Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Uma Púpila Rica Ato 2º
Júlia
(deixando a janela) Minha mãe está no jardim conversando com o seu poeta.
Corina
(Entrando) Vou buscar a tua boneca...
Júlia
Para que?...
Corina
Far-lhe-emos um vestido rico... todo de gaze branco e rendas.
Júlia
Ora! na nossa idade brincar com bonecas?...
Corina
Mas então o batizado...
Júlia
Não vês que foi pretexto para te dar um baile?...
Corina
Ah! a mim ou ao padrinho?
Júlia
Em todo caso ganhas...
Corina
Que faremos esta manhã?
Júlia
Tudo e nada: por exemplo, olhar-nos ao espelho. Vem cá... (defronte do espelho)
Corina
Para que isto?... (indo para o espelho)
Júlia
Somos ambas bem bonitas!
Corina
Me parece...
Júlia
Tipos diferentes; ambos porém igualmente lindos.
Corina
Eu menos...
Júlia
Tu menos? Suponhamos! Como é então...
Corina
O que?
Júlia
(deixando o espelho) Vamos fazer um jogo?... (vai buscar um baralho de cartas, que devem ser muito friqnos [sic]) Queres ver?... Tu és a dama de ouros, eu sou a que aparecer primeiro. (corre as cartas) A de espadas. (baralha). Quem vence?...
Corina
Tu com as espadas...
Júlia
Sim? E tu com o ouro? Vejamos a quem saem os condes.4 (vai deitando as cartas a uma e outra dama) Aí tens: saiu para ti o de paus... também o de espadas. (larga as cartas) Não quero mais... Entendes isto?... (à frente da mesa)
Corina
Eu não: é acaso.
Júlia
Isto quer dizer que me é preciso que te cases... solteira, tu me fazes perder no jogo dos condes.
Corina
Estás doida?
Júlia
Eu?... Escuta: desde alguns meses que sinto a verdade: o sobrinho de d. Estefânia fazia-me a corte, e de súbito mudou de rumo, e é a ti que rende finezas, quando a tia nos visita. Pouco me importa... não deixou saudades...
Corina
E eu por ventura o animo?
4 Assim se denominava a carta que hoje chamamos Valete.
Júlia
É outra questão: o moço que costuma passar a tarde em faetonte5, esquecia os olhos em mim; mas depois ou fica vesgo, ou é só para ti que olha, quando por acaso te deixam ir à janela...
Corina
E se ele soubesse como o acho horrível!...
Júlia
É outra questão, já disse. Nos bailes, aos quais meu pai não te quer levar, é certo que os moços me cumprimentam; mas as tias, as mães e as irmãs armam-me tais laços para informar-se de ti, que evidentemente elas te prefeririam para os sobrinhos, para os filhos e os irmãos.
Corina
Ainda bem que o padrinho da boneca te ama.
Júlia
Veremos: já esperei mais. Também ele perguntou-me por ti. Desconfio da curiosidade.
Corina
Podes esperar tudo... eu te juro.
JuIia
Não podes jurar o que não sabes. Uma experiência; vejamos: (vai buscar uma flor e tira as pétalas) Sim... não, sim... não... (até o fim) não! Estás vendo? Exijo que te cases.
Corina
Acabarás por aborrecer-me, Júlia! 5 Pequena carruagem descoberta de quatro rodas.
Júlia
Eu? Se tu me fazes conhecer os homens!... Amo-te! Tu és o fogo em que provo a minha prata: se Teófilo for casquinha, boa viagem! (indo ao piano) Vamos ensaiar um dueto?
Corina
Com que fim? O senhor Firmino não consente que eu cante em sociedade.
Júlia
Mas se eu quiser...
Corina
Prefiro que não queiras.
Júlia
Tu te resignas demais: eu no teu lugar me revoltava, (abrindo o relógio) onze horas e três quartos... que dia comprido!... (boceja) Ah! É verdade: a outra questão. Corina, tu tens o coração encouraçado?...
Corina
Que pergunta, Júlia!
Júlia
Ainda não amas? Porém é indispensável que ames... digo-te que me é preciso que te cases... perde esse coração uma vez, Corina! Ah, eu tenho perdido o meu tantas vezes!... (rindo-se) Ainda bem que ele foge e volta, vai e vem, como passarinho acostumado à gaiola! Voz de mulher (dentro) Uma esmola à pobre velha pelo amor de Deus!..
