Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Uma Púpila Rica
Sala de estudo e de trabalho de senhoras: duas portas ao fundo: ao lado direito uma porta ao fundo e janelas abrindo para o jardim: piano, harmônico ou harpa, músicas, mesa contendo frutas, papéis, álbum, estojos de desenho, bastidores ricos para bordados, grande espelho, mobília elegante e apropriada, ornamentos, quadros de trabalhos de seda e de flores, flores naturais e vasos.
Teodora
Isso não... eu não posso deixar de convidar Estefânia: sei que o sobrinho tentou fazer ou mesmo fez a corte a Corina e sou capaz de jurar que a tia não foi estranha a isso; mas tua pupila repelia definitivamente a um, e eu te asseguro que hei de espantar a outra.
Firmino
Todavia! conhecer-lhes as intenções e chamá-los para casa é o maior dos erros: bastam as visitas com que eles me importunam...
Teodora
Queres que eu rompa minhas relações com Estefânia?... digo-te que não vale a pena lembrar a pretensão já anulada de Fortunato... sabes, se também devo ter cuidado...
Firmino
Bem. (toma nota a lápis) Vá mais d. Estefânia e seu sobrinho Fortunato. (dobra o papel) Dezoito convidados: não passo além.
Teodora
Por exceção valia a pena dar um baile: o filho do barão do Lago Azul se vaneceria do obséquio: asseguro-te que ele está cativo de Júlia.
Firmino
Parece, mas começamos errando: embora Teófilo já tivesse uma vez encontrado Júlia em casa de tua irmã, devias quando esse mancebo te foi apresentado anteontem, limitar-te a oferecer-lhe a nossa amizade.
Teodora
Foi isso que fiz, já te disse vinte vezes; conheces porém a cabecinha de nossa filha: apenas minha irmã fez-lhe o presente da boneca, propôs logo o batizado, declarou-se madrinha, e convidou para padrinho Teófilo que aceitou encantado. Que poderia eu dizer?...
Firmino
Júlia está muito adiantada! convém abrir-lhe os olhos, ou pelo contrário aconselhá-la a não abrilos tanto...
Teodora
Inocência de menina...
Firmino
Inocência?... o batizado é pretexto para festa, e a boneca é chamariz de bonecas. Teodora Ainda bem que o boneco é filho de fazendeiro riquíssimo.
Firmino
Sim, o partido é ótimo: todavia ... tua irmã foi casada com um parente de Teófilo: foi ela quem deu a boneca a Júlia; a festa do tal batizado bem poderia ter sido determinada para sua casa... eu faria as despesas: depois convidaríamos Teófilo a jantar conosco...
Teodora
Isso não tem senso comum, Firmino; minha irmã é uma pobre paralítica, e somos nós que temos interesse em atrair o filho do barão do Lago Azul.
Firmino
E só por esta razão cedi, mas vê bem que as reuniões e saraus em nossa casa por ora não possa convir-nos: Corina já fez 15 anos, e apesar do retiro em que a temos, é patente o cerco que lhe fazem: depois do dr. André de Araújo, conto mais dois pretendentes ao seu dote.
Teodora
Devias tê-la deixado presa no colégio até que ela se resolvesse.
Firmino
No colégio até os quinze anos! Já estaria casada sem vontade própria, sem audiência minha, e sem licença do juiz dos órfãos.
Teodora
E por causa de Corina há um ano que suspendemos os nossos saraus! É preciso acabar com isso!
Firmino
Maldita ambição dos homens! Se Corina não tivesse seus duzentos contos de réis, nem pensaria na minha pupila. Poucos a têm, e ela tem mais pretendentes do que Júlia: eu até desconfio de Teófilo...
Teodora
De quem a culpa? Desde alguns meses Corina podia estar casada com o meu Carlos, se não te obstinasses em querê-la para o filho da tua primeira mulher!
Firmino
Recomeças, Teodora!...
Teodora
Sempre me fizeste a vontade; agora, porém, queres sacrificar meu filho à memória e ao amor da tua defunta: é porque sou muito menos amada do que ela o foi.
Firmino
Reflete, Teodora: teu primeiro marido foi rico, e na herança paterna Carlos possui bom princípio de fortuna, o meu Peregrino não herdou um real de sua mãe e assim...
