Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Uma Púpila Rica Ato 2 / Joaquim Manuel de Macedo
Uma Púpila Rica Ato 2 / Joaquim Manuel de Macedo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Uma Púpila Rica Ato 2º

 

Cena 1ª

Júlia

(deixando a janela) Minha mãe está no jardim conversando com o seu poeta.

Corina

(Entrando) Vou buscar a tua boneca...

Júlia

Para que?...

Corina

Far-lhe-emos um vestido rico... todo de gaze branco e rendas.

Júlia

Ora! na nossa idade brincar com bonecas?...

Corina

Mas então o batizado...

Júlia

Não vês que foi pretexto para te dar um baile?...

Corina

Ah! a mim ou ao padrinho?

Júlia

Em todo caso ganhas...

Corina

Que faremos esta manhã?

Júlia

Tudo e nada: por exemplo, olhar-nos ao espelho. Vem cá... (defronte do espelho)

Corina

Para que isto?... (indo para o espelho)

Júlia

Somos ambas bem bonitas!

Corina

Me parece...

Júlia

Tipos diferentes; ambos porém igualmente lindos.

Corina

Eu menos...

Júlia

Tu menos? Suponhamos! Como é então...

Corina

O que?

Júlia

(deixando o espelho) Vamos fazer um jogo?... (vai buscar um baralho de cartas, que devem ser muito friqnos [sic]) Queres ver?... Tu és a dama de ouros, eu sou a que aparecer primeiro. (corre as cartas) A de espadas. (baralha). Quem vence?...

Corina

Tu com as espadas...

Júlia

Sim? E tu com o ouro? Vejamos a quem saem os condes.4 (vai deitando as cartas a uma e outra dama) Aí tens: saiu para ti o de paus... também o de espadas. (larga as cartas) Não quero mais... Entendes isto?... (à frente da mesa)

Corina

Eu não: é acaso.

Júlia

Isto quer dizer que me é preciso que te cases... solteira, tu me fazes perder no jogo dos condes.

Corina

Estás doida?

Júlia

Eu?... Escuta: desde alguns meses que sinto a verdade: o sobrinho de d. Estefânia fazia-me a corte, e de súbito mudou de rumo, e é a ti que rende finezas, quando a tia nos visita. Pouco me importa... não deixou saudades...

Corina

E eu por ventura o animo?

4 Assim se denominava a carta que hoje chamamos Valete.

Júlia

É outra questão: o moço que costuma passar a tarde em faetonte5, esquecia os olhos em mim; mas depois ou fica vesgo, ou é só para ti que olha, quando por acaso te deixam ir à janela...

Corina

E se ele soubesse como o acho horrível!...

Júlia

É outra questão, já disse. Nos bailes, aos quais meu pai não te quer levar, é certo que os moços me cumprimentam; mas as tias, as mães e as irmãs armam-me tais laços para informar-se de ti, que evidentemente elas te prefeririam para os sobrinhos, para os filhos e os irmãos.

Corina

Ainda bem que o padrinho da boneca te ama.

Júlia

Veremos: já esperei mais. Também ele perguntou-me por ti. Desconfio da curiosidade.

Corina

Podes esperar tudo... eu te juro.

JuIia

Não podes jurar o que não sabes. Uma experiência; vejamos: (vai buscar uma flor e tira as pétalas) Sim... não, sim... não... (até o fim) não! Estás vendo? Exijo que te cases.

Corina

Acabarás por aborrecer-me, Júlia! 5 Pequena carruagem descoberta de quatro rodas.

Júlia

Eu? Se tu me fazes conhecer os homens!... Amo-te! Tu és o fogo em que provo a minha prata: se Teófilo for casquinha, boa viagem! (indo ao piano) Vamos ensaiar um dueto?

Corina

Com que fim? O senhor Firmino não consente que eu cante em sociedade.

Júlia

Mas se eu quiser...

Corina

Prefiro que não queiras.

Júlia

Tu te resignas demais: eu no teu lugar me revoltava, (abrindo o relógio) onze horas e três quartos... que dia comprido!... (boceja) Ah! É verdade: a outra questão. Corina, tu tens o coração encouraçado?...

Corina

Que pergunta, Júlia!

Júlia

Ainda não amas? Porém é indispensável que ames... digo-te que me é preciso que te cases... perde esse coração uma vez, Corina! Ah, eu tenho perdido o meu tantas vezes!... (rindo-se) Ainda bem que ele foge e volta, vai e vem, como passarinho acostumado à gaiola! Voz de mulher (dentro) Uma esmola à pobre velha pelo amor de Deus!..