Corina
Ah! É a voz da minha pobre! (querendo ir)
Teodora
Menina, já lhe temos dito que não deve ir sozinha dar esmola à sua pobre: venha comigo...
Corina
Perdoe-me... não tornarei a ir só... (vão-se as duas e voltam)
Carlos
Isto é contra o preceito do Evangelho: a esmola da caridade não deve ter testemunhas; o segredo é a santa poesia da esmola: também o segredo, o mistério é quase sempre poético; não acha?...
Júlia
Acho tudo quanto quiseres, menos somente uma coisa.
Carlos
O que?...
Júlia
O teu juízo, de que ninguém me dá notícias. (voltam as duas)
Carlos
Minha mãe, Júlia começa a provocar-me...
Teodora
É uma estouvada: eu te livro dela; vem comigo, Júlia; tenho que dizer-te (vai-se)
Júlia
(beliscando Corina) Gare aux vers!
Carlos
Ela nem sabe falar o francês, e quer fazer calembour!...
Corina
Não admira, aqui estou eu que ignoro até o português.
Carlos
Se eu não a conhecesse tão instruída, chegaria a suspeitá-lo; porque a senhora finge não entender...
Corina
O que?
Carlos
O meu penar cruel...
Corina
Então está doente?...
Carlos
Do coração, bela Corina.
Corina
Isso é grave: deve quanto antes consultar os médicos.
Carlos
Porque zomba de mim?... Que fez do buquê de violetas que lhe ofereci?
Corina
Pu-lo de molho por amor das violetas.
Carlos
Essas flores nada lhe disseram?
Corina
As flores?... Flores falando! Senhor Carlos...
Carlos
Isto desespera! Porque assim me trata? Tanta impiedade quando me rendo a seus pés?... Um desengano, é apenas sentença que infelicita; mas o escárnio é injúria bárbara. Uma vez ao menos falemos seriamente...
Corina
Se o assunto for sério...
Carlos
Não pode sê-lo mais: ouça e decida. A minha alma vai falar, e a minha vida concentrar-se nos meus lábios: o amor em que se abrasa o meu coração é puro, como o fogo dos seus olhos, amo-a como Petrarca amou a Laura, Lamartine a Graziella, Gonzaga, ou antes Dirceu à Marilia! (Corina ri) Por quem é não ria-se... tudo o que quiser, menos rir assim. Eu a adoro... adoro-a nos meus sonhos... adoro-a nas minhas tormentosas vigílias... de dia a minha alma é seu altar... de noite... (Corina põe-se a rir) podes fazer-me o favor de não rir?...
Corina
Mas é impossível conter-me! (rindo ainda)
Carlos
Oh! A senhora ri enquanto o meu coração se afoga em pranto envenenado! Nós devíamos ser como duas flores que o almo6 sopro de amor aproximasse; mas a estrela do céu não vê o verme da terra que a namora, como diz Victor Hugo! (Corina desatando a rir, leva o lenço à boca) Oh! O rir aqui é inteiramente fora de propósito!...
Corina
Mas o senhor tinha dito que ia falar seriamente...
Carlos
E que há de mais sério que este amor poético, arrebatador, vulcânico... (Corina ri) e a senhora a rir! Aí está uma coisa com que dou o cavaco! Desengane-me, se quiser, mas não ria-se... não riase...
Corina
Senhor Carlos... eu o estimo muito... faço justiça aos seus sentimentos... mas, tornando ao sério... (desata a rir)
Carlos
Basta de rir: dona Corina, além do terno interesse do meu amor, eu quero, posso e devo livrá-la do mais horrível naufrágio...
Corina
Oh! não se exponha por mim... deixe-me naufragar.
Carlos
Adorável, encantador.
Peço-lhe a mão de esposa... o marido será um escravo, o meu amor será culto a divindade... Corina a minha Eva sem o pecado... eu, o Adão, inocente, vivendo em êxtase de amor puro... (Corina desata a rir) ora... assim não se pode... a senhora a rir... e a rir... e a rir... em vez de rir diga de uma vez — sim ou não?...
Corina
Senhor Carlos... eu... (desata a rir) perdoe-me... (rindo) eu... sou assim... rio-me de tudo... (rindo)
Carlos
É de matar! Há risos mais frios que o gelo, mas faça-me o favor de não continuar a rir, minha senhora!...
