e viva. No entanto, só sentia um constrangimento espectral e cada vez maior. Havia algo errado. 

- Signore Mortati! - gritou um guarda suíço aproximando-se às pressas. 

- Fomos ao telhado da basílica como o senhor pediu. O camerlengo é de carne  e osso! É um homem de verdade! Não é um espírito! É exatamente a pessoa  que conhecemos! 

- Ele falou com vocês? 

- Está ajoelhado rezando em silêncio! Ficamos com medo de tocar nele! 

Mortati estava perdido. 

- Digam a ele que seus cardeais estão esperando. 

- Signore, por ele ser mesmo um homem... - o guarda hesitou. 

- O que é? 

- O peito dele... ele está queimado. Podemos fazer um curativo na ferida? Ele deve estar sentindo dor. 

Mortati refletiu. Nada em todo o seu tempo de serviço à Igreja o preparara para aquela situação. 

- Ele é um homem, portanto tratem dele como se trata de um homem. Lavem-no. Cuidem de suas feridas.

Dêem-lhe roupas limpas. Esperamos por ele na Capela Sistina. 

O guarda saiu correndo. 

Mortati seguiu para a capela. O resto dos cardeais já se encontrava lá dentro. Caminhando pelo corredor, viu Vittoria Vetra sozinha, com ar abatido, sentada em um banco ao pé da Escadaria Real. A dor e a solidão da perda eram visíveis no rosto dela e Mortati teve vontade de ir ao seu encontro, mas sabia que isso teria de esperar. Tinha trabalho a fazer, embora não tivesse a menor idéia de qual pudesse ser esse trabalho. 

Mortati entrou na capela. Havia uma excitação ruidosa no ambiente. Fechou a porta. Que Deus me ajude. 

A Aero-Ambulanza de dois rotores do Hospital Tiberina contornava a Cidade do Vaticano por trás, e Langdon cerrava os dentes, jurando por Deus que aquela seria a última viagem de helicóptero de sua vida. 

Depois de convencer a mulher que fazia as vezes de piloto de que as regras que regiam o espaço aéreo do Vaticano eram o que menos preocupava a cidade do Papa naquele momento, ele a guiou, sem serem vistos, por cima do muro de trás, até a aterrissagem no heliporto do Vaticano.

- Grazie - disse ele, descendo penosamente. Ela lhe soprou um beijo e decolou rápido, desaparecendo dentro da noite na direção de onde viera. 

Langdon respirou fundo, tentou clarear a mente, procurando entender o que estava prestes a fazer. Com a câmera na mão, embarcou no mesmo carrinho de golfe em que andara mais cedo naquele mesmo dia. Não tinha sido recarregado e o medidor indicava que a bateria estava no final. Ele dirigiu com os faróis apagados para economizar energia. 

Também preferia que ninguém o visse chegar. 

Nos fundos da Capela Sistina, o cardeal Mortati parou atordoado diante do pandemônio que se formara. 

- Foi um milagre! - um dos cardeais gritava. - Foi obra de Deus! 

- Sim! - exclamavam outros. - Deus manifestou sua vontade! 

- O camerlengo será nosso Papa! - gritou outro. - Ele não é cardeal, mas Deus enviou um sinal milagroso! 

- Sim! - concordou alguém. - As leis do conclave são leis do homem. A vontade de Deus está diante de nós! Solicito uma eleição imediatamente! 

- Uma eleição? - perguntou Mortati, caminhando na direção deles. - Acho que esta é minha função. 

Todos se viraram. 

Mortati notou que os cardeais o examinavam. Pareciam distantes, desnorteados, ofendidos com a sua sobriedade. Mortati desejava muito que seu coração também fosse arrebatado por aquela miraculosa exaltação que via nos rostos que o cercavam. Mas não conseguia. Sentia uma dor inexplicável em seu íntimo, uma dolorosa tristeza que não sabia definir. Havia jurado dirigir aqueles procedimentos com pureza de alma e sua hesitação era algo que não podia negar. 

- Meus amigos - disse Mortati, subindo ao altar. Quase não reconhecia a própria voz. - Acho que até o fim dos meus dias vou debater comigo mesmo o significado daquilo que testemunhamos hoje. E, no entanto, o que sugerem com relação ao camerlengo não pode ser de jeito algum a vontade de Deus. 

Fez-se silêncio na capela. 

- Como pode dizer isso? - perguntou afinal um dos cardeais. - O camerlengo salvou a Igreja. Deus falou diretamente ao camerlengo! O homem sobreviveu à própria morte! De que outro sinal precisamos mais? 

- O camerlengo virá ao nosso encontro aqui - disse Mortati. - Vamos esperar. Vamos escutá-lo antes de fazer uma eleição. Pode haver uma explicação.

- Uma explicação? 

- Como seu Grande Eleitor, jurei preservar as leis do conclave. Todos sem dúvida estão cientes de que, pela Santa Lei, o camerlengo é inelegível para o papado. Ele não é cardeal. É um padre, um camarista. Há também a questão de sua idade inadequada. - Mortati notou olhares mais duros. - Ao consentir que se realizasse uma eleição, eu estaria permitindo que os senhores aprovassem um homem que a Lei Vaticana considera inelegível. Estaria pedindo a cada um que quebrasse um juramento sagrado. 

- Mas o que aconteceu aqui esta noite - alguém disse, titubeante - certamente transcende as nossas leis! 

- Será mesmo? - Mortati replicou, cheio de autoridade, sem ao menos saber de onde vinham suas palavras.

- Será que é a vontade de Deus que deixemos de lado as regras da Igreja? Será que Deus quer que abandonemos a razão e nos entreguemos ao delírio? 

- Mas o senhor não viu o que nós vimos? - um outro o desafiou, irritado. 

- Como pode se atrever a questionar um poder como aquele? 

A voz de Mortati projetou-se então com uma ressonância que ele jamais conhecera. 

- Não estou questionando o poder de Deus! Foi Deus quem nos concedeu razão e circunspecção! É a Deus que servimos exercendo a prudência! 

 

CAPÍTULO 129 

Sentada em um banco junto à base da Escadaria Real, no corredor do lado de fora da Capela Sistina, Vittoria Vetra parecia entorpecida. Quando avistou a figura que entrava pela porta dos fundos, pensou que estivesse vendo outro espírito. Ele estava enfaixado, mancando e vestido com uma espécie de uniforme médico. 

Ela se levantou, incapaz de acreditar na visão. 

- Ro... bert? 

Ele nem respondeu. Caminhou direto para ela e a envolveu em seus braços. Apertou seus lábios contra os dela em um beijo impulsivo, longamente desejado, cheio de gratidão. 

Vittoria sentiu as lágrimas chegando. 

- Oh, Deus.., oh, obrigada, meu Deus...

Ele a beijou de novo, um beijo mais apaixonado, e ela comprimiu seu corpo contra o dele, perdendo-se no abraço. Seus corpos se uniram como se já se conhecessem há anos. Ela esqueceu o medo e a dor e fechou os olhos, a alma leve, naquele momento perfeito. 

- É a vontade de Deus! - alguém gritava, a voz ecoando na Capela Sistina. 

- Quem mais além do escolhido poderia ter sobrevivido àquela explosão diabólica? 

- Eu - uma voz reverberou do fundo da capela. 

Mortati e os outros viraram-se espantados para a figura maltratada que se aproximava pelo centro da nave. 

- Senhor Langdon?! 

Sem uma palavra, Langdon encaminhou-se devagar para a frente da capela. Vittoria Vetra entrou também.

Logo depois, dois guardas surgiram apressados empurrando um carrinho com uma grande televisão em cima. Langdon esperou enquanto eles ligavam o aparelho, a tela voltada para os cardeais. Então, Langdon fez sinal para que os guardas se retirassem. Eles o fizeram, fechando as portas atrás de si.  Agora era entre Langdon, Vittoria e os cardeais. Langdon conectou a câmera Sony à televisão e apertou o botão play. 

A tela se acendeu. 

A cena que se materializou diante dos cardeais passava-se no escritório do Papa. O vídeo fora filmado de forma desajeitada, como se a câmera estivesse escondida. Descentrado na tela, o camerlengo aparecia meio na penumbra, em frente à lareira acesa. Embora parecesse estar falando diretamente para a câmera, logo ficou evidente que estava falando com alguém - a pessoa que filmava. Langdon disse aos cardeais que o vídeo fora filmado por Maximilian Kohler, o diretor do CERN. Apenas uma hora antes, Kohler filmara secretamente seu encontro com o camerlengo usando a minúscula câmera de vídeo que trazia disfarçada sob um dos braços de sua cadeira de rodas. 

Mortati e os cardeais assistiam a tudo perplexos. A conversa já começara, mas Langdon não se deu ao trabalho de rebobinar a fita. O que ele queria que os cardeais vissem ainda estava por vir. 

- Leonardo Vetra mantinha um diário? - dizia o camerlengo. - Imagino que isso seja uma boa notícia para o CERN. Se os diários contêm seus processos para criar antimatéria... 

- Não contêm - disse Kohler. - Vai ser um alívio para o senhor saber que esses processos morreram com Leonardo. No entanto, os diários falam de um assunto diferente. Do senhor. 

O camerlengo pareceu perturbar-se. 

- Não compreendo. 

- Descrevem um encontro que Leonardo teve no mês passado. Com o senhor. 

O camerlengo hesitou, depois olhou para a porta. 

- Rocher não deveria ter autorizado sua entrada sem me consultar. Como chegou aqui? 

- Rocher sabe da verdade. Telefonei antes de vir e contei a ele o que o senhor fez. 

- O que eu fiz? Seja qual for a história que contou a ele, Rocher é da Guarda Suíça e fiel demais a esta Igreja, não acreditaria mais em um cientista amargo do que em seu camerlengo. 

- Na realidade, ele é fiel demais para não acreditar. É tão fiel que, apesar da prova de que um dos seus leais guardas traiu a Igreja, ele se recusou a aceitar o fato. O dia inteiro vem procurando outra explicação. 

- Que o senhor deu a ele. 

- A verdade. Por mais chocante que fosse. 

- Se Rocher tivesse acreditado no senhor, teria me prendido. 

- Não. Eu não deixei. Ofereci a ele o meu silêncio em troca deste encontro. 

O camerlengo deu uma risada estranha. 

- O senhor pretende chantagear a Igreja com uma história em que ninguém vai acreditar? 

- Não preciso fazer chantagem nenhuma. Quero simplesmente ouvir a verdade de sua boca. Leonardo Vetra era meu amigo. 

O camerlengo nada disse. Limitou-se a olhar para Kohler. 

- Vejamos, então - começou Kohler, áspero. - Há cerca de um mês, Leonardo Vetra entrou em contato com o senhor solicitando uma audiência urgente com o Papa. Uma audiência que o senhor concedeu porque o Papa admirava o trabalho de Leonardo e porque Leonardo disse que era uma emergência. 

O camerlengo voltou-se para o fogo da lareira. Não disse nada. 

- Leonardo veio ao Vaticano em absoluto segredo. Estava traindo a confiança de sua filha ao vir aqui, um fato que o perturbava grandemente, mas ele achava que não tinha opção. Suas pesquisas haviam criado um profundo conflito em seu íntimo e ele sentia necessidade de orientação espiritual da Igreja. Em um encontro particular, contou ao Papa que havia feito uma descoberta científica com profundas implicações religiosas. Havia provado que o Gênese era fisicamente possível e que intensas fontes de energia, que Vetra chamava de Deus, poderiam reproduzir o momento da Criação. 

Silêncio. 