Teodora
Tenho eu culpa de que a tua defunta não tivesse onde cair morta? Há dezessete anos que o teu Peregrino gozou, não pouco, do que me deixou o pai de Carlos. Não basta?...
Firmino
Neste assunto hei de resistir aos teus caprichos.
Teodora
E ainda há pouco falavas na maldita ambição!... Que tutor modelo és tu, Firmino!...
Firmino
Principias a ofender-me!...
Teodora
Se me provocas!... Eu quero Corina casada com o meu Carlos!
Firmino
Que inocente paixão por Corina!..
Teodora
É como a tua... melhor do que a tua!
Firmino
Corina é minha pupila! Sou eu que tenho direitos sobre ela.
Teodora
Menos a de condená-la a ser desgraçada com teu filho, que só quer empolgar-lhe o dote...
Firmino
Empolgar-lhe!... ah! mas se fosse Carlos... Teodora... isto não é decente... acabemos...
Suzana
Não é decente, não: (avançando) os criados podem ouvir!
Firmino
Tia Suzana!
Suzana
Acabo de voltar da igreja com a alma cheia de consolação, e, entrando em casa, acho logo um desgosto!... Por que não procuram a igreja, como eu?...
Teodora
Minha tia...
Suzana
Vocês viveram bem até hoje. Deus nosso Senhor estava nesta casa; que tentação maligna os expõe à perder a celeste graça?...
Teodora
Nós nos amamos, como antes, minha tia. Tivemos apenas arrufos sem conseqüência.
Suzana
Não, eu sei o que é. Desde algum tempo vocês disputam a miúdo, e nem sabem guardar a disputa para a hora e o lugar em que o sacrário dos esposos se fecha aos olhos e aos ouvidos da família. Essa indiscrição é o castigo da ira, como essa luta cruel em que estão, é o castigo de ambiciosa avareza.
Firmino
(a Teodora) E esta? É bem feito: aturamo-la agora.
Suzana
Tenho-os ouvido por vezes... custara-me a confundi-los com a verdade... hoje não posso mais... o dever da consciência o manda: é por amor de vocês que vou falar...
Teodora
(a Firmino) Tem paciência, ouçamos o sermão da santa velha.
Suzana
Meus filhos, uma órfã é criatura sagrada. Por isso mesmo que na terra perdeu seus pais, por isso mesmo que é raro o tutor que sabe servir de pai, ela é a filha mimosa do Pai do céu: das lágrimas da cruz, uma lágrima é a sagração da paternidade divina da órfã. Quem atormenta a órfã, flagela a Jesus.
Teodora
Que quer dizer, minha tia?...
Suzana
Corina é órfã e está marcada para vítima da ambição do ouro: sua vida se resume em duas palavras: — sofrer por ter.
Firmino
Tia Suzana!
Suzana
É a verdade que devo fazer-lhes ouvir. Corina é rica, e só porque é rica o tutor a quer para seu filho, a esposa do tutor a exige para o seu e discordes nesse antagonismo de ambições, conspiram de acordo contra a liberdade da órfã, premeditando o seu sacrifício...
Firmino
Senhora!...
Teodora
(a Firmino) Deixe-a falar; é inofensiva.
Suzana
A órfã vive enclausurada: Júlia vai ao teatro, aos bailes, aos passeios, e Corina fica sempre com a velha Suzana. Júlia canta, dança e toca na sociedade para atrair admiradores, e Corina não tem direito de ostentar as mesmas prendas que, aliás, possui; Júlia se mostra em toda a parte para ser desejada e amada, e Corina só por acaso chega à janela, mas sempre ao lado do seu tutor que lhe encadeia os olhos: vem-lhe do mal o bem, porque a órfã vive ao menos na ignorância das perversões do mundo, e em vez de ser mártir, se conserva anjo.
Firmino
Conservava pois o meu zelo e os meus escrúpulos de tutor?...
Suzana
Desconfio de quem é mais escrupuloso como tutor, do que como pai. Bastava a Corina metade dos inocentes gozos de Júlia.
Firmino
É portanto uma acusação?...