Corina

Ah! É a voz da minha pobre! (querendo ir)

 

Cena 2ª Júlia, Corina, Teodora e Carlos

Teodora

Menina, já lhe temos dito que não deve ir sozinha dar esmola à sua pobre: venha comigo...

Corina

Perdoe-me... não tornarei a ir só... (vão-se as duas e voltam)

Carlos

Isto é contra o preceito do Evangelho: a esmola da caridade não deve ter testemunhas; o segredo é a santa poesia da esmola: também o segredo, o mistério é quase sempre poético; não acha?...

Júlia

Acho tudo quanto quiseres, menos somente uma coisa.

Carlos

O que?...

Júlia

O teu juízo, de que ninguém me dá notícias. (voltam as duas)

Carlos

Minha mãe, Júlia começa a provocar-me...

Teodora

É uma estouvada: eu te livro dela; vem comigo, Júlia; tenho que dizer-te (vai-se)

Júlia

(beliscando Corina) Gare aux vers!

 

Cena 3ª Corina e Carlos

Carlos

Ela nem sabe falar o francês, e quer fazer calembour!...

Corina

Não admira, aqui estou eu que ignoro até o português.

Carlos

Se eu não a conhecesse tão instruída, chegaria a suspeitá-lo; porque a senhora finge não entender...

Corina

O que?

Carlos

O meu penar cruel...

Corina

Então está doente?...

Carlos

Do coração, bela Corina.

Corina

Isso é grave: deve quanto antes consultar os médicos.

Carlos

Porque zomba de mim?... Que fez do buquê de violetas que lhe ofereci?

Corina

Pu-lo de molho por amor das violetas.

Carlos

Essas flores nada lhe disseram?

Corina

As flores?... Flores falando! Senhor Carlos...

Carlos

Isto desespera! Porque assim me trata? Tanta impiedade quando me rendo a seus pés?... Um desengano, é apenas sentença que infelicita; mas o escárnio é injúria bárbara. Uma vez ao menos falemos seriamente...

Corina

Se o assunto for sério...

Carlos

Não pode sê-lo mais: ouça e decida. A minha alma vai falar, e a minha vida concentrar-se nos meus lábios: o amor em que se abrasa o meu coração é puro, como o fogo dos seus olhos, amo-a como Petrarca amou a Laura, Lamartine a Graziella, Gonzaga, ou antes Dirceu à Marilia! (Corina ri) Por quem é não ria-se... tudo o que quiser, menos rir assim. Eu a adoro... adoro-a nos meus sonhos... adoro-a nas minhas tormentosas vigílias... de dia a minha alma é seu altar... de noite... (Corina põe-se a rir) podes fazer-me o favor de não rir?...

Corina

Mas é impossível conter-me! (rindo ainda)

Carlos

Oh! A senhora ri enquanto o meu coração se afoga em pranto envenenado! Nós devíamos ser como duas flores que o almo6 sopro de amor aproximasse; mas a estrela do céu não vê o verme da terra que a namora, como diz Victor Hugo! (Corina desatando a rir, leva o lenço à boca) Oh! O rir aqui é inteiramente fora de propósito!...

Corina

Mas o senhor tinha dito que ia falar seriamente...

Carlos

E que há de mais sério que este amor poético, arrebatador, vulcânico... (Corina ri) e a senhora a rir! Aí está uma coisa com que dou o cavaco! Desengane-me, se quiser, mas não ria-se... não riase...

Corina

Senhor Carlos... eu o estimo muito... faço justiça aos seus sentimentos... mas, tornando ao sério... (desata a rir)

Carlos

Basta de rir: dona Corina, além do terno interesse do meu amor, eu quero, posso e devo livrá-la do mais horrível naufrágio...

Corina

Oh! não se exponha por mim... deixe-me naufragar.

Carlos

Adorável, encantador.

Peço-lhe a mão de esposa... o marido será um escravo, o meu amor será culto a divindade... Corina a minha Eva sem o pecado... eu, o Adão, inocente, vivendo em êxtase de amor puro... (Corina desata a rir) ora... assim não se pode... a senhora a rir... e a rir... e a rir... em vez de rir diga de uma vez — sim ou não?...