- O Papa ficou entusiasmado - Kohler continuou. - Queria que Leonardo divulgasse a experiência. Sua Santidade achava que essa descoberta poderia começar a aproximar a ciência da religião, um dos sonhos da vida do Papa. Então, Leonardo explicou ao senhor o aspecto negativo da descoberta, o motivo pelo qual ele solicitara a orientação da Igreja. Parecia que sua experiência da Criação, exatamente como a Bíblia relata, produzia tudo aos pares. Opostos. Luz e trevas. Além do processo de criação da matéria, Vetra descobriu o da criação da antimatéria. Devo prosseguir? 

O camerlengo manteve-se calado. Inclinou-se para atiçar as brasas da lareira. 

- Depois que Leonardo Vetra veio aqui - disse Kohler -, o senhor foi ao CERN ver o trabalho dele. Os diários de Leonardo dizem que o senhor fez uma visita pessoal ao laboratório dele. 

O camerlengo levantou a cabeça. 

Kohler foi em frente. 

- O Papa não poderia viajar sem atrair a atenção da mídia, por isso mandou o senhor. Leonardo levou-o para uma excursão secreta pelo laboratório. Fez uma demonstração de aniquilamento de antimatéria, o Big-Bang, o poder da Criação. Também lhe mostrou um grande espécime que mantinha escondido e que provava que seu novo método poderia produzir antimatéria em larga escala. O senhor ficou assombrado.

Voltou para a Cidade do Vaticano para contar ao Papa o que tinha presenciado. 

O camerlengo suspirou. 

- E é isso que o incomoda? Que eu tenha respeitado a confiança de Leonardo ao fingir perante o mundo esta noite que nada sabia sobre a antimatéria? 

- Não! O que me incomoda é que Leonardo Vetra praticamente provou a existência de seu Deus e o senhor fez com que ele fosse assassinado! 

O camerlengo voltou-se para ele afinal, o rosto impenetrável. 

O único som era o estalar do fogo. 

Súbito, a câmera balançou e o braço de Kohler apareceu no enquadramento. Ele se curvou para a frente, tentando alcançar algo preso debaixo de sua cadeira de rodas. Quando endireitou o corpo, segurava uma pistola. O ângulo da câmera era arrepiante: visto por trás, o braço estendido apontava o revólver direto para o camerlengo. 

Kohler disse:

- Confesse os seus pecados, padre. Agora. 

O camerlengo parecia assustado. 

- Não vai sair vivo daqui. 

- A morte seria um alívio bem-vindo para o sofrimento pelo qual sua religião me faz passar desde que eu era criança - Kohler segurava o revólver com as duas mãos agora. - Estou lhe dando uma chance. Confesse os seus pecados ou morra agora mesmo. 

O camerlengo olhou de soslaio para a porta. 

- Rocher está lá fora - desafiou-o Kohler. - Ele também está preparado para matá-lo. 

- Rocher jurou proteger a Ig... 

- Rocher deixou que eu entrasse aqui. Armado. Está enojado com as suas mentiras. O senhor tem uma única opção. Confessar-se a mim. Tenho de ouvir tudo de sua própria boca. 

O camerlengo hesitou. 

Kohler levantou a arma. 

- Realmente duvida que eu vá matá-lo? 

- Não importa o que lhe conte - disse o camerlengo - um homem como o senhor nunca entenderia. 

- Experimente. 

O camerlengo permaneceu imóvel por um instante, uma silhueta dominante em meio à vaga luminosidade do fogo. Quando falou, suas palavras ecoaram com uma dignidade mais apropriada a uma gloriosa narrativa de altruísmo do que a uma confissão. 

- Desde o princípio dos tempos - disse o camerlengo -, a Igreja lutou contra os inimigos de Deus. Às vezes com palavras. Outras vezes com espadas. E sempre sobrevivemos. 

O camerlengo irradiava convicção. 

- Os demônios do passado - continuou ele - eram demônios de fogo e abominação. Esses eram inimigos contra os quais podíamos lutar, inimigos que inspiravam medo. Mas Satã é astuto. Com o passar do tempo, abandonou sua fisionomia diabólica e assumiu uma nova face: a face da pura razão. Transparente e insidiosa, mas também sem alma. - A voz do camerlengo enraiveceu-se de modo inesperado, numa transição quase insana. - Diga-me, senhor Kohler, como pode a Igreja condenar o que faz sentido, o que é lógico para nossas mentes? Como podemos censurar o que hoje é o próprio fundamento de nossa sociedade? Cada vez que a Igreja levanta a voz para fazer uma advertência, vocês gritam mais alto e nos chamam de ignorantes. De paranóicos. De controladores! E assim a sua maldade cresce. Encoberta por um véu de virtuoso intelectualismo. Espalha-se como um câncer. Santificada pelos milagres de sua própria tecnologia. Deificando-se a si mesma! Até se dissipar a nossa desconfiança e passarmos a achar que é pura bondade. A ciência chegou para nos salvar de nossas doenças, de nossa fome e de nosso sofrimento! Eis a ciência, o novo Deus de infinitos milagres, onipotente e benevolente! Ignorem as armas e o caos. Esqueçam a solidão dilacerada e os perigos intermináveis! A ciência está aqui! - O camerlengo deu um passo na direção do revólver. - Mas eu vi o rosto de Satã à espreita, vi o perigo. 

- O que é que está dizendo! A ciência de Vetra praticamente provou a existência de seu Deus! Ele era seu aliado! 

- Aliado? A ciência e a religião não andam juntas nisso! Não buscamos o mesmo Deus, você e eu! Quem é Deus? Um Deus de prótons, massa e cargas de partículas? Como o seu Deus nspira seus fiéis?

Como é que o seu Deus chega ao coração do homem para lembrar-lhe que ele é explicável por um poder maior? Ou que ele é responsável por seus semelhantes? Vetra estava desencaminhado. Seu trabalho não era religioso, era sacrílego! O homem não pode colocar a Criação de Deus dentro de um tubo de ensaio e exibi-la para o mundo! Isto não glorifica Deus, isto desmerece Deus! 

O camerlengo, a essa altura, apertava o próprio corpo com as mãos em garra, a voz enlouquecida. 

- E por isso mandou matar Leonardo Vetra! 

- Pela Igreja! Por toda a humanidade! Que loucura era aquela! O homem não está preparado para ter o poder de Deus em suas mãos. Deus em um tubo de ensaio? Uma gotinha de líquido que pode desintegrar uma cidade inteira? Ele tinha de ser detido! 

O camerlengo calou-se abruptamente. Parecia estar considerando suas opções. 

As mãos de Kohler levantaram o revólver. 

- Você confessou. Não tem mais escapatória. 

O camerlengo riu um riso triste. 

- Então não sabe que confessar os pecados é a forma de escapar? - Olhou para a porta. - Quando Deus está do nosso lado, temos opções que um homem como você não é capaz de compreender. 

Com essas palavras ainda ressoando no ar, o camerlengo agarrou a sua batina pela gola e rasgou-a com violência, deixando seu peito nu. 

Kohler fez um movimento brusco, obviamente espantado. 

- O que está fazendo? 

O camerlengo não respondeu. Deu um passo para trás, para junto da lareira, e tirou um objeto das brasas reluzentes.

- Pare! - ordenou Kohler, a arma ainda levantada. - O que está fazendo? 

Quando o camerlengo se virou, segurava um ferro de marcar em brasa. O diamante Illuminati. O homem tinha uma expressão desvairada. 

- Pretendia fazer isto sozinho - falava com uma intensidade selvagem -, mas agora vejo que Deus queria que você estivesse aqui. Você é minha salvação. 

Antes que Kohler pudesse esboçar qualquer reação, o camerlengo fechou os olhos, arqueou as costas e comprimiu o ferro em brasa no centro do próprio peito. Sua carne chiou. 

- Mãe Maria! Mãe Bendita! Olhe seu filho! - e gritou alto de dor. Kohler surgiu no enquadramento mal se equilibrando nas pernas, o revólver agitando-se descontroladamente. 

O camerlengo gritou mais alto, o corpo oscilando. Ele lançou o ferro de marcar aos pés de Kohler e caiu no chão, contorcendo-se em agonia. 

O que aconteceu em seguida foi difícil de distinguir. 

Houve um grande tremor na imagem da tela quando a Guarda Suíça irrompeu na sala. Ouviu-se o som de tiroteio. Kohler dobrou os braços no peito, foi lançado para trás, sangrando, e caiu da cadeira de rodas. 

Não! - gritou Rocher, tentando impedir seus guardas de atirarem em Kohler. 

O camerlengo, ainda se contorcendo no chão, girou o corpo e apontou freneticamente para Rocher: 

- Iliuminatus! 

- Canalha! - berrou Rocher, correndo para ele. - Seu canalha santarrão... 

Chartrand abateu-o com três tiros. Rocher caiu morto no chão da sala. 

Então, os guardas correram para o camerlengo ferido, rodeando-o. Ao mesmo tempo que eles se reuniam, o vídeo pegava o rosto estarrecido de Robert Langdon, ajoelhado perto da cadeira de rodas, olhando para o ferro de marcar. Depois, a imagem sacudiu fortemente. Kohler recuperara a consciência e estava soltando a pequenina câmera do suporte localizado debaixo do braço de sua cadeira. Em seguida, tentava estender a mão com a câmera para Langdon. 

- Ent. . .tregue... - arquejou Kohler -, en. . .tregue isto... à imprensa. 

E a tela ficou branca.

 

CAPÍTULO 130

O camerlengo começou a sentir a névoa de exaltação e de  adrenalina se dissipar. Enquanto a Guarda Suíça o ajudava a descer a Escadaria  Real para ir para a Capela Sistina, o camerlengo escutou cânticos na Praça de  São Pedro e soube que montanhas haviam sido removidas. Grazie Dio. 

Ele rezara pedindo forças e Deus as concedera. Nos momentos em que duvidara, Deus falara. Tua missão é Santa, Deus dissera. Dar-te-ei forças. Mesmo com a força de Deus, o camerlengo sentira medo, questionara a correção de seu caminho. 

Se não fores tu, Deus o desafiara, QUEM o fará? 

Se não for agora, QUANDO será? 

Se não for assim, COMO será? 

Jesus, Deus lembra-lhe, salvara-os todos, salvara-os da própria apatia. Com dois atos, Jesus abrira-lhes os olhos. Horror e Esperança. A crucificação e a ressurreição. Ele mudara o mundo. 

Mas isto acontecera havia milênios. O tempo corroera o milagre. As pessoas haviam se esquecido. Tinham se voltado para os falsos ídolos - tecnodivindades e milagres da mente. E quanto aos milagres do coração? 

O camerlengo sempre rezava para que Deus lhe mostrasse como fazer os homens acreditarem outra vez.

Mas Deus permanecia em silêncio. Foi somente no momento mais sombrio que Deus veio ao encontro do camerlengo. Ah, que noite terrível! 

O camerlengo ainda se lembrava de estar deitado no chão com a roupa de dormir em frangalhos cravando as unhas na própria carne, tentando purgar sua alma do sofrimento provocado por uma verdade infame que descobrira pouco antes. Não pode ser!, gritara. Entretanto, sabia que era. O engano queimava-o como o fogo do inferno. O bispo que o acolhera, o homem que fora como um pai para ele, o religioso ao lado de quem o camerlengo sempre ficara enquanto ele subia até chegar ao papado, era uma fraude. Um pecador comum. Mentindo para o mundo sobre um ato tão traiçoeiro em sua essência que o camerlengo duvidava que o próprio Deus pudesse perdoá-lo. 

- Seu juramento! - o camerlengo gritara para o Papa. - O senhor quebrou seu juramento a Deus! Logo o senhor, entre todos os homens! 