Teodora
Conversaram?... O que?...
Corina
O senhor Carlos falava-me sobre flores e poesia.
Teodora
É incorrigível... jurou viver respirando perfumes e amando os anjos... mania de poeta... mas parece que também revolveram músicas... (chegando-se à mesa) e junto das músicas o álbum de Corina que também o examinaram... (toma o álbum e abre-o)
Corina
Nem sequer olhamos para ele...
Teodora
Oh! folhas de rosas... versos de Carlos... (fingindo ler)
Corina
Isto é novo para mim... (a Carlos) o sr. não podia escrever no meu álbum sem a minha permissão...
Carlos
Eu?... minha mãe... esse acróstico...
Teodora
Amo Corina!... que quer dizer isto? Reprovo severamente o proceder de ambos: menina, eu me oponho a semelhante amor... proíbo, condeno esta afeição!...
Corina
Juro que foi um abuso de seu filho!... (quase a chorar)
Carlos
Abuso!... E esta?... Minha mãe... isto é demais...
Teodora
Silêncio, senhor! (à Corina). Ordeno-lhe que nem olhe para meu filho! Não quero que o ame... (a
Carlos) Não quero que a ame... ouviram?... Não quero...
Carlos
Preciso explicar-me... não direi quem foi... mas eu não fui...
Teodora
Basta! Venha comigo, senhor. (leva Carlos pela mão) Júlia, espera-me: vou tomar o chapéu.
Corina
Que indigno proceder: querem talvez comprometer-me! (a Júlia que está lendo os versos) Deixa-me rasgar essa folha do álbum...
Júlia
Por que?... O pobre Carlos não merece tal castigo...
Corina
Mas o abuso... o desrespeito... a ousadia...
Júlia
Tens a certeza de que foi ele quem colou os versos no álbum?
Corina
Júlia!
Júlia
(indo à porta e voltando) Psiu! Aposto que isto é travessura de minha mãe... ela se empenha em casar-te com Carlos:
(olhando) eu já estou no segundo... se quiseres conta comigo.
Corina
É para enlouquecer-me...
Júlia
É; porque também meu pai te destina para Peregrino.
Corina
Sei tudo isso, há muito!...
Júlia
Então não enlouqueces mais: (olhando) todavia as exigências vão ser mais fortes... nota: minha mãe já te ordenou que não amasses a Carlos de propósito para te provocar a contrariá-la...
Corina
Oh, como é lamentável ser rica!
Júlia
Que tola!... Eu trocava a tua sorte pela minha...
Corina
Tu?... Oh, sabes tu o que é não ter mais na terra pai nem mãe?...
Júlia
(comovida) Corina!... Perdôo-a... eu não trocava, não... mas tens ao menos em mim uma irmã... e doravante...
Corina
Chegam. (vai cortar a folha do álbum e dobrá-la)
Júlia
Como se rasga um coração em uma folha de papel! Coitado de Carlos!
Teodora
Júlia, vamos: (a Corina) menina; voltaremos antes de duas horas... esqueçamos o que se passou a pouco...
Corina
Mas o sr. Carlos terá a bondade de guardar, se quiser, os seus versos... (entrega a folha do álbum)
Carlos
(recebendo) Eu quero restabelecer os fatos... protesto que...
Teodora
Agora não; vamos sair: (a Corina) a tia Suzana já está prevenida para fazer companhia a senhora.
(com voz ressentida) Silvia! Irás dizer a tia Suzana que já saímos. (a Carlos) Vem... (toma-lhe o braço)
Júlia
Adeus, Corina, até logo (abraça-a e beija-a)
Carlos
Isto não fica assim... eu explicarei os fatos, ainda que seja em outra poesia. (Vão-se os três: Silvia segue)
Corina, em pé e meditando. - Silvia volta logo - Peregrino que com expressiva mímica e falando em segredo à porta, recomenda que demore o chamado de Suzana: Silvia ri e acode: Peregrino espera à porta.
Silvia
Vou chamar a sr.ª d. Suzana..
Corina
(sem olhar) Você. (vai-se Silvia que olha e ri para Peregrino)
Peregrino
(depois de um momento) Ah! D. Corina...
Corina
(voltando-se) Senhor Peregrino...