Corina

Senhor Carlos... eu... (desata a rir) perdoe-me... (rindo) eu... sou assim... rio-me de tudo... (rindo)

Carlos

É de matar! Há risos mais frios que o gelo, mas faça-me o favor de não continuar a rir, minha senhora!...

 

Cena 4ª Corina, Carlos, Teodora e Júlia

Teodora

Conversaram?... O que?...

Corina

O senhor Carlos falava-me sobre flores e poesia.

Teodora

É incorrigível... jurou viver respirando perfumes e amando os anjos... mania de poeta... mas parece que também revolveram músicas... (chegando-se à mesa) e junto das músicas o álbum de Corina que também o examinaram... (toma o álbum e abre-o)

Corina

Nem sequer olhamos para ele...

Teodora

Oh! folhas de rosas... versos de Carlos... (fingindo ler)

Corina

Isto é novo para mim... (a Carlos) o sr. não podia escrever no meu álbum sem a minha permissão...

Carlos

Eu?... minha mãe... esse acróstico...

Teodora

Amo Corina!... que quer dizer isto? Reprovo severamente o proceder de ambos: menina, eu me oponho a semelhante amor... proíbo, condeno esta afeição!...

Corina

Juro que foi um abuso de seu filho!... (quase a chorar)

Carlos

Abuso!... E esta?... Minha mãe... isto é demais...

Teodora

Silêncio, senhor! (à Corina). Ordeno-lhe que nem olhe para meu filho! Não quero que o ame... (a

Carlos) Não quero que a ame... ouviram?... Não quero...

Carlos

Preciso explicar-me... não direi quem foi... mas eu não fui...

Teodora

Basta! Venha comigo, senhor. (leva Carlos pela mão) Júlia, espera-me: vou tomar o chapéu.

 

Cena 5ª Corina e Júlia

Corina

Que indigno proceder: querem talvez comprometer-me! (a Júlia que está lendo os versos) Deixa-me rasgar essa folha do álbum...

Júlia

Por que?... O pobre Carlos não merece tal castigo...

Corina

Mas o abuso... o desrespeito... a ousadia...

Júlia

Tens a certeza de que foi ele quem colou os versos no álbum?

Corina

Júlia!

Júlia

(indo à porta e voltando) Psiu! Aposto que isto é travessura de minha mãe... ela se empenha em casar-te com Carlos:

(olhando) eu já estou no segundo... se quiseres conta comigo.

Corina

É para enlouquecer-me...

Júlia

É; porque também meu pai te destina para Peregrino.

Corina

Sei tudo isso, há muito!...

Júlia

Então não enlouqueces mais: (olhando) todavia as exigências vão ser mais fortes... nota: minha mãe já te ordenou que não amasses a Carlos de propósito para te provocar a contrariá-la...

Corina

Oh, como é lamentável ser rica!

Júlia

Que tola!... Eu trocava a tua sorte pela minha...

Corina

Tu?... Oh, sabes tu o que é não ter mais na terra pai nem mãe?...

Júlia

(comovida) Corina!... Perdôo-a... eu não trocava, não... mas tens ao menos em mim uma irmã... e doravante...

Corina

Chegam. (vai cortar a folha do álbum e dobrá-la)

Júlia

Como se rasga um coração em uma folha de papel! Coitado de Carlos!

 

Cena 6ª Corina, Júlia, Teodora, e depois Carlos e Silvia

Teodora

Júlia, vamos: (a Corina) menina; voltaremos antes de duas horas... esqueçamos o que se passou a pouco...

Corina

Mas o sr. Carlos terá a bondade de guardar, se quiser, os seus versos... (entrega a folha do álbum)

Carlos

(recebendo) Eu quero restabelecer os fatos... protesto que...

Teodora

Agora não; vamos sair: (a Corina) a tia Suzana já está prevenida para fazer companhia a senhora.

(com voz ressentida) Silvia! Irás dizer a tia Suzana que já saímos. (a Carlos) Vem... (toma-lhe o braço)

Júlia

Adeus, Corina, até logo (abraça-a e beija-a)

Carlos

Isto não fica assim... eu explicarei os fatos, ainda que seja em outra poesia. (Vão-se os três: Silvia segue)

 

Cena 7ª

Corina, em pé e meditando. - Silvia volta logo - Peregrino que com expressiva mímica e falando em segredo à porta, recomenda que demore o chamado de Suzana: Silvia ri e acode: Peregrino espera à porta.