O Papa tentou se explicar, mas o camerlengo não lhe deu ouvidos. Saiu correndo, cambaleando às cegas pelos corredores, vomitando, rasgando a própria pele até dar por si ensangüentado e sozinho, caído no chão de terra diante da tumba de São Pedro. Mãe Maria, o que faço agora? Foi naquele momento de dor e traição, quando o camerlengo estava prostrado na Necrópole, rezando para Deus levá-lo deste mundo sem fé, que Ele veio. 

A voz em sua cabeça ressoou como um trovão. 

Juraste servir teu Deus? 

- Sim! - bradou o camerlengo. 

Morrerias por teu Deus? 

- Sim! Leve-me agora! 

Morrerias por tua Igreja? 

- Sim! Liberte-me, por favor! 

Mas morrerias pela humanidade? 

No silêncio que se seguiu, o camerlengo sentiu-se despencando no abismo. Cada vez mais fundo, cada vez mais depressa, sem controle. No entanto, sabia a resposta. Sempre soubera. 

- Sim! - gritou em meio à loucura. - Eu morreria pelos homens! Como Teu filho, morreria por eles! 

Horas depois, o camerlengo ainda tiritava caído no chão. Viu o rosto de sua mãe. Deus tem planos para você, ela dizia. O camerlengo mergulhou mais ainda no desvario. Então, Deus falou de novo. Desta vez, com silêncio. Mas o camerlengo compreendeu. Restaure a fé dos homens. 

Se não fosse eu, quem seria? 

Se não fosse agora, quando seria? 

Quando os guardas destrancaram a porta da Capela Sistina, o camerlengo Ventresca sentiu o poder fluindo em suas veias, exatamente como quando ele era menino. Deus o escolhera. Muito tempo antes. 

Seja feita a Sua vontade. 

O camerlengo sentia-se renascido. A Guarda Suíça encarregara-se de enfaixar seu peito, de banhá-lo e vestir nele uma batina limpa de linho branco. Tinham-lhe dado também uma injeção de morfina para a dor da queimadura. O camerlengo desejara não ter tomado analgésico algum. Jesus suportou Suas dores durante três dias na cruz! Já sentia a droga lhe amortecendo os sentidos, uma vertigem que o arrastava. 

Ao entrar na capela, não se surpreendeu nada com os olhares admirados dos cardeais para ele. É uma admiração reverente por Deus, lembrou a si mesmo.

Não por mim, mas pela maneira como Deus trabalha ATRAVÉS da minha pessoa. Enquanto caminhava pelo centro da nave, via perplexidade em todos os rostos. A cada rosto por que passava, porém, percebia algo mais no olhar. O que seria? O camerlengo imaginara antes como eles o receberiam naquela noite. Com alegria? Com respeito? Tentou ler seus olhos e não encontrou neles nenhuma dessas duas emoções. 

Foi então que o camerlengo olhou para o altar e viu Robert Langdon. 

 

CAPÍTULO 131 

O camerlengo Cano Ventresca parou entre as fileiras de  cadeiras, no meio da Capela Sistina. Os cardeais estavam todos de pé, próximos da frente da igreja, olhando para ele. Robert Langdon estava no altar ao lado de uma televisão ligada, onde se desenrolava uma cena que o camerlengo reconhecia mas não podia imaginar como fora parar ali. Vittoria Vetra encontrava- se junto de Langdon, o rosto tenso. 

O camerlengo fechou os olhos por um momento, esperando que tudo fosse uma alucinação causada pela morfina e que, quando os reabrisse, a cena pudesse ser diferente. Mas não era. 

Eles sabiam. 

Curiosamente, não sentiu medo. Mostre-me o caminho, Pai. Dê-me as palavras para fazê-los ver a Sua visão, pediu. 

Mas o camerlengo não obteve resposta. 

Pai, chegamos longe demais para fracassar agora. 

Silêncio. 

Eles não compreendem o que Nós fizemos. 

O camerlengo não soube de quem era a voz que ele escutou em sua própria mente, mas a mensagem era brutalmente simples. 

E a verdade o libertará... 

E foi assim que o camerlengo Ventresca manteve a cabeça erguida ao avançar pela Capela Sistina. Andando na direção dos cardeais, nem a difusa luminosidade das velas suavizava os olhares penetrantes que eles lhe lançavam. Explique-se, diziam os rostos. Dê sentido a esta loucura. Diga que nossos temores são infundados! 

A verdade, disse o camerlengo a si mesmo. Só a verdade. Havia segredos demais entre aquelas paredes, um deles tão sombrio que o levara à loucura. Mas da loucura viera a luz. 

- Se pudessem dar sua própria alma para salvar milhões - disse ele, enquanto andava -, não o fariam? 

Os rostos na capela limitaram-se a olhar para ele. Ninguém se mexia. Ninguém falava. Além das paredes, trechos alegres de cânticos vinham da praça. 

O camerlengo caminhava para eles. 

- Qual é o maior pecado? Matar o inimigo? Ou ficar inativo enquanto seu verdadeiro amor é esmagado?

Eles estão cantando na Praça de São Pedro! - O camerlengo parou por um instante e contemplou o teto da Capela Sistina. O Deus de Michelangelo, na abóbada obscurecida, olhava para baixo e parecia satisfeito. 

- Eu não podia ficar parado - disse o camerlengo. Cada vez mais próximo dos cardeais, ainda assim não encontrou nenhum lampejo de compreensão nos olhares deles. Será que não enxergavam a radiante simplicidade de seus atos? Não percebiam a sua necessidade absoluta? 

Haviam sido tão puros. 

Os Illuminati. Ciência e Satã juntos. 

Ressuscitar o antigo medo. Depois o esmagar. 

Horror e Esperança. Fazê-los acreditar outra vez. 

Naquela noite, o poder dos llluminati fora desencadeado mais uma vez, com conseqüências gloriosas. A apatia se evaporara. O medo percorrera todo o mundo como um relâmpago, unindo as pessoas. E então a majestade de Deus vencera as trevas. 

Eu não podia deixar de interferir! 

A inspiração viera do próprio Deus - aparecendo como um farol luminoso na noite de agonia do camerlengo. Ah, mundo sem fé! Alguém tem de salvá-lo. Você. Se não for você, quem será?

Você foi salvo por uma razão. Mostre-lhes os velhos demônios. Lembre-os de como tinham medo. Apatia é morte. Sem trevas, não há luz. Faça-os escolher. Luz ou trevas. Onde está o medo? Onde estão os heróis? Se não for agora, quando será? 

O camerlengo andou pelo centro da nave direto para a multidão de cardeais. Sentiu-se como Moisés quando o mar de faixas e capelos vermelhos abriu-se à sua frente dando-lhe passagem. No altar, Robert Langdon desligou a televisão, pegou a mão de Vittoria e abandonou o altar. O fato de Robert Langdon ter sobrevivido, o camerlengo sabia, só podia ser a vontade de Deus. Deus salvara Robert Langdon. O camerlengo se perguntava por quê. 

A voz que quebrou o silêncio foi a da única mulher presente na Capela Sistina. 

- Você matou meu pai? - perguntou ela, dando um passo à frente. 

Quando o camerlengo encarou Vittoria Vetra, não soube definir bem a expressão no rosto dela - sofrimento, sim, mas raiva? Ela certamente devia compreender. O talento de seu pai era perigoso. Ele tinha de ser impedido de continuar. Para o bem da humanidade. 

- Ele estava fazendo o trabalho de Deus - disse Vittoria. 

- O trabalho de Deus não é feito dentro de um laboratório. É feito no coração. 

- O coração de meu pai era puro! E as pesquisas dele provaram... 

- As pesquisas dele provaram outra vez que a mente do homem está progredindo mais depressa do que a sua alma! - a voz do camerlengo soou mais estridente do que ele esperava. Ele baixou o tom. - Se um homem tão espiritualizado quanto seu pai foi capaz de criar uma arma como a que vimos esta noite, imagine o que um homem comum não faria com essa tecnologia que ele criou! 

- Um homem como você? 

O camerlengo respirou fundo. Será que ela não via? A moral humana não avançava tão depressa quanto a ciência. A humanidade não era bastante evoluída espiritualmente para os poderes que possuía. Nunca criamos uma arma que não tenhamos usado! E ainda assim ele sabia que a antimatéria não era nada - apenas mais uma arma no já copioso arsenal do homem. O homem ainda podia destruir. O homem aprendera a matar havia muito tempo. E o sangue de sua mãe caíra como chuva. O talento de Leonardo Vetra era perigoso por outra razão. 

- Durante séculos - disse o camerlengo -, a Igreja se manteve impassível enquanto a ciência desmoralizava a religião pouco a pouco. Desmascarando milagres. Treinando a mente para superar o coração. Condenando a religião como o ópio das massas. Deus foi acusado de ser uma alucinação - um arrimo ilusório para os muito fracos, incapazes de aceitar que a vida não tem qualquer sentido. Eu não podia ficar parado enquanto a ciência se atrevia a captar o poder do próprio Deus! Você falou de prova? Sim, prova da ignorância da ciênda! O que está errado em admitir que algo existe além de nossa compreensão? O dia em que a ciência comprovar a existência de Deus em um laboratório será o dia em que as pessoas não terão mais necessidade da fé! 

- Você quer dizer o dia em que as pessoas não terão mais necessidade da Igreja - desafiou-o Vittoria, andando na sua direção. - A dúvida é o seu último farrapo de controle. É a dúvida que traz as almas para vocês. A necessidade humana de saber se a vida tem sentido. A insegurança e a necessidade do homem de uma mente instruída que lhe garanta que tudo é parte de um plano geral. Só que a Igreja não é a única mente instruída do planeta! Nós todos buscamos Deus de diferentes maneiras. De que tem medo? Que Deus se mostre em algum outro lugar fora destas paredes? Que as pessoas O encontrem em suas próprias vidas e deixem esses rituais antiquados para trás? As religiões evoluem! A mente encontra respostas, o coração se apega a novas verdades. Meu pai buscava o mesmo que você! Em um caminho paralelo! Como não enxergou isto? Deus não é uma autoridade onipotente que nos olha de cima, ameaçando nos atirar em um poço de fogo se desobedecermos. Deus é a energia que flui através das sinapses de nossos sistemas nervosos e dos ventrículos de nossos corações! Deus está em todas as coisas! 

- Exceto na ciência - rebateu o camerlengo, os olhos demonstrando somente pena. - A ciência, por definição, não tem alma. É alheia ao coração. Os milagres intelectuais como a antimatéria chegam ao mundo sem instruções éticas anexas. Isto em si mesmo é perigoso! E quando a ciência alardeia suas atividades ímpias como sendo o caminho esclarecido a seguir? Prometendo respostas a perguntas cuja beleza é não ter resposta? - ele sacudiu a cabeça. - Não. 

Houve um momento de silêncio. O camerlengo sentiu-se de repente cansado sob o olhar inflexível de Vittoria. Não era assim que deveria ser. Deus o estaria submetendo a um teste final? 

Foi Mortati quem quebrou o feitiço do momento. 

- Os preferiti - disse ele, num murmúrio horrorizado. - Baggia e os outros. Por favor, diga que não... 

O camerlengo voltou-se para ele, surpreso com a dor que transparecia em sua voz. Decerto Mortati seria capaz de compreender. Os milagres da ciência ocupavam as manchetes dos jornais todos os dias. Fazia quanto tempo que o mesmo não acontecia com a religião? Séculos? A religião precisava de um milagre!

Algo que despertasse o mundo adormecido. Que o levasse de volta para o caminho da retidão. Que restaurasse a fé. De qualquer maneira, os preferiti não eram líderes, eram transformadores. Liberais preparados para abraçar o novo mundo e abandonar os velhos métodos! Só havia um jeito. Um novo líder.