Suzana
Não acuso, apenas por amor de nós mesmos mostro o vosso pecado, e peço o arrependimento do tutor ambicioso. Corina é sonegada ao mundo para que não seja senão Peregrino e Carlos: o tutor e mulher do tutor enclausuram a órfã para obrigá-la a aceitar, a receber um de seus cativeiros como simulacro de liberdade. Meus filhos, eu juro pelos Santos Evangelhos, que vós ofendeis assim a lei da terra, e a santa religião daquele que morreu na cruz do Calvário...
Teodora
Minha tia, que idéias são essas?...
Suzana
Se estou em erro, peço humildemente perdão, mas eu tenho ouvido mais de uma vez a disputa do marido e da mulher, não sobre o merecimento, porém sobre o dote da órfã desejada para enriquecer os filhos... vejo na clausura da órfã a premeditação do sacrifício.... depois da clausura pressinto a violência.... tudo quanto a ambição inspira... talvez o crime.
Firmino
Senhora!...
Suzana
A violência.... o crime.... meus filhos: eu não hei de ver a violência e o crime sem protestar contra eles. Era isto o que eu tinha a dizer... custou-me muito: perdoem-me, porque vos amo; mas arrependam-se, porque estão em pecado mortal.
Firmino
Vá rezar o seu rosário, tia Suzana; vá...
Suzana
Vou: o meu rosário é a minha fortaleza, e com a inspiração do meu rosário hei de cumprir sempre o meu dever diante de Deus. Fiquem, se podem, na paz do Senhor. (vai-se)
Firmino
Quem esperaria por semelhante sermão de quaresma?... Tu és a culpada, Teodora, pois que nos comprometes ambos com imprudentes e importunas contestações. Teodora Acabemos de uma vez com elas: enquanto minha tia ralhava, eu refletia pois que nenhum de nós cede ao outro, deixemos a Carlos e a Peregrino o empenho de conquistar o coração de Corina e a esta o direito de escolher entre os dois. Firmino Acho muito razoável esse alvitre. Teodora Ambos nos conservaremos absolutamente alheios à luta rival: nem tu apoiarás as pretensões de teu filho, nem eu as do meu. Firmino Convenho; já deveríamos ter assim resolvido a questão.
Teodora
Em oito dias obrigaremos Corina a decidir-se por Carlos ou por Peregrino. Firmino
Perfeitamente.
Teodora
Eu te juro, sob minha palavra de honra, que serei em tudo fiel a este acordo.
Firmino
Faço o mesmo juramento.
Teodora
Vês? Acabo sempre por concordar contigo: muito bem: agora mais duas palavras sobre o batizado da boneca: teimas em não querer que a reunião seja numerosa?
Firmino
Um batizado de boneca é um passatempo tão juvenil que concedido à uma moça de dezesseis anos, só se tolera em família e em sociedade de íntimos amigos.
Teodora
É uma explicação; mas se Júlia exigir grande festa e baile?....
Firmino
Júlia! Júlia! Tu a deitaste a perder...
Teodora
Sim... fui eu!... Mas se ela exigir?...
Firmino
Oh! Não lhe digas que resumimos os convites; deixa que ela sonhe com o baile.
Teodora
Previno-te de que em caso de revolta direi a Júlia que se entenda contigo.
Firmino
Não: é melhor iludi-la... Júlia é uma bonequinha... mas parece que a lembrança de Teófilo não lhe perturba o sono. (consulta o relógio) Dez horas da manhã!
Teodora
Vou ver se as duas meninas já se resolveram a amanhecer. (vai-se)
Firmino (seguindo-a)
Até logo... saio; mas volto cedo.
Firmino
Ah! Pensei que não estavas em casa.
Peregrino
Entrei agora mesmo: vim pedir a meu pai que não esqueça o meu amigo Simão de Souza na lista dos seus convidados para o batizado da boneca de Júlia.
Firmino
Simão de Souza... que espécie de interesse...
Peregrino
Ele me protege em meus negócios: ainda há três dias adiantou-me dinheiro para comprar quatro escravos que logo vendi com seiscentos mil réis de lucro.
Firmino
Ah! Eu sempre o tive por homem de bem... ultimamente festeja muito Teodora, quando a encontra no teatro ou no baile. Vou mandar convidá-lo...
Peregrino
O convite o exultará: o meu amigo pensa também, como outros, a respeito de Corina...
Firmino
Em Corina?... Onde a viu?...
Peregrino
Não a viu ainda, mas tem conhecimento de seu dote...