Silvia

Vou chamar a sr.ª d. Suzana..

Corina

(sem olhar) Você. (vai-se Silvia que olha e ri para Peregrino)

Peregrino

(depois de um momento) Ah! D. Corina...

Corina

(voltando-se) Senhor Peregrino...

Peregrino

Eu procurava meu pai...

Corina

Creio que não está em casa.

Peregrino

Perdoe se penetrei até aqui, estando a senhora só: minha madrasta saiu também com Júlia e Carlos...., porque não a levaram?...

Corina

Porque sou demais: não sei outra razão.

Peregrino

Pode haver outra: os tesouros mais preciosos guardam-se, escondem-se com avareza.

Corina

É portanto uma desgraça ser tesouro precioso.

Pereg.

Deixa transpirar uma queixa bem fundada: o seu viver assim é triste, já o disse a meu pai; ele porém julga um dever não expô-la às seduções e aos laços de infames exploradores da inocência e da confiança cega das donzelas ricas.

Corina

Reconheço a bondade e os cuidados do meu tutor; nem me lastimo... distraio-me tanto neste meu enclausuramento... nunca estou só... tenho o piano, o estojo do desenho... a lã e a seda com que bordo. Sou tão feliz... (vai tocar)

Pereg.

Não: a influência desses vis exploradores é fatal, porque é um perigo para a moça rica, e desanima o amor leal e honesto que teme ser confundido com as fingidas e interesseiras afeições: não pensa como eu?...

Corina

Desculpe-me: ocupada com a música, fui incivil ao ponto de não ouvir o que me dizia. Não tocarei mais. (deixa o piano e vai sentar-se à mesa)

Peregr.

Eu maldizia àqueles que simulam amor, adorando só a riqueza, e maldigo pelo que sinto:

maldigo porque me tenho condenado a fechar até hoje no coração o mais puro amor pelo receio

de uma suspeita que ofenderia a delicadeza dos meus sentimentos.

Corina

Ah! agora ouvi mas ainda arriscando-me a parecer-lhe néscia... confesso que não entendo.

(desenha)

Pereg.

Quer que eu fale bem claro?... Eu amo e me contenho à força: a donzela que amo é rica e mil ambiciosos a desejam sem ao menos tê-la visto, a querem por esposa sem a conhecerem... e eu

que a vejo todos os dias... que aprecio o valor da sua virtude... que me sinto cativo dos seus

encantos... ver que me julgo capaz de faze-la feliz... ainda não ousei, e, apenas agora, deixo escapar a primeira e incompleta confissão do amor mais ardente e santo!

Corina

Quem é que diz... ora... o desenho é como o piano... eu estava distraída... não ouvi: perdoe-me.

Pereg.

D. Corina... eu lho peço... esqueça o piano e o desenho... não me confunda com distrações que

se me afiguram desprezos cruéis...

Corina

(levantando-se) Oh, não!... Eu não desprezo pessoa alguma, ainda menos o filho do meu tutor; mas em verdade não sei o que me dizia...

Pereg.

Agora pois não toca, nem desenha: ouvir-me-á, eu a espero: estamos sós... o momento é oportuno... receba a declaração sincera do segredo mais terno...

Corina

Espere: o senhor disse que o momento é oportuno, porque estamos sós; portanto se seu pai e sua madrasta estivessem presentes, não diria o que pretende...

Pereg.

Oh! É a confissão de um sentimento irresistível cheio de celeste fogo, que só à senhora devo revelar!

Corina

É pena; mas seu pai me proibiu confidências desta natureza: decididamente só na presença dele e de sua madrasta é que poderei ouvi-lo.

Pereg.

Ah! D. Corina!... quer dizer que me autoriza...

Corina

Não... autorizar não; eu não posso autorizar o que não compreendo... toquei piano e desenhei enquanto o sr. falava... e não entendi coisa alguma...

Pereg.

Mas depois não tocou, nem desenhou, e eu falei com tanta clareza, que somente não rasguei o véu do respeito.

Corina

Então é que eu sou tão tola que nem compreendo as coisas mais claras e simples...

Pereg.

Oh, pois que se finge ignorar, não deve negar-se a ouvir a explicação mais completa...

Corina

A sós, como estamos? Deus me livre: seu pai mo proibiu...

Pereg.

D. Corina!...

Corina

Ah! Sinto os passos da tia Suzana: na presença dela sim, o senhor pode explicar-me tudo...