Jovem. Vigoroso. Vibrante. Milagroso. Os preferiti serviram mais à Igreja na morte do que jamais o teriam feito quando vivos. Horror e Esperança. Oferecer quatro almas para saívar milhões. O mundo lembraria deles para sempre como mártires. A Igreja prestaria gloriosas homenagens a seus nomes. Quantos milhares morreram pela glória de Deus? Eles eram somente quatro. 

- Os preferiti - repetiu Mortati.

- Partilhei a dor deles - defendeu-se o camerlengo, apontando para o peito. 

- E eu também teria morrido por Deus, mas meu trabalho apenas começou. Estão cantando na Praça de São Pedro! 

O camerlengo vislumbrou horror nos olhos de Mortati e novamente ficou confuso. Seria a morfina?

Mortati olhava para ele como se o camerlengo tivesse matado aqueles homens com suas próprias mãos.

Até isto eu teria feito por Deus, pensou o camerlengo, e contudo não o fizera. A tarefa tinha sido realizada pelo Hassassin, uma alma pagã que fora levada a acreditar que estava trabalhando para os Illuminati. Sou Janus, dissera-lhe o camerlengo. Vou provar meu poder. E o fizera. O ódio do Hassassin transformara-o em um joguete nas mãos de Deus. 

- Escutem os cânticos - disse o camerlengo, sorrindo, seu coração se enchendo de alegria. - Nada une mais os corações do que a presença do mal. Queimem uma igreja e a comunidade se levanta, dando-se as mãos, cantando hinos de desafio enquanto a reconstrói. Vejam como eles afluem hoje para cá. O medo os trouxe de volta para casa. Temos de forjar demônios modernos para o homem moderno. A apatia está morta.

Mostremos a eles a face do mal, os adoradores de Satanás à espreita no meio de nós, dirigindo nossos governos, nossos bancos, nossas escolas, ameaçando destruir a própria Casa de Deus com sua ciência pervertida. A corrupção é profunda. O homem precisa estar vigilante. Procurar a virtude. Tornar-se a virtude! 

No silêncio, o camerlengo esperava que agora eles tivessem entendido. Os Illuminati não tinham ressurgido. Os Iliuminati estavam mortos fazia muito tempo. Apenas seu mito ainda vivia. O camerlengo fizera os Illuminati ressurgirem como um lembrete. Aqueles que conheciam a história dos liluminati reviveram sua maldade. Os que não conheciam passaram a conhecer e ficaram espantados por terem sido tão cegos. Os antigos demônios tinham sido ressuscitados para despertar um mundo indiferente. 

- Mas... os ferros de marcar? - a voz de Mortati soava dura de tanta repulsa. 

O camerlengo não respondeu. Mortati não tinha como saber, mas as marcas haviam sido confiscadas pelo Vaticano mais de um século antes. Tinham ficado trancadas, esquecidas e cobertas de poeira no cofre papal, o relicário particular do Papa, no fundo dos Aposentos Bórgia. O cofre papal continha certos objetos que a Igreja considerava perigosos demais para outros olhos a não ser os do Papa. 

Por que escondiam algo que inspirava medo? O medo levava as pessoas a Deus! 

A chave do cofre-forte passava de um Papa para outro. O camerlengo Ventresca tinha furtado a chave e entrado. O mito que envolvia o conteúdo do cofre era fascinante: o manuscrito original dos 14 livros da Bíblia conhecidos como Apocrypha, a terceira profecia de Fátima, as duas primeiras tendo se realizado e a terceira sendo tão terrível que a Igreja nunca a revelara.

Além de tudo isso, o camerlengo encontrara a Coleção Illuminati, todos os segredos que a Igreja descobrira depois de banir o grupo de Roma: seu infame Caminho da Iluminação, a astuciosa fraude de um dos principais artistas do Vaticano, Bernini, os cientistas mais importantes da Europa zombando da religião ao se reunirem secretamente no Castelo Sant'Angelo, propriedade do Vaticano. A coleção incluía uma caixa pentagonal contendo os ferros de marcar, um deles o mítico diamante Illuminati. Aquela era uma parte da história do Vaticano que os antigos achavam melhor esquecer. O camerlengo, porém, não concordava com isso. 

- Mas a antimatéria... - disse Vittoria. - O Vaticano correu o risco de ser destruído! 

- Não há riscos quando Deus está a seu lado - objetou o camerlengo. - Esta causa era Dele. 

- Você é louco! - exclamou ela, fervendo de indignação. 

- Milhões foram salvos. 

- Pessoas morreram! 

- Almas foram salvas. 

- Diga isto a meu pai e a Max Kohler! 

- A arrogância do CERN tinha de ser revelada. Uma gotícula de líquido que pode desintegrar um quilômetro? E é a mim que você chama de louco? 

- O camerlengo sentiu a raiva subir. Será que achavam que a incumbência dele era simples? - Aqueles que crêem são submetidos a grandes testes por amor a Deus! Deus pediu a Abraão para lhe sacrificar seu filho! Deus ordenou a Jesus que passasse pelo tormento da crucificação! E nós penduramos o símbolo da cruz diante de nossos olhos, sangrento, doloroso, agoniante, para nos lembrarmos do poder do mal! Para manter nossos corações vigilantes! As chagas no corpo de Jesus são uma lembrança viva dos poderes das trevas! Minhas feridas são uma lembrança viva da mesma coisa! O mal está vivo, mas o poder de Deus triunfará! 

Seus brados ecoaram na parede dos fundos da Capela Sistina e depois um profundo silêncio caiu sobre todos. O tempo parou. O Último Julgamento, de Michelangelo, erguia-se ameaçador atrás do camerlengo - Jesus lançando os pecadores no inferno. Os olhos de Mortati encheram-se de lágrimas. 

- O que você fez, Carlo - perguntou Mortati, num sussurro. Ele fechou os olhos e uma lágrima rolou por sua face -, com o Santo Padre? 

Um suspiro coletivo de dor ergueu-se, como se todos até então tivessem esquecido o fato, O Papa.

Envenenado.

- Um mentiroso vil - disse o camerlengo. 

Mortati protestou, chocado. 

- O que quer dizer? Ele era honesto! E amava você! 

- E eu a ele. Ah, como o amava! Mas a fraude! O juramento a Deus que foi quebrado! 

O camerlengo sabia que naquele momento eles não compreendiam, mas logo compreenderiam. Quando lhes contasse, eles veriam! O Santo Padre era a fraude mais nefasta que a Igreja jamais tivera. O camerlengo ainda se lembrava daquela noite terrível. Ele voltara de sua viagem ao CERN com as informações sobre o Gênese de Vetra e o poder horripilante da antimatéria. O camerlengo estava certo de que o Papa veria os perigos envolvidos na descoberta, mas o Santo Padre viu apenas esperança nos avanços científicos de Vetra. Chegou a levantar a possibilidade de o Vaticano financiar o trabalho de Vetra como um gesto de boa vontade para com a pesquisa científica baseada na espiritualidade. 

Loucura! A Igreja investir em uma pesquisa que ameaçava tornar a própria Igreja obsoleta? Em um trabalho que produzia armas de destruição em massa? A bomba que matara sua mãe... 

- O senhor não pode fazer isto! - exclamara o camerlengo. 

- Tenho uma dívida muito grande com a ciência - replicara o Papa. 

- Algo que escondi a minha vida inteira. A ciência me concedeu uma dádiva quando eu era jovem. Uma dádiva que nunca esqueci. 

- Não compreendo. O que teria a ciência a oferecer a um homem de Deus?  

- É complicado - dissera o Papa. - Vou precisar de tempo para fazê-lo compreender. Mas antes há um fato a meu respeito que você precisa saber. Mantive segredo sobre isto durante todos estes anos. Acho que já é hora de lhe contar. 

E o Papa contara a ele a assombrosa verdade. 

 

CAPÍTULO 132

O camerlengo jazia encolhido no chão de terra diante da tumba  de São Pedro. Fazia frio na Necrópole, mas isto ajudava a coagular o sangue das feridas que ele fizera na própria carne. O Santo Padre não o encontraria ali. 

É complicado - a voz do Papa ecoava em sua mente. Vou precisar de tempo para fazê-lo compreender... 

Entretanto, o camerlengo sabia que tempo nenhum o faria compreender.

Mentiroso! Acreditei em você! DEUS acreditou em você! 

Com uma única frase, o Papa fizera desmoronar o mundo do camerlengo. Tudo em que o camerlengo acreditara sobre seu mentor fora despedaçado diante de seus olhos. A verdade atingiu o coração do camerlengo com tanta força que ele recuou vacilante para fora do escritório do Papa e vomitou no corredor. 

- Espere! - o Papa o chamara, indo atrás dele. - Por favor, deixe-me explicar! 

Mas o camerlengo fugiu. Como o Santo Padre poderia esperar que ele agüentasse mais alguma coisa? Ah, que desgraça, quanta depravação! E se alguém descobrisse? Que profanação da Igreja! Então os votos sagrados do Papa nada significavam? 

A loucura chegou rápida, gritando em seus ouvidos, até ele acordar diante da tumba de São Pedro. Foi quando Deus veio a ele com uma assombrosa ferocidade. 

TEU DEUS É UM DEUS VINGADOR! 

Juntos, tinham feito planos. Juntos, iriam proteger a Igreja. Juntos, iriam devolver a fé a este mundo sem fé.

O mal estava em toda parte. E todavia o mundo se tornara imune a ele! Juntos, iriam mostrar a escuridão do mal e Deus triunfaria no fim! Horror e Esperança. Então, o mundo iria acreditar! 

O teste final de Deus não fora tão horrível quanto o camerlengo imaginara. Esgueirar-se no quarto de dormir do Papa, encher a sua seringa, cobrir a boca do embusteiro enquanto o corpo dele se entregava aos espasmos da morte. À luz da lua, o camerlengo via notos do Papa que havia algo que ele queria dizer. 

Tarde demais. 

O Papa já dissera o suficiente. 

 

CAPÍTULO 133

- O Papa teve um filho. 

Dentro da Capela Sistina, o camerlengo permaneceu inabalável enquanto falava. Cinco palavras solitárias e uma conclusão estarrecedora. Toda a assembléia pareceu recuar em conjunto. Os sembiantes acusadores dos cardeais transformaram-se em expressões de pasmo, como se cada criatura ali dentro rezasse para o camerlengo estar errado. 

O Papa teve um filho.

O choque atingiu Langdon também. A mão de Vittoria na sua estremeceu, e a mente de Langdon, já atordoada com perguntas não respondidas, procurou encontrar um centro de gravidade. 

A declaração do camerlengo parecia que iria pairar acima deles para sempre. Mesmo no olhar delirante do camerlengo, Langdon conseguia ver pura convicção. E tinha vontade de fugir dali, dizer a si mesmo que tudo não passava de um grotesco pesadelo e acordar em um mundo que fizesse sentido. 

- Deve ser mentira! - gritou um dos cardeais. 

- Não acredito! - protestou outro. - O Santo Padre era um dos homens mais piedosos e sinceros que já existiram! 

Foi Mortati quem falou em seguida, com um fio de voz, abalado. 

- Meus amigos, o que o camerlengo diz é verdade. - Todos os cardeais na capela voltaram-se para ele ao mesmo tempo, como se ele tivesse proferido uma obscenidade. - O Papa realmente teve um filho. 

Os cardeais empalideceram de susto. 

O camerlengo ficou estupefato. 

- Você sabia? Mas como poderia saber uma coisa dessas? 

Mortati suspirou. 

- Quando Sua Santidade foi eleito, eu fui o Advogado do Diabo. 

Ouviu-se o ruído de todos prendendo a respiração em uníssono. 