Firmino
Não pode ser convidado.
Peregrino
Meu pai, Simão de Souza começa a envelhecer, é feio e rude. Não há risco em deixá-lo vir; mas dada a hipótese de que fosse feliz, eu que receio não vencer a indiferença glacial de Corina, teria a consolação de vinte por cento do dote da noiva.
Firmino
Então ele te propôs?...
Peregrino
Isso é casar-me com uma sobrinha que possui cerca de trinta apólices de conto de réis.
Firmino
Convidarei em todo o caso o homem. (vai à porta do interior)
Peregrino
Obrigado, meu pai.
Firmino
Teodora está no segundo andar: escutas, trata com atividade de agradar a Corina: eu tenho de fingir-me neutro, chama ao teu partido a filha do teu padrinho, que gosta muito da minha pupila... eu já vou falar ao compadre: nada disso seria preciso se eu não tivesse oposição em casa... mas Carlos.
Peregrino
Carlos não me incomoda: é um excelente mancebo, que estudou suas letras, agora passa a vida, freqüentando as galerias das câmaras, fazendo versos e lendo romances e poesias. Está arrufado comigo porque soube que eu negociava em escravos.
Firmino
E que tem isso?...
Peregrino
Carlos é um pobre e vão sonhador; há de proceder como eu quiser. Firmino
Sim... porém a mãe de Carlos...
Peregrino
Minha madrasta.... esposa do meu pai.... eu a respeito e amo; todavia é mãe, e é raro que, julgando de seu filho, haja mãe que deixe de ser tola.
Firmino
(rindo) Este Peregrino!... mas... já te disse o que queria... Teodora pode chegar... vai-te.
Criado
O senhor Tomás Pereira.
Firmino
Conduza-o para esta sala (vai-se o criado).
Peregrino
Meu pai, eu prevenirei ao meu amigo Simão de Souza...
Firmino
Ele receberá o convite daqui a duas horas...
Peregrino
Vossa mercê me dá dinheiro a ganhar... hoje comprei escravos. Não tenho reservas com meu pai: uma pupila rica é mina de ouro.... o caso é saber explorar a mina... (vai-se)
Firmino
(a Tomás) Sem cerimônia... o senhor é amigo da família. (saúdam-se) Sente-se... (sentam-se) por aqui a esta hora?
Tomás
Dever de fiel corretor: vendi as três apólices melhor do que esperava: eis o dinheiro e a nota da transação. (entrega)
Firmino
(Examinando o papel e o dinheiro) Que diligência! Obrigado.
Tomás
A minha visita ainda tem outro motivo... mas confidencial.
Firmino
Pode falar, estamos sós.
Tomás
Sou corretor, procurador, negociador, e quando proponho, não ofendo: franqueza, no seu lugar eu já tinha casado sua pupila; uma vez porém que o senhor o não quer fazer, digo-lhe que seria loucura rematada não ganhar licitamente algumas dezenas de contos, livrando-se do encargo da tutoria.
Firmino
É uma nova, a terceira proposta que me vem fazer para casar Corina?...
Tomás
Um negociante, boa firma, casa acreditada, moço elegante e honrado pede a mão da sua pupila; condição: vinte por cento do dote ao tutor, cinco por cento ao corretor, perpétuo segredo da transação. Que diz?
Firmino
Que o Senhor me confunde com os tutores sem consciência e sem honra, com os traficantes que exploram em seu proveito um depósito sagrado.
Tomás
Não se ofenda e ouça-me: recebi a confiança dos seus negócios, conheço a situação da sua casa e da sua fortuna: devo dizer-lhe que os seus recursos estão quase esgotados, e que a sua ruína será completa no fim de um ou de dois anos.
Firmino
Ficar-me-á ilesa a probidade e tranqüila a consciência. Corina ainda é muito criança: quando estiver no caso de fazê-lo, escolherá livremente o seu noivo: o juiz dos órfãos aprovará esta minha disposição: estou satisfeito.
Tomás
Sua alma sua palma: quer ser Catão, seja-o, há de, porém, em breve, dormir na esteira da pobreza.
Firmino
Dormirei nela sono que muitos milionários não podem dormir em seus leitos dourados.