Pereg.

Não... agora não... tenho pressa... peço-lhe até por favor, que não refira a tia Suzana o que eu lhe dizia... (saindo)

Corina

Ainda que eu quisesse, não poderia fazê-lo: pode crer que não entendi nada. (seguindo-o dois passos. Vai a Pereg.)

 

Cena 8ª Corina e Suzana

Suzana

Que foi que não entendeste, menina?

Corina

O que sou obrigada a ouvir e a entender todos os dias.

Suzana

Então finges e simulas; mas no fingimento há malícia: a candura é que é agradável ao Senhor.

(senta-se)

Corina

Guardo a franqueza só para a confiança: vivo nesta casa há um ano e ainda não fui fingida com a

tia Suzana.

Suzana

Creio-te Corina; mas na tua idade que é a das expansões!...

Corina

Expansões?... Tive-as, enquanto meu pai viveu; aos dez anos porém, pobre órfã, presa no colégio, o que logo me ensinaram, foi a desconfiar de todos: falavam-me de minha riqueza e de mil perigos que me cercaram: por ordem de meu tutor acompanhava-me sempre uma espionagem suspeitosa e ainda mais nociva por ser mais de ostentação do que de vigilante

cuidado: fizeram-me adivinhar o mal e ter medo do mundo...

Suzana

Não exageras?...

Corina

Afetaram disputar-me o ar, a liberdade, os vôos de menina nas horas de recreio: menina, fui passarinho com as asas cortadas, vendo o espaço e sem poder voar, pareciam vigiar-me de dia e de noite com apreensões sinistras: tudo isso me aterrorizava, mas também me fazia crer que me achava defendida e livre de qualquer traição: todavia um dos meus professores teve tempo para tentar seduzir-me, e uma das alunas do colégio atormentar-me com o amor de um seu irmão que se propunha a raptar-me.

Suzana

Que horror!... Coitadinha...

Corina

Aos quatorze anos vim esperançosa para a casa do meu tutor, mas bem depressa tive de chorar pelo meu colégio! Aqui a prisão chega a ser cruel: a tia Suzana sabe como o sr. Firmino e sua esposa conspiram contra os direitos do meu coração, cada qual de seu lado, e no interesse material de seus filhos!

Suzana

Tens razão...

Corina

Não consentem que eu tenha uma amiga, nem que eu desça sozinha ao jardim, nem que saia uma vez de casa, ao menos para levarem-me à igreja: despediram a minha ama-de-leite que meu pai libertara com a condição de acompanhar-me até o meu casamento: enclausurada e suspeita, as criadas espiam-me, a minha escrivaninha é a miúdo revolvida [sic]: sofro injusta opressão... e

sinto-me ameaçada pela prepotência e... oh, tia Suzana... chego a temer o crime...

Suzana

Pobre menina! Tem paciência, espera.

Corina

Sim, espero; mas sem mãe, sem pai, educada na desconfiança, no medo, nos sofrimentos e nas aflições, de cinco anos de orfandade, sou o que me fizeram ser, sou fingida, e espero, sim espero, escudando-me com o fingimento.

Suzana

Era mais nobre ser franca, mas deveras nunca fingiste para enganar-me.

Corina

Nunca, porque a tia Suzana desde o primeiro dia em que me falou, falou-me a linguagem que em pequenina eu ouvi

da minha mãe.

Suzana

Obrigada... podes confiar na velha Suzana...

Corina

Com o coração todo aberto e os seus olhos, como eu o abria aos olhos de minha mãe...

Suzana

Mas... se nela guardasses um segredo...

Corina

Seria seu... e sem reservas. Até hoje a tia Suzana é o único seio leal e amigo que tem acolhido e consolado a triste órfã!...

Suzana

Órfã!... Órfã!... Não me chamarás em vão tua mãe!... Serás minha filha. (abraça-a)

Voz de mulher, dentro

Uma esmola à pobre velha pelo amor de Deus!

Corina

(estremece) Oh, é a minha pobre! Posso ir dar-lhe esmola?

Suzana

Vai... vai... e abençoada sejas, porque estendes a mão da caridade ao pobre! (Corina vai-se pela porta do jardim: Suzana levanta-se e a segue, abençoando-a, risonha; mas recua da porta e vem sentar-se triste)

Corina

(voltando alegre) Já se foi.

Suzana

Os outros pobres esmolam à escada da frente, como é que esta vem até aqui, entrando pelo jardim?