Langdon compreendeu. Aquilo significava que a informação era provavelmente verdadeira. O abominável "Advogado do Diabo" era a autoridade máxima quando se tratava de informações escandalosas dentro do Vaticano. Segredos vergonhosos nas vidas dos Papas eram perigosos e, antes das eleições, eram realizadas investigações secretas sobre o passado dos candidatos por um único cardeal que servia de "Advogado do Diabo", a pessoa encarregada de desenterrar razões por que cada um dos cardeais elegíveis não deveria se tornar Papa. Essa função era uma indicação antecipada do Papa em exercício como um preparativo para a sua própria morte. O Advogado do Diabo nunca revelava a sua identidade. Jamais. 

- Eu fui o Advogado do Diabo - repetiu Mortati. - Foi como descobri. 

Os queixos caíram. Pelo jeito, naquela noite todas as regras estavam sendo atiradas pela janela.

O camerlengo encheu-se de raiva. 

- E você não contou a ninguém?

- Eu interroguei Sua Santidade - disse Mortati - e ele confessou. Explicou a história inteira e pediu somente que eu deixasse meu coração guiar a minha decisão de revelar ou não o seu segredo. 

- E seu coração lhe disse para enterrar a informação? 

- Ele era o candidato favorito para o papado. As pessoas o amavam. O escândalo teria afetado profundamente a Igreja. 

- Mas ele teve um filho! Quebrou seu voto sagrado de celibato! 

O camerlengo estava aos berros. Ouvia a voz de sua mãe. Uma promessa feita a Deus é a promessa mais importante de todas. Jamais quebre uma promessa feita a Deus. 

- O Papa quebrou seu voto! 

Mortati parecia à beira do delírio de tanta angústia. 

- Carlo, o amor dele era casto. Ele não quebrou voto algum. Ele não explicou a você? 

- Explicar o quê? 

O camerlengo lembrava-se de ouvir o Papa dizer enquanto ele fugia correndo: Deixe-me explicar! 

Lentamente, tristemente, Mortati contou toda a história. Muitos anos antes, o Papa, quando ainda era apenas um padre, apaixonara-se por uma jovem freira. Ambos tinham feito voto de celibato e nunca pensaram em romper seu compromisso com Deus. Assim mesmo, o amor deles se aprofundou e, embora conseguissem resistir às tentações da carne, viram-se ambos desejando algo em que nunca tinham pensado: participar do supremo milagre da criação, um filho. Seu filho. O anseio, especialmente da parte dela, tornou-se avassalador. Mas Deus ainda vinha em primeiro lugar. Um ano mais tarde, quando a frustração tomara proporções quase insuportáveis, ela foi ao encontro dele toda alvoroçada. Acabara de ler um artigo sobre um novo milagre da ciência - um processo pelo qual duas pessoas, sem terem relações sexuais, podiam ter um filho. Ela pressentia que aquilo era um sinal de Deus. O padre viu a felicidade nos olhos dela e concordou. Um ano mais tarde, ela teve um filho por meio do milagre da inseminação artificial. 

- Isto não pode ser verdade - disse o camerlengo, em pânico, esperando que fosse o efeito da morfina em seus sentidos. Devia estar ouvindo coisas. 

Mortati tinha lágrimas nos olhos. 

- Carlo, foi por isso que o Santo Padre sempre apreciou a ciência. Achava que tinha uma dívida de gratidão.

A ciência permitiu que ele experimentasse as alegrias da paternidade sem quebrar seu voto de celibato. Sua Santidade contou-me que lamentava apenas uma coisa: que sua posição cada vez mais destacada na Igreja lhe impedisse de estar perto da mulher que amava vendo seu filho crescer. 

O camerlengo Carlo Ventresca sentiu a loucura se instalando nele outra vez. Tinha ímpetos de rasgar a própria carne. Como eu poderia saber? 

- O Papa não cometeu pecado nenhum, Carlo. Ele era casto. 

- Mas... - o camerlengo vasculhou sua mente angustiada à procura de uma base racional - . . . pensem nos riscos desses atos - a voz dele ficou fraca. - E se essa meretriz dele aparecesse? Ou, Deus nos livre, se o filho aparecesse? Imaginem que vergonha seria para a Igreja. 

Mortati disse com voz trêmula: 

- O filho dele já apareceu. 

Tudo parou. 

- Carlo - e Mortati quase sucumbiu -, o filho do Santo Padre é você. 

Naquele momento, o camerlengo sentiu o fogo da fé quase se extinguir em seu coração. Tremia de pé no altar, emoldurado pelo Último Julgamento, de Michelangelo. Acabara de vislumbrar o próprio inferno.

Abriu a boca para falar, mas seus lábios se moveram sem emitir som algum. 

- Não vê? - disse Mortati, a voz embargada. - Foi por isso que Sua Santidade foi ao seu encontro no hospital em Palermo quando você era pequeno. Foi por isso que o recolheu e criou. A freira que ele amava era Maria, sua mãe. Ela deixou o convento para criar você, mas nunca abandonou sua rigorosa devoção a

Deus. Quando o Papa tomou conhecimento de que ela morrera em uma explosão e você, filho dele, sobrevivera milagrosamente, jurou a Deus que nunca mais o deixaria. Carlo, seus pais eram ambos virgens.

Mantiveram seus votos a Deus. E assim mesmo encontraram uma forma de trazê-lo ao mundo. Você foi o filho miraculoso deles. 

O camerlengo tapou os ouvidos para não ouvir as palavras. Ficou imóvel no altar. Depois, com o mundo se desfazendo sob seus pés, caiu de joelhos e deixou escapar um gemido desesperado. 

Segundos. Minutos. Horas. 

O tempo perdera todo o sentido entre as quatro paredes da capela. Vittoria libertou-se devagar da paralisia que tomara conta de todos. Soltou a mão de Langdon e saiu andando pelo meio dos cardeais. A porta da capela pareceu-lhe estar a quilômetros de distância e ela se movia como se estivesse embaixo d'água, em câmera lenta.

Ao passar no meio das batinas, seu movimento ia tirando os outros do transe. Alguns cardeais começaram a rezar. Outros choravam. Uns se viraram para vê-la passar, os rostos apáticos tornando-se aos poucos apreensivos à medida que ela se aproximava da porta. Quase chegara ao fundo do aglomerado de pessoas quando a mão de alguém segurou seu braço. O toque era frágil, mas resoluto. Ela se deparou com um cardeal idoso, enrugado. No rosto dele, um temor sombrio. 

- Não - murmurou o homem. - Você não pode fazer isso. 

Vittoria sustentou-lhe o olhar, incrédula. Outro cardeal surgiu ao lado dela. 

- Temos de pensar antes de agir. 

E outro. 

- O sofrimento que isso pode causar... 

Vittoria estava cercada. Olhou para todos eles, surpresa. 

- Mas os atos que foram cometidos hoje, esta noite.., o mundo tem de saber a verdade. 

- Meu coração concorda - disse o cardeal idoso, ainda segurando o braço dela -, mas este seria um caminho sem volta. Precisamos levar em conta as esperanças destruídas. O ceticismo. Como as pessoas poderiam voltar a ter confiança um dia? 

Mais cardeais impediam-na de prosseguir. Havia uma parede de batinas negras em torno dela. 

- Ouça as pessoas na praça - disse um. - O que vai ser do coração delas? Temos de ser prudentes. 

- Precisamos de tempo para refletir e rezar - disse outro. - Temos de pensar antes de agir. As repercussões de tudo isso... 

- Ele matou meu pai! - protestou Vittoria. - Ele matou o próprio pai dele! 

- Tenho certeza de que ele vai pagar por seus pecados - disse tristemente o cardeal que segurava o braço dela. 

Vittoria também tinha certeza e pretendia tomar providências para garantir que isso acontecesse. Tentou chegar à porta, mas os cardeais juntaram-se mais, os rostos assustados. 

- O que vão fazer? - exclamou ela. - Me matar? 

Os velhos empalideceram e Vittoria no mesmo instante se arrependeu de ter dito aquilo. Podia ver que eram boas almas. Tinham enfrentado violência demais naquela noite. Não queriam ameaçá-la. Estavam simplesmente encurralados. Amedrontados. Tentando se orientar. 

- Só desejo - disse o cardeal idoso - fazer o que é correto. 

- Então vai deixá-la sair - declarou uma voz grave atrás dela. As palavras eram calmas, mas o tom era categórico. Robert Langdon postou-se ao lado de Vittoria esegurou-lhe a mão. - A senhorita Vetra e eu vamos sair desta capela. Agora. 

Sem jeito, hesitantes, os cardeais começaram a abrir caminho para os dois. 

- Esperem! - era Mortati. 

Veio ao encontro deles pelo meio da nave, deixando o camerlengo sozinho e derrotado no altar. Mortati parecia mais velho de uma hora para outra, cansado além da conta. Caminhava como se carregasse um pesado fardo de vergonha. Ao chegar, pousou uma das mãos no ombro de Langdon e a outra no de Vittoria. Vittoria sentiu sinceridade no gesto. Ele tinha os olhos vermelhos. 

- É claro que podem sair quando quiserem - disse Mortati. - Claro - e fez uma pausa, seu sofrimento quase tangível. - Peço apenas uma coisa... - e baixou a cabeça durante um longo momento, depois voltou a olhar para os dois. - Deixem que eu faça isso. Vou para a praça agora e encontro uma forma qualquer de dizer a eles. Não sei como, mas vou encontrar. A confissão da Igreja deve vir de dentro. As falhas são nossas, nós mesmos devemos apresentá-las. 

Mortati virou-se com ar melancólico para o altar. 

- Cano, você colocou a Igreja em uma situação desastrosa - e parou, procurando em torno. Não havia mais ninguém no altar. 

Com um farfalhar de tecido na passagem lateral, uma porta se fechou. 

O camerlengo se fora. 

 

CAPÍTULO 134

A batina branca do camerlengo Ventresca ondulava  enquanto ele se afastava pelo corredor que saía da Capela Sistina. Os guardas  suíços ficaram perplexos quando surgiu desacompanhado de dentro da capela  e lhes disse que precisava ficar sozinho um momento. Eles obedeceram e o  deixaram passar. 

Agora, ao dobrar uma esquina e fora da visão deles, o camerlengo sentiu um  redemoinho de emoções que não imaginava que fosse possível um ser humano  experimentar. Ele envenenara o homem que chamava de "Santo Padre",  o homem que o chamava de "meu filho" Sempre achara que as palavras "pai"  e "filho" faziam parte da tradição religiosa, mas agora conhecia a verdade  diabólica - as palavras haviam sido literais.

Chovia na manhã em que os funcionários do Vaticano bateram com força à porta do camerlengo, despertando-o de um sono intermitente, O Papa, diziam, não respondia à porta nem ao telefone. O clero estava preocupado. O camerlengo era o único que podia entrar nos aposentos do Papa sem se fazer anunciar. 

O camerlengo entrou sozinho e encontrou o Papa, como na noite anterior, contorcido e morto em sua cama. O rosto de Sua Santidade parecia-se com o de Satã. A língua estava negra como a morte. O próprio Demônio dormira na cama do Papa. 

O camerlengo não sentia remorso. Deus havia falado. 

Ninguém veria a traição, ainda não. Isto viria mais tarde. 

Ele deu a terrível notícia - Sua Santidade morrera de um derrame. Depois, o camerlengo preparou-se para o conclave. 

A voz de Mãe Maria sussurrava em seu ouvido: "Jamais quebre uma promessa feita a Deus." 

- Estou escutando, Mãe - respondeu ele. - Este é um mundo sem fé. Eles precisam ser levados de volta para o caminho da retidão. Horror e Esperança. É o único jeito. 

- Sim - concordou ela. - Se não for você, então quem será? Quem vai fazer a Igreja sair das trevas? 