Tomás
Senhor Firmino, sou seu amigo: abandone essas teorias poéticas, chegue-se à razão prática: veja em primeiro lugar se pode casar sua pupila com seu filho, ou ao menos casar com seu enteado... o dinheiro ficará em casa...
Firmino
E o meu crédito atirado ao meio da rua...
Tomás
Ao contrário, muito mais fortalecido pela presunção de maior base de capital: esta é que é a realidade; mas se escrupuliza, negocie o casamento da pupila rica em transação secreta, e peça a Deus que lhe dê mais duas ou três tutorias, como essa, para arranjo da vida.
Firmino
Eu penso de modo inteiramente diverso: Não posso aceitar a sua proposta, e peço-lhe que não insista neste assunto.
Tomás
Quando proponho, não ofendo, e também a negativa não me ofende: tomo tudo isto debaixo do ponto de vista mercantil: não faz conta, paciência: amigos como d’antes?
Firmino
Certamente.
Tomás
Cada vez o respeito e o lamento mais: o senhor é um homem do outro tempo... há de ser vítima da sua escrupulosa e exagerada probidade...
Firmino
Por quem é... não me confunda...
Tomás
(levantando-se e tomando o choque) Sou eu que saio confundido...
Firmino
Saiamos juntos.
Tomás
A companhia me exalta: reconheço-me por demônio ao lado de um santo.
Firmino
Quer dizer de um tolo...
Tomás
Ou isso.. salvo o respeito devido.
Firmino
Vamos, senhor Tomás Pereira. (vão-se)
Teodora
Saíram enfim.
Carlos
Eu também vou sair... são quase onze horas...
Teodora
Carlos, eu esperava que teu padrasto nos deixasse em liberdade para te ocupar de questão muito séria.
Carlos
Mas hoje não posso perder a sessão do Senado: o ministério vai receber sova magistral... faz gosto ouvir os oradores da oposição...
Teodora
Se não fosse o Senado, inventarias outro motivo para ausentar-te...
Carlos
Com efeito... à tarde tenho sessão magna da Sociedade Filopoética.
Teodora
É sempre assim! eu te peço dez minutos ao menos...
Carlos
(abrindo o relógio) Dez minutos hoje, e amanhã o dia todo para minha mãe.
Teodora
Meu filho, tu me confessaste que amavas Corina, e eu abençoei esse amor da beleza e da virtude...
Carlos
Sim, minha mãe, eu amo Corina; mas infelizmente ela me parece um anjo amigalhado...
Teodora
Se a esqueces tanto! aposto que ainda não lhe confessaste o amor que lhe tributas...
Carlos
Ah! os meus olhos devem ter-lhe dito tanto!... E além dos meus olhos, já dez vezes tenho tentado declarar-lhe a minha paixão, mas...
Teodora
Acaba...
Carlos
Júlia me ridiculariza, e Corina põe-se a rir.
Teodora
Não deves falar-lhe de amor em presença de Júlia.
Carlos
Se uma nunca deixa a outra! Júlia é intolerável, minha mãe.
Teodora
Eu ralharei com ela; tu, porém, sê mais freqüente junto de Corina: tens boa voz... canta a miúdo com ela... mostra-te mais ocupado da sua pessoa...
Carlos
Ontem à noite escrevi-lhe um acróstico: ela há de lê-lo na Revista da Sociedade Filopoética.
Teodora
A poesia não basta... em regra as senhoras confiam pouco nos poetas... Carlos Mas eu não compreendo amor sem poesia e sem flores: ontem fiz versos a Corina, hoje hei de trazer-lhe um buquê de violetas, e amanhã dar-lhe-ei a ler o romance Paulo e Virgínia anotado por mim.
Teodora
Versos, flores, romances, dá-lhe tudo isso, Carlos, exalta-lhe a imaginação, mas sobretudo sê menos acanhado... menos... não sei como digo, menos contemplativo, e... meramente respeitoso, ama-a como homem deste mundo... as senhoras... as donzelas precisam parecer forçadas a ouvir... a amar... a conceder inocentes favores...
Carlos
Corina é um anjo.
Teodora
Os anjos da terra têm sempre na sua natureza alguma coisa de material. Carlos, eu quero que Corina seja tua esposa...
Carlos
Se eu merecer o seu amor espontâneo.... flor do coração.... isento de cálculos de família.... livre.... sem rigor, nem opressão... porque ela é rica... e eu não toleraria...
Teodora
Perfeitamente... oh! Quem se lembra de riqueza! Eu só penso na formosura e na virtude de Corina!
Carlos
Oh, muito bem, minha mãe!... Um amor poético!...
Teodora
Todavia, receio muito pelo teu amor e pela felicidade de Corina, se não fores mais diligente, mais fervoroso...
Carlos
Por que? Por que?...
Teodora
Segredo inviolável, meu filho: teu padrasto resolveu casar Corina com Peregrino...
Carlos
O mercador de escravos? Eu desconfiava disso: Peregrino compra e vende seus irmãos em Deus: é indigno de Corina...
Teodora
E o teu amor pode salvar a vítima...
Carlos
Corina esposa de um escravagista!... Minha mãe — hoje mesmo... (ouve dar onze horas) Ah, em vez de dez minutos, um quarto de hora... até logo...
Teodora
(detendo-o pelo braço) Escuta ainda...
Carlos
Não posso perder a sessão do Senado...
Teodora
Cinco minutos só...
Carlos
Já sei tudo! Há de ver como procederei...
Teodora
Ao menos vai buscar-me o acróstico que fizeste.
Carlos
(tirando um papel do bolso) Ei-lo aí... mas não o mostre a Corina: quero que ela o leia com surpresa na Revista da Sociedade Filopoética. (vai sair e encontra-se [sic] com Estefânia)
Estef.
Ah! Carlos, quase que me deste um abraço...
Teodora
(indo a Estef.) Estefânia!
Carlos
Desculpe: foi ardorparlamentar. (beija a mão de Estef.) Sinto não poder demorar-me. É a hora da sessão do Senado: vou a correr. (vai-se)
Estef.
Carlos é um querubim; mas voa com excessivo ardor.
Teodora
Agradeço-te a prontidão com que acudiste ao meu chamado. Senta-te. (Sentam-se)
Estef.
Acho-te desassossegada...
Teodora
A minha luta com Firmino continua e se agrava.
Estef.
No jogo da teima não há mulher que não ganhe a partida ao marido.
Teodora
Mas quando não é só o marido a vencer?... Até bem poucos dias, o que me preocupava era que essa teima de Firmino demorava o casamento de Carlos e que a demora podia aproveitar a algum astucioso e feliz pretendente de Corina.
Estef.
Com efeito! Os especuladores são tantos!...
Teodora
Agora, porém, é o meu maldito enteado que me está ameaçando com as mais temíveis probabilidades da sua vitória...
Estef.
Ora... Peregrino... Corina o trata com tanta indiferença...
Teod.
Tu és como minha irmã: a nossa amizade...
Estef.
Começou no colégio... (olhando em torno) ninguém nos ouve: começou no Colégio há trinta e cinco anos.
Teod.
É por isso que me animo a dizer-te, pensando no meu pobre Carlos, o que aliás por lealdade também te diria, se teu sobrinho...
Estef.
Não falemos em Fortunato: sabemos ambas que se ele um dia pôs-se a requestar dona Corina, soube esta desenganálo para sempre: além disso eu te comuniquei o projeto de casamento que formei desde muito para meu sobrinho.
Teod.
Eu me comprometi a auxiliar-te com todo o esforço nesse empenho. Creio até que tenho feito já alguma coisa.
Estef.
Muito: e uma mão lava a outra: ocupemo-nos de Carlos.
Teod.
Vou confiar-te um segredo delicadíssimo e pedir-te um conselho.
Estef.
O segredo ficará no coração; o conselho sairá da reflexão.
Teod.
Isto morre aqui: eu suspeitei... e enfim verifiquei que Peregrino... abusando da casa de seu pai... entretinha relações secretas... criminosas com a mísera Corina...
Estef.
Oh!... É horrível!... Estás bem certa do que dizes?...
Teod.
Infelizmente é verdade.
Estef.
Que escândalo! Mas então é caso julgado... pobre Carlos!
Teodora
Conforme...
Estef.
Pois aí há conforme?.. .(cravando os olhos em Teod.) Ah! Sim! Neste mundo tudo é conforme: eu também juraria que dona Corina detestava Peregrino e todavia.. mas.. conforme o que?...
Teod.
Corina é ainda no seu erro tão inocente como tola, e por felicidade no colégio a tornaram fanática: há quatro dias que tive a certeza do seu opróbrio e não tardei em recorrer aos bons ofícios de minha religiosa tia, e a boa da velha reteirou o demônio com tanta eloquência que a triste menina malvadamente enganada, apenas agora compreende o que fez, e abomina Peregrino com sentimento de horror.
Estef.
(sorrindo) É um pouco inverossímil: eu, no teu caso, desconfiava.
Teod.
A tia Suzana assegura o arrependimento de Corina, que parece ter sido vítima de sua rude ignorância a certos respeitos...
Estef.
Mas o diabo não sai tão facilmente do corpo, em que conseguiu uma vez entrar.
Teodora
Julgas que estou sossegada? eu passo as noites velando: temo da influência fatal adquirida por Peregrino... tenho medo de que amanhã, ou em outro dia, Eva de novo atenda à serpente... mas dada a hipótese do arrependimento sincero e essa ignorância do mal que se praticava...
Estef.
Entendo... (sorrindo) dada a hipótese...
Teod.
Nestas circunstâncias devo ainda pensar em Corina para esposa de meu filho?... tenho escrúpulos: aconselha-me.
Estef.
Tanta inocência da alma obriga a esquecer em dona Corina o erro que foi só da ignorância: não refletes assim?...
Teod.
Confesso que penso desse modo. Sê franca: faço bem em insistir no casamento de Corina com o meu Carlos?...
Estef.
Fazes... fazes...
Teod.
Dizes isso em um tom...
Estef.
De quem se admira da hesitação: dona Corina não é só moça bonita... é meio milhão. Teima.
Teod.
Tu me resolves; mas em tal caso preciso do teu concurso. Corina é muito amiga tua; quero que patrocines a causa de Carlos.
Estef.
Como se ele fosse meu filho: hei de fazer prodígios. Verás.
Teod.
(apertando-lhe a mão) Minha Estefânia!...
Estef.
Carlos ainda não conseguiu tocar o coração de dona Corina?...
Teod.
Tem perdido o seu tempo em êxtases poéticos: o inocente bate à porta daquele coração a compassos diversos.
Estef.
Com uma menina de quinze anos os versos tem seu lugar.
Teod.
A propósito: aqui está um acróstico do nosso poeta.
Estef.
Lê.
Teod.
(lendo) A voz do coração, voz que é gemido Mudo enleio que a fala tolhe e prende O terno olhar nos olhos teus perdido, Culto de fogo ao Sol que o fogo acende; O receio, a esperança, a queixa, o medo Rompendo d’alma que a teus pés se rende Inda trêmulos n’alma em segredo No poético ardil que amor socorre, Amor de quem por merecer se morre. (voltando o papel e lendo) As iniciais dos versos dizem: = Amo Corina = na verdade é bonito! Não achas bonito?...
Estef.
Melhor do que isso, declaração em regra.
Teod.
E os versos trazem a assinatura de Carlos: é positivo!... Que talento o de meu filho!...
Estef.
Cantarei como sereia aos ouvidos de dona Corina.
Teod.
Minha amiga, minha irmã!
Estef.
Agora volto para receber a minha modista que talvez me esteja esperando... (em pé)
Teod.
O que eu disse relativamente a Corina...
Estef.
Sepultou-se aqui.(aponta para o coração)
Teod.
Confio em ti. (abraça-a) Sê mãe de Carlos.
Estef.
Tenho medo de adorá-lo demais (beijam-se. Estef. sai)
Teodora
(acompanha Estef. até a porta: volta; relê para si os versos, sorri, vai à mesa escolhe um álbum, gruda com goma arábica que haverá em um vidro competente, o papel dos versos em uma das folhas do álbum e desfolha uma rosa na mesma página)
Carlos
(Entrando) Não houve sessão no Senado por falta de quorum. (vendo Teod. junto da mesa) Que faz, minha mãe?... (começa o canto dentro)
Teod.
Silêncio! Júlia e Corina vão entrar.
Júlia
(cantando dentro e até o fim) Só
Di
Carlos
(continua o canto) O meu acróstico!...
Teodora
Silêncio. (cai o pano durante o canto)
Ato 1 - Ato 2 - Ato 3 - Ato 4 - Ato 5
Carlos Cunha Arte & Produção Visual
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