Peregrino
Eu procurava meu pai...
Corina
Creio que não está em casa.
Peregrino
Perdoe se penetrei até aqui, estando a senhora só: minha madrasta saiu também com Júlia e Carlos...., porque não a levaram?...
Corina
Porque sou demais: não sei outra razão.
Peregrino
Pode haver outra: os tesouros mais preciosos guardam-se, escondem-se com avareza.
Corina
É portanto uma desgraça ser tesouro precioso.
Pereg.
Deixa transpirar uma queixa bem fundada: o seu viver assim é triste, já o disse a meu pai; ele porém julga um dever não expô-la às seduções e aos laços de infames exploradores da inocência e da confiança cega das donzelas ricas.
Corina
Reconheço a bondade e os cuidados do meu tutor; nem me lastimo... distraio-me tanto neste meu enclausuramento... nunca estou só... tenho o piano, o estojo do desenho... a lã e a seda com que bordo. Sou tão feliz... (vai tocar)
Pereg.
Não: a influência desses vis exploradores é fatal, porque é um perigo para a moça rica, e desanima o amor leal e honesto que teme ser confundido com as fingidas e interesseiras afeições: não pensa como eu?...
Corina
Desculpe-me: ocupada com a música, fui incivil ao ponto de não ouvir o que me dizia. Não tocarei mais. (deixa o piano e vai sentar-se à mesa)
Peregr.
Eu maldizia àqueles que simulam amor, adorando só a riqueza, e maldigo pelo que sinto:
maldigo porque me tenho condenado a fechar até hoje no coração o mais puro amor pelo receio
de uma suspeita que ofenderia a delicadeza dos meus sentimentos.
Corina
Ah! agora ouvi mas ainda arriscando-me a parecer-lhe néscia... confesso que não entendo.
(desenha)
Pereg.
Quer que eu fale bem claro?... Eu amo e me contenho à força: a donzela que amo é rica e mil ambiciosos a desejam sem ao menos tê-la visto, a querem por esposa sem a conhecerem... e eu
que a vejo todos os dias... que aprecio o valor da sua virtude... que me sinto cativo dos seus
encantos... ver que me julgo capaz de faze-la feliz... ainda não ousei, e, apenas agora, deixo escapar a primeira e incompleta confissão do amor mais ardente e santo!
Corina
Quem é que diz... ora... o desenho é como o piano... eu estava distraída... não ouvi: perdoe-me.
Pereg.
D. Corina... eu lho peço... esqueça o piano e o desenho... não me confunda com distrações que
se me afiguram desprezos cruéis...
Corina
(levantando-se) Oh, não!... Eu não desprezo pessoa alguma, ainda menos o filho do meu tutor; mas em verdade não sei o que me dizia...
Pereg.
Agora pois não toca, nem desenha: ouvir-me-á, eu a espero: estamos sós... o momento é oportuno... receba a declaração sincera do segredo mais terno...
Corina
Espere: o senhor disse que o momento é oportuno, porque estamos sós; portanto se seu pai e sua madrasta estivessem presentes, não diria o que pretende...
Pereg.
Oh! É a confissão de um sentimento irresistível cheio de celeste fogo, que só à senhora devo revelar!
Corina
É pena; mas seu pai me proibiu confidências desta natureza: decididamente só na presença dele e de sua madrasta é que poderei ouvi-lo.
Pereg.
Ah! D. Corina!... quer dizer que me autoriza...
Corina
Não... autorizar não; eu não posso autorizar o que não compreendo... toquei piano e desenhei enquanto o sr. falava... e não entendi coisa alguma...
Pereg.
Mas depois não tocou, nem desenhou, e eu falei com tanta clareza, que somente não rasguei o véu do respeito.
Corina
Então é que eu sou tão tola que nem compreendo as coisas mais claras e simples...
Pereg.
Oh, pois que se finge ignorar, não deve negar-se a ouvir a explicação mais completa...
Corina
A sós, como estamos? Deus me livre: seu pai mo proibiu...
Pereg.
D. Corina!...
Corina
Ah! Sinto os passos da tia Suzana: na presença dela sim, o senhor pode explicar-me tudo...
Pereg.
Não... agora não... tenho pressa... peço-lhe até por favor, que não refira a tia Suzana o que eu lhe dizia... (saindo)
Corina
Ainda que eu quisesse, não poderia fazê-lo: pode crer que não entendi nada. (seguindo-o dois passos. Vai a Pereg.)
Cena 8ª Corina e Suzana
Suzana
Que foi que não entendeste, menina?
Corina
O que sou obrigada a ouvir e a entender todos os dias.
Suzana
Então finges e simulas; mas no fingimento há malícia: a candura é que é agradável ao Senhor.
(senta-se)
Corina
Guardo a franqueza só para a confiança: vivo nesta casa há um ano e ainda não fui fingida com a
tia Suzana.
Suzana
Creio-te Corina; mas na tua idade que é a das expansões!...
Corina
Expansões?... Tive-as, enquanto meu pai viveu; aos dez anos porém, pobre órfã, presa no colégio, o que logo me ensinaram, foi a desconfiar de todos: falavam-me de minha riqueza e de mil perigos que me cercaram: por ordem de meu tutor acompanhava-me sempre uma espionagem suspeitosa e ainda mais nociva por ser mais de ostentação do que de vigilante
cuidado: fizeram-me adivinhar o mal e ter medo do mundo...
Suzana
Não exageras?...
Corina
Afetaram disputar-me o ar, a liberdade, os vôos de menina nas horas de recreio: menina, fui passarinho com as asas cortadas, vendo o espaço e sem poder voar, pareciam vigiar-me de dia e de noite com apreensões sinistras: tudo isso me aterrorizava, mas também me fazia crer que me achava defendida e livre de qualquer traição: todavia um dos meus professores teve tempo para tentar seduzir-me, e uma das alunas do colégio atormentar-me com o amor de um seu irmão que se propunha a raptar-me.
Suzana
Que horror!... Coitadinha...
Corina
Aos quatorze anos vim esperançosa para a casa do meu tutor, mas bem depressa tive de chorar pelo meu colégio! Aqui a prisão chega a ser cruel: a tia Suzana sabe como o sr. Firmino e sua esposa conspiram contra os direitos do meu coração, cada qual de seu lado, e no interesse material de seus filhos!
Suzana
Tens razão...
Corina
Não consentem que eu tenha uma amiga, nem que eu desça sozinha ao jardim, nem que saia uma vez de casa, ao menos para levarem-me à igreja: despediram a minha ama-de-leite que meu pai libertara com a condição de acompanhar-me até o meu casamento: enclausurada e suspeita, as criadas espiam-me, a minha escrivaninha é a miúdo revolvida [sic]: sofro injusta opressão... e
sinto-me ameaçada pela prepotência e... oh, tia Suzana... chego a temer o crime...
Suzana
Pobre menina! Tem paciência, espera.
Corina
Sim, espero; mas sem mãe, sem pai, educada na desconfiança, no medo, nos sofrimentos e nas aflições, de cinco anos de orfandade, sou o que me fizeram ser, sou fingida, e espero, sim espero, escudando-me com o fingimento.
Suzana
Era mais nobre ser franca, mas deveras nunca fingiste para enganar-me.
Corina
Nunca, porque a tia Suzana desde o primeiro dia em que me falou, falou-me a linguagem que em pequenina eu ouvi
da minha mãe.
Suzana
Obrigada... podes confiar na velha Suzana...
Corina
Com o coração todo aberto e os seus olhos, como eu o abria aos olhos de minha mãe...
Suzana
Mas... se nela guardasses um segredo...
Corina
Seria seu... e sem reservas. Até hoje a tia Suzana é o único seio leal e amigo que tem acolhido e consolado a triste órfã!...
Suzana
Órfã!... Órfã!... Não me chamarás em vão tua mãe!... Serás minha filha. (abraça-a)
Voz de mulher, dentro
Uma esmola à pobre velha pelo amor de Deus!
Corina
(estremece) Oh, é a minha pobre! Posso ir dar-lhe esmola?
Suzana
Vai... vai... e abençoada sejas, porque estendes a mão da caridade ao pobre! (Corina vai-se pela porta do jardim: Suzana levanta-se e a segue, abençoando-a, risonha; mas recua da porta e vem sentar-se triste)
Corina
(voltando alegre) Já se foi.
Suzana
Os outros pobres esmolam à escada da frente, como é que esta vem até aqui, entrando pelo jardim?
Corina
Pedi e obtive que lhe permitissem isso: é a minha pobre.
Suzana
Ah, e tu trazes sempre dinheiro contigo? (silêncio e confusão de Corina). Tinhas dinheiro, Corina?
Corina
(abrindo os olhos) Não... tia Suzana... não tinha...
Suzana
Então!... o que deste à tua pobre?...
Corina
Eu não dei... recebi... tia Suzana... recebi uma carta do homem que amo, e com quem espero casar. Ei-la aqui.
(mostra)
Suzana
Um grave erro, menina! Tu mesma sentiste que procedeste mal, pois certamente correste, recebendo essa carta. Mas... eu tinha um peso sobre o coração... tiras-te-mo; por que não mentiste.
Corina
E eu lhe digo tudo: o dr. André de Araújo ama-me...
Suzana
Doutor André de Araújo?... Não conheço: onde viste esse doutor?...
Corina
Outrora na casa de meu pai: nossas famílias eram amigas. Dez anos mais velho que eu, André muitas vezes carregou-me em seus braços, e quando me achei mais crescida, ele me dava bonecas e flores... foi no tempo em que eu era anjo... no tempo da felicidade e dos risos... depois...
Suzana
Depois?...
Corina
Meu pai morreu: vi ainda uma vez André na hora terrível do saimento para o enterro... ele
chorava também, e chegando-se a mim, beijou-me a fronte... sinto ainda esse beijo, e na minha
face uma lágrima que lhe caiu!... Separamo-nos; há dois anos, porém, André levou para o meu colégio uma sobrinha, viu-me, reconheceu-me, saudou-me com ternura melancólica, e eu não pude saudá-lo, porque desatei a chorar, lembrando-me de meu pai: depois... tornamos a ver-nos uma... dez... vinte vezes... e pouco a pouco... ah, tia Suzana não sei como foi... nós nos amamos.
Suzana
E por que não vem ele pedir-te em casamento?...
Corina
Há dois meses que o fez, e meu tutor o repeliu.
Suzana
Talvez não seja digno de ti.
Corina
André?... Eu ouvi o que diziam dele no meu colégio: é a virtude, a bondade e a ciência entesouradas em um homem a quem não seduz a minha fortuna, pois é mais rico do que eu, e desconhece a avareza por brilha [sic] pela caridade.
Suzana
Que entusiasmo! E que te diz ele em suas cartas?...
Corina
Pede-me que o ame e espere; e que respeite o meu tutor. Confesso: propus-lhe que apelasse para
a autoridade e que me arrancasse deste meu cativeiro.
Suzana
E ele?
Corina
Condenou esse recurso que provoca o ruído público, mas assegurou-me que em caso extremo não hesitará...
Suzana
E que mais...
Corina
É tudo: confiar-lhe-ei todas as suas cartas. Quer ler esta que ainda não abri?...
Suzana
Quero antes de tudo que me prometas não receber outra.
Corina
Oh, e que será de mim?...
Suzana
Sairei em breve a informar-me sobre o doutor André. Se ele for honrado e virtuoso, como o acreditas, a velha
Suzana tem uma missão a cumprir, protegerá o amor da órfã, o amor de sua filha em nome de Deus.
Corina
E meu tutor? E sua esposa?... E Peregrino e Carlos?...
Suzana
Falei-te em Deus: como podes temer os homens?... Se o teu amor é puro, os anjos o abençoam;
se és vítima de opressão e se a violência te ameaça, levanta os olhos para o céu: tem fé!...
Corina
Esperança e fé, meu Deus!... (de joelhos)
Suzana
Reza! A oração é já em si uma graça, porque na oração falamos ao Senhor. Corina, reza à virgem mãe de Jesus que é
a protetora e a mãe sagrada das órfãs...
Corina
(começando a rezar) Ave Maria!...
Suzana
Espera: tenho-te ouvido em suave canto a saudação sublime: reza cantando, mas cantando com fé! Se assim rezares com fé, as harmonias do teu canto serão asas de anjo a levar tua oração ao céu!...
Corina
Oh, sim! fé! E com a minha fé, a esperança do meu amor! (senta-se à harmônica e canta — Ave
Maria. Suzana, em pé, ergue os braços. (Cai o pano)
Ato 1 - Ato 2 - Ato 3 - Ato 4 - Ato 5
Carlos Cunha Arte & Produção Visual
Planeta Criança Literatura Licenciosa