Decerto nenhum dos preferiti. Eles eram velhos, à beira da morte, liberais que seguiriam o Papa, protegendo a ciência em sua memória, buscando seguidores modernos ao abandonar as velhas fórmulas. Homens velhos e atrasados fingindo pateticamente não o serem. Iriam fracassar, é claro. A tradição era a força da Igreja, não sua transitoriedade. O mundo inteiro era transitório. A Igreja não precisava mudar, precisava apenas lembrar ao mundo que isto era irrelevante! O mal está vivo! Deus triunfará! 

A Igreja precisava de um líder. Velhos não inspiram ninguém! Jesus inspirou! Jovem, vibrante, vigoroso, MILAGROSO.

- Saboreiem seu chá - o camerlengo disse aos quatro preferiti, deixando-os na biblioteca particular do Papa antes do conclave. - Seu guia vai chegar daqui a pouco. 

Os preferiti agradeceram-lhe, todos animados pela oportunidade de entrar no famoso Passetto. Extraordinário! O camerlengo, antes de sair, destrancara a porta do Passetto e, na hora combinada, a porta se abrira e um padre com aparência estrangeira e uma tocha acesa na mão fizera os entusiasmados preferiti entrarem no corredor.

De onde nunca mais saíram. Eles serão o Horror. Eu serei a Esperança.

Não. Eu sou o Horror.

O camerlengo percorria agora com passadas incertas a escuridão da Basílica de São Pedro. De alguma forma, através da insanidade e da culpa, através das imagens de seu pai, através da dor e da revelação, até mesmo através dos efeitos da morfina, ele encontrara uma brilhante clareza. Uma noção de destino. Sei qual é meu propósito, pensou, admirado com tanta lucidez. 

Desde o início, nada naquela noite correra exatamente como ele planejara. Obstáculos imprevistos haviam surgido, mas o camerlengo adaptara-se a eles, fizera ousados ajustes. Contudo, nunca imaginou que a noite terminasse daquela maneira, apesar de agora perceber a preordenada majestade de tudo. 

Não poderia terminar de outra forma. 

Ah, o pavor que sentira na Capela Sistina, achando que Deus o abandonara! Oh, os atos que Ele exigira! O camerlengo caíra de joelhos, imerso em dúvidas, os ouvidos esperando ouvir a voz de Deus, mas ouvindo apenas o silêncio. Ele implorara por um sinal. Por orientação. Rumo. A vontade de Deus era aquela? A Igreja ser destruída por escândalos e abominação? Não! Deus é que desejara que o carnerlengo agisse! Não fora Ele? 

Então, o camerlengo viu. Pousado no altar. Um sinal. Comunicação divina - algo comum visto sob uma luz incomum. O crucifixo. Singelo, feito de madeira. Jesus na cruz. E tudo se esclarecera: o camerlengo não estava só. Nunca estaria só. 

Aquela era a vontade Dele, o Seu significado. 

Deus sempre pedira grandes sacrifícios àqueles a quem mais amava. Por que o camerlengo levara tanto tempo para compreender? Seria ele temeroso demais? Humilde demais? Não fazia mais diferença. Deus encontrara um meio. O camerlengo até compreendia agora por que Robert Langdon fora salvo. Para trazer a verdade. E provocar aquele final.

Como naquela noite fatídica semanas atrás, o camerlengo foi tomado por vertigens enquanto caminhava no escuro.

Aquele era o único caminho para a salvação da Igreja! 

O camerlengo sentia-se flutuar ao descer para o Nicho dos Pálios. O efeito da morfina chegara a um ponto máximo, mas ele sabia que Deus o guiava. 

Ouvia ao longe o alarido dos cardeais saindo da capela, gritando instruções para a Guarda Suíça. 

Mas nunca o encontrariam. Não a tempo. 

Sentia-se atraído, cada vez mais depressa, descendo as escadas para o espaço rebaixado onde luziam as 99 lamparinas. Deus estava devolvendo-o ao solo consagrado. Encaminhou-se para a grade sobre a abertura que levava à Necrópole. A Necrópole, onde aquela noite terminaria. Na sagrada escuridão subterrânea.

Pegou uma lamparina e preparou-se para descer. 

Ao atravessar o Nicho, porém, ele se deteve. Algo não estava certo. Como aquilo serviria a Deus? Um fim solitário e silencioso? Jesus sofrera exposto aos olhos do mundo inteiro. A vontade de Deus não poderia ser aquela! O camerlengo tentou escutar a voz de seu Deus, mas havia apenas o confuso zumbido da droga em sua cabeça. 

- Cano - era sua mãe -, Deus tem planos para você. 

Perturbado, o camerlengo continuou andando. 

Então, sem prêambulos, Deus chegou. 

O camerlengo estacou. A luz das 99 lamparinas projetara a sombra do camerlengo na parede de mármore atrás dele. Gigantesca, temível. Um vulto nebuloso rodeado por uma luz dourada. Com as chamas cintilando em torno de seu corpo inteiro, o camerlengo parecia um anjo subindo aos céus. Parou um momento, elevou os braços estendidos, contemplou a própria imagem. E voltou-se para o alto das escadas. 

A mensagem de Deus era clara. 

Três minutos tumultuados passaram-se nos corredores fora da Capela Sistina e ninguém ainda localizara o camerlengo. Era como se o homem tivesse sido engolido pela noite. Mortati estava prestes a solicitar uma busca em grande escala na Cidade do Vaticano quando um brado jubiloso irrompeu lá fora na Praça de São Pedro. Uma comemoração espontânea da multidão, muito ruidosa. Os cardeais se entreolharam, preocupados. 

Mortati fechou os olhos. 

- Que Deus nos ajude. 

Pela segunda vez naquela noite o Colégio dos Cardeais saiu para a Praça de

São Pedro. Langdon e Vittoria foram arrastados pelo agrupamento de cardeais e também saíram para o espaço a céu aberto. As luzes das emissoras estavam todas dirigidas para a basílica. E lá, tendo acabado de aparecer na sacada papal localizada bem no centro da imensa fachada, estava o camerlengo Ventresca com os braços levantados. Mesmo à distância, ele parecia a personificação da pureza. Uma estatueta.

Vestida de branco. Inundada de luz. 

A energia na praça cresceu como a de uma grande onda e logo rompeu as barreiras formadas pela Guarda Suíça. A massa humana fluiu para a basílica em uma eufórica torrente de humanidade, uma investida irrefreável com gente cantando, os clarões das câmeras relampejando. Um pandemônio. As pessoas corriam para perto da fachada da basílica provocando um caos tão intenso que parecia que nada mais as faria parar. 

E então algo as fez parar. Por completo. 

No alto, o camerlengo fez o menor dos gestos. Juntou as duas mãos no peito. E curvou a cabeça em uma prece silenciosa. 

Uma a uma, depois às dezenas e às centenas, as pessoas curvaram as cabeças junto com ele. 

A praça mergulhou no silêncio como se um encanto tivesse sido lançado. 

Em sua mente, girando e distante, as preces do camerlengo eram um turbilhão de esperanças e tristezas.., perdoai-me, Pai... Mãe... cheia de graça... vós sois a Igreja... que possais compreender este sacrificio de seu único filho concebido. 

Oh, meu Jesus... salvai-nos do fogo do inferno.., levai todas as almas para o céu, em especial as que mais necessitam da vossa misericórdia... 

O camerlengo não abriu os olhos para ver a multidão lá embaixo, nem as câmeras de televisão, nem o mundo inteiro o assistindo. Sentia tudo isso em sua alma. Mesmo cheio de angústia, a comunhão daquele momento era embriagante. Como uma rede de conexões estendida em todas as direções pelo mundo.

Diante das telas das televisões, em casa, dentro dos carros, o mundo todo rezava junto. Como sinapses de um coração gigantesco sendo ativadas em série, as pessoas se voltavam para Deus, em dezenas de línguas, em centenas de países. As palavras que murmuravam eram recém-nascidas e ainda assim tão familiares quanto suas próprias vozes - antigas verdades marcadas nas suas almas. 

A harmonia parecia eternizar-se. 

Mas o silêncio aos poucos se desfez, cânticos alegres começaram a ser entoados novamente.

Chegara o momento. 

Santíssima Trindade, eu vos ofereço o mais precioso Corpo, Sangue e Alma... em

reparação pelas ofensas, sacrilégios e indiferenças... 

O camerlengo já sentia a dor física se instalando. Espalhava-se por sua pele como uma peste, tinha vontade de enfiar as unhas na própria carne como fizera semanas antes quando Deus viera ao seu encontro pela primeira vez. Não se esqueça da dor que Jesus suportou. Já sentia as emanações em sua garganta. Nem a morfina amenizaria o ardor. 

Meu trabalho aqui está terminado. 

O Horror cabia a ele. A Esperança, à multidão. 

No Nicho dos Pálios, o camerlengo seguira a vontade de Deus e untara seu corpo. Seu cabelo, seu rosto. Sua batina de linho branco. Sua carne. Estava encharcado com os óleos sagrados, vítreos, das lamparinas. Tinham um perfume doce como o de sua mãe, mas queimavam. A ascensão dele seria misericordiosa. Miraculosa e rápida. E o que deixaria para trás não seria escândalo, mas uma nova força e um novo prodígio. 

Deslizou a mão para dentro do bolso e segurou o pequeno isqueiro dourado que trouxera consigo do incendiario do Pálio. 

Murmurou um versículo de Juízes. E, quando se elevaram as chamas do altar para o céu, subiu também com as chamas o Anjo do Senhor. 

Seu polegar fez um movimento. 

Estavam cantando na Praça de São Pedro. 

A visão que o mundo testemunhou ninguém jamais esqueceria. 

Na alta sacada, como uma alma que se libertasse de seu envoltório físico, uma pira de chamas luminosas irrompeu do meio do corpo do camerlengo. O fogo subiu, engolfando-o por inteiro no mesmo instante. Ele não gritou. Levantou os braços acima da cabeça e olhou para o céu. A conflagração rugia a seu redor, envolvendo-o todo em uma coluna de luz. Ardeu por um tempo que pareceu infinito tendo o mundo como testemunha. As labaredas ficaram cada vez mais brilhantes. Então, gradualmente, as chamas se dissiparam. O camerlengo se fora. Se caíra por trás da balaustrada ou se desintegrara no ar, era impossível dizer. Tudo o que restou foi uma nuvem de fumaça ondulando no céu acima doVaticano.

 

CAPÍTULO 135

O dia demorou a raiar sobre a Cidade do Vaticano. 

Uma chuvarada esvaziara a Praça de São Pedro. A imprensa não arredou pé, seus representantes amontoados debaixo de guarda-chuvas e nos furgões comentando os acontecimentos da noite. Em todo o mundo, as igrejas ficaram cheias. O momento era de reflexão e discussão para todas as religiões. Havia muitas perguntas e, no entanto, as respostas pareciam provocar apenas perguntas mais profundas. Até então, o Vaticano se manteve em silêncio, sem fazer qualquer pronunciamento. 

Nas Grutas do Vaticano, o cardeal Mortati ajoelhou-se sozinho diante do sarcófago aberto. Estendeu a mão e fechou a boca enegrecida do velho Papa. Sua Santidade agora parecia em paz. Repousando serenamente para toda a eternidade. 

Aos pés de Mortati havia uma urna dourada cheia de cinzas. Mortati pessoalmente juntara as cinzas e as levara até ali. 

- Uma oportunidade de perdão - disse ele para Sua Santidade, colocando a urna dentro do sarcófago ao lado do corpo do Papa. - Não existe amor maior do que o de um pai por seu filho. 

Mortati escondeu a urna sob as dobras da roupa do Papa. Sabia que aquele local sagrado era reservado exclusivamente para as relíquias dos Papas, mas de alguma forma ele achava que aquela era uma atitude apropriada. 

- Signore? - disse alguém, entrando nas grutas. Era o tenente Chartrand, acompanhado de três guardas suíços. - Estão esperando o senhor para o conclave. 

Mortati assentiu com um gesto de cabeça. 

Lançou um último olhar para o sarcófago e depois se levantou. Dirigiu-se aos guardas. 

- Já é hora de Sua Santidade ter a paz que mereceu. 

Os guardas se adiantaram e, com grande esforço, empurraram a tampa do sarcófago de volta para o lugar.

Ela fechou com um estrondo conclusivo.

Mortati estava sozinho ao atravessar o Pátio Bórgia em direção à Capela Sistina. Uma brisa úmida agitou a batina dele. Um cardeal saiu do Palácio Apostólico e veio ao seu encontro. 

- Posso ter a honra de acompanhá-lo ao conclave, signore? 

- A honra é toda minha. 

- Signore - disse o cardeal, com ar embaraçado. - O Colégio lhe deve desculpas por ontem à noite.

Estávamos cegos com... 

- Por favor - interrompeu-o Mortati. - Nossas mentes às vezes vêem o que nossos corações gostariam que fosse verdade. 

O cardeal calou-se por um longo tempo. Finalmente, falou: 

- Já lhe contaram? O senhor não é mais nosso Grande Eleitor. 

Mortati sorriu. 

- Já. Agradeço a Deus pelas pequenas bênçãos. 

- O Colégio insistiu que o senhor fosse elegível. 

- Parece que a caridade não morreu na Igreja. 

- O senhor é um homem sábio. Seria um bom líder. 

- Sou um homem velho. Seria líder por pouco tempo. 

Os dois riram. 

Ao chegarem ao fim do Pátio Bórgia, o cardeal hesitou. Virou-se para Mortati entre perplexo e inquieto, como se a precária reverência da noite anterior se insinuasse de novo em seu coração. 

- O senhor sabia - cochichou o cardeal - que não encontramos restos na sacada papal? 

Mortati sorriu. 

- Talvez a chuva os tenha levado embora. 

O homem olhou para o céu tempestuoso. 

- É, quem sabe...

 

CAPÍTULO 136

O céu da manhã ainda estava pesado de nuvens quando saíram da chaminé da Capela Sistina as primeiras baforadas de fumaça branca. Os alvos fiapos encresparam-se no firmamento e aos poucos se dissiparam.

Lá embaixo, na Praça de São Pedro, o repórter Gunther Glick observava calado, refletindo. O capítulo final.

Chinita Macri aproximou-se por trás dele e apoiou a câmera no ombro. 

- Está na hora - disse ela. 

Glick sacudiu a cabeça com ar lúgubre. 

Virou-se para ela, alisou o cabelo e respirou fundo. Minha última transmissão, pensou. Uma pequena multidão reunira-se perto deles para assistir. 

- Ao vivo em 60 segundos - avisou Macri. 

Glick olhou por cima do ombro para o telhado da Capela Sistina. 

- Dá para pegar a fumaça? 

Macri concordou, paciente. 

- Sei como enquadrar uma cena, Gunther. 

Glick calou a boca. É claro que ela sabia. A atuação de Macri atrás da câmera na noite anterior provavelmente daria a ela o Pulitzer. A atuação dele, por outro lado... Nem queria pensar no assunto.

Tinha certeza de que a BBC o mandaria embora. Seguramente, teriam problemas legais com diversas entidades poderosas - o CERN e George Bush, inclusive. 

- Você está bem - disse Chinita, protetora, afastando o rosto da câmera com um semblante ligeiramente preocupado. - Será que posso lhe dar um... - ela hesitou, interrompendo-se. 

- Um conselho? 

Macri suspirou. 

- Eu só ia dizer que não precisa fechar a matéria com espalhafato. 

- Eu sei - replicou ele. - Você quer um resumo oficial. 

- O mais oficial do mundo. Confio em você. 

Glick sorriu. Um resumo oficial? Ela ficou maluca? Uma história como a da noite anterior merecia muito mais. Uma virada. Uma declaração estrondosa no final. Uma revelação imprevista de verdades chocantes. 

Felizmente, Glick tinha uma carta na manga. 

- No ar em... cinco... quatro... três... 

Ao olhar através da câmera, Chinita Macri reparou que havia um brilho sorrateiro no olhar de Glick. É uma loucura deixá-lo fazer isso, pensou ela. Onde eu estava com a cabeça? 

Mas o momento para reconsiderações já passara. Estavam no ar. 

- Ao vivo da Cidade do Vaticano - anunciou Glick no momento certo -, aqui é Gunther Glick, para o noticiário da BBC. - Deu um olhar solene para a câmera, com a fumaça branca da Capela Sistina subindo atrás dele. - Senhoras e senhores, agora é oficial. O cardeal Saverio Mortati,

um progressista de 79 anos, acabou de ser eleito Papa na Cidade do Vaticano. Apesar de não ser um candidato provável, Mortati foi eleito por uma unanimidade sem precedentes pelo Colégio dos Cardeais. 

Macri respirou aliviada. Glick parecia incrivelmente profissional. Até austero. Pela primeira vez em sua vida, Glick de fato se comportava e falava como um repórter. 

- Conforme já noticiamos - acrescentou Glick, a voz se intensificando perfeitamente -, o Vaticano ainda não fez qualquer pronunciamento sobre os miraculosos acontecimentos de ontem à noite. 

Ótimo! O nervosismo de Chinita diminuiu mais um pouco. Até aqui, tudo bem. 

Glick assumiu uma expressão pesarosa em seguida. 

- Embora a noite passada tenha sido uma noite de prodígios, foi também uma noite de tragédias. Quatro cardeais morreram no conflito de ontem, assim como o comandante Olivetti e o capitão Rocher, da Guarda Suíça, ambos no cumprimento do dever. Outras baixas incluem Leonardo Vetra, o renomado fisico do CERN e pioneiro da tecnologia da antimatéria, e Maximilian Kohler, o diretor do CERN, que aparentemente veio ao Vaticano em um esforço para oferecer ajuda, mas que, de acordo com as informações, faleceu nesse meio tempo. Nenhum relatório oficial foi divulgado ainda a respeito da morte do senhor Kohler, mas se supõe que tenha sido provocada por complicações decorrentes de uma antiga doença. 

Macri balançou a cabeça para ele. A reportagem estava indo muito bem. Justamente como tinham combinado. 

- E, em conseqüência da explosão no céu acima do Vaticano na última noite, a tecnologia da antimatéria produzida pelo CERN tornou-se o assunto quente entre os cientistas, despertando interesse e controvérsia. Uma declaração lida em Genebra pela assistente do senhor Kohler, Sylvie Baudeloque, anunciou esta manhã que o conselho diretor do CERN, embora entusiasmado com o potencial da antimatéria, está suspendendo todas as pesquisas e licenciamentos até que investigações posteriores sobre sua segurança possam ser efetuadas. 

Excelente, pensou Macri. Agora, a reta final. 

- Uma ausência notável em nossas telas ontem - prosseguiu Glick - foi o rosto de Robert Langdon, o professor de Harvard que veio para a Cidade do Vaticano a fim de colaborar com seus conhecimentos sobre os Illuminati. Acreditava-se que teria morrido na explosão da antimatéria, mas temos informações de que foi visto na Praça de São Pedro após a explosão. Como ele chegou ainda é especulação, mas um porta-voz do Hospital Tiberina afirma que o senhor Langdon caiu do céu no rio Tibre logo depois da meia-noite, foi medicado e liberado. - Glick arqueou as sobrancelhas para a câmera. - E se isto for verdade, essa foi certamente uma noite de milagres. 

Perfeito! Macri abriu um sorriso largo. Um resumo impecável! Agora, encerre a transmissão! 

Mas Glick não encerrou. Fez uma pausa e deu um passo na direção da câmera. Sorriu, misterioso. 

- Antes de encerrarmos, porém... 

Não! 

- . . . gostaria de convidar uma pessoa para conversar conosco. 

As mãos de Chinita gelaram segurando a câmera. Uma pessoa? Que diabos ele vai fazer? Que pessoa? Encerre agora, seu idiota! Mas sabia que era tarde demais. Glick já se comprometera. 

- O homem que vou apresentar - disse Glick - é um americano, um famoso acadêmico. 

Chinita ficou indecisa. Prendeu a respiração enquanto Glick se dirigia ao pequeno grupo de pessoas em torno deles e fazia um sinal para que seu convidado se adiantasse. Ela fez uma oração silenciosa. Por favor, que ele tenha de alguma forma localizado Robert Langdon e não um desses malucos obcecados por conspirações dos liluminati. 

Quando o convidado de Glick apareceu, porém, o coração de Macri se apertou. Não era Robert Langdon coisa nenhuma. Era um homem careca de jeans e camisa de flanela. Usava uma bengala e grossos óculos de grau. Macri ficou apavorada. É um dos malucos! 

- Quero lhes apresentar - anunciou Glick - o respeitado professor Joseph Vanek, especialista em assuntos do Vaticano da Universidade De Paul, em Chicago. 

O homem juntou-se a Glick na imagem da câmera. Não era um maníaco por conspirações. Ela até já ouvira falar daquele sujeito. 

- Doutor Vanek - começou Glick -, o senhor tem algumas informações surpreendentes para nos dar sobre o conclave da noite passada, não é? 

- De fato, tenho - disse Vanek. - Depois de uma noite de tantas surpresas, é difícil imaginar que ainda existam mais surpresas. Entretanto... - ele fez uma pausa. 

Glick sorriu. 

- Entretanto, existe um detalhe estranho em tudo isso. 

Vanek assentiu.

- Sim. E, por mais desconcertante que seja, acredito que o Colégio dos Cardeais elegeu dois Papas neste fim de semana. 

Macri quase deixou cair a câmera. 

Glick deu um sorriso astuto. 

- Dois Papas, o senhor disse? 

O especialista concordou. 

- Sim. Antes de mais nada, devo explicar que passei a vida estudando as leis da eleição papal. A judicatura do conclave é extremamente complexa e grande parte dela está hoje esquecida ou é deixada de lado como obsoleta. Talvez nem o Grande Eleitor esteja ciente daquilo que vou revelar agora. Todavia, de acordo com leis antigas e esquecidas enunciadas no Romano Pontifice Eligendo, Numero 63, a eleição não é o único método pelo qual um Papa pode ser eleito. Há outro método, mais divino. Chama-se "eleição por aclamação" - ele fez uma pausa. - E aconteceu ontem à noite. 

Glick lançou um olhar penetrante a seu convidado. 

- Como devem lembrar - prosseguiu o acadêmico -, na noite de ontem, quando o camerlengo estava no telhado da basílica, todos os cardeais embaixo começaram a gritar seu nome em uníssono. 

- Sim, eu me lembro. 

- Com essa imagem em mente, permita-me ler o texto original das antigas leis eleitorais. - O homem tirou uns papéis do bolso, pigarreou e começou a ler: - "A Eleição por Aclamação ocorre quando todos os cardeais, como se por inspiração do Espírito Santo, livre e espontaneamente, unanimemente e em voz alta,

proclamam o nome de um indivíduo." 

Glick, sorridente, perguntou: 

- O senhor está dizendo então que, ontem à noite, quando os cardeais repetiram juntos o nome de Carlo Ventresca, eles na verdade o elegeram Papa? 

- Sim, com certeza. Além disso, a lei estabelece que a eleição por aclamação suplanta a exigência de elegibilidade de um cardeal e permite que qualquer membro do clero - padre ordenado, bispo ou cardeal - seja eleito. Portanto, como pode ver, o camerlengo estaria perfeitamente qualificado para a eleição papal

por esse procedimento. - O doutor Vanek olhou direto para a câmera. 

- Os fatos são estes: Carlo Ventresca foi eleito Papa na noite de ontem. Reinou por menos de 17 minutos. E, se não tivesse ascendido aos céus milagrosamente em uma coluna de fogo, estaria agora enterrado nas Grutas do Vaticano com os Outros Papas. 

- Obrigado, doutor - e Glick deu uma piscada maliciosa para Macri. - Foi muito esclarecedor.

 

CAPÍTULO 137

Do alto dos degraus do Coliseu,vittoria riu e voltou-se para ele, lá embaixo,

chamando-o. 

- Ande, Robert! Devia ter me casado com um homem mais moço! - o sorriso dela era mágico. 

Ele tentou acompanhá-la, mas suas pernas pesavam como se fossem feitas de pedra. 

- Espere - pediu. - Por favor... 

Sua cabeça latejava. 

Robert Langdon acordou sobressaltado. 

Escuridão. 

Ficou deitado um tempo enorme na maciez estrangeira da cama, incapaz de saber onde estava. Os travesseiros eram de plumas de ganso, imensos e maravilhosos. O ar cheirava a pot-pourri. Do outro lado do quarto, duas portas de vidro abriam-se para uma generosa sacada, onde uma brisa ligeira corria sob a lua meio encoberta pelas nuvens. Langdon tentou lembrar-se de onde estava e como fora parar ali. 

Farrapos de lembranças filtravam-se por sua consciência. 

Uma pira mística de fogo, um anjo se materializando em meio à multidão, a mão leve pegando a sua mão e levando-o pela noite afora, guiando seu corpo exausto e machucado através das ruas, levando-o para lá, para aquele apartamento, empurrando-o meio adormecido para uma ducha escaldante, levando-o para aquela cama e velando por ele enquanto ele adormecia como se desmaiasse. 

Na penumbra, Langdon enxergou uma segunda cama. Os lençóis estavam desarrumados, mas a cama estava vazia. De um dos aposentos ao lado, ouviu o ruído abafado mas constante de um chuveiro aberto. 

Ao olhar de novo para a cama de Vittoria, entreviu um brasão bordado em cores nítidas no travesseiro dela e a inscrição: HOTEL BERNINI. Langdon teve de achar graça. Vittoria escolhera bem. O luxo do Velho Mundo com vista para a Fonte do Tritão, de Bernini - não havia hotel mais apropriado em toda a Roma. 

Deitado ali, ouviu batidas e percebeu o que o acordara. Alguém estava batendo à porta. Agora com mais força. 

Confuso, Langdon levantou-se. Ninguém sabe que estamos aqui, pensou, meio inquieto. Vestiu um elegante roupão do Hotel Bernini e saiu do quarto de dormir para o vestíbulo da suíte. Parou um instante junto à pesada porta de carvalho e então a abriu. 

Um homem alto e vigoroso vestido numa profusão rebuscada de amarelo e roxo olhou para ele. 

- Sou o tenente Chartrand - disse o homem. - Da Guarda Suíça do Vaticano. 

Langdon sabia muito bem quem ele era. 

- Como... como nos encontrou? 

- Vi quando saíram da praça ontem à noite. Eu os segui. Estou aliviado por ainda estarem aqui. 

Langdon sentiu uma ansiedade repentina, cogitando se os cardeais teriam enviado Chartrand para escoltá-lo juntamente com Vittoria de volta para a Cidade do Vaticano. Afinal, os dois eram as únicas pessoas além dos membros do Colégio dos Cardeais que sabiam a verdade. Eram uma ameaça. 

- Sua Santidade incumbiu-me de dar isto ao senhor - disse Chartrand, entregando-lhe um envelope lacrado com o sinete do Vaticano. Langdon abriu o envelope e leu o bilhete manuscrito. 

Senhor Langdon e Senhorita Vetra, 

Embora seja meu profundo desejo solicitar sua discrição a respeito dos assuntos das últimas 24 horas, não posso deforma alguma ter a presunção de lhes pedir mais do que já concederam. Sendo assim, sem nada pretender, recolho-me esperando que deixem seus corações os guiarem nessa questão. O mundo hoje parece um lugar melhor e talvez as perguntas sejam mais poderosas do que as respostas. 

Minha porta estará sempre aberta para ambos. 

Sua Santidade, Saverio Mortati 

Langdon leu duas vezes o bilhete. O Colégio dos Cardeais sem dúvida escolhera um líder cheio de nobreza e generosidade. 

Antes que Langdon pudesse dizer qualquer coisa, Chartrand entregou-lhe um pequeno pacote. 

- Em sinal do agradecimento de Sua Santidade. 

Langdon segurou o pacote. Era pesado e estava embrulhado em papel pardo. 

- Por decreto do Santo Padre - disse Chartrand -, esse objeto do cofre papal é confiado ao senhor em empréstimo por tempo indefinido. Sua Santidade pede apenas que em sua última vontade e testamento o senhor estabeleça que ele deve voltar para o lugar de onde veio. 

Langdon abriu o embrulho e perdeu a fala. Era o ferro de marcar. O diamante Iliuminati.

Chartrand sorriu. 

- Fique em paz - disse, virando-se para ir embora. 

- Muito... obrigado - Langdon conseguiu por fim dizer, as mãos trêmulas segurando o valioso presente. 

O guarda hesitou, já no corredor. 

- Senhor Langdon, posso lhe perguntar uma coisa? 

- Claro. 

- Os outros guardas e eu estamos curiosos. Naqueles últimos minutos, o que aconteceu lá em cima dentro do helicóptero? 

Langdon ficou um tanto apreensivo. Sabia que aquele momento chegaria - o momento da verdade. Ele e Vittoria tinham conversado sobre o assunto na noite anterior enquanto se afastavam da Praça de São Pedro. E tinham tomado uma decisão. Antes mesmo do bilhete do Papa. 

O pai de Vittoria sonhara que sua descoberta da antimatéria causaria um despertar espiritual. Os acontecimentos da véspera seguramente não eram o que ele pretendia, mas havia um fato que não se podia negar: naquele momento, em todo o mundo, as pessoas estavam pensando em Deus como nunca haviam feito antes. Quanto tempo a mágica iria durar, Langdon e Vittoria não tinham a menor idéia, mas nunca seriam capazes de quebrar aquele deslumbramento com escândalos e dúvidas. O Senhor trabalha de estranhas maneiras, disse Langdon a si mesmo, conjeturando se talvez, quem sabe, o dia anterior correra de acordo com a vontade de Deus, afinal de contas. 

- Senhor Langdon? - repetiu Chartrand. - Eu estava perguntando sobre o helicóptero... 

Langdon deu um sorriso tristonho. 

- É, eu sei - e deixou que as palavras viessem de seu coração, não de sua mente. - Pode ser que tenha sido o choque da queda, mas a minha memória... parece... está toda embaralhada... 

Chartrand fez uma cara desanimada. 

- Não se lembra de coisa alguma? 

Langdon suspirou. 

- Tenho a impressão de que isso vai ser um mistério para sempre. 

Quando Robert Langdon voltou para o quarto, a visão que o aguardava fez com que parasse no meio do caminho. Vittoria estava na sacada, de costas para a grade, os olhos profundos pousados nele. Uma verdadeira aparição dos céus, a silhueta radiante com a lua brilhando por trás. Poderia ter sido uma deusa romana, envolta em seu roupão atoalhado, a faixa apertada na cintura acentuando suas curvas esbeltas. Na rua, uma névoa clara pairava como um halo sobre a Fonte do Tritão, de Bernini. 

Langdon sentia-se tremendamente atraído por ela, mais do que por qualquer mulher em sua vida. Com cuidado, colocou o diamante Illuminati e a carta do Papa em sua mesa-de-cabeceira. Haveria muito tempo para explicar tudo aquilo depois. Foi ao encontro dela na sacada. 

Vittoria mostrou-se contente ao vê-lo. 

- Você acordou - murmurou ela, com um ar de timidez afetada. - Finalmente. 

Langdon sorriu. 

- O dia de ontem foi longo. 

Ela correu a mão pela cabeleira abundante, o decote de seu roupão abrindo- se ligeiramente. 

- E agora suponho que você queira sua recompensa. 

A observação pegou Langdon desprevenido. 

- O que... o que foi que disse? 

- Somos adultos, Robert. Pode admitir. Você está com vontade. Estou vendo em seus olhos. Uma fome intensa, carnal. - Ela sorriu. - Eu também. E essa vontade ardente está prestes a ser satisfeita. 

- Está? - ele se animou e deu um passo em direção a ela. 

- Completamente - ela lhe estendeu um cardápio de serviço de quarto. - Pedi tudo o que eles têm aqui. 

O banquete foi suntuoso. Os dois jantaram juntos ao luar, sentados na sacada saboreando uma salada frisée, trufas e risoto. Bebericaram um vinho Dolcetto e conversaram até tarde da noite. 

Langdon não precisaria ter sido especialista em Simbologia para decifrar todos os sinais que Vittoria lhe mandava. Durante a sobremesa de creme de amoras raras com savoiardi e o Romcaffe fumegante, Vittoria encostou suas pernas nuas nas dele sob a mesa e lançou-lhe um olhar carregado de significados. Parecia estar querendo que ele largasse os talheres naquele instante e a levasse para dentro em seus braços. 

Mas Langdon nada fez. Comportou-se como um perfeito cavalheiro. Este é um jogo de dois, pensou, disfarçando um sorriso maroto. 

Quando acabaram de comer, Langdon foi sentar-se sozinho na beirada de sua cama, onde ficou virando e revirando o diamante Illuminati nas mãos e fazendo comentários intermináveis sobre o milagre de sua simetria. Vittoria olhava fixo para ele, sua incompreensão transformando-se em uma evidente frustração. 

- Você acha esse ambigrama tremendamente interessante, não é? - perguntou ela. 

Langdon concordou. 

- Fascinante. 

- Diria que é a coisa mais interessante neste quarto? 

Langdon coçou a cabeça, fingindo ponderar com cuidado a pergunta. 

- Bem, há uma coisa que me interessa mais. 

Ela sorriu e se aproximou dele. 

- Que é? 

- Como você refutou aquela teoria de Einstein usando atuns. 

Vittoria lançou os braços para cima. 

- Dio mio! Chega desses atuns! Pare de brincar comigo, estou lhe avisando! 

Langdon deu um sorriso largo. 

- Em sua próxima experiência, você deveria estudar linguados e provar que a Terra é plana. 

Vittoria estava furiosa, mas os primeiros vestígios de um sorriso exasperado apareceram em seus lábios. 

- Para sua informação, professor, minha nova experiência vai marcar a história da ciência. Pretendo provar que os neutrinos têm massa. 

- Os neutrinos têm massa? - Langdon fez uma cara espantada. - Eu nem sabia que eles eram comestíveis! 

Com um movimento fluido, ela o derrubou e o imobilizou. 

- Espero que você acredite na vida depois da morte, Robert Langdon. - Vittoria ria enquanto se sentava em cima dele, as mãos prendendo-o, os olhos cheios de malícia. 

- Na verdade - disse ele, rindo mais ainda -, sempre achei dificil imaginar alguma coisa além deste mundo. 

- É mesmo? Quer dizer que nunca teve uma experiência religiosa? Um momento perfeito de êxtase glorioso? 

Langdon sacudiu a cabeça, negando. 

- Não, e duvido muito que eu seja o tipo de pessoa que jamais possa ter uma experiência religiosa. 

Vittoria deixou cair seu roupão. 

- Você nunca foi para a cama com uma mestra de ioga, foi?

                                                                                           

                                                                  Dan Brown 

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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