Corina

Pedi e obtive que lhe permitissem isso: é a minha pobre.

Suzana

Ah, e tu trazes sempre dinheiro contigo? (silêncio e confusão de Corina). Tinhas dinheiro, Corina?

Corina

(abrindo os olhos) Não... tia Suzana... não tinha...

Suzana

Então!... o que deste à tua pobre?...

Corina

Eu não dei... recebi... tia Suzana... recebi uma carta do homem que amo, e com quem espero casar. Ei-la aqui.

(mostra)

Suzana

Um grave erro, menina! Tu mesma sentiste que procedeste mal, pois certamente correste, recebendo essa carta. Mas... eu tinha um peso sobre o coração... tiras-te-mo; por que não mentiste.

Corina

E eu lhe digo tudo: o dr. André de Araújo ama-me...

Suzana

Doutor André de Araújo?... Não conheço: onde viste esse doutor?...

Corina

Outrora na casa de meu pai: nossas famílias eram amigas. Dez anos mais velho que eu, André muitas vezes carregou-me em seus braços, e quando me achei mais crescida, ele me dava bonecas e flores... foi no tempo em que eu era anjo... no tempo da felicidade e dos risos... depois...

Suzana

Depois?...

Corina

Meu pai morreu: vi ainda uma vez André na hora terrível do saimento para o enterro... ele

chorava também, e chegando-se a mim, beijou-me a fronte... sinto ainda esse beijo, e na minha

face uma lágrima que lhe caiu!... Separamo-nos; há dois anos, porém, André levou para o meu colégio uma sobrinha, viu-me, reconheceu-me, saudou-me com ternura melancólica, e eu não pude saudá-lo, porque desatei a chorar, lembrando-me de meu pai: depois... tornamos a ver-nos uma... dez... vinte vezes... e pouco a pouco... ah, tia Suzana não sei como foi... nós nos amamos.

Suzana

E por que não vem ele pedir-te em casamento?...

Corina

Há dois meses que o fez, e meu tutor o repeliu.

Suzana

Talvez não seja digno de ti.

Corina

André?... Eu ouvi o que diziam dele no meu colégio: é a virtude, a bondade e a ciência entesouradas em um homem a quem não seduz a minha fortuna, pois é mais rico do que eu, e desconhece a avareza por brilha [sic] pela caridade.

Suzana

Que entusiasmo! E que te diz ele em suas cartas?...

Corina

Pede-me que o ame e espere; e que respeite o meu tutor. Confesso: propus-lhe que apelasse para

a autoridade e que me arrancasse deste meu cativeiro.

Suzana

E ele?

Corina

Condenou esse recurso que provoca o ruído público, mas assegurou-me que em caso extremo não hesitará...

Suzana

E que mais...

Corina

É tudo: confiar-lhe-ei todas as suas cartas. Quer ler esta que ainda não abri?...

Suzana

Quero antes de tudo que me prometas não receber outra.

Corina

Oh, e que será de mim?...

Suzana

Sairei em breve a informar-me sobre o doutor André. Se ele for honrado e virtuoso, como o acreditas, a velha

Suzana tem uma missão a cumprir, protegerá o amor da órfã, o amor de sua filha em nome de Deus.

Corina

E meu tutor? E sua esposa?... E Peregrino e Carlos?...

Suzana

Falei-te em Deus: como podes temer os homens?... Se o teu amor é puro, os anjos o abençoam;

se és vítima de opressão e se a violência te ameaça, levanta os olhos para o céu: tem fé!...

Corina

Esperança e fé, meu Deus!... (de joelhos)

Suzana

Reza! A oração é já em si uma graça, porque na oração falamos ao Senhor. Corina, reza à virgem mãe de Jesus que é

a protetora e a mãe sagrada das órfãs...

Corina

(começando a rezar) Ave Maria!...

Suzana

Espera: tenho-te ouvido em suave canto a saudação sublime: reza cantando, mas cantando com fé! Se assim rezares com fé, as harmonias do teu canto serão asas de anjo a levar tua oração ao céu!...

Corina

Oh, sim! fé! E com a minha fé, a esperança do meu amor! (senta-se à harmônica e canta — Ave

Maria. Suzana, em pé, ergue os braços. (Cai o pano)

Fim do 2º ato

                                                                                            

Ato 1 - Ato 2 - Ato 3 - Ato 4 - Ato 5

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa