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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEDE IMPLACÁVEL / Lara Adrian
SEDE IMPLACÁVEL / Lara Adrian

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEDE IMPLACÁVEL

 

                               O Beijo do Vampiro

Gabrielle Maxwell, reconhecida artista de Boston, celebra com os amigos o êxito de sua última exposição na boate mais famosa da cidade. Entre a animada multidão, um sensual desconhecido desperta-lhe as mais profundas fantasias. Um único olhar do misterioso estranho é capaz de fazê-la flutuar. Porém, nada que se relacione com aquela noite, ou com aquele homem, é o que parece ser. E quando, ao sair da boate, Gabrielle testemunha um sangrento assassinato, a realidade se converte em algo sombrio e mortal. E em meio ao caos que sua vida se transforma, ela é tragada para um submundo que nunca imaginara existir, habitado por vampiros urbanos, nobres e leais, e por outra classe de criaturas sanguinárias e cruéis, que se encontram muito mais perto do que ela gostaria.

A única missão de Lucan Thorne, um guerreiro da Raça, é proteger sua espécie, assim como os humanos que circulam pelas ruas de Boston da crescente ameaça dos vampiros Corrompidos e a iminência de uma outra guerra que poderá devastar a humanidade.

Lucan não pode correr o risco de se unir a uma mortal. Mas quando Gabrielle passa a ser o principal alvo de seus inimigos, sua única opção é protegê-la. Porém, o que ele não consegue proteger é o próprio coração. Sem que consiga evitar, ele e Gabrielle serão devorados por um desejo selvagem e insaciável, perigoso e encantador...

E, nos braços do poderoso líder da Raça, Gabrielle se confrontará com um extraordinário destino de perigo, sedução e desejos inconfessáveis...

 

 

                                 Vinte e sete anos atrás...

O bebê começou a choramingar na última estação, quando o ônibus de Grayhound a Bangor parou na rodoviária de Portland para recolher mais passageiros. Perto do terminal de Boston, duas horas mais tarde, a garotinha chorava a plenos pulmões, e não havia nada que pudesse tranquilizá-la. Passava da uma hora da madrugada, e o homem sentado no banco do lado dela provavelmente estava tão irri­tado quanto a mãe desesperada.

— Sinto muito... — Ela lhe dirigiu a palavra pela primeira vez desde que entraram no ônibus.

— Minha filha não costuma ter esse mau humor. É nossa primeira viagem. Acho que está ansiosa para chegar.

O homem fechou e abriu os olhos lentamente, num gesto de assentimento, e sorriu sem mostrar os dentes.

— Para onde estão indo?

— Nova York.

— Ah! A Grande Maçã — ele murmurou com voz abafada. — Você tem família em Nova York?

Ela negou com um gesto da cabeça. O que restava de sua famí­lia se encontrava numa cidadezinha provinciana perto de Rangeley, e haviam deixado claro que ela não contasse com nenhum tipo de ajuda.

— Vou procurar trabalho. — Ela sorriu com timidez. — Quero ser bailarina, se possível, na Broadway,

— Bem, certamente você é muito bonita. — O homem a avaliava com atenção. Mesmo na penumbra dentro do veículo, parecia haver algo estranho naqueles olhos. — Com um corpo como esse, eu diria que você tem grandes chances de se tornar uma estrela.

Ela ruborizou e abaixou o rosto, fitando o bebê que chorava em seus braços. Seu namorado do Maine costumava dizer o mesmo. Aliás, dizia muitas palavras gentis, mas ela sempre suspeitara que a intenção dele era que os elogios a levassem para o banco de trás do carro. E ele não era mais seu namorado desde o último ano do colégio, quando as primeiras evidências da gravidez começaram a marcar-lhe a cintura fina.

Se não tivesse abandonado tudo para dar à luz, ela teria se gra­duado no verão.

— Você comeu? — ele perguntou, enquanto o ônibus reduzia a velocidade para entrar na estação de Boston.

— Na verdade, ainda não.

Ela continuava a embalar o bebê, mesmo sabendo que de nada adiantava. Seu coração se apertou ao estudar o rostinho avermelha­do e as mãozinhas apertadas, enquanto a filha chorava como se o mundo estivesse acabando.

— Que coincidência... Eu também não. Você gostaria de me acom­panhar a um restaurante?

— Oh, não, obrigada. Eu estou bem. Trouxe biscoito na bolsa. Acho que esta é a última parada do ônibus. Eu mal terei tempo de trocar a fralda do bebê e descansar um pouco.

Ele não emitiu nenhum comentário. Observou-a recolher a baga­gem quando o ônibus estacionou na plataforma e encolheu as pernas para deixá-la passar e se dirigir à estação.

Quando saiu do banheiro, ela sentiu um estranho incômodo ao vê-lo de pé, parado à saída, como se estivesse esperando por ela. Não parecia ser tão alto enquanto estava sentado ao seu lado. Agora, observando-o à luz, deu-se conta de que definitivamente havia algo muito estranho naquele olhar.

— O que houve? — ela indagou, confusa.

Ele riu baixinho, fitando-a com aqueles olhos misteriosos.

— Eu já disse. Preciso me alimentar.

Que forma inusitada de se expressar!, ela pensou, notando que a estação estava quase deserta àquela hora da madrugada. Uma chuva fina começara a cair, e os últimos retardatários se abrigavam sob a proteção das plataformas. Os passageiros começaram a embarcar no ônibus que sairia dentro de alguns minutos. Porém, para chegar até ele, tinha de passar pelo homem desconhecido.

Ela encolheu os ombros, cansada e ansiosa demais para ter de se preocupar com assédios de desconhecidos.

— Bem, se está com fome, deve haver alguma lanchonete no ter­minal. Tenho de ir, ou perderei meu ônibus.

— Escute aqui, sua vadia...

De repente, alguma coisa a golpeou sem que ela tivesse tempo de reagir. Ele se moveu com tanta rapidez que, num instante, estava em pé a um metro de distância e, no outro, segurava-a com as duas mãos no pescoço, bloqueando-lhe a respiração. Com a mesma rapi­dez, arrastou-a até as sombras do edifício, refugiando-se dos olhares de curiosos, e aproximou-se tanto que ela sentiu o hálito quente no rosto. Um sussurro aterrorizante a congelou, e pestanejou ao ver as presas pontiagudas se aproximando perigosamente.

— Se disser uma só palavra ou mover um só músculo, comerei seu suculento coraçãozinho de menina mimada.

O bebê se debatia em seus braços, mas ela não emitiu nenhum som, tampouco ousou se mover.

Tudo o que importava era o bebê. Tinha de proteger sua garotinha. Por isso, não se atreveu a protestar nem mesmo quando os dentes se cravaram no seu pescoço.

Paralisada pelo terror, ela abraçou o bebê com força ao sentir as presas rasgarem a pele. Ele a segurava pelos cabelos, expondo a linha do pescoço. As unhas afiadas como as garras de um demônio feriam a nuca. Ele grunhiu com prazer, fincando cada vez com mais força os dentes cortantes.

Apesar de manter os olhos abertos pelo terror, a visão dela come­çou a se obscurecer. As idéias se tornaram confusas, embaralhando-se como peças de um quebra-cabeça que não se encaixavam. Uma bruma nublada a envolveu, tragando-a para a escuridão.

Aquele monstro a estava matando, e a seguir, mataria seu bebê!

— Não... — ela gemeu, e quando tentou inalar, uma golfada de sangue a sufocou. — Seu monstro! Não!

Com esforço sobre-humano, ela projetou a cabeça para a frente e o golpeou com toda a força que encontrou.

Ele soltou um grunhido e se afastou, surpreso. Aproveitando-se do momento de distração, ela. conseguiu se soltar e cambaleou, mal conseguindo se sustentar sobre as pernas. Segurou o bebê com fir­meza e levou a mão livre ao ferimento úmido e quente do pescoço, enquanto se afastava da criatura com passos trôpegos. Ainda pôde ver a expressão de zombaria nos olhos amarelados e brilhantes, e os lábios manchados de sangue.

— Oh, Deus! — ela gemeu, enjoada ante a visão.

Ela recuou um passo, disposta a correr mesmo sabendo que seria inútil. E foi então que viu outra criatura. Ferozes olhos de cor âmbar a fitaram, e um assobio que anunciava a morte escapou por entre as presas grandes e brilhantes.

Certa de que a atacaria para terminar o que o outro havia come­çado, ela estacou, aterrorizada. Porém, ele não se moveu. Os dois monstros se comunicaram com sons guturais, e o recém-chegado se aproximou, empunhando uma adaga.

Pegue o bebê e desapareça!

A ordem pareceu surgir do nada e atravessar a neblina de sua mente. Ela voltou a ouvir, dessa vez mais urgente, impulsionando-a à ação. Sem saber como encontrou forças, ela correu, cega pelo pânico, atordoada pelo medo e pela confusão. Afastou-se da estação e atra­vessou uma das ruas próximas para penetrar na cidade desconhecida. O pânico a invadiu. A cada ruído, inclusive o dos próprios pés contra o chão, soava como uma ameaça mortal.

O choro angustiado do bebê se sobressaiu a todos os sons. Tinha de tranquilizá-la. Sua filhinha precisava de um berço cálido e acolhedor. Então, estariam a salvo. Sim, isso era o que tinha de fazer. Mesmo exausta, ela se pôs a correr até que caiu, incapaz de dar um passo.

Depois do que pareceu uma eternidade, ela abriu os olhos, com a sensação de que sua mente se partia como um cristal estilhaçado. A realidade parecia se deformar, convertendo-se num abismo escuro e escorregadio, cada vez mais longe do seu alcance.

Ela ouviu um choro abafado que soou como um eco distante. Cobriu os ouvidos com as mãos, mas o ruído insistente persistiu.

— Shh! — murmurou para ninguém em particular, balançando-se para a frente e para trás. — O bebê está dormindo... Não podemos acordá-lo...

No entanto, o pranto não cessou. Com o coração partido, ela fechou os olhos por um momento e voltou a abri-los enquanto permanecia ali, sentada na rua imunda, olhando a luz do amanhecer sem nada ver.

 

                                 Dias atuais...

— Impressionante! Veja o contraste entre luz e sombras...

— Você nota como esta imagem sugere a tristeza do lugar e, apesar disso, consegue oferecer uma promessa de esperança?

— ...uma das mais jovens fotógrafas incluídas na nova coleção de arte moderna do museu.

A um canto afastado, Gabrielle Maxwell sorvia o champanhe quente, enquanto personalidades importantes e rostos anônimos admi­ravam as fotografias preto e branco nas paredes da galeria. Um sorriso discreto curvou-lhe os lábios. Não havia como negar, era um bom trabalho, mas ela não conseguia entender a razão de tanto entusiasmo ante as cenas inquietantes de moinhos abandonados e desolados esta­leiros dos subúrbios de Boston.

Porém, não cabia a ela julgar. Seu trabalho era fazer as fotografias e deixar a interpretação a critério do público. Introvertida por nature­za, o fato de receber elogios e atenção a incomodava... Contudo, per­mitia-lhe pagar as contas com folga. E, naquela noite, pagava também as contas de seu amigo Jamie, proprietário da moderna galeria de arte na rua Newbury. Faltavam dez minutos para o fechamento, e o espaço restrito ainda estava repleto de possíveis compradores.

Atordoada depois do processo de recepcionar os convidados e de sorrir com educação a cada elogio que recebia desde as esposas ricas de Back Bay até os góticos tatuados e carregados de piercings, Gabrielle mal podia conter a ansiedade para que a noite terminasse. Ela se refugiara durante a última hora, acalentando com deliciosa antecipação o momento de se enfiar sob a ducha quente e cair na cama macia de sua casa ao leste da cidade.

Ela suspirou, desolada. Por que tinha de prometer a Jamie, Kendra e Megan que sairia para jantar depois da inauguração? Quando o último casal de visitantes deixou a galeria, ela foi arrastada para o inte­rior de um táxi antes de ter oportunidade de pensar numa desculpa.

— Que noite incrível! — Os cabelos loiros do andrógino Jamie caíram sobre o rosto quando ele se inclinou entre as duas mulheres para tomar a mão de Gabrielle. — Nunca vi tanto movimento na galeria num fim de semana... E as vendas desta noite foram impres­sionantes! Não sei como agradecer por você ter escolhido minha galeria para a exposição.

— Não há o que agradecer. — Gabrielle sorriu ante a excitação de seu amigo. — Não foi tão mal, não é?

— Não foi tão mal?! Gabby, metade de Boston estava aos seus pés! — Kendra exclamou com uma risada. — Era o governador que estava conversando com você?

Gabrielle assentiu com a cabeça.

— Ele comprou algumas fotografias para a casa de campo em Vineyard.

— Que amável!

— Sim — ela concordou sem muito entusiasmo.

Tateou o bolso, repleto de cartões de visita que representavam pelo menos um ano de trabalho constante. Então, por que sentia a tentação de abrir a janela do táxi e os lançar ao vento?

Vagueou o olhar pela janela e observou a noite com expressão ausente. As ruas estavam repletas de casais que caminhavam de mãos dadas e amigos rindo e conversando nas mesas dos restaurantes. A cidade pulsava, iluminada e viva. Gabrielle absorvia tudo com olhos de artista e, apesar disso, não sentia nenhuma emoção. A explosão de vida parecia seguir seu ritmo sem ela.

Ultimamente, ela tinha a sensação de ter sido capturada por uma engrenagem que girava num ciclo interminável, sem nenhum propósito.

— O que houve, Gabby? — Megan a fitou, preocupada. — Por que você está tão calada?

— Não é nada. — Ela ergueu os ombros. — Acho que estou mais cansada do que imaginei.

— Alguém tem de oferecer um drinque para essa mulher imedia­tamente! — exclamou Kendra, a enfermeira de cabelos escuros.

— Não... — Um sorriso malicioso curvou os lábios de Jamie.

— O que nossa Gabby precisa mesmo é de um homem. Estou falan­do sério, querida. Não é bom que o trabalho a consuma desse jeito. Você precisa se divertir. Quando foi a última vez que se deitou com alguém?

Fazia muito tempo, mas Gabrielle não se importava. Nunca falta­vam convites para sair, e o sexo... Bem, não era algo que a obcecasse. Embora sua experiência nessa área fosse restrita, ela não acreditava que um orgasmo pudesse curar sua inquietação interna.

— Jamie tem razão — Kendra concordou com o amigo. — Você precisa se soltar e fazer alguma loucura.

— Não. — Gabrielle balançou a cabeça com veemência. — A verdade é que não estou com a menor disposição para uma noitada. Essas exposições me deixam esgotada, e...

— Motorista! — Ignorando-a, Jamie escorregou para a beirada do banco e bateu no vidro que separava os passageiros e a cabine. — Mudança de planos. Decidimos que não vamos mais ao restaurante. Queremos ir para algum lugar agitado, com muita gente interessante.

— Se estiverem interessados, há uma nova boate no extremo norte da cidade — o taxista informou, sem deixar de mascar o chiclete. — Levei muitos clientes esta semana. Na verdade, acabo de deixar um casal lá. A boate chama-se La Notte.

— Humm! Parece sugestivo, não acham, meninas? — Jamie arqueou as sobrancelhas bem desenhadas. — Pois então, é para lá que vamos!

La Notte ocupava uma imponente construção vitoriana da anti­ga igreja de Saint John's Trinity Parish, fechada pela arquidiocese de Boston devido aos recentes escândalos sexuais que envolviam alguns de seus sacerdotes. Enquanto Gabrielle e seus amigos abriam caminho pelo salão abarrotado, as paredes pareciam estremecer com a música estridente. Imensos alto-falantes circundavam a cabine do DJ, localizada no antigo altar. Luzes estroboscópicas se refletiam nos imensos vitrais coloridos em forma de arco, atravessando a den­sa nuvem de fumaça e piscando numa cadência que parecia inter­minável. Os freqüentadores se aglomeravam na pista de dança, movimentando-se num ritmo sensual.

— A Santa festa! — Kendra gritou acima do volume da música, enquanto avançava dançando entre a multidão.

Mal deram dois passos quando um rapaz alto e magro abordou a morena e cochichou-lhe algo ao ouvido. Kendra riu e balançou a cabeça em afirmativa, num gesto entusiasmado.

— Ele quer dançar — avisou, entregando a bolsa para Gabrielle. — Quem sou eu para contrariá-lo?

— Por aqui! — Jamie arrastou Gabrielle e Megan para a mesa vaga a um canto.

Os três se acomodaram no espaço apertado e Jamie chamou o gar­çom para pedir uma rodada de bebidas. Gabrielle perscrutou a pista à procura de Kendra, mas o bloco humano a engolira. Ela suspirou. Apesar do ambiente abarrotado, uma repentina sensação de que estava sendo vigiada a perturbou. Era absurdo pensar assim. Na certa, esta­va estressada, ou então, passara tanto tempo trancada em casa que o fato de estar num lugar público a deixava pouco à vontade.

— Ao sucesso de Gabby! — Jamie ergueu a taça de Martini.

— A Gabby! — Megan se juntou ao brinde. — Parabéns pela maravilhosa exposição desta noite.

— Obrigada, meus queridos — ela agradeceu, tocando a taça na dos amigos.

Enquanto sorvia a bebida dourada, a sensação de ser observada a assaltou novamente, dessa vez, com mais intensidade. Era como se alguém a observasse do outro extremo do salão. Ela olhou por sobre a borda de vidro e notou o reflexo das luzes na superfície dos escuros óculos que escondiam o olhar fixo nela.

Os flashes rápidos revelaram as mechas de cabelos longos caídos sobre o rosto de expressão perspicaz. Maçãs angulosas, maxilar bem talhado e imponente, e a boca... Um suspiro involuntário escapou dos lábios de Gabrielle. A boca era generosa e sensual, apesar do sorriso irônico, quase cruel.

Gabrielle desviou o olhar, embaraçada, e uma onda de calor cres­ceu em seu ventre.

Aquele rosto ficou gravado a fogo em sua mente durante um ins­tante. Ela colocou a taça na mesa e se atreveu a olhar mais uma vez. Porém, ele havia desaparecido.

Um estrondo ecoou no extremo oposto do salão, provocando um burburinho. Gabrielle olhou por sobre o ombro a tempo de ver os esti­lhaços de vidro cobrindo o piso negro. Seis rapazes trajando roupas de couro discutiam com um homem de camiseta regata e calça jeans desbotada e rasgada. Ela deduziu que o motivo da briga era a loira platinada, obviamente alcoolizada, que parecia estar sendo disputada pelo rapaz e um dos membros do grupo.

— Acho que o clima está esquentando — Megan murmurou quando os dois homens se atracaram.

— Parece que sim. — Jamie fez um gesto ao garçom para pedir outra rodada de Martini. — A mãe dessa idiota esqueceu de avisar que não é prudente ir embora com outro acompanhante.

Gabrielle observou a cena o tempo suficiente para ver que a loira se divertia com a briga.

— Esse lugar está me enervando.

Para seu desgosto, os amigos não ouviram a declaração, abafa­da pela música estridente. Na verdade, eles não pareciam comparti­lhar do seu desconforto. Havia alguma coisa errada, uma espécie de pressentimento que a alertava sobre algum perigo iminente. Ela olhou para os amigos, absortos numa discussão animada sobre grupos de música locais. Desolada, tomou mais um gole do Martini, esperando a ocasião para dar uma desculpa e ir embora.

Enquanto isso, vagueou o olhar pelo bloco de corpos compacto oscilando ao ritmo da música. Mesmo relutando em admitir, ela espe­rava encontrar os olhos escondidos pelos óculos escuros que a observa­vam momentos atrás. Ocorreu-lhe que ele poderia ser membro do grupo de motoqueiros que haviam provocado a confusão. Afinal, ele também usava roupa de couro e óculos escuros, como os baderneiros.

Ela se recostou no espaldar da cadeira e, de repente, deu um pulo ao sentir o toque de mãos quentes sobre seus ombros.

— Ah! Aqui estão vocês! — Quase sem fôlego, Kendra se incli­nou sobre a mesa. — Consegui um lugar melhor, perto do palco. Brent e os amigos dele nos convidaram para nos sentarmos com eles.

Jamie aceitou de imediato, e Megan apanhou o Martini e a mão de Kendra. Ao ver que Gabrielle não se movia, ela se deteve.

— Você não vem?

— Não. — Aproveitando a oportunidade, ela se pôs de pé e ajeitou a alça da bolsa no ombro.

— Podem ir, e divirtam-se. Eu estou esgotada. Vou tomar um táxi e seguir direto para casa.

Ignorando os protestos dos amigos e a oferta de Megan e Jamie para acompanhá-la, ela caminhou para a saída, ansiosa por sair dali. Seria impressão, ou o volume da música estava cada vez mais alto? Parecia retumbar nos tímpanos e penetrar em todos os ossos do corpo, impedindo-a de raciocinar com clareza.

Depois de muitos empurrões e pisões no pé, ela abriu espaço até que, finalmente, chegou ao hall da entrada. O ar frio da noite a gol­peou quando abriu as portas duplas, e ela inalou com força, feliz por deixar para trás o inquietante ambiente da boate.

Tudo ficaria ainda mais perfeito quando estivesse dentro de um táxi, pensou, apressando-se para chegar à esquina.

Ela quase gritou de alegria quando viu o veículo amarelo se apro­ximar, e estendeu a mão para chamá-lo.

Enquanto o táxi enfrentava o tráfego para chegar até ela, as portas da boate se abriram com a força de um furacão. Antes que ela pudesse entrar no carro, um grupo de rapazes se engalfinhou numa briga sel­vagem a poucos passos dali.

Alarmada, ela olhou por sobre o ombro e reconheceu os motoci­clistas envolvidos na briga dentro da boate. Eram seis, e rodeavam o mesmo rapaz como se fossem uma matilha de lobos, empurrando-o de um para outro como se fosse uma presa prestes a ser devorada. No processo, aproximaram-se cada vez mais de Gabrielle. Um deles empurrou o rapaz contra o capo do táxi, e outros dois passaram a esmurrá-lo com violência. Gotas de sangue mancharam a pintura do carro, e Gabrielle recuou, horrorizada.

O rapaz indefeso se debatia para escapar, mas os agressores eram mais fortes e o agrediam com uma fúria indescritível.

— Ei! Dêem o fora daí! — o taxista gritou, apertando a mão na buzina.

Um dos rapazes virou-se para ele com um sorriso sádico e esmur­rou o pára-brisa, que se estilhaçou em mil pedaços. Gabrielle cobriu a boca com as mãos, impotente ao ver o carro sair em marcha ré e se afastar cantando pneus.

— Espere! — gritou, mas era tarde demais.

Ela mordeu os lábios, lutando contra as lágrimas ao ver o trans­porte para casa e a possibilidade de fugir para longe daquela cena brutal escapar das suas mãos. Com a garganta oprimida pelo medo, recuou até a parede, enquanto na esquina, os seis rapazes não mostra­vam nenhuma compaixão pela vítima. Estavam tão concentrados em deixá-lo inconsciente que não prestaram atenção nela.

Com dedos trêmulos, ela retirou o celular da bolsa e ligou para o serviço de emergência. Porém, a chamada foi interrompida por falta de sinal.

Gabrielle quase girou. Tudo aquilo só podia ser algum perverso pesadelo!

Apavorada, ela olhou ao redor, tentando avistar alguma viatura policial. Seria impossível uma mulher sozinha lutar contra seis mem­bros de uma gangue truculenta.

Naquele momento, um grupo de freqüentadores virou a esquina, e ela correu na direção deles.

— Olá! — Ela parou perto deles, ofegante. — Algum de vocês viu um grupo de rapazes brigando por aqui?

— Briga? — Um deles olhou ao redor, excitado. — Onde?

Ela percebeu que, apesar dos seus vinte e oito anos, era quase uma anciã perto daqueles jovens. Desanimada, ela fez um gesto indican­do que não se importassem, e os rapazes se afastaram, deixando-a sozinha.

Gabrielle chegou a duvidar da sua sanidade mental. Podia jurar que o grupo estava ali um segundo antes. Caminhou até a esquina e notou as marcas de sangue no chão, mas os agressores haviam desa­parecido. Confusa, ela olhou ao redor, friccionando os braços para afastar o frio. Não havia o menor sinal da violência que presenciara minutos antes.

E então, ela ouviu... Os gemidos quase inaudíveis vinham do beco estreito à sua direita, flanqueado por um muro de concreto que atuava como uma concha acústica.

O sangue de Gabrielle congelou nas veias, despertando todos os instintos básicos. Sem que ela pudesse assumir o controle, suas per­nas se moveram em direção à fonte do inquietante ruído. Ela aper­tou o celular até sentir as pontas dos dedos adormecerem e prendeu a respiração.

Não se deu conta de que não estava respirando até penetrar no beco. Seu olhar pousou no grupo mais adiante. Estreitou os olhos e reconheceu os valentões, agachados sobre os joelhos e as mãos. A luz tênue que chegava da rua incidiu sobre o farrapo de tecido no chão. Ela levou alguns segundos para identificar a camiseta da vítima, destroçada e manchada de sangue.

O dedo de Gabrielle, ainda sobre o teclado do celular, deslizou para a tecla de rechamada. Ela ouviu um zumbido no outro extremo da linha e a voz da telefonista da polícia retumbou na noite com a força de mil decibéis.

— Serviço de emergência, boa noite. Qual é sua emergência?

Um dos motociclistas virou a cabeça ao notar a repentina inter­rupção. Os olhos ferozes, cheios de ódio, se cravaram em Gabrielle como adagas. Aterrorizada, ela notou que o rosto dele estava ensan­güentado. Estreitou os olhos, certa de que não estava enxergando bem. Porém, a observação mais apurada confirmou: os dentes dele eram afiados como os de um animal selvagem. Na verdade, pareciam presas pontiagudas, expostas quando ele abriu a boca para sussurrar palavras num idioma incompreensível.

— Alô? — a voz da telefonista a sobressaltou. — Em que posso ajudar? Por favor, relate sua emergência.

Gabrielle aproximou o celular dos lábios, mas não foi capaz de falar. Estava tão aturdida que quase não conseguia respirar. Dando-se conta do terror que a imobilizava, ela fez a única coisa lógica que lhe ocorreu. Com a mão trêmula, posicionou o celular de for­ma a enquadrar a gangue de sádicos e apertou o botão da câmera fotográfica. O flash rápido iluminou o beco. Ela apertou o botão repetidamente enquanto recuava de costas. Ao ganhar a rua, ouviu o mur­múrio de vozes, insultos e o ruído inequívoco de passadas, mas não se atreveu a olhar para trás nem mesmo quando o som sibilante de lâmi­nas cortando o ar ecoou às suas costas. Gemidos de agonia e revol­ta que pareciam vir de outro mundo provocaram uma descarga de adrenalina capaz de impulsioná-la a correr.

Ofegante, ela parou na rua e avistou um táxi. Sem perder um segundo, entrou e fechou a porta com um golpe firme.

— Quero ir para a delegacia de polícia mais próxima! — ordenou, inalando com dificuldade.

O taxista apoiou um braço no encosto do banco e se voltou para ela com o cenho franzido.

— Está tudo bem, senhorita?

— Sim — ela respondeu automaticamente, mas reconsiderou: — Não. Preciso reportar um...

Jesus. O que ela pretendia reportar? Diria que fora testemu­nha de um verdadeiro frenesi canibal por parte de uma gangue de motociclistas bárbaros? Quem lhe daria ouvidos, se nem mesmo ela acreditava?

Gabrielle encontrou a fisionomia carregada de expectativa do taxista.

— Por favor, depressa! Acabo de presenciar um assassinato.

 

Vampiros.

A noite estava infestada dessas criaturas. Havia mais de dez na boate, a maioria rondando as mulheres que dançavam sensualmente na pista a fim de seduzi-las para aplacar a fome. A relação simbiótica entre vampiros e humanos era útil à sua espécie desde os origens da vampirísmo, dois mil anos atrás. Porém, a convivência pacífica depen­dia da habilidade do vampiro em apagar as lembranças dos mortais de quem se alimentava antes do alvorecer, para então se esconderem nos refúgios secretos nos arredores da cidade sem que os humanos se recordassem de nada.

Não fora o caso do que ele presenciara naquele beco. Para os seis predadores que haviam se fartado com o mortal, aquela seria a última refeição.

Corrompidos. Era esse o nome dado aos vampiros assassinos que, cegos pelo desejo de sangue, não mediam conseqüências para saciar a sede, levando-os a se alimentarem aberta e indiscriminadamente.

Lucan Thorne não nutria simpatia especial pela raça humana, mas o que sentia por esses vampiros Corrompidos era ainda pior. Encontrar um ou dois vampiros assassinos em uma só noite numa cidade do tamanho de Boston não era raro. No entanto, não era comum depa­rar-se com um grupo trabalhando em equipe, alimentando-se a céu descoberto como a cena que ele presenciara. O número de assassinos voltara a crescer e se fazia cada vez mais forte.

Para Lucan, assim como para muitos de sua espécie, a cada noite se repetia o compromisso de realizar uma expedição de caça em busca daqueles que ameaçavam o que a Raça conquistara com dura batalha. Naquela noite, ele perseguia as presas sozinho, mesmo sabendo que o superavam em número. Aquela era a sina de um Gen Um.

O pai de Lucan era um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado ao planeta escuro e distante, milhares de anos atrás, e se adaptado à superfície inóspita e implacável do planeta Terra.

Para sobreviver, tinham se alimentado do sangue dos seres humanos e dizimado populações inteiras em nome da fome e da bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros haviam copulado com fêmeas humanas, as primeiras Escolhidas, que deram início a uma nova geração da Raça dos vampiros.

Os antepassados selvagens de outro mundo haviam desaparecido por completo, mas seus filhos continuavam vivendo, como Lucan e outros vampiros primordiais disseminados pelo mundo. Os Gen Um representavam o estado mais próximo da realeza na sociedade dos vampiros. Eram respeitados e temidos.

A fome era mais urgente nos vampiros primordiais, assim como a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um Corrompido. A espécie aprendera a viver com esse perigo, desenvol­vendo o autocontrole para se alimentarem somente quando neces­sitavam de sangue, e nas mínimas quantidades necessárias para a nutrição. Tinham de manter o controle sobre os próprios instintos, pois uma vez tomados pela sede de sangue, não havia como voltar atrás.

Lucan preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia, apesar de que os escassos bocados conseguiam apenas despertar a fome mais profunda.

Antes ou depois, todo vampiro tinha de matar. Lucan não negava sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, seguia sua própria ética. Ao procurar uma presa, elegia criminosos, traficantes de drogas, assassinos e pessoas de caráter duvidoso. Era judicioso e eficiente, e nunca matava por prazer. Todos os da Raça seguiam o mesmo código de honra. Era o que os distinguia de seus irmãos Corrompidos, que haviam se separado deles por se rebelarem contra essa lei.

Era o que havia acontecido com os seis Corrompidos daquele beco.

Lucan esperou o momento certo para agir, e quando os seis Corrompidos passaram a destroçar o corpo do mortal como se fos­sem uma manada de lobos selvagens, ele se preparou para executar a justiça rápida. Porém, não contava com a aparição repentina daque­la mortal no beco escuro. Ela arruinara seus propósitos ao seguir os Corrompidos e desviar a atenção deles.

Enquanto o flash do telefone celular cintilava na escuridão, Lucan saiu das sombras e aterrissou no chão sem fazer nenhum som. As pupilas sensíveis se retraíram pela luz repentina, cegando-o momen­taneamente.

Contudo, enquanto os Corrompidos se encontravam inebriados pela saciedade, Lucan estava completamente alerta. Num gesto rápi­do, sacou as duas espadas escondidas sob o casaco e agitou as lâminas cortantes de aço e titânio numa única empunhadura. O golpe certei­ro decepou a cabeça do valentão que se encontrava mais perto dele. A ação rápida deixou mais dois Corrompidos no chão, e os corpos se retorceram numa rápida decomposição celular que os converteu em cinzas. Chiados selvagens preencheram o beco quando mais dois assassinos encontraram o mesmo destino. As criaturas estremeceram em espasmos violentos até se reduzirem a um amontoado de cinzas que se espalhou com o vento.

Restava apenas um. Lucan se voltou para enfrentá-lo, com as duas lâminas preparadas para o golpe.

Porém, o vampiro escapou antes que pudesse ser atingido.

Nunca nenhum desses bastardos havia escapado de sua justiça. Ele chegou a pensar em persegui-lo, mas ponderou que teria de aban­donar a cena do ataque e correr o risco ainda maior de permitir que os humanos tivessem contato com a dimensão do perigo no qual viviam.

Em função da ferocidade dos Corrompidos, a espécie de Lucan fora perseguida por muitos séculos. Não poderiam sobreviver a outra era de castigos agora, com a tecnologia a favor dos humanos.

Até que os Corrompidos fossem eliminados por completo, a huma­nidade não poderia ter conhecimento dos vampiros que viviam entre eles.

Enquanto limpava os rastros da matança, os pensamentos de Lucan se dirigiram à mulher de cabelos cor de fogo e doce beleza de alabastro.

Como era possível que ela tivesse encontrado os Corrompidos no beco?

Apesar da uma crença geral de que vampiros podiam desaparecer, a verdade era que tinham o dom de se moverem com tanta rapidez e agilidade que o olho humano não registrava o movimento. Além dis­so, tal habilidade se somava ao poder hipnótico sobre as mentes dos seres inferiores.

O estranho era que a mulher de beleza excêntrica parecia imune a ambas as coisas.

Lucan a vira na boate. O foco dele se desviara de suas presas como se tivesse sido atraído como ímã pelos comoventes olhos que refletiam um espírito tão perdido quanto o dele. Apesar da multidão e dos aromas diversos que preenchiam o salão, ele detectara o perfu­me exótico e adocicado da pele fresca.

Ele inalou fundo e captou a delicada nota aromática que pairava no ar, incitando seus sentidos e despertando algo primitivo e quase selvagem. O estímulo provocou o repentino alongamento das presas, numa reação física involuntária. Ele a desejava, e de uma forma que não era mais nobre do que de seus irmãos Corrompidos.

Lucan reclinou a cabeça e farejou o aroma, guardando-o na memó­ria. Jasmim. Teria de seguir o rastro dela, pois era a única testemunha do ataque dos Corrompidos, e não era prudente permitir que conser­vasse a lembrança do que tinha visto. Precisava encontrá-la e tomar as medidas que fossem necessárias para garantir a segurança da Raça.

E, em algum recôndito obscuro da mente, uma voz sussurrou-lhe que, fosse ela quem fosse, já lhe pertencia.

 

— Por favor, acreditem! Eu vi tudo. Havia seis deles, e estavam destroçando o rapaz com as mãos e os dentes como se fossem feras. Eles o mataram!

— Srta. Maxwell, já falamos sobre isso muitas vezes. Estamos cansados, e já é tarde.

Gabrielle suspirou. Estava na delegacia havia mais de três horas, tentando explicar o horror que testemunhara. A princípio, os dois agentes se mostraram céticos. Agora, estavam impacientes e irrita­dos, especialmente depois de terem enviado uma viatura ao beco para recuperar o corpo e retornado com as mãos vazias. Não havia nenhum relato de briga de gangues, tampouco alguma evidência que denotasse homicídio.

Era como se nada tivesse acontecido, ou como se os rastros tives­sem sido apagados de forma milagrosa.

— Por favor, vejam mais uma vez as fotografias...

— Nós já vimos, srta. Maxwell. Várias vezes. Francamente, não há nenhuma prova do que nos contou. Sua declaração, essas fotos imprecisas e escuras do seu telefone celular...

— Sinto muito que estejam escuras — Gabrielle retrucou em tom ácido. — A próxima vez que me deparar com uma gangue de psicopatas envolvidos numa matança sangrenta, terei em mente que devo ir buscar minha máquina fotográfica e várias lentes extras.

— Talvez a senhorita queira refazer o depoimento — sugeriu o oficial mais velho. Ele passou a mão pelas sobrancelhas e colocou o celular de Gabrielle na mesa. — A senhorita está consciente de que assinar uma declaração falsa é delito grave?

— Esta não é uma declaração falsa! — insistiu ela, frustrada e irritada por ser acusada de um crime que não cometera. — Mantenho tudo o que disse. Meu Deus, por que eu inventaria uma história dessas?

— Somente a senhorita pode responder — o oficial respondeu com acidez.

— Isso é incrível! Vocês têm o registro da minha chamada.

— É verdade. A senhorita realizou uma chamada ao serviço de emergência. Infelizmente, tudo o que temos gravado é o zunido de interferências. A senhorita não disse nada, e não respondeu quando a telefonista pediu que informasse do que se tratava.

— Bem, é difícil encontrar palavras para descrever aquela cena! O oficial mais velho a encarou com expressão dúbia.

— Essa boate... La Notte, certo? — Ela assentiu com um movi­mento cansado. — É um lugar devasso, pelo que sei. Muito popular entre os góticos e punks...

— O que o senhor quer dizer?

— Bem... — O policial encolheu os ombros. — Os jovens se metem em confusões estranhas hoje em dia. Possivelmente, a senhorita viu algum tipo de farra que saiu do controle.

Gabrielle praguejou baixinho e estendeu a mão para alcançar o telefone celular.

— Por acaso isso parece uma farra que saiu do controle?

Ela apertou a tecla para mostrar as imagens que tinha capturado. Apesar da imprecisão e do brilho esfumaçado, era possível ver, com algum esforço, o grupo de homens que rodeavam outro, no chão. Na imagem seguinte, aparecia o brilho das pupilas focalizando a câma­ra e rostos com feições vagas e deformadas, com expressão de fúria selvagem.

Por que os agentes não viam o mesmo que ela?

— Srta. Maxwell...

O policial mais jovem caminhou para mais perto e se sentou na quina da mesa diante dela. Ele permanecera em silêncio durante o depoimento e a ouvira com atenção, enquanto seu parceiro expres­sava dúvida e suspeita.

— É evidente que você crê ter presenciado algo terrível. O agen­te Carrigan e eu queremos ajudá-la, mas para isso, temos de nos assegurar de que estamos falando a mesma língua.

Ela assentiu com a cabeça.

— Agora, temos sua declaração e vimos as fotos. Tenho certeza de que você é uma pessoa sensata. Antes de nos aprofundarmos, preciso saber se estaria disposta a se submeter a uma coleta de sangue para análise.

— Você está insinuando que estou drogada? — Gabrielle se levan­tou, — a fúria crescendo dentro de si. — Isso é ridículo! Eu não sou nenhuma desmiolada, e considero uma ofensa ser tratada como se fosse. Estou tentando denunciar um assassinato, pelo amor de Deus!

— Gabby? Gabby!

A voz assustada de Jamie invadiu a sala. Gabrielle telefonara para ele logo que chegara ao distrito policial. Precisava de um ombro amigo, depois de tudo o que tinha presenciado.

— Gabby! — Jamie correu ao encontro dela e a abraçou. — Oh, querida! Sinto não ter podido chegar antes, mas já estava em casa quando recebi sua mensagem no celular. Que horror! Você está bem?

— Acredito que sim. — Ela tentou sorrir. — Obrigada por vir.

— Srta. Maxwell, por que não deixa que seu amigo a leve para casa? — o agente mais jovem sugeriu em tom complacente. — Podemos continuar em outro momento. Tenho certeza de que você vai pensar com mais clareza depois de ter dormido um pouco.

Os dois policiais se levantaram e fizeram um gesto indicando que Gabrielle os imitasse. Ela não discutiu. Estava cansada, frustrada e furiosa, além de saber que seria inútil passar a noite na delegacia ten­tando convencer aqueles dois agentes de que tinha presenciado um massacre no beco da La Notte.

Atordoada, deixou que Jamie e os dois agentes a acompanhas­sem até a recepção. Quando descia a escada que dava acesso ao esta­cionamento, o mais jovem a chamou.

— Srta. Maxwell!

Ela se deteve e olhou por sobre o ombro com expectativa.

— Se isso a ajuda a descansar melhor, enviaremos um oficial para vigiar sua casa. Fale com ele quando tiver tido tempo de clarear as idéias.

Gabrielle mordeu os lábios para não retrucar ao tom de descaso implícito nas palavras. Além disso, estava sem forças para rechaçar a oferta. Depois do que tinha presenciado, seria bom ter um policial por perto, caso algum dos psicopatas descobrissem seu endereço. Ela assentiu e seguiu Jamie até o carro.

No escritório de uma sala afastada na delegacia, o arquivista de plantão apertou a tecla da impressora. Uma série de ruídos abafados se seguiu quando a máquina entrou em funcionamento. Ele tomou o último gole do café frio e se levantou para recolher o documento que acabava de ser impresso.

O distrito policial estava quase deserto depois da troca de plan­tão da meia-noite. Mas, mesmo que estivesse em plena atividade, ninguém prestaria atenção ao funcionário reservado e estranho que circulava silenciosamente pelas dependências internas. E essa era justamente a beleza de seu papel. O fato de se passar despercebido na multidão fora primordial para que ele fosse eleito para aquela função. Claro, não era o único membro do grupo a quem podiam recrutar. Havia outros, embora suas identidades fossem mantidas em segredo.

Ele já não se lembrava mais havia quanto tempo servia seu Mestre. Sabia apenas que ficava honrado em servi-lo.

Com o relatório em mãos, o arquivista procurou um lugar tran­qüilo e privado. A sala de descanso, que nunca se encontrava vazia, estava ocupada por duas oficiais e por Carrigan, um policial corpu­lento e arrogante que esperava com ansiedade pela aposentadoria. Ele se gabava do fantástico negócio que tinha feito com a compra de um apartamento na Flórida, enquanto as mulheres o ignoravam e se dedi­cavam ao lanche da noite.

O arquivista passou os dedos pelos cabelos ralos e atravessou as portas abertas em direção ao almoxarifado, no final do corredor. Deteve-se com a mão na maçaneta e olhou discretamente por sobre o ombro. Certificou-se de que não era observado e entrou na saleta com prateleiras repletas de rolos de papel higiênico, toalhas de papel e produtos de limpeza.

Na privacidade do interior escuro, retirou o telefone celular do bolso da calça e apertou o botão da memória para chamar o único número armazenado. O tom de chamada soou duas vezes antes de cessar, seguido do silêncio ameaçador. Ele reconheceu a inconfundí­vel presença do Mestre no outro extremo da linha.

— Senhor... — murmurou num sussurro. — Tenho informações. Em tom quase inaudível, ele passou a relatar às pressas todos os deta­lhes a respeito de uma mulher chamada Gabrielle Maxwell, incluin­do a declaração sobre um assassinato cometido por uma gangue no centro da cidade.

O arquivista ouviu o ruído suave da respiração ritmada no outro extremo da linha. O Mestre permaneceu em silêncio, mas a fúria contida na respiração gelou o sangue do humilde servo.

— Reuni toda a informação possível, senhor — ele concluiu com orgulho.

E, usando apenas a iluminação do celular, passou a informar sobre todos os dados pessoais de Gabrielle, ansioso por agradar o temível e poderoso Mestre.

 

Dois dias inteiros se transcorreram, e Gabrielle ainda guarda­va imagens vividas de todo o horror que testemunhara no beco da La Notte.

Que importância tinha, afinal de contas? Ninguém acreditava nela, muito menos a polícia, que ainda não cumprira a promessa de enviar um oficial para vigiá-la.

Jamie e Megan, que tinham visto os rapazes de jaqueta de couro brigando com o rapaz na boate, disseram que o grupo havia saído sem maiores incidentes. Kendra estivera completamente focalizada em Brent, o rapaz que conhecera naquela noite, e sequer percebera a briga. Segundo os policiais que se encontravam na delegacia de polí­cia no sábado, todos os interrogados na boate contaram a mesma his­tória: houvera uma briga no interior da casa noturna, mas ninguém presenciara sinais de violência na rua. Não havia nenhum registro da vítima em hospitais ou necrotérios, tampouco boletim de ocorrência sobre os danos no carro do taxista que ela encontrara na rua. Nada.

Como era possível? Ela estaria delirando? Era como se somen­te seus olhos estivessem abertos naquela noite. Ou então, ela estava perdendo o juízo. Talvez um pouco dos dois, ponderou.

Como sempre fazia quando se sentia frustrada, ela procurou con­solo na única fonte de alegria. Trancada no quarto escuro no porão da casa, Gabrielle mergulhou a folha de papel fotográfico na bandeja com o líquido de revelação. Uma imagem começou a ganhar contor­nos sob a superfície do líquido. Ela observou com um sorriso a irôni­ca beleza dos tijolos envelhecidos de um antigo hospital psiquiátrico abandonado. Descobrira a relíquia arquitetônica de estilo gótico havia pouco tempo, no subúrbio da cidade.

A fotografia saiu melhor do que esperava, e sua imaginação de artista se inflamou com a possibilidade de realizar uma série inteira dedicada ao local desolado e inquietante. Revelou outra foto, mos­trando em primeiro plano um broto de pinheiro crescendo numa rachadura no pavimento do pátio dos fundos.

O sorriso se alargou quando ela retirou os papéis do líquido e pen­durou-os no varal de secagem. Havia mais doze poses como aquelas sobre sua mesa de trabalho, testemunhos silenciosos da obstinação da natureza e da loucura da cobiça e arrogância do homem.

Desde que era criança, Gabrielle sempre se sentira como uma estrangeira, uma silenciosa observadora da vida. Atribuía ao fato de não ter pais ou qualquer parente, exceto o casal que a adotara quando ela era uma problemática pré-adolescente de doze anos que passara a vida de mudando de orfanato em orfanato.

Os Maxwell, um casal de classe média alta sem filhos, compade­ceram-se da órfã abandonada. Eles a educaram nos melhores colé­gios, enviaram-na a acampamentos de verão e, finalmente, a uma universidade fora do estado. Infelizmente a vida do casal foi tragi­camente tirada num acidente de carro quando Gabrielle estava na universidade.

Ela não assistiu ao funeral. No entanto, a primeira fotografia séria que fez foi de duas lápides sob a sombra de um salgueiro no cemitério Mount Auburn. Depois disso, dedicou-se à fotografia de corpo e alma e decidiu seguir a carreira de fotógrafa.

Gabrielle não gostava de lamentar o passado. Assim, apagou a luz do porão e subiu para o piso térreo, pensando no que fazer para o jantar. Mal entrou na cozinha, ela ouviu a campainha estridente da porta da frente.

Na certa, era Jamie. O amigo dormira no quarto de hóspedes nas duas últimas noites. Estava preocupado e agia como o irmão protetor que ela nunca tivera. Naquela manhã, ao partir, ele se oferecera para voltar à noite, mas ela insistira em ficar sozinha.

A verdade era que necessitava da solidão e, ao ouvir a campai­nha, não conseguiu reprimir certa irritação ante a possibilidade de ter companhia.

— Um minuto! — gritou ao correr para o vestíbulo.

Como de costume, focalizou o olho-mágico e, em vez de vislum­brar as mechas loiras e onduladas de Jamie, Gabrielle viu os cabelos escuros de um homem desconhecido. O brilho tênue da lâmpada na entrada o envolvia com uma aura dourada. Aquele estranho guarda­va algo ao mesmo tempo assustador e cativante. Os pálidos olhos acinzentados, que agora focalizavam diretamente o círculo de cristal, pareciam vê-la através da madeira.

Gabrielle abriu a porta, tomando o cuidado de não tirar a corren­te da trava de segurança nem soltar os dois ferrolhos. Ele se aproxi­mou da abertura e sorriu, como se achasse divertida sua crença de que uma simples corrente pudesse impedi-lo de entrar.

— Srta. Maxwell?

A voz mais parecia uma carícia, como o contato de um rico veludo negro.

— Sim?

— Meu nome é Lucan Thorne. — As palavras foram enunciadas num timbre suave e moderado que teve o poderoso efeito de acalmá-la. — Eu soube que você teve problemas noites atrás, na delegacia de polícia, e passei por aqui para me assegurar de que estava bem.

Gabrielle arqueou a sobrancelha, surpresa por não ter sido des­cartada por completo. Depois de dois dias sem notícias, não esperava mais ver ninguém do departamento.

Ela avaliou-o discretamente. Apesar de elegante demais para ser um policial, além da perigosa aura de mistério que envolvia aquele homem magnífico de feições marcantes, ele não parecia ter intenção de lhe fazer algum mal. Contudo, depois do que tinha passado, ela decidira que prudência nunca era demais.

— Você tem alguma identificação?

Com um gesto deliberadamente cuidadoso, ele abriu a carteira de couro e suspendeu-a até a altura do olho-mágico. Ela precisou de alguns segundos para focar a visão na insígnia de polícia e na fotogra­fia ao lado do nome.

— Entre, detetive — convidou, convencida da veracidade do documento.

Gabrielle soltou a corrente, os ferrolhos, e se afastou para lhe dar passagem. Por um segundo, receou que os ombros largos não fossem passar pela abertura da porta. A presença altiva parecia ocupar todo o vestíbulo, e o casaco longo valorizava ainda mais a compleição atlé­tica. Os cabelos negros e sedosos absorviam a luz suave da luminária do teto. Ele ostentava uma expressão grave, como se estivesse mais habilitado para liderar uma legião de cavalheiros armados do que para consolar uma mulher que sofria de alucinações num bairro de classe média de Boston.

— Não acreditei que viesse alguém. Depois da forma como me trataram na delegacia, achei que a polícia de Boston tinha me catalo­gado como um caso perdido.

Ele a fitou com expressão indecifrável e adentrou com passo seguro e tranqüilo. Parou na sala de estar e passeou o olhar pelo ambiente. Deteve a atenção na escrivaninha, onde se encontravam as fotografias do asilo psiquiátrico.

Gabrielle parou atrás dele e observou a reação ante seu trabalho. Ele estudava as fotografias com as sobrancelhas arqueadas.

— São suas? — perguntou.

— Sim. São parte de uma série que pretendo intitular Renovação Urbana.

— Interessante.

Ele continuou a olhar as fotos e Gabrielle sentiu um súbito incô­modo pela resposta indiferente.

— O projeto está em fase de construção — viu-se compelida a justificar. — Não está pronto ainda.

Ele soltou um grunhido de assentimento e ela se aproximou com intenção de captar melhor a reação dele.

— Tenho muitas encomendas de trabalho. Fiz uma exposição no sábado em que vendi algumas fotografias para o governador.

Gabrielle mordeu os lábios. O que estava fazendo? Por que estava tentando impressionar aquele homem?

O detetive Thorne, no entanto, não parecia impressionado. Sem dizer nada, estendeu a mão, elegante demais para a profissão, e ajei­tou as fotografias sobre a mesa. Inexplicavelmente, Gabrielle imagi­nou os dedos longos sobre a pele nua, mergulhando em seus cabelos, deslizando pela nuca... Uma onda de calor cresceu em seu ventre ao pensar em como seria se ele a agarrasse pelos cabelos e os olhos claros penetrassem sua alma.

— Suponho que você prefira ver as fotografias que tirei sábado à noite, no beco ao lado da boate.

Sem esperar resposta, ela foi até a cozinha e voltou com o celular. Ativou-o, abriu uma das fotos e estendeu o aparelho para o detetive Thorne.

— Essa é a primeira tomada. Minhas mãos tremiam, e o foco não está bom. Além disso, a luz do flash deturpou alguns detalhes. Mas, se observar com atenção, verá que há seis silhuetas escuras agachadas. São os assassinos. A vítima é esse vulto no chão. Eles estavam mordendo o rapaz, como animais enfurecidos.

Os olhos imperturbáveis de Thorne se mantiveram fixos na ima­gem. Gabrielle abriu a próxima fotografia.

— O flash os assustou, e alguns se viraram. Não é possível distin­guir os traços, mas este é o rosto de um deles. As rajadas de luz são o reflexo dos olhos. — Ela estremeceu ao recordar o brilho maligno e desumano daquele olhar. — Eles olharam diretamente para mim.

O detetive tomou o celular das mãos de Gabrielle e abriu as imagens seguintes.

— O que você acha? — perguntou ela, esperando conseguir algu­ma confirmação. — Você também consegue vê-los?

— Sim. Eu vejo... algo.

— Graças a Deus! Seus colegas policiais insinuaram que eu esta­va louca, ou que estava drogada e não sabia do que estava falando. Nem meus amigos acreditaram quando contei o que tinha visto.

— Seus amigos... — ele repetiu, meditativo. — Então, você esta­va com mais pessoas além do homem que foi buscá-la na delegacia. É seu namorado.

— Meu namorado? — Gabrielle riu. — Oh, não! Jamie não é meu namorado.

Thorne desviou o olhar da tela do aparelho para fitá-la.

— Ele passou as duas últimas noites aqui com você.

Como ele sabia? Gabrielle sentiu uma pontada de irritação ante a idéia de que estava sendo espionada, mesmo pela polícia. Na certa, eles a vigiavam por suspeitarem dela, e não para protegê-la.

— Jamie dormiu no quarto de hóspedes — ela enfatizou as palavras, mesmo sentindo-se ridícula. — Ele estava preocupado, depois do que aconteceu nesse fim de semana. É meu amigo, nada mais.

Ótimo. Os lábios de Thorne não se moveram, mas Gabrielle podia jurar ter ouvido o comentário. A complacência ao saber que não se tratava de seu namorado parecia ressonar em algum lugar dentro dela. Possivelmente, não passava do reflexo de seu próprio desejo, pensou. Fazia muito tempo que ela não se relacionava intimamente com um homem, e o simples fato de estar perto de Lucan Thorne provocava estranhas reações.

Ele a fitava, e Gabrielle sentiu uma deliciosa onda de calor brotar em seu ventre. O olhar a penetrou como se fossem dedos tocando-a com intimidade. De repente, uma imagem se formou em sua mente: ela e ele, nus, abraçados sob o luar, em sua cama. Ela quase podia sentir o calor do corpo pesado movendo-se sobre o dela... O membro vigoroso abrindo caminho, explorando sua intimidade...

Gabrielle suspirou, sentindo o calor úmido entre as pernas. Jamie estava certo. Seu celibato já durava muito tempo.

Thorne piscou, e os cílios negros esconderam a tempestade dos olhos claros. Gabrielle sentiu que parte da tensão sexual se dissipou, como se fosse aplacada por uma brisa fresca. No entanto, o coração ainda batia desenfreado no peito, e um estranho calor preenchia o ambiente.

Ele virou a cabeça, e Gabrielle avistou a tatuagem no pescoço, parcialmente exposta sob a gola do casaco. Linhas intrincadas e sím­bolos geométricos em tom ligeiramente mais escuro que o da pele desapareciam sob a linha dos cabelos. Ela se perguntou como seria o restante da tatuagem, e se o belo desenho teria algum significado especial, e apertou as mãos, refreando a urgência de tocar as linhas com os dedos... Ou com a língua.

Engoliu em seco. Deus, o que estava acontecendo com ela?

— O que você disse aos seus amigos sobre o que viu?

Gabrielle respirou fundo e tentou se concentrar na conversa. Ignorou o ritmo desenfreado da pulsação e se focalizou nos aconte­cimentos da noite de terror. Contou para o detetive a mesma história que se cansara de repetir para os dois oficiais e para seus amigos. Descreveu todos os detalhes nefastos, e ele ouviu com atenção, sem interrompê-la.

A aceitação que encontrou nos olhos claros teve o efeito de clarear a lembrança e torná-la mais precisa, como se a lente de sua memória se ajustasse, captando mais detalhes.

Ao terminar, Thorne voltou a estudar as fotografias do celular. A expressão passara de séria a grave.

— O que você vê exatamente nessas imagens, srta. Maxwell?

Os olhares se encontraram, e o brilho inteligente e penetrante pare­ceu ter o poder de atravessá-la. Uma palavra se insinuou na mente de Gabrielle, mas era uma idéia absurda, ridícula e aterrorizante: vampiros.

— Não sei — afirmou sem convicção, fazendo a voz soar acima do zunido que ecoava em sua mente.

— Quero dizer, não estou segura do que pensar.

Se o detetive ainda a considerava sensata, deixaria de acreditar se ela exteriorizasse o nome que dançava em sua mente, congelando o sangue em suas veias.

Contudo, era a única explicação plausível para a horripilante matança que ela presenciara.

Vampiros?

Jesus! Ela podia jurar que havia ouvido a réplica do detetive. Dessa vez, perdera totalmente o juízo!

— Tenho de levar seu celular para análise, srta. Maxwell.

— Gabrielle — ela corrigiu com um sorriso. — Você acha que os peritos podem melhorar as imagens?

Ele inclinou ligeiramente a cabeça, numa resposta indecifrável, e guardou o celular no bolso.

— Prometo devolvê-lo amanhã, no final da tarde. Você estará em casa?

— Claro. — Como era possível que uma simples pergunta soas­se como uma ordem na voz daquele homem? — Obrigada por ter vindo, detetive Thorne. Estou passando por momentos difíceis.

— Lucan — foi a vez de ele corrigir.

Ele observou-a por um momento, e a sombra de um sorriso se insinuou em seus lábios. O calor que emanava dos olhos chegaram até ela. Gabrielle identificou neles o traço inequívoco da compreensão, como se já tivessem presenciado horrores maiores dos que ela jamais imaginara. Não encontrou definição para o que sentia naque­le momento, mas a reação de seu corpo denunciava a emoção quase palpável despertada pela presença de Lucan.

Ele continuava a fitá-la, como se esperasse ouvi-la pronunciar seu nome.

— Está bem... Lucan.

— Gabrielle.

O som de seu nome nos lábios dele provocou uma estranha vibra­ção e a profunda consciência de si mesma.

Ele desviou o olhar para uma das fotografias favoritas de Gabrielle, pendurada na parede atrás dela. Lucan apertou os lábios, num gesto sensual que evidenciava o traço de diversão. Ela olhou para a imagem de um parque desolado, coberto por uma espessa camada de neve típica do mês de dezembro.

— Você não gosta do meu trabalho, não é?

— A qualidade artística de suas fotos é inquestionável. Porém, eu acho que é... — Ele inclinou a cabeça. — Intrigante.

— Por quê? — ela quis saber, curiosa.

— Você consegue ver beleza nos lugares mais insólitos. Suas fotos estão cheias de paixão.

— Mas?... — ela o estimulou, arqueando as sobrancelhas.

Para sua surpresa, ele estendeu os dedos e traçou de leve a linha do seu queixo.

— Nunca há pessoas nas suas fotografias, Gabrielle.

Ela abriu a boca para negar, mas antes que as palavras saíssem, percebeu que ele tinha razão. Intrigada, estudou cada uma das foto­grafias emolduradas das paredes-e repassou mentalmente as que se encontravam em galerias de arte, museus e coleções privadas de toda a cidade.

Ele tinha razão. As imagens, qualquer que fosse o tema, retrata­vam lugares vazios e solitários. Nenhuma delas continha um só rosto, sequer a sombra de vida humana.

— Oh, meu Deus — sussurrou, aniquilada com a noção apavoran­te que se descortinou diante dela.

Em segundos, aquele homem definira seu trabalho como ninguém fizera antes. Nem ela própria se apercebera da verdade tão evidente de sua arte, mas Lucan Thorne, de forma inexplicável, abrira-lhe os olhos. Era como se tivesse olhado diretamente em sua alma.

— Tenho de ir — ele avisou, dirigindo-se para a porta.

Gabrielle o seguiu, desejando que ele ficasse mais tempo. Talvez ele pudesse voltar mais tarde... Lucan já tinha cruzado a porta quando, de repente, deteve-se nos degraus da entrada.

— O que houve? — ela perguntou, sem se atrever a respirar. As narinas dele se dilataram quase imperceptivelmente.

— Que perfume você está usando?

A pergunta inesperada e íntima a deixou tensa. Ela sentiu o intenso rubor nas bochechas, e abaixou o rosto para que ele não visse.

— Sou alérgica, e não uso nenhum tipo de perfume.

— Sério?

Os lábios dele se apertaram num sorriso forçado, como se os den­tes tivessem crescido dentro da boca. De repente, inclinou a cabeça e aproximou o rosto até quase tocar o pescoço de Gabrielle. Ela sentiu o hálito quente acariciar a pele enquanto ele inalava seu aroma. A pele queimou quando os lábios roçaram sobre a veia, que se dilatou num ritmo descompassado sob influência da proximidade. Um gemido abafado soou perto de seu ouvido, algo parecido com uma maldição.

Lucan se afastou imediatamente, evitando encará-la.

— Você cheira a jasmim — foi o único comentário que emitiu antes de descer os degraus da varanda e penetrar na escuridão da rua.

Fora um erro procurar aquela mulher. Lucan sabia disso desde o momento em que esperava nos degraus da casa de Gabrielle Maxwell com a insígnia de detetive e a fotografia do cartão. Não era dele. Na verdade, usara sua habilidade de manipulação hipnótica para fazê-la ver o que ele queria que visse. Era um truque simples para os mais experientes da espécie, como ele. Porém, poucas vezes se utilizava desse artifício.

E, apesar disso, ali estava ele novamente, comprometendo seu código de honra. Passava da meia noite, e ele verificou a corrente de segurança da porta de entrada. Como já esperava, encontrou-a solta, conforme tinha sugestionado quando falava com Gabrielle uma hora atrás. Ele demonstrara o que desejava fazer com ela, e se surpreendeu com a resposta receptiva nos lânguidos olhos castanhos.

Lucan tivera de travar uma batalha interna para não tomá-la naquele momento, sabendo que ela o acolheria de bom grado. Sabia também do intenso prazer que compartilhariam no processo.

No entanto, o prazer imediato se submeteu ao dever, em primei­ro lugar, à Raça e aos guerreiros que se uniram a ele para combater o crescente problema dos Corrompidos.

Ele lastimou que Gabrielle tivesse presenciado o ataque no beco e informado a polícia e aos amigos antes que tivesse tempo de apagar a memória dela. E, para piorar, ela fora imprudente a ponto de foto­grafar a cena. Mesmo que as imagens não passassem de borrões, tinha de resgatá-las antes que ela pudesse mostrar a mais alguém.

Lucan teve de admitir que a atitude dela poderia ajudar. Precisava das fotografias para levar ao laboratório de Gideon. Talvez o amigo pudesse identificar o valentão que escapara. Caso contrário, ele seria obrigado a se juntar a Dante, Rio, Conlan, Niko e Tegan, guerreiros da Raça cuja missão era caçar Corrompidos pela cidade.

Ele penetrou no interior da casa de tijolos vermelhos e fechou a poria. O incitante aroma de Gabrielle pairava no ar. Percorreu o vestíbulo em silêncio, atravessou a sala e subiu a escada até o piso superior,

As janelas abertas do quarto deixavam entrar a luz prateada da lua, que iluminava as curvas insinuantes do corpo de Gabrielle. Ela estava nua, como se esperasse sua chegada. As pernas longas se enrasca­vam nos lençóis e os cabelos se espalhavam sobre o travesseiro numa luxuriante cascata cor de bronze.

O aroma de jasmim o envolveu, doce e sedutor, e as presas rasga­ram a gengivas.

Jasmim... Uma flor exótica que abria as pétalas perfumadas somente à noite.

Abra se para mim, Gabrielle, sua mente ordenou como que por vontade própria.

Contudo, ele refreou o desejo. Não a seduziria, ao menos, des­sa maneira. Queria apenas experimentar o gosto dela, somente para satisfazer a curiosidade. E quando houvesse terminado, Gabrielle não se lembraria de nada, tampouco recordaria o horror que tinha presen­ciado no beco.

Lucan se aproximou e sentou-se na beirada da cama. Acariciou os fios sedosos dos cabelos e correu os dedos pela linha do braço. Ela se mexeu e gemeu com doçura, reagindo ao contato.

— Lucan — murmurou, sonolenta. — É um sonho?

— Não — sussurrou ele, assombrado por ouvir seu nome sem ter se utilizado de nenhum recurso para que ela o pronunciasse.

Ela suspirou profundamente e se apertou contra ele.

— Sabia que voltaria.

— Sabia?

— Sim. — O murmúrio rouco escapou dos lábios entreabertos. Ela mantinha os olhos fechados e a mente enevoada no labirinto dos sonhos. — Queria que voltasse.

Lucan sorriu e percorreu a linha da sobrancelha com a ponta do dedo.

— Você não tem medo de mim?

Ela balançou a cabeça em negativa e pressionou o rosto contra a palma da mão dele. Os dentes alvos brilhavam sob a luz da lua. O pescoço elegante e altivo o fazia lembrar uma coluna de alabastro que se erigia dos ombros delicados. Ele imaginou a doçura que sua língua encontraria ao tocar a pele alva.

E os seios... Lucan não pôde resistir à sombra do mamilo se insi­nuando sob o lençol. Tomou o pequeno botão entre os dedos e quase gemeu de desejo ao notar que se endureciam sob o tato.

Ele umedeceu os lábios, sentindo um desejo crescente, ansioso por possuí-la.

Gabrielle se retorceu com um gesto lânguido, enredada entre as cobertas. Ele afastou com suavidade o lençol e expôs a nudez em sua plenitude. Era deliciosa, tal como imaginara. Embora de compleição pequena, o corpo era forte, ágil e jovem, flexível e formoso. Músculos firmes davam forma às pernas elegantes; as mãos de artista eram lar­gas e expressivas, e se moveram com um gesto inconsciente quando Lucan acariciou o ventre de pele aveludada.

Sem resistir, ele se posicionou sobre ela e passou as mãos sob a cintura fina. Levantou-a, fazendo com que se arqueasse. Beijou a suave curva do quadril e a língua se insinuou através do vale entre as pernas. A fragrância do desejo incendiou seus sentidos.

— Jasmim — murmurou com voz rouca contra a pele cálida.

O gemido de prazer que ela deixou escapar quando a língua expe­riente invadiu seu sexo despertou uma violenta corrente de luxúria por todo o corpo de Lucan. O membro ereto se empinou ainda mais, pulsando de forma dolorosa. Ele sentiu a umidade e explorou a fenda lubrificada, sorvendo-a como quem encontra um néctar, até que o corpo dela se convulsionasse com a proximidade do clímax. Ele con­tinuou as carícias até conduzi-la ao clímax, e sorriu quando Gabrielle ficou inerte em seus braços, estremecendo de prazer.

Lucan também tremia, tomado por um desejo que ele nunca expe­rimentara. Nunca sentira tamanha atração por uma mulher. Percebeu que, desde o princípio, o impulso de protegê-la escondia algo mais. Observou a respiração ofegante de Gabrielle se acalmar, enquanto ela pendia a cabeça sobre o travesseiro com expressão inocente.

Lucan estudou-a com fúria silenciosa, lutando contra a força de seu desejo. A dor lancinante das presas expandindo a gengiva o fez apertar os lábios. A lascívia por sangue o cegou, envolvendo-o como tentáculos sedutores. As pupilas se dilataram, numa reação involuntária.

Decidiu que somente a provaria. Não lhe faria mal, e sim, aumen­taria o prazer dela. Ademais, ela não se recordaria de nada quando acordasse na manhã seguinte. Como sua anfitriã de sangue, ela ofe­receria uma dose de vida em troca do prazer. Seria um pequeno ato de misericórdia, Lucan disse a si mesmo, convencendo-se de que não haveria mal algum.

Ele se inclinou sobre o corpo de Gabrielle e, com ternura, afastou a cabeleira farta que cobria o pescoço. O coração pulsava com força, apressando-o a satisfazer a sede que o queimava.

Aproximou-se com a boca aberta, os sentidos incendiados pelo penetrante aroma de fêmea, pressionou os lábios contra a pele e pro­curou a pulsação da veia com a ponta da língua. As presas arranharam a suavidade aveludada do pescoço e, no instante em que estavam a ponto de penetrar a epiderme frágil, ele recuou, sobressaltado.

Sua visão aguçada captou o pequeno sinal atrás da orelha. Quase invisível, a diminuta marca de nascença tinha a forma de uma lágrima caindo na concavidade de uma lua crescente. O símbolo, raramente encontrado entre mulheres humanas, tinha somente um significado: companheira de espécie.

Ele se afastou, como se tivesse sido atingido por um raio, e praguejou baixinho. O desejo ainda pulsava dentro dele, mas as con­seqüências do que estava prestes a fazer poderiam ser graves.

Gabrielle Maxwell era uma Escolhida, uma humana que tinha características de sangue e de DNA únicos e complementares com os de sua espécie. Ela e as poucas mortais com a mesma marca eram rainhas entre as fêmeas humanas.

Para a espécie de Lucan, formada somente por homens, aquela mulher era adorada como uma deusa, como uma doadora de vida, destinada a vincular-se por sangue e a levar a semente de uma nova geração de vampiros.

E, em sua inconseqüente luxúria por saboreá-la, ele quase a toma­ra para si.

 

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos eróticos que tivera na vida, mas nada poderia se comparar à incrível experiência daquela noite. Parecia tão real que ela podia jurar que Lucan Thorne estava em sua cama, fazendo-a desfrutar da deliciosa fantasia sexual.

Na verdade, o hálito dele era a brisa noturna que penetrava pela janela aberta. Os cabelos eram a escuridão da noite, os olhos prateados nada mais eram do que o brilho pálido da lua. As mãos fortes eram os laços de seda dos lençóis, que enredavam seus pulsos e tornozelos e a sujeitavam com força.

A boca era puro fogo que queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. Jasmim... Fora assim que ele a chamara, e o som suave da palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o hálito quente acariciava os pelos pubianos.

Ela havia experimentado um prazer indescritível, dominada pela habilidade da língua experiente que a submetera a uma tortura que poderia ser infinita. Porém, tinha terminado, e muito depressa. Ela despertara sozinha na escuridão, chamando o nome de Lucan, com o corpo esgotado e dolorido pelo desejo.

Durante o dia todo, ela acalentou a idéia de que Lucan voltasse. Ao anoitecer, tomou um longo banho e escolheu a lingerie mais sen­sual da gaveta de calcinhas, um conjunto de duas peças minúsculas de renda negra. Vestiu a blusa de seda de mangas longas e calça jeans, tentando parecer absolutamente casual.

Perto das nove horas da noite, desistiu de esperar e telefonou para Jamie convidando-o para jantar no centro da cidade.

Agora, sentados numa mesa do bistrô Cicio Bela, Jamie colocou a taça de vinho sobre a mesa e olhou para o prato de frutos do mar intocado diante dela.

— Você não tocou na comida, querida. Não gostou de alguma coisa?

— Oh, não! A comida daqui é sempre ótima.

— Então, não está gostando da minha companhia? Ela franziu a testa e negou com um gesto da cabeça.

— Absolutamente. Você é meu melhor amigo, Jamie. Adoro sua companhia.

— Ah, ainda bem. — Ele se inclinou sobre a mesa com um sorriso de provocação. — Embora eu não possa me comparar com o homem do seu sonho erótico.

Gabrielle se ruborizou ao perceber que o cliente da mesa ao lado olhou para eles.

— Shhl Você quer que o restaurante todo fique sabendo do meu sonho? — exclamou por entre os dentes. — Eu não devia ter lhe contado!

— Bobagem! Não fique encabulada. Se eu ganhasse uma moeda cada vez que despertei excitado, murmurando o nome de um homem sexy...

— Eu não murmurei o nome dele! — Não, ela tinha quase gritado, com o fôlego entrecortado pelos gemidos. Porém, guardou a observa­ção para si. — Era como se ele estivesse ali, Jamie. Era tão real que eu quase podia tocá-lo.

— Algumas garotas têm toda a sorte do mundo! — Jamie sus­pirou com ar sonhador. — Na próxima vez que se encontrar com seu amante em sonhos, seja boazinha e mande-o para mim quando terminar.

Gabrielle riu, ciente de que o amigo não tinha problemas no depar­tamento romântico. Durante os últimos quatro anos, ele vivia uma feliz relação monogâmica com David, um vendedor de antigüidades que viajara por alguns dias a negócios.

— Quer saber o que é o mais estranho disso tudo, Jamie? Ao me levantar esta manhã, a porta da entrada não estava fechada à chave.

— È?...

— Você me conhece. Nunca deixo de trancar a porta.

As sobrancelhas bem cuidadas e depiladas de Jamie se juntaram.

— O que você quer dizer? Por acaso está pensando que ele forçou a porta enquanto você dormia?

— Parece loucura, eu sei. Imagine se um detetive de polícia iria à minha casa para me seduzir! Devo estar perdendo o juízo.

Gabrielle forçou um sorriso, tentando parecer casual, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sob sua própria pru­dência. Com gesto ausente, brincou com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. A preocupação do amigo aumentava a inquietação dela acerca de sua possível instabilidade mental.

— Ouça, meu bem, você passou por muito estresse no fim de semana. É natural que esteja confusa. É possível que tenha se esque­cido de trancar a porta.

— E o sonho?

— Bem, foi somente um sonho. Acho que é uma espécie de válvula de escape da mente para aliviar a tensão.

Gabrielle meneou a cabeça num gesto automático de afirmação.

— Tem razão. Acho que é só isso mesmo.

Se pudesse aceitar a explicação de que tudo era tão simples como seu amigo fazia parecer... Entretanto, a sensação incômoda no estô­mago confirmava sua crença de não ter se esquecido de fechar a por­ta. Ela nunca faria nada parecido, por mais estressada e confusa que estivesse.

— Não se preocupe, querida. — Jamie estendeu o braço sobre a mesa para tomar a mão dela. — Você ficará bem, Gabby. Sabe que pode me chamar a qualquer hora do dia ou da noite, não é?

— Obrigada, querido.

Jamie soltou a mão, pegou o garfo e espetou um marisco no prato dela.

— Você vai comer isso?

Ela riu e empurrou o prato na direção dele.

— É todo seu.

Enquanto Jamie se dedicava à comida, Gabrielle apoiou o quei­xo em uma mão e tomou um gole do vinho. Distraída, ela passou os dedos sobre as ligeiras marcas que descobriu no pescoço naque­la mesma manhã, depois de tomar banho: dois sinais idênticos sob a orelha, localizados sobre a região em que a pulsação era mais nítida. As minúsculas perfurações sequer tinham transpassado a pele, mas estavam lá.

A princípio, ela achara que havia se arranhado enquanto dormia. Entretanto, as marcas não pareciam arranhões. Era como se alguém, ou algo, tivesse tentado mordê-la.

— Oh, meu Deus, como sou imbecil! — a exclamação alarmada de Jamie interrompeu seus pensamentos. — Eu quase me esqueci de lhe dizer que recebi um telefonema na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.

— Sério? De quem se trata?

— Não sei. — Ele deu de ombros. — A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a julgar pela atitude do assistente dele, eu diria que é seu admirador. Marquei uma entrevista para amanhã à noite, no centro financeiro. O escritório se localiza numa cobertura, querida.

— Oh, meu Deus! — ela murmurou com incredulidade.

Era difícil não ficar intrigada, especialmente depois de tudo que acontecera nos últimos dias. Gabrielle tinha conseguido respeitáveis admiradores e ganhara muitos elogios pelo novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.

— Que peças ele pediu que levasse?

Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela num gesto caricato de celebração.

— Todas, srta. Maxwell. Ele quer cada uma das peças da coleção.

 

No telhado do um velho edifício de tijolos na área antiga da cida­de, um dos guerreiros se mantinha agachado, sem mover um só mús­culo. Ele virou a cabeça e levantou uma mão para sinalizar a presença de quatro Corrompidos. Uma presa humana se dirigia diretamente para eles, e foi atacada sem piedade.

Lucan fez a Dante um gesto afirmativo com a cabeça e se afastou da saída de emergência do quinto andar, sua posição de vigilância durante a última meia hora. Desceu até a rua com um movimento fluido, aterrissando em silêncio, como um gato. Os cabos trabalhados das espadas se sobressaíam acima dos ombros como as asas de um demônio.

Ele desembainhou as armas de titânio sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para o desfecho da ação.

Horas mais tarde, numa rua deserta da cidade, Lucan olhou para o céu e calculou o tempo que restava antes do amanhecer. Levara mais tempo do que esperava com a expedição de caça a quatro Corrompidos.

Ele havia prometido devolver o telefone celular de Gabrielle, mas não cumpriria a promessa. O aparelho ainda estava no laboratório téc­nico da sede, enquanto Gideon processava as imagens para compará-las com a Base de Dados de Identificação Internacional da Espécie.

O problema era que as imagens do ataque dos Corrompidos não podiam estar em mãos de nenhum ser humano. E, depois da descoberta no quarto dela, quanto mais longe estivesse daquela mulher, melhor seria.

Uma maldita Escolhida. Se estivesse mais atento, teria percebido desde o começo. Era evidente que ela tinha certas características pecu­liares, como a habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico. Ela conseguira enxergar os Corrompidos ávidos de san­gue no beco e nas imagens indecifráveis do telefone celular, quando outros seres humanos jamais conseguiriam ver. Mais tarde, na casa dela, demonstrara resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava de que se submetera mais pelo desejo consciente do prazer do que por outra coisa.

Não era nenhum segredo que as fêmeas humanas com o código genético único de Escolhidas possuíam inteligência aguda e saúde perfeita. Muitas delas tinham assombroso talento paranormal que aumentava quando se unia por sangue a um vampiro.

Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o restante dos seres humanos não podia ver. Ele não sabia até onde chegava tal capacidade, mas seu instinto de guerreiro exigia que descobrisse, e o mais depressa possível.

Porém, envolver-se com aquela mulher, não importava como, era a última coisa que ele necessitava.

Então, por que não conseguia se livrar da lembrança do doce aroma, da suavidade da pele, da provocante sensualidade? Odiava o fato de que ela tivesse despertado sua total fragilidade.

As lembranças provocaram a expansão involuntária das presas.

Não deveria ter tal reação, tendo se alimentado poucas horas atrás. O mortal que os Corrompidos tinham atacado servira de anfitrião para ele e Dante. Segundo a tradição, ele usufruía o privilégio de se ali­mentar primeiro por ser um Gen Um. Saciara a sede e deixara o mortal para Dante que apagara a memória do homem depois de terminar.

Mesmo assim, ele ainda tremia pela necessidade de sangue.

Naquele momento, um mortal virou a esquina, alguns passos à frente dele. Jovem, saudável, trajando calça jeans e avental branco manchado de gordura, cheirando a fumaça de fritura e suor. O cozi­nheiro acelerou o passo, e Lucan observou-o se afastar, lutando contra a urgência de persegui-lo.

Definitivamente, não era o momento para estar com Gabrielle Maxwell.

 

Ele nem sequer se preocupara em deixar uma mensagem na noi­te anterior. Típico. Provavelmente, tinha algum encontro com alguém que fizera proposta mais interessante do que devolver o tele­fone celular de uma lunática de Beacon Hill.

E, pior, era possível que ele fosse casado, ou que tivesse uma relação afetiva com alguém. Claro, ela não perguntara, e mesmo que tivesse, não garantia que ele dissesse a verdade.

Lucan Thorne, certamente, não era um homem comum. Sim, ele era... diferente.

Gabrielle suspirou. Na verdade, ele era muito diferente de qual­quer homem que ela conhecia. Reservado, quase hermético, passava a impressão de ser estranhamente perigoso. Ela não conseguia visu­alizá-lo sentado numa poltrona diante do televisor, assim como era incapaz de imaginar que tivesse esposa e família. Mesmo assim, a noção de que ele teria recebido uma oferta mais interessante e a des­prezara doía muito mais do que deveria.

— Esqueça esse homem! — ela se repreendeu, enquanto estacio­nava o carro numa rua deserta.

Apanhou a bolsa com a câmara e o equipamento fotográfico no banco do passageiro, retirou a chave da ignição e saiu do carro. Ela olhou ao redor, certificando-se de que não havia ninguém por perto. As imediações estavam desertas, o que era de se esperar para uma segunda-feira, pouco, antes das seis horas da manhã. O edifício que estava a ponto de invadir ilegalmente para fotografar encontrava-se abandonado havia vinte anos.

Ela caminhou pela calçada e virou à direita. Deteve-se por um momento e empurrou os pesados portões de ferro, que se abriram com um rangido. Ela entrou no terreno ladeado por carvalhos que formavam uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.

O amanhecer começava a tingir o horizonte. A luz fantasmagórica e etérea envolvia a estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar das cores claras da fachada, a aura ameaçadora do lugar fascinara Gabrielle.

Era justamente tal contraste que a atraíra à propriedade naque­la manhã. A justaposição da luz do amanhecer com a fachada fria e sinistra era exatamente o que pretendia captar.

Gabrielle parou para tirar a câmara da bolsa pendurada ao ombro. Tirou algumas fotografias e recolocou a tampa na lente para continuar a caminhada em direção ao edifício fantasmagórico.

A inesperada cerca de arame que surgiu diante dela impedia que os exploradores curiosos entrassem na propriedade. Porém, ela sabia que tinha um ponto fraco. Descobrira na primeira vez que estivera lá para fazer algumas tomadas do exterior.

Ela contornou a cerca até o extremo sudoeste, e se agachou até o chão. Alguém havia cortado discretamente o arame, proporcionan­do uma abertura grande o bastante para que um adolescente curioso entrasse, ou para que uma fotógrafa decidida penetrasse por ela.

Gabrielle atirou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, através da abertura. Quando ficou de pé, do outro lado da cerca, as pernas tremiam sem que ela pudesse controlar. Deveria estar acostumada a esse tipo de ações furtivas de explorações solitárias. Muito freqüentemente, sua arte dependia da coragem de invadir lugares desolados e perigosos. E aquele sinistro hospital psiquiátrico abandonado definitivamente podia ser qualifi­cado como perigoso, ela pensou enquanto observava a pichação ao lado da porta de entrada.

Ela limpou as folhas secas e a terra da roupa e, com um gesto auto­mático, levou a mão ao bolso dianteiro do jeans em busca do celular. Não estava ali, obviamente, já que o detetive Thorne não o devolve­ra. Aquela era outra razão para sentir-se aborrecida com ele por tê-la feito esperar em vão na noite anterior.

De repente, ela se sentiu culpada por recriminá-lo. Possivelmente, Lucan tivera algum problema no trabalho. E se tivesse se ferido no cumprimento do dever e se encontrasse impossibilitado de telefonar? Na certa, não havia telefonado para se desculpar nem para explicar sua ausência porque não podia.

Sim, era isso. E, possivelmente, ela devia procurar seu próprio cérebro dentro da calcinha, que era onde devia estar depois de ter posto os olhos naquele homem.

Rindo de si, Gabrielle caminhou em direção à imponente arqui­tetura do edifício principal. A torre central, revestida de pálidas pedras calcárias, se erigia contra o céu, expondo picos pontiagudos fidedignos da arquitetura gótica. As construções de tijolos verme­lhos recobertas de telhas ordenadas num desenho imitando asas de morcego comunicavam-se entre si por passarelas e arcos formando um claustro coberto. A impressionante estrutura proporcionava a sensação de ameaça latente, como se mil pecados e segredos se escondessem por trás das janelas com vidros quebrados.

Gabrielle procurou a melhor luz e fez inúmeras tomadas. A seguir, estudou a fachada para encontrar algum ponto frágil que permitisse a passagem.

Não havia como entrar pela frente. A porta principal estava fecha­da com ferrolho e com travas de madeira. Ela contornou a construção e se deparou com um aterro. Encontrou o que procurava: portinho-las de madeira ocultavam três janelas que, provavelmente, se abriam para algum depósito.

Os ferrolhos oxidados se abriram com facilidade quando ela se serviu da ajuda de uma pedra. Gabrielle abriu a portinhola e ilumi­nou o ambiente com a lanterna que ela sempre carregava na bolsa. Assegurou-se de que o lugar estava vazio e não desabaria sobre sua cabeça e penetrou através da abertura. Ao saltar para o chão, o sola­do das botas pisou nos cacos de vidro, pó e lixo acumulados duran­te anos. O porão de blocos de concreto aparentava ter cerca de três metros de comprimento e desaparecia na zona escura que o facho de luz não alcançava.

Gabrielle dirigiu o foco da lanterna para as sombras e percorreu a parede, detendo-se na velha porta de serviço em cuja superfície se lia em letras garrafais: ACESSO RESTRITO.

— Aposto que não está trancada — murmurou, girando a maçaneta.

Ela sorriu quando a porta se escancarou. Projetou a luz para o corredor comprido que se assemelhava a um túnel sombrio. Suportes de lâmpadas fluorescentes quebrados pendiam do teto, e alguns se encontravam caídos no chão, recobertos de poeira.

Gabrielle entrou no túnel escuro, insegura do que poderia encontrar nas entranhas do asilo. Passou por uma porta aberta, e a luz do farolete iluminou uma cadeira de dentista de vinil vermelho no centro da sala, como se esperasse o próximo paciente. Ela tirou a proteção da lente e posicionou a câmara para uma série de fotos.

Seguiu adiante e passou por diversas salas de tratamento, o que sugeria ser a ala médica do edifício. Encontrou uma escada e subiu de dois em dois lances até que chegou à torre central, com amplas janelas que permitiam a entrada da abundante luz da manhã. Através da lente da câmara, ela focalizou o amplo terreno e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Ela exultou ao ver o efeito do jogo da luz do sol em contraste com a arquitetu­ra sombria, projetando sombras fantasmagóricas nas paredes. Era estranho comparar o exterior e o confinamento do edifício que antes abrigava tantas almas perturbadas.

No inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes em agonia... Pessoas como sua mãe biológica, uma mulher que ela não tivera chance de conhecer e da qual não sabia nada além do que tinha ouvido nas conversas em código das assistentes sociais e das famílias que a acolhiam... Famílias que sempre a devolviam às ins­tituições como se ela fosse um animal doméstico que tivesse demons­trado ser mais problemático do que se podia suportar. Ela perdera a conta do número de lugares em que vivera, mas as queixa contra ela quando a devolviam eram sempre as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente desadaptada e com tendência a atitudes autodestrutivas. Eram os mesmos qualificativos dirigidos à mãe, aos quais se acrescentava a classificação de psicose paranóide.

Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha pas­sado dezenove dias num orfanato sob a supervisão de um psicólo­go designado pelo Estado. Ela já não tinha mais expectativas de ser adotada. Na verdade, já não se importava mais.

No entanto, seus tutores se mostraram pacientes e bondosos. Com o intuito de ajudá-la a elaborar a confusão emocional, ajudaram-na a conseguir documentos judiciais referentes à mãe.

Ela fora uma adolescente anônima, sem endereço ou identificação, sem família conhecida, exceto pelo bebê recém-nascido. O bebê, uma menina, fora abandonado, chorando em um contêiner de lixo numa noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e as profun­das feridas no pescoço sangravam em profusão. Os relatórios judiciais sugeriam que ela própria havia se mutilado, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de puni-la pelo crime de ter abandonado seu bebê, o tribunal a considerou incapacitada e a enviou para uma instalação que certamente não diferia da que Gabrielle se encontrava agora. Pouco mais de um mês depois, ela se enforcou com o lençol, deixando inú­meras perguntas que nunca teriam resposta.

Gabrielle tentou afastar a lembrança das velhas feridas, mas enquanto estava ali, olhando através dos vidros empoeirados das janelas, todo o passado surgiu em primeiro plano na sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na trágica circunstância de seu nasci­mento, nem nos escuros e solitários anos que se seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho, a única motivação que permitira que seguisse em frente. Fotografar era a única constante em sua vida. E era suficiente.

Ela posicionou a câmara e registrou o cenário através das delica­das grades de metal que se entrelaçavam nas janelas, e decidiu que era o suficiente por enquanto. Ficar naquele velho asilo a inquietara mais do que poderia supor.

Pensou em sair pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas voltar àquele porão não era nem um pouco atrativo. Talvez houvesse outra saída no piso térreo. Assim, abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que penetrava pelas janelas das salas e corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite também chegara até ali. Em cada uma das quatro janelas havia símbolos bizarros desenhados com tinta preta. Provavelmente eram os marcos de alguma gangue, ou as assinaturas estilizadas dos grafiteiros. Uma lata de spray denunciava a presença, assim como bitucas de cigarros, garrafas de cerveja que­bradas e outros restos.

Gabrielle procurou o ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com uma lente específica, poderia resultar algo interessante. Vasculhou a bolsa à procura das lentes, e de repente, ela congelou ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto sob seus pés. Embora discreto, soava nitida­mente como o de um motor de elevador, o que era impossível.

Ela guardou o equipamento sem deixar de prestar atenção nos sons vagos ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se tensionaram em alerta. Ela não estava sozinha.

A inquietante noção de que estava sendo observada de algum lugar próximo eriçou a penugem da nuca e provocou uma cascata de arre­pios ao longo dos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então que viu a pequena câmara de vídeo de circuito fechado no alto da parede, numa esquina sombria do corredor. A posição estraté­gica captava a porta da escada que ela acabara de atravessar.

Possivelmente não passava de uma peça esquecida dos dias em que o asilo estava em funcionamento. Teria sido uma idéia tranquilizadora se a câmara não tivesse aspecto tão cuidado e moderno. Para comprovar, Gabrielle se aproximou e parou diante da lente. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e focalizou-a diretamente.

— Droga! — ela gemeu, fitando o círculo negro que parecia ter vida.

No instante seguinte, ecoou das profundidades do edifício vazio um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que o asilo não estava tão abandonado.

Passos soaram num ritmo compassado, na certa, de quem estivera vigiando. Gabrielle correu para a escada e voou degraus abaixo, com a bolsa batendo no quadril. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para o corredor escuro. Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor corria atrás dela com rapidez.

Finalmente, chegou à porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo porão escuro até a portinhola que ela deixara aberta. A corrente de ar frio lhe deu força. Apoiou as mãos no beiral e pulou com agilidade para o outro lado, aterrissando no chão pedregoso.

Agora, não ouvia seu perseguidor. Possivelmente, ele a perdera nos labirintos de corredores.

Gabrielle ficou em pé e correu em direção à abertura da cerca. Encontrou-a rapidamente e se colocou de quatro, engatinhando pela fenda com o coração aos pulos e a adrenalina correndo pelas veias. Na pressa de escapar, feriu o rosto com um arame afiado da cerca. O corte queimou-lhe a face e deixou um rastro quente de sangue na pele. Porém, ela não se deteve, e correu para a liberdade.

Olhou apenas uma vez para trás, e foi o bastante para ver o gigante emergir da porta principal e correr atrás dela como uma besta recém-saída do inferno. Gabrielle tragou a saliva, sentindo as garras geladas do pânico apertando a garganta.

O homenzarrão mais parecia um tanque de guerra, com mais de cem quilos de puro músculo, e a cabeça grande e quadrada ostentava cabelos cortados em estilo militar. Ele correu até a cerca e golpeou o arame com os punhos, enquanto Gabrielle penetrava o arvoredo que separava a propriedade da estrada.

Para seu alívio, o carro estava exatamente onde o deixara. Com mãos trêmulas, ela abriu a porta, petrificada ao pensar no que poderia acontecer se o gigante a alcançasse. Com o coração acelerado, pôs o carro em marcha, pisou fundo no acelerador e se precipitou para a estrada, deixando para trás o cheiro de queimado dos pneus.

No auge da temporada turística do verão, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de pessoas a caminho do trabalho e turistas visitando museus ou dos inúmeros pontos históricos da cidade.

Não muito longe da agitação urbana, numa mansão nos arredores da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre o monitor de tela plana e rugiu uma blasfêmia. Os registros de identificação dos vampiros apareciam na tela em velocidade vertiginosa, enquanto o programa do computador realizava uma busca na base de dados internacional, procurando similaridades com as fotos que Gabrielle Maxwell havia tirado no beco.

— Nada ainda? — perguntou, impaciente a Gideon.

— Nada. — Os agudos olhos azuis de Gideon cintilaram por cima dos óculos de sol. — A Base de Dados de Identificação Internacional tem milhões de registros. Não se preocupe, a busca não acabou.

— Eu nunca me preocupo — Lucan retrucou.

Gideon tinha um coeficiente intelectual que extrapolava todas as estatísticas, ao que se acrescentava uma obstinação inigualável. Ele era incansável, e Lucan se alegrava por ter aquele gênio ao seu lado.

— Se você não for capaz de melhorar a imagem, Gideon, ninguém mais será.

O guru cibernético da Raça dirigiu-lhe um sorriso vaidoso.

— É para isso que ganho muito dinheiro.

Nenhum dos guerreiros da Raça que se comprometiam a manter a espécie protegida da depravação dos Corrompidos trabalhava de graça. Desde que os Gen Um tinham se organizado pela primeira vez nessa aliança durante o que, para os humanos, fora a era medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para escolher esse peri­goso modo de vida, embora alguns fossem mais nobres que outros. Como Gideon, um rapaz de inteligência superior que vivia uma exis­tência pacífica três séculos atrás, até que seus dois irmãos, ainda adolescentes, fossem assassinados pelos Corrompidos nos subúrbios escuros de Londres.

Lucan o encontrara e percebera de imediato que a habilidade de Gideon com a espada somente era sobrepujada pela habilidade men­tal aguçada. Ele eliminara muitos Corrompidos na sua época, e mais tarde, a devoção à Escolhida, Savannah, o fizera abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia a serviço da espécie.

Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinham o próprio talento, assim como demônios pessoais. Porém, alguns deta­lhes deviam permanecer na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso do que o próprio Lucan era outro valio­so guerreiro da Raça, Dante.

Lucan saudou o jovem vampiro quando ele entrou no laborató­rio. Dante, trajando a habitual calça jeans e camiseta negra colada ao corpo, mostrava os bíceps avantajados com tatuagens que, aos olhos de qualquer humano, pareciam símbolos e desenhos geométricos com intrincados símbolos e filigranas na tonalidade ocre. Somente um vampiro distinguia os dermoglifos, sinais inatos herdados dos ante­passados da Raça, cuja pele sem pelos se recobrira de pigmentação como forma de camuflagem.

Normalmente, os glifos eram motivo de orgulho para a Raça, pois evidenciavam os sinais de linhagem e aristocracia. Os membros da primeira geração, como Lucan, ostentavam maior quantidade de gli­fos, em tons mais saturados. Os dermoglifos de Lucan cobriam-lhe todo o torso, espalhando-se pelas coxas e parte superior dos braços, nuca e crânio. Como tatuagens viventes, os glifos mudavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.

Os glifos de Dante, nesse momento, apresentavam tom averme­lhado, o que indicava ter se alimentado recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de ele e Lucan terem se separado após a caça aos Corrompidos da noite anterior, Dante saíra em busca da cama e da veia de uma fêmea anfitriã.

— Alguma novidade? — perguntou, sentando-se numa cadeira diante de Lucan.

— Nada. Eu achei que todos os Corrompidos já estivessem clas­sificados, Gid.

O sotaque de Dante guardava resquícios da musicalidade de seus ancestrais italianos do século XVIII, mas essa noite, o tom polido denotava timbre afiado, indicando que o vampiro estava ansioso por entrar em ação. Para sublinhar o fato, ele tirou um dos preciosos floretes da cilha presa à cintura e se pôs a brincar com o cabo entalhado. Ele apelidara a arma de Malebranche, em referência aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno. Por vezes, Dante adotava o pseudônimo para si, quando estava entre humanos. E, afora esse traço poético que ele guardava na alma, Dante era um vampiro impenitente, frio, sombrio e ameaçador.

Lucan o admirava. Observá-lo durante o combate, com as lâminas inclementes em ação, era como assistir a uma magnífica coreografia da mais pura expressão de arte.

Naquele momento, as portas de vidro da entrada do laboratório se abriram e dois guerreiros entraram juntos na sala.

Nikolai, alto e atlético, cabelos loiros como a areia e olhos azuis, tão penetrantes como o gelo e ainda mais frios que o céu de sua Sibéria natal, era o mais jovem do grupo. Niko chegara à idade adulta durante o que os humanos chamavam de Guerra Fria. Ele se convertera num aventureiro viciado em adrenalina, cuja estirpe se encontrava na elite da Raça no que dizia respeito ao manejo de armas.

Conlan, perito em tática, nunca alterava o tom polido de voz. A tranqüilidade serena contrastava com a arrogância impetuosa de Niko. Seu corpo era como uma muralha de músculos, e os cabelos loiros, cor de areia, brilhavam sob a bandana de seda negra que envol­via a cabeça. Era filho de uma fêmea humana e pertencia a uma das últimas gerações da Raça.

O guerreiro se movia com o porte de realeza. Sua amada Escolhida, Danika, dirigia-se afetuosamente ao antigo habitante das terras altas chamando-o de "milorde", embora ela estivesse longe de ser submissa.

— Rio está a caminho — anunciou Nikolai com um amplo sor­riso que formava duas covinhas nas bochechas. — Eva me disse que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tiver terminado com ele.

— Se é que sobrará alguma coisa — Dante observou, levantando a mão para saudar os recém-chegados.

Lucan também os saudou, escondendo o incômodo pelo atraso de Rio. Não julgava nenhum dos vampiros por terem escolhido Escolhidas, embora ele, pessoalmente, não encontrasse nenhum senti­do em arcar com as exigências e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Naturalmente, era esperado que vampiros se unissem a uma mulher para a preservação da espécie, mas para Lucan, não passava de mero sentimentalismo. Os guerreiros haviam optado por abandonar o santuário dos Darkhaven para levar uma vida de luta. A paixão por uma fêmea era um convite ao desastre quando um guer­reiro sentia a tentação de antepor os sentimentos pela companheira acima do seu dever para com a Raça.

— Onde está Tegan? — perguntou, dirigindo seus pensamentos para o último guerreiro que faltava para completar o grupo.

— Ainda não voltou — informou Conlan.

— Ele telefonou?

Conlan e Niko trocaram um olhar preocupado, e Conlan negou rapidamente com a cabeça.

— Ele nunca ficou tanto tempo sem dar notícias — Dante assina­lou, sem dirigir-se a ninguém em especial. — Tegan está ausente há quase cinco dias.

Ninguém pronunciou em voz alta a preocupação, embora a ten­são pesasse no ar. Lucan se esforçou para controlar a raiva que sentia a cada vez que pensava no membro mais introvertido do grupo.

Tegan preferia caçar sozinho, mas seu isolamento começava a trazer problemas. Lucan nunca confiara nele, e a relação conflitan­te de ambos não era segredo para o grupo. No entanto, a guerra em que os dois estavam comprometidos era mais importante do que as disposições pessoais.

Lucan conhecia as fraquezas de Tegan melhor do que ninguém, e não hesitaria em agir caso ele ultrapassasse os limites.

Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou, ajeitando a barra da elegante camisa branca sob o cós da calça de alfaiataria. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas ele lidava com os vestígios deixados pelo sexo selvagem com a mesma elegância que ostentava nas demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelos escuros que pendia sobre a testa, os olhos cor de topázio do espanhol iluminava as feições marcantes. Quando sorriu, revelou as pontas das presas, ainda expostas até que a paixão por sua dama não tivesse esfriado por completo.

— Espero que tenham deixado alguns Corrompidos para mim, amigos. — Ele esfregou as mãos. — Estou animado para a festa.

— Sente-se — Lucan ordenou em tom firme. — E tente não man­char de sangue os computadores de Gideon.

Os dedos longos de Rio subiram para a marca avermelhada em seu pescoço, onde Eva mordera com os contundentes dentes huma­nos para sorver a veia. Mesmo sendo uma Escolhida, ela ainda era geneticamente humana. Apesar dos longos anos que as fêmeas huma­nas partilhavam laços de sangue com um vampiro, nenhuma estava destinada a desenvolver presas ou adquirir outros traços de vampirismo. A prática de vampiros se alimentarem das companheiras por cortes auto-infligidos no pulso ou antebraço era amplamente aceita. No entanto, sexo e sangue formavam uma potente combinação, às vezes, perigosa.

Sorrindo com impenitência, Rio caiu numa das cadeiras giratórias e se recostou no espaldar para colocar os pés descalços em cima do console.

— Aí está — disse Gideon por fim, apontando para os registros que surgiram na tela. — Parece que encontramos um filão.

Lucan e os outros dirigiram a atenção para o monitor. Os rostos dos quatro Corrompidos a quem Lucan matara apareceram ao lado das fotografias do celular de Gabrielle.

— Eles constam como desaparecidos nos registros da Base de Dados de Identificação Internacional. Dois desapareceram do Refúgio de Connecticut no mês passado, outro de Fall River, e o último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem sequer tem trinta anos.

— Droga! — Rio exclamou com um assovio. — Idiotas.

Lucan permaneceu em silêncio. Não sentia nada pela perda das vidas de jovens que haviam se convertido em Corrompidos. Não eram os primeiros, e não seriam os últimos. Viver recluso nos escuros refúgios, os chamados Darkhaven, podia ser tedioso para um macho imaturo. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda­mente enraizado até mesmo para as gerações mais novas, pois eram os laços remanescentes com seus antepassados selvagens. Se um vam­piro estava à procura de problemas, especialmente numa cidade do tamanho de Boston, era óbvio que encontraria em abundância.

Gideon digitou rapidamente sobre o teclado e abriu outros arqui­vos do banco de dados.

— Aqui estão os últimos registros. Este primeiro indivíduo é um Corrompido conhecido, agressor reincidente em Boston, embora tenha se mantido invisível nos últimos três meses até Lucan reduzi-lo a cinzas no beco.

— E o que sabemos do outro? — Lucan olhou para a imagem do único Corrompido que conseguira escapar depois do ataque.

A fotografia fora extraída de um vídeo feito durante uma sessão de interrogatório, a julgar pelas ataduras e os eletrodos na cabeça.

— Quanto tempo tem essa imagem?

— Seis meses — Gideon informou depois consultar os dados. — Ele estava com ordem de prisão em Seattle, mas também foi fichado em Los Angeles.

— Isso é perda de tempo — Dante comentou com um bocejo.

Lucan não concordou. Para a nação de vampiros nos Estados Unidos e no exterior, o cumprimento da lei e a detenção dos Corrompidos submetia-se a regras e procedimentos específicos, com uma rigorosa hierarquia de ordens de prisão, interrogatórios e condenações. O pro­cesso civilizado e justo se mostrara efetivo ao longo dos anos.

Enquanto a população dos Darkhaven era organizada e se subme­tia à burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan estivesse errada, os Corrompidos, depois de séculos de anarquia e caos, estavam começando a se orga­nizarem.

Ele observou a imagem do Corrompido preso na maca de metal, nu e com a cabeça raspada para que as descargas elétricas chegas­sem com maior facilidade enquanto o interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o Corrompido suportara. Uma onda de repulsa o enjoou ao ver o sorriso de ironia e a expressão sel­vagem dos olhos cor de âmbar com pupilas verticais.

— Ele foi preso por tráfico de armas, explosivos e substâncias quí­micas — Gideon acrescentou. — Ele escapou logo depois do interro­gatório e matou dois dos guardas durante a fuga.

E conseguira escapar novamente, Lucan pensou com desgosto. Em geral, ele não tolerava o fracasso, especialmente quando se trata­va dos dele próprio.

— Você já se deparou com ele alguma vez? — perguntou a Niko.

— Não, mas consultarei meus contatos para descobrir alguma pista.

Nikolai se despediu com um gesto rápido da cabeça e saiu do laboratório, enquanto digitava o teclado do celular.

— Estas fotos não ajudam muito — Conlan resmungou, olhando por cima do ombro de Gideon para as imagens que Gabrielle fizera no beco. O guerreiro praguejou baixinho. — Como se não bastasse os humanos presenciarem a ação dos Corrompidos, agora se dedicam a tirar fotografias?

Dante abaixou os pés com um ruído surdo, ergueu-se e começou a andar de um lado para o outro, cada vez mais inquieto pela falta de atividade da reunião.

— Bem, não podemos negar que a pessoa que tirou essas fotos é corajosa. Não é qualquer um que tem o sangue frio de fotografar tendo diante de si um Corrompido salivando por ele — acrescentou Rio, voltando-se para Lucan. — Você apagou a memória desse humano?

— Era uma mulher. — Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de dar. — Mais do que isso, é uma Escolhida.

— Madre de Dio! — exclamou Rio, passando a mão pelos cabe­los. — Uma Escolhida! Você tem certeza?

— Absoluta. Vi o sinal com meus próprios olhos.

— O que você fez com ela? Sexo, espero — Rio sugeriu com malícia.

— Não — foi a resposta seca ao espanhol. — Não fiz nenhum mal a essa mulher. Há uma linha que não se pode cruzar.

Tampouco ele reclamara Gabrielle para si, embora estivesse mui­to perto de fazê-lo quando fora vê-la na casa dela. Lucan apertou a mandíbula quando a onda de desejo invadiu seu pensamento ao se lembrar de como Gabrielle estava tentadora, nua na cama.

— O que você vai fazer com ela, Lucan? — Gideon perguntou com expressão preocupada.

— Não podemos deixar que os Corrompidos a encontrem. É óbvio que chamou a atenção deles quando tirou as fotografias.

— E se os Corrompidos descobrirem que é uma Escolhida... — acrescentou Dante, interrompendo-se na metade da frase.

— Ela estará mais segura aqui, sob nosso amparo. Melhor ainda, ela deveria ser oficialmente admitida num dos Darkhaven.

— Conheço o protocolo — Lucan declarou, pronunciando cada palavra com lentidão.

Uma onda de fúria o percorreu ao pensar que Gabrielle pudes­se acabar nas mãos dos Corrompidos, ou nas de outro membro da Raça que a enviasse a um dos Darkhaven da nação. Nenhuma das duas opções era aceitável, e ele sabia que a razão era o indesejável sentimento de posse que corria em suas veias.

— Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora. — Ele passeou o olhar pelos irmãos da Raça. — Eu decidirei qual será o destino dela.

Como Lucan esperava, nenhum dos guerreiros o contrariou. Sendo um vampiro primordial, ele era mais antigo, e um dos fundadores da aliança de guerreiros. Sua palavra era lei, e todos os que se encontra­vam na sala o respeitavam.

Dante se pôs de pé, ainda segurando a Malebranche entre os dedos compridos e hábeis.

— Faltam quatro horas para o pôr do sol. Alguém está disposto a praticar um pouco antes de entrarmos em ação?

Conlan e Dante se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e saíram depois de uma respeitosa saudação a Lucan.

— Há mais alguma informação importante sobre esse Corrompi­do de Seattle? — Lucan perguntou a Gideon, enquanto as portas de vidro se fechavam.

— Vou cruzar as informações de todas as bases de registros. Espere um minuto. — Gideon teclou com agilidade e sorriu. — Bingo! Encontrei uma informação de um GPS da Costa Oeste. Dê uma olhada.

A tela do monitor se encheu com uma série de imagens notur­nas por satélite mostrando uma embarcação de pesca comercial nos subúrbios de Puget Sound. A imagem mostrava um Sedan negro que estava estacionado atrás de um edifício em ruínas perto do deque. O Corrompido que escapara de Lucan estava inclinado sobre a porta de trás, como se conversasse com alguém dentro do carro. A medida que as imagens avançavam, a porta se abriu e o Corrompido entrou.

— Pare aí — Lucan pediu, fixando o olhar na mão do passageiro oculto. — Aumente o zoom para a porta aberta.

— Vou tentar.

A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan não precisou do recurso para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas estava lá. Na área da pele exposta entre a mão e o punho da camisa de man­ga longa viam-se os dermoglifos que o delatavam como membro da geração primordial.

— Maldição! — Gideon praguejou. — Nosso irmão de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.

— Possivelmente, ainda está desfrutando — Lucan ponderou.

Não havia nada pior do que um Corrompido que tivesse sangue primordial nas veias. Os membros da primeira geração sucumbiam à sede de sangue com maior rapidez que as últimas gerações da Raça, transformando-se em inimigos temíveis. Se algum deles tinha intenção de liderar os Corrompidos e organizar uma revolução, uma guerra infernal estava a caminho. Lucan já enfrentara uma batalha assim, muito tempo atrás, e não desejava repetir a dose.

— Imprima tudo, incluindo as ampliações de dermoglifos. E se encontrar qualquer informação sobre esses dois indivíduos, passe diretamente para mim. Eu me encarregarei disso pessoalmente.

Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que dirigiu a Lucan por cima dos óculos deixou evidente a dúvida.

— Você não pode se incumbir disso sozinho.

— Quem disse que não? — Lucan retrucou com secura.

Sem dúvida, o vampiro genial teria todas as explicações baseadas em leis estatísticas, mas Lucan não estava disposto a ouvir. A noite se aproximava, e com ela, outra oportunidade de caçar seus inimigos. Ele necessitava de um tempo para clarear as idéias, preparar as armas e decidir a área que enfocaria naquela noite. O predador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não pela batalha contra os Corrompido.

Em lugar disso, Lucan percebeu que seus pensamentos se desvia­vam para um tranqüilo apartamento em Beacon Hill, para uma visi­ta que nunca deveria ter feito. O aroma de jasmim brincou em suas narinas, recordando-o da suavidade da pele de Gabrielle.

Ele tinha de proteger Gabrielle, mas se a levasse para a sede, nunca mais teria paz.

A ereção dolorosa e as presas salientes eram prova mais do que definitiva de que Gabrielle Maxwell representava perigo ainda maior que uma revolução de Corrompidos.

Lucan obrigou-se a reprimir os pensamentos, incomodado com a reação de seu corpo. Porém, não era a fúria que o transformava. Era a luxúria, e tinha de saciá-la. Com essa idéia pulsando nas têmporas, apanhou o telefone celular de Gabrielle de cima da mesa e saiu do laboratório.

— Só mais dez minutos para o céu...

 

Salivando de antecipação, Gabrielle fechou a porta do forno da cozinha, e o rico aroma do ravioli aos quatro queijos flutuou pela casa. Ela programou o timer do forno, serviu-se de outra taça de vinho tinto e foi para a sala. Aumentou o volume da música, e a voz suave de Sara McLahlan preencheu o ambiente. Passava pouco das sete da noite, e Gabrielle começava a relaxar depois da pequena aventura da manhã, no asilo abandonado. Conseguira boas fotos, mas o melhor de tudo era ter escapado ilesa do sistema de segurança. Só isso já era motivo para celebrar.

Acomodou-se no sofá fofo, perfeitamente confortável com a cal­ça de moletom acinzentada e a camiseta folgada. Acabava de sair do banho e os cabelos ainda estavam úmidos, com mechas rebeldes se desprendendo da presilha.

Ela suspirou com satisfação, desfrutando a esperada solidão.

Por isso, quando ouviu a campainha, ela praguejou em voz baixa e pensou em ignorar a interrupção indesejada. Porém, o som insis­tente soou pela segunda vez, seguido de batidas à porta. Parecia ser alguém que não aceitaria um "não" como resposta.

— Gabrielle!

Ela se levantou de um pulo ao reconhecer a voz. Caminhou para a porta com cautela, dizendo para si que não deveria reagir daquela forma. Quando' a profunda voz de barítono de Lucan Thorne pene­trou em seus tímpanos, era como se tivesse ouvido milhares de vezes aquele som, que tanto a tranqüilizava como fazia o pulso disparar numa vibração súbita de antecipação.

Surpresa e mais satisfeita do que queria admitir, Gabrielle soltou os múltiplos ferrolhos e abriu a porta.

— Olá.

— Olá, Gabrielle.

Ele a saudou com uma inquietante familiaridade. O olhar penetrante a percorreu desde os cabelos despenteados, passando pelo símbolo da paz bordado na camiseta até os dedos dos pés descalços. Ela se arrependeu por não estar usando sutiã, sentindo os mamilos se enrijecerem sob o olhar que parecia atravessar o tecido.

— Não esperava visitas — disse em tom de desculpa, embo­ra Lucan não demonstrasse se importar. Quando ele voltou a aten­ção para o rosto, Gabrielle sentiu a intensa onda de rubor queimar a pele. Aquele olhar sugeria que ele queria devorá-la ali mesmo.

— Oh! Você trouxe meu celular! — ela exclamou ao ver o brilho metálico na mão dele.

Lucan estendeu a mão, oferecendo-lhe o aparelho.

— Mais tarde do que deveria. Peço-lhe desculpas.

Teria sido imaginação, ou os dedos roçaram os dela de forma deliberada?

— Obrigada. Minhas fotografias foram úteis?

— Sim. Foram de grande ajuda.

Ela suspirou, aliviada ao saber que a polícia estava fazendo sua parte.

— Você acha que conseguirá apanhar os assassinos?

— Estou seguro disso.

O tom da voz era tão ameaçador que Gabrielle não duvidou nem por um segundo. A verdade era que começava a ter a sensação de que o detetive Thorne poderia ser o pior pesadelo de qualquer criminoso.

— Bom, essa é uma notícia fantástica. Tenho de admitir que eu estava tensa com tudo isso. Suponho que presenciar um assassinato brutal provoque o mesmo efeito em qualquer um.

Ele se limitou a responder com um assentimento discreto. Lucan era um homem de poucas palavras, obviamente, mas quem necessi­tava de palavras quando tinha aqueles olhos capazes de desnudar a alma?

Naquele momento, o alarme do forno da cozinha começou a apitar. Gabrielle ficou frustrada e aliviada ao mesmo tempo.

— É o meu jantar. É melhor desligar o forno antes que o alarme contra incêndios dispare. Espere aqui um segundo... Ou melhor, você quer entrar? — Ela respirou fundo. Por que aquele homem a deixava tão insegura? — Entre, por favor. Eu volto já.

Lucan entrou atrás dela, e Gabrielle deixou o celular no aparador do vestíbulo e foi para a cozinha.

— Interrompi alguma coisa?

Gabrielle se surpreendeu ao vê-lo bem atrás dela na cozinha, como se ele tivesse se deslocado no ar sem emitir nenhum ruído. Ela tirou a forma com a massa fumegante e colocou-a na mesa. Tirou as luvas de cozinha e sorriu com orgulho.

— Estou comemorando.

Ele inclinou a cabeça e olhou ao redor.

— Sozinha?

— Sim. — Ela encolheu os ombros. — A não ser que você queira me acompanhar.

Ele fez um gesto reticente com a cabeça, e a seguir, retirou o casa­co e o colocou no encosto de uma cadeira. A presença poderosa a impedia de se concentrar, especialmente estando tão perto, dentro da pequena cozinha.

Lucan se apoiou no mármore da pia e a observou com expressão atenta.

— O que você está celebrando?

— Eu vendi algumas fotografias para um comprador milionário. Meu amigo Jamie me telefonou há uma hora para me dar a notícia.

— Parabéns.

— Obrigada. — Ela tirou outra taça do armário da cozinha e apanhou a garrafa de vinho.

— Quer um pouco?

Lucan negou lentamente com a cabeça.

— Infelizmente, não posso.

— Oh, sinto muito... Você está em serviço.

— Sempre — ele declarou com um sorriso.

Gabrielle sorriu e levou a mecha de cabelo que tinha se despren­dido para trás da orelha. Thorne seguiu o movimento com o olhar, e sua atenção se focalizou no arranhão na bochecha.

— O que aconteceu?

— Oh, nada — ela mentiu, decidindo que não era uma boa idéia contar a um policial que ela invadira uma propriedade pela manhã. — É só um arranhão. São ossos do ofício.

Gabrielle riu, nervosa. De repente, a expressão dele se tornou séria. Dois passos bastaram para que se colocasse ao lado dela. A proximi­dade permitiu que ela visse os músculos bem desenhados sob a cami­sa negra, feita sob medida para assentar perfeitamente. E o aroma...

Não era de nenhum perfume conhecido, e sim, um leve traço de menta e couro, misturado ao de alguma especiaria exótica. O perfume inva­diu os sentidos de Gabrielle como algo elementar e primitivo e fez com que ela se aproximasse ainda mais, como se estivesse atraída por um ímã.

Ele estendeu o braço e Gabrielle prendeu a respiração ao sentir a carícia suave na linha do queixo. O calor do contato se irradiou sobre a pele e se estendeu pelo pescoço, enquanto a mão espalmada desli­zava para tocar o arranhão da bochecha com o dedo polegar. O feri­mento ainda doía, mas naquele momento, a inesperada carícia não a incomodou.

Para sua surpresa, ele se inclinou e pousou um beijo no arranhão. Os lábios se detiveram nesse ponto, apenas o tempo suficiente para que ela compreendesse que o gesto era um prelúdio para algo mais. Gabrielle fechou os olhos, com o coração acelerado. Não se moveu e quase nem respirou ao perceber que os lábios de Lucan procuravam os dela.

Lucan capturou os lábios com possessividade, mordiscando os lábios carnudos. Gabrielle abriu os olhos e se deparou com o bri­lho selvagem do desejo refletido nas íris brilhantes, que enviou uma cascata de arrepios pela espinha dorsal.

Quando ela finalmente encontrou a voz, emitiu um sussurro débil, quase sem fôlego.

— Você deveria estar fazendo isso?

O olhar penetrante permaneceu cravado nos olhos dela.

— Oh, sim.

Ele se inclinou outra vez e acariciou as maçãs salientes do rosto, o queixo e o pescoço com os lábios. Gabrielle suspirou e ele capturou o hálito com um profundo beijo, penetrando a língua entre os lábios entreabertos. Gabrielle o recebeu, vagamente consciente de que as mãos dele se encontravam sobre suas costas e se insinuavam sob a camiseta.

Ele acariciou a pele, percorrendo a coluna com as pontas dos dedos. A carícia se deslocou lentamente para baixo e continuou por cima da malha da calça. As mãos fortes se moldaram à curva das náde­gas com ligeira pressão. Então, voltou a beijá-la mais profundamente, e a atraiu devagar para si até que o ventre liso se encontrasse com a saliência marcante sob a calça jeans.

— Não. — Ela se afastou, tentando recuperar o bom-senso. — Por favor, pare. Preciso saber se você está com alguém.

— Olhe ao redor, Gabrielle. — Lucan roçou os lábios sobre os dela enquanto falava. — Estamos somente você e eu.

— Você tem namorada? — gaguejou ela, invadida pelo dese­jo. Possivelmente, era tarde para perguntar, mas ela tinha de saber, mesmo sem saber como reagiria ante uma resposta que não fosse a que queria ouvir. — Tem alguém? Por favor, não me diga que você é casado...

— Não há ninguém mais. Somente você.

Gabrielle sabia que ele não pronunciara as palavras, mas ouvi­ra nitidamente em sua cabeça, e o eco quente e provocante venceu todas as suas resistências.

Ela acreditou sem sombra de dúvida. De súbito, teve certeza de que cada um dos sentidos de Lucan estava concentrado nela, como se somente existissem os dois.

Ela se apertou contra o corpo sólido, desfrutando a sensação deli­ciosa das mãos sobre sua pele.

— O que estamos fazendo, Lucan?

Ele emitiu um som nasalado que fez cócegas no ouvido de Gabrielle.

— Acredito que você já sabe.

— Eu não sei de mais nada quando você faz isso... Oh, Deus!...

Lucan deixou de beijá-la um instante e a fitou com intensidade, enquanto se apertava contra ela com um gesto lento e deliberado. O membro ereto pressionou o ventre dela, fazendo-a sentir a solidez e a dimensão através da barreira da roupa. De imediato, ela sentiu a umidade entre as pernas.

— Foi por isso que vim esta noite — a voz de Lucan soou rouca contra seu ouvido. — Quero você, Gabrielle!

O sentimento era mútuo. Gabrielle gemeu e esfregou seu corpo contra o dele com um desejo que não podia, nem queria, controlar.

Aquilo não estava acontecendo! Só podia ser outro sonho maluco, como o que ela tivera depois da primeira visita de Lucan. Ela não esta­va na cozinha com ele, nem permitia que esse desconhecido a sedu­zisse. Estava sonhando, tinha de estar sonhando, e logo despertaria no sofá, sozinha como sempre, com a taça de vinho caída no tapete e o jantar queimado no forno.

Mas ainda não. Antes, queria usufruir mais um pouco daquele momento.

— Diga-me que você também quer...

— Sim.

Gabrielle notou que ele introduziu a mão entre os corpos de ambos, e sentiu o fôlego quente dele em seu pescoço.

— Sinta-me, Gabrielle. Veja o quanto necessito de você.

Com um gesto possessivo, ele tomou a mão dela e conduziu-a até a ereção, liberada agora de seu confinamento. Gabrielle fechou os dedos ao redor do membro rijo e acariciou a pele aveludada lenta­mente, medindo sua extensão. A força brutal contrastava com a sua­vidade. Sentir o peso da masculinidade pujante a perturbou como se estivesse sob efeito de uma poderosa droga. Com movimentos ritma­dos, ela percorreu toda a dimensão do membro, sentindo-o pulsar sob a palma.

As mãos de Lucan tremiam enquanto se deslocavam do quadris até o cós da calça. Com um movimento preciso, ele soltou o nó do cordão e balbuciou alguma coisa num idioma estranho, com os lábios quentes contra os cabelos de Gabrielle.

Ela sentiu uma corrente de ar frio sobre o ventre, substituída ime­diatamente pelo calor repentino da mão de Lucan se esgueirando para dentro da calça. Ele introduziu os dedos por entre os pelos da virilha e chegou à intimidade úmida, provocando-a com carícias leves.

Gabrielle gemeu ao sentir que o desejo a invadia numa onda vertiginosa.

— Quero você — confessou num fio de voz, consumida pelo desejo.

Como resposta, ele introduziu o dedo na abertura lubrificada, e Gabrielle se retorceu ao sentir a carícia tentadora.

— Mais — disse, quase sem fôlego. — Lucan, por favor... neces­sito... de... mais.

Um grunhido gutural escapou da garganta dele enquanto volta­va a atacar os lábios com outro beijo faminto. A calça de moletom deslizou para o chão, seguidas da calcinha. A fina renda se rompeu com a força e a impaciência da mão de Lucan.

Gabrielle sentiu o ar frio na pele, mas apenas até que Lucan se posicionasse de joelhos diante dela e mergulhasse o rosto na penugem sedosa que escondia a feminilidade. Ele a beijou e provocou o delicado botão intumescido com a ponta da língua, sujeitando-a com a força das mãos na parte interna das coxas para afastá-las e, assim, ganhar acesso irrestrito à intimidade. A língua ávida a penetrou e os lábios sugaram com força, levando-a a loucura.

Uma vertigem antecedeu o clímax poderoso, e ela se agarrou aos cabelos fartos para não cair. Lucan a sustentava com firmeza, sentin­do o corpo estremecer enquanto ele a conduzia para outro orgasmo. Gabrielle fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, rendendo-se à loucura do inesperado encontro. Cravou as unhas nos ombros largos quando o corpo todo pulsou numa nova onda de prazer, e ela se sentiu o chão sumir.

Somente então percebeu que Lucan a levantara nos braços. Percebeu que ele estava nu, assim como ela, embora não se lembrasse de ter retirado a camiseta. Mas não importava. Ela o envolveu pelo pescoço enquanto era carregada para a sala. Percebeu o eco distante da música e sentiu a suavidade do sofá. Logo a seguir, o peso do corpo viril a cobriu.

Até aquele momento, ela não tivera chance de vê-lo por completo, e o que viu a deixou extasiada. Ele era simplesmente magnífico! Um metro e noventa de sólida musculatura e de pura força viril... E, como se a perfeição do corpo não fosse o bastante, toda a epiderme mostra­va intrincadas tatuagens que a fascinaram. O complicado desenho de linhas curvas e formas entrecruzadas se desdobrava sobre os peito­rais e abdômen, subia pelos ombros largos e rodeava os bíceps. A cor variava entre o verde-mar, azul-siena e, predominantemente, vermelho-terracota, que parecia se tornar mais intenso quando ela o olhava.

Lucan abaixou a cabeça para se dedicar aos seios, e Gabrielle viu que a tatuagem também cobria as costas e desaparecia sob os cabelos da nuca. A primeira vez que viu brevemente a tatuagem, ela sentira o desejo de percorrer as marcas com os dedos. Agora, sucumbiu à urgência de tocá-lo, deixando que as mãos percorressem todo o cor­po, maravilhada tanto por esse homem misterioso como pela estranha arte que a pele mostrava.

— Beije-me — suplicou, puxando-o pelos ombros.

Ele ergueu a cabeça e Gabrielle arqueou as costas sob o peso do corpo vibrante, incendiada pela febre do desejo urgente de senti-lo dentro de seu corpo. Deslizou as mãos e acariciou o membro rijo enquanto levantava o quadril para recebê-lo.

— Quero ser sua — sussurrou, sem fôlego. — Por favor, Lucan. Agora.

Ele não recusou o convite. No instante seguinte, a masculinidade pujante abriu caminho com possessividade. O membro pulsava, intumescido e sensível, a ponto de explodir. Porém, Gabrielle queria que ele tivesse o mesmo prazer intenso que dera a ela.

Num gesto abrupto, empinou o quadril para que ele a penetrasse profundamente.

— Não seja gentil — estimulou, movimentando-se sob ele. — Não vou quebrar.

Ele levantou a cabeça, e Gabrielle se assustou com o fogo indoma­do que viu. Os olhos dele brilhavam como luas gêmeas, incendiadas por labaredas prateadas. As pupilas dilatadas penetravam as íris dela com um calor sobrenatural. Os traços do rosto pareciam mais afiados, com a pele estirada sobre as maçãs do rosto e as mandíbulas fortes. Ela seria capaz de ficar a eternidade admirando como a tênue luz do ambiente brincava sobre as feições marcantes.

O pensamento, no entanto, durou apenas uma fração de segundo quando as luzes da sala de estar se apagaram. Ela teria estranhado se, no momento em que a escuridão caiu sobre eles, Lucan, não a tivesse penetrado com uma profunda investida.

Gabrielle não pôde reprimir um gemido de prazer ao notar que ele a preenchia por completo.

— Oh... — murmurou num soluço. — É tão bom...

Lucan inclinou a cabeça para trás e emitiu um grunhido, enquan­to retirava o membro para, a seguir, investir com mais força que antes. Gabrielle o atraiu para si, arqueando a coluna para recebê-lo.

Quase sem fôlego, ele gemeu baixinho, e o som selvagem a exci­tou ainda mais. A pujança da masculinidade deslizando dentro dela parecia se intumescer ainda mais a cada estocada.

— Quero possuí-la desde o momento em que a vi, Gabrielle.

A franqueza das palavras, o fato de admitir que a desejava serviu para inflamá-la a um limite extremo. Gabrielle enredou os dedos nos cabelos fartos e gritou, sem respiração, à medida que o ritmo se inten­sificava, incansável. Seu ventre pulsou em ondas crescentes com a proximidade do clímax.

— Eu poderia fazer amor com você a noite toda — ele murmu­rou com voz rouca, o hálito quente contra o pescoço dela.

Ela abriu a boca para suplicar que ele não parasse, mas o gemido gutural que escapou da garganta a impediu de falar. Gabrielle se agar­rou às costas largas, enquanto era tragada por uma espiral de prazer que a conduziu a outro universo.

 

Lucan saiu da casa de Gabrielle e percorreu a rua escura e silen­ciosa a pé. Ele a levara para a cama e a deixara dormindo com a res­piração compassada e tranqüila, o delicioso corpo esgotado depois de três horas de paixão. Nunca havia feito amor com tanta fúria, durante tanto tempo, nem tão completamente. E ainda desejava mais.

O fato de ter conseguido ocultar o alongamento das presas e o bri­lho selvagem do desejo nos olhos fora um milagre. Porém, não ceder à necessidade invencível e urgente de cravar as presas afiadas no pescoço tenro e sorver o sangue doce até ficar embriagado era ainda mais impressionante.

A autoconfiança de Lucan não era grande o bastante para que per­manecesse perto dela enquanto cada uma das células de seu corpo ansiava pelo desejo de mordê-la.

Provavelmente, ir à casa de Gabrielle fora um erro monumental. Ele acreditara que consumar o sexo apagaria o fogo que o consumia, mas nunca se equivocara tanto. Fazer amor com ela servira apenas para evidenciar a urgência que sentia por ela. Ele a desejava com uma necessidade primitiva e a possuíra como o predador que era.

Lucan atravessou a rua e se misturou à paisagem noturna da cida­de. As mãos tremiam, e visão começava a ficar turva. Pensamentos selvagens atravessavam sua mente, e uma inquietação interna agi­tou seu corpo. Ele soltou um grunhido de frustração. Conhecia esses sintomas. Precisava se alimentar.

Fazia pouco tempo que tomara a quantidade suficiente de sangue para se manter por uma semana, possivelmente mais. Apesar disso, o estômago se contorcia. A necessidade de sangue se tornara mais urgente com o passar do tempo. Por quanto tempo mais poderia conti­nuar lutando contra a escuridão de sua própria natureza selvagem?

Seria diferente do seu pai? Seus irmãos não foram, e eram maiores e mais fortes que ele. A sede de sangue os dominara. Um deles tira­ra a própria vida quando o vício o dominara. O outro se convertera num Corrompido e perdera a cabeça sob a lâmina mortal de um guerreiro da Raça.

Ter nascido na primeira geração dera a Lucan força e poder, e ao mesmo tempo em que era um dom, também era uma maldição.

Enquanto caminhava entre os transeuntes nas calçadas, ele se ale­grou por não ver nenhum Corrompido. Avistou apenas alguns vam­piros da última geração que pertenciam ao Refúgio Escuro da área. O grupo de jovens machos se misturava ao animado grupo de huma­nos saídos de uma festa e, assim como ele, procuravam dissimuladamente um anfitrião de sangue. Ao passar por eles, ouviu os comentários dos jovens, e palavras como "guerreiro" e "Gen Um" flutuaram no ar. A admiração que mostravam abertamente o aborre­ceu, embora estivesse habituado. Vampiros nascidos nos Darkhaven raramente tinham a oportunidade de ver um membro da classe dos guerreiros, e mais ainda o fundador da antiga e honrada Ordem.

A maioria deles conheciam as histórias seculares sobre os oito mais ferozes e letais machos da Raça que haviam se unido para eli­minar os últimos selvagens e o exército de Corrompidos que lhes servia. Tais guerreiros se converteram em lenda e formaram a Aliança.

Agora, a classe nobre dos vampiros era formada por poucos indivíduos em todo o planeta, que operavam de forma encoberta e muitas vezes independente.

Lucan rosnou para os jovens boquiabertos e dirigiu um convite mental às fêmeas humanas do grupo. Todos os olhares femininos se voltaram para ele, atraídos pelo poder que emanava em todas as dire­ções. Duas garotas, uma loira de busto farto e uma ruiva de cabelos mais claros que os de Gabrielle, separaram-se do grupo e se aproximaram.

Lucan necessitava de apenas uma, e a escolha era fácil. Rechaçou a loira com um gesto da cabeça, e a ruiva passou o braço sob o dele, deixando-se conduzir para um recanto discreto e escuro de um edifício próximo.

Sem perder tempo, ele afastou os cabelos e cravou as presas expandidas na veia do pescoço da jovem. Ela estremeceu com um espasmo e levantou as mãos num gesto instintivo quando Lucan sugou com vigor o sangue. A fêmea gemeu, não pela dor, e sim pelo prazer único de ser sugada por um vampiro.

O líquido quente e denso encheu a boca de Lucan. Contra a von­tade dele, a imagem de Gabrielle dançou em sua mente. Por um bre­ve instante, ele imaginou que ela estava em seus braços e que era o sangue dela que o alimentava.

Ele afastou a fantasia com um grunhido feroz. Nunca aconteceria! A verdade era que não se tratava de Gabrielle, e sim de uma estranha sem nome. O sangue que envolvia sua boca não tinha a doçura de jasmim que ele tanto desejava. Ao contrário, denotava a acidez de algum narcótico que sua anfitriã tinha ingerido recentemente.

Porém, não importava o sabor que tivesse. Queria apenas apazi­guar a urgência da sede, e continuou o processo até ficar satisfeito. Ao terminar, passou a língua pelos dois orifícios para fechá-los. A jovem respirava com dificuldade, e o corpo estava lânguido como se tivesse acabado de ter um orgasmo.

Lucan pôs a palma da mão sobre a fronte para fechar os olhos vazios de expressão e sonolentos. O contato apagou qualquer lem­brança do que acabara de acontecer.

— Seus amigos estão procurando por você — avisou, afastando-se. — Vá para casa. A noite está cheia de perigos.

Ela assentiu, e Lucan esperou entre as sombras enquanto a anfitriã de sangue se juntava ao grupo. Ele inalou com força, sentindo os mús­culos revigorados. O apetite físico havia se apaziguado, mas ele não se sentia satisfeito. Ainda desejava Gabrielle.

Emitiu um grunhido baixo e caminhou pela calçada, mal humo­rado. Talvez encontrasse um ou dois Corrompidos antes do nascer do sol, para extravasar a fúria que sentia.

E ele sábia a razão de seu mal-estar. Tinha de fazer o que fosse necessário para manter-se afastado de Gabrielle Maxwell.

 

A princípio, Gabrielle achou que fosse outro sonho erótico. Mas na manhã seguinte, ao despertar nua na cama, com o corpo esgotado e dolorido, ela soube que, definitivamente, Lucan Thorne estivera ali de corpo e alma. E, que corpo! Ela perdera a conta de quantas vezes chegara ao clímax. Se somasse todos os orgasmos dos últimos dois anos, sequer se aproximaria do que tinha experimentado com Lucan em uma só noite.

Suspirou, frustrada, ao perceber que ele não estava do seu lado. A casa se encontrava mergulhada no mais absoluto silêncio. Era eviden­te que Lucan tinha ido embora em algum momento durante a noite.

Ela estava tão esgotada que podia dormir o dia inteiro, mas marcara encontro com o Jamie e as garotas.

Pouco depois do meio-dia, ela dirigiu até o centro da cidade. Quando entrou no restaurante de Chinatown, estranhou que vários clientes se viraram para observá-la. Notou os olhares apreciativos de um grupo de mulheres que pareciam modelos publicitários, per­to da mesa de sushi, e dos executivos que interromperam a conversa para fitá-la quando ela passou a caminho da mesa de seus amigos, ao fundo do restaurante.

Sentia-se sexy e autoconfiante, e não se importou que ficasse evi­dente para todo mundo que ela tinha desfrutado a noite de sexo mais incrível de toda sua vida.

— Finalmente, você nos honrou com sua presença! — exclamou Jamie assim que Gabrielle parou diante dele.

Os amigos se levantaram para cumprimentá-la, e Megan se afastou para estudá-la.

— Você está ótima!

— É verdade, querida — Jamie concordou. — Adorei o suéter. É novo?

Ele não esperou pela resposta e voltou a se sentar para dedicar-se ao rolinho primavera.

— Eu estava morrendo de fome, e pedi um aperitivo. Onde você estava? Eu quase mandei um esquadrão ir procurá-la!

— Sinto muito. Dormi demais. — Ela sorriu e se sentou ao lado de Jamie. — Kendra não vem?

— Desaparecida em combate outra vez. — Megan tomou um gole de chá de jasmim e deu de ombros. — Ultimamente, ela só fala do novo namorado, o rapaz que conheceu na boate no fim de semana passado.

— Brent — Gabrielle lembrou o nome dele, controlando a ponta de desconforto pela menção daquela noite terrível.

— Sim, ele mesmo. Ela inclusive conseguiu trocar o plantão no hospital para passar todas as noites com ele. Parece que o rapaz viaja muito a trabalho, e normalmente não está disponível durante o dia. Não posso acreditar que Kendra permita que alguém dirija a vida dela! Ray e eu saímos há três meses, e ainda tenho tempo para meus amigos.

Gabrielle arqueou as sobrancelhas. Dos quatro, Kendra era a mais livre de espírito. Na verdade, chegava a ser impertinente. Preferia ter encontros casuais, e jurava que permaneceria solteira pelo menos até os trinta anos.

— Será que ela está apaixonada?

— Sexo, querida. — Jamie recolheu o último sushi do prato. — Às vezes, o desejo nos obriga a agir como loucos. Já aconteceu comigo.

Enquanto mastigava, Jamie estudou Gabrielle por um longo momento. Ela ruborizou e tentou sorrir com expressão despreocupa­da, mas não pôde evitar que seu segredo a traísse no brilho de feli­cidade do olhar. O amigo inclinou a cabeça e uma mecha loira caiu sobre a testa.

— Oh, meu Deus! Você fez!

— Fiz o quê? — Gabrielle disse em meio a uma gargalhada.

— Sexo, é claro! Com quem?

A gargalhada de Gabrielle se reduziu a uma risada tímida.

— Oh, querida... Não precisa ficar encabulada. — Jamie deu pal­madas amigáveis na mão dela. — Deixe-me adivinhar: o misterioso e sexy detetive do Departamento de Polícia de Boston.

Ela levantou os olhos para o teto, mas assentiu com a cabeça.

— Quando?

— Esta noite.

A reação entusiasmada de Jamie atraiu a atenção dos ocupantes das mesas próximas. Ele se conteve e sorriu como uma orgulhosa mamãe ganso.

— Ele é bom?

— Bom? — Ela se abanou com a mão, como se estivesse com calor. — Ele é incrível!

— E como eu não fiquei sabendo desse homem misterioso? — Megan fez um muxoxo ofendido. — Ele é policial? Possivelmente Ray o conheça. Posso perguntar...

— Não. — Gabrielle negou com a cabeça. — Por favor, não digam nada a ninguém. Não estou saindo com Lucan. Ele foi à minha casa ontem à noite para devolver meu celular, e as coisas ficaram... Bem... Fora de controle. Nem sei se o verei de novo.

A verdade era que, por mais estranho que parecesse, ela tinha certeza de que o veria.

Parte dela sabia que o que tinha ocorrido entre eles era loucura. Sempre fora a mais sensata e prudente do grupo, e era quem aconse­lhava os amigos a controlarem os impulsos, exatamente ao contrário do que ela própria fizera na noite anterior.

Tola, tola, tola! E não somente por ter permitido que o momento a cegasse para as conseqüências, a ponto de ter feito sexo sem proteção. Ter relações íntimas com alguém que era um total desconhecido era pura loucura. Mas o pior era que ela tinha a terrível sensação de que seria muito fácil se apaixonar por um homem como Lucan Thorne.

Apesar de tudo, sexo como o que haviam compartilhado não acon­tecia todos os dias. Pelo menos, não para ela. O simples fato de pensar em Lucan Thorne fazia com que o corpo todo se retorcesse de desejo. Se ele entrasse no restaurante naquele momento, provavelmente ela saltaria sobre as mesas e se atiraria nos braços dele.

— Passamos uma noite incrível, mas foi só isso. Não há nada entre nós.

— Oh, é mesmo? — Jamie apoiou os cotovelos na mesa e a enca­rou com expressão de suspeita. — Então, por que você está com esse sorriso bobo no rosto?

 

— Onde diabos você se meteu?

Lucan farejou Tegan antes de ver o vampiro entrar na sala do com­plexo. Ele estivera caçando, e ainda carregava o aroma metálico e adocicado do sangue, tanto humano quanto de algum Corrompido.

Quando viu que Lucan o esperava fora de um dos apartamentos, deteve-se com as mãos apertadas dentro dos bolsos da calça texana de cintura baixa. A camiseta acinzentada estava desfiada em alguns pontos e suja de pó e de sangue. Profundas olheiras marcavam os olhos verdes, e os cabelos avermelhados caíam sobre o rosto em desa­linho. Os dermoglifos dos bíceps e antebraços apresentavam tom mais escuro que o da pele dourada, indicando que havia se alimentado. Porém, o estado de ânimo do vampiro não denotava disposição.

Lucan não sabia se a permanente apatia era uma atitude delibera­da, ou se a escuridão do passado de Tegan apagara qualquer sentimen­to que ele pudesse ter. Porém, os demônios pessoais dele não eram da sua conta. A única coisa que importava era assegurar que a Ordem se mantivesse forte.

— Sua aparência está péssima, Tegan. Faz cinco dias que não temos notícias suas. Vou perguntar mais uma vez: onde você esteve?

— Não tenho de lhe dar satisfações. Você não é minha mãe.

Tegan começou a se afastar, mas Lucan bloqueou-lhe o caminho com uma velocidade assombrosa. Levantou o guerreiro pelo pescoço e o empurrou contra a parede do corredor para captar sua atenção.

A fúria de Lucan atingiu seu ponto máximo, em parte pelo descaso que Tegan mostrava pelos membros da Ordem, e mais ainda pela falta de sensatez que ele próprio tivera ao passar a noite com Gabrielle.

Nem o sangue nem a extrema violência que tinha exercido com dois Corrompidos pouco antes do amanhecer haviam sido suficientes para apagar a lascívia que ainda pulsava por todo seu corpo.

Ele tinha percorrido a cidade como um espectro durante toda a noite e voltara para o complexo com péssimo humor. O sentimen­to persistia enquanto apertava os dedos ao redor da garganta de seu irmão. Necessitava de uma válvula de escape para a agressividade, e Tegan era o candidato perfeito para fazer esse papel.

— Estou cansado de suas tolices, Tegan. Você precisa se controlar, ou eu mesmo o controlarei. — Apertou a laringe do vampiro com mais força, e a expressão de Tegan sequer se alterou pela dor! — Diga onde esteve durante todo este tempo, ou teremos sérios problemas.

Os dois machos tinham o mesmo tamanho e se igualavam em força. Tegan poderia ter reagido, porém sé manteve impassível. Sem demonstrar a mínima emoção, fitou Lucan com olhos frios e indife­rentes, o que o deixou ainda mais furioso.

Com um grunhido, Lucan soltou o guerreiro e tentou controlar a raiva. Não era próprio dele comportar-se daquela maneira. E era ele quem dizia a Tegan para se controlar? Talvez fosse adequado aplicar o conselho a si mesmo.

O olhar inexpressivo de Tegan dizia o mesmo, embora o vampiro mantivesse a boca fechada.

Enquanto os dois guerreiros se olhavam, uma porta de vidro se abriu no final do corredor. O ruído suave dos tênis esportivos de Gideon soaram, enquanto ele saía de seus aposentos privativos e per­corria o corredor.

— Tegan, bom trabalho de reconhecimento! Seu pressentimento de que devíamos manter os Corrompidos em Green Line sob vigília foi certeiro.

Tegan sustentou o olhar, sem se importar com os elogios de Gideon. Lucan, no entanto, começou a se arrepender pelo tratamento hostil e infundado com que tratara o guerreiro. Para piorar seu mal-estar, Gideon passou por entre eles e continuou seu caminho pelo corredor.

— Você vai querer comprovar isso, Lucan — disse ao abrir a porta do laboratório. — Pelo que vi, uma guerra está a ponto de começar.

 

— Você sabia que nossa talentosa artista tem um admirador secreto?

Gabrielle e Megan olharam para Jamie ao mesmo tempo. Ele que­brou o biscoito da sorte ao meio e retirou o bilhete. Com expressão dramática, leu o texto, ergueu os olhos para o teto com enfado e atirou o papel no prato vazio.

— Meu Deus, quanta bobagem! — resmungou. — Bem, onde eu estava? Ah! O admirador secreto de Gabrielle. Bem, dias atrás, o secretário de um comprador anônimo me pediu para apresentar a coleção completa das fotografias da Gabby. Compraram todas, até a última.

— Isso é maravilhoso, querida! — Megan aplaudiu com entusiasmo.

— Não conheci o comprador, mas posso afirmar que é alguém muito misterioso.

Gabrielle olhou para o amigo, enquanto guardava a carteira na bolsa.

— O que você quer dizer?

Jamie terminou de mastigar o último pedaço do biscoito da sorte e limpou as migalhas dos dedos.

— Bem, quando cheguei ao luxuoso edifício de escritórios, fui recebido por uma espécie de guarda-costas. Ele não disse nada e me acompanhou até o elevador que nos levou à cobertura.

— Você quer dizer que o escritório fica na cobertura? — Megan arqueou as sobrancelhas. — Então, ele deve ser milionário!

— Aí é que está... O lugar estava vazio, sem móveis, funcionários, nada.

— Isso é muito estranho. Você não acha, Gabby?

Ela assentiu com a cabeça e uma sensação de intranqüilidade a invadiu enquanto Jamie continuava.

— Então, o guarda-costas pediu que eu retirasse as fotografias da pasta e caminhasse até as janelas. Instruiu-me a ficar de costas para ele e diante da janela e estendesse uma por uma para que alguém, que nem imagino onde estivesse, pudesse avaliar.

— De costas para ele? — Megan riu com nervosismo. — Por que queria que fizesse isso?

— Porque o comprador estava observando de outro lugar — respondeu Gabrielle em voz baixa.

— De algum lugar de onde podia ver as janelas do salão da cobertura.

— É o que parece — Jamie concordou. — Não consegui ouvir nada, mas estou seguro de que o guarda-costas estava recebendo ins­truções por um fone de ouvido. Confesso que fiquei muito nervoso, mas no final, tudo o que ele queria eram as fotografias. Eu tinha che­gado na quarta quando o segurança me disse para dar o preço para todas elas. Arrisquei pedir uma fortuna, e ele aceitou sem hesitar.

— Estranho — comentou Megan. — Gabby, você deve ter caído nas graças de um milionário excêntrico.

Gabrielle tentou se livrar da estranha sensação de inquietação despertada pela história. Tal como ele dissera, a negociação fora um sucesso e ela tinha um cheque polpudo na bolsa.

Ela tentou rir com os amigos enquanto eles expunham idéias mirabolantes a respeito do colecionador. Ainda falavam disso quando saíram para a rua ensolarada.

— Tenho de ir — Megan anunciou, abraçando os amigos em des­pedida. — Até logo.

Os dois acenaram, enquanto Megan caminhava rua acima em direção ao prédio de escritórios onde trabalhava.

— Você vai para casa, Gabby? — Jamie perguntou ao levantar a mão para chamar um táxi.

— Ainda não. — Ela alisou a alça da câmera que levava sobre o ombro. — Vou dar um passeio pelo parque e possivelmente gastar um pouco de filme. E você?

— David vai chegar de Atlanta dentro de uma hora. Vou tirar a tarde de folga, e possivelmente, amanhã também.

— Dê um beijo nele por mim. — Ela se despediu do amigo com um beijo na bochecha. — Nos vemos em breve.

Jamie se afastou e fitou-a com ternura.

— Eu gosto de ver você sorrindo outra vez. Estava muito preo­cupado depois do último fim de semana. Nunca a vi tão perturbada. Você está bem agora, não é?

— Sim, estou. Não se preocupe, Jamie.

— E agora, que o detetive sexy está cuidando de você, tudo ficará melhor ainda.

Ela riu e tentou disfarçar o calor que brotou no ventre e explodiu no rosto. Acenou para Jamie e observou-o entrar no táxi e desapare­cer em meio ao tráfego pesado do meio do dia.

Gabrielle percorreu as quadras que separavam Chinatown do par­que Boston Common, detendo-se para registrar cenas interessantes com a câmera.

Ao chegar ao parque, ela parou para observar um grupo de crian­ças brincando de cabra-cega. Levantou a câmera e enfocou o grupo. Aproximou a imagem com o zoom e seguiu a menina de cabelos loi­ros e olhos vendados sem fotografá-la, simplesmente assistindo a cena por trás da câmera. Algum dia teria se sentido feliz e segura como aquela menina?

O jogo foi interrompido quando os adultos que acompanhavam as crianças as chamaram para comer, e os meninos correram até a toalha estendida no chão.

Gabrielle percorreu os arredores com a lente da câmera. Na ima­gem desfocada pelo movimento, percebeu a figura de alguém que a observava. Ela afastou a câmera e olhou naquela direção. A presença era quase imperceptível no parque cheio de atividade.

Porém, distinguiu um homem parcialmente escondido pelo tron­co de um velho carvalho, com fisionomia vagamente familiar. Tinha cabelos ralos, castanho-acinzentados, e usava camisa solta e calça caqui. Era do tipo que desaparecia com facilidade entre a multidão, mas ela estava segura de que o vira em algum lugar fazia pouco tempo.

Talvez tivesse visto aquele senhor na delegacia, na semana ante­rior. Fosse quem fosse, percebeu que era observado, pois se escondeu atrás do tronco da árvore e começou a se afastar. Enquanto caminha­va com passadas rápidas em direção à rua, ele retirou o celular do bolso da calça e olhou por cima do ombro em direção a Gabrielle.

Ela sentiu a penugem da nuca se eriçar com uma repentina sensa­ção de perigo.

Não havia dúvida, aquele homem a vigiava. Mas, por quê? Que diabos estava acontecendo?

Sem perdê-lo de vista, correu no encalço dele enquanto guardava a câmera. Quando saiu do amplo terreno do parque e ganhou a rua, ele estava a uma quadra de vantagem.

— Ei! — chamou, apressando o passo.

O homem continuava falando ao telefone. Virou a cabeça e, ao perceber que estava sendo seguido, disse alguma coisa e guardou o aparelho com um gesto apressado antes de começar a correr.

— Ei! Espere! — ela gritou, chamando a atenção dos transeuntes. — Quem é você? Por que está me espionando?

Ele subiu a toda velocidade pela rua Charles e se misturou aos pedestres. Gabrielle o seguiu, esquivando-se dos turistas e emprega­dos de escritório que saíam durante o horário de almoço. Com olhar fixo na mochila que o homem carregava nas costas, ela atravessou uma rua após outra, afastando-se cada vez mais de Chinatown.

Sem saber por quanto tempo estava perseguindo o estranho nem onde exatamente havia chegado, ela se deu conta de repente que o perdera de vista.

Ela virou uma esquina movimentada e sentiu-se profundamente sozinha. O ambiente pouco familiar se fechou ao redor dela. Lojistas a observavam detrás das portas abertas, pedestres a encaravam com hostilidade por ela estar parada no meio da calçada, bloqueando o caminho.

Foi nesse momento que Gabrielle sentiu a presença ameaçadora atrás dela. Olhou por cima do ombro e viu um Sedan preto de vidros escuro que se deslocava devagar por entre os outros carros como um tubarão que atravessasse um cardume de peixes pequenos em busca de uma presa maior.

Talvez o homem estivesse dentro do carro, ela ponderou. Possivelmente, a aparição dele e do carro de aspecto ameaçador esta­vam relacionados ao comprador das suas fotografias.

Ela sentiu o sangue gelar ao pensar que poderia se tratar de algo pior. E se estivesse sendo vigiada por causa do espantoso ataque que presenciara na semana anterior? E se aquelas criaturas malignas tives­sem decidido que ela seria o próximo alvo?

O veículo se aproximou do meio-fio, perto de onde ela se encon­trava. Com o coração disparado no peito, Gabrielle começou a caminhar e acelerou o ritmo para avançar mais depressa. Ouviu o ronco potente do motor quando o carro acelerou. Apavorada, ela saiu em disparada, tão rápido quanto era capaz.

Ela não se importou por esbarrar nos transeuntes, nervosa demais para se desculpar. Fugir dali era questão de vida ou morte. Ainda ouvia o ruído do motor em meio ao tráfego, seguindo-a de perto. Gabrielle abaixou a cabeça e se esforçou para correr mais rápido, enquanto rezava para conseguir escapar. De repente, ela pisou em falso, cam­baleou e perdeu o equilíbrio. O chão desapareceu sob seus pés e ela caiu com força contra o pavimento. Amortizou o impacto da queda com os joelhos e as palmas das mãos, e a dor dos arranhões provocou lágrimas, mas ela não se deixou abater. Voltou a ficar de pé, e ainda não tinha recuperado o equilíbrio quando a mão forte a segurou pelo braço.

Gabrielle reprimiu um grito, enlouquecida pelo pânico.

— Está tudo bem, senhorita? — O rosto preocupado de um homem surgiu em seu ângulo de visão, e os olhos azuis rodeados de rugas se fixaram nos ferimentos. — A senhorita está sangrando!

— Estou bem, obrigada.

O homem a segurou com mais força, provocando um estranho incômodo em Gabrielle.

Ela tentou se desvencilhar da mão estendida e levantou o olhar bem a tempo de ver que o carro escuro aparecia na esquina por onde ela acabara de passar. O veículo brecou abruptamente, a porta do condutor se abriu e um homem gigantesco saltou para a rua.

— Oh, Deus. Solte-me! — Gabrielle puxou o braço para se livrar da mão que a prendia, sem desviar os olhos do carro negro e no perigo que representava. — O senhor não percebe? Estão me perseguindo!

— Quem? — O homem se virou na direção que ela olhava e riu. — Está se referindo a ele? Senhorita, é o prefeito do Boston.

— O quê?...

Era verdade. Ela se apercebeu da atividade que se desenvolvia na esquina. O veículo negro não a perseguia, afinal de contas. Havia esta­cionado na esquina e o condutor, agora, esperava com a porta traseira aberta. O prefeito em pessoa saiu de um restaurante, acompanhado por dois guarda-costas, e os três entraram no veículo.

Gabrielle fechou os olhos. As palmas das mãos queimavam de dor, assim como os joelhos. Ela se sentiu como uma completa idiota.

— Eu achei que... — murmurou, enquanto o condutor fechava a porta e ocupava o banco do motorista.

O homem soltou o braço dela e se afastou, balançando a cabeça.

 

Maldição! Ela não devia vê-lo. Ele recebera ordens de observar a srta. Maxwell e tomar nota de todas as atividades e hábitos dela. Tinha de informar tudo ao Mestre. Mas, acima de tudo, era fundamen­tal que não fosse visto.

O Seguidor soltou outra imprecação, escondido no nicho da entra­da de um edifício. Com cuidado, espichou o pescoço à procura da mulher. Avistou-a do outro lado da rua abarrotada.

Respirou, aliviado, ao ver que ela estava indo embora. Os cabelos acobreados se perderam em meio à multidão.

Esperou até que ela desaparecesse por completo, voltou para a rua e caminhou em direção contrária. Passava mais de uma hora do horário de almoço. Era melhor voltar à delegacia de polícia antes que sentissem sua falta.

Gabrielle apanhou outro pedaço de toalha de papel e enfiou-a sob o jato da torneira da pia. Limpou os joelhos e atirou-a no lixo repleto de toalhas sujas de sangue. Despejou uma generosa porção de deter­gente líquido na palma da mão e esfregou os arranhões com energia.

A saia nova estava rasgada e o suéter se danificara com o atrito contra o pavimento áspero. Além de tudo, ela se comportara como uma completa idiota em público.

Que diabos estava acontecendo para ficar histérica daquele jei­to? Ela imaginara estar sendo perseguida pelo prefeito, pelo amor de Deus! E fugira do carro dele como se esperasse encontrar um...

Um, o quê? Alguma espécie de monstro?

Vampiro.

Gabrielle ouviu a palavra mentalmente, apesar de se negar a pronunciá-la em voz alta. Era a mesma definição que beirava a consciência no momento em que ela testemunhara o assassinato no beco. Era uma palavra que não queria reconhecer, nem mesmo sozinha, no silêncio de seu quarto.

Vampiros eram a obsessão louca de sua mãe biológica, não a dela.

Aquela adolescente anônima se encontrava num estado de comple­to delírio quando a polícia a encontrara, muitos anos atrás. Dizia ter sido atacada por demônios que queriam beber seu sangue. Era a expli­cação para os estranhos cortes no pescoço. Os documentos judiciais que Gabrielle recebera estavam repletos de referências a espectros sedentos de sangue que percorriam a cidade em completa liberdade.

Impossível! Aquilo era loucura. Ela estava permitindo que o medo de se tornar perturbada como a mãe mexesse com sua imaginação.

De súbito, lembrou-se da primeira vez em que vira seu próprio sangue. Ela se cortara sem querer ao partir uma maçã. Não sentira dor ao observar o sangue desenhar um reluzente redemoinho escarlate. Na verdade, sentira-se fascinada, com uma incrível espécie de... paz.

Depois de alguns meses da surpreendente descoberta, Gabrielle voltou a se ferir. Porém, dessa vez, de forma deliberada e em segredo. A medida que o tempo passou, ela começou a se cortar com mais freqüência sempre que precisava sentir aquela profunda sensação de paz.

A cabeça latejava e ela mal conseguia respirar. Necessitava de um pouco de paz.

Ela dirigiu o olhar para o suporte de facas sobre a pia. Estendeu a mão para apanhar uma delas. Havia muitos anos não fazia aquilo. Os psicólogos e assistentes sociais que trabalhavam nas instituições por onde ela passara não conseguiram fazê-la superar a compulsão estranha e vergonhosa.

Agora, enquanto aproximava a faca do braço, ela sentia a emo­ção sombria despertar dentro dela. Pressionou a lâmina contra a pele, embora ainda sem força suficiente para se cortar. Aquele era seu demônio particular, um segredo que nunca havia compartilhado com ninguém, nem mesmo com Jamie, seu amigo mais querido. Ninguém compreenderia. Na verdade, nem ela mesma compreendia.

Gabrielle jogou a cabeça para trás e respirou fundo. Ao abaixar a cabeça e exalar lentamente, viu seu próprio reflexo no vidro da janela acima da pia. O rosto que lhe devolveu o olhar mostrava expressão esgotada e triste.

— Quem é você? — perguntou à imagem espectral, reprimindo um soluço. — O que há de errado com você?

Abatida e frustrada, ela atirou a faca na pia e saiu, ouvindo o eco do aço ressonar na cozinha.

 

O zumbido insistente de um helicóptero atravessou o céu da noi­te, acima do velho hospital psiquiátrico. Sob a camuflagem de uma nuvem, um Colibri EC120 negro pousou com suavidade na platafor­ma plana do telhado.

— Desligue o motor — ordenou o líder dos Corrompidos ao piloto quando o aparelho aterrissou no heliporto improvisado. — Espere aqui até eu voltar.

Ele saltou da cabine e foi saudado por outro Corrompido, um tipo desagradável que ele recrutara na Costa Oeste.

As sobrancelhas espessas do Corrompido se juntaram sobre os olhos ferozes. As cicatrizes de queimaduras por eletricidade ain­da eram visíveis na cabeça calva, conseqüência do interrogatório pelo qual passara seis meses atrás. Porém, assim como as cicatrizes repugnantes de seu rosto, as numerosas marcas de queimaduras eram somente um detalhe.

— Todos esperam com ansiedade sua chegada, senhor — ele sor­riu, mostrando as presas afiadas.

O líder dos Corrompidos, com os olhos escondidos atrás dos ócu­los de sol, assentiu brevemente e, com passadas vagarosas, deixou-se conduzir até o piso térreo do edifício, onde um elevador os levaria ao coração das instalações. Desceram vários níveis no subsolo e penetra­ram numa rede de túneis subterrâneos da fortaleza dos Corrompidos.

Instalado havia um mês em seu quartel privativo em algum pon­to de Boston, o líder fiscalizara as operações no novo território que queriam controlar. Aquela era sua primeira aparição em público, e se tornara um evento, o que era exatamente sua intenção. Não costuma­va se misturar à classe inferior. Os vampiros que se convertiam em Corrompidos passavam a ser a escória. Ele tinha de recordar a essas criaturas bestiais quem eram e a quem serviam. Ao final da guerra que estavam prestes a deflagrar, nem todos sobreviveriam.

No entanto, depois de vencida, não haveria mais conflitos insig­nificantes, lutas internas entre os Corrompidos, nem atos absurdos de vingança individual. Todos os Corrompidos se uniriam e mudariam a história que dividira a nação dos vampiros em duas facções. Os indiví­duos de ambas não eram tão diferentes. O que os separava era apenas uma questão de grau. Enquanto vampiros da Raça apenas saciavam a fome, os Corrompidos haviam se tornado sedentos e viciados em sangue. Porém, a sede de sangue era um espectro que perseguiria a espécie para sempre.

E ele era o líder da guerra que se aproximava, e podia tanto lutar contra o impulso inato de sua estirpe, como utilizá-lo para benefício próprio.

Ele e o Corrompido chegaram ao final do corredor, e a vibração da música estridente reverberava nas paredes e sob os pés. Diante da porta, um outro membro Corrompido que se encontrava de guarda se pôs de joelho diante do líder.

— Meu senhor, sua presença nos honra.

O líder fez um rápido movimento com a cabeça assim que o segu­rança se pôs de pé. As mãos imundas empurraram a portas para permi­tir que o superior entrasse na sala onde uma estridente comemoração acontecia. Ele dispensou o subordinado e ficou livre para observar.

Tratava-se de uma orgia de sangue, sexo e música. Em todos os recantos por onde olhasse, avistava machos Corrompidos que bolinavam, perseguiam e se alimentavam de seres humanos, tanto homens como mulheres. Alguns haviam sido sugados até que a vida se esva­ísse, e os corpos inertes pelo chão mais pareciam bonecos gigantes quebrados.

Sem que pudesse controlar, as presas se alongaram e a ereção dolo­rosa se apertou sob a calça confeccionada sob medida, em resposta à profusão de estímulos eróticos e sensoriais que o golpeavam.

O cheiro de sexo e sangue derramado o chamavam como o canto de uma sereia. Ele não se esquecera do prazer do sexo somado a uma veia suculenta, mas tais necessidades já não o dominavam. Percorrera um árduo e longo caminho para controlar os instintos e, finalmente, vencera.

Agora, era senhor de si e logo seria o líder de toda a nação de vam­piros. Estava disciplinando seu exército, aperfeiçoando seus métodos, recrutando aliados que mais tarde seriam sacrificados no altar de seus caprichos pessoais. Infligiria uma sangrenta vingança à Raça e aos humanos, cuja razão de existir se limitaria a servi-lo.

Quando a grande batalha tivesse terminado e as cinzas e o pó tivessem sido varridos, não haveria ninguém que pudesse se interpor em seu caminho.

Ele seria rei. Esse era seu direito por nascimento.

 

Lucan bateu na porta da casa de Gabrielle outra vez. Não obteve nenhuma resposta.

Estava parado nos degraus da entrada havia cinco minutos, espe­rando que ela abrisse a porta e o convidasse a entrar, ou que o amaldi­çoasse e batesse a porta no seu nariz.

Depois do comportamento indecente da noite anterior, não estava seguro de qual seria a reação que merecia encontrar.

Ele golpeou a porta com os nódulos dos dedos, com tanta força que não se espantaria se os vizinhos chamassem a polícia. Gabrielle não atendeu, embora ele soubesse que ela estava em casa. Percebia a presença dela do outro lado da camada de madeira e tijolos que os separavam. E cheirava a sangue, não muito, mas certa quantidade em algum ponto próximo à porta. Ela estava ferida.

— Gabrielle!

A preocupação correu pelas veias como se fosse um ácido. Lucan tentou se tranqüilizar o suficiente para concentrar seus poderes men­tais nos ferrolhos e na corrente de segurança. Com esforço, fez com que se soltassem. A corrente caiu com um som metálico.

Ele abriu a porta com um empurrão e as botas soaram com força sobre o chão de ladrilhos do vestíbulo. A maleta com a câmera de Gabrielle estava caída no meio do caminho, provavelmente onde ela a soltara na pressa de entrar. O doce aroma de jasmim encheu suas narinas um instante antes que ele visse o caminho de pequenas man­chas avermelhadas.

O ar do interior denunciava o traço amargo do medo, cujo odor havia quase desaparecido, permanecendo apenas como uma neblina difusa. Ele atravessou a sala de estar com intenção de entrar na cozi­nha, para onde se dirigiam as gotas de sangue. Enquanto cruzava a sala, tropeçou na pilha de fotografias ao lado do sofá.

Eram tomadas rápidas de uma estranha variedade de imagens. Reconheceu algumas delas, que formavam parte do trabalho que Gabrielle intitulara "Renovação Urbana". Havia algumas que ele não conhecia, ou não lhe chamaram a atenção a ponto de se lembrar.

— Droga! — disse por entre os dentes, abaixando-se para apanhá-las.

Ele estudou-as com atenção. Um velho armazém perto do deque, um moinho abandonado nos arredores da cidade, locais cuja entra­da era proibida, onde nenhum humano, especialmente uma mulher, devia se aproximar em nenhuma circunstância.

Abrigos de Corrompidos. Alguns já haviam sido erradicados gra­ças a ele e seus guerreiros, mas ainda havia células ativas, captadas via satélite e vigiadas por Gideon. Enquanto passava rapidamente as fotos, perguntou-se quantos refúgios de Corrompidos ainda desco­nhecidos pelos guerreiros Gabrielle teria fotografado.

Ele balançou a cabeça ao ver algumas tomadas exteriores de alguns dos Darkhaven da cidade, com entradas discretas e sinalizações dissimuladas, cuja função era evitar que os santuários dos vampiros fossem localizados tanto pelos humanos quanto pelos Corrompidos.

E, apesar de tudo, Gabrielle encontrara os lugares secretos. Como?

Não podia ter sido por acaso. Na certa, o extraordinário sentido visual de Gabrielle a conduzira. Ela já demonstrara ser imune aos truques habituais dos vampiros.

Lucan soltou uma imprecação e guardou algumas fotografias no bolso da jaqueta de couro, deixando as demais sobre a mesa de centro.

— Gabrielle?

Dirigiu-se à cozinha, onde algo ainda mais inquietante o espera­va. O aroma de Gabrielle era mais forte ali. Ele permaneceu imóvel, captando todos os sinais. Uma faca retirada do suporte sobre a pia chamou-lhe a atenção. Apanhou-a e a inspecionou rapidamente. Não fora utilizada, mas a trilha de sangue do chão do vestíbulo até a cozi­nha pertencia unicamente a Gabrielle.

Seguindo seus instintos, ele abriu a porta semi-escondida pela geladeira que levava ao porão. Não se incomodou em acender as luzes. Sua visão era mais aguda na escuridão. No extremo do porão, o aroma de Gabrielle ficou mais pronunciado. Ele encontrou uma porta hermeticamente fechada, com vedação nas mínimas frestas para que não penetrasse a luz exterior. Tentou abri-la, mas estava trancada.

— Gabrielle? Abra! Eu sei que você está aí.

Lucan não esperou pela resposta. Não tinha a paciência para isso, nem a concentração mental necessária para abrir o ferrolho do outro lado da madeira. Com um rugido de fúria, golpeou a porta com o ombro e arrombou-a com facilidade.

Imediatamente, seus olhos atravessaram a escuridão para pousa­rem em Gabrielle. Ela estava no chão, enrolada em posição fetal, e trajava apenas a roupa de baixo.

Ela despertou imediatamente com o abrupto estrondo da porta. Levantou a cabeça, e as pálpebras pesadas e intumescidas denun­ciavam que estivera chorando. O corpo parecia exalar ondas de exaustão.

— Gabrielle! — sussurrou ele, abaixando-se ao lado dela. — Que diabos está fazendo aqui? Alguém a machucou?

Ela negou com um movimento da cabeça. Levou as mãos trêmu­las, ao rosto e afastou as mechas de cabelos, apertando os olhos para enxergá-lo em meio à escuridão.

— Eu só estava cansada. Precisava de silêncio e paz.

— E por isso se trancou no porão? — Ele deixou escapar um suspiro de alívio, mas vislumbrou os ferimentos nas mãos e joelhos. — Tem certeza de que está bem?

— Estou. Não se preocupe.

Lucan franziu o cenho e estendeu a mão para acariciar os cabe­los sedosos. No entanto, ela pareceu entender o contato como um convite. Aninhou-se nos braços dele como uma menina carente de consolo e calor.

A incontrolável urgência de protegê-la tomou conta de Lucan. Queria que ela se sentisse segura com ele. Queria que soubesse que a protegeria como se fosse dele. Dele...

Impossível, disse a si mesmo. Mais que impossível: era ridículo.

Ele abaixou o rosto, tocado pela suavidade e calor do corpo enre­dado ao dele, em sua deliciosa seminudez. Gabrielle não tinha idéia do perigo ao se envolver com um vampiro macho a quem estava abraçada naquele momento.

Lucan ponderou que era a última pessoa que poderia oferecer amparo a uma Escolhida. No caso de Gabrielle, o simples fato de ina­lar a mais ligeira fragrância dela elevava sua sede de sangue até a zona de perigo.

Ele acariciou-lhe o pescoço e o ombro e tentou ignorar o desen­freado ritmo da pulsação sob as pontas dos dedos.

— Humm... Isso é bom — murmurou ela, sonolenta.

A voz soou como o ronronar de uma gata dengosa, e provocou uma descarga de calor na coluna de Lucan. Ele gemeu, incapaz de responder. Procurando se distrair, passeou o olhar pelo aposento, e todos os músculos de seu corpo se enrijeceram por outro tipo de tensão.

Ele olhou para as fotografias que Gabrielle havia pendurado no quarto escuro para secar. Além de imagens sem importância, havia várias outras de localizações de vampiros. Por Deus, ela fotografa­ra o complexo dos guerreiros! Era uma tomada externa, da estrada do outro lado da cerca. Não havia como confundir o imenso portão de ferro com inscrições que se abria para o longo caminho que leva­va à mansão de alta segurança, perfeitamente escondida de olhares curiosos.

A julgar pela folhagem das árvores que rodeavam o casarão, a imagem não podia ter mais de três semanas. Ela estivera lá, separada por alguns metros de onde ele vivia.

Ele nunca acreditara em destino, mas não duvidou que, de uma ou outra forma, aquela mulher estava destinada a cruzar seu caminho. Era próprio da sua sorte que, depois de séculos se esquivando de balas de prata e confusões emocionais, a realidade tivesse decidido incluir uma Escolhida em sua vida.

— Ouça, vamos sair daqui. Vou levá-la para o andar de cima para que se vista — sugeriu, antes que a visão do corpo aniquilasse seu autocontrole.

Lucan a tomou nos braços como quem suspende um travesseiro de plumas e subiu pela escada até a cozinha. A proximidade permitiu aos seus sentidos perceberem os detalhes dos ferimentos. Os arranhões profundos nas mãos e nos joelhos provavam que ela sofrerá uma queda grave.

Na certa, tentava escapar de algo, ou de alguém. O sangue de Lucan se inflamou pelo desejo de saber quem a assustara. Porém, haveria tempo para isso. O bem-estar de Gabrielle era tudo o que importava no momento.

Ele atravessou a sala de estar e subiu as escadas até o piso superior. Pretendia ajudá-la a se vestir, mas quando passou diante do banheiro ao lado do dormitório, ele mudou de ideia. Provavelmente, um bom banho a ajudasse a relaxar.

Com Gabrielle nos braços, ele entrou no banheiro e se sentou na borda da banheira. Depois de colocar o pino de vedação, abriu as torneiras e experimentou a temperatura da água.

Com uma das mãos, abriu o fecho do sutiã e os seios tentadores se desnudaram diante de seus olhos. Seus dedos formigavam, entorpecidos pelo desejo de tocá-la. Sem resistir, acariciou a curva generosa, roçando o polegar pelos mamilos rosados.

O gemido abafado de Gabrielle provocou-lhe uma poderosa ereção. Cego pela lascívia, ele deslizou a mão pela cintura delgada até o triângulo de renda que lhe cobria o sexo. A mão pareceu grande demais perto da delicadeza da peça, enquanto ele a deslizava pelas pernas bem torneadas. Com um gemido, acariciou a parte interna das coxas macias.

A visão da bela mulher nua em seus braços fez o sangue correr pelas veias como lava incandescente.

Uma ponta de culpa o atravessou por tirar vantagem da vulnera­bilidade dela. Porém, o sentimento se evaporou ante a força do dese­jo. Ademais, Lucan já se convencera de que tentar manter o controle ao lado de Gabrielle era uma batalha que ele estava predestinado a perder.

Ele estendeu o braço para alcançar o frasco de sabonete líquido na borda da banheira. Espalhou uma generosa quantidade sob a água das torneiras. Uma fina camada de espuma perfumada cobriu a superfície, e ele se levantou para colocar Gabrielle gentilmente na banheira.

Ela gemeu de prazer ao mergulhar na água tépida. Apoiou a cabe­ça na toalha que Lucan colocou na borda fria de porcelana e fechou os olhos com um suspiro de satisfação.

— Está confortável? — ele perguntou, retirando a jaqueta.

— Muito — Gabrielle murmurou.

Lucan sentou-se na beirada da banheira se pôs a massagear os ombros delicados.

— Mergulhe a cabeça para molhar os cabelos.

Ela obedeceu, e as mechas avermelhadas flutuaram na superfície como fios de bronze. Ela voltou a apoiar a cabeça na toalha e fechou os olhos. Depois de um longo silêncio, Gabrielle abriu os olhos e sorriu, como se acabasse de descobrir que ele estava ali.

— Olá.

— Olá — ele respondeu com a sombra de um sorriso.

— Que horas são? — ela quis saber em meio a um bocejo.

— Perto de oito da noite. — Ele apanhou o frasco de xampu na borda da banheira. — Você teve um dia ruim? — perguntou casualmente.

— Não foi dos melhores.

— Imaginei. Suas mãos e seus joelhos foram maltratados. — Ele espalhou o xampu pelos cabelos molhados com movimentos suaves. — Quer me contar o que aconteceu?

— Eu cometi uma tolice monumental esta tarde, mas já passou.

— Que tolice?

Gabrielle abriu um olho e dirigiu-lhe um olhar de dúvida.

— O funcionário da delegacia não lhe contou nada?

— Que funcionário?

— Não sei o nome dele, mas é um homem alto e desajeitado. Estou segura de que o vi na delegacia, na noite em que fui denunciar o assassinato no beco. Eu o encontrei hoje no parque. Na verdade, tive a impressão de que estava me espionado, e eu... — Ela se inter­rompeu e meneou a cabeça. — Corri atrás dele como uma louca, acusando-o de me vigiar.

As mãos de Lucan ficaram imóveis. Seu instinto de guerreiro ficou alerta no mesmo instante.

— Você... o quê?

— Sim, eu sei — ela retrucou em tom de autorrecriminação, interpretando mal a reação. — Eu agi como uma idiota. Persegui o pobre homem até Chinatown.

Embora não dissesse nada, Lucan sabia que o instinto primal de Gabrielle captara o mal no desconhecido que a observava no parque. Como o incidente ocorrera em plena luz do dia, não podia ser um Corrompido. Porém, os humanos que os serviam podiam ser igual­mente perigosos. Os Corrompidos utilizavam Servidores em todos os lugares do mundo, humanos escravizados pela potente mordida de um vampiro poderoso que os desprovia de consciência e livre-arbítrio, deixando-os num estado de passiva submissão quando despertavam.

Lucan não tinha nenhuma dúvida de que o homem que vigiava Gabrielle era um Seguidor a serviço de algum Corrompido poderoso.

— Esse homem a machucou? — ele perguntou com cuidado.

— Oh, não! A culpa foi minha. Fiquei nervosa por nada. Depois de ter perdido a pista dele em Chinatown, eu me perdi. Suspeitei de que um carro estava me seguindo, mas eu me enganei.

— Como tem certeza disso?

Ela ergueu o rosto e o encarou com exasperação.

— Porque se tratava do prefeito, Lucan. Acreditei que o carro dele, conduzido pelo motorista, estava me perseguindo e comecei a correr. Para culminar o péssimo dia, caí de quatro na calçada cheia de gente, e tive de vir para casa mancando e suja de sangue.

Lucan soltou uma imprecação em voz baixa ao perceber como ela estivera perto do perigo. A idéia de que correra atrás do servo de um Corrompido congelou o sangue em suas veias e o assustou mais do que desejava admitir.

— Você tem de me prometer que terá mais cuidado — pediu, tentando esconder a tensão. — Se voltar a acontecer algo parecido, procure-me imediatamente.

— Não vai acontecer outra vez, pois foi um equívoco meu. Não há motivo para perturbar você ou qualquer outro policial por uma bobagem. Aposto que ririam de mim se eu dissesse que um dos funcionários administrativos estava me perseguindo sem nenhuma razão aparente.

Lucan apertou os lábios, irritado. A mentira que contara sobre ser policial poderia se tornar um desastre. Se ela tivesse ido à delegacia à procura do detetive Thorne, teria chamado a atenção do Seguidor infiltrado.

— Vou lhe dar o número do meu celular. Quero que o utilize a qualquer hora, compreendeu?

Gabrielle assentiu com a cabeça, enquanto ele voltava a abrir a torneira para enxaguar os cabelos sedosos.

Frustrado consigo, Lucan alcançou a esponja e mergulhou-a na água.

— Agora, deixe-me ver o joelho.

Ela suspendeu a perua e Lucan apoiou o pé delicado com a palma da mão para lavar com cuidado o ferimento profundo. O arranhão voltara a sangrar pela exposição à água quente. Lucan apertou a mandíbula com força. Os filetes de sangue escarlate traçavam um delicado caminho na pele alva, misturando-se à espuma do banho. Terminou de limpar os dois joelhos feridos e fez um sinal para que ela voltasse as palmas das mãos. Não se atrevia a falar, agora que a tentação do corpo nu se somava ao odor do sangue fresco.

Concentrando-se em não desviar a atenção, dedicou-se a limpar as feridas, sabendo que os olhos profundos e escuros seguiam todos os seus movimentos. Ele notou a pulsação rápida da veia no punho sob a pressão das pontas de seus dedos.

Ela também o desejava.

Lucan terminou e, quando começava a dobrar o braço para retirá-lo, viu algo que o inquietou. Os olhos esbarraram na série de estrias tênues que marcavam a impecável pele aveludada. Essas marcas eram cicatrizes de cortes afilados e superficiais na parte interna dos antebraços. Ele notou as mesmas cicatrizes nas coxas, como se fossem cortes feitos pela lâmina de barbear. Imaginou a tortura infernal que ela suportara quando era menor.

— Deus Santo! — Levantou a cabeça para fitá-la, com expressão de fúria nos olhos. — Quem fez isso com você?

— Não é o que parece — Gabrielle balbuciou, embaraçada.

— Conte-me — exigiu ele em tom autoritário.

— Não é nada. Esqueça.

— Dê um nome, e juro que matarei o bastardo com minhas pró­prias mãos.

— Eu mesma me cortei — ela interrompeu em voz baixa.

— O quê? — Lucan aumentou a pressão sobre o pulso frágil e estendeu o braço para observar a rede entrelaçada de cicatrizes. — Por quê?

Gabrielle não respondeu. Limitou-se a libertar a mão e mergulhar os dois braços na água, ocultando-os do olhar crítico.

Lucan praguejou em voz baixa num idioma que ele quase nunca usava.

— Quantas vezes, Gabrielle?

— Não sei. — Ela encolheu os ombros, evitando o olhar. — Não foi por muito tempo. Eu superei.

— É por isso que há uma faca na pia da cozinha?

Gabrielle o fitou com expressão que combinava dor e indignação. Não queria que ele se intrometesse em sua vida, embora soubesse que era o único que podia compreendê-la. Ela própria não era capaz de imaginar o que a levava a cravar uma lâmina na própria carne.

— Por favor, podemos mudar de assunto? — Ela fixou o olhar na espuma que começava a se dissolver ao seu redor. — Eu não quero falar de...

— Você tem de falar, Gabrielle.

— Oh, claro! — Ela riu com ironia. — Agora chega a parte em que você me aconselha a ver um psiquiatra, certo? Talvez até recomende que eu me interne numa instituição para viver dopada de medicamen­tos, com enfermeiras me vigiando dia e noite para meu próprio bem.

— Isso já aconteceu com você? — ele indagou, preocupado.

— Por Deus, não! — Ela soltou o ar com força. — As pessoas não me compreendem. As vezes, nem eu me compreendo.

— O que você não compreende? Que precisa machucar a si mesma?

— Não. Não é por isso que me corto.

— Então, por quê? Deus santo, Gabrielle, deve haver mais de cem cicatrizes...

— Não me machuco para sentir dor. — Ela inalou com força e soltou o ar devagar por entre os lábios. Hesitou antes de prosseguir, incomodada com o silêncio pasmado de Lucan. — Nunca tive inten­ção de provocar dano a mim mesma, não estava tentando enterrar lembranças traumáticas nem denunciar nenhum tipo de maus-tratos, apesar das opiniões contrárias dos peritos designados para me avalia­rem. Eu costumava me cortar porque... Bem, porque me tranqüilizava. Sangrar me acalmava. Ao ver o sangue, a sensação de que eu não pertencia a esse mundo desaparecia. Eu me sentia normal.

Ela manteve o olhar sem titubear, numa expressão de desafio, como se um compartimento secreto dentro dela se abrisse e libertasse uma pesada carga.

Lucan não se surpreendeu com a revelação. Porém, faltava a Gabrielle uma informação crucial, que faria com que tudo fizesse sen­tido. Ela não sabia que era uma Escolhida. Não tinha como saber que, um dia, algum vampiro a teria como sua eterna amada e lhe mostraria um mundo muito diferente do que ela poderia sonhar. Então, Gabrielle experimentaria um prazer acessível apenas aos casais que comparti­lhavam vínculo de sangue.

E ele se deu conta de que já odiava o macho desconhecido que teria a honra de amá-la.

— Não estou louca, se é isso o que está pensando.

As palavras de Gabrielle distraíram Lucan, e ele voltou a se con­centrar no presente.

— Não estou pensando isso.

— Não gosto que tenham pena de mim.

— Nem eu — ele retrucou, consciente da advertência velada. — Você não necessita de compaixão, Gabrielle. E tampouco precisa de médicos e pílulas.

Ela ergueu o rosto para fitá-lo, e o brilho tênue da confiança voltou a iluminar a fisionomia abatida.

— Você não pertence a este mundo — disse ele com gravidade, como se apenas constatasse os fatos. — Você é muito especial para se submeter à vida que está levando, Gabrielle. Um dia, tudo fará sentido, eu prometo. Então, você compreenderá, e encontrará seu verdadeiro destino. Talvez eu possa ajudá-la.

Gabrielle o fitou enternecida, e a calidez de seu sorriso provocou uma pontada de dor no peito de Lucan. A garganta dele se apertou com uma emoção estranha e desconhecida.

— O que foi? — perguntou, percebendo o olhar intenso cravado nele.

— Estou surpresa, só isso. Não esperava que um policial durão como você falasse de forma tão romântica sobre a vida e o destino.

Recordar-se de que ele se aproximara de Gabrielle com uma men­tira, e que continuava mentindo, permitiu a Lucan recuperar parte do controle. Voltou a afundar a esponja na água ensaboada e a deixou flutuar na superfície.

— Possivelmente, são apenas tolices. Não leve em conta o que eu disse — declarou, forçando um sorriso de descaso. — Você não me conhece, Gabrielle. Não de verdade.

— Eu gostaria de conhecer.

Ela se sentou, e pequenas ondas lamberam o corpo nu, como Lucan gostaria de fazer com a língua. Os seios emergiram acima da superfície, os mamilos rosados como pétalas fechadas, rodeados por uma densa espuma branca.

— Diga-me, Lucan. De onde você é?

— De nenhuma parte. — A resposta soou como um grunhido, numa confissão que se aproximava mais da verdade do que ele gostaria de admitir.

Assim como ela, Lucan abominava a compaixão, e se sentiu ali­viado por ela fitá-lo mais com curiosidade do que com pena. Com o dedo, acariciou-lhe o nariz arrebitado e salpicado de sardas.

— Eu sou um desajustado inato. Nunca pertenci a nenhum lugar.

— Não é verdade!

Gabrielle o envolveu pelos ombros, num abraço terno. Os olhos expressavam o mesmo cuidado que ele lhe devotara ao tirá-la do quarto escuro e trazê-la para o banho quente.

Gabrielle beijou-o e, ao notar a língua entre seus lábios, os sen­tidos de Lucan se inundaram com o inebriante perfume do desejo e de da doçura do afeto feminino.

— Você cuidou de mim. Agora, é minha vez de cuidar de você.

Ela o beijou novamente, e o contato da língua úmida arrancou um grunhido de puro prazer masculino. Quando Gabrielle interrom­peu o contato, ele respirava com dificuldade e os olhos reluziam o mais puro desejo carnal.

— Você está com muita roupa. Tire tudo e entre na banheira comigo.

Lucan obedeceu sem hesitar, e atirou as botas para longe. Livrou-se das roupas num segundo e ficou em pé diante de Gabrielle, completamente nu. A ereção pujante evidenciava seu desejo.

Ele tomou o cuidado de evitar o contato visual, pois as pupilas se dilataram pelo efeito da excitação, e ele estava consciente da pressão das presas contra os lábios. Felizmente, a luz fraca da arandela sobre a pia não permitia que ela o visse em toda sua glória voraz.

Lucan se concentrou e emitiu uma ordem mental que estilhaçou a lâmpada. Gabrielle se sobressaltou ao ouvir o repentino estalo, seguido da mais completa escuridão. O movimento abrupto dentro da água provocou ondas na superfície, espalhando água pelo chão.

— Acenda a lâmpada do teto — ela sugeriu.

— Não é preciso. Consigo encontrá-la no escuro — Lucan pro­meteu, usando um pequeno truque para fazê-la ouvir as palavras, já que as presas alongadas dificultavam a entonação.

— Então, o que está esperando?

Ele entrou na banheira e se sentou diante dela. Conteve o impulso de atraí-la para si e possuí-la com volúpia, para deixar que ela assu­misse o controle. Na noite anterior, ele agira como um lobo faminto. Agora, seria paciente e se submeteria à vontade dela.

Gabrielle deslizou para perto dele e entrelaçou os tornozelos por trás do quadril estreito. Inclinou-se para a frente e seus dedos encon­traram os músculos firmes por baixo da superfície da água. Ela massageou-os e deslizou as mãos ao longo das coxas, numa carícia que representava uma tortura lenta e deliciosa.

— Quero deixar claro que não costumo me comportar assim. Ele emitiu um som gutural que pretendia mostrar interesse.

— Quer dizer que normalmente não faz com que um homem se derreta a seus pés?

Gabrielle riu, e o som flutuou pelo ar como melodia.

— É isso que estou fazendo com você?

— O que você acha?

Para ilustrar, Lucan conduziu as mãos dela até a ereção poderosa.

— Oh! Acho maravilhoso — ela murmurou, acariciando o mem­bro com um gesto lânguido. — Você não se parece com ninguém que eu tenha conhecido. E o que quero dizer é que habitualmente não sou tão... agressiva. Não tenho muitos encontros.

— É mesmo? Quer dizer que você não divide sua cama com nenhum homem?

Mesmo na escuridão, Lucan percebeu que ela havia ruborizado.

— Não. Há muito tempo.

Lucan respirou com estranho alívio. Não desejava que ela levasse nenhum outro macho, humano ou vampiro, para sua cama. Queria que ela fosse somente dele, e receou ser capaz de perseguir e estripar o bastardo que ousasse olhar para ela com cobiça.

A repentina crise de ciúme se desvaneceu quando ela se inclinou e os lábios macios tocaram a pele sensível da masculinidade exposta acima da tona da água. Dedos, lábios e língua o conduziram ao limite da sanidade. Quando ela se afastou, Lucan gemeu com frustração.

— Quero você dentro de mim — ela sussurrou com respiração entrecortada. — Mas...

Lucan a encarou, confuso.

— O que houve? — A voz soou mais áspera do que ele pretendia.

— Não teríamos de...? Quero dizer, na noite passada, tudo acon­teceu tão rápido que não tivemos tempo de conversar, mas acho que deveríamos usar proteção.

O desconforto dela teve o efeito de o fio de uma navalha na car­ne. Lucan permaneceu imóvel, e ela se afastou como se fosse sair da banheira.

— Tenho preservativos no quarto.

Ele,a segurou pela cintura com ambas as mãos antes que tivesse tempo de se levantar.

— Não se preocupe, eu não posso engravidá-la.

Por que as palavras soavam tão duras naquele momento? Porém, eram verdadeiras. Somente casais com vínculo de sangue podiam conceber. As Escolhidas e os vampiros que trocavam o sangue de suas veias eram os únicos capazes de ter descendentes.

— E quanto ao resto, você não precisa se preocupar. Eu sou saudá­vel, e nada do que fizermos trará qualquer mal a nenhum dos dois.

— Espero que você não tenha se ofendido.

Ele a atraiu para si e apaziguou a expressão de desconforto com um beijo leve na testa.

— O que acredito, Gabrielle Maxwell, é que você é uma mulher inteligente que respeita seu corpo. E eu a respeito por tomar cuidado consigo.

— Não quero tomar cuidado quando estamos juntos. Você me deixa louca. Tenho vontade de gritar.

Com uma risada, ela apoiou as mãos no peito largo e empurrou-o até que as costas se encontrassem com a borda da banheira. Então, ela se levantou e posicionou-se sobre o membro ereto, movimentan­do-se com languidez para cima e para baixo sem permitir que ele a penetrasse.

— Quero fazer você gemer — sussurrou-lhe ao ouvido.

Lucan grunhiu de pura agonia, enlouquecido pela dança sensual. Apertou as mãos ao lado do corpo, debaixo da água, para conter o impulso de penetrá-la com a ereção prestes a explodir.

Gabrielle continuou o jogo perverso, roçando de leve o sexo úmi­do no membro rijo, até que ele sentiu a delicada intimidade pulsar com espasmos vigorosos quando ela chegou ao clímax.

A ponto de explodir, Lucan jogou a cabeça para trás e suplicou que ela tivesse piedade.

— Por Deus, Gabrielle, você está me matando.

— É isso o que quero ouvir.

Então, a masculinidade potente foi envolvida, centímetro por centímetro, pelo calor da musculatura apertada, com tanto vagar que Lucan não pôde mais se conter. Sua semente jorrou com profusão, e ele estremeceu enquanto o líquido quente inundava Gabrielle, consciente de que nunca estivera tão perto de se perder como naquele momento.

O aroma de Gabrielle o rodeava, mesclando-se aos vapores do banho. Ele se sentiu embriagado pelo poderoso estímulo olfativo somado à sensação indescritível dos corpos unidos. Os seios flutua­vam perto de seus lábios como frutos maduros, prontos para ser toma­dos, mas ele não se atreveu a tocá-los naquele momento em que as presas pulsavam com a necessidade de sangue.

Quando recobrou as forças necessárias para se erguer, ele sus­pendeu Gabrielle, evitando que as anatomias íntimas se afastassem, e saiu da banheira.

— O que está fazendo?

— Você já se divertiu. Agora, vou levá-la para a cama.

A campainha aguda do celular se intrometeu no sono pesado de Lucan. Estava na cama com Gabrielle, ambos esgotados depois da noite de amor. O corpo nu o rodeava, como penas sobre seu torso.

Droga! Há quanto tempo estava fora? Era incrível que tivesse dor­mido, tendo em conta sua habitual insônia.

O telefone voltou a soar, e ele ficou em pé de um pulo. Foi para o banheiro, onde deixara as roupas, e retirou o celular do bolso da jaqueta.

— Sim.

— Lucan, precisamos conversar. — A voz de Gideon denota­va preocupação. — Em quanto tempo você consegue chegar ao complexo?

Ele olhou por cima do ombro para o dormitório adjacente. Gabrielle se sentara na cama, sonolenta. Os lençóis a cobriam da cin­tura para baixo, e os cabelos eram uma confusão selvagem, com fios espetados para todos os lados. Ele nunca vira nada tão terrivelmente tentador. Decidiu que era melhor que partisse logo, enquanto ainda podia sair à rua antes que o sol surgisse.

Desviou o olhar da excitante visão e se concentrou na conversa.

— Não estou longe. O que aconteceu? Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha.

— Aconteceu algo, Lucan, e não foi nada bom. — Outro longo silêncio, e a habitual tranqüilidade de Gideon se rompeu: — Droga, não há maneira fácil de dizer. Nós perdemos um, Lucan, Um dos guerreiros está morto.

O choro das mulheres chegou até os ouvidos de Lucan assim que ele saiu do elevador que o levou à profundidade subterrânea do complexo. Os prantos angustiados partiram-lhe o coração. Os gemidos de uma das Escolhidas, em particular, expressavam a dor crua e visce­ral. Era o único som que se ouvia no silêncio que invadia o comprido corredor.

O contundente peso da perda feriu seu coração como um punhal afiado. Ainda não sabia qual dos guerreiros da Raça se fora naquela noite, e não tinha intenção de usar os poderes mentais para descobrir.

Lucan apressou o passo, quase correndo para a enfermaria do complexo, de onde Gideon telefonara minutos atrás. Ele entrou na sala a tempo de encontrar Savannah conduzindo Danika, destroçada pela dor.

Uma nova comoção o golpeou. Conlan! O gigante escocês de risa­da fácil e com profundo e inquebrantável senso de honra estava morto. Logo, ele se converteria em cinzas.

Lucan se recusava a compreender o alcance da dura verdade. Deteve-se e saudou com uma respeitosa inclinação de cabeça a viúva do guerreiro quando esta passou por ele. Danika se apoiava pesada­mente em Savannah. Os fortes braços cor de chocolate pareciam ser o único anteparo que impedia a Escolhida de Conlan de cair, derrotada pelo pesar.

— Estão à sua espera — Savannah disse em tom amável. Os profundos olhos castanhos estavam úmidos pelas lágrimas. — Eles necessitam da sua força e orientação.

Lucan fitou a companheira de Gideon e assentiu com uma inclina­ção da cabeça, apressando-se a entrar na enfermaria.

Permaneceu em silêncio, sem perturbar a solenidade do momen­to fugaz que dispunham para se despedirem de Conlan. O guerreiro suportara de forma surpreendente várias feridas. O aroma do sangue que ele perdera se misturou ao nauseante cheiro de pólvora, eletrici­dade e carne queimada.

Houvera uma explosão, e Conlan fora apanhado em meio dela.

Os restos mortais do vampiro se encontravam na maça de exame. O corpo estava nu, exceto pela manta de seda bordada que cobria a virilha. A pele fora limpa e untada com óleo aromático, conforme a tradição dos ritos funerários que teriam lugar antes do nascer do sol.

Os guerreiros se reuniram ao redor da maça. Dante, rígido, obser­vava estoicamente a morte. Rio, com a cabeça encurvada, sujeitava entre os dedos um rosário enquanto movia os lábios pronunciando em silêncio as palavras da religião de sua mãe humana. Gideon, com um tecido na mão, limpava com cuidado os ferimentos que rasgavam a pele do Conlan. Nikolai, que saíra para patrulhar com Conlan naque­la noite, tinha o rosto lívido. Os olhos frios mostravam expressão austera e a pele estava recoberta de fuligem, cinzas e pequenas feridas que ainda sangravam.

Até Tegan fora mostrar seu respeito, embora o vampiro se encon­trasse fora do círculo formado pelos outros e mantivesse o rosto abaixado, mergulhado em sua solidão.

Lucan caminhou até a maça para ocupar seu lugar entre os irmãos guerreiros. Fechou os olhos e rezou por Conlan numa prece silenciosa.

— Ele salvou minha vida esta noite — Nikolai rompeu o silêncio. — Eliminamos dois idiotas na estação Green Line e voltávamos para o complexo quando vimos aquele tipo subir no trem. Não sei o que me incitou a olhar, mas ele nos dirigiu um sorriso de provocação que nos fez segui-lo. Ele cheirava a pólvora e outras substâncias que não tive tempo de identificar.

— Explosivos — Lucan murmurou, farejando o odor acre na roupa de Niko.

— Exatamente. O bastardo levava um cinturão de explosivos ao redor de seu corpo. Saltou do trem antes que conseguíssemos alcançá-lo e correu ao longo dos trilhos. Começamos a persegui-lo e nos sepa­ramos. Foi quando vi as bombas. Estavam conectadas a um timer de sessenta segundos, e faltava menos de dez para detonar. Ouvi Conlan gritar para que eu voltasse, e então, ele se atirou sobre o homem.

Dante praguejou em sua língua natal, passando a mão pelos cabelos.

— Um Seguidor teria feito isso? — perguntou Lucan, supondo ser a hipótese mais viável.

Corrompidos não tinham escrúpulos em utilizar vidas humanas para levar a cabo suas mesquinhas guerras internas ou para resolver assuntos de vinganças pessoais. Durante muito tempo, os fanáticos religiosos não tinham sido os únicos a utilizar os fracos de mente como ferramentas de terror descartáveis, embora altamente efetivas.

Porém, isso não fazia com que a horrível verdade do que aconte­cera a Conlan fosse mais fácil de ser aceita.

— Não era um Seguidor — respondeu Niko, negando com a cabe­ça. — Era um Corrompido, e estava conectado a uma quantidade de explosivo suficiente para explodir toda a estação. Se Conlan não tivesse pulado sobre ele e abafado a explosão, muitas vidas teriam sido sacrificadas.

Lucan não foi o único que amaldiçoou o destino ao ouvir as preo­cupantes notícias.

— Então, eles não estão satisfeitos sacrificando somente seus súditos? — Rio perguntou com revolta. — Agora, os Corrompidos estão movendo peças mais importantes no tabuleiro?

— Continuam sendo peões — Gideon lembrou.

Lucan olhou para o perspicaz guerreiro e compreendeu a que ele se referia.

— As peças são as mesmas. Foram as regras que mudaram. Este é um novo tipo de guerra, diferente do fogo cruzado que enfrentamos no passado. Alguém dentre os Corrompidos está gerando um novo padrão de ordem na anarquia. O cerco está se fechando.

Ele voltou a atenção para Conlan, a primeira vítima do que pro­metia ser uma nova era de trevas.

A iminência de uma guerra o inquietou. Se os Corrompidos se organizassem para iniciar uma ofensiva, toda a nação de vampiros se envolveria, assim como os humanos.

— Podemos discutir isso mais tarde — declarou com gravidade. — Agora, vamos honrar nosso bravo guerreiro.

— Eu já me despedi — murmurou Tegan. — Conlan sabe que eu o respeitei em vida. Nada vai mudar agora.

Uma densa nuvem de tensão pairou no ar com a expectativa dos guerreiros à reação de Lucan ante a abrupta partida de Tegan. Porém, ele decidiu não se indispor com o vampiro naquele momento de luto. Esperou que o som das botas sumisse no corredor e fez um gesto para continuarem com o ritual.

Um por um, Lucan e cada um dos quatro guerreiros ficaram de joelhos para oferecer seus respeitos. Recitaram uma prece e se levan­taram juntos para esperarem a cerimônia final.

— Eu o levarei.

Lucan percebeu a troca de olhares entre os guerreiros e soube o que significava. Os Gen Um nunca carregavam o peso dos mortos. Tal obrigação recaía sobre a última geração da Raça, que estava mais afastada dos Antigos e que, por isso, podiam suportar melhor os peri­gosos raios do sol do amanhecer durante o tempo necessário para oferecer o descanso adequado ao corpo de um vampiro. Para um membro da primeira geração como Lucan, o rito funerário representa­va uma tortuosa exposição ao sol de oito minutos.

Ele ignorou a discordância silenciosa dos irmãos e observou o cor­po sem vida. Sentiu-se doente ao pensar que ele poderia estar com Niko, e não Conlan. Se não tivesse enviado o escocês em seu lugar no último minuto, ele se encontraria agora estendido naquela fria maça. A necessidade de ver Gabrielle havia sobrepujado o dever com a Raça, e Conlan pagara o preço.

— Vou levá-lo — repetiu em tom severo. — Avisem quando ter­minarem os preparativos.

Os guerreiros inclinaram a cabeça ao mesmo tempo, num gesto que mostrava respeito e admiração.

Lucan passou as duas horas seguintes em seu apartamento. Gideon bateu à porta e avisou que chegara o momento.

— Danika está grávida — Gideon anunciou com expressão som­bria assim que Lucan se juntou a ele. — Savannah acaba de me dizer que ela está no terceiro mês de gestação. Conlan estava tentando reunir dinheiro suficiente para anunciar que abandonaria a Ordem quando o bebê tivesse nascido. Ele e Danika planejavam ir para um dos Darkhaven para constituir família.

— Maldição! — Lucan disse por entre os dentes, sentindo-se ainda pior ao saber do futuro feliz que fora roubado de Conlan e Danika.

Esse filho não conheceria o homem valoroso e honrado que fora seu pai.

— Está tudo preparado para o ritual? Gideon assentiu com a cabeça.

— Então, vamos realizá-lo.

Lucan caminhou à frente, encabeçando o cortejo. Estava nu sob a túnica negra, usando o cinturão de cerimônias da Ordem, assim como os demais vampiros que esperavam na câmara, como faziam em todos os rituais da Raça, desde matrimônios e nascimentos até funerais. As três fêmeas do complexo se encontravam presentes. Savannah e Eva vestiam as túnicas cerimoniais com capuz, e Danika levava a profunda cor vermelha escarlate que indicava o sagrado vínculo de sangue que a unia a Conlan.

A frente deles, o corpo do Conlan jazia no altar decorado com um manto de seda.

Com o coração oprimido pela dor, Lucan iniciou o ritual. Oito medidas de azeite perfumado para lubrificar a pele, oito capas de seda branca para envolver o corpo, oito minutos de silêncio sob o sol do alvorecer antes que o guerreiro morto fosse incinerado pelos raios fatais. O corpo e a alma seriam pulverizados aos quatro ventos em forma de cinzas, incorporando os elementos para sempre.

Lucan se aproximou do altar e tomou o enorme guerreiro nos bra­ços. Avançou com solenidade pela câmara cerimonial até a escada que conduzia para o exterior do recinto. Cada um das centenas de degraus que subiu com o peso de seu irmão infligiu-lhe uma dor que ele aceitou sem nenhuma queixa.

Abriu o painel de aço com um empurrão do ombro e inalou o ar fresco da manhã enquanto se dirigia ao local onde deixaria seu com­panheiro. Pôs-se de joelhos sobre a grama e abaixou os braços lenta­mente para depositar o corpo do Conlan em terra firme. Sussurrou as orações do rito funerário, palavras que ouvira poucas vezes durante os séculos, mas que sabia de cor. Enquanto as pronunciava, o céu come­çou a iluminar-se com a chegada do amanhecer.

Lucan suportou a luz com um silêncio reverente e concentrou todos os pensamentos em Conlan e na vida honrada que tivera. O sol continuava levantando-se no horizonte, e ele ainda não chegara à metade do ritual.

Ele abaixou a cabeça, banhado por um calor lacerante. Concentrou-se nas orações seculares, e o som da própria voz preencheu seus ouvi­dos, assim como o suave chiado de sua própria carne se queimando.

 

— A polícia e os agentes da ferrovia ainda não sabem o que pro­vocou a explosão da noite passada. Um representante da ferrovia assegurou-nos de que o incidente ocorreu deforma isolada em uma das vias fora de uso, e que não houve feridos. Continuem no Canal Cinco para mais notícias sobre...

O velho televisor numa prateleira da parede silenciou abruptamen­te, enquanto o forte rugido cheio de irritação do vampiro sacudia a sala sombria que uma vez fora a cantina no porão do asilo psiqui­átrico. Dois Corrompidos permaneciam em pé, inquietos, enquanto esperavam suas ordens.

— Não houve feridos humanos, mas a Raça sofreu um duro golpe — declarou um dos Corrompidos. — Ouvi dizer que não sobrou mui­to dele.

Os dois riram e imitaram o estrondo dos explosivos colocados no túnel pelo Corrompido incumbido da tarefa.

— É pena que o outro guerreiro tenha sobrevivido. — Os Corrompidos ficaram em silêncio no momento em que seu líder se virou para encará-los. — Na próxima vez que eu designá-los para uma tarefa, espero que não considerem o fracasso tão divertido.

Eles franziram o cenho e grunhiram, como bestas, que eram, com expressão selvagem nas pupilas verticais. Baixaram a vista quando o Mestre se aproximou com passos lentos e calculados. A ira estava parcialmente aplacada pelo fato de que, ao menos, a Raça sofrerá uma perda importante.

O guerreiro que sucumbira não era o alvo real da missão. Apesar disso, a morte de qualquer membro da Ordem era uma boa notícia para a causa. Haveria tempo de eliminar o Gen Um. De preferência, ele próprio teria esse prazer, cara a cara, vampiro contra vampiro, sem a vantagem das armas. Sim. Seria mais que um prazer acabar com Lucan. Podia dizer que era a chamada justiça poética.

— Mostrem-me o que trouxeram — ordenou aos Corrompidos.

Ambos saíram ao mesmo tempo e empurraram uma porta para dei­xar os humanos do lado de fora entrarem, entorpecidos e quase sem sangue. Os seis homens e mulheres estavam atados pelos pulsos e tor­nozelos, embora nenhum deles parecesse forte o bastante para pensar em fugir. Os olhos vidrados fixavam o vazio, e os lábios inertes eram incapazes de emitir qualquer som. Os pescoços mostravam os sinais das mordidas feitas pelos Corrompidos para subjugá-los.

— Para o senhor, Mestre. Novos Seguidores para a causa.

Ele avaliou o resultado da caçada sem mostrar grande interes­se, calculando rapidamente o potencial dos dois homens e das qua­tro mulheres. Ao se aproximar, o cheiro do sangue fresco o deixou impaciente. Estava faminto, decidiu, enquanto avaliava uma pequena fêmea morena de lábios cheios e busto farto escondido pelo avental verde de hospital. A cabeça pendia sobre o peito, como estivesse pesa­da demais para mantê-la erguida. Era evidente que ela tentava superar o torpor que já vencera os demais. Inúmeras mordidas marcavam o pescoço e se perdiam no crânio. Apesar disso, ela lutava contra a catatonia, piscando com expressão sonolenta num esforço sobre-humano para se manter consciente.

Ele teve de admitir que aquela mortal era admirável.

— Kendra Delaney, enfermeira — disse para si, lendo a etiqueta de plástico presa ao bolso do avental.

Segurou-a pelo queixo e fez com que levantasse a cabeça. Bonita, jovem e a pele, cheia de sardas, exalava aroma doce. A boca se encheu de saliva e as pupilas dilataram, ocultas pelos óculos escuros.

— Essa fica. Levem os demais para as jaulas.

 

A princípio, Lucan julgou que a dolorosa vibração que sentia era parte da agonia pelo que passara nas últimas horas. Todo o cor­po ardia, a cabeça latejava, e o zumbido doloroso estava a ponto de enlouquecê-lo. Encontrava-se no seu apartamento no complexo, e se lembrava de ter se arrastado até ali com as últimas forças, depois de permanecer ao sol por oito minutos, ao lado do corpo de Conlan. Ele havia esperado até que os raios incendiassem a mortalha do guerreiro, reduzindo-o a chamas.

A dor que o afligia agora servia para lembrá-lo da única verdade que importava: seu dever para com a Raça e para com a Ordem de honoráveis machos que haviam feito o mesmo juramento que ele.

Ele desonrara o juramento, e agora, um de seus melhores guerrei­ros se fora.

Um som agudo feriu seus tímpanos, vindo de algum lugar do apar­tamento. Com uma imprecação, Lucan abriu os olhos com dificuldade e observou a escuridão do dormitório. Avistou a luz piscando no inte­rior do bolso da jaqueta.

Cambaleando, ele caminhou com dificuldade e retirou o inoportu­no celular. Furioso pelo desgaste que o simples movimentos provoca­va, ele levantou a tampa do aparelho e se esforçou para ler o número de identificação da chamada. Era um número de Boston... O telefone celular de Gabrielle.

Fantástico! Era tudo o que necessitava.

Enquanto subia o corpo do Conlan pela centenas de degraus, ele decidira que o que quer que estivesse acontecendo entre ele e Gabrielle Maxwell tinha de terminar. Ele fora bem-sucedido ao se aproximar dela e conseguir as informações que necessitava. Fora no restante de seus objetivos que ele começara a falhar.

Lucan havia planejado tudo. Faria com que Gideon fosse ao apar­tamento dela naquela noite e lhe contasse, de forma lógica e com­preensível, tudo a respeito da Raça e do destino dela, assim como a verdade sobre ele.

Gideon tinha experiência no trato com mulheres e era discreto e cortês. Era mais indicado para a missão do que ele. Gideon conse­guiria convencê-la a procurar acolhida e, posteriormente, um macho adequado num dos Darkhaven.

Quanto a si, faria todo o necessário para que seu corpo sarasse. Depois de algumas horas de repouso, estaria em condições de caçar e se alimentar. Então, recobraria as forças e se dedicaria a ser um guer­reiro melhor. Esqueceria para sempre que um dia conhecera Gabrielle Maxwell. Pelo seu bem, e pelo bem comum da Raça.

Exceto que, na noite anterior, ele havia dito que ela poderia telefo­nar a qualquer momento que necessitasse.

Lucan soltou o ar com força e apertou a tecla para conectar a ligação.

— Alô?

Ele não reconheceu a própria voz, mastigada e quase inaudível. Clareou a garganta e sentiu que o cérebro chacoalhava dentro do crânio.

Depois do longo silêncio do outro lado da linha, a voz de Gabrielle ecoou dúbia e ansiosa.

— Lucan? É você?

— Sim. — Esforçou-se para emitir o som, apesar da sensação de que a boca estava cheia de areia. — O que houve? Está tudo bem?

— Sim, estou bem. Espero não estar incomodando. É que eu... Bem... Depois que você foi embora na noite passada, eu fiquei preo­cupada. Precisava saber se você estava bem.

Lucan não tinha energia suficiente para falar. Assim, fechou os olhos e simplesmente escutou a voz clara e sonora, que soava como um bálsamo. A preocupação que ela demonstrava era como um elixir, algo que ele nunca tinha provado antes. A noção de que alguém se preocupava com ele o inundou de calor, apesar da obstinada necessi­dade de negar.

— Que horas são?

— Ainda não é meio-dia. Queria ligar assim que me levantei esta manhã, mas como sei que você trabalha no turno da noite, esperei o quanto pude. Parece cansado. Eu o acordei?

— Não.

Lucan se sentou na cama, sentindo-se revigorado depois de ouvir Gabrielle.

— Bem... — Ela fez uma pausa hesitante, desestimulada pelas respostas lacônicas. — Então, está tudo bem?

— Sim, bem.

— Ótimo. Fico feliz em saber. — A voz adquiriu tom provo­cante. — Por que você saiu da minha casa tão depressa?

— Surgiu um imprevisto e tive de partir.

— Certo — ela murmurou depois de um silêncio que indicava a pouca disposição dele de entrar em detalhes. — Assunto sigiloso de detetives?

— Pode-se dizer que sim.

Lucan se esforçou por ficar de pé e franziu o cenho, tanto pela dor que atravessou todo o corpo quanto pelo fato de não poder contar a Gabrielle o motivo de tê-la deixado às pressas. A guerra que o espera­va era uma crua realidade que logo ela também teria de enfrentar. De fato, seria naquela mesma noite, assim que Gideon fosse visitá-la.

— Ouça, eu tenho aula de ioga com uma amiga hoje à noite. Estarei livre por volta das nove horas. Se você não estiver de serviço, por que não passa por aqui? Posso preparar algo para o jantar.

O provocante flerte de Gabrielle fez brotar um sorriso que provocou dores em todos os músculos do rosto. A lembrança dos momentos que haviam compartilhado despertou seus instintos básicos, e a ereção que surgiu em meio às demais sensações físicas de agonia não foi tão dolorosa quanto ele desejava.

— Não posso, Gabrielle. Tenho... alguns compromissos.

E o principal era se alimentar, o que significava manter-se o mais distante dela quanto fosse possível. No estado em que se encontrava, ele representava perigo para qualquer ser humano que fosse suficien­temente tolo para se aproximar dele.

— Você não sabe que trabalhar muito e não se divertir não faz bem à saúde? — ela ronronou, sedutora. — Sou uma espécie de ave noturna. Assim, se você terminar logo e decidir que quer um pouco de companhia...

— Sinto muito. Possivelmente, em outro momento — ele cortou, sabendo perfeitamente que não haveria nenhum outro momento.

Ele arriscou alguns passos hesitantes em direção a porta. Gideon devia estar no laboratório, ao final do corredor. Nas condições em que se encontrava, o pequeno percurso representava um suplício.

— Vou mandar alguém à sua casa esta noite. É um... sócio.

— Para quê?

Lucan inalou com dificuldade, mas estava progredindo. Estendeu a mão e segurou a maçaneta da porta.

— A situação está muito perigosa — disse com esforço. — Depois do que aconteceu a você ontem, em Chinatown...

— Por favor, esqueça! Estou segura de que exagerei.

— Não — ele interrompeu. — Eu me sentirei melhor se souber que não está sozinha.

— Lucan, não é necessário. Sou uma mulher adulta. Estou bem.

— Meu sócio se chama Gideon — ele prosseguiu, ignorando os protestos. — Você vai gostar dele. Vocês poderão conversar. Ele vai ajudá-la, Gabrielle.

— Ajudar-me? O que quer dizer? Há algo novo no caso? E quem é esse Gideon? É um detetive, também?

— Ele lhe explicará tudo.

Lucan saiu para o corredor, onde uma tênue luz iluminava os ladrilhos polidos e as arandelas de cromo e cristal. Do outro lado de uma das portas dos apartamentos privados, ressonava com força a música metal de Dante. O cheiro de pólvora de disparos recentes chegou até ele, vindo das instalações de treinamento.

Lucan se equilibrou sobre os pés, inseguro em meio ao excesso de estímulos sensoriais.

— Você estará a salvo, Gabrielle. Eu juro... Agora, tenho de desligar.

— Lucan, espere! Não desligue. Você está escondendo alguma coisa! O que não está me dizendo?

— Você vai ficar bem. Eu prometo. Adeus, Gabrielle.

 

— A senhorita poderia soletrar o sobrenome outra vez, por favor?

— T-h-o-r-n-e — Gabrielle repetiu com vagar, fitando com expec­tativa a recepcionista da delegacia. — Detetive Lucan Thorne, Não sei em que departamento ele trabalha. Ele foi à minha casa depois que estive aqui para denunciar uma agressão que presenciei na semana passada... Um assassinato.

— Ah. Então, você quer falar com o departamento de Homicídios.

Gabrielle esperou com impaciência enquanto as unhas longas da recepcionista, pintadas de vermelho, voavam sobre o teclado do computador.

Depois da conversa com Lucan por telefone, ela ficara o restante do dia com a alarmante sensação de que havia algo errado. Em vez de ir para casa após a aula de ioga com Megan, ela decidiu procurar Lucan no trabalho e esclarecer aquela história de uma vez por todas.

— Não. Sinto muito. — A recepcionista balançou a cabeça. — Não consigo localizá-lo em nossos registros.

— Não é possível! O sistema não permite procurar somente um nome?

— Sim, mas não aparece nenhum detetive chamado Lucan Thorne. Tem certeza de que ele trabalha neste distrito?

— Certeza absoluta! A informação do computador não deve estar atualizada...

— Há uma pessoa que pode ajudar — a recepcionista a inter­rompeu, virando-se para chamar um oficial que passava. — Agente Carrigan! Você tem um segundo?

Agente Carrigan... Gabrielle se lembrava dele. Era o mesmo que a chamara de mentirosa e maluca na semana anterior. Pelo menos, agora que Lucan tinha comparado as fotografias do seu celular no laboratório da polícia, tinha o consolo de saber que, fosse qual fosse a opinião do agente Carrigan, o caso seguiria adiante.

Gabrielle teve de reprimir a fúria ao ver que o agente relutava em se aproximar. A expressão de arrogância, usual no rosto volumoso, adotou aspecto depreciativo.

— Por Deus! Você, outra vez? É justamente o que necessito no meu último dia de trabalho. Vou me aposentar daqui a algumas horas, querida. Chame outra pessoa.

— Ela está procurando por um dos nossos detetives — disse a recepcionista enquanto trocava um olhar cúmplice com Gabrielle, como resposta ao comportamento displicente do agente. — Não pude encontrá-lo no diretório, mas ela acredita que é um dos nossos. Conhece o detetive Thorne?

— Nunca ouvi falar dele. — O agente Carrigan começou a afastar-se.

— Lucan Thorne — Gabrielle insistiu, dando um passo em direção ao policial, pronta para agarrá-lo pelo braço se fosse necessário. — O senhor deve conhecer o detetive Lucan Thorne. Vocês o enviaram à minha casa no começo da semana. Ele levou meu telefone celular ao laboratório para que analisassem as...

Ela se interrompeu quando Carrigan começou a rir. Indignada, clareou a garganta e o encarou com expressão severa.

— O detetive Thorne não lhe contou nada disso?

— Senhorita, não tenho a mais remota idéia do que você está falando. Trabalho nesta delegacia há trinta e cinco anos, e nunca ouvi falar de nenhum detetive Lucan Thorne.

Gabrielle sentiu um nó apertado no estômago, mas se negou a admitir o medo que começava a brotar dentro dela. A penugem da nuca se arrepiou com o repentino pressentimento de havia algo muito estranho naquela história.

— Não é possível. Ele sabia do assassinato que presenciei. Sabia que eu tinha estado aqui para denunciar o assassinato. Vi a insígnia dele. Falei com o detetive Thorne ainda hoje, e ele me disse que esta­ria de serviço esta noite. Tenho o número do celular dele...

— Bem, se isso fizer com que me deixe em paz, vamos telefo­nar para seu detetive Thorne — Carrigan concordou com má vontade. — Isso esclarecerá as coisas, certo?

— Sim. Vou ligar agora mesmo.

Os dedos de Gabrielle tremiam quando tirou o celular da bolsa e digitou o número de Lucan. Ninguém respondeu. Ela tentou nova­mente e esperou durante uma agonizante eternidade. A expressão do agente Carrigan mudou de impaciência para compaixão, a mesma que ela percebia nos rostos dos psicólogos e assistentes sociais quan­do era criança.

— Não atende — murmurou, afastando o telefone do ouvido. Sentia-se patética e confusa, e a expressão atenta no rosto do Carrigan piorava seu mal-estar. — Ele deve estar ocupado. Tentarei daqui a pouco.

— Srta. Maxwell, podemos chamar alguém mais? Algum fami­liar, ou um amigo que possa nos ajudar a encontrar algum sentido no que a senhorita está passando?

— Não está acontecendo nada de errado comigo!

— Acredito que você está confusa. Às vezes, acreditamos em certas ilusões para nos ajudar a suportar outros problemas.

Gabrielle soltou o ar com impaciência.

— Eu não estou confusa! Lucan Thorne não é um produto de minha imaginação. Ele é real. Tudo o que aconteceu é real. O assassinato que presenciei no fim de semana passado, aqueles rapazes com rostos ensangüentados e dentes afiados, o homem que estava me vigiando outro dia, no parque... Inclusive, ele trabalha nesta delegacia. Foram vocês que o enviaram para me espionar?

— Bem, srta. Maxwell, vamos tentar resolver isso juntos.

O agente Carrigan encontrou um resquício de boa vontade sob a armadura arrogante, e tomou-a pelo braço para conduzi-la a um dos bancos da recepção.

— Muito bem. Tente se acalmar. Podemos procurar alguém para ajudá-la.

Gabrielle se recusou a sentar-se e se livrou da mão do oficial com um repelão.

— Não estou louca. Eu sei o que vi. Não preciso de ajuda, e sim, de saber da verdade.

— Sheryl, querida... — Carrigan se dirigiu à recepcionista. — Por favor, chame Rudy Duncan e diga que preciso dele.

— Um médico? — Gabrielle levantou as mãos, furiosa. — Esqueça.

— Srta. Maxwell, há pessoas capacitadas que podem...

Ela não esperou que o oficial terminasse de falar. Recompôs-se com dignidade e se dirigiu à porta de saída.

O ar frio da noite no rosto afogueado apaziguou sua fúria. Porém, a cabeça ainda girava e o coração batia desenfreado. Será que todos ao seu redor estavam ficando loucos? Que diabos estava acontecendo?

De uma coisa ela tinha certeza: Lucan mentira a respeito de ser policial. Porém tudo o que acontecera entre eles também fazia parte da mentira?

Gabrielle se deteve no final dos degraus de cimento fora do prédio e respirou fundo. Deixou o ar sair com vagar, tentando se acalmar. Percebeu que ainda tinha o telefone celular na mão.

Tinha de saber. Aquela farsa acabaria naquele momento.

Ela apertou o botão de rechamada e esperou, insegura do que ia dizer. Ouviu o tom de chamada do outro lado tocar seis vezes. Sete. Oito...

Lucan tirou o celular do bolso da jaqueta e praguejou. Gabrielle... Outra vez!

Ele não queria responder à chamada. Estava perseguindo um tra­ficante de drogas que vendia crack a um adolescente na rua, do lado de fora de um bar decadente. Ele conduzira mentalmente a presa para um beco escuro e se preparava para atacar quando foi interrompido pela primeira chamada de Gabrielle. Colocara o aparelho no modo silencioso, amaldiçoando-se pelo hábito de levar o maldito aparelho quando saía para caçar.

A sede e os ferimentos o levaram a ser descuidado. Agora, com o corpo debilitado, tudo o que importava era se alimentar e resgatar as forças.

Sem perder tempo, Lucan saltou sobre o traficante e o derrubou com facilidade. Cravou as presas na veia do pescoço, dilatada pelo terror. O sangue inundou sua boca, desagradável pelo sabor da droga e da enfermidade. Ele tragou com dificuldade, alimentando-se com sofreguidão. Sugou quase todo o sangue, e ainda estava faminto. Porém, decidiu esperar que a seiva vital o nutrisse e tranqüilizasse, em vez de se arriscar pelo caminho rápido e dar vazão à voracidade insaciável.

Lucan apagou a memória do traficante e olhou com ironia para o telefone que trepidava com insistência na palma de sua mão. Por alguma razão que não pôde, ou não quis admitir, ele atendeu no último instante.

Não disse nada a princípio, escutando o suspiro de Gabrielle do outro lado. Notou que ela tinha a respiração ofegante, mas a voz soou forte, com evidente irritação.

— Você mentiu para mim. Durante quanto tempo, Lucan? Quantas mentiras? Tudo foi uma mentira?

— Onde você está? — perguntou com secura. — Onde está Gideon?

— Você nem sequer vai tentar se defender? Por que faz isso?

— Coloque-o no telefone, Gabrielle.

— Há outra coisa que eu gostaria de saber — ela prosseguiu, ignorando a ordem. — Como entrou na minha casa? Eu tinha passado a corrente de segurança na porta e fechado todos os trincos. O que fez? Abriu-os? Roubou minhas chaves para fazer uma cópia?

— Podemos falar disso mais tarde, quando você estiver a salvo no complexo.

— Complexo? — A repentina gargalhada o pegou de surpresa. — E pode abandonar essa postura protetora e benevolente. Você não é policial. Tudo o que quero é um pouco de sinceridade. É pedir muito, Lucan? Deus! Eu nem sei se esse é seu verdadeiro nome! Alguma coisa que me contou é verdade?

De repente, Lucan percebeu que a ira não era resultado do que Gabrielle ficara sabendo por intermédio de Gideon. Ela ainda não soubera a verdade a respeito da Raça e do papel que lhe fora desti­nado. Tratava-se de outra coisa. Não era medo dos fatos, e sim, do desconhecido.

— Onde você está, Gabrielle?

— Por que você deveria se importar?

— Eu me importo — ele admitiu com relutância. — Ouça, não tenho tempo para conversar agora. Sei que não está em casa. Onde está? Gabrielle, você tem de me dizer.

— Estou na delegacia de polícia. Vim procurá-lo, e sabe o que descobri? Ninguém nunca ouviu falar de você!

— Diabos! Você perguntou por mim?

— É obvio que sim. Não teria perguntado se soubesse que estava fazendo papel de idiota.

— Gabrielle, estarei aí em alguns minutos... Menos que isso. Fique onde está. Procure ficar perto de alguém. Vou buscá-la.

— Esqueça. Deixe-me em paz.

A rejeição teve o efeito de um jato de água fria sobre Lucan. No instante seguinte, suas botas ressonavam no pavimento, num ritmo acelerado.

— Não vou ficar esperando, Lucan. Quer saber? Não ouse se aproximar de mim.

— Tarde demais — ele respondeu, a duas quadras da delegacia. Lucan avançou por entre a multidão de pedestres como um fantasma. O sangue que acabara de ingerir penetrava nas células, revitalizando os músculos e ossos, fortalecendo-o até que seu movi­mento se convertesse numa rajada fria na pele dos transeuntes com quem ele cruzava.

Contudo, Gabrielle, com sua extraordinária percepção de Escolhida, pressentiu a presença dele.

Com o telefone preso ao ombro, Lucan ouviu a respiração abafa­da. Como em câmera lenta, ela afastou o aparelho do ouvido e fitou-o com olhos arregalados e incrédulos enquanto ele se aproximava rapidamente.

— Meu Deus — ela sussurrou, e as palavras chegaram aos ouvidos de Lucan um segundo antes que se plantasse diante dela, segurando-a pelo braço. — Solte-me!

— Temos de conversar, Gabrielle. Mas não aqui. Eu a levarei para um lugar...

— Nunca! — Com um repelão, ela se libertou e se afastou pela calçada. — Não vou a lugar algum com você!

— Você não está segura aqui fora, Gabrielle. Viu muitas coisas, e agora, você faz parte disso, queira ou não.

— Parte do quê?

— Dessa guerra.

— Guerra? — ela ecoou, confusa.

— Exatamente. É uma guerra. Você terá de escolher um lado, Gabrielle. — Lucan soltou uma imprecação. — Não. Eu vou escolher o lado que você vai ficar.

— O que é isso? É algum tipo de piada de mau gosto? Quem é você? Um desses militares desajustados que sai por aí atuando suas fantasias de autoridade?

— Isto não é uma piada. Estive em muitos combates e presen­ciei muitas mortes em minha vida, Gabrielle. Nem sequer pode ima­ginar o que vi, nem tudo o que fiz. Não vou ficar parado, esperando você ser apanhada no meio de um fogo cruzado. — Lucan ofereceu-lhe a mão. — Venha comigo. Agora.

Ela se esquivou. Os olhos escuros revelavam uma mescla de medo e raiva.

— Se voltar a me tocar, juro que chamo a polícia! E estou me referindo aos policiais de verdade, com armas de verdade.

O humor de Lucan, que já não era dos melhores, atingiu o apogeu da irritação.

— Não me ameace, Gabrielle. E não creia que a polícia pode ofe­recer algum tipo de proteção. Pelo que sabemos, metade dos policiais de Boston podem estar a serviço dos Corrompidos.

Gabrielle meneou a cabeça e o encarou com expressão de desprezo.

— Essa conversa está deixando de ser estranha para se tor­nar absolutamente maluca. Pare com isso, está bem? — Ela falava devagar e em voz baixa, como se estivesse tentando tranqüilizar um cão raivoso a ponto de atacar. — Agora, eu vou embora, Lucan. Por favor, não me siga.

Quando ela deu o primeiro passo para se afastar, Lucan enviou-lhe uma intensa ordem mental para que ela deixasse de resistir.

Dê-me a mão. Agora.

Por um segundo, Gabrielle sentiu as pernas se paralisarem. Os dedos das mãos se moveram, inquietos, o braço começou a se levantar como se tivesse vida própria.

De repente, o controle se rompeu.

Lucan sentiu que ela o expulsava de sua mente, desconectando-se dele. O poder da vontade dela era como uma porta de aço que se fechava entre ambos, a qual ele não conseguiria transpor mesmo que estivesse em condições perfeitas de saúde.

— Mas o quê...? — Gabrielle o encarou, perplexa. — Eu ouvi sua ordem em minha cabeça. Meu Deus! Você já fez isso antes, não é?

— Você não está deixando muitas escolhas, Gabrielle.

Ele tentou outra vez, e novamente encontrou a barreira, ainda mais forte.

Gabrielle cobriu a boca com a mão, mas não pôde abafar o grito de terror que escapou da garganta.

Ela retrocedeu, cambaleante, e contornou a esquina para escapar pela rua escura.

 

— Ei, rapaz! Segure a porta para mim.

O Seguidor demorou um segundo para perceber que falavam com ele, distraído em observar Gabrielle diante da delegacia. Agora, enquanto segurava a porta aberta para que o entregador entrasse com quatro embalagens fumegantes de pizza, sua atenção permanecia cravada na mulher correndo pela rua, como se estivesse fugindo de alguém.

Ele avistou a figura imponente vestida de negro observando-a correr. O homem gigantesco, com ombros largos e porte ameaçador, irradiava poder por todos os poros.

Embora nunca tivesse visto nenhum dos vampiros a quem seu senhor desprezava abertamente, o Seguidor soube sem dúvida nenhu­ma de que estava diante de um deles. Ele se regozijou secretamen­te ao imaginar os elogios que receberia do Mestre se o avisasse da presença tanto da mulher como do vampiro a quem ela parecia conhecer e temer.

O Seguidor entrou na recepção com as mãos úmidas de suor ante a glória que o esperava. Com a cabeça abaixada, seguro de sua habi­lidade em passar despercebido, atravessou o saguão com passos tão apressados que não viu o entregador de pizza cruzar seu caminho até se chocar com ele. Uma das caixas caiu sobre o peito dele, exalando vapor de queijo quente antes de se estatelar no chão e esparramar-se aos pés do Seguidor.

— Ei! Olhe por onde anda! — o rapaz vociferou, furioso.

Porém, o Seguidor não se desculpou nem se deteve para retirar o queijo grudado nos sapatos. Seguiu diretamente para o corredor, à procura de um lugar tranqüilo de onde pudesse fazer sua importante chamada.

— Ei! Espere aí!

O Seguidor ignorou o policial gritando às suas costas e conti­nuou caminhando em linha reta, com a cabeça abaixada, em direção à porta que se abria para a escada.

Carrigan bufou com todas as forças, com expressão de evidente incredulidade ao ver que sua autoridade era completamente ignorada.

— Ei! Estou falando com você! Volte aqui e limpe essa sujeira, seu paspalho!

— Limpe você, idiota arrogante — ele resmungou em voz baixa e começou a descer a escada de dois em dois degraus.

Ele ouviu a porta se abrir com estrondo e golpear a parede. No instante seguinte, os degraus trepidaram sob o peso do oficial corpulento.

— O que você disse? Quero saber do que me chamou, seu imbecil!

— Você ouviu. E agora, deixe-me em paz, Carrigan. Tenho coisas mais importantes a fazer.

O Seguidor tirou o telefone celular para entrar em contato com seu senhor, o único que podia lhe dar ordens. Antes, porém, que tivesse tempo de apertar o botão de chamada rápida, a mão enorme golpeou o Seguidor na cabeça. Seus ouvidos apitaram e a visão se nublou com o impacto. O celular caiu com um som seco, vários degraus abaixo.

— Obrigado por me oferecer um pouco de diversão no meu último dia de trabalho — Carrigan disse em tom provocador. Passou o dedo roliço pelo colarinho do uniforme apertado e, com gesto despreocu­pado, afastou a mecha de cabelos ralos da testa. — E agora, tire esse traseiro esquelético daqui antes que eu lhe dê outro tapa. Ouviu?

Houve um tempo, antes de conhecer o Mestre, em que o Seguidor não reagiria a um desafio como aquele.

No entanto, aquele policial obeso e suado que o fitava com supe­rioridade parecia insignificante à luz dos deveres que eram designados e confiados aos escolhidos como ele. O Seguidor se limitou a piscar diversas vezes e deu-lhe as costas para apanhar o celular e concluir sua tarefa.

Desceu somente dois degraus antes que Carrigan caísse sobre ele outra vez. Dedos fortes o sujeitaram pelos ombros e o obrigaram a se virar. Os olhos do Seguidor pousaram na elegante caneta que Carrigan carregava no bolso do uniforme um segundo antes de receber outro golpe seco no crânio.

— Você está surdo? Suma da minha frente, ou...

Naquele momento, o policial se engasgou e soltou o ar de repente. O Seguidor recuperou a consciência, e viu a si mesmo com a caneta do agente na mão, cravando-a com uma investida brutal no pescoço de Carrigan. Ele repetiu o ataque com a arma improvisada até que Carrigan desabasse no chão, sem vida.

O Seguidor abriu a mão e a caneta caiu na poça de sangue que se espalhou pela escada.

Ele se agachou e apanhou o telefone celular. Precisava fazer a chamada imediatamente, mas a visão do sangue se alastrando sob o corpo do policial o abalou. O desastre que acabara de provocar fora um engano, e comprometeria a aprovação que receberia ao informar ao seu senhor sobre o paradeiro de Gabrielle Maxwell. O Mestre não aprovaria seu comportamento impulsivo. Matar sem autorização invalidava qualquer elogio... A não ser que ele brindasse seu amo com um prêmio que o impressionasse: capturar e entregar a mulher em pessoa.

Guardou o celular no bolso e voltou para perto do policial morto. Abaixou-se e retirou a arma do coldre antes de pular sobre o corpo e correr para a saída dos fundos que se comunicava com o estacio­namento.

Tinha de deixá-la partir. Gabrielle nunca o perdoaria por ter mentido.

Lucan observou-a percorrer a calçada do outro lado da rua com passos largos, pálida e aniquilada, como se acabasse de receber um golpe fatal.

E era exatamente o que tinha acontecido, admitiu ele com tristeza. Seria melhor que ela partisse acreditando que ele não passava de um mentiroso, um lunático perigoso, o que não estava tão longe da rea­lidade, afinal. Mas a opinião dela não importava. Seu dever era pôr a salvo uma Escolhida.

Podia deixá-la voltar para casa, dar-lhe alguns dias para se tran­qüilizar e clarear as idéias. Então, enviaria Gideon para convencê-la a ficar sob a proteção da Raça, que era onde ela devia estar. Gabrielle podia encolher uma vida nova em qualquer dos Darkhaven ocultos por todo o planeta. Viveria feliz e segura e encontraria um macho que fosse um companheiro leal. Ela nunca mais o veria.

Sim, pensou ele, esse era o melhor rumo que suas ações podiam tomar a partir daquele momento.

No entanto, contrariando a razão, as pernas de Lucan se move­ram com vida própria, seguindo Gabrielle pela rua, incapazes de permitir que ela se afastasse.

Atravessou a rua deserta e o rangido de pneus no asfalto chamou-lhe a atenção. Um carro velho, com a lataria enferrujada, surgiu à toda velocidade, saído de um dos becos nos arredores da delegacia. O motor rugiu, acelerado, enquanto o veículo seguia em direção ao alvo. Gabrielle.

Lucan se precipitou em desabalada carreira. Os pés mal tocavam o pavimento, movendo-se com toda a velocidade. O carro se deteve na esquina, a poucos metros de Gabrielle, bloqueando o caminho.

Ela estacou, paralisada. O motorista lhe dirigiu uma ordem em voz baixa. Ela negou com a cabeça e gritou. O rosto adquiriu expressão severa assim que a porta se abriu e um humano saltou diante dela.

— Por Deus, Gabrielle! — gritou Lucan, tentando deter mental­mente o assaltante.

Entretanto, encontrou apenas o vazio desconcertante. Um Segui­dor, percebeu com sentimento de desdém. Somente o Corrompido que possuísse aquele humano era capaz de dirigir sua mente.

Todavia, o esforço mental de Lucan lentificara os movimentos dele, dando-lhe segundos valiosos de vantagem.

Gabrielle girou rapidamente para a esquerda e correu pelo parque infantil, com seu perseguidor seguindo-a de perto. Lucan a ouviu gri­tar quando o humano estendeu a mão e tocou os cabelos presos num rabo de cavalo.

O bastardo a puxou para o chão e sacou uma pistola presa ao cinto, fazendo mira na cabeça de Gabrielle.

— Não! — Lucan rugiu, perto o bastante para se lançar sobre o homem.

Enquanto o mortal rolava pelo chão, a arma disparou e uma bala atravessou as copas das árvores. Lucan farejou sangue. O aroma acre provinha tanto de Gabrielle quanto de seu atacante. Não era dela, ele determinou com alívio ao constatar que não apresentava a nota de jasmim que ele conhecia tão bem.

O sangue fresco empapava a frente da camisa do Seguidor, e o odor despertou a sede de Lucan. As gengivas vibravam em resposta ao instinto básico, somando-se à ira por pensar na possibilidade de que aquele pervertido tivesse ferido Gabrielle. Com olhar mortífero imobilizando o Seguidor, Lucan ofereceu a mão a Gabrielle para aju­dá-la a se levantar.

— Você está ferida?

Ela negou com a cabeça, reprimindo um soluço.

— É ele, Lucan. Esse homem estava me vigiando no parque outro dia.

— É um Seguidor — Lucan pronunciou a palavra com a mandíbula apertada.

Não lhe importava quem havia sido aquele ser humano. Agora, pertencia à categoria desprezível dos Seguidores e, dentro de alguns segundos, ele estaria morto.

— Gabrielle, você tem de sair daqui, querida.

— O quê? Está sugerindo que eu o deixe aqui, com ele? Lucan, esse homem tem uma arma.

— Volte por onde você veio e vá para casa. Eu me assegurarei de que você fique a salvo.

Do chão, o Seguidor se encolheu com a arma na mão, enquan­to se esforçava para recuperar o fôlego. Ele tossiu e o sangue jorrou numa golfada que deixou uma mancha escarlate sobre o pavimento.

As gengivas de Lucan latejaram sob o efeito das presas se expan­dindo.

— Lucan...

— Droga, Gabrielle! Vá embora!

Lucan pronunciou a ordem com um grunhido de fúria. Já não podia mais dominar a besta que despertara dentro dele. Para satis­fazer sua ira, ele tinha de matar aquele serviçal, e não queria que Gabrielle testemunhasse. • — Corra, Gabrielle. Agora!

Ela finalmente obedeceu, com o coração a ponto de explodir.

Porém, não estava disposta a ir para casa e deixá-lo sozinho. Ela saiu do playground e rezou para que suas pernas a sustentassem até chegar à delegacia. Odiava ter de deixar Lucan sozinho, mas tinha de conseguir ajuda. Desesperada, ela voou rua acima.

Apesar,de furiosa com Lucan por ele ter mentido, apesar do medo por tudo que não conseguia compreender a respeito dele, queria que ele estivesse bem. Se lhe acontecesse algo...

As idéias desapareceram de sua mente quando um disparo estrondou atrás dela, na escuridão.

Gabrielle ficou imóvel, esquecendo-se de respirar. Ouviu um rugido estranho, como de um animal selvagem. Mais dois disparos cor­taram o ar numa rápida seqüência, seguidos de um silêncio pesado e dilacerante.

Oh, Deus. Lucan!

O pânico congelou o sangue de Gabrielle. Ela começou a correr de volta para o parque, com o coração apertado. Seria capaz de morrer se não encontrasse Lucan são e salvo quando chegasse. Uma vaga preocupação ocorreu-lhe ao cogitar a possibilidade de encontrar o Seguidor, como Lucan o chamava, a sua espera. Porém, a preocu­pação ficou de lado assim que chegou à esquina iluminada pela luz da lua.

Só lhe importava saber que Lucan estava bem.

Viu a silhueta negra sobre a grama. Lucan estava de pé, com as pernas abertas e os braços estendidos ao longo do corpo numa pos­tura ameaçadora. O Seguidor, caído de costas. diante dele, tentava desesperadamente se afastar.

— Graças a Deus — ela murmurou sem fôlego.

Uma profunda onda de alívio a inundou ao ver que Lucan estava bem. Agora, as autoridades poderiam se encarregar do incidente que quase matara a ambos.

— Lucan! — Gabrielle se aproximou um pouco mais e o chamou, mas ele não demonstrou ouvir.

Ereto diante do homem que se encontrava a seus pés, ele se inclinou e estendeu a mão para alcançá-lo. Os ouvidos de Gabrielle registraram um estranho som estrangulado, e ela se deu conta, horro­rizada, de que Lucan o suspendia pelo pescoço, levantando-o do piso com uma só mão.

Diminuiu o passo, confusa. Não era possível que seus olhos esti­vessem enxergando corretamente. Esforçando-se para compreender o que estava acontecendo, ela observou, com estranho distanciamento, Lucan levantar o homem enquanto este se debatia pára se libertar. Os pés chutavam o ar e os braços se agitavam freneticamente, tentan­do afastar a mão que lhe apertava a garganta.

Um rugido terrífico rompeu o silêncio, num crescendo que pareceu suplantar todos os sons. Os pássaros deixaram o parque em revoada, agitando as copas das árvores.

De súbito, ela pousou o olhar no rosto de Lucan. O luar incidiu sobre as presas afiadas, reluzentes e mortais.

— Pare! — murmurou, com os olhos fixos nele, paralisada pelo medo. — Por favor, Lucan.

E então, o uivo agudo se silenciou, substituído pelo horror da visão de Lucan levantando o corpo estremecido por espasmos, enquanto cravava as presas debaixo da mandíbula do pobre Seguidor.

Um jato de sangue emanou do ferimento, cuja cor escarlate se confundiu com as trevas da noite que envolvia a cena de horror.

Lucan aproximou os lábios e sugou o sangue que jorrava em profusão.

— Oh, meu Deus! — ela gemeu, levando as mãos trêmulas à boca para abafar um grito. — Não! Não! Oh, Lucan... Não...

Ele levantou a cabeça abruptamente, como se tivesse percebido a presença dela.

Não pode ser verdade, leu as palavras na mente dela, contradizen­do o que via.

Gabrielle já presenciara aquele tipo de brutalidade anteriormente, mas o bom-senso a impedira de dar um nome para o que via. Porém, naquele momento, a palavra se destacou, clara e palpável como a brisa fria e sinistra que revolvia as folhas secas no chão.

— Vampiro — Gabrielle sussurrou, hipnotizada pelo rosto de Lucan manchado de sangue, fitando-a com olhos brilhantes e ferozes.

O aroma de sangue o envolvia, metálico e penetrante. Seu olfato foi invadido pela acidez adocicada, parte da qual provinha dele mesmo. Lucan abaixou a cabeça e viu o ferimento no ombro esquerdo.

Não sentia nenhuma dor, revigorado pela energia que o invadia sempre que se alimentava. Porém, não fora o bastante. Precisava de mais, gritou a fera que havia dentro dele. E a exigência se tornava mais forte, empurrando-o para o limite que se esforçava por não trans­gredir ao longo dos séculos.

Lucan apertou as mandíbulas com tanta força que sentiu os dentes rangerem. Tinha de se controlar, ir para a sede e se recuperar. Estava nas ruas havia apenas duas horas, e a fome e a raiva dominavam-lhe a mente quase por completo, tornando-o um perigo para todos.

Ele caminhou pela cidade como um espectro, movendo-se sem ter consciência de que os pés o arrastavam em linha reta para Gabrielle.

Ela não tinha ido para casa. A nuvem tênue do aroma e da sintonia que os unia o conduziu até a fachada de um prédio de apartamentos no extremo norte da cidade. A luz acesa numa das janelas denunciava a presença de alguém. A parede de tijolos era o único obstáculo que o separava dela.

Contudo, não tinha intenção de se encontrar com ela, e não somen­te por causa do Mustang vermelho estacionado diante do edifício com o pisca-alerta da polícia no pára-brisa. Lucan não necessitava ver seu reflexo no espelho retrovisor para saber que as pupilas ainda estavam retraídas numa fina linha horizontal, nem que as presas marcavam a rigidez dos lábios, dando-lhe o aspecto exato do monstro que era... O monstro que Gabrielle vira naquela noite.

Ele soltou um grunhido ao recordar a expressão de horror no rosto dela enquanto o assistia matando o Seguidor. A imagem dela, recuando com olhos arregalados pelo terror e asco, estava vivida na lembrança. Ela o vira como era de verdade, e pronunciado a pala­vra como uma acusação um instante antes de fugir. Não tinha tentado detê-la com palavras ou com a força mental.

Ele desejara dilacerar o corpo daquele humano, e estivera a ponto de fazê-lo, mobilizado pela ira que o consumia pelo simples ato de pensar no que o Servidor poderia ter feito a Gabrielle. Ele, sempre frio e racional, havia perdido o controle. A máscara que aprendera a usar começara a se desmanchar no momento em que Gabrielle Maxwell surgira em seu caminho.

Com a respiração ofegante, ele olhou para a janela do segundo andar, lutando contra a urgência de entrar no apartamento e levar Gabrielle a algum lugar onde pudesse tê-la somente para si, sem se importar que ela o temesse e desprezasse. Tudo o que importava era sentir o calor do corpo suave acalmando sua dor de uma forma que somente ela poderia fazê-lo.

Sim, grunhiu a besta dentro dele, impelindo-o para a satisfação imediata do desejo.

Porém, antes que o impulso o dominasse, Lucan fechou a mão e esmurrou o capo do carro da polícia. O alarme do veículo disparou, e enquanto todas as cortinas se abriam por causa do súbito incômodo, Lucan desaparecia nas sombras pálidas da noite.

 

— Está tudo bem — o noivo de Megan assegurou ao voltar para o apartamento, depois de desligar o alarme do carro. — Essa maldita sirene dispara por nada. Sinto muito. Não precisamos de mais tensão esta noite.

— Na certa, foram os adolescentes que andam por aí incomo­dando — acrescentou Megan, ao lado de Gabrielle no sofá.

Ela assentiu com gesto ausente, tentando reagir ao esforço que seus amigos faziam para tranquilizá-la. Sabia que fora Lucan. Percebera a presença dele através da intuição que nem ela própria conseguia des­crever. Não sentia medo, e sim, uma profunda certeza de que ele se encontrava por perto... De que ele a desejava.

Talvez a verdade fosse outra. Talvez a realidade estivesse apenas refletindo seus próprios desejos secretos. No fundo, Gabrielle queria que Lucan entrasse naquele apartamento e a tirasse dali, que a ajudas­se a encontrar sentido no horror que acabara de presenciar.

Porém, ele se fora. Notava a ausência com a mesma força que a convencera da presença dele momentos atrás, dando-lhe a certeza de que a seguira até o apartamento de Megan.

— Está com frio, Gabby? Quer mais chá?

— Não, obrigada — ela respondeu, tentando sorrir.

Segurava a xícara de chá de camomila com as duas mãos, sentin­do um frio interno que nada podia aliviar. O coração ainda pulsava acelerado, e a cabeça rodopiava como um caleidoscópio maluco, na mais completa confusão e incredulidade.

Lucan rasgara o pescoço daquele homem com os dentes e cobrira o ferimento com os lábios para tomar o sangue. A mancha vermelha no rosto dele, quando se virou para fitá-la, era a prova inequívoca da barbárie. Ele era um monstro saído de um pesadelo, igual aos que haviam atacado e assassinado o rapaz no beco.

Ela fechou os olhos por um momento. Parecia ter passado um século desde aquela noite!

Gabrielle sorveu um gole do chá, esforçando-se por engolir. Fora para a casa de Megan por puro desespero. Precisava de um algum lugar acolhedor e familiar, além de estar com medo de ir para casa. Talvez o amigo de Lucan estivesse esperando por ela e, decididamen­te, não queira vê-lo.

Ela contara a Megan e ao noivo dela que fora atacada pelo psicopata da delegacia. Porém, omitira os detalhes referentes a Lucan, apesar da importância que a presença dele representava. Ele matara para protegê-la, e ela se sentira compelida a retribuir em segredo a mesma consideração, mesmo ele sendo um vampiro.

Deus, era ridículo usar aquela palavra!

— Gabby, querida, você tem de denunciar o que aconteceu. Esse homem parece seriamente perturbado. A polícia tem de se inteirar do ocorrido. Ray e eu podemos levá-la à delegacia. Podemos ir ao centro da cidade e procurar seu amigo detetive.

— Não. — Gabrielle depositou a xícara na mesa de centro diante do sofá com a mão ligeiramente trêmula. — Esta noite, não quero ir a lugar nenhum. Por favor, Meg. Preciso apenas de descansar. Estou esgotada.

— Claro, querida. — Megan tomou a mão de Gabrielle e apertou com suavidade. — Vou buscar um travesseiro e outra manta.

— Você teve sorte de escapar — interveio Ray quando Megan se afastou. — Receio apenas que outra pessoa não tenha tanta sorte. Não estou de serviço, e você é amiga de Meg. Assim, não vou pressioná-la, mas não posso permitir que esse tipo saia ileso depois do que fez a você.

— Ele não fará mal a mais ninguém — ela sussurrou como que para si, acrescentando que só não podia dizer o mesmo de Lucan.

 

Lucan não se lembrava de como tinha chegado à sala de treina­mento, nem sabia quanto tempo estava ali. A julgar pelas poças de suor no piso do salão, supôs que fazia mais de duas horas.

Ele não se incomodara em acender as luzes. Os olhos já doíam o bastante mesmo no escuro. Tudo o que precisava era castigar os mús­culos, obrigando-os a trabalharem para recuperar o controle do corpo depois de quase sucumbir à sede de sangue.

Ele apanhou uma das adagas na mesa ao seu lado e testou o fio com a ponta do dedo para comprovar que estava afiado. Rumou para a área da prática de tiro e lançou a faca na escuridão, consciente de que acertara o alvo.

— Diabos! — murmurou com a voz ainda rouca, sem que as presas tivessem se retraído por completo.

Havia melhorado muito a pontaria, mas determinou-se a sair dali somente quando estivesse livre de todos os efeitos da ingestão exces­siva de sangue.

Lucan caminhou até o boneco do tamanho de um homem de estatura média e retirou a adaga cravada perto do coração. Observou com satisfação a profundidade que teria infligido se o alvo fosse um Corrompido ou um de seus Seguidores. Ao voltar para mais um arre­messo, ouviu um suave clique e, imediatamente, as instalações se iluminaram com uma luz que o cegou.

Ele piscou várias vezes para dissipar o efeito doloroso e semicerrou os olhos para protegê-los do reflexo nas paredes espelhadas. Foi ali que viu a forma gigantesca de outro vampiro, com o ombro largo apoiado contra a parede.

Um dos guerreiros estivera observando-o das sombras. Tegan.

— Você está bem? — perguntou com a indiferença habitual. — Quer que eu apague a luz?

— Não é preciso — ele grunhiu, com milhares de estrelinhas pipocando diante dos olhos, enquanto as retinas se adaptavam à luminosidade.

Levantou a cabeça e obrigou-se a fixar os olhos de Tegan, do outro lado da sala.

— Eu já estava de saída.

O olhar de Tegan permaneceu cravado nele. As narinas se dilata­ram levemente e a linha fina dos lábios se curvou em surpresa.

— Você esteve caçando. E está sangrando.

— E?...

— Bem, não é típico de você sair ferido de uma luta. Normalmen­te, é muito rápido para isso.

Lucan pronunciou uma blasfêmia por entre os dentes.

— Ouça, não estou com disposição para ter companhia.

— Estou vendo. Estamos um pouco tensos, não é?

Tegan avançou com, passo arrogante para examinar as armas que se encontravam alinhadas para o treinamento. Não olhou para Lucan, mas percebeu sua miséria como se estivesse exposta diante dele, sobre a mesa, ao lado da coleção de adagas, facas e outras armas brancas.

— Você precisa descarregar a agressividade. Não é fácil se con­centrar com esse zumbido na cabeça. O sangue corre tão rápido que não se pode ouvir mais nada além da pulsação nos tímpanos. Só se pode pensar na sede, e quando menos se espera, ela nos domina.

Lucan avaliou outra arma, passando-a de uma mão a outra, com os dedos se retorcendo pelo desejo de utilizá-la no guerreiro. Com um grunhido, estendeu o braço e lançou a adaga até o outro extremo da zona de tiro. A arma se cravou com força no boneco, atravessando o coração.

— Desapareça daqui, Tegan. Dispenso seus comentários e sua companhia.

— Claro! Você não quer que ninguém o veja de perto. Começo a compreender por quê.

— Você não tem a menor idéia.

— Não? — Tegan o fitou por um longo momento e balançou a cabeça devagar. — Tome cuidado, Lucan.

— O que está acontecendo aqui? — Lucan indagou por entre os dentes, voltando-se para o vampiro com expressão feroz. — Como ousa me dar conselhos, Tegan?

O macho encolheu os ombros com um gesto de indiferença!

— É só uma observação.

— Uma observação... — A gargalhada de Lucan ressoou no espaço cavernoso. — É muito engraçado, vindo de você.

— Você está no limite. Vejo nos seus olhos. — Tegan meneou a cabeça e os cabelos avermelhados caíram sobre o rosto. — O poço é profundo, Lucan, e não quero vê-lo cair nele.

— Poupe-se da preocupação. Você é a última pessoa de quem espero recebê-la.

— Oh, sim! Você tem o controle absoluto, não é?

— Exatamente.

— Pois continue dizendo isso, Lucan. Quem sabe assim, você comece a acreditar. Eu, que o estou vendo agora, asseguro-lhe de que não acredito.

A acusação disparou a fúria de Lucan. Em um ataque impulsivo de raiva, voou sobre o outro vampiro com as presas expostas. Ele não percebeu a adaga na mão até ver o fio prateado apertar a garganta de Tegan.

— Suma da minha frente! Entendeu agora?

— Quer me matar, Lucan? Precisa me fazer sangrar? Pois faça! Estou pouco me importando.

Lucan atirou a adaga para longe e rugiu enquanto segurava Tegan pela gola da camisa. Com as armas era muito fácil. Precisava sentir a carne se rasgar e os ossos estalarem para satisfazer a besta que o dominava.

— Droga! — Tegan engasgou, fitando a fúria desenfreada que brilhava nos olhos de Lucan. — Você está a um passo do abismo.

— Pouco me importa! — Lucan vociferou ao vampiro que, muito tempo atrás, fora um amigo de confiança. — Eu devia matá-lo!

Tegan não se alterou ante a ameaça.

— Está procurando um inimigo, Lucan? Então, olhe-se no espelho.

Tegan foi arrastado e pressionado contra a parede do outro lado da sala. O espelho se estilhaçou com o impacto e os fragmentos estala­ram ao redor dos ombros e do torso dele como um halo de estrelas.

Apesar dos esforços para negar a verdade do que acabara de ouvir, Lucan viu seu próprio reflexo selvagem multiplicado na rede de esti­lhaços. As pupilas verticais e as íris brilhantes eram como os olhos de um Corrompido devolvendo-lhe o olhar. As presas enormes se des­dobravam sobre os lábios abertos e o rosto contraído se transformara numa máscara terrível.

Ele contemplou tudo aquilo que odiava, tal como Tegan dissera.

Naquele momento, refletidos na miríade de espelhos que tinham mostrado sua própria transfiguração, viu Nikolai e Dante entrarem com expressão cautelosa.

— Ninguém nos disse que havia uma festa — Dante comentou, arrastando as sílabas com provocação apesar do olhar preocupado. — O que houve? Está tudo bem por aqui?

Um silêncio longo e tenso encheu a sala.

Lucan soltou Tegan e se afastou lentamente. Abaixou o rosto a fim de ocultar sua selvageria dos outros guerreiros. A vergonha era um sentimento novo para ele, e não gostou do seu sabor amargo.

— Sim — Tegan rompeu o silêncio. — Tudo bem.

Lucan saiu e, ao passar por Tegan esmurrou a mesa e as armas estremeceram com violência.

— O que houve com ele? — Niko perguntou num sussurro. — Isso está me cheirando a rejeição feminina!

Enquanto atravessava as portas da zona de treinamento e saía ao vestíbulo, Lucan ouviu a resposta de Dante:

— Não. Isso cheira a overdose.

 

— Mais — gemeu a mortal, oferecendo o pescoço com languidez. — Por favor, beba mais de mim,

— Agora não — ele murmurou, começando a ficar cansando do bonito brinquedo novo.

Kendra Delaney lhe proporcionara entretenimento nas primeiras horas, quando a levara para seus aposentos, mas depois de ceder ao poder do beijo do vampiro, deixara de lutar e se tornara tediosa. Nua, retorcia-se contra ele como uma gata no cio, roçando a pele contra seus lábios e choramingando baixinho quando se negou a lhe oferecer as presas.

— Por favor — insistiu, agora em tom queixoso que começava a incomodá-lo.

Não podia negar o prazer que tinha recebido dela, tanto do cor­po ofegante quanto da plenitude deliciosa e profunda que seu sangue lhe proporcionara enquanto lhe oferecia o pescoço, doce e suculento. Mas agora, estava saciado, a menos que quisesse sorver o restante da humanidade daquela mulher para convertê-la em uma de suas Seguidoras.

Ainda não. Possivelmente, quisesse jogar outra vez. Porém, se não se afastasse daquela sujeição ansiosa, não conseguiria resistir à tentação de sorver até a última gota todo o sangue da enfermeira, levando-a a morte.

Ele a empurrou do colo e ficou de pé.

— Não... — ela lamentou com voz suplicante. — Não vá.

Sem lhe dar ouvidos, ele se afastou, as suntuosas dobras da bata de seda dançando ao redor dos tornozelos enquanto caminhava para fora do dormitório e se dirigia ao estúdio, do outro lado do vestíbulo. O apartamento, seu santuário secreto, ostentava o luxo digno de um rei, com móveis requintados, obras de arte, antigüidades valiosas e tapetes persas confeccionados durante as cruzadas religiosas. Eram lembranças de seu próprio passado, objetos colecionados durante séculos pelo puro prazer que ofereciam e que haviam sido transporta­dos recentemente para a sede de seu exército na Inglaterra.

Entretanto, havia outra recente aquisição artística que, embora contemporânea, tinha igual valor: a série de fotografias preto e branco mostrando vários Corrompidos.

— Estes não são...?

Irritado, ele se virou para a mortal, em pé às suas costas. Ela pis­cava com insistência, incapaz de encontrar o foco, mas visualizou a coleção.

Empurrou-a, e ela caiu como se fosse em câmera lenta sobre uma das almofadas. O rosto se contraiu numa careta infantil, e a cabeça pendeu, pesada demais para que conseguisse sustentá-la.

— Você conhece essas fotografias?

— Minha amiga... São dela.

Ele arqueou as sobrancelhas como resposta à inocente revelação.

— Conhece a artista?

— Minha amiga... Gabby. — Ela assentiu, lentamente. — Gabrielle Maxwell.

Agora, ela conseguira chamar a atenção para si. Ele se aproxi­mou, interessado.

— Fale-me sobre sua amiga. Que interesse ela tem em fotogra­far esses lugares?

Aquela era a mesma pergunta que ele se fizera ao saber que Gabrielle se tornara uma testemunha indesejada de uma matan­ça descuidada feita por novos recrutas. Ficara irritado, embora não alarmado, ao saber que ela estivera na delegacia de polícia. Ver o rosto inquisitivo na tela do circuito fechado de segurança das insta­lações tampouco o agradara. Mas o que despertava o sombrio inte­resse dele fora o propósito da fotógrafa em registrar localizações de vampiros.

Até aquele momento, ele estivera ocupado com outros proble­mas mais importantes. Entretanto, o interesse que ela demonstrava merecia observação mais atenta. De fato, exigiam um interrogatório apurado. Sim, teria de torturar Gabrielle Maxwell.

— Falemos de sua amiga.

A companheira de jogos inclinou a cabeça para trás com os braços levantados, como uma criança mimada a quem foi negado um doce.

— Não, não quero falar dela — murmurou, arrastando-se pelo chão na direção dele. — Venha aqui... Beije-me...

Ele deu um passo em direção à mortal, mas a intenção não era satisfazê-la. Com um gesto de desdém, agarrou-a com força e a sus­pendeu-a diante dele.

— Sim. — Suspirou ela, já disposta a submeter-se.

Ele a agarrou pelos cabelos e expôs a palidez do pescoço ainda sangrando.

— Você vai me dizer tudo o que desejo saber — murmurou com domínio letal. — A partir deste momento, enfermeira Delaney, você fará tudo que eu ordenar.

Ele cravou as presas com a ferocidade de uma besta. Extraiu-lhe até a última gota de consciência e a desapropriou de qualquer vestígio de humanidade com uma única e letal mordida.

 

Gabrielle verificou todos os cômodos e se certificou de que todos os ferrolhos das portas e das janelas estivessem fechados.

Recusara o convite de Megan para ficar com ela e saíra do aparta­mento pela manhã, logo depois de a amiga ter saído para o trabalho. Não podia se esconder para sempre, e não gostava da idéia de envol­vê-la numa situação que se tornava mais apavorante e inexplicável a cada minuto.

Porém, chegara em casa apenas no final da tarde. Receava encon­trar-se com Lucan, ou um de seus amigos vampiros. A princípio, ela percorrera as ruas da cidade sem rumo certo, num atordoamento para­nóico. Estava a ponto de ter uma crise histérica, com todos os instin­tos em alerta preparando-a para a luta. Por fim, decidiu voltar antes do anoitecer, e, felizmente, encontrou a casa vazia, sem nada fora do lugar.

Agora, enquanto a escuridão caía lá fora, sua ansiedade voltou multiplicada por mil. Envolta como um casulo num enorme suéter branco, ela foi para a cozinha verificar as mensagens novas na secre­tária eletrônica.

Megan telefonara durante a última hora, desde que ficara saben­do sobre o corpo encontrado no parque infantil onde Gabrielle fora agredida na noite anterior. A preocupação era evidente no tom de voz, enquanto relatava o que Ray descobrira por intermédio da polícia. O agressor fora destroçado pelo que parecia ser algum tipo de ani­mal selvagem. E havia mais. Um agente da polícia fora assassinado na própria delegacia e a arma encontrada ao lado do corpo destroçado no parque infantil pertencia a ele.

— Gabby, por favor, telefone assim que ouvir a mensagem. Sei que está assustada, querida, mas a polícia precisa do seu depoimento. Ray disse que, se você quiser, pode ir apanhá-la em casa.

Gabrielle apertou o botão para apagar a mensagem, sentindo a penugem da nuca se eriçar. Não estava sozinha na cozinha.

Com o coração desenfreado, voltou-se para dar de cara com o intruso. Não se surpreendeu ao deparar-se com Lucan parado à porta do vestíbulo, fitando-a com expressão pensativa... Na certa, aprecian­do a refeição que estava a ponto de fazer.

Curiosamente, Gabrielle percebeu que não estava com medo. A emoção que predominava dentre todas era a raiva.

Ele parecia ser um homem normal naquele casaco negro sobre a elegante calça da mesma cor confeccionada sob medida e a camisa um tom mais escuro que os impressionantes olhos acinzentados.

Não havia o menor rastro do monstro que ela vira na noite ante­rior. Era somente um homem, o magnífico amante que ela acreditava conhecer.

Preferia que ele se mostrasse com as presas descobertas e olhar de fúria nos olhos que se transformavam de forma tão estranha. Seria melhor se ele aparecesse como o monstro que se revelara na noite anterior. Teria sido mais honesto do que o aspecto de normalidade que o envolvia, fazendo-a acreditar que ele era o detetive Lucan Thorne da Polícia de Boston, um homem que se comprometera a pro­teger os inocentes e a fazer cumprir a lei. Um homem que ela poderia facilmente se apaixonar... Ou que ela possivelmente já se apaixonara.

Mas tudo que se referia a Lucan não passava de mentira.

— Eu disse a mim mesmo que não viria vê-la... Gabrielle engoliu a saliva com dificuldade.

— Eu sabia que você viria. Sei que me seguiu ontem à noite, depois que fugi.

O olhar penetrante denunciou um brilho novo, sem deixar de fitá-la com uma intensidade que parecia acariciá-la como se fossem dedos.

— Não fiz nenhum mal a você, e não quero fazê-lo agora.

— Então, vá embora.

Ele negou com um gesto da cabeça e deu um passo à frente.

— Não até conversarmos. Há certas coisas que você precisa saber, Gabrielle.

— Oh, eu já sei! — ela retrucou, assombrada que a voz não soasse temerosa;.

Ela levou a mão ao pescoço e procurou o pingente em forma de cruz que não usava desde a primeira comunhão. O delicado talismã parecia uma fina e ridícula armadura agora que se encontrava frente a frente com Lucan, sem nada para separá-los a não ser alguns passos das pernas longas e musculosas.

— Você não tem de me explicar nada. Demorei muito tempo, mas acredito que compreendo tudo.

— Não. Você não compreende.

Lucan se aproximou e franziu a testa quando seu olhar captou alguma coisa atrás dela. Ele inclinou a cabeça para trás e riu com vontade ao reconhecer uma réstia de alho pendurada sobre o batente da porta.

Gabrielle retrocedeu um passo, e as sandálias de borracha chiaram sobre os ladrilhos do chão.

— Eu já disse que o esperava.

Ela realizara outros preparativos antes que ele chegasse. Todos os cômodos, incluindo o vestíbulo, estavam decorados com réstias de alho. Porém, Lucan não parecia se importar. Os múltiplos ferrolhos não o detiveram, e ele passou debaixo do repelente de vampiros com os olhos escuros cravados nela.

Gabrielle recuou até esbarrar com o mármore da pia, onde havia deixado uma garrafa de água mineral, cujo líquido fora substituído por outro que ela conseguira a caminho de casa, na igreja de Saint Mary. Apanhou-a e segurou com as duas mãos.

— Água benta? — perguntou Lucan, olhando-a com frieza. — O que vai fazer com isso? Jogar em mim?

— Sim, se for necessário.

Lucan se moveu tão depressa que ela viu apenas a mancha impre­cisa surgir diante dela. Com um gesto brusco, ele pegou a garrafa e a esvaziou sobre as mãos antes de umedecer o rosto e os brilhantes cabelos negros. Nada aconteceu.

— Não sou o que você imagina, Gabrielle — ele declarou, atirando o frasco vazio no lixo.

— Vi o que fez. Você assassinou um homem, Lucan.

— Matei um ser que já não era um homem. A humanidade dele foi roubada pelo vampiro que o converteu em um escravo Seguidor. Estava quase morto. Eu simplesmente terminei o trabalho. Sinto que tenha visto, mas não posso me desculpar. Eu mataria qualquer um, humano ou não, que quisesse lhe fazer mal.

— Isso prova que você é perigoso, para não dizer que é um psicopata. E ainda não mencionei que rasgou a garganta do pobre homem com os dentes e bebeu o sangue dele.

Ela esperou ouvir alguma explicação racional que a convencesse de que o vampirismo tinha sentido no mundo real. No entanto, Lucan contrariou as expectativas dela.

— Não era assim que eu gostaria que fosse, Gabrielle. Deus sabe que você merece algo melhor. — Ele disse algo mais em voz baixa, num idioma que ela não compreendeu. — Gostaria de introduzi-la nesse novo mundo com suavidade, através de alguém mais adequado e habilidoso com as palavras. E por isso que queria mandar Gideon.

— Gideon também é...?

— Sim. — Lucan passou as mãos pelos cabelos num gesto de frus­tração. — Eu não sou porta-voz de minha Raça. Sou uni guerreiro. Às vezes, um ignorante. Eu lido com a morte, Gabrielle, e não estou acostumado a oferecer desculpas para nenhum dos meus atos.

— Não quero que me peça desculpas.

— O que quer, então? A verdade? — Lucan dirigiu-lhe um olhar irônico. — Você esteve diante da verdade ontem, enquanto eu matava o Seguidor e lhe extraía o sangue. Essa é a verdade, Gabrielle. Esse sou eu. Segundo as superstições humanas, é possível se defender da minha espécie com alho ou água benta. Tudo isso é falso, como viu com seus próprios olhos. De fato, nossas espécies se encontram inti­mamente ligadas. Não somos tão distintos um do outro.

— É mesmo? — ela ironizou. — Não me lembro de ter visto cani­balismo na minha lista de deveres. Bem, mas tenho de considerar que até então, eu não estava incomodando os mortos-vivos, como passei a fazer desde aquela noite no beco.

— Esteja certa de que não sou um morto-vivo. Sou uma pessoa igual a você. Sangro como qualquer humano e posso morrer, embora não seja fácil, e faz muito, muito tempo que estou vivo, Gabrielle. — Aproximou-se dela, percorrendo a pouca distância que os separava. — Estou vivo como você.

Como se quisesse demonstrar, Lucan entrelaçou os dedos aos dela. Levantou as mãos entre os corpos de ambos e as apertou contra o próprio peito. Sob o suave tecido da camisa, Gabrielle notou que o coração pulsava com força num ritmo regular. Notou que o ar entrava e saía dos pulmões, sentiu o calor do corpo na ponta dos dedos, e foi como se um bálsamo suavizasse seus sentidos.

— Sou real, e estou em pé aqui... Da mesma forma que me viu ontem à noite.

— Então, mostre-me esse outro que existe dentro de você. Quero saber quem estou confrontando. É justo, não acha?

Ele franziu o cenho, como se a desconfiança o magoasse.

— Não posso forçar a mudança. Só acontece por meio de fatores psicológicos e emocionais com a sede, ou em momentos de emoção intensa.

— Então, quanto tempo tenho de vantagem antes de você abrir minha jugular? Minutos? Segundos?

Os olhos de Lucan cintilaram ante a provocação, mas o tom de voz continuou tranqüilo.

— Não lhe vou fazer mal algum, Gabrielle.

— Então, por que está aqui? Para fazermos amor outra vez, antes que me converta num monstro como você?

— Gabrielle — ele pronunciou com voz rouca. — Não é isso que...

— Ou pretende me converter numa escrava sexual? — ela prosseguiu, erguendo o queixo em desafio.

— Por Deus, Gabrielle! — Lucan apertou a mandíbula com força. — Vim para protegê-la. Preciso saber que está bem, e, possivel­mente, porque cometi erros e quero consertá-los.

Ela permaneceu imóvel, absorvendo a inesperada sinceridade e observando as emoções conflitantes na expressão do rosto. Raiva, frustração, desejo, incerteza... Que Deus a ajudasse, mas ela também sentia tudo isso como uma tempestade em seu interior.

— Quero que vá embora, Lucan.

— Não, você não quer.

— É claro que quero! Não pretendo voltar a vê-lo nunca mais! — ela gritou, desesperada para que ele acreditasse. Levantou a mão para esbofeteá-lo, mas Lucan a impediu com facilidade.

— Por favor. Vá agora mesmo!

Ignorando-a por completo, Lucan levou a mão que quase o acer­tara até a boca. Apertou a palma contra os lábios, beijando-a com sensualidade.

Gabrielle não sentiu o contato agudo das presas, e sim, o háli­to quente e a úmida carícia da língua provocante entre seus dedos. A sensatez a abandonou por completo. As pernas falharam e sua resistência cedeu como cinzas ao vento.

— Não! — ela exclamou, empurrando-o. — Não posso deixar que faça isso, não agora. Tudo mudou, Lucan.

— A única coisa que mudou, Gabrielle, é que agora você me vê com os olhos abertos.

— Sim. — Ela se obrigou a encará-lo. — E não gosto do que vejo. Ele sorriu sem nenhuma piedade.

— Mas desejaria poder dizer o mesmo do que sente a meu respeito.

Gabrielle não soube como era possível que ele se movesse com tanta rapidez, mas naquele exato segundo, sentiu o hálito de Lucan atrás da orelha, e a voz profunda vibrou contra os cabelos enquanto ele apertava seu corpo contra o dela.

Uma vertigem a desequilibrou. Não estava preparada para assi­milar tantas informações. Encontrava-se aturdida pela realidade nova e apavorante, pelas perguntas que nem sequer sabia como for­mular e, acima de tudo, pela desorientação provocada pelo delicioso contato de Lucan.

— Pare! — Tentou empurrá-lo, mas encontrou um paredão de músculos diante de si.

Lucan aceitou passivamente a explosão de raiva, e não moveu um só fio de cabelo com os golpes desferidos contra o peito. Gabrielle se afastou com expressão frustrada e angustiada.

— Deus, o que está tentando demonstrar, Lucan?

— Que não sou o monstro que você quer acreditar. Seu corpo me conhece. Seus sentidos lhe dizem que está a salvo comigo. Basta você escutá-los, Gabrielle. E me ouvir quando digo que não vim para assustá-la, tampouco vou beber seu sangue. Juro pela minha honra, nunca farei mal a você.

Ela riu da idéia de que um vampiro pudesse ter honra. No entan­to, Lucan permaneceu sério, em atitude solene. Possivelmente esti­vesse louca, pois quanto mais fitava os olhos claros, mais desejava acreditar neles.

— Não sou seu inimigo, Gabrielle. Durante séculos, nossas espé­cies se necessitaram mutuamente para sobreviver.

— Sua espécie se alimentou da minha como parasitas — retorquiu ela com voz abafada.

O rosto de Lucan se tornou sombrio por um momento, mas ele não reagiu ante o desprezo que havia na acusação.

— Nós também os protegemos. Alguns dos meus, inclusive, cui­daram dos seus, e até chegaram a viverem juntos como casais com vínculos de sangue. É a única forma em que a estirpe de vampiros têm para perpetuar a espécie. Sem as fêmeas humanas que dão à luz aos nossos filhos, nós seríamos extintos. Foi assim que eu e todos os meus irmãos de espécie nascemos.

— Não compreendo. Por que não podem ter filhos com as fêmeas de sua própria espécie?

— Porque não existem fêmeas. Por uma mutação genética, a prole da Raça somente pode ser masculina, desde o primeiro da estirpe, há centenas de gerações.

A última revelação, somada a todo o resto que acabara de ouvir, obrigou-a a fazer uma pausa.

— Então, isso significa que sua mãe é humana? Lucan assentiu levemente com a cabeça.

— Ou melhor, ela era.

— E seu pai? Ele era...

Antes que pudesse pronunciar a palavra "vampiro", Lucan res­pondeu:

— Meu pai e os outros sete a quem chamamos "Antigos" não eram deste planeta. Foram os primeiros da minha estirpe.

Ela demorou um segundo para assimilar a informação.

— Está dizendo que... que eram extraterrestres?

— Eram exploradores. Conquistadores selvagens que vieram parar na Terra há muito tempo.

Gabrielle o fitou, completamente atônita.

— Seu pai não era somente um vampiro, como também um extra­terrestre? Tem idéia de como isso parece loucura, Lucan?

— Mas é a verdade. Os que eram como meu pai não se autodeno­minavam vampiros, mas, segundo a definição dos humanos, isso é o que eram. O sistema digestivo deles era muito avançado para as prote­ínas cruas da Terra. Não podiam metabolizar plantas ou animais como fazem os seres humanos. Assim, aprenderam a se nutrir do sangue. Porém, alimentaram-se sem freio e dizimaram populações inteiras no processo, como Atlântida, o reino dos maias e outras incontáveis civilizações desconhecidas que se desvaneceram na noite dos tem­pos. Muitas das mortes maciças que historicamente se atribuíram às infestações, fome e pragas foram causadas pelos meus antepassados.

— Meu Deus! — Ela cobriu a boca com as mãos, horrorizada. — Aceitando que tudo isso possa ser verdade, você está falando de milhares de anos de carnificina. Eles... Você... Deus, não posso acre­ditar que esteja dizendo isso. Os vampiros se alimentam de algo vivo, como uns dos outros, ou os humanos são a única fonte de alimento?

— Somente o sangue humano contém a combinação de nutrientes específica que necessitamos para sobreviver — Lucan respondeu com seriedade.

— Com que frequência?

— Temos de nos alimentar a cada três ou quatro dias. Precisamos de mais sangue se estamos feridos e necessitamos de mais nutrientes para a cura.

— E vocês... Vocês matam quando se alimentam?

— Nem sempre. De fato, poucas vezes. A maioria da Raça se alimenta de humanos voluntários, a quem chamamos de anfitriões.

— E alguém se oferece voluntariamente para ser torturado? — perguntou ela, incrédula.

— Não há nenhuma tortura, a não ser que o desejemos. A mordida de um vampiro pode ser muito prazerosa. Quando termina, o anfitrião não recorda nada, pois apagamos as lembranças.

— Mas às vezes, vocês matam — disse ela, sem esconder o tom de acusação.

— Às vezes, é necessário tirar uma vida. A Raça fez o juramento de não depredar os inocentes ou fracos.

— Oh! Que nobre! — Gabrielle murmurou com ironia.

— E nobre, Gabrielle. Se quiséssemos, se cedêssemos à selvageria que herdamos dos conquistadores primitivos, poderíamos escravizar toda a humanidade. Seríamos reis e todos os seres humanos exis­tiriam somente para nos servir de alimento e de diversão. Esse é o motivo de uma antiga guerra entre minha estirpe e nossos irmãos inimigos, os Corrompidos. Você os viu com seus próprios olhos, naquela noite no beco.

— Você estava lá?

Assim que terminou a sentença, ela percebeu que já sabia a res­posta. Lembrou-se do rosto marcante e dos olhos ocultos atrás dos óculos escuros que a observavam entre a multidão, no interior da boa­te. Lembrou-se também da estranha conexão com ele no breve olhar que pareceu tocá-la, apesar da fumaça e da escuridão do ambiente.

— Eu estava perseguindo aquele grupo de Corrompidos durante uma hora, esperando a oportunidade de acabar com eles.

— Eram seis — ela recordou vividamente, como se as expres­sões terríveis e os olhos ferozes estivessem diante dela. — Você os enfrentou sozinho?

Lucan encolheu os ombros, indicando que não era raro caçar sozinho.

— Naquela noite, eu tive ajuda: você e a câmera do seu celular. O flash os surpreendeu e me proporcionou a oportunidade de atacar.

— Você os matou?

— Sim, exceto um. Mas eu o apanharei.

Ao ver a ferocidade da expressão dele, Gabrielle não teve nenhu­ma dúvida de que o faria.

— A polícia mandou uma viatura à boate depois que informei sobre o assassinato. Não encontraram nenhuma evidência.

— Assegurei-me de que não encontrariam.

— Fiz papel de idiota — ela resmungou, cruzando os braços sobre o peito. — A polícia insistia em dizer que eu estava inventando isso tudo.

— Foi melhor assim. A Raça elimina todas as pistas das bata­lhas reais que tiveram lugar nas ruas ao longo dos séculos. Poderia imaginar o pânico que haveria pelo mundo se começassem a circular rumores sobre ataques de vampiros?

— É isso o que está acontecendo? — ela perguntou, receosa de ouvir a resposta.

— Ultimamente, cada vez mais. Os Corrompidos são um grupo de viciados que somente se preocupam com a próxima dose. Pelo menos, foi assim até recentemente. Mas agora, algo mudou. Eles estão se organizando. Nunca foram tão perigosos.

— E, graças às fotografias que tirei naquele beco, esses vampiros Corrompidos estão me perseguindo.

— O incidente que presenciou atraiu a atenção deles, sem dúvida. Porém, o mais provável é que sejam as outras fotos que a expuseram ao perigo.

— Que outras fotos?

— Esta, por exemplo.

Lucan apontou para a fotografia emoldurada que estava pen­durada na parede da sala de estar, a tomada externa de um velho armazém numa das zonas mais desoladas da cidade.

— Por que fotografou esse edifício?

— Não sei exatamente. — Gabrielle estudou o retrato, e um calafrio a percorreu. — Nunca tinha ido até essa região da cidade e acabei me perdendo. Algo atraiu minha atenção para esse lugar, mas não me pergunte o quê. Eu estava tensa e assustada, e mesmo assim, não consegui ir embora sem antes tirar algumas fotografias do armazém.

— Eu e vários guerreiros da Raça que trabalham comigo estive­mos nesse lugar há um mês. Era um esconderijo dos Corrompidos, que abrigava quinze de nossos inimigos.

— Meu Deus! — Gabrielle o encarou, boquiaberta. — Há vampi­ros vivendo nesse edifício?

— Agora não mais.

Lucan passou por ela e apanhou as fotografias espalhadas sobre a mesa. Dentre elas, escolheu as tomadas do hospital psiquiátrico abando­nado, que ela fizera dias atrás. Levantou uma das fotos e a mostrou.

— Estivemos vigiando essa locação durante semanas. Temos motivos para acreditar que se trata de uma das maiores colônias de Corrompidos da Inglaterra.

— Oh, meu Deus! — Gabrielle encarou a imagem em pre­to e branco, sentindo que o ar fora drenado da cozinha. — Quando estava lá, um homem me encontrou e me perseguiu até a saída da propriedade. Você acha que era...?

Lucan negou com a cabeça.

— Se ele saiu à luz do sol, é um Seguidor, e não um vampiro. Os raios solares são fatais para nós. Essa parte da superstição é verdade. A pele se queima rapidamente, como a dos humanos quando exposta a uma lente de aumento ao meio-dia.

— É por isso que sempre nos encontramos à noite — murmurou ela, pensando nas visitas de Lucan desde a primeira vez. — Como pude estar tão cega, quando tinha todas as pistas bem diante do meu nariz?

— Talvez não quisesse ver, mas você sabia, Gabrielle. Suspeitava que a matança que tinha presenciado era algo que estava além do que podia explicar a partir de sua experiência como ser humano. Esteve a ponto de me dizer isso na primeira vez que nos encontramos. Em algum nível de sua consciência, sabia que se tratava de um ataque de vampiros.

Sim, ela sabia desde então. Porém, não suspeitara que Lucan fizes­se parte daquele horror. No fundo ela ainda queria negar essa idéia.

— Como é possível que seja real? — gemeu ela, deixando-se cair na cadeira.

Olhou as fotos que estavam espalhadas na mesa e desviou o olhar para o rosto sério de Lucan. Estava a ponto de começar a chorar, os olhos ardiam e um nó apertava-lhe a garganta.

— Isso não pode ser real! Deus, por favor, diga que não está acontecendo!

 

Era muita informação para uma só noite. Lucan sabia disso, mas não tinha alternativa. Gabrielle precisava saber. Afora a pequena amostra de irracionalidade com o alho e a água benta, ela mantivera uma incrível serenidade durante a conversa que era, sem dúvida, difí­cil de assimilar.

Extraterrestres, vampiros, a guerra iminente com os Corrompidos que também a estavam perseguindo...

Ela ouvira tudo com uma fortaleza que muitos homens não demonstravam. Lucan percebeu que se esforçava para processar as informações, sentada à mesa com a cabeça apoiada nas mãos. Grossas lágrimas deslizavam pelas bochechas. Desejou que houvesse um caminho mais fácil, mas não havia. E seria pior ainda quando ela conhecesse toda a verdade. Pela própria segurança de Gabrielle, e pela segurança da Raça, ela teria de abandonar sua casa, seus ami­gos, sua carreira. Teria de deixar para trás tudo o que fizera parte da sua vida até aquele momento.

E teria de fazê-lo naquela mesma noite.

— Se tiver outras fotografias como estas, eu tenho de vê-las. Ela levantou a cabeça e assentiu.

— Estão no computador — declarou, afastando os cabelos do rosto.

— E as que estão no quarto escuro?

— Também estão. Costumo manter cópias no computador de todas as fotografias que faço, inclusive das imagens que vendi através da galeria.

O comentário despertou um alarme em Lucan.

— Quando estive aqui noites atrás, você mencionou que tinha vendido uma coleção inteira a alguém. Quem era?

— Não sei. Era um comprador anônimo. Ele contatou o dono da galeria, meu amigo Jamie, e pediu uma amostra privada num escri­tório de cobertura alugado no centro da cidade. Ele comprou toda a. coleção e pagou uma fortuna em dinheiro.

Lucan soltou um impropério, e a expressão tensa de Gabrielle se transformou no mais puro terror.

— Oh, meu Deus!... Você acha que foram os Corrompidos que...?

— Obviamente, eles devem ter ficado extremamente interessados em ter as localizações de seus oponentes.

E ter Gabrielle seria um bem extraordinário para eles por mui­tas razões, Lucan completou para si. E quando se apossassem dela, não demorariam em descobrir a marca de Escolhida. Abusariam dela e a obrigariam a ingerir seu sangue e a gerar sua semente até que ela sucumbisse e morresse. Talvez levasse anos, décadas, séculos de tortura.

— Lucan, meu melhor amigo levou as fotos naquela noite, sozi­nho. Eu morreria de culpa se tivesse acontecido alguma coisa com ele. Jamie se envolveu nessa história sem saber do perigo que enfrentava.

— Provavelmente, foi por isso que ele saiu com vida. Gabrielle o encarou como se tivesse recebido um soco no estômago.

— Não quero que meus amigos se prejudiquem por minha causa!

— É você quem está correndo perigo, Gabrielle. Temos de agir. Vamos copiar as fotografias do seu computador. Quero levar todas ao laboratório da sede.

Gabrielle o conduziu até a mesa a um canto da sala de estar. Ligou o computador e, enquanto carregava, introduziu um CD no compartimento de gravação.

— Disseram que ela estava louca. Eles a classificaram como esquizofrênica paranóica e a trancaram numa instituição por que ela acreditava ter sido atacada por vampiros. — Gabrielle riu bai­xinho, mas o som denunciou tristeza e amargura. — Ela não estava louca, afinal.

— De quem você está falando? — Lucan perguntou às costas dela.

— De minha mãe. — Gabrielle iniciou o processo de cópia e girou a cadeira para fitá-lo. — Ela foi encontrada numa rua de Boston, ferida, ensangüentada e desorientada. Estava sem bolsa, bagagem ou documentos, e durante os breves períodos de tempo em que se mantinha lúcida, não foi capaz de dizer a ninguém quem era. Assim, foi fichada como anônima. Era apenas uma adolescente.

— Você disse que ela estava sangrando?

— Sim. Tinha vários ferimentos no pescoço. Aparentemente, ela se automutilara, conforme os informes oficiais. O tribunal a julgou incapaz e determinou que a internassem numa instituição psiquiátrica quando teve alta do hospital.

Lucan refreou o ímpeto de secar as lágrimas que corriam livre­mente pelo rosto bonito.

— E se tudo o que ela disse foi verdade? E se não estivesse lou­ca? Oh, Deus, Lucan... Todos esses anos, eu a culpei e até a odiei, e agora hão posso deixar de pensar que...

— Você disse que ela foi julgada. Por quê? Cometeu algum tipo de crime?

O computador apitou indicando que a gravação estava completa. Gabrielle se voltou para dar continuidade ao processo e se manteve de costas para ele. Lucan pousou as mãos nos ombros dela e girou-a suavemente até ficarem frente a frente.

— Do que acusaram sua mãe?

Por um longo momento, Gabrielle não disse nada. Os olhos fitaram o vazio, traduzindo uma dor que não podia ser descrita com palavras.

— Ela foi acusada de abandonar um bebê.

— Quantos anos você tinha?

Gabrielle encolheu os ombros e balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Eu tinha pouco mais de quatro meses. Era apenas um bebê. Ela me deixou dentro de um latão de lixo a uma quadra do local onde foi encontrada pela polícia. Por sorte, um dos policiais decidiu verificar os arredores. Deve ter me ouvido chorar, suponho.

Enquanto ouvia, uma lembrança cintilou na mente de Lucan. Viu uma rua escura, o pavimento úmido que brilhava sob a luz da lua, uma mulher com os olhos arregalados e o rosto transfigurado pelo horror, enquanto um Corrompido sugava seu pescoço. Ouviu o tênue pranto do bebê que a mulher levava nos braços.

— Quando isso aconteceu?

— Faz muito tempo. Vinte e sete anos, para ser exata.

Para alguém da idade de Lucan, vinte e sete anos era o mesmo que um dia. Ele se lembrava claramente de ter interrompido aquele ataque na estação rodoviária. Recordava-se ter se colocado entre o Corrompido e sua presa e mandado a mulher para longe dali com uma potente ordem mental. Ela sangrava em profusão, e parte do sangue caíra sobre o bebê.

Depois de matar o Corrompido e limpar a cena, ele saíra em busca da mulher com o bebê. Não conseguiu encontrá-la, e perguntara-se muitas vezes o que teria acontecido. Ele se amaldiçoara muitas vezes por não ter sido capaz de apagar as terríveis lembranças da memória da vítima.

— Ela se suicidou na instituição mental não muito tempo depois — Gabrielle murmurou com profundo pesar.

Lucan não pôde evitar tocá-la. Afastou com suavidade as mechas de cabelos caídas no rosto e acariciou a delicada linha do queixo. Gabrielle tinha os olhos marejados de lágrimas, mas o fitava com bravura. Era uma mulher forte.

Sim, ela era especial. Naquele momento, ele não queria outra coisa senão tomá-la nos braços.

— Sinto muito — disse com absoluta sinceridade e tristeza, algo que não estava acostumado a sentir. Mas, desde que conhecera Gabrielle, ele conhecera também um turbilhão de emoções completa­mente novas.

O bip do computador voltou a soar, quebrando o clima tenso.

— Já estão todas aqui — Gabrielle anunciou, guardando o CD na capa.

— Ainda não. É preciso apagar os arquivos de imagens do compu­tador e das cópias de segurança. Além disso, levarei todas as fotogra­fias impressas. Fique aqui.

Lucan fez uma inspeção completa na casa e recolheu todas as fotos soltas que encontrou, incluindo as molduras das paredes. Não que­ria deixar nada que pudesse ser de utilidade para os Corrompidos. Gabrielle trouxe a maior mala que encontrou no armário e, enquanto guardavam as fotografias, os dois ouviram o ronco de um carro poten­te estacionando na calçada. Duas portas se abriram e fecharam com um golpe, e passos apressados se aproximaram da entrada.

— Há alguém lá fora — Gabrielle sussurrou, assustada.

Lucan levou a mão à cintura, onde deixara um revólver no cin­turão da calça. A arma estava carregada com balas de titânio espe­ciais para Corrompidos, uma das últimas inovações de Niko. Porém, dessa vez, não se tratava de Corrompidos ou Seguidores, o que teria proporcionado certa satisfação a Lucan.

— Gabrielle? — O timbre feminino soou do outro lado da porta.

— Gabby? Você está aí?

— Oh, não! É minha amiga, Megan — ela gemeu. — Ela telefo­nou durante o dia todo e deixou inúmeros recados. Está preocupada comigo.

— O que ela sabe?

— Contei a ela que fui atacada no parque, mas não mencionei você.

— Por que não?

— Bem... — Gabrielle deu de ombros. — Não queria envolvê-la nessa história. Além disso, não queria dizer nada até que tivesse algumas respostas.

— Gabby! Abra a porta! — a voz de Megan soou mais alta. — Ray e eu temos de falar com você. Precisamos saber se está bem.

— O noivo dela é policial — Gabrielle comentou baixinho. — Eles querem que eu vá até a delegacia.

— Deixe seus amigos entrarem — Lucan ordenou com sere­nidade.

— O que você vai fazer? — A expressão dela denunciou o pânico. — Você tem uma arma? Lucan, não vou permitir que...

— Fique tranqüila. Não usarei a arma com seus amigos. Abra a porta, Gabrielle.

As pernas dela se moveram com vagar. Ela soltou a corrente de segurança e ouviu a voz de Megan do outro lado.

— Oh, graças a Deus! Ela está em casa, Ray. Gabby, querida, está tudo bem?

Gabrielle hesitou e olhou para trás, mas Lucan não lhe deu nenhuma pista. Os traços marcantes da fisionomia não mostravam nenhuma emoção.

— Deixe-os entrar — disse simplesmente, com um gesto de incentivo.

Gabrielle girou o trinco devagar, e Megan empurrou a porta com pressa.

— Por todos os Santos, Gabrielle! Tem idéia de como eu estava preocupada? Por que não retornou minhas chamadas? — Ela abra­çou a amiga e a fitou com expressão preocupada. — Você estava chorando? O que...? — Megan se interrompeu quando percebeu a presença de Lucan atrás de Gabrielle. — Oh... Eu não sabia que estava com alguém...

— Está tudo bem? — Ray se colocou entre as duas mulheres, enquanto levava a mão à arma embainhada.

— Sim. Não se preocupe. — Gabrielle levantou a mão em direção a Lucan — Ele é... um amigo.

— Você vai a algum lugar? — O noivo de Megan quis saber ao avistar a mala aos pés de Lucan.

— Eu estava tensa e pensei em ir para um hotel. Lucan se ofereceu para me levar.

Ray assentiu, estudando Lucan sem esconder a curiosidade, e Megan tomou a mão da amiga num gesto protetor.

— Ray e eu achamos importante que você vá à delegacia, que­rida. Estou segura de que seu amigo concorda. Você é o detetive de quem Gabby falou, não é?

Lucan se colocou diante de Megan e Ray, numa flexão tão rápi­da dos músculos que o tempo pareceu congelar. Apenas Gabrielle registrou a série de passos vertiginosamente rápidos, mas os amigos ficaram assombrados quando Lucan surgiu diante deles, imponente e ameaçador. Num repente, levantou a mão direita e segurou Megan pela gola da blusa.

— Lucan, não!

Meg gritou, e o som morreu em sua garganta assim que fitou os olhos de Lucan. Com velocidade inacreditável, Lucan estendeu a mão esquerda e subjugou Ray da mesma maneira. O agente se debateu um segundo antes de cair num estupor como se estivesse em transe. Os dedos de Lucan pareciam ser o único suporte que os mantinha em pé.

— Lucan, pelo amor de Deus! Eu suplico, não faça nenhum mal a eles!

— Meu carro está na frente da casa. Pegue os CDs e vá para lá. Sairei em seguida — ele ordenou em tom frio, ignorando-a.

— Não! Não vou deixar você sugar o sangue dos meus amigos!

— Se essa fosse minha intenção, eles já estariam mortos.

Gabrielle hesitou. Não tinha nenhuma dúvida de que aquele ser obscuro a quem já aceitara em sua vida era capaz de matar impiedosamente. Porém, por algum razão, confiou na palavra dele. Ela enfiou os dois CDs na bolsa. Ao sair, fitou o rosto pálido de Megan como se receasse nunca mais vê-la. Reprimindo as lágrimas, ela saiu à rua e avistou o luxuoso Sedan na esquina, estacionado atrás do Mustang vermelho de Ray. Ao se aproximar, a porta do passageiro se abriu.

Gabrielle se perguntou até onde chegavam os poderes paranormais de Lucan. Acomodou-se no amplo assento de couro e fechou a porta. Um segundo depois, Megan e Ray desceram tranqüilamente os degraus para a rua e andaram na direção do carro com o olhar fixo em algum ponto adiante. Ela respirou aliviada ao constatar que, apesar de hipnotizados, ambos estavam ilesos.

Lucan saiu em seguida. Fechou a porta da casa, colocou a baga­gem no porta-mala e ocupou o banco do motorista.

— O que você fez com eles? — Gabrielle perguntou, incerta de querer ouvir a resposta.

— Eu os sugestionei para que se esqueçam de terem vindo aqui esta noite. — Ele introduziu a chave no contato e deu a partida. — Não se recordarão de nada, nem que você esteve no apartamento de Megan depois de ter sido atacada pelo Seguidor.

Gabrielle o encarou com expressão ansiosa.

— Você fará o mesmo comigo?

— Eu gostaria, Gabrielle, mas você não é como esses humanos. Não posso apagar nada do que você viveu. Sua mente é mais pode­rosa que a da maioria das pessoas. Em muitos aspectos, você não é igual à maioria.

— Oh! Como sou afortunada! — ela murmurou com sarcasmo.

— O lugar mais seguro por enquanto é onde possamos protegê-la. Temos um complexo na cidade.

— O quê? Você está me oferecendo o equivalente vampírico ao Programa de Proteção de Testemunhas?

— Eu diria que é um pouco mais que isso. — Ele virou-se para fitá-la. — Infelizmente, não há outra escolha.

Lucan pisou no acelerador e o elegante carro negro deslizou pela rua com um ronco suave. Gabrielle se afundou no assento enquanto a escuridão tragava sua casa. Ela olhou para trás e viu as silhuetas distantes de Megan e Ray dentro do Mustang que se afastava lenta­mente para o lado oposto.

Uma onda de pânico a impulsionou a saltar do carro e correr, de volta à sua vida anterior. Porém, sabia que não havia retrocesso. Tinha de seguir em frente e aceitar a realidade nova e assustadora que a separava de tudo o que sempre acreditara.

Gabrielle não sabia por quanto tempo estava viajando, nem em que direção. Ainda se encontravam na cidade, mas os becos que haviam entrado formavam um labirinto sem solução. Olhou pela janela, vagamente consciente de que se aproximavam do que parecia ser um amplo terreno abandonado.

Lucan parou o carro diante de um imenso portão de ferro. Dois fachos de luz caíram sobre eles, vindos dos holofotes fixados na cerca de alta voltagem. Gabrielle piscou, cega pela súbita luz, e percebeu que o pesado portão começavam a se abrir.

— Isso tudo é seu? — Ela virou-se para se dirigir a Lucan pela primeira vez desde que tinham saído da casa dela. — Estive aqui antes. Fotografei este portão.

— Esta propriedade faz parte do complexo. Pertence à Raça — Lucan explicou ao avançarem por um caminho sinuoso circundado por árvores de ambos os lados.

Apesar da escuridão, Gabrielle percebeu o luxo do terreno bem cuidado e da fachada suntuosa da mansão escondida pelo arvoredo. Duas esculturas flanqueavam as portas negras laqueadas do impres­sionante pórtico da entrada principal, sobre o qual subiam quatro elegantes andares.

Algumas janelas estavam iluminadas pela luz do interior, mas Gabrielle hesitou em qualificar o ambiente de acolhedor.

A mansão se levantava ameaçadora como uma sentinela, séria, com gárgulas adornando o beiral do telhado e dos balcões.

Lucan passou pela entrada e seguiu para a garagem, atrás da cons­trução. A imensa porta se abriu, e ele conduziu o carro para dentro e desligou o motor. Quando os dois saíram, duas fileiras de lâmpadas se acenderam automaticamente e iluminaram uma frota de veículos de última geração.

Boquiaberta, Gabrielle olhou ao redor. Entre o Sedan, que custava quase tanto quanto sua modesta casa em Beacon Híll, e a coleção de carros e motocicletas, havia milhões de dólares naquela garagem.

— Por aqui — Lucan indicou a porta dos fundos.

Ele segurou a mala com as fotografias numa das mãos e pousou a outra no ombro de Gabrielle e a conduziu para o luxuoso elevador.

— Como você conseguiu tudo isso? — ela quis saber, assombrada com o luxo que a rodeava.

— Alguns membros da nação dos vampiros estão aqui há muito tempo. Aprendemos a lidar com o dinheiro de forma inteligente.

— Compreendo... — ela murmurou, enquanto se iniciava o movi­mento suave e rápido para baixo. — E como consegue esconder do público? Quero dizer, vocês pagam taxas e impostos?

— As pessoas não podem atravessar nosso sistema de segurança, mesmo que tentem. Todo o perímetro da propriedade está protegido com uma corrente elétrica de quatorze mil volts. Pagamos os impos­tos através de empresas de fachada, é obvio. Nossas propriedades ao redor do mundo estão registradas em nome de fundações privadas. Tudo o que a Raça faz é legal e transparente.

— Legal e transparente... — Ela riu, nervosa. — Exceto pela ingestão de sangue humano e a linhagem extraterrestre.

Lucan a olhou com expressão séria, mas Gabrielle sentiu certo alívio ao ver a sombra de um sorriso curvar os lábios sensuais.

— Eu ficarei com as cópias.

Os penetrantes olhos claros a fitaram, enquanto Gabrielle retirava os CDs da bolsa para depositá-los na mão dele.

Finalmente, o elevador parou e a porta se abriu para um hall de paredes de vidro reforçadas com grades de aço inoxidável. O piso, revestido de mármore branco, mostrava uma série de símbolos geométricos e de desenhos que se entrelaçavam. Gabrielle notou a semelhança com as tatuagens que vira no corpo de Lucan.

Mais à frente, um corredor amplo serpenteava para as profun­dezas da construção. Lucan avançou alguns passos e se virou para Gabrielle ao se dar conta de que ela não o seguia.

— Você está segura aqui.

Ela deu alguns passos hesitantes e seguiu ao lado de Lucan com a respiração suspensa. Observou-o pressionar a palma da mão sobre um leitor digital no painel ao lado da porta de vidro, que se abriu pron­tamente. Uma lufada de ar frio a golpeou, e ela ouviu o burburinho abafado de vozes masculinas que provinham de algum ponto no final da sala.

Lucan a conduziu para o interior iluminado com passos largos e decididos. Deteve-se um momento diante de outra porta de vidro e Gabrielle viu o que parecia ser uma espécie de sala de controle, com inúmeros computadores e monitores de última geração alinhados na bancada que ocupava parte da parede. Leitores digitais emitiam uma série de ruídos em outra bancada repleta de equipamentos eletrô­nicos. No centro de tudo isso, sentado em uma cadeira giratória como um maestro, encontrava-se um jovem de cabelos loiros mal cortados e desalinhados.

Ele levantou o rosto e os brilhantes olhos azuis expressaram uma surpresa agradável assim que a porta se abriu e Lucan entrou com Gabrielle.

— Gideon — Lucan saudou, inclinando a cabeça.

Aquele era o sócio que Lucan mencionara, Gabrielle concluiu, apreciando o sorriso fácil e o comportamento amigável. O rapaz se levantou e saudou Lucan com um gesto de cabeça e a fitou com interesse.

Gideon era alto e magro, simpático e charmoso. Ela jamais pen­saria que fosse vampiro, embora não tivesse muita experiência nessa área.

— Ele é...?

— Sim — respondeu Lucan, antes que ela pudesse lhe sussurrar o resto da pergunta. — Gideon também é da Raça.

Ela sentiu o olhar dos outros ocupantes da sala cravado em suas costas, e ao se voltar, ela deparou-se com três homens gigantescos às suas costas. Um deles, elegantemente vestido com calça negra e camisa de seda, ocupava uma poltrona de couro. O homem sentado ao lado dele trajava roupas pretas de couro e tinha os largos braços cru­zados sobre o peito. O último, de calça jeans e camiseta branca, estava diante de uma mesa, ocupado em limpar as partes de uma complicada arma de fogo.

— Dante, Nikolai e Rio — Lucan apresentou-os, e colocou a mão sobre o ombro de Gabrielle.

Atraiu-a para mais perto, num gesto possessivo que pareciam dizer aos três machos que pertencia a ele.

— Apresento-lhes Gabrielle Maxwell.

Deixou a afirmação no ar sem oferecer nenhuma explicação adi­cional. Então, Gabrielle percebeu que ele não era mais um dos guer­reiros. Era o líder.

— Estou feliz em conhecê-la — Gideon foi o primeiro a falar, e ela percebeu o ligeiro sotaque inglês. — Você foi genial ao tirar aque­las fotografias durante o ataque que presenciou. Ajudaram muito.

Ele estendeu a mão para cumprimentá-la, e Gabrielle se surpreen­deu com a recepção afável e normal.

Porém, lembrou-se de que Lucan também lhe parecera normal a princípio. Ao menos, não havia mentido ao lhe dizer que levara as fotos ao laboratório para que fossem analisadas. Ele se esquecera de lhe dizer apenas que se tratava de um laboratório de vampiros, e não o da polícia de Boston.

Uma campainha aguda soou na mesa de computadores, e Gideon voltou correndo para a bancada com os monitores.

— Venham ver isso! — gritou, excitado. — Especialmente você, Niko.

Lucan e os outros se reuniram ao redor do monitor que emprestava brilho azulado ao rosto de Gideon. Gabrielle, que se sentiu excluída, também se aproximou devagar.

— Consegui acessar o material das câmeras de segurança da esta­ção — Gideon anunciou com orgulho. — Se conseguir imagens da noite em que Conlan neutralizou a bomba, conseguiremos chegar ao bastardo que o matou.

Gabrielle observou em silêncio enquanto várias telas de computa­dores se encheram de imagens do circuito fechado das plataformas de trem da cidade. As imagens desfilavam rapidamente, e Gideon arras­tou a cadeira ao longo das telas, detendo-se em cada uma para digitar rapidamente no teclado de cada computador.

— Aí está! — declarou, afastando-se para permitir que os outros vissem. — Essas imagens da plataforma começam três minutos antes do confronto.

Lucan e os demais se aproximaram enquanto as imagens mostra­vam o fluxo de passageiros entrando e saindo de um trem. Gabrielle viu o rosto agora familiar de Nikolai na tela do monitor. Ele e seu companheiro, um homem enorme e ameaçador, seguiam um rapaz.

— Oh, meu Deus! — exclamou, assustada. — Eu o conheço. Cinco pares de olhos se voltaram para ela.

— Quero dizer, não conheço pessoalmente, mas já vi esse homem. O nome dele é Brent. Ao menos, foi o que disse à minha amiga Kendra. Eles se conheceram na boate, na mesma noite em que presenciei o assassinato. Depois disso, passaram a se encontrar com freqüência.

— Está segura disso? — Lucan quis saber.

— Sim. É ele mesmo. Tenho certeza.

Dante praguejou em voz baixa.

— É um Corrompido — disse Lucan. — Ou melhor, era. Há alguns dias, ele estava na estação de trem com um cinturão de explo­sivos. Um de nossos melhores guerreiros morreu com ele. Niko estava lá também, mas, felizmente, saiu ileso,

— Oh, Deus! Está se referindo à explosão que foi noticiada em todos os jornais? — Ela olhou para Nikolai, que mantinha a mandíbula apertada com força. — Eu sinto muito.

— Se Conlan não tivesse se jogado sobre ele, eu não estaria aqui.

Gabrielle se comoveu com a perda de Lucan e seus homens, mas um novo temor se aninhou em seu peito ao saber que Brent era um Corrompido. E se Kendra estivesse ferida?

— Tenho de telefonar para minha amiga — ela disse para nin­guém em particular, procurando o telefone móvel na bolsa.

— Não. — Lucan segurou-a pelo pulso com firmeza. — Sinto muito, Gabrielle. Não posso permitir.

— Ela é minha amiga, Lucan. Desculpe, mas você não vai me deter.

Antes que pudesse apertar o botão da memória e chamar Kendra, o aparelho voou das mãos dela e surgiu na mão de Lucan. Ele o fechou e guardou no bolso da jaqueta.

— Gideon, peça a Savannah que acompanhe Gabrielle a aposen­tos mais cômodos enquanto nós terminamos aqui — ele ordenou, sem desviar o olhar. — Diga que prepare alguma coisa para comer.

— Devolva meu telefone! — Gabrielle exigiu, sem fazer caso da surpresa dos demais ao verem que ela desafiava o líder do grupo. — Tenho de saber se Kendra está bem.

Lucan se aproximou e, por um segundo, ela teve medo da rea­ção ao vê-lo estender a mão para tocar-lhe o rosto. Diante de todos, acariciou-lhe a face com ternura e possessividade.

— O bem-estar dela está fora do seu controle. Se esse Corrom­pido não fez mal a ela, como é o mais provável, agora ele já não representa nenhum perigo.

— E se ele fez algo? E se a converteu num desses Seguidores?

— Somente os mais poderosos de nossa estirpe podem criar um Seguidor. Esse imbecil que voou pelos ares seria incapaz de fazer algo assim. Ele era apenas um peão.

Gabrielle recuou, apesar do consolo que a carícia proporcionava.

— E se ele entregou Kendra a alguém que tenha mais poder?

A expressão de Lucan era grave, mas não mostrava nenhuma dúvida. Seu tom foi mais amável do que nunca, o que tornou ainda mais difícil de aceitar o que tinha a dizer.

— Então, você terá de esquecê-la por completo, porque é como se estivesse morta.

 

— Espero que o chá não esteja muito forte. Se quiser leite, posso ir buscar na cozinha.

Gabrielle sorriu, sentindo-se verdadeiramente acolhida pela hospitalidade da companheira de Gideon.

— O chá está perfeito. Obrigada.

Surpreendeu-se ao saber que havia outras mulheres no complexo e simpatizou de imediato com a bela Savannah. Parecia haver uma espécie de cumplicidade entre elas.

Sentia-se tão relaxada quanto possível, considerando o fato de que estava rodeada de vampiros armados em um buraco de alta segurança a várias centenas de metros abaixo do solo. Na verdade, sentada na larga mesa de cerejeira de uma elegante sala de estar, enquanto toma­va o exótico chá servido numa delicada xícara de porcelana com a música suave ao fundo, tudo parecia quase irreal.

O apartamento, similar às espaçosas suítes residenciais que a rodeavam, pertencia a Gideon e a Savannah. Eles viviam como um casal normal dentro do complexo, em aposentos confortáveis e luxuosos, rodeados por um suntuoso mobiliário, quantidade inume­rável de livros e belas obras de arte. Tudo era da melhor qualidade e estava impecavelmente cuidado. Se não fosse pela ausência de jane­las, seria perfeito.

— Você está com fome?

Savannah indicou com um gesto de mão uma bandeja de prata repleta de finos biscoitos que se encontrava sobre a mesa, ao lado de outra com deliciosos canapés e molhos aromáticos. Apesar da aparên­cia e do aroma maravilhoso, Gabrielle tinha perdido o apetite por com­pleto da noite anterior, quando viu Lucan abrir a garganta do Seguidor com os dentes e beber o sangue dele como se fosse um raro licor.

— Não, obrigada. Ficarei só com o chá por enquanto.

Ela se surpreendeu por ser capaz de engolir. A bebida quente e saborosa a ajudou a relaxar.

Savannah a observou em silêncio do outro lado da mesa. Os olhos escuros eram amistosos, e ela franzia o cenho com gesto cúmplice. Os cabelo encaracolados, negro e curtos, emprestavam efeito sofistica­do aos traços marcantes. Ela mostrava a mesma atitude aberta e fácil de Gideon, qualidade que Gabrielle valorizou ainda mais depois da atitude dominante de Lucan durante as últimas horas.

— Bem, possivelmente você seja capaz de resistir à tentação — Savannah riu e apanhou um canapé —, mas eu não consigo.

Ela levou o petisco à boca com um gemido de felicidade. Gabrielle percebeu que a observava com indiscrição, mas não pôde evitar.

— Você come comida de verdade? — disse, mais em tom de inter­rogação do que de afirmação.

Savannah assentiu e limpou os lábios com o guardanapo.

— Sim, é óbvio. Uma garota tem de comer.

— Mas eu pensei que... Se você e Gideon... Você não é como ele?

Savannah franziu o cenho e negou com a cabeça.

— Sou humana, como você. Lucan não explicou nada?

— Alguma coisa. — Gabrielle encolheu os ombros. — O suficien­te para que minha cabeça não pare de girar, mas ainda tenho muitas perguntas.

— É claro que sim. Todos têm quando entram em contato pela primeira vez com este mundo novo. — Ela estendeu a mão e apertou a de Gabrielle com simpatia. — Pode me perguntar o que quiser.

A oferta fez com que Gabrielle deslizasse para a ponta do sofá com renovado interesse.

— Há quanto tempo está aqui?

Savannah estreitou os olhos, como se fizesse um rápido cálculo mental.

— Abandonei minha antiga vida em 1974. Foi quando conheci Gideon e nos apaixonamos loucamente.

— Faz mais de trinta anos — Gabrielle murmurou, maravilhada, observando os traços juvenis, a pele escura e radiante e os olhos bri­lhantes da mulher de Gideon. — Não parece ter nem vinte anos!

— Eu estava com dezoito quando Gideon me trouxe para cá. E, enquanto estivermos unidos, ficarei exatamente assim.

— Como é possível, se você é humana e eles não pode nos conver­ter em... no que eles são?

— Sou uma Escolhida — Savannah disse, como se isso explicasse tudo. Ao ver Gabrielle franzir o cenho em confusão, continuou: — Gideon e eu temos um vínculo. O sangue dele me mantém jovem, mas ainda sou humana. Isso nunca vai mudar, nem quando nos uni­mos a um deles como companheira. Nunca teremos presas crescendo das gengivas, nem ansiaremos pelo sangue da maneira que eles fazem para sobreviver.

— Mas você abandonou tudo para ficar com ele?

— Por que não? Passo minha vida com um homem a quem adoro e que me quer da mesma forma. Nós somos saudáveis, felizes, e esta­mos rodeados de iguais, que são nossa família. Além da ameaça dos Corrompidos, não temos nenhuma preocupação aqui. Se tiver sacrifi­cado alguma coisa, isso não é nada comparado com o que tenho com Gideon.

— Você não sente falta da luz do sol?

— Nenhuma de nós está obrigada a permanecer no complexo todo o tempo. Eu passo muito tempo nos jardins. A propriedade é tão gran­de que, quando aqui cheguei, passei três semanas explorando-a.

Gabrielle assentiu, imaginando se demoraria tanto para se fami­liarizar com tudo.

— Nós também vamos à cidade durante o dia, embora não muito freqüentemente. Pedimos tudo o que necessitamos pela internet. — Ela sorriu e ergueu os ombros. — Não me interprete mal, eu adoro ir a cafés e fazer compras como toda mulher, mas aventurar-me fora do complexo sem nossos companheiros sempre implica certo risco. E eles se preocupam quando estamos em algum lugar onde não podem nos proteger. Suponho que as mulheres que vivem nos Darkhaven tenham um pouco mais de liberdade durante o dia do que nós, vincu­ladas aos guerreiros.

— Há mais Escolhidas vivendo aqui?

— Sim, há mais duas. Eva é a companheira de Rio e Danika é uma das pessoas mais doces que conheci. Era a Escolhida de Conlan, um dos membros mais antigos deste complexo. Ele foi assassinado recen­temente, num enfrentamento com um Corrompido.

Gabrielle assentiu com gesto sério.

— Sim, eu soube. Sinto muito.

— Não sei o que será de Danika. Estiveram juntos durante muitos, muitos anos. Conlan era um bom guerreiro, e um companheiro ainda melhor. Não há nada que se possa comparar à união quando há um vínculo de sangue, especialmente enquanto se faz amor.

— Tem razão. O sexo é incrível, não vou negar, mas não tive nenhum vínculo de sangue com Lucan, seja lá o que for.

— Oh... Ele não a mordeu?

— Por Deus, não! — Gabrielle balançou a cabeça com veemên­cia. — Ele sequer tentou provar meu sangue, pelo que sei, e jurou que nunca me fará nenhum mal.

A companheira de Gideon refletiu por um momento e sorriu.

— Lucan nunca desonrou uma promessa.

Gabrielle teve a sensação de que o comentário soava como pêsa­mes, mas não teve tempo de explorar o assunto.

— Venha — sua nova amiga convidou, levantando-se com um sorriso afetuoso. —Vou mostrar-lhe o restante do complexo.

E Gabrielle a seguiu, relutante em admitir que aquele seria seu novo lar.

— Há alguma novidade a respeito dos glifos que vimos naque­le sujeito da Costa Oeste? — Lucan perguntou enquanto atirava a jaqueta sobre a cadeira ao lado de Gideon.

Os dois estavam sozinhos no laboratório. Os outros guerreiros descansavam antes de Lucan ordenar que iniciassem a limpeza notur­na da cidade. A cabeça começava a pulsar, anunciando outra terrível enxaqueca.

— Sinto muito, mas não consegui nada. Parece que ele não está registrado. O banco de dados é enorme, mas está longe de ser perfeito, especialmente quanto aos Gen Um que, assim como você, recusam-se a serem catalogados.

— Droga! — ele exclamou, pressionando as têmporas com as pontas dos dedos.

— Você está bem?

— Não é nada. — Ele não olhou para Gideon, mas notou que o vampiro o estudava com preocupação. — Tenho um presente para você.

— Sério? Ora, não precisava — Gideon disse em tom afetado, voltando à habitual jovialidade.

Lucan entregou-lhe os dois CDs que trouxera da casa de Gabrielle, e o vampiro não perdeu tempo em introduzi-los na porta USB do computador.

— Quero que observe cada uma dessas fotografias e as compare com todas as localizações de Corrompidos que conhecemos.

Gideon abriu uma imagem aleatoriamente e soltou um assovio.

— Este é o abrigo que tomamos no mês passado. — Abriu mais duas imagens e colocou-as lado a lado na tela. — E o armazém que estivemos vigiando durante duas semanas...

Ele passou rapidamente dezenas de imagens, cada vez mais admirado.

— A maioria é de localizações de vampiros, tanto de Corrompidos como da Raça. São todas de Gabrielle?

— Sim. — Lucan fez uma pausa para assinalar uma série de arquivos datados daquela semana. — Abra este grupo.

Gideon obedeceu prontamente, e praguejou ao ver as fotografias.

— Ela esteve nos arredores do asilo? O lugar deve estar repleto de Corrompidos.

Lucan sentiu o estômago se apertar ante a possibilidade de Gabrielle ter sido apanhada.

— Como ela encontrou esses lugares?

— Gabrielle diz que se sentiu atraída por eles. É uma espécie de instinto inato nas Escolhidas, assim como resistir ao controle men­tal de um vampiro e ver nossos movimentos quando nenhum outro mortal é capaz.

— Bem, seja como for, esse tipo de habilidade será de grande ajuda.

— Esqueça. Não vamos envolver Gabrielle mais do que já se envolveu. Ela não faz parte disso, e não vou expô-la a mais perigos. Ademais, ela não ficará aqui por muito tempo.

— Você não acha que podemos protegê-la melhor do que ninguém?

— Não vou permitir que fique na linha de fogo quando uma guerra está prestes a estourar. Que tipo de vida seria?

Gideon encolheu os ombros.

— Nunca ouvi Savannah ou Eva reclamarem.

— Você se esqueceu de mencionar Danika — Lucan acrescen­tou em tom seco. — Não quero que Gabrielle esteja perto dessa vio­lência. Ela vai para um dos Darkhaven logo que possível, onde os Corrompidos não possam encontrá-la nunca.

E onde também estivesse a salvo dele, Lucan acrescentou para si. Gabrielle tinha de ficar longe da besta que se retorcia dentro dele. Sua sede de sangue finalmente o vencia, e ele teria uma eternidade para viver sob o jugo cruel da culpa se sua selvageria atingisse a Escolhida que faria um homem feliz... Felicidade não estava destinada a ele.

 

Gabrielle percorreu o fascinante complexo dos guerreiros e conhe­ceu as dependências luxuosas usadas como residências privativas, áreas comuns, uma sala de treinamento equipada com um incrível arsenal, sala de banquetes, uma espécie de capela e inúmeras salas secretas.

Foi apresentada a Eva, e encantou-se com a jovem vivaz, amigá­vel e bela. A Escolhida de Rio insistiu em saber tudo a respeito dela, com curiosidade incansável.

O agradável encontro foi interrompido pela chegada de Rio, a quem Eva se dedicou por inteiro.

Savannah levou Gabrielle a outras áreas da sede, e ela se impres­sionou com o tamanho e eficiência das instalações. A idéia de que vampiros viviam em cavernas úmidas e sombrias parecia piada depois do passeio informal. Os guerreiros e suas companheiras viviam rodeados da mais avançada tecnologia e usufruíam todos os luxos que pudessem desejar.

Gabrielle ficou particularmente encantada com a sala em que se encontravam no momento. Estantes polidas de madeira escura pre­enchiam as paredes, repletas de milhares de volumes. A maioria mos­trava encadernação luxuosa, com livros que representavam relíquias de literatura de todos os tempos.

— Meu Deus! Nunca estive num lugar como esse! — ela excla­mou, maravilhada.

— Você gostou? — Savannah sorriu, apoiando-se na escrivaninha de madeira entalhada no centro do aposento.

Gabrielle assentiu, ocupada em estudar o ambiente. A luxuosa tapeçaria que cobria a parede dos fundos mostrava uma cena noturna com um imponente cavalheiro vestido de negro sobre um cavalo alti­vo. Os cabelos de ébano esvoaçavam ao vento, e ele erguia a lança ensangüentada. Ao fundo, um castelo em chamas se erigia no topo de uma colina.

O bordado intrincado e preciso deixava ver os penetrantes olhos acinzentados do cavalheiro. O sorriso cínico denunciava algo familiar.

— Oh! Não me diga que ele é...? Savannah respondeu com uma risada divertida.

— O próprio. Ele não é maravilhoso?

— Mas essa tapeçaria deve ter no mínimo duzentos anos... — Ela fitou Savannah com expressão confusa. — Lucan é tão velho assim?

— Querida, Lucan tem cerca de nove séculos.

— Nove séculos? Você quer dizer, novecentos anos? — Gabrielle cobriu a boca com as mãos e riu quase com histeria do absurdo da idéia. — Na primeira vez que o vi, imaginei-o sobre um cavalo, bramindo uma espada à frente de um exército pronto para a batalha. Agora, eu sei o motivo.

Savannah a fitava pensativa, com à cabeça inclinada.

— Eu acho que você foi uma surpresa para ele.

— Eu? O que você quer dizer?

— Lucan a trouxe para a sede. Ele nunca trouxe ninguém desde que o conheço.

— Bem, ele me trouxe para minha própria proteção, pois os Corrompidos estão atrás de mim. Deus, eu não queria acreditar, mas é verdade.

— Infelizmente, querida. — Savannah sorriu com simpatia.

— Eu vi Lucan matar na noite passada. Foi para me proteger, eu sei, mas nunca me esquecerei do que vi. Foi horrível. — Um arre­pio serpenteou pela coluna de Gabrielle ao recordar a cena no parque infantil. — Ele rasgou a garganta do homem e alimentou-se como uma espécie de...

— Vampiro — Savannah completou com suavidade, sem acusa­ção no tom de voz. — É o que são, Gabrielle. Eles nasceram assim. Não é uma maldição ou uma doença, e sim, a maneira que vivem, E os vampiros nem sempre matam para se alimentar. Na verdade, isso é raro, pelo menos entre a Raça. Os que têm vínculos de sangue, como Gideon e Rio, alimentam-se apenas do sangue de suas Escolhidas.

— Você faz tudo parecer tão normal — Gabrielle murmurou, assustada.

— Querida, o amor nos leva a aceitar o impensável. — Savannah contornou a mesa e parou ao lado de Gabrielle. — Eu tenho de ver Danika, mas você pode ficar aqui, se quiser.

— Claro. Eu adoraria explorar melhor a biblioteca. Por favor, não se preocupe comigo.

— Voltarei logo, e trataremos de preparar seus aposentos.

— Obrigada.

Assim que Savannah se foi, Gabrielle percebeu que não sabia por onde começar. Na verdade, ela não tinha a menor pressa em sair daquele inesperado Paraíso.

Parou no centro da sala e passeou o olhar das estantes para a pin­tura medieval que representava Lucan Thorne. Decidiu fazer ambas as coisas. Retirou o que parecia ser a primeira edição de um volume de poesia francesa e sentou-se numa das poltronas de leitura diante da tapeçaria. Deixou o livro sobre a delicada mesa antiga e estudou a imagem de Lucan bordada com precisão com fios de seda. Ela levantou a mão, mas não se atreveu a tocar na peça valiosa.

— Meu Deus! — murmurou, impressionada ao captar a incrível realidade desse outro mundo.

Durante séculos, a espécie dos vampiros conviviam com seres humanos. Seu próprio mundo pareceu pequeno à luz desse novo conhecimento. Tudo aquilo que ela acreditava saber sobre a vida fora eclipsado em questão de horas.

Imersa nos pensamentos, Gabrielle se sobressaltou quando o ar pareceu se mover ao seu redor. Um súbito alarme a deixou em alerta. Voltou-se rapidamente e quase gritou ao se deparar com Lucan atrás dela, na entrada da biblioteca. Os cabelos eram mais curtos que os do cavalheiro na tapeçaria, os olhos revelavam expressão mais serena, mas era o mesmo homem. Porém, muito mais atraente em pessoa. Mesmo imóvel, ele irradiava poder inato.

O coração de Gabrielle se acelerou com uma mescla de medo e expectativa assim que ele se aproximou. Pela primeira vez, viu-o como de fato era: a força que não tinha idade, a beleza selvagem, o poder incomensurável. Lucan representava um enigma tão sedutor quanto perigoso.

— O que está fazendo aqui? — Ele parou perto dela e a fitou com expressão atenta.

— Nada — ela respondeu, rapidamente. — Bem, para ser sin­cera, não resisti à tentação de explorar essa maravilhosa biblioteca. Savannah e eu tomamos chá e ela me mostrou o complexo. E conheci Eva também. As duas são muito agradáveis.

— Fico feliz que você esteja à vontade — ele comentou com fisionomia inexpressiva.

— Esse lugar é impressionante! Quanto tempo faz que você e outros guerreiros vivem aqui?

Gabrielle sabia que ele não estava interessado naquele tipo de assunto, mas respondeu mesmo assim.

— Gideon e eu fundamos a sede em 1898 como quartel geral para a caça a Corrompidos que tinham se instalado na região. Recrutamos um grupo dos melhores guerreiros para lutarem conosco. Dante e Conlan foram os primeiros. Nikolai e Rio se uniram, a nós mais tarde. E por último, Tegan.

— Tegan? Savannah não mencionou nada a respeito. Ele não estava aqui quando cheguei?

— Não.

Ao ver que ele não estava disposto a fornecer mais informações, a curiosidade de Gabrielle se aguçou.

— Ele foi atacado pelos Corrompidos, como Conlan?

— Não. Não é isso.

Lucan fixou um ponto invisível na parede, como se preferisse não tocar naquele assunto. O olhar voltou a pousar em Gabrielle. Estava tão perto que ela percebia o movimento do peito ao respirar, os mús­culos que se expandiam sob a camisa preta de caimento impecável, o calor que o corpo vibrante irradiava.

Atrás dele, o guerreiro da tapeçaria exibia uma expressão deter­minada que Gabrielle distinguiu a sombra da mesma determinação em Lucan, enquanto o olhar dele percorria todo seu corpo, dos pés à cabeça.

— Esta tapeçaria é incrível.

— É muito antiga. — O olhar penetrante pousou no rosto de Gabrielle. — Mas suponho que você já saiba disso. Mandei fazê-la meses depois da morte dos meus pais. O castelo ao fundo pertencia a meu pai. Eu o transformei em cinzas depois de cortar-lhe a cabeça por ter matado minha mãe num ataque bárbaro motivado pela sede de sangue.

— Meu Deus, Lucan... Eu... — Gabrielle ficou sem fala, chocada demais para encontrar as palavras.

— Encontrei-a numa poça de sangue no vestíbulo. Tinha a gar­ganta destroçada. Meu pai sequer tentou se defender. Ele sabia o que havia feito. Amava-a, mas o instinto foi mais forte. Não podia negar sua natureza. — Lucan encolheu os ombros. — Fiz-lhe um favor ao terminar com a existência dele.

Gabrielle observou a expressão fria, impressionada tanto pelo teor do que acabara de ouvir como pelo tom displicente. Todo o roman­tismo que projetara na tapeçaria um segundo atrás desapareceu sob o peso da tragédia que representava.

— Por que você quis uma peça tão bela para representar essa ter­rível tragédia?

— Terrível? — Ele negou com a cabeça. — Minha vida começou nessa noite. Eu nunca tive direção até derramar o sangue do meu pai e perceber que tinha de agir, por mim mesmo e pela minha estirpe. Nessa noite, declarei guerra aos vampiros da classe do meu pai e a todos os membros da Raça que os serviam como Corrompidos.

— Isso significa que você luta há muito tempo.

— Teria de ter começado muito antes, e nunca vou parar. É para isso que vivo.

— Algum dia você vencerá essa batalha, Lucan. Então, toda a violência terá fim.

— Você acredita nisso? — Ele sorriu com ironia. — Em que se baseia para ter tanta certeza? Em seus poucos vinte e sete anos de vida?

— Não. Apóio-me na esperança, Lucan. Tenho de acreditar que o bem sempre prevalecerá. Você não? Não é por isso que lutam? Você e os demais guerreiros não têm esperança de que podem melhorar o mundo?

A gargalhada cínica estremeceu as paredes. Ainda rindo, Lucan a encarou.

— Mato Corrompidos porque tenho prazer nisso. Sou bom em matar. Quanto aos outros, nunca perguntei por que se uniram à causa.

— O que está havendo com você, Lucan? — Gabrielle susten­tou o contato visual sem se abalar. — Está agindo de forma diferente aqui. Você não parece ser o mesmo homem que conheci.

— Se ainda não percebeu, agora você está em meus domínios. As coisas são diferentes aqui.

A crueldade a desconcertou, mas foi o olhar mordaz que a irritou. A ira pura e fria emanava dele em ondas quase palpáveis, como se desejasse destruir algo com suas próprias mãos.

Lucan passou por ela em silêncio, dirigindo-se à porta fechada perto de uma das estantes. A folha se abriu sem que ele a tocasse, revelando o interior tão escuro que Gabrielle pensou ser um armário. Ele entrou no espaço tenebroso e ela ouviu os passos se afastando sobre o piso de madeira do que devia ser uma passagem secreta do complexo.

Gabrielle se levantou da poltrona como se acabasse de se livrar de uma brutal tormenta. Exalou com força, aliviada. Seria melhor deixá-lo partir. Na verdade, sentia-se afortunada por estar longe do caminho de Lucan naquele momento. Estava claro que ele não deseja­va sua companhia, e a recíproca era verdadeira.

Porém, Lucan não estava bem, e ela tinha de saber o que estava acontecendo.

Gabrielle engoliu o medo e o seguiu. No nicho atrás da porta não havia nenhuma luz. Ela se orientou pelo som das botas de Lucan na escuridão.

— Lucan! Está muito escuro aqui. Espere por mim.

O ritmo dos passos não se alterou. Ao contrário, pareciam ainda mais apressados, como se Lucan estivesse ansioso para se livrar dela.

Gabrielle avançou pelo corredor da melhor maneira que pôde, com os braços estendidos à frente do corpo para se guiar pelas curvas fechadas da passagem.

— Aonde você vai? Lucan! Por favor, responda!

— Tenho de sair — a voz soou de algum ponto à frente.

— Para quê?

— Não me siga, Gabrielle. — Ouviu-se um ferrolho se abrir no mesmo ponto de onde provinha a voz. — Tenho um trabalho a fazer. Preciso sair daqui.

— O dia está perto de amanhecer. Seria melhor se você descan­sasse. Não me parece que esteja bem, Lucan.

— Preciso lutar.

Os passos se detiveram, e ela ouviu o farfalhar macio na escuridão, como se Lucan estivesse se despindo. Gabrielle continuou em fren­te, tentando se orientar nas trevas intermináveis. Atingiu uma espécie de sala com uma parede à direita. Utilizou-a como guia, avançando com passos cuidadosos.

— Lucan? Você está bem?

— Preciso me alimentar. — A voz soou grave e letal, como uma ameaça inequívoca.

— Mas você já se alimentou — ela o lembrou. — Não foi sufi­ciente quando matou o Seguidor? Achei ter ouvido que você precisava se alimentar uma vez a cada quatro dias.

— Você se considera perita no assunto, não é? Estou impressio­nado!

As botas caíram no chão com um golpe descuidado. Ela deu mais alguns passos hesitantes, receando pela reação de Lucan.

— Podemos acender alguma luz? Não posso vê-lo...

— Sem luzes — ele cortou com secura. — Eu enxergo perfeita­mente bem no escuro. Cheiro seu medo.

Sim, Gabrielle estava em pânico, mas não por ela mesma. Tinha medo por Lucan. Ele estava fora de si. O ar que a rodeava parecia pulsar de pura fúria, e chegava até ela através da escuridão, como uma força invisível que a empurrava para trás.

— Fiz algo de errado, Lucan? Não devia estar aqui, na sede? Ouça, se tiver se arrependido por me trazer para cá, saiba que não vou recriminá-lo. Para ser honesta, não estou segura de que foi uma boa idéia ter vindo.

— Agora não há nenhum outro lugar para você.

— Quero voltar para casa.

Gabrielle sentiu a onda de calor envolvê-la por completo, como se ele a fulminasse com o olhar.

— Você não pode voltar. Ficará na sede até que eu diga o contrário.

— Está me dando uma ordem? — ela ousou desafiar, irritada com a prepotência dele.

— Exatamente.

A confirmação, embora desnecessária, acendeu a ira de Gabrielle.

— Quero meu telefone celular, Lucan. Tenho de falar com meus amigos e assegurar-me de que estão bem. Então, chamarei um táxi e irei para casa, onde tentarei encontrar algum sentido para essa confu­são em que se transformou minha vida.

— Esqueça. — Gabrielle ouviu o clique metálico de uma arma e o ruído abafado de uma gaveta que se abria. — Agora está em meu mundo. Aqui, sou eu quem dita as leis. E você está sob meu amparo até que eu considere seguro libertá-la.

Ela mordeu os lábios para não usar todos os palavrões que tinha em seu repertório.

— Escute aqui, Lucan Thorne, essa atitude benevolente de chefe pode ter funcionado no passado, mas não ouse pensar que vai funcio­nar comigo!

O rugido raivoso que vibrou no ar foi como uma chicotada que arrepiou a espinha de Gabrielle.

— Você não sobreviveria uma noite lá fora sem mim. Se não fosse por mim, não teria sobrevivido a seu primeiro maldito ano de vida.

Em pé, ali, na escuridão, Gabrielle sentiu o chão sumir sob os pés.

— O que você disse? — Ela obteve apenas o longo silêncio como resposta. — O que quer dizer com isso, Lucan? Por que eu não teria sobrevivido?

Ele praguejou por entre os dentes apertados.

— Eu estava lá, Gabrielle. Vinte e sete anos atrás, eu vi quando a jovem mãe indefesa foi atacada por um Corrompido na estação de ônibus de Boston.

— Minha mãe! — murmurou ela com o coração apertado. Esten­deu a mão para trás em busca da parede e se apoiou para não cair.

— Ela já tinha sido mordida. O Corrompido estava sugando todo o sangue dela quando o encontrei.

— Você... — Gabrielle balançou a cabeça, sem acreditar no que estava ouvindo. — Você nos salvou?

— Dei à sua mãe a oportunidade de se afastar. Porém, estava mui­to debilitada. Nada podia salvá-la, e mesmo assim, ela queria salvar o bebê. Conseguiu fugir carregando você nos braços.

— Não! Ela não se preocupava comigo. Minha mãe me abando­nou numa lata de lixo — murmurou Gabrielle, com a garganta aper­tada pela revolta.

— A mordida a deixou em estado de transe. É admirável que ela tenha conseguido agir, desorientada como estava. A única opção que encontrou para ocultar você do perigo foi aquele latão de lixo. Sua mãe acreditou que estava deixando-a num lugar seguro.

Lucan passou a mãos pelos cabelos num gesto tenso. Durante quanto tempo ele se perguntara sobre a filha daquela pobre mulher? Quantos cenários havia inventado para explicar a si mesmo o que poderia ter acontecido naquela noite em que um inocente bebê partici­para da cena de horror indescritível até mesmo para um guerreiro?

— Como ela se chamava? — A voz de Gabrielle soou como um gemido.

— Não sei. Não me interessava. Ela era somente outra vítima dos Corrompidos. Eu não tinha pensado em nada disso até você mencio­nar sua mãe.

— E quanto a mim? — perguntou ela, tentando reaver o equilíbrio emocional. — Quando você foi à minha casa pela primeira vez depois do assassinato, sabia que eu era o bebê a quem tinha salvado?

Ele emitiu uma gargalhada seca.

— Não tinha a menor idéia. Fui até você porque captei seu aroma de jasmim fora da boate e precisava saber se seu sangue seria tão doce quanto seu cheiro.

As palavras despertaram a lembrança de todo o prazer que Lucan lhe proporcionara. Agora, Gabrielle questionava como seria se a mor­desse enquanto a penetrava. Para sua surpresa, deu-se conta de que era muito mais que curiosidade o que sentia.

— Mas não o fez. Você não...

— E não o farei — Lucan afirmou com voz entrecortada. Gabrielle ouviu outra imprecação, dessa vez, num lamento doloroso. — Nunca teria tocado em você se soubesse...

— Soubesse o quê? — ela insistiu, aflita.

— Esqueça. Minha cabeça dói muito para falar. Vá embora. Deixe-me só.

Gabrielle não moveu um só músculo, nem mesmo quando ouviu os passos macios dos pés descalços e outro grunhido grave e animalesco.

— Lucan? Está tudo bem?

— Estou bem. Preciso apenas de... Maldição! —Agora, respirava com maior dificuldade, ofegante e exausto. — Vá procurar Savannah. Preciso ficar... sozinho.

O corpo pesado caiu no tapete do chão com um golpe surdo. Ele inalou com força.

— De jeito nenhum! Não vou deixá-lo sozinho, Lucan. Você pre­cisa de ajuda. E não posso continuar falando com você no escuro. — Gabrielle tateou a parede procurando pelo interruptor de luz. — Não encontro nenhum...

Os dedos esbarraram na saliência discreta e ela acendeu a lâmpada.

— Meu Deus!

Lucan estava dobrado sobre si, caído numa cama. Vestido apenas com a calça, ele se retorcia vitimado por uma dor extrema. As tatua­gens do torso e das costas passavam do vermelho-púrpura profundo ao negro a cada espasmo.

Gabrielle correu para perto e se ajoelhou ao lado da cama. O cor­po dele se contraiu violentamente, fazendo-o se encolher como um novelo.

— Lucan! O que está acontecendo?

— Vá — ele gemeu quando ela tentou tocá-lo, retraindo-se como um animal ferido. — Vá! Não é... assunto seu.

— Droga, Lucan! Entenda de uma vez por todas: eu não vou dei­xá-lo sozinho. — Ela prendeu a respiração ao vê-lo convulsionar, e tentou dominar o pânico. — O que está acontecendo? Diga-me o que tenho de fazer!

Ele se virou de costas como se mãos invisíveis o guiassem. Os tendões e veias do pescoço saltavam como cabos tensionados. O esgar de dor deixava a descoberto as afiadas presas brancas.

— Devo procurar a alguém? Quer que eu vá chamar Gideon?

— Não! Não... Não pode dizer... a ninguém. Entendeu? A ninguém...

Ele levantou os olhos e Gabrielle viu que as pupilas não passavam de finas raias negras rodeadas por uma brilhante cor âmbar. O olhar feroz fez acelerar o pulso. Lucan estremeceu e apertou os olhos com força.

— Passará. Sempre passa...

Para demonstrá-lo, depois de um momento, ele tentou se erguer. Os movimentos eram torpes, mas o grunhido que emitiu quando Gabrielle tentou ajudar a convenceu de que seria melhor se afastar.

Num esforço sobre-humano, Lucan se levantou e apoiou as cos­tas na cabeceira da cama. Ainda ofegava, e o corpo estava tenso e pesado.

— Posso fazer alguma coisa?

— Sim. Vá embora. — Lucan a fitou com angústia. — Só... mantenha-se longe de mim.

Ela não se moveu, e atreveu-se a tocar-lhe ligeiramente o ombro.

— Você está ardendo em febre.

Lucan não disse nada, e ela suspeitou de que ele não seria capaz de pronunciar nenhuma palavra agora, que toda a energia estava sen­do usada para suportar a dor. Ele dissera que precisava se alimentar, mas aquela crise parecia ser algo mais profundo do que fome. Mostrava um nível de sofrimento que ela nunca vira.

Sede de sangue...

Aquele era o vício que Lucan mencionara acerca dos Corrompidos, e que os distinguia dos membros da Raça. Ao fitá-la com o coração apertado, ponderou como devia ser difícil satisfazer a sede que também poderia destruí-lo.

— Você ficará bem — disse com suavidade, enquanto acariciava os cabelos escuros. — Relaxe. Deixe-me cuidar de você, Lucan.

Ele estava abrigado à sombra fresca e uma suave brisa acaricia­va seus cabelos. Não queria despertar desse sono profundo e sem pesadelos. Havia muito tempo que não encontrava tamanha paz. Na verdade, nunca dessa maneira. Queria ficar ali e dormir cem anos.

Mas o ligeiro aroma de jasmim que flutuava perto dele o fez des­pertar. Inalou o doce perfume com força para encher os pulmões, desfrutando-o em toda sua plenitude. Ergueu as pálpebras pesadas e viu os belos olhos castanhos que lhe devolviam o olhar.

— Está se sentindo melhor?

A verdade era que Lucan se sentia infinitamente melhor. A aguda dor de cabeça desaparecera, assim como a torturante sensação de que sua pele estava sendo arrancada. A dor no abdômen que o fizera se retorcer reduzira-se a um insignificante incômodo.

Ele tentou dizer que estava bem, mas a voz saiu como um grasnido agudo. Limpou a garganta e se esforçou em pronunciar um som inteligível.

— Estou bem.

Gabrielle estava sentada na cama ao seu lado e mantinha a cabe­ça dele em seu regaço. Com suavidade, banhava-lhe a testa com um pano úmido, enquanto acariciava-lhe os cabelos com dedos suaves e cuidadosos. A sensação era incrivelmente agradável.

— Você ficou muito mal. Estava preocupada com você.

Ele gemeu ao recordar-se o que tinha acontecido. A fúria do ataque o prostrara, reduzindo-o a uma débil bola de dor. E ela presenciara tudo.

Lucan desejou morrer por ter permitido que alguém o visse naquelas condições, especialmente Gabrielle. A humilhação por sua própria debilidade foi um duro golpe, mas o repentino pânico ao pen­sar no que poderia ter feito o obrigou a se recompor e despertar por completo.

— Deus, Gabrielle! Eu... Eu fiz algum mal a você?

— Não. — Ela o tocou no rosto, sem demonstrar o menor vestígio de medo no olhar ou no gesto. — Estou bem. Você não me fez mal algum, Lucan.

Somente então ele percebeu que as curvas graciosas estavam envoltas em sua camisa.

— Oh, eu vesti sua camisa quando Dante veio procurá-lo. Disse-lhe que estava na cama, dormindo. — Ela ruborizou e abaixou o rosto. — Achei que, assim, ele se sentiria menos inclinado a fazer perguntas quando abri a porta.

Lucan apoiou as costas na cama e a olhou com o cenho franzido.

— Você mentiu por mim.

— Parecia ser muito importante para você que ninguém o visse... como estava.

Ele a fitou ali, sentada, confiante e segura, como se o fato de pre­senciar sua crise fosse a coisa mais natural do mundo. A admiração por aquela mulher cresceu ainda mais. Qualquer pessoa que tivesse visto o monstro em que ele se transformara teria cravado um punhal em seu coração, e teria agido corretamente. Mas ela não tivera medo quando ele próprio enfrentara um de seus piores ataques. Gabrielle ficara com ele ó tempo todo, cuidando, protegendo-o.

O peito de Lucan se encheu de uma profunda gratidão. Ele nun­ca experimentara nada parecido. Jamais confiara em alguém dessa maneira. Sabia que qualquer um de seus irmãos o apoiava na batalha, da mesma forma que fazia com eles, mas aquilo era diferente. Alguém cuidara dele e o protegera quando estava absolutamente vulnerá­vel, mesmo tendo se comportado como um bárbaro... Mesmo tendo permitindo que ela visse a besta que realmente era.

Gabrielle ficara do seu lado, apesar de tudo isso.

Ele não tinha as palavras certas para agradecer por algo tão pro­fundamente generoso. Em vez disso, inclinou-se e a beijou com toda a suavidade que pôde, com toda a reverência que nunca seria capaz de expressar em palavras.

— Tenho de me vestir — disse, gemendo ao dar-se conta de que tinha de deixá-la. — Estou melhor agora. Tenho de ir.

— Ir aonde?

— Acabar com mais alguns Corrompidos. Não posso deixar que outros façam meu trabalho.

Gabrielle se aproximou e pousou a mão no antebraço dele.

— Lucan, são dez horas da manhã. Lá fora é dia.

Ele girou a cabeça para olhar o relógio sobre o criado-mudo e viu que ela tinha razão.

— Dormi a noite toda? Dante vai me dar uma surra por isso! Os lábios do Gabrielle desenharam um sorriso sensual.

— Duvido. Na verdade, ele acha que você estava ocupado comigo durante toda a noite, lembra-se?

Uma onda de excitação despertou Lucan por completo. Gabrielle estava sentada sobre as pernas e a camisa com os botões abertos ofe­recia a visão da minúscula calcinha branca. Os cabelos caíam ao redor do rosto e sobre os ombros em suntuosas ondas, despertando-lhe o desejo de afundar-se naquele corpo.

— Detesto que tenha mentido por mim — murmurou com voz rouca, percorrendo a curva delicada do braço com a palma da mão. — Sempre imaginei que fosse uma mulher honesta.

Gabrielle riu, e não recuou quando ele tomou suas mãos.

— Você está preparado para isso?

— Estou mais do que preparado.

— Você passou por um momento difícil. Eu gostaria de conversar sobre o que aconteceu.

A última coisa que Lucan queria era falar de seus problemas, espe­cialmente naquele momento em que tinha Gabrielle bem à frente, deliciosamente tentadora. Seu corpo havia se recuperado da batalha, e seu sexo recobrara a vida com todo o vigor, como sempre acontecia quando estava diante dela.

Lucan levou a mão delicada até a ereção apertada contra o teci­do da calça. Ela acariciou o membro dolorido e abriu o zíper para tomá-lo na palma da mão.

Lucan fechou os olhos, perdendo-se no contato e no perfume cálido da excitação, enquanto ela se colocava entre seus braços. Beijou-a profundamente, em uma lenta união de lábios. Deslizou as mãos sob a camisa e escorregou pela deliciosa curva dos seios. Os mamilos se enrijeceram quando os acariciou, como pequenos casulos que suplicassem por serem sugados.

Ela arqueou as costas e gemeu, aumentando o ritmo das carícias sobre o membro ereto.

— Você é uma mulher perigosa — Lucan sussurrou contra os lábios dela. — Gosto de vê-la aqui, em meus domínios. Não acreditei que aconteceria. Deus sabe que não deveria.

— É verdade sou a primeira mulher que você trouxe aqui? Ele sorriu com ironia enquanto acariciava a pele suave.

— Quem lhe disse? Savannah?

— É verdade?

Lucan se inclinou e se apossou de um dos mamilos rosados com os lábios. Empurrou-a com o peso do corpo para se posicionar sobre ela, enquanto tirava rapidamente a calça. As presas começaram a alargar-se, e o desejo escapou de seu controle, percorria todo o corpo como ondas ardentes.

— Você é a única — murmurou com voz rouca.

E também a última mulher que ele levaria para a sede.

Lucan não podia imaginar ter mais ninguém na cama. Nunca per­mitiria que ninguém voltasse a invadir seu coração. Depois de todos aqueles anos de solidão auto-imposta, ele baixara a guarda emocional e Gabrielle preenchera o vazio como ninguém o preencheria, jamais.

— Deus, você é tão suave... — sussurrou, acariciando-a, percor­rendo o ventre liso com os dedos até chegar à delicada curva do qua­dril. — Tão doce... — A mão avançou para baixo, entre as coxas, e forçou-as a se abrirem para permitir que continuasse a exploração. — Tão úmida — murmurou, penetrando seus lábios com a língua, enquanto introduzia um dedo por debaixo da calcinha e acariciava o calor úmido e macio.

Penetrou-a com o dedo, lentamente a princípio, e logo com pro­fundidade. Ela se sujeitou, arqueando as costas, sem deixar de acari­ciar a ereção que pulsava entre seus dedos. Ele interrompeu o beijo e tirou a minúscula peça que lhe cobria o sexo.

— Tão formosa — disse sem fôlego, fascinado pela feminilidade rósea.

Apertou o rosto contra os pelos macios e acariciou o clitóris com a língua, conduzindo-a a um rápido clímax, saboreando os tremores que percorreram o corpo delicado enquanto ela gritava de prazer.

— Você me deixa louco, Gabrielle... Nunca tenho o bastante de você.

A ansiedade por estar dentro dela o tomou por completo, tanto que não ouviu a exclamação de Gabrielle quando a cobriu com seu corpo. Sim, percebeu a repentina quietude, mas foi a voz que o paralisou.

— Lucan... Seus olhos...

Com uma reação instintiva, ele virou o rosto. Porém, era tarde demais. Sabia que ela vira o resplendor sedento que seu olhar refle­tia. Era o mesmo brilho selvagem que ela percebera enquanto ele ata­cava o Seguidor, e a retina humana não registrava a diferença entre a sede de sangue e a intensidade do desejo.

— Por favor — disse ela com suavidade. — Deixe-me olhar você.

Ele se apoiou sobre as mãos para se erguer e a encarou. Um bri­lho de alarme se refletiu nos olhos castanhos, mas Gabrielle não se afastou. Olhou-o com atenção, estudando cada detalhe.

— Não vou lhe fazer mal — Lucan assegurou com voz áspera e pastosa, revelando as presas. — Agora, você conhece todas as reações do meu corpo. O que está vendo é necessidade, Gabrielle. Desejo. Você me provoca isso. Às vezes, basta pensar em você... — Ele se interrompeu e suspirou fundo. — Não quero assustá-la, mas não posso impedir a mudança.

— E nas outras vezes que estivemos juntos? — Gabrielle per­guntou num sussurro, com o cenho franzido. — Você escondeu isso de mim?

— Não queria assustá-la. Não queria que visse o que sou. — Ele esboçou um sorriso triste. — Mas agora, você já viu tudo.

Ela meneou a cabeça devagar e tomou o rosto com ambas as mãos. Dirigiu-lhe um olhar intenso, como se estivesse assimilando tudo o que ele era. Os olhos brilhantes e a expressão terna e afetuosa irradia­vam o mais puro amor.

— Para mim, você é lindo, Lucan. Não há nada que tenha de esconder de mim. Nunca.

A declaração sincera o comoveu. Lucan devolveu o olhar. Ela acariciava-lhe a mandíbula rígida e percorria os lábios entreabertos com dedos provocadores. As presas dolorosas se expandiram ainda mais sob efeito do suave contato.

Gabrielle deslizou o indicador entre os lábios e o insinuou na boca de Lucan. Ele emitiu um som gutural e pressionou-lhe o dedo com a língua, sentindo o contato macio dos dentes contra a pele. Fechou os lábios e sugou com volúpia, inalando o aroma de jasmim que o corpo suave exalava.

— Confio em você — ela assegurou, e os olhos se tornaram ainda mais escuros pelo desejo. — Eu o desejo. Desejo cada parte sua.

As palavras foram mais do que Lucan podia suportar. Com um grunhido selvagem de lascívia, posicionou-se sobre ela e fez com que entreabrisse as pernas, forçando-a com os joelhos. O sexo lubrificado e quente recebeu seu membro rijo numa recepção que ele não pôde resistir. Com uma profunda investida, penetrou-a com sofreguidão.

O calor que o envolveu levou-o à loucura. O desejo selvagem se apoderou de todo o seu corpo, transformando o sangue em lava incandescente. A fera que jazia dentro dele despertou com força total, lembrando-o da maldição que herdara da linhagem paterna. Lucan tentou ignorar a necessidade vibrante que exigia algo mais que o prazer carnal.

A atenção se fixou no pescoço de Gabrielle, onde a delicada veia pulsava sob a pele alva. A boca se inundou de saliva, febrilmente, apesar da pressão na base da coluna vertebral indicando a proximida­de do clímax.

— Não pare — ela pediu sem o mínimo tremor na voz. Atraiu-o ainda mais para si e sustentou o olhar bestial. — Tire de mim tudo o que necessitar.

Lucan rugiu de agonia, lutando para negar a ambos o êxtase que somente se podia obter com o beijo de um vampiro.

No instante seguinte, sentiu os músculos de Gabrielle se contraí­rem num orgasmo devastador. O estímulo foi o bastante para incen­diá-lo. Desviando o olhar do pescoço tentador, ele investiu com vigor renovado e explodiu seu prazer dentro dela. Porém, o clímax miti­gou somente uma parte de sua necessidade. A outra, mais profunda, persistia e aumentava a cada pulsação da veia de Gabrielle.

Lucan girou o corpo e se afastou, ofegante.

— O que houve? — Gabrielle pousou a mão no ombro dele. Lucan deslizou para a beirada da cama, sentou-se e apoiou a cabeça entre as mãos. Pressentia o olhar de Gabrielle cravado em suas costas.

— Não consigo ter o bastante de você, Gabrielle. É muito para mim, e tenho de...

— Shh... Não diga nada.

— Não. Eu não deveria estar com você dessa maneira, quando necessito... — do seu sangue, ele completou para si, sem coragem de enunciar em voz alta.

— Lucan, se você necessitar de sangue...

Ela se aproximou, passou um braço pelo ombro largo e levou a mão até o queixo dele.

— Gabrielle, não me ofereça isso.

Lucan se levantou, vestiu a calça rapidamente e se pôs a andar pelo quarto.

— Não vou saciar minha sede com você, Gabrielle.

— Por que não? — ela perguntou em tom condoído. — É evidente que você necessita, e sou o único ser humano aqui neste momento. Assim, não lhe resta muita escolha.

— Não. — Lucan negou com a cabeça e fechou os olhos, apertando-os para obrigar a parte bestial se recolher. — Não posso. Não vou uni-la a mim.

— Do que está falando? Você concorda em fazer amor comi­go, mas a idéia de tomar meu sangue provoca-lhe asco? — Ela riu com ironia. — Sinto-me insultada!

— Isso não vai funcionar — disse ele, furioso consigo mesmo por colocar a ambos num poço ainda mais profundo por causa de sua pró­pria falta de controle. — Eu devia ter deixado as coisas claras entre nós desde o começo.

— Se tiver de me dizer algo, espero que o faça. Sei que tem um problema, Lucan. É impossível não saber disso, depois de ter visto o que vi ontem à noite.

— Não é isso. — Ele praguejou e parou diante dela. — Não quero lhe fazer mal, o que será inevitável se eu aceitar seu sangue. Antes ou depois, se tivermos um vínculo de sangue, eu a machucarei.

— Vínculo de sangue... — ela repetiu devagar. — Como?

— Você tem a marca das Escolhidas, Gabrielle. — Ele fez um ges­to indicando a junção entre o pescoço e o ombro esquerdo. — Está aí, sob sua orelha.

Ela franziu o cenho e levou a mão até o lugar exato da marca com forma de uma lágrima caindo sobre a lua crescente.

— Isso? É uma marca de nascimento.

— Todas as Escolhidas têm esta marca em algum lugar do corpo. Savannah e as demais a têm, assim como minha própria mãe. Todas vocês nasceram com o sinal.

Gabrielle pestanejou, atônita.

— Desde quando você sabe?

— Vi o sinal na primeira noite em que fui à sua casa. Entrei sem que você percebesse e encontrei-a dormindo na cama.

A compreensão se fez visível na expressão do rosto do Gabrielle, com uma mescla de surpresa e dor.

— Você estava lá! Achei que tinha sonhado...

— Você nunca notou nada estranho porque este não é seu mundo, Gabrielle. Suas fotografias, o fato de se sentir atraída por lugares que albergam vampiros, a confusão com seus sentimentos a respeito do sangue e a compulsão por fazê-lo fluir... Tudo isso faz parte de quem você é de verdade.

Lucan sabia que ela se esforçava para aceitar as informações, e odiou-se por não ser capaz de ajudá-la. No entanto, ponderou ser melhor que ela soubesse de tudo e acabasse de uma vez por todas com as tolas ilusões.

— Um dia, você encontrará um macho adequado e o escolherá como companheiro. Ele beberá somente de você, e você dele. O san­gue os unirá num único ser. É um juramento sagrado entre os nossos. Juramento que eu não posso fazer.

A expressão ferida do rosto do Gabrielle era como se ele acabasse de lhe dar uma bofetada.

— Não pode... Ou não quer?

— O que importa? Não vai acontecer, porque não permitirei. Se tivermos um vínculo de sangue, estarei unido a você enquanto restar um sopro de vida no meu corpo ou no seu. Você nunca estará livre de mim, pois esse vínculo me obrigará a encontrá-la em qualquer lugar onde tente se esconder.

— E por que você acha que eu fugiria de você? Ele exalou com força.

— Porque, um dia, a fera dentro mim ficará mais forte do que eu e não posso suportar a ideia de ter você no meu caminho quando isso acontecer.

— Está falando da sede de sangue?

— Sim.

Aquela era a primeira vez que Lucan reconhecia a verdade, inclu­sive ante a si mesmo. Durante todos aqueles anos, ele conseguira escondê-la. Porém, não conseguira esconder de Gabrielle.

— A sede de sangue é a maior debilidade da minha classe. É um vício, uma condenação. Uma vez que nos domina, não temos a força necessária para escapar.

— Como acontece? Lucan sorriu com amargura.

— Tenho a duvidosa honra de levar o sangue de meu pai nas veias. Sou um Gen Um. Se os Corrompidos são criaturas bestiais, não são nada se comparados ao vampiro que iniciou nossa estirpe. Para os da primeira geração, a tentação sempre está presente e tem mais força do que em outros. Na verdade, tenho reprimido a sede de sangue desde que a conheci, Gabrielle.

— Mas você conseguiu superar — ela atalhou, suavemente.

— Consegui controlar, mas torna-se cada vez pior.

— Você pode superá-la outra vez. Nós superaremos juntos.

— Você não conhece minha história. Perdi dois irmãos por causa dessa maldição.

— Quando?

— Há muito tempo. — Lucan sentou-se na poltrona perto da cama, recordando um passado que não gostava de desenterrar. — Evran, nascido antes de mim, converteu-se em Corrompido quando se fez adulto. Morreu em combate, lutando durante uma das antigas guerras entre a Raça e os Corrompidos. Marek era o primogênito. Ele, Tegan e eu formávamos parte do primeiro grupo de guerreiros da Raça que se levantou contra o último dos Antigos e seus exércitos de Corrompidos. Fundamos a Ordem mais ou menos na época da grande praga que os humanos sofreram na Europa. Ao cabo de quase cem anos, a sede de sangue tomou conta de Marek. Ele simplesmente desa­pareceu, e nunca mais tive notícias. Tegan também teve problemas com o vício tempos atrás.

— Eu sinto muito — ela murmurou com pesar. — Você teve muitas perdas, Lucan. É natural que fique aterrorizado com a possibi­lidade de se tornar viciado como seus irmãos.

Uma resposta hostil brincou na ponta da língua de Lucan. Ele não hesitaria em responder a qualquer um que tivesse a presunção de dizer que ele tinha medo. Mas a resposta ficou presa na garganta. Gabrielle o compreendia melhor do que ninguém o compreendera em sua longa existência. Ela o conhecia num plano no qual ninguém mais chegara, e teria de abrir mão daquela mulher quando a enviasse para um dos Darkhaven.

— Não imaginava que você e Tegan estivessem juntos por tanto tempo — ela comentou, pensativa.

— Estamos juntos desde o começo. Somos Gen Um, a primeira geração de vampiros, e ambos juramos defender nossa estirpe. Ele se afastou por algum tempo, e foi o último a chegar para se incorporar a essa nova formação de guerreiros que atua agira.

— Mas não são amigos.

— Amigos? — Lucan riu ao pensar nos séculos de antagonismo entre eles. — Tegan não tem amigos. E se tivesse, asseguro-lhe de que eu não me encontraria entre eles.

— Então, por que permite que viva aqui?

— Ele é um dos melhores guerreiros que conheci. Seu compro­misso com a Ordem é muito mais profundo que qualquer ódio que possa sentir por mim. Compartilhamos a crença de que não há nada mais importante do que proteger o futuro da Raça.

— Nem sequer o amor?

Lucan ficou em silêncio por um segundo. Sentiu-se apanhado pela pergunta franca e não desejava pensar onde a resposta poderia conduzi-lo. Não tinha experiência nesse tipo de emoção em particular, e não era momento para começar a ter.

— O amor é para os vampiros que escolhem levar uma vida branda num Darkhaven, e não para os guerreiros.

— Gideon e Rio têm companheiras. Lucan a fitou com serenidade.

— Não sou como eles.

Uma onda de revolta cresceu dentro de Gabrielle.

— Então, o que tudo isso significa? Represento apenas um passa­tempo enquanto você continua a matança de Corrompidos e a finge que tem tudo sob controle? — Ela levantou o rosto, com os olhos banhados de lágrimas. — Sou um brinquedo que você usa quando precisa de um pouco de prazer?

— Não ouvi você se queixar nenhuma vez.

Gabrielle ficou sem ar. Fuzilou-o com o olhar, e o rosto bonito assumiu a frieza do gelo.

— Bastardo! — ela rosnou por entre os dentes.

Lucan podia compreender o desprezo de Gabrielle, mas nem por isso foi fácil aceitar. Ele nunca havia tolerado nenhum tipo de insul­to. Até aquele momento, nunca ninguém ousara desafiá-lo. Apesar de todos os limites e da disciplina que conquistara durante séculos de vida, ali estava ele, destroçado por uma mulher a quem tinha sido suficientemente louco para deixar se aproximar. E se preocupava com ela muito mais do que deveria. Nesse momento, a idéia de tomar o sangue dela era repugnante, apesar de ser o que ele desejava. Seria inevitável que, um dia, sucumbisse ao desejo.

— Não quero lhe fazer mal, Gabrielle, e sei que farei isso.

— E o que acha que está fazendo agora mesmo? — sussurrou ela, com um nó na garganta. — Acreditei em todas as mentiras que me disse, inclusive nessa tolice de que queria ajudar-me a encontrar meu verdadeiro destino. Acreditei que se você se preocupava comigo.

Lucan se viu incapaz de lidar com a situação. Sem dizer nada, levantou-se, apanhou uma camisa limpa no closet e a vestiu. Caminhou até a porta que se abria para o vestíbulo de seu apartamento e se dete­ve para fitar Gabrielle. O desejo de tomá-la nos braços o consumiu. Porém, sabia que seria um engano. Se a tocasse, voltaria a se per­der nos intrincados caminhos do desejo. E então, não seria capaz de deixá-la partir.

Ele abriu a porta, preparado para sair.

— Você encontrou seu destino, Gabrielle, tal como eu disse que aconteceria. E eu nunca afirmei que seria comigo.

 

As palavras de Lucan ainda ressonavam nos ouvidos de Gabrielle, enquanto saía do banho. Ela se secou com a toalha felpuda, esperando que a água quente tivesse aliviado parte da dor e da con­fusão que sentia. Havia muitas coisas que devia enfrentar, e a menor delas era o fato de Lucan não ter nenhuma intenção de estar com ela.

Tentou se convencer que ele nunca fizera nenhuma promessa, mas isso fez com que se sentisse mais tola. Ele nunca lhe pedira que pusesse o coração aos pés dele. Fora ela que o colocara por livre e espontânea vontade.

Aproximou-se do espelho que ocupava toda a parede do banheiro e ergueu os cabelos para estudar com atenção a marca de nascimento carmesim abaixo da orelha esquerda. A marca de Escolhida, corrigiu-se, enquanto observava a pequena lágrima que parecia cair na concavidade da lua crescente.

Por alguma bizarra ironia, aquele sinal a unia ao mundo de Lucan e, apesar disso, era o mesmo que a impedia de estar com ele. Possivelmente, a presença dela representava complicações que ele não queria ou não necessitava.

Na verdade, conhecê-lo tampouco transformara sua vida num mar de rosas, ponderou. Graças a Lucan, ela abandonara um dos melho­res imóveis de Beacon Hill, e ia perdê-lo se não voltasse a trabalhar para pagar as prestações. Seus amigos não tinham nem idéia de onde estava, e se soubessem, poderiam por suas vidas em risco. Para cul­minar, havia se apaixonado pelo tipo mais sombrio e mortífero do planeta que, além disso, resultava ser um vampiro.

E, que diabos, já que estava sendo sincera consigo, tinha de se corrigir: não estava apaixonada por Lucan. Estava completa, inteira, e perdidamente louca por ele.

— Bem feito! — disse a seu miserável reflexo. — Quem mandou tirar aquelas fotografias no beco?

E, apesar de tudo, não havia nada que desejasse mais do que cor­rer para os braços de Lucan, o único lugar onde poderia encontrar consolo.

Sim, como se precisasse acrescentar a humilhação em público à degradação íntima que ela tentava superar no momento. Lucan dei­xara claro que, o que quer que tivesse acontecido entre eles, havia terminado.

Gabrielle voltou para o dormitório, apanhou a roupa e os sapa­tos e se vestiu depressa, ansiosa por sair dos aposentos pessoais de Lucan antes que ele voltasse. Não queria correr o risco de fazer algu­ma coisa verdadeiramente estúpida, decidiu, olhando para os lençóis amassados depois de terem feito amor.

Com idéia de procurar Savannah e, possivelmente, tentar encon­trar um telefone fora do complexo, Gabrielle saiu do apartamento e rumou pelo corredor sinuoso que ela percorrera às escuras na noite anterior. O caminho pareceu-lhe confuso, e ela deu muitas voltas até finalmente reconhecer onde se encontrava. Saíra por uma passagem perto das instalações de treinamento, a julgar pelo agudo som dos disparos contra os alvos.

Ela atravessou a antessala que separava o aposento e se viu deti­da repentinamente por uma rígida muralha de músculos e armas no caminho. Gabrielle ergueu o rosto e se deparou com os olhos verdes e desconfiados que a fitavam com expressão ameaçadora, cravados nela por trás de uma cascata de cabelos avermelhados, como um gato que avalia sua presa.

Gabrielle tragou a saliva. Um perigo evidente emanava do corpo daquele belo e ameaçador gigante, assim como da profundidade dos olhos de predador.

Tegan. O nome dele surgiu-lhe num eco distante, o único dos seis guerreiros do complexo a quem ainda não fora apresentada.

O guerreiro vampiro não se afastou do caminho. Aliás, sequer reagiu quando ela se chocou, exceto pela careta de desagrado com a proximidade. Ela deu um passo para trás e tentou sorrir.

— Sinto muito. Eu estava perdida, e não tinha percebido que sairia aqui.

Ele não disse nenhuma palavra, mas Gabrielle sentiu-se exposta como se estivesse nua, apenas com o instantâneo contato corporal.

Tegan a fitava com expressão desprovida de emoção, como se pudesse ver através dela.

— Perdão — sussurrou, sentindo-se invadida por aquele olhar. No momento em que se moveu para passar, a voz do Tegan a deteve.

Era mais suave do que esperava, profunda e gutural. Contrastava de forma peculiar com a frieza da expressão.

— Faça um favor a você mesma e não se aproxime muito de Lucan. Há muitas possibilidades de que ele não viva por muito tempo.

Não havia nenhum rastro de emoção na voz. Tratava-se apenas da mera constatação de um fato. O guerreiro passou por ela e deixou para trás uma suave brisa impregnada de uma apatia fria e perturba­dora que penetrou-a até os ossos.

Gabrielle se virou para olhar, mas Tegan e sua inquietante predição tinham desaparecido.

Lucan comprovou o peso de uma arma nove milímetros com a mão e realizou uma série de disparos contra o alvo que se encontrava no outro extremo da área de tiro. Apesar de ser agradável encontrar-se no território familiar das ferramentas de seu ofício e sentir o san­gue fervendo, pronto para a batalha, parte dele continuava divagando sobre o encontro com Gabrielle. Apesar de tudo o que havia dito, tinha de admitir que se afeiçoara profundamente a ela.

Quanto tempo acreditava ser capaz de resistir aos encantos dela? Ou, mais exatamente, como acreditava que conseguiria suportar a idéia de deixá-la partir? Pior, de mandá-la para longe com o propósito de que ela encontrasse um companheiro?

Lucan praguejou. Disparou outra série de balas e exultou com o estrondo do metal quente e com o cheiro da pólvora no peito do alvo ao explodir pelo impacto.

— O que achou? — perguntou-lhe Nikolai, encarando-o com seus olhos frios, límpidos e cintilantes.

— É uma peça pequena e dócil, não? E incrivelmente sensível, além disso.

— Sim. É agradável. Eu gosto. — Lucan pôs o fecho de segu­rança e estudou a pistola. — Uma Beretta 92FS convertida em automática com carregador. Bom trabalho.

— E você ainda não viu as balas especiais. — Niko sorriu com orgulho. — Pontas ocas de policarbonato, e pó de titânio em lugar de pólvora.

— Isso deve provocar um terrível desastre no sistema sangüíneo desses chupins — acrescentou Dante, que se encontrava sentado na beirada da mesa, afiando uma adaga.

Nos velhos tempos, a forma mais limpa de matar um Corrompido consistia em separar a cabeça do corpo. Isso funcionava bem quan­do as espadas eram as armas habituais, mas a tecnologia moderna oferecia novas possibilidades. Não havia sido até princípios de 1900 quando a Raça descobriu o efeito corrosivo do titânio. Em função das mutações celulares no sangue, os Corrompidos reagiam ao metal nobre como um efervescente reage em contato com a água.

Niko tomou a arma de Lucan e ergueu-a com sorriso de triunfo.

— O que tem aqui é um autêntico destruidor de Corrompidos.

— Quando podemos prová-la?

— Que tal esta noite? — Tegan tinha entrado sem fazer ruído, e a voz atravessou a sala como o rugido de uma tormenta. — Encontrei um esconderijo perto do porto que deve abrigar cerca de uma dúzia de Corrompidos. Acredito que acabaram de ser convertidos. Não será difícil acabar com eles.

— Faz tempo que não fazemos uma limpeza desse tipo — comentou Rio, arrastando as palavras com um amplo sorriso de satisfação. — Acho que será uma festa.

Lucan devolveu a arma a Niko e olhou para os demais com o cenho franzido.

— Por que diabos não me informaram antes sobre esse esconderijo?

Tegan o fitou com expressão categórica.

— Enquanto você estava trancado com sua fêmea durante a noite toda, nós estávamos nas ruas, fazendo nosso trabalho.

— Isso foi golpe baixo — Rio censurou. — Mesmo vindo de você, Tegan.

Contudo, Lucan recebeu o golpe com um silêncio calculado.

— Tegan tem razão. Eu devia ter me ocupando do trabalho. Tinha de resolver alguns assuntos aqui, e agora já terminei.

Tegan dirigiu-lhe um sorriso indulgente.

— É mesmo? Pois acabo de ver o "assunto", e ela estava muito inquieta. Parece que alguém quebrou o coração dessa pobre garota.

Lucan respondeu com um furioso rugido de raiva.

— O que disse a ela? Tocou-a? Se tiver feito algo... Tegan riu, verdadeiramente divertido.

— Calma, rapaz. Sua fêmea não é assunto meu.

— Espero que mantenham isso em mente — Lucan disse por entre os dentes, virando-se para enfrentar os olhares de curiosidade dos outros vampiros. — Ela não é assunto de nenhum de vocês, está cla­ro? Gabrielle Maxwell se encontra sob meu amparo pessoal enquanto estiver neste complexo. Quando tiver ido para um dos Darkhaven, tampouco será meu assunto.

Ele precisou de um minuto para se tranqüilizar e não se render ao impulso de confrontar Tegan diretamente. Um dia, era certo que chegaria a fazê-lo.

Todavia, não podia culpar o vampiro por sentir rancor. Se Tegan se tornara desumano e mesquinho, Lucan contribuíra para que ele fosse assim.

— Vamos voltar ao trabalho — disse com um grunhido, desafian­do a que ninguém o contrariasse. — Preciso de dados a respeito desse refugio.

Lucan ouviu com atenção a descrição detalhada do que Tegan tinha observado no provável covil de Corrompidos, assim como suas sugestões acerca da estratégia de ataque. Apesar da hostilidade pelo desafeto, ele tevê de admitir que o plano era digno de um mestre na arte da guerra.

Deus sabia que, perto de Gabrielle, toda a disposição para cumprir o dever se convertia em pó. Fazia duas horas que a deixara em seus aposentos, e tinha a sensação de que transcorrera uma eternidade. A imagem dela não saía de sua cabeça. A necessidade o inflamava a cada vez que pensava no corpo cálido e suave.

Pensar em como a magoara abria um buraco em seu peito. Gabrielle demonstrara ser uma verdadeira aliada. Ela o acompanha­ra através do inferno íntimo que atravessara durante a noite, estivera do seu lado, tenra e afetuosa como qualquer macho desejaria de sua amada companheira.

Lucan deixou que a discussão a respeito dos Corrompidos conti­nuasse, e concordou que tinham de atacá-los de uma só vez no lugar onde viviam em vez de procurá-los um a um pelas ruas.

— Vamos nos encontrar aqui ao pôr do sol — determinou, encerrando a reunião.

O grupo de guerreiros se dispersou e Tegan saiu com passadas lentas atrás dele.

Lucan pensou no guerreiro estoico solitário que se sentia orgulho­so pelo falo de não necessitar de ninguém. Tegan se mantinha afas­tado e isolado por vontade própria. Porém, nem sempre fora assim. Ele havia sido um rapaz brilhante, um líder nato, e perdera todas as qualidades no pesadelo de uma noite terrível. A partir desse momento, começara a decair numa espiral descendente. Tegan chegara ao fundo do poço, e nunca se recuperou.

E, apesar de nunca ter admitido ante o guerreiro, Lucan nunca se perdoaria por ter contribuído para empurrá-lo no abismo.

— Tegan, espere.

O vampiro se deteve com uma reticência evidente. Não se virou, mantendo o arrogante silêncio. Quando os demais guerreiros saíram para o corredor, Lucan clareou a garganta e se dirigiu ao seu irmão Gen Um.

— Você e eu temos um problema, Tegan. Ele soltou o ar pelo nariz, impaciente.

— Vou avisar a mídia, pois ninguém deve ter percebido.

— Esse rancor entre nós não vai desaparecer. Faz muito tempo, mas se você quiser saldar contas comigo...

— Esqueça. É história passada.

— Não é, se não pudermos enterrá-la.

Tegan soltou uma risada zombeteira e, por fim, virou-se para fitá-lo.

— Quer me dizer algo, Lucan?

— Só quero dizer que começo a compreender o que custou para você... — Lucan meneou a cabeça devagar e passou a mão pela cabeça. — Tegan, se tivesse havido outra forma... Acredito que tudo seria diferente.

— Lucan, está tentando se desculpar? — Os olhos verdes de Tegan refletiram brilho cortante como cristal. — Por favor, poupe-nos dis­so. Você está quinhentos anos atrasado. E sentir muito não muda os fatos, não é verdade?

Lucan apertou as mandíbulas com força, admirado consigo por não esmurrar o vampiro.

Tegan não o perdoara. Depois de todo esse tempo, era provável que nunca o fizesse.

— Tem razão, Tegan. Desculpar-me não muda nada.

O vampiro o encarou por um longo momento antes de dar-lhe as costas e sair.

 

A música alta soava das imensas caixas acústicas no salão priva­tivo do esconderijo, embora a palavra "música" fosse uma definição generosa demais para descrever os patéticos e discordantes acordes de guitarra. O grupo de mortais se movia como autômatos no cená­rio. Mas, como se podia esperar que os seres humanos atuassem com alguma habilidade ao encontrarem-se diante de uma multidão de vampiros sedentos?

Protegido pelos óculos escuros, o líder dos Corrompidos franziu a testa. A dor de cabeça que começara horas atrás latejava como se as têmporas estivessem a ponto de explodir. Recostou-se contra as almofadas em seu reservado, entediado com essas festas sangren­tas. Com um leve gesto da mão, indicou que seus guarda-costas se aproximassem.

— Que alguém lhes alivie de seu sofrimento. Por não falar do meu.

O vigilante assentiu com a cabeça e respondeu com um grunhido inteligível. Uma careta em lugar do sorriso descobriu as presas enor­mes que escapavam da boca salivando ante a possibilidade de outro massacre. O Corrompido saiu a passo rápido para cumprir as ordens.

— Bom cão — murmurou seu poderoso amo.

Naquele momento, seu telefone celular soou e ele se alegrou pela oportunidade de sair e respirar o ar puro.

A banda interrompeu a música sob o repentino ataque de um grupo de Corrompidos frenéticos.

Enquanto a completa anarquia reinava no ambiente, o líder se diri­giu para seus aposentos atrás do cenário e tirou o telefone celular do bolso, certo de que veria o número de um de seus muitos Seguidores, a maioria dos quais tinham sido enviados para obter informação sobre Gabrielle Maxwell e sua relação com a Raça.

Mas não era um deles, percebeu ao olhar para o identificador de chamadas. Intrigado, ele atendeu, e a voz que ouviu no outro extremo da linha não era desconhecida.

Para sua surpresa, forneceu-lhe detalhes a respeito de um ataque da Raça que se realizaria naquela mesma noite num dos refúgios que os Corrompidos mantinham na cidade. Em questão de segundos, soube tudo o que necessitava para conseguir que o ataque revertesse a seu favor: a localização, os métodos dos guerreiros e a rota, além da estratégia de ataque. Tudo, com a condição de que um membro da Raça se salvasse da vingança.

No entanto, havia uma exigência: esse único guerreiro teria de sofrer ferimentos suficientes para que nunca mais pudesse lutar. O destino do restante dos guerreiros, incluindo o do poderoso Lucan Thorne, era decisão dos Corrompidos.

A pessoa do outro lado da linha lembrou ao líder que a morte de Lucan já fora determinada no acordo anterior, mas a execução da tarefa não saíra como o planejado. A carga de explosivos na estação de trem atingira o guerreiro errado. Dessa vez, exigia a certeza de que o líder da Raça seria eliminado da face da Terra, e lembrou que fornecera remuneração considerável para a tarefa que ainda não fora cumprida.

— Estou ciente do nosso acordo — o líder repôs, furioso. — Dessa vez, dou minha palavra não se arrependerá por ter feito o pagamento adiantado.

Ele desligou a chamada com uma imprecação. Os dermoglifos em seu punho brilhavam com a intensidade da fúria. As cores se transmutavam sob as tatuagens que dissimulavam as marcas de nascença. Abominava a idéia de ocultar sua linhagem, assim como odiava a todos aqueles que se interpunham no seu caminho, impedindo-o de alcançar seus objetivos.

O líder voltou para a área central do salão ainda zangado. Na escuridão, seu olhar tropeçou com um de seus Seguidores, o único Corrompido da história recente que fitara Lucan Thorne nos olhos e saíra vivo para contar a história. Fez um sinal para que se aproximas­se e deu-lhe instruções para que se encarregasse da diversão daquela noite.

Sem ter em conta suas negociações secretas, tudo o que importava era que, quando tudo terminasse, Lucan e seus guerreiros estivessem mortos.

 

Lucan a evitou durante o restante do dia, e Gabrielle fez o mesmo. E, logo depois do anoitecer, ele e os outros cinco guerreiros saíram d as instalações de treinamento como uma unidade militar, numa ima­gem viva de força. Todos trajavam negro e carregavam armas letais. Até mesmo Gideon, que nunca deixava seu posto de observação à frente dos computadores, uniu-se ao grupo para substituir Conlan.

Savannah e Eva se acercavam dos companheiros para trocarem palavras íntimas em voz baixa, traduzindo o temor pela batalha. Gabrielle se manteve à distância no vestíbulo, e se sentiu como uma intrusa ao ver Lucan dizer alguma coisa a Savannah. A Escolhida assentiu com a cabeça quando ele depositou um pequeno objeto em sua mão e olhou por sobre o ombro dela, na direção de Gabrielle.

Embora não fizesse nenhum movimento para se aproximar, o olhar se demorou, observando-a do outro lado do amplo espaço que os separava. Então, ele se foi.

Lucan, caminhando à frente, virou à direita ao final do corre­dor e desapareceu. O restante do grupo o seguiu, deixando para trás apenas o eco dos passos ressonando no vazio.

— Você está bem? — perguntou-lhe Savannah, aproximando-se de Gabrielle e passando um braço pelos ombros dela.

— Sim. Ficarei bem.

— Lucan pediu que lhe desse isso. — Entregou-lhe o telefone celular e sorriu. — É alguma espécie de oferta de paz?

Gabrielle apanhou-o e assentiu com a cabeça.

— As coisas não vão bem entre nós.

— Sinto muito. Lucan me instruiu a lhe dizer que não saia da sede nem diga a seus amigos onde está. Mas, se quiser falar com eles, fique à vontade. Vamos lhe dar um pouco de privacidade.

Savannah abraçou-a brevemente e olhou para Eva, que acabava de se juntar a elas.

— Não sei vocês, mas eu adoraria tomar uma taça de vinho... Quem sabe, uma garrafa inteira! — ela completou com um sorriso de cumplicidade.

— Fará bem a nós três um pouco de vinho e de companhia — respondeu Savannah. — Gabrielle, junte-se a nós quando terminar. Estaremos no meu apartamento.

— Está bem. Obrigada.

As duas mulheres saíram juntas, falando em voz baixa, com os braços entrelaçados, enquanto percorriam o sinuoso corredor em direção aos aposentos de Savannah e Gideon. Gabrielle seguiu na direção contrária, sem saber onde desejava estar.

Na verdade, ela sabia... Desejava estar com Lucan, nos braços dele, mas obrigou-se a superar o desejo insano. Não tinha intenção de suplicar por atenção, e caso voltasse inteiro da batalha daquela noite, era melhor se preparar para tirá-lo completamente da cabeça.

Dirigiu-se à porta aberta num ponto pouco iluminado do vestíbulo. Uma vela brilhava dentro da sala vazia, a única luz do lugar. A solidão e o cheiro de incenso e madeira a atraíram. Ao entrar, lembrou-se de ter passado por ali durante a visita com Savannah. Estava na capela do complexo.

Gabrielle caminhou entre duas filas de bancos em direção a um pedestal que se levantava no outro extremo da sala. Era ali onde se encontrava a vela. A chama irradiava suave brilho dourado.

Ela se sentou em um dos bancos e ficou imóvel, simplesmente respirando, deixando que a paz do santuário a envolvesse.

Conectou o telefone celular e imediatamente a luz indicando novas mensagens começou a piscar. Gabrielle apertou a tecla da secretária de voz e escutou a primeira chamada. Era de Megan, de dois dias atrás, à mesma hora em que telefonara depois do ataque do Seguidor no parque.

— Gabby, sou eu outra vez. Deixei várias mensagens, mas você não retornou. Onde está? Estou muito preocupada! Não quero que fique sozinha depois do que aconteceu. Retorne a ligação assim que puder.

Gabrielle apagou a mensagem e passou à seguinte, da noite ante­rior, às onze horas. Ouviu a voz de Kendra, que parecia cansada.

— Gabby? Está em casa? Responda, se estiver. Suponho que seja tarde. Sinto muito se a acordei. Bem, vou telefonar para Jamie e Megan e convidá-los para sair. Que tal amanhã à noite? Dê notícias.

Ao menos, Kendra estava bem horas atrás, o que aliviou parte da preocupação de Gabrielle. Porém, ainda restava a preocupação sobre o Corrompido com quem ela estivera se encontrando. Um arrepio de medo a percorreu ao pensar na proximidade de sua amiga com aquele monstro.

Passou à última mensagem. Megan novamente, duas horas atrás.

— Olá, querida. Por favor, telefone para mim. Preciso saber como foi na delegacia ontem à noite. Aposto que seu detetive se alegrou ao vê-la, mas estou morrendo de curiosidade para saber de todos os detalhes.

O tom de voz era tranqüilo e provocador, perfeitamente normal e distinto do pânico explícito nas primeiras mensagens que deixara antes.

Então, Gabrielle se lembrou de que Lucan havia apagado a memó­ria dela e de Ray.

— Querida, Jamie e eu vamos jantar esta noite no Ciao Bela, seu restaurante favorito. Estaremos lá por volta das sete horas. Vamos guardar um lugar para você.

Gabrielle olhou no relógio de pulso. Sete e vinte da noite. Devia a seus amigos, no mínimo, telefonar e dizer que estava bem. Ademais, desejava ouvir suas vozes, já que era a única conexão com a vida que tinha antes.

Num impulso, apertou a tecla de chamada rápida do celular de Megan e esperou com ansiedade.

— Olá, Meg — saudou ao ouvir a voz da amigado outro lado.

— Ah! Finalmente! Jamie, é Gabby.

— Onde está essa mulher? Ela virá ou não?

— Ainda não sei. Gabby, você virá?

Ao ouvir o timbre familiar dos amigos, os olhos de Gabrielle se encheram de lágrimas. Desejou que as coisas pudessem voltar a ser como eram antes de...

— Não posso. Surgiu um imprevisto, e... — apressou-se a dizer, reprimindo o pranto.

— Está ocupada. — Ouviu Megan comentar com Jamie. — Onde você está? Kendra me telefonou hoje. Ela me disse que foi à sua casa e não a encontrou.

— Kendra? Você a viu?

— Não, mas ela quer se encontrar conosco. Parece que o relacio­namento com o rapaz da boate não deu certo.

— Brent — acrescentou Jamie em voz alta

— Eles romperam?

— Não sei — respondeu Megan. — Perguntei como estavam, e ela disse apenas que já não se viam mais.

— Ótimo. — Gabrielle suspirou, aliviada. — São boas notícias.

— E você? Quem é tão importante assim para impedir que você venha nos encontrar?

Gabrielle franziu o cenho e olhou ao redor. A chama da vela tremulou, e ela ouviu passadas suaves e uma exclamação abafada de alguém que acabara de entrar. Ela se virou e viu uma mulher, loira e alta, parada à porta. Ela ergueu a mão em desculpa e se dispôs a sair.

— Estou... Bem, estou fora da cidade — disse aos amigos em voz baixa. — Creio que ficarei quatro ou cinco dias... Possivelmente, uma semana ou mais.

— Fazendo o quê?

— Meg, aceitei um trabalho fora da cidade — mentiu Gabrielle, odiando ter de fazê-lo, mas sem encontrar alternativa. — Telefonarei assim que puder. Cuidem-se. Amo vocês.

— Gabrielle...

Ela desligou antes que a obrigassem a mentir novamente.

— Sinto muito por interromper — a mulher se desculpou quando Gabrielle se aproximou. — Não percebi que a capela estava ocupada.

— Por favor, fique. Eu só estava... — Gabrielle soltou um suspiro. — Acabo de mentir para meus amigos.

— Oh... — Os amáveis olhos azuis a fixaram com simpatia. Gabrielle fechou o telefone e passou o dedo distraído pela super­fície polida.

— Deixei minha casa precipitadamente ontem à noite para acom­panhar Lucan até aqui. Nenhum dos meus amigos sabe onde estou, nem por que tive de partir.

— Compreendo. Possivelmente, algum dia você possa lhes dar alguma explicação.

— Assim espero. Não quero colocá-los em perigo por saberem a verdade.

A mulher assentiu com um gesto gracioso de cabeça, e os cabelos longos acompanharam o movimento fluido.

— Você deve ser Gabrielle. Savannah me disse que Lucan havia trazido uma mulher que estava sob seu amparo. Sou Danika. Sou... Era... A companheira de Conlan.

Gabrielle aceitou a mão delicada que Danika lhe ofereceu como saudação.

— Sinto muito por sua perda.

Danika sorriu com expressão triste. Soltou a mão de Gabrielle e, num gesto involuntário, acariciou o ventre.

— Queria lhe dar boas-vindas, mas imagino que não sou a melhor das companhias nesse momento. Não sinto vontade de sair do meu apartamento nos últimos dias. Tem sido difícil realizar esse... ajuste. Tudo é tão diferente sem ele.

— É compreensível. — Gabrielle a tranqüilizou com um sorriso.

— Lucan e outros guerreiros foram muito generosos comigo. Cada um deles jurou me amparar onde quer que eu esteja, assim como meu filho.

— Está grávida?

— Sim. Catorze semanas. — Danika sorriu, mostrando um pouco mais de alegria. — Este seria o primeiro de muitos filhos. Estávamos felizes com nosso futuro. Tínhamos esperado muito tempo para fundar nossa família.

— Por que esperaram? — Gabrielle franziu o cenho assim que terminou a pergunta. — Desculpe, não quis bisbilhotar. Não é da minha conta.

Danika balançou a cabeça com um gesto delicado.

— Não há necessidade de desculpar-se. Não me importa que me faça perguntas. Ao contrário, é bom falar de Conlan. Venha, vamos nos sentar — convidou, conduzindo Gabrielle até um dos bancos.

Gabrielle se acomodou e voltou-se para a adorável Escolhida, ouvindo com interesse.

— Conheci Conlan quando era uma menina. Meu povo, na Dinamarca, havia sido saqueado por invasores bárbaros, ou era o que acreditávamos. A verdade é que eram Corrompidos. Mataram todos, sem ter piedades pelos velhos e crianças. Ninguém estava seguro. Um grupo de guerreiros da Raça chegou na metade do ataque. Conlan era um deles. Resgataram tantos quantos puderam, e quando descobri­ram minha marca, levaram-me ao Darkhaven mais próximo. Foi lá que aprendi tudo a respeito da nação dos vampiros e do lugar que eu ocupava. Porém, eu não conseguia parar de pensar no meu salvador. Felizmente, por obra do destino, Conlan voltou ao Darkhaven depois de alguns anos. Imagine a emoção que senti ao saber que ele tampou­co havia se esquecido de mim!

— Oh! É uma história maravilhosa, apesar da tragédia. Quanto tempo faz?

— Conlan e eu compartilhamos quatrocentos e dois anos juntos.

— Meu Deus! — murmurou Gabrielle. — Tanto tempo...

— Passou num piscar de olhos. Não vou mentir dizendo que foi fácil ser a mulher de um guerreiro, mas eu viveria tudo outra vez, se pudesse. Conlan acreditava fielmente no que estava fazendo. Queria um mundo mais seguro para mim e para nossos filhos que estavam por chegar.

— E por isso esperou todo este tempo para conceber um filho?

— Não queríamos fundar nossa família enquanto Conlan tivesse de permanecer na Ordem. Estar na linha de combate não é o melhor para os filhos. É por isso que não há famílias entre os membros da classe dos guerreiros. Os perigos são muitos, e nossos companheiros precisam se concentrar unicamente em sua missão.

— E não acontece nenhuma gravidez não planejada? — Gabrielle quis saber, interessada.

— As concepções acidentais são impossíveis na Raça, pois nós necessitamos de algo mais sagrado que o simples sexo para conce­ber. O momento de fertilidade das Escolhidas é durante a lua crescen­te. Nesse momento crucial, se desejamos conceber um filho, nossos corpos devem conter tanto a semente de nosso companheiro como seu sangue. É um ritual sagrado que ninguém planeja realizar às pressas.

A idéia de poder compartilhar esse profundo e íntimo ato com Lucan despertou uma onda desejo no ventre de Gabrielle. A idéia de se unir dessa forma a alguém que não fosse Lucan estava fora de ques­tão. Preferia viver sozinha pela eternidade e, provavelmente, era o que aconteceria.

— O que você fará agora? — perguntou, rompendo o silêncio em que imaginara sua própria solidão futura.

— Ainda não sei — respondeu Danika. — Sei apenas que não vou me unir a nenhum outro companheiro.

— Você não necessita de um companheiro para continuar jovem?

— Conlan era meu companheiro. Agora que ele se foi, uma só vida já será muito tempo. Se me negar a ter um vínculo de sangue com outro macho, envelhecerei de forma natural daqui por diante, como era antes de conhecer Conlan. Simplesmente, voltarei a ser mortal.

— Você morrerá — Gabrielle murmurou. Danika sorriu com expressão decidida.

— Sim. Mas o que importa é ter sido feliz ao lado do homem que amei.

Gabrielle sentiu a garganta se apertar, e tratou de mudar de assunto.

— Para onde pretende ir?

— Conlan e eu tínhamos planejado nos retirarmos num dos Darkhaven da Dinamarca, onde eu nasci. Agora, decidi criar nosso filho na Escócia para que ele tenha a oportunidade de conhecer as origens do pai através da terra que ele tanto amava. Lucan já começou a fazer os preparativos, e cuidará da viagem assim que eu disser que estou preparada.

— Foi amável da parte dele — Gabrielle comentou, sensibi­lizada.

— Muito amável. Lucan me prometeu que meu filho e eu sempre estaríamos em comunicação direta com ele e com o restante dos guer­reiros da Ordem. Ele me procurou logo depois do funeral, e as quei­maduras ainda eram extremamente graves. Apesar disso, ele estava mais preocupado com o meu bem-estar.

— Lucan sofreu queimaduras? — Um alarme assaltou o coração de Gabrielle. — Quando? E como?

— Faz três dias, quando realizamos o ritual funerário de Conlan. — Danika arqueou as finas sobrancelhas. — Você não sabia? Oh, cla­ro que não! Lucan nunca mencionaria esse ato de honra, nem o dano que sofreu para cumpri-lo. A tradição funerária da Raça estabelece que um vampiro deve levar o corpo do morto para que os elementos da natureza o recebam — ela explicou, fazendo um gesto em direção à escada parcialmente escondida a um canto escuro da capela. — É um dever que mostra grande respeito e exige enorme sacrifício, pois, uma vez fora, o vampiro que atender a seu irmão deve ficar do seu lado durante oito minutos sob a luz do sol.

Gabrielle franziu o cenho.

— Eu acreditava que a pele de um vampiro não suportasse os raios do sol.

— Não, não os suporta. Os raios solares provocam queimaduras graves e de forma muito rápida, mas ninguém sofre mais do que um vampiro de primeira geração. Os Gen Um são mais sensíveis, e sofrem terrivelmente num tempo menor de exposição.

— Como Lucan — disse Gabrielle. Danika assentiu com expressão solene.

— Para ele, estar exposto oito minutos deve ter sido insuportável. Mas, por Conlan, ele deixou que seu corpo se queimasse. Poderia ter morrido, mas não permitiu que ninguém mais assumisse o peso de oferecer repouso a meu amado Conlan.

Gabrielle recordou a urgente chamada telefônica que acordara Lucan no meio da noite. Não lhe dissera do que se tratava, tampouco compartilhara sua perda com ela.

Ela sentiu o estômago se retorcer, dolorido, ao pensar no que ele havia suportado.

— Falei com ele nesse mesmo dia. O tom de voz denunciou que ele não estava bem. Parecia cansado, mais que exausto. Ele não me disse nada...

— Quando Gideon o encontrou, ele tinha queimaduras da cabeça aos pés. Não podia abrir os olhos por causa da dor e da inflamação, mas rechaçou qualquer tipo de ajuda. Ele se trancou nos aposentos dele e se curou sozinho.

— Meu Deus — sussurrou Gabrielle, estupefata. — Quando o vi, mais tarde naquela noite, ele parecia completamente normal.

— A pureza da linha de sangue de Lucan o faz sofrer mais, mas também ajuda a curar-se mais depressa. Para isso, ele necessitaria de uma quantidade de sangue maior que a habitual para repor as perdas depois de um trauma tão intenso. Quando se recuperou o suficiente para abandonar a sede e ir caçar, devia estar com uma fome voraz.

Gabrielle fechou os olhos, comovida. A lembrança de vê-lo se alimentar do Seguidor ainda estava vivida na lembrança, mas agora, assumira significado distinto. Já não lhe parecia um ato monstruoso. Tudo adquiria um significado novo desde que conhecera Lucan.

A princípio, entendia a guerra entre a Raça e seus inimigos como um mal enfrentando outro. Agora, não podia deixar de pensar que aquela também era sua guerra, e não somente pelo fato de que seu futuro se encontrava ligado a esse estranho mundo. Para ela, era impor­tante que Lucan ganhasse não só a guerra contra os Corrompidos, mas também a devastadora guerra pessoal, ainda mais feroz que o conflito externo. Estava preocupada com ele, e não podia ignorar a inquietação que crescia dentro dela desde que ele e os outros guerrei­ros tinham saído para o ataque.

— Você gosta muito dele, não é? —A pergunta de Danika rompeu o angustiante silêncio.

— Sim. Muito. — Ela fitou a Escolhida e não encontrou motivo para esconder uma verdade que, provavelmente, se traduzia em seu rosto. — Posso lhe confessar uma coisa, Danika? Tenho uma terrível sensação a respeito do que pode acontecer esta noite. E para piorar, Tegan disse que Lucan não viverá muito. Quanto mais passa o tempo, mais tenho medo de que Tegan possa ter razão. Danika franziu o cenho.

— Você falou com Tegan?

— Eu esbarrei nele, literalmente. Ele me disse para não me afeiçoar muito a Lucan.

— Por que acreditava que Lucan poderia morrer? — Danika dei­xou escapar um comprido suspiro e meneou a cabeça. — Tegan pare­ce ter prazer em afligir quem o rodeia. Provavelmente, disse isso só para preocupá-la.

— Lucan disse que há muita animosidade entre eles. Você acha que devo confiar em Tegan?

— Posso dizer que a lealdade é uma parte importante do código dos guerreiros. Nada deste mundo os faz violar essa confiança sagra­da. — Ela se levantou e tomou a mão de Gabrielle. — Venha. Vamos procurar por Eva e Savannah. A espera é menos difícil quando com­partilhamos nossa angústia.

 

Do ponto de observação na cobertura de um dos edifícios do por­to, Lucan e os outros guerreiros avistaram o carro com emblema de um restaurante chinês entrar na rua deserta. O condutor era um huma­no. Como se não bastasse o cheiro de suor e de ansiedade, a música country que estrondeava pela janela o teria denunciado. Ele saiu do veículo com uma sacola de papel pardo repleta de algo que cheirava a arroz frito e frango.

— Parece que ninguém vai sair para jantar esta noite — Dante comentou com ironia.

O entregador confirmou o endereço na nota grampeada à sacola e olhou ao redor com cautela. Aproximou-se da porta de entrada do armazém, dirigiu outro olhar nervoso para trás e apertou a campainha. Não havia nenhuma luz dentro do edifício, e a rua estava ilumina­da apenas pelo facho de luz amarela da lâmpada nua pendurada no batente.

Lucan viu os olhos ferozes de um Corrompido surgirem à porta. O mensageiro gaguejou alguma coisa e estendeu o papel pela fresta, sem saber que ele seria a refeição real.

A mão enorme o agarrou pelo colarinho da camisa e suspendeu-o do chão. O rapaz gemeu e, tomado pelo pânico, conseguiu se livrar da mão do Corrompido.

O vampiro voou até o humano como uma sombra, atacou-o por trás e abriu-lhe a garganta com eficiência selvagem. A morte foi san­grenta e instantânea. Logo o Corrompido se levantou de um salto e jogou o corpo inerte sobre os ombros a fim de levá-lo para dentro.

— Chegou o momento de atacarmos. — Lucan ficou de pé no beiral. — Vamos.

Ao mesmo tempo, os guerreiros saltaram para o chão e correram tão rápido quanto o pensamento para o armazém que servia de covil aos Corrompidos. Lucan, liderando o grupo, foi o primeiro a alcan­çar o vampiro com sua inerte carga humana. Segurou-o pelo ombro e o obrigou a se virar, enquanto sacava a espada que levava presa ao quadril. O golpe certeiro o decapitou com precisão cirúrgica.

As células do Corrompido começaram a fervilhar e ele caiu, empapado de sangue. O contato da lâmina de titânio teve o efeito de um ácido que penetrou instantaneamente no sistema nervoso do vampiro. Em segundos, restava apenas a poça negra e putrefata que se diluía na sujeira do chão.

Perto da porta, Dante, Tegan e os outros três guerreiros formavam um grupo fechado e armado, disposto a iniciar a ação. A ordem de Lucan, os seis entraram no armazém com as armas empunhadas.

Os Corrompidos não tiveram tempo de registrar o ataque. Tegan, o primeiro a usar a arma, lançou uma adaga que se cravou na gar­ganta de um deles. Enquanto o Corrompido chiava e se retorcia ao desintegrar-se, seus cinco companheiros, enfurecidos, dispersaram-se em busca de refúgio sob a chuva de balas e lâminas afiadas que Lucan e seus irmãos bramiam sem piedade.

Dois dos Corrompidos caíram segundos depois, mas os dois res­tantes se esconderam nas sombras do armazém. Um deles disparou contra Lucan e Dante de trás de uma pilha de caixotes de madeira. Os guerreiros se esquivaram e responderam, forçando um deles a sair. Foi o bastante para que Lucan acabasse com eles.

Com a visão periférica, ele percebeu que o último Corrompido tentava escapar por entre os barris empilhados nos fundos da cons­trução. Antes que pudesse agir, Tegan se precipitou na direção do vampiro como um trem de carga e desapareceu nas sombras, numa perseguição mortal.

— Tudo limpo! — gritou Gideon de algum ponto da escuridão esfumaçada e poeirenta.

Mas assim que pronunciou as palavras, Lucan percebeu que um novo perigo se abatia sobre eles. Seu ouvido distinguiu o discreto som de movimento sobre a cabeça. A poeira das lúgubres lâmpadas do teto flutuou no ar, denunciando movimento sobre o telhado.

— Vigiem o teto! — gritou, e naquele momento, as telhas se romperam e sete Corrompidos saltaram para o chão, disparando as armas.

De onde tinham saído? A informação que tinham sobre o covil era segura. Seis indivíduos, provavelmente convertidos em Corrompidos recentemente, que operavam de forma independente, sem nenhu­ma filiação. Então, quem teria dado o aviso para que a cavalaria os apoiasse? Como teriam ficado sabendo do ataque?

— Uma maldita emboscada — grunhiu Dante pondo em voz alta o pensamento de Lucan.

Não era possível que os Corrompidos tivessem aparecido por acaso. Lucan se fixou no mais corpulento e sentiu a fúria negra ferver seu sangue. Aquele era o vampiro que escapara na noite do assassinato no beco. O canalha podia ter matado Gabrielle, e pos­sivelmente ainda pudesse fazê-lo algum dia se Lucan não o exter­minasse naquele preciso momento.

Enquanto Dante e outros respondiam ao fogo dos Corrompidos, Lucan determinou-se um só objetivo. O vampiro uivou ameaçadoramente ao vê-lo avançar e o rosto horrível se deformou com um sorriso.

— Encontramo-nos de novo, Lucan Thorne. Lucan assentiu com expressão lúgubre.

— Pela última vez.

O ódio mútuo fez com que ambos se confrontassem num combate pessoal. Em um instante, desembainharam as espadas, uma em cada mão, e os dois vampiros se prepararam para a luta mortal.

Lucan lançou a primeira estocada, e recebeu um perigoso corte no ombro. O Corrompido se esquivara com espantosa velocidade e se deslocara, num abrir e fechar de olhos, para o outro lado dele. Tinha as mandíbulas abertas e uma expressão de triunfo ante o primeiro san­gue derramado.

Lucan deu a volta com igual agilidade e suas espadas zuniram perigosamente perto da cabeça do Corrompido. Ele abaixou o rosto e viu sua orelha direita no chão, a seus pés.

— Começou o jogo, imbecil — grunhiu Lucan.

Lançaram-se um contra o outro num torvelinho de fúria. Lucan tinha consciência da batalha que acontecia ao seu redor, com os guer­reiros enfrentando bravamente o inesperado ataque. Mas toda sua concentração, todo seu ódio, centrava-se na afronta pessoal com o Corrompido que tinha em frente. O alimento para acender sua fúria era pensar em Gabrielle e no que aquela criatura bestial diante dele poderia ter lhe causado.

Fez o vampiro retroceder com estocadas implacáveis. Incendiado pela ira, ele não sentiu os golpes que recebeu, embora fossem muitos. Derrubou seu oponente e se preparou para lançar o último e letal golpe. Com um rugido, atravessou a garganta do Corrompido e separou a enor­me cabeça do corpo destroçado. Espasmos violentos sacudiram os bra­ços e as pernas do Corrompido e ele desabou, retorcendo-se no chão.

Lucan ainda sentia a fúria martelando com força nas veias. Girou a espada no ar e a cravou com força no peito do Corrompido para acelerar o processo de desintegração do corpo.

— Santo inferno! — exclamou Rio, perto dali. — Lucan, há outro nas vigas sobre sua cabeça!

Aconteceu num instante. Lucan deu a volta, sentindo a fúria da batalha em todos os músculos do corpo, e olhou para cima, onde Rio havia indicado. Outro Corrompido se pendurava na tubulação elétrica com um objeto semelhante a uma pequena bola de metal sob o bra­ço. Ele estendeu o artefato e uma pequena luz vermelha começou a piscar rapidamente.

— Para o chão! — Nikolai levantou a arma e fez mira. — O maldito vai lançar uma maldita bomba!

Lucan ouviu o repentino disparo da arma. O Corrompido rece­beu o projétil de Niko entre os brilhantes olhos amarelos. Porém, era tarde demais. A bomba percorreu uma trajetória circular e explodiu antes de tocar o chão.

 

Uma súbita inquietação agitou Gabrielle, e ela deu um pulo do sofá da sala de estar de Savannah. As mulheres ficaram juntas durante as últimas horas, consolando-se mutuamente, exceto Eva, que se reco­lhera na capela para rezar.

Em algum lugar por cima do labirinto de corredores e salas, ouvi­ram os movimentos surdos e as vozes tensas dos guerreiros. O zum­bido do elevador fez vibrar o denso ar da sala enquanto descia para o piso principal da sede.

Alguma coisa estava errada. Ela sabia. Lucan!

Jogou para o lado o xale com que se cobria e pôs os pés no chão. O coração estrondeava nos tímpanos e a estremecia a cada pulsação.

Gabrielle, Savannah e Danika saíram para ir ao encontro dos guer­reiros. As três mulheres mantiveram o mais absoluto silêncio enquan­to se dirigiam ao elevador. Antes que as portas de aço se abrissem, sabiam que receberiam más notícias.

Porém, Gabrielle não estava preparada para o que a esperava.

O cheiro adstringente de fumaça e sangue a assaltou com a força de um golpe. Ela fez uma careta ante o nauseabundo aroma de guerra e morte, mas se esforçou por ver qual era a situação na cabine do ele­vador. Nenhum dos guerreiros saía. Dois estavam tombados no chão e os outros três se mantinham agachados ao redor deles.

— Tragam toalhas e lençóis limpos! — gritou Gideon. — Vamos precisar removê-lo para a maca da enfermaria.

— Eu cuido disso — Niko avisou de dentro do elevador.

Ele saltou por cima de um dos dois vultos disformes que se encon­trava estendido de bruços. Quando passou, Gabrielle viu que tinha o rosto, os cabelos e as mãos enegrecidos de fuligem. As roupas esta­vam rasgadas e a pele salpicada de centenas de arranhões sangrando. Gideon mostrava contusões similares, assim como Dante.

Mas os ferimentos não eram nada comparados às dos dois guer­reiros da Raça que estavam inconscientes, transportados nos ombros pelos irmãos.

O peso que sentiu no coração a conscientizou de que um deles era Lucan. Aproximou-se um pouco mais e teve de reprimir uma excla­mação ao ver a confirmação de seus temores.

O sangue formava placas no corpo inerte, gotejando o líquido denso sobre o mármore branco do corredor. Tinha a vestimenta de couro e as botas destroçadas, assim como a pele dos braços e pernas. O rosto estava cheio de fuligem e de cortes de uma cor escarlate.

Mas estava vivo. Gideon moveu-o para lhe aplicar um torniquete improvisado a fim de estancar o sangue de um ferimento no braço e Lucan soltou um uivo de dor por entre as presas alargadas.

— Sinto muito, Lucan. É bastante profundo. O sangramento não vai estancar.

— Ajudem... Rio — Lucan pronunciou as palavras com um grunhido apagado. Foi uma ordem direta, apesar de se encontrar encurvado pela dor. — Eu estou bem. Quero que... cuidem... dele.

Gabrielle se ajoelhou ao lado de Gideon e apanhou a atadura que ele tinha na mão.

— Eu cuido disso.

— Tem certeza? É uma ferida feia. Pressione com força.

— Tenho. — Ela fez um gesto com a cabeça na direção de Rio, que se encontrava caído ao lado de Lucan. — Cuidem dele.

O guerreiro ferido sofria em agonia. Ele também sangrava profun­damente por inúmeros ferimentos no torso. O braço esquerdo parecia estar destroçado. A perna do mesmo lado fora envolta num farrapo empapado de sangue que devia ser uma camisa. Tinha o rosto e o peito queimados e rasgados a tal ponto que estava irreconhecível.

Os olhos de Gabrielle se encheram de lágrimas ao ouvi-lo emitir gemidos graves e guturais. Ela piscou para reprimir o pranto e, ao abrir os olhos, encontrou as íris claras de Lucan cravadas nela.

— Acabei... com o bastardo.

— Shh. — Secou-lhe o suor da fronte com infinito carinho. — Fique quieto. Não tente falar.

— O Corrompido da boate... O bastardo que estava lá...

— Oh! O que escapou?

— Não dessa vez. — Ele piscou devagar, e o olhar era tão feroz quanto vitorioso. — Agora não poderá nunca... fazer-lhe mal...

— Sim — Gideon concordou com satisfação, ocupado com Rio. — E você tem muita sorte de estar vivo, herói.

Gabrielle sentiu a garganta se apertar ao olhar para Lucan. Apesar de ter afirmado que seu dever estava em primeiro lugar e que nun­ca haveria espaço para ela em sua vida, Lucan pensara nela naquela noite. Estava ferido e sangrando, em parte, por ter travado uma bata­lha mortal com o Corrompido que a ameaçava.

Ela tomou as mãos largas entre as dela e acariciou o único lugar do corpo que se encontrava ileso.

— Oh, Lucan...

Savannah chegou correndo com toalhas limpas e Niko a seguiu, empurrando a maça de hospital diante dele.

— Lucan primeiro — Gideon ordenou.

— Não — grunhiu Lucan, e a determinação do tom sobrepujou a dor. — Ajudem a me levantar.

— Não acredito que... — Gabrielle não teve tempo de completar a frase. Ele já estava tentando levantar-se do chão.

— Como é teimoso! — Dante ralhou, apoiando-o pelo braço. — Por que não nos deixa levá-lo para a enfermaria?

— Já disse que estou bem. — Apoiando-se em Gabrielle e em Dante, Lucan se sentou com respiração ofegante. — Recebi alguns golpes, mas posso andar até minha cama. Não vou deixar que me arrastem como um moribundo humilhado.

Dante olhou para Gabrielle com expressão exasperada.

— Você sabia que ele é cabeça-dura desse jeito?

— Sim, eu sabia — ela respondeu com um sorriso.

No fundo, ela se alegrava por aquela obstinação que o fazia ser forte. Ela e Dante emprestaram o apoio de seus corpos, colocando-se ao lado dele, com os ombros sob cada um dos braços, e o suspenderam até que Lucan começou a ficar em pé, devagar.

— Por aqui — Gideon instruiu Niko, posicionando a maça no lugar adequado para levantar Rio, enquanto Savannah e Danika faziam tudo o que podiam para conter a hemorragia.

— Rio? — A voz da Eva soou aguda.

Ela correu até o grupo com o rosário ainda apertado em uma das mãos. Quando se aproximou, deteve-se imediatamente e prendeu a respiração.

— Rio! Onde está?

— Está aqui, Eva — Niko chamou, colocando-se diante da maça onde o corpo ensangüentado jazia inerte. O guerreiro a impediu de dar o passo e afastou-a com gentileza, tentando poupá-la da visão hor­ripilante. — Houve uma explosão esta noite. Ele levou a pior parte.

— Não! — Eva cobriu o rosto com as mãos, horrorizada. — Não, você está equivocado. Esse não é o meu Rio! Não é possível!

— Ele está vivo, Eva. Mas você terá de ser forte por ele.

— Não! — O pranto histérico a estremeceu, enquanto tentava abrir caminho à força para se aproximar do companheiro. — Meu Rio não! Deus, não!

— Eva, por favor. — Savannah se aproximou e tomou-a pelo bra­ço. — Venha, querida. Eles sabem como ajudá-lo.

Os soluços de Eva ecoaram pelo corredor e encheram Gabrielle de uma angústia íntima que era uma mescla de alívio e de medo. Estava preocupada com Rio, e o coração se partiu ao pensar no que Eva devia estar sentindo. Porém, uma angústia ainda maior a inundou por saber que Lucan poderia encontrar-se no lugar dele. Alguns milíme­tros, uma fração de segundo podiam ter determinado qual dos dois guerreiros seria atingido a cada noite que saíam para caçar.

— Onde está Tegan? — perguntou Gideon, sem desviar a atenção do guerreiro ferido. — Ele não retornou?

Danika negou com a cabeça, mas olhou para Gabrielle com expressão angustiada.

— Por que não está aqui? Não estava com vocês?

— Nós o perdemos de vista pouco depois de entrarmos no covil dos Corrompidos — Dante informou. — Quando a bomba explodiu, nosso principal objetivo foi trazer Rio e a Lucan para o complexo o mais depressa possível.

— Vamos levá-lo. — Gideon se voltou para Niko. — Ajude-me com isso.

As perguntas a respeito de Tegan se perderam enquanto todos tra­balhavam num esforço coletivo para ajudar Rio. O grupo percorreu o caminho até a enfermaria, com Gabrielle, Dante e Lucan deslocan­do-se com maior lentidão pelo corredor.

Gabrielle reuniu coragem para fitá-lo, contendo o ímpeto de aca­riciar o rosto ferido e coberto de sangue. Os olhares se encontraram, e um hiato de paz e serenidade se estabeleceu entre eles durante o breve instante de quietude em meio ao caos.

Quando chegaram à enfermaria, Eva ficou a um lado da maça, e as lágrimas deixaram um rastro sobre o peito coberto de sangue.

— Isso não podia ter acontecido — gemeu. — Não devia ter sido meu Rio. Não dessa maneira.

— Faremos tudo o que pudermos por ele — Lucan assegurou, res­pirando com dificuldade. — E uma promessa, Eva. Não o deixaremos morrer.

Ela negou com a cabeça, com o olhar fixo no companheiro esten­dido na cama.

— Quero levá-lo para um Darkhaven imediatamente — ela declarou entre soluços. — Ele precisa de cuidados médicos.

— O estado de Rio não é estável para ser transportado — Gideon declarou com firmeza. — Temos os conhecimentos necessá­rios e a equipe adequada para tratá-lo no complexo.

— Quero levá-lo daqui! — Ela levantou a cabeça subitamente e dirigiu o olhar brilhante de um guerreiro a outro. — Rio não tem utilidade para nenhum de vocês agora. Já não pertence a nenhum de vocês. Agora é completamente meu! Quero o melhor para ele.

Gabrielle notou que o braço de Lucan se tensionou.

— Afaste-se e deixe Gideon fazer o trabalho dele — Lucan disse, assumindo o papel de líder apesar da má condição física. — Agora, a única coisa que importa é manter Rio com vida.

— Você! — disse Eva, em tom seco enquanto lhe dirigia olhar severo. Os olhos mostraram brilho selvagem e o rosto se transformou numa máscara de puro ódio. — Você devia estar nessa maça, e não ele! Você, Lucan. Era você quem devia morrer no lugar de Conlan. Mas naquela noite, tinha coisas mais importantes para fazer.

Eva endereçou olhar severo a Lucan, sugerindo que sabia do que estava falando.

— Você não tem o direito de acusá-lo... — Gideon começou a falar, mas Lucan o interrompeu com um gesto de mão.

— Você tinha de morrer, Lucan! — Eva continuou, como se esti­vessem somente os dois na sala. — Esse foi o trato que fiz! Sabiam que tinha de ser você! Eu pedi que deixassem Rio ferido, o suficien­te para que ele aceitasse se recolher comigo num Darkhaven. Mas isso...

Um abismo pareceu se abrir na enfermaria, tragando todo o som exceto a surpreendente verdade do que a companheira de Rio acabara de confessar.

Dante e Nikolai levaram as mãos às armas, ambos dispostos a res­ponder à mais ligeira provocação. Lucan levantou a mão para contê-los, com o olhar fixo em Eva. A verdade era que não lhe importava que a maldade se dirigisse a ele. Se fosse o alvo da fúria de Eva, poderia sobreviver. Rio possivelmente não o fizesse. Qualquer dos irmãos presentes no ataque daquela noite poderia ter sucumbido ante a traição de Eva.

— Os Corrompidos sabiam que estaríamos lá. — O tom frio de Lucan denunciou a profunda fúria. — Caímos numa emboscada no armazém. Você a preparou.

Os outros guerreiros emitiram blasfêmias guturais. Se a confis­são tivesse partido de um macho, Lucan não teria conseguido impedir que seus irmãos atacassem com força letal. Porém, tratava-se de uma Escolhida, alguém a quem conheciam e em quem confiavam.

Lucan olhou para Eva e viu uma desconhecida. Os olhos vidrados da Escolhida refletiam desespero enlouquecido.

— Rio tinha de salvar-se. — Inclinou-se sobre ele e passou o bra­ço sob a cabeça enfaixada. Ele emitiu um som descarnado e indeci­frável enquanto Eva o abraçava. — Eu não queria que ele tivesse de lutar mais. Não por vocês.

— E preferiu vê-lo destroçado, em vez disso? — perguntou-lhe Lucan. — É assim que o ama?

— Eu amo Rio! — ela gritou, enfurecida. — O que fiz foi por amor! Rio seria mais feliz em outro lugar, longe de toda essa violên­cia e morte. Será mais feliz em um Darkhaven comigo, longe de sua maldita guerra!

Rio tentou falar, mas soou como um lamento. Não havia dúvida de que era um som de agonia, embora não ficasse claro se era devido à dor física ou à inquietação pelo que acontecia ao seu redor.

Lucan negou com a cabeça lentamente.

— Essa é uma afirmação que você não pode fazer por ele, Eva. Não tem esse direito. Essa é a guerra de Rio, tanto como a de qual­quer outro. É no que ele acredita, inclusive depois do que sofreu. Essa guerra concerne a toda a Raça.

Ela franziu o cenho com gesto de desprezo.

— E uma ironia ouvir tais palavras da sua boca, já que você esteve a ponto de se converter num Corrompido.

— Jesus Cristo! — exclamou Dante. — Está equivocada, Eva. Terrivelmente equivocada!

— Ah, sim? — Ela manteve o olhar cravado em Lucan, com expressão sádica. — Estive observando-o, Lucan. Vi você lutar contra a sede quando acreditava que não havia ninguém por perto. A sua aparência de controle absoluto não me engana.

— Eva... — A voz tranqüila de Gabrielle foi um bálsamo para todos os que se encontravam na sala.

— Você está alterada. Não sabe o que está dizendo.

— Não? — Ela riu com escárnio. — Pergunte a ele! Peça para lhe contar por que se priva de sangue até quase morrer de sede!

Lucan não disse nada em resposta à acusação pública. Sabia que era verdade.

Gabrielle também sabia. Ela não precisou dizer nada para que Lucan tivesse certeza.

— Como fez esse trato, Eva? Como entrou em contato com os Corrompidos? Em uma de suas excursões fora do complexo?

— Não foi tão difícil. Há Seguidores passeando por toda a cidade. Abordei um deles e lhe disse que me pusesse em contato com seu chefe.

— Quem era? — perguntou Lucan. — Que aspecto tinha?

— Não sei. Somente nos falamos por telefone. E não me importa quem seja nem que aspecto tenha. A única coisa que interessa é que ele tem poder suficiente para atender meu pedido.

— Imagino que a fez pagar por isso.

— Foram somente algumas horas com o Corrompido que o repre­sentava. Se tive de pagar... — ela desviou o olhar de Lucan para pou­sá-lo em Rio — foi por você, meu amor. Eu suportaria qualquer coisa por você.

— Possivelmente, vendeu seu corpo — Lucan concluiu com desprezo. — Foi a confiança de Rio que você traiu.

Um som áspero escapou dos lábios de Rio. Eva o acariciou, e ele abriu as pálpebras, com respiração pesada enquanto tentava falar.

— Eu... —Tossiu, e o corpo debilitado sofreu um espasmo. — Eva...

— Oh, meu amor... Sim. Estou aqui. Diga-me o que quer, amor.

— Eva... — O esforço provocou um novo acesso de tosse, e ele voltou a tentar. — Eu... a... considero...

— O quê?

— Morta... — gemeu, num esforço supremo. A dor psicológica era maior que a física, mas a ferocidade dos olhos brilhantes e inje­tados traduzia determinação. — Você já não existe... para mim... Está... morta.

— Rio, você não compreende? Fiz isso por nós!

— Vá embora — disse ele com voz entrecortada. — Não quero vê-la... nunca mais.

— Não! Você está enganado! — Eva ergueu a cabeça e seus olhos procuraram freneticamente um ponto onde se fixarem. — Não é possível! Rio, diga-me que não fala a sério!

Ela estendeu a mão para tocá-lo, mas Rio grunhiu alto e utilizou as forças que lhe restavam para rechaçar o contato.

Enlouquecida, Eva ainda tentou beijá-lo, mas Rio desviou o rosto, rejeitando-a.

O que aconteceu a seguir durou somente uma fração de segundo, mas foi como se o tempo houvesse assumido uma lentidão impla­cável. O olhar aniquilado da Eva recaiu sobre o cinturão das armas de Rio, no chão ao lado da cama. De repente, ela apanhou uma das facas. Levantou a adaga brilhante e sussurrou a Rio que sempre o amaria um segundo antes de cravar a lâmina afiada na própria garganta.

— Eva, não! — gritou Gabrielle, como se acreditasse que poderia salvá-la. — Oh, meu Deus! Não!

Lucan rapidamente a tomou entre os braços e fez com que pou­sasse o rosto em seu peito para evitar que visse Eva cortar a própria jugular e cair sem vida no chão.

 

Depois do banho, no apartamento de Lucan, Gabrielle secou os cabelos molhados e vestiu um robe. Estava exausta, depois de ter passado o dia todo com Savannah, Danika e Gideon cuidando dos feridos. Todos se encontravam num estado de surda incredulidade por causa da traição de Eva e do trágico desenlace: Eva morta por suas próprias mãos e Rio agarrado precariamente à vida.

Apesar das péssimas condições físicas, Lucan saíra da enfermaria sem nenhum auxílio e fora para seu apartamento, sem que Gabrielle ou as outras mulheres conseguisse dissuadi-lo.

Ela se sentiu aliviada ao abrir a porta do banheiro e encontrá-lo sentado na enorme cama com as costas apoiadas na cabeceira. O rosto e o corpo estavam recobertos de bandagens, e a fisionomia denotava exaustão. Porém, estava recuperando e, com o tempo, ficaria curado.

Assim como ela, não usava nada exceto o robe felpudo e macio, única vestimenta que as mulheres permitiram que usasse depois de passarem horas limpando os estilhaços cravados na pele e desinfetan­do os ferimentos em quase todo o corpo.

— Sente-se melhor? — Lucan perguntou, observando-a pentear com os dedos os cabelos úmidos.

— Achei que teria fome ao sair do banho.

— A verdade é que estou faminta!

Lucan sorriu e indicou a mesa baixa a um canto do dormitório, embora o olfato de Gabrielle já tivesse detectado o impressionante bife. O aroma de pão de alho e especiarias, queijos e molhos finos flutuava no ar. Uma travessa de salada de folhas e legumes de um exuberante colorido e a cesta com frutas frescas chamaram-lhe a atenção, assim como a tigela com o que parecia ser musse de choco­late, em meio a outras tentações. Ela se aproximou para olhar mais de perto e o estômago se retorceu de fome.

— Ravioli aos quatro queijos! — exclamou, inalando o vapor aromático da massa, ao lado de uma garrafa de vinho tinto aberta.

— Savannah queria saber se você tinha algum alimento preferido. Foi a única coisa que me ocorreu. Esse era o prato que você havia preparado na noite em que fui à sua casa para lhe devolver o telefone celular. A comida ficou fria, esquecida em cima da pia, lembra?

— Oh... Você se lembra do eu preparei naquela noite? — ela perguntou, encantada.

Ele encolheu os ombros ligeiramente.

— Sente-se e coma.

— A mesa está posta para um — ela observou, fitando-o com expressão confusa.

— Está esperando visita?

Gabrielle levou alguns segundo para compreender. Talvez levasse algum tempo para se acostumar à ideia de que Lucan se alimentava apenas de sangue.

— Você não pode comer nada disso?

— Eu teria de ingerir uma porção tão pequena que não valeria a pena. — Fez-lhe um gesto para que se sentasse. — Comer os ali­mentos dos humanos é algo que fazemos apenas pelas aparências. Por favor, fique à vontade.

Gabrielle se sentou no chão com as pernas cruzadas. Tirou o guardanapo de linho debaixo dos talheres e o colocou no colo.

— Mas não me parece justo comer enquanto você fica olhando.

— Não se preocupe comigo. Já recebi muitos cuidados femininos por hoje.

Ela estava faminta demais para esperar, sem contar que o aspecto da comida era absolutamente irresistível. Com o garfo, Gabrielle espe­tou um ravioli e o degustou em estado de absoluto êxtase. Comeu a metade do prato em tempo recorde e somente fez uma pausa para encher a taça de vinho, que também bebeu com prazer voraz. Durante todo o tempo, Lucan a observava da cama.

— Está bom? — perguntou quando ela levou a taça de vinho aos lábios.

— Fantástico — murmurou ela, servindo-se de uma porção de salada.

Com murmúrios de satisfação, ela não deixou de provar nenhum dos pratos, consciente de que havia extrapolado todos os limites da gula. Satisfeita, serviu-se de mais vinho e se recostou com um suspiro.

— Obrigada, Lucan. Tenho de agradecer Savannah também. Não precisavam se incomodar.

— Apenas desfrute seu banquete particular — disse Lucan com expressão indecifrável.

— Você foi de grande ajuda esta noite. Obrigado por cuidar de Rio e dos outros... e de mim em especial.

— Não tem por que me agradecer.

— Sim, tenho. — Ele franziu o cenho e o ferimento na têmpora inchou com o movimento. — Você foi amável e generosa durante todo o tempo, e eu... — Ele se interrompeu e murmurou algo inaudível. — Eu agradeço pelo que tem feito. Isso é tudo.

Gabrielle mordeu os lábios, frustrada. Até mesmo a gratidão de Lucan parecia estar bloqueada por uma barreira emocional.

De súbito, Gabrielle se sentiu uma estranha diante daquele homem. Incomodada, desviou o olhar e mudou de assunto.

— Eu soube que Tegan voltou.

— Sim. Mas Dante e Niko estiveram a ponto de destroçá-lo por ter desaparecido durante a luta.

— O que aconteceu com ele?

— Quando invadimos o armazém, um dos Corrompidos tentou fugir pela porta dos fundos. Tegan o perseguiu até a rua. Planejava matá-lo, mas decidiu segui-lo para descobrir para onde ia. Perseguiu-o até o velho asilo psiquiátrico localizado fora da cidade. O lugar esta­va infestado de Corrompidos. Se havia alguma dúvida, agora já esta­mos seguros de que é uma imensa colônia. Provavelmente, Tegan encontrou o quartel general desta região.

Gabrielle sentiu um arrepio gelado ao pensar que estivera no asilo, sem saber que era um refugio de Corrompidos.

— Tenho várias fotografias do interior do prédio. Ainda estão em minha câmara. Não tive tempo de descarregá-las.

Lucan ficou imóvel e a fitou com expressão grave. O rosto lívido empalideceu ainda mais.

— Você entrou naquele lugar?!

Ela encolheu os ombros, sentindo-se culpada, quando Lucan desli­zou as pernas para fora da cama e a fitou por um longo momento.

— Eles poderiam tê-la matado. Você se deu conta disso?

— Mas não o fizeram — ela respondeu com voz apagada.

— Jesus Cristo, Gabrielle! — Ele passou as mãos pelos cabelos, num gesto aflito. — Onde está sua câmara?

— Deixei-a no laboratório.

Lucan apanhou o telefone sobre o criado-mudo e apertou o núme­ro da linha interna.

— O que houve? — Gideon respondeu do outro lado. — Está tudo bem?

— Sim — Lucan afirmou, encarando Gabrielle. — Diga a Tegan que esqueça o reconhecimento do asilo psiquiátrico. Acabo de me interar de que temos fotos do interior.

— Sério? — Fez-se uma pausa. — Quer dizer que ela entrou nesse maldito lugar?

Lucan olhou para Gabrielle e arqueou uma sobrancelha com expressão de censura.

— Descarregue as imagens da câmara e diga aos outros que nos reuniremos dentro de uma hora para decidir a nova estratégia. Acredito que economizaremos tempo crucial com isso.

— Então, nos vemos às quatro horas — Gideon declarou depois de olhar no relógio na tela do computador.

A chamada terminou com o som de ocupado do interfone.

— Tegan ia voltar ao asilo psiquiátrico?

— Sim — respondeu Lucan. — Provavelmente seria uma missão suicida. Foi loucura se infiltrar lá sozinho para conseguir informa­ção sobre o lugar, embora seja impossível convencer Tegan a mudar de idéia sobre qualquer coisa que ele decida fazer.

Lucan se levantou se pôs a inspecionar as bandagens. Abriu o robe, expondo o peito e o abdômen. As marcas ainda apresentavam ligeiro tom avermelhado, porém, mais claras que horas atrás.

— Por que você e Tegan se odeiam? — Gabrielle ousou exteriorizar a pergunta que martelava em sua cabeça desde o momento em que Lucan pronunciara o nome do guerreiro. — O que aconteceu entre vocês?

A princípio, julgou que ele não fosse responder. Lucan conti­nuou inspecionando os ferimentos, flexionando os braços e as per­nas em silêncio. Então, quando achou que não obteria resposta, ele a surpreendeu.

— Tegan me culpa por ter tirado algo que era dele. Algo que ele amava. — Ele ergueu o rosto e fitou-a diretamente nos olhos. — A Escolhida dele morreu em minhas mãos.

— Deus Santo! Como foi?

Ele franziu o cenho e desviou o olhar.

— As coisas eram diferentes quando Tegan e eu nos conhece­mos. A maioria dos guerreiros optava por não ter nenhuma compa­nheira. Naquela época, éramos poucos na Ordem, e proteger nossas famílias era impossível, pois o combate nos obrigava a estar a quilô­metros de distância e, freqüentemente, durante muitos meses.

— E os Darkhaven? Não podiam oferecer amparo às mulheres e crianças?

— Havia menos refúgios, e poucos se arriscavam a abrigar a Escolhida de um guerreiro. Nós e nossos entes queridos éramos alvo constante da violência dos Corrompidos. Tegan sabia disso, mas esta­beleceu vínculo com uma fêmea. Não muito tempo depois, ela foi capturada pelos Corrompidos. Eles a torturaram e violaram. Antes de devolvê-la, sugaram-lhe quase todo o sangue. Ela se esvaziou. Pior que isso, converteu-se numa Seguidora do Corrompido que a tinha destroçado.

— Oh, Meu Deus — exclamou Gabrielle, horrorizada.

Lucan suspirou, como se o peso dessas lembranças fosse muito para ele.

— Tegan ficou louco de fúria. Comportou-se como uma besta enlouquecida, destruindo tudo o que encontrava pela frente. Durante um ano, negou-se a aceitar o fato de que sua Escolhida estava perdi­da para sempre. Continuou alimentando-a de suas veias, sem querer ver sua própria degradação. Ele não se deu conta de que estava se tornando viciado em sangue. A ânsia de manter a vida de sua ama­da o precipitou para a sede de sangue. Pouco a pouco, ele estava se transformando num Corrompido. Eu tinha de fazer alguma coisa, e... Gabrielle terminou a frase que ele deixara incompleta:

— E, como líder, assumiu a responsabilidade de agir. Lucan assentiu com expressão triste.

— Prendi Tegan numa cela hermeticamente fechada e usei a espada na Escolhida dele.

— Oh, Lucan... — Gabrielle fechou os olhos, comovida com o sofrimento de Lucan.

— Tegan não foi liberado até que seu corpo ficasse limpo da sede de sangue. Deixei-o preso por meses, passando fome e sofrendo a mais dolorosa agonia, até que ele tivesse se libertado do vício. Achei que tentaria me matar quando soubesse o que eu tinha feito. Porém, ele não o fez. O Tegan que eu conhecia não foi o mesmo que saiu daquela cela. Era alguém muito mais frio. Ele nunca me disse, mas sei que passou a me odiar desde aquele momento.

— Não tanto quanto você se odiou pelo que teve de fazer — ela comentou, notando as mandíbulas apertadas e a expressão tensa no rosto.

— Estou acostumado a tomar decisões difíceis. Não tenho medo de assumir as tarefas mais duras, nem de receber a carga de ódio por causa das decisões que tomo em nome da Raça. Nada disso me importa.

— Não, não é verdade — disse ela com suavidade. — Você teve de ser duro com um amigo, e isso representou um grande peso para você.

Lucan a fitou pronto para argumentar, mas não encontrou a força necessária. Sentia-se exaurido depois de tudo pelo que passara.

— Você é um homem bom, Lucan. Tem um coração nobre debaixo da armadura que usa para se proteger dos sentimentos.

— Está enganada. — Ele emitiu um grunhido irônico. — Somente alguém que me conhece pouco pode cometer o engano de pensar assim.

— É mesmo? Pois eu conheço várias pessoas aqui que diriam o mesmo, incluindo Conlan, se estivesse vivo.

— Conlan? — Ele franziu o cenho com expressão atormentada. — O que sabe a respeito disso?

— Danika me contou o que fez por ele. Disse que você o levou para o pátio ao ar livre e ficou ao lado dele durante o amanhecer. Para honrar seu amigo, você sofreu queimaduras terríveis.

— Jesus Cristo! — Lucan exclamou em tom cortante. — Honra não teve nada com isso. Quer saber por que o fiz? Foi por um terrível sentimento de culpa. Na noite em que a bomba explodiu na estação de trem, eu tinha de estar ao lado de Niko, e não Conlan. Só que eu não conseguia tirar você da minha cabeça. Pensei que, possivelmen­te, se eu a possuísse, satisfaria minha ânsia e poderia seguir adiante. Foi por isso que designei Conlan para ir em meu lugar. Tinha de ter sido eu.

— Meu Deus, Lucan! Você é incrível, sabia? — Gabrielle balan­çou a cabeça com desânimo. — Nunca se permite relaxar?

— Não. E agora, você sabe por quê. — Ele meneou a cabeça com expressão de desgosto. — Eva me culpou pelos ferimentos dele e de Rio.

Gabrielle recordou a cena hedionda da enfermaria. Todos haviam ficado horrorizados ante o ato suicida de Eva e assombrados pelas acusações contra Lucan. Todos, menos ele.

— Lucan, o que ela disse...

— Tudo era verdade, tal como você mesma viu. Mesmo assim, ainda me defendeu. Foi a segunda vez que ocultou minha debilidade dos outros, Gabrielle. — Ele franziu o cenho com expressão grave. — Não vou permitir que faça isso outra vez. Meus problemas não dizem respeito a ninguém.

— Mas você precisa solucioná-los.

— O que preciso é me vestir e estudar as imagens que Gideon está descarregando. Se fornecerem informação suficiente sobre a distribuição do asilo, podemos atacar esta noite.

— O que quer dizer? Você está pensando em...

— Acabar com ele — Lucan concluiu por ela. — Fazê-lo voar pelos ares.

— Não é possível que esteja falando sério! Você mesmo disse que possivelmente esteja cheio de Corrompidos. Acredita mesmo que você e mais três guerreiros vão sobreviver se enfrentarem um número desconhecido de Corruptos?

— Já fizemos isso antes. E seremos cinco — acrescentou, como se isso fizesse toda a diferença.

— Gideon quer participar. Vai ocupar o lugar de Rio. Gabrielle quase gritou, incrédula.

— E o que me diz de você? Quase não consegue parar em pé!

— Estou bem o suficiente para andar. Eles não esperam que con­tra-ataquemos tão logo, assim, é o melhor momento para dar o golpe.

— Você deve ter perdido o juízo! Precisa descansar, Lucan. Não está em condições de fazer nada até recuperar as forças. — Gabrielle observou-o apertar o maxilar. A expressão do rosto era mais dura do que o habitual. Porém, não se deixou intimidar. — Você não pode sair, fraco como está.

— Já disse que estou bem.

Lucan pronunciou as palavras precipitadamente, em um tom rou­co e gutural. Voltou a fitá-la e os olhos prateados mostravam finas rajadas de cor âmbar, como se o fogo lambesse o gelo.

— Não, não está — ela insistiu. — Precisa se alimentar. Seu corpo sofreu muito ultimamente.

Gabrielle sentiu que uma onda gélida invadia o quarto, e soube que provinha dele. Tinha consciência de que estava provocando a fúria de Lucan, e se arrependeu por pressioná-lo. Ele estava inquieto e tenso desde que a levara para a sede. Agora, parecia ter chegado ao limite do autocontrole.

Entretanto, talvez fosse exatamente o que Lucan precisava, ponde­rou. Alguém tinha de desafiá-lo e fazê-lo perceber certas verdades.

— Seu corpo está destroçado, Lucan, e não somente por causa dos ferimentos. Você está com medo.

— Medo? — Ele dirigiu-lhe olhar depreciativo, carregado de sar­casmo. — Medo do quê?

— De você mesmo, para começar. Mas acredito que tenha mais medo de mim.

Ela esperava uma negativa fria e desagradável. Porém, Lucan não disse nada. Fitou-a durante um longo momento antes de caminhar em direção ao closet no outro extremo da sala.

Gabrielle permaneceu sentada no chão e observou-o abrir abrupta­mente as gavetas, retirar peças de roupas e jogá-las sobre a cama.

— O que está fazendo?

— Não tenho tempo para discutir com você. Não tem sentido.

Ele seguiu para o armário alto que continha armas e abriu-o com gesto abrupto. As portas deslizaram com violência, revelando dezenas de adagas e outras armas de aspecto letal, alinhadas sobre as prate­leiras revestidas de fino veludo. Com gesto descuidado, Lucan esco­lheu duas facas embainhadas e uma pistola de aço inoxidável que parecia saída de um filme de ação.

— Como não gosta do que estou dizendo, você vai fugir... Típico dos homens! — Ela comentou com ironia. Porém, Lucan ignorou-a por completo. — Vá em frente! Finja que é invencível, que não está morto de medo de deixar que alguém se preocupe com você. Fuja de mim. Isso somente demonstra que tenho razão.

Gabrielle sentiu a mais absoluta desesperança, enquanto Lucan tirava a munição do armário e a introduzia no carregador da pisto­la. Era como se tentasse abraçar uma tormenta para conter sua fúria. Nada do que dissesse poderia detê-lo.

Desviou o olhar e se fixou nos pratos e talheres da mesa diante dela. A lâmina reluzente de uma faca atraiu sua atenção.

Não seria capaz de convencer Lucan com palavras, mas ela sabia de algo que poderia detê-lo...

Gabrielle subiu a manga da blusa e, com a mesma determina­ção que se valera centenas de vezes anteriormente, apanhou a faca e apertou o fio contra os músculos tenros do antebraço. Num movimen­to fluido, deslizou a lâmina e provocou um fino corte sobre a pele.

Ela não soube qual dos sentidos de Lucan reagiu primeiro. Ouviu o rugido que estremeceu as paredes do apartamento.

— Maldita seja, Gabrielle!

A faca voou de sua mão, atravessou o quarto e foi se cravar na parede do outro lado. Lucan se moveu com tanta rapidez que ela não percebeu o movimento. Estava em pé ao lado da cama, e no instante seguinte, a mão forte a segurava pelo pulso e a suspendia para que ficasse em pé. O sangue fluía da fina linha do corte, de um vermelho profundo, e gotejava ao longo do braço.

Ao lado dela, Lucan parecia uma torre alta e sombria, ardente de fúria. O peito arfava e as narinas se dilataram enquanto o ar entra­va em seus pulmões. O rosto bonito estava contraído pela angústia e indignação, e os olhos ardiam com o inconfundível brilho voraz da sede. Não havia o menor vestígio, do esplêndido tom prateado das íris, e as pupilas se fecharam em duas linhas verticais, finas e negras. As presas se alargaram, revelando as pontas afiadas e brilhantes sob o sorriso lúbrico.

— Diga que não necessita do que estou oferecendo — ela disse com ferocidade.

Gotículas de suor banharam a fronte de Lucan enquanto obser­vava o sangue chamando-o como um ímã. Umedeceu os lábios e pronunciou uma imprecação em outro idioma.

— Por quê? — perguntou, em tom acusador. — Por que está fazendo isso comigo?

— Você não sabe? — Gabrielle sustentou o olhar furioso, acal­mando a ira, enquanto gotas de sangue salpicavam a brancura da blusa. — Porque te amo, Lucan. E isso é tudo que posso lhe dar.

 

Lucan acreditava que sabia o que era a sede. Acreditava que conhe­cia a fúria e o desespero. Porém, todas as míseras emoções que sentira durante a vida se desfizeram como o pó quando encontrou o olhar desafiador de Gabrielle.

Seus sentidos estavam embargados, afogados no doce aroma de jasmim do sangue vivo, essa fonte perigosamente perto de seus lábios. De uma brilhante cor vermelha, densa como o mel, um fio carmesim brotava do pequeno ferimento.

— Amo você, Lucan.

A voz suave se sobressaiu através dos batimentos desenfreados de seu próprio coração e da necessidade imperiosa que o cegava.

— Com ou sem vínculo de sangue, eu amo você.

Ele não podia falar. Sequer sabia o que poderia dizer se a garganta seca fosse capaz de emitir algum som. Com um grunhido selvagem, afastou-se dela, fraco demais para permanecer tão perto, agora que seu lado sombrio o empurrava para possuí-la de forma irrevogável.

Gabrielle caiu sobre a cama. Manchas brilhantes salpicavam a manga da blusa. Tinha outra mancha vermelha sobre a coxa, de um vivido tom escarlate que contrastava com a alvura da pele.

Lucan lutou com todas as forças contra a urgência de levar os lábios até a ferida aberta.

— Não! — A ordem escapou num tom tão seco como as cinzas.

Os joelhos falharam quando tentou se distanciar da imagem tenta­dora, aberta como um sacrifício devotado a ele. Deixou-se cair sobre o tapete, uma massa inerte de músculo e ossos, lutando contra uma necessidade que ele não conhecia até aquele momento. Nunca expe­rimentara sede tão intensa como quando Gabrielle estava próxima. E agora, que seus pulmões tinham se enchido com o perfume do san­gue dela, a sede se tornava devoradora.

— Lucan...

As passadas suaves dos pés descalços ecoaram com a força de uma explosão. Gabrielle se agachou ao lado dele. Lucan sentiu o contato leve da mão delicada em seus cabelos. Os dedos deslizaram para o queixo, fazendo com que levantasse a cabeça para fitá-la.

— Beba de mim.

Ele apertou os olhos com esforço, numa débil tentativa de recha­çar a oferta. Não tinha a energia necessária para lutar contra a força persuasiva dos braços dela, que agora o atraíam para si.

O odor do sangue despertou em Lucan uma furiosa corrente de adrenalina. A boca se encheu de saliva, as presas se alargaram mais, esticando as gengivas.

Com uma das mãos, Gabrielle afastou os cabelos, expondo, o pes­coço alvo e delgado.

— Beba, Lucan. Toma o que necessita.

Ela se inclinou para frente até que ficassem separados por apenas um suspiro, e estendeu o pulso delicado, oferecendo-lhe a dádiva da vida.

— Faça — sussurrou ela, atraindo-o para si.

Lucan pressionou os lábios com força contra a pele macia do colo. Sustentou-se nessa posição durante uma eternidade de angústia, e levou uma fração de segundo para sucumbir à tentação. O universo todo se resumiu no contato da língua na pele cálida, no ritmo surdo da pulsação, na respiração ofegante e urgente. Naquele momento, ele não tinha consciência de mais nada que não fosse seu desejo por aquela mulher.

Desejava-a, desejava tudo dela, e a fera adormecida dentro dele despertou com furor impiedoso, obrigando-o a cravar as presas na carne tenra do pescoço.

Gabrielle reprimiu uma exclamação ao sentir os dentes a penetra­rem, e não emitiu nenhum som quando Lucan tragou pela primeira vez o sangue de sua veia aberta.

O líquido quente e denso envolveu o paladar de Lucan. Ele fechou os olhos em êxtase. O sabor e a textura superavam tudo o que ele pudesse ter imaginado. Depois de tantos anos de existência, ele final­mente sabia o que era o céu.

Sugou com urgência e sofreguidão, usufruindo a plenitude que transbordava da veia, enquanto se saciava do sangue que penetrava a carne, os ossos e as células. Lucan sentiu-se renascer, e todos os ferimentos do seu corpo se curaram instantaneamente.

O sexo havia despertado com o primeiro contato com o sangue de Gabrielle. Agora, pulsava com força, exigindo a posse total do corpo dela.

Gabrielle gemeu em êxtase ante a intensidade da sucção dos lábios sedentos. Seu aroma se tornou mais adstringente, impregnado de desejo.

— Lucan — disse quase sem fôlego, estremecendo. — Oh, Deus...

Com um grunhido sem palavras, ele a empurrou contra o chão e sorveu a seiva de Gabrielle com volúpia incontida, perdendo-se no erótico calor do momento com um frenesi que o assustou.

Minha, pensou, num rompante de possessividade egoísta. Agora, era tarde para parar. Aquele beijo amaldiçoara a ambos.

Enquanto a primeira mordida provocara dor, a sensação aguda se dissipou rapidamente para converter-se numa deliciosa embriaguez. Gabrielle sentiu o corpo inebriado pelo prazer, como se cada toque dos lábios de Lucan injetasse nela uma corrente de torpor que parecia alcançar sua alma.

Ele abriu o robe e a cobriu com seu corpo nu. As mãos posses­sivas a sujeitavam, inclinando a cabeça dela para trás a fim de ter acesso irrestrito à veia do pescoço.

Gabrielle sentiu a pressão do peito nu contra seus seios. Percebeu que Lucan estava recuperando as forças pouco a pouco, graças a ela.

— Não pare — murmurou, num êxtase crescente. — Você não me fará mal, Lucan. Confio em você.

O contato dos lábios sobre a pele, o roçar das presas enquanto Lucan sugava com lascívia, a sensação de pertencer a ele de corpo e alma, levaram Gabrielle à loucura. O clímax vertiginoso a estremeceu logo que a ereção de Lucan pressionou seu sexo.

Ele a penetrou com uma investida que a preencheu por comple­to. Gabrielle gritou enquanto ele a possuía com estocadas profundas, aprisionando-a com os braços fortes. Fechou os olhos e se deixou flutuar, envolta numa nuvem de puro prazer. Notou que Lucan inves­tiu com urgência, e o corpo viril vibrou pela potência do clímax. Ele emitiu um grito áspero e ficou completamente imóvel.

A deliciosa pressão no pescoço se afrouxou de forma abrupta.

No instante seguinte, os lábios se afastaram. Gabrielle, que ainda se sentia inundada pela embriaguez do clímax devastador, levantou as pálpebras pesadas.

Lucan se postara de joelhos e a fitava com expressão congelada. Os lábios rubros e os cabelos em desalinho emprestavam-lhe a apa­rência de um deus vitorioso depois da batalha. Os olhos selvagens irradiavam um brilho dourado. A pele lisa não mostrava o menor sinal dos ferimentos e o labirinto de marcas que lhe cobriam os ombros e o torso haviam adotado um tom carmesim.

— O que foi? — perguntou-lhe, preocupada. — Você está bem?

Lucan permaneceu mudo durante um longo momento, como se não acreditasse no que acabara de acontecer.

— Jesus Cristo! — A voz grave soou como um grunhido trêmu­lo. — Acreditei que estava... Acreditei que havia...

— Não — Gabrielle o interrompeu, com expressão preguiçosa e saciada. — Não, Lucan. Eu estou bem. Você não me fez mal algum.

Ela sorriu, mas Lucan continuou a fitá-la com intensidade. Um intenso frio arrepiou-lhe a pele quando Lucan se afastou abrupta­mente e os olhos se transformaram, mostrando a mais profunda dor.

— Está tudo bem — tranquilizou-o. — Lucan, eu estou...

— Não — ele negou com um gesto veemente da cabeça. — Não. Isso foi um equívoco.

— Lucan...

— Não devia ter permitido que acontecesse! — gritou, entre furioso e desolado.

Com um grunhido abafado, ele apanhou a roupa que havia esco­lhido e trancou-se no banheiro. Minutos depois, saiu com os cabe­los úmidos, vestido com o traje negro com estampa de camuflagem. Calçou as botas, apanhou as armas e saiu do quarto com uma fúria tempestuosa e ardente.

Lucan quase não podia respirar ante a força com que o coração pulsava em seu peito. No momento em que Gabrielle ficou inerte sob ele, enquanto a sugava com volúpia, um medo irracional o atravessou. Enquanto bebia febrilmente de seu pescoço, ela dissera que confia­va nele. O frenesi da sede aguilhoava seu corpo enquanto o sangue de Gabrielle o preenchia. O som da voz dela suavizara a dor. Ela se mostrara terna e cuidadosa. O afeto, a emoção nua, a simples presença de Gabrielle lhe dera forças no momento em que sua parte animal estivera a ponto de assumir o controle.

Ela confiava nele. Sabia que não lhe faria mal, e fora essa confian­ça que lhe dera forças para que o homem sobrepujasse a fera.

Deus, como tivera medo naquele instante! E o medo ainda o afli­gia como um terror escuro e frio que obscurecia a razão. Poderia matá-la se permitisse que a criatura bestial que o habitava tivesse dominado sua alma.

Por mais que tivesse lutado contra aquela verdade, por mais que houvesse negado, ele pertencia a Gabrielle de corpo e alma, e não simplesmente pelo fato de que seu sangue o nutrisse nesse momento, curando-o e fortalecendo-o. Unira-se a ela muito antes desse momen­to, e a prova irrefutável e definitiva se dera no funesto instante em que o medo de perdê-la foi maior do que o prazer de possuí-la.

Sim, ele a amava. Do mais profundo de seu âmago, amava Gabrielle. Queria tê-la em sua vida de forma egoísta e perigosa. Não havia nada que desejasse mais do que tê-la ao seu lado para o resto de seus dias.

Tal noção quase o derrubou de joelhos. Lucan se apoiou à parede, diante da porta do laboratório.

— Ei! Está tudo bem? — Dante se aproximou e o sustentou por debaixo dos braços. — Seus ferimentos estão muito melhores, mas sua aparência está péssima.

Lucan não podia falar. As palavras estavam além de sua capaci­dade. Porém, Dante não necessitava de nenhuma explicação. Bastou olhar para o rosto e ver as presas expostas. Suas narinas se dilata­ram ao sentir o aroma de sexo e sangue. Deixou escapar um assovio baixo e fitou Lucan com um brilho de ironia.

— Não pode ser! Você, com uma companheira de sangue, Lucan? — Ele riu, meneando a cabeça enquanto dava palmadas afetuosas no ombro do guerreiro. — Melhor que seja você do que eu, irmão.

Três horas mais tarde, logo que a noite caiu, Lucan e os outros guerreiros esperavam, ocultos pelas sombras, dentro de uma van negra estacionada a poucos metros do antigo asilo psiquiátrico.

As fotografias de Gabrielle haviam sido decisivas para o golpe contra o refúgio dos Corrompidos. Além de várias tomadas exteriores que permitiram determinar o ponto de acesso, ela registrara o interior da sala das caldeiras, de vários corredores, de escadas e, inclusive, algumas que inadvertidamente mostravam câmeras de segurança que teriam de ser desativadas quando os guerreiros ganhassem acesso ao lugar.

— Entrar vai ser a parte fácil — disse Gideon, enquanto o grupo revisava o plano pela última vez.

— Interromperei o sinal de segurança das câmeras do piso tér­reo, mas, quando estivermos dentro, será mais difícil colocar duas dúzias de barras de C4 nos pontos críticos sem alertar a colônia.

— Para não mencionar o problema da publicidade não desejada dos humanos — disse Dante, olhando para os lados. — Por que Niko está demorando tanto para localizar a tubulação de gás?

— Aí vem ele — Lucan avisou ao ver a figura escura do vampiro se aproximar do veículo.

Nikolai abriu a porta traseira e sentou-se do lado de Tegan. Tirou o capuz negro e os olhos azuis faiscaram de excitação,

— Será um passeio no parque. A tubulação externa chega por um registro no ala leste da construção. Possivelmente, esses bastardos não necessitem de calefação, mas o velho asilo ainda tem muito gás acu­mulado na antiga tubulação. Rompi os canos e desviei-os de modo que inundem o porão e a sala das caldeiras. O velho prédio é uma bomba gigante esperando para ser detonada.

Lucan fitou os olhos ansiosos do guerreiro.

— Então, entramos, deixamos nossos presentes, limpamos o lugar...

— Aí, eu entro em ação — Niko continuou. — Façam um sinal quando o explosivo estiver nos pontos estratégicos. Vou esperar que todos estejam de volta para abrir o registro e detonar o C4. Para a polícia, será como se um vazamento de gás tivesse causado a explo­são. E se algum detetive quiser se meter, estou seguro de que as fotos de Gabrielle da gangue de grafiteiros farão com que os humanos andem em círculos durante muito tempo.

Enquanto isso, os guerreiros teriam mandado uma importante mensagem a seus inimigos, especialmente ao vampiro de primeira geração que Lucan suspeitava encontrar-se no comando dessa guerra. Se ele não estivesse presente, fazer o quartel general voar pelos ares seria um convite irrecusável para que o líder saísse ao ar livre e come­çasse a mostrar quem era.

Lucan estava ansioso por começar e, especialmente, por terminar a missão. Tinha um assunto inacabado esperando-o na sede. Odiava ter deixado Gabrielle, sabendo que ela devia estar confusa e inquieta. Ficara muito por dizer, coisas que ele não estava preparado para pen­sar e, muito menos, para ouvir, naquele momento em que a surpreen­dente realidade de seus sentimentos o assaltou.

Agora, tinha a cabeça cheia de planos imprudentes, estúpidos e esperançosos, todos eles centrados em Gabrielle.

No interior do veículo, os guerreiros verificavam o equipamento, carregando as barras de C4 dentro de bolsas e realizando os ajustes finais dos microfones que lhes permitiriam estar em contato uns com os outros quando chegassem ao perímetro do asilo e se separassem para colocar os explosivos.

— Essa noite, faremos isso por Rio — Dante anunciou, girando a Malebranche entre os dedos enluvados para introduzi-la na bainha presa ao quadril. — Chegou o momento da vingança.

— Sim! — respondeu Niko, ao qual os outros fizeram coro. Quando se dispunham a sair, Lucan levantou uma mão.

— Um momento. — A tristeza de seu tom de voz fez os guerrei­ros se deterem. — Há uma coisa que têm que saber. Dado que esta­mos a ponto de entrar e que é provável que nos dêem uma boa surra, suponho que este seja o momento mais indicado para deixar algo bem claro. Necessito que cada um de vocês me faça uma promessa.

Ele olhou nos rostos de seus irmãos, guerreiros que haviam lutado ao lado dele durante tanto tempo. Eles sempre o respeitaram e con­fiaram, sempre se reportaram a ele para decidir uma estratégia ou tomar uma decisão.

Agora, Lucan estava inseguro, sem saber por onde começar. Passou os dedos pelos cabelos e deixou escapar um suspiro.

Gideon o fitou com o cenho franzido e expressão de preocu­pação.

— Está tudo bem, Lucan? Você ainda não se recuperou por completo da noite passada. Se não quiser participar disso...

— Não. Não é isso. Estou bem. Minhas feridas estão curadas... graças a Gabrielle — disse, hesitante. — Hoje, ela e eu...

— Não é preciso dizer nada. Já entendemos. — Gideon ergueu as mãos ao ver que Lucan se interrompia.

— Você tomou o sangue dela? — perguntou Niko.

Tegan soltou um grunhido do assento traseiro.

— Essa fêmea é uma Escolhida.

— Sim — respondeu Lucan com calma e seriedade. — E pre­tendo pedir a ela que me aceite como companheiro.

Dante o encarou com expressão de surpresa.

— Felicidades, Lucan! São ótimas notícias.

Gideon e Niko também demonstraram aprovação com palmadas amigáveis nas costas do líder.

— Isso não é tudo.

Seis pares de olhos se cravaram nele. Somente Tegan manteve-se cabisbaixo.

— Na noite passada, Eva disse algumas coisas a meu respeito... — Imediatamente, Gideon, Niko e Dante protestaram. Lucan continuou, apesar dos grunhidos de irritação. — Jamais a perdoaremos por ter nos traído e, especialmente, por ter traído Rio. Mas o que ela disse a meu respeito era verdade.

Dante o encarou com suspeita.

— Do que está falando?

— Da sede de sangue — respondeu Lucan. A palavra soou com for­ça no silêncio do interior do veículo. — Há muito tempo isso represen­ta um problema para mim. Não sei se poderei vencer. Possivelmente, com Gabrielle a meu lado, exista uma oportunidade. Vou lutar como um demônio, mas se piorar...

Gideon soltou uma obscenidade.

— Isso não vai acontecer, Lucan. Dentre todos os guerreiros, você é o mais forte. Sempre foi. Nada pode derrotá-lo.

Lucan negou com a cabeça.

— Já não posso continuar fingindo que sou forte. Estou cansa­do. Não sou invencível. Depois de anos vivendo com essa mentira, Gabrielle não demorou nem duas semanas para me desmascarar. Obrigou-me a ver como sou de verdade. Eu não gosto muito do que vejo, mas quero ser melhor... por ela.

Niko franziu o cenho.

— Lucan, você está falando de amor?

— Sim — disse ele com solenidade. — Amo Gabrielle. E é por isso que preciso da lealdade de todos.

Gideon assentiu.

— Diga, e faremos o que quiser.

— Se as coisas saírem de controle em algum momento, tenho de saber que posso contar com vocês. Se virem que estou perdendo o controle... Necessito da palavra de vocês que vão acabar comigo.

— O quê?! — exclamou Dante. — Não pode nos pedir isso, Lucan.

— Ouçam, por favor...

Ele não estava acostumado a suplicar. Pronunciar o pedido era insuportável, mas tinha de fazê-lo. Estava cansado de suportar sozi­nho esse peso, e a última coisa que desejava era, num momento de debilidade, fazer algum mal a Gabrielle.

— Tenho de ouvir o juramento de cada um de vocês. Prometam-me isso.

Dante o encarou, boquiaberto, e levou alguns segundos para assentir com expressão grave.

— Sim. De acordo. É loucura, mas eu concordo.

Gideon meneou a cabeça, levantou o punho e pressionou-o contra o de Lucan.

— Se é isso o que quer, eu juro que farei, Lucan. Niko fitou o irmão de Raça e pronunciou sua promessa:

— Esse dia não chegará nunca, mas se chegar, sei que você faria o mesmo por qualquer um de nós. Assim, tem minha palavra.

Faltava apenas o juramento de Tegan, que se encontrava sentado no banco de trás com atitude estoica.

— E você, Tegan? — perguntou Lucan, virando-se para olhar os olhos verdes e impassíveis.

— Posso contar com você?

Tegan devolveu o olhar silenciosamente, com atitude pensativa.

— Se você se converter num Corrompido, estarei na linha de frente para acabar com sua existência.

Lucan assentiu com a cabeça, satisfeito, e olhou os rostos sérios de seus irmãos.

— Ei! — exclamou Dante quando o denso silêncio se tornou interminável. — Todo esse sentimentalismo está me deixando impa­ciente por matar. Que tal se deixarmos de nos comportar como mocinhas e começarmos a agir como guerreiros?

Lucan sorriu em resposta à provocação do vampiro.

Os cinco guerreiros da Raça, vestidos de negro da cabeça aos pés, saíram do veículo como um só bloco e se aproximaram silenciosamente do asilo, oculto pelo arvoredo.

 

— Vamos, vamos... Abra, droga!

Gabrielle esmurrou o volante da BMW preta, esperando com impaciência que o enorme portão à entrada do complexo se abris­se. Detestava ser forçada a levar o carro sem permissão, mas depois do que acontecera a Lucan momentos atrás, estava desesperada por partir. Como todo o terreno era protegido por uma cerca elétrica de alta voltagem, a única alternativa era sair de carro. Pensaria em como o devolveria mais tarde, quando estivesse de volta ao lugar em que verdadeiramente pertencia: sua casa.

Naquela noite, ela dera a Lucan tudo o que podia, mas não fora suficiente. Estava preparada para a eventualidade de que ele não acei­tasse seu amor, mas não havia nada que pudesse fazer se ele decidi­ra rechaçá-la, como fizera. Ela lhe dera seu sangue, seu corpo e seu coração, e ele a rejeitara.

Simplesmente não tinha mais energia para lutar. Se Lucan estava decidido a permanecer sozinho, quem era ela para obrigá-lo a mudar de opinião? Se ele queria se isolar num mundo só dele, não ficaria ali para assistir.

Por fim, os portões se abriram e permitiram que ela saísse. Gabrielle acelerou e seguiu pela rua silenciosa e escura. Não tinha idéia de onde se encontrava até que, depois de alguns quilômetros, encontrou-se num cruzamento conhecido. Virou à esquerda pela rua Charles em direção a Beacon Hill e se deixou conduzir, aturdida, pelo piloto automático.

Quando estacionou o carro na esquina da casa, a construção lhe pareceu muito menor. As luzes das casas vizinhas estavam acesas, mas, apesar do resplendor dourado no ambiente, a velha fachada de tijolos vermelhos com degraus na calçada pareceu-lhe sombria.

Gabrielle subiu a escada e procurou as chaves no bolso. A mão tateou a pequena adaga que ela apanhara no armário das armas de Lucan, caso encontrasse problemas no caminho.

Quando entrou e acendeu a luz do vestíbulo, o telefone esta­va soando. Deixou que a secretária eletrônica respondesse e fechou todos os ferrolhos e correntes de segurança da porta.

Da cozinha, ela ouviu a voz entrecortada de Kendra na secre­tária eletrônica.

— É muita falta de consideração me ignorar desse jeito, Gabby. — A voz de sua amiga soava estranhamente estridente. — Tenho de vê-la. É importante. Você e eu temos de conversar.

Enquanto ouvia, Gabrielle passou pela sala de estar e notou todos os espaços vazios das fotografias que Lucan havia retirado das pare­des. Ela teve a sensação de que uma eternidade havia se passado desde a noite em que ele a levara para a sede.

— Vampiros — ela murmurou baixinho, surpresa por já não se assustar com a palavra.

Provavelmente, havia muito pouco que pudesse surpreendê-la nas atuais circunstâncias.

Agora, ela não tinha medo de enlouquecer, como acontecera com sua mãe. A trágica história de suas origens havia adquirido novo significado. Sua mãe não estava louca. Era uma mulher aterroriza­da por uma situação violenta que poucos humanos seriam capazes de conceber.

Gabrielle não pretendia que essa mesma situação a destruísse. Ao menos, agora estava em casa. Seria mais fácil pensar numa forma de recuperar sua antiga vida.

Ela deixou a bolsa sobre a mesa e foi verificar as mensagens na secretária eletrônica. O indicador piscava, mostrando que havia dezoito chamadas.

— Deve ser brincadeira — murmurou, apertando o botão de reprodução.

Enquanto a máquina entrava em funcionamento, ela seguiu para o lavabo a fim de inspecionar o pescoço. A mordida que Lucan dei­xara havia adquirido um brilho avermelhado. Localizava-se bem ao lado do sinal em forma de lágrima e lua crescente que a assinalavam como Escolhida. Tocou as duas ferroadas e o hematoma, e percebeu que não doíam. A dor surda e vazia que sentia na alma era a pior. Porém, tornava-se insignificante se comparada à fria crueldade que se instalava no peito a cada vez que recordava como Lucan se afastara, como se ela fosse um veneno mortal.

Gabrielle voltou para a cozinha, abriu a geladeira e apanhou a jarra de água, vagamente consciente da voz que ecoava na secretária ele­trônica. Na quinta mensagem, ela percebeu que havia algo estranho. Todos os recados eram de Kendra, e ela os deixara durante as últimas vinte e quatro horas. Entre alguns, não havia mais de cinco minutos de diferença. A voz da amiga se tornava mais amarga e cansada, ao contrário da primeira mensagem em que ela havia proposto que saíssem juntas. O tom de voz passara a ser mais insistente. Kendra dizia que tinha um problema e que necessitava da ajuda de Gabrielle. Nas duas últimas, exigira de forma áspera que ela respondesse logo.

Gabrielle correu até a bolsa e verificou as mensagens da secre­taria de voz do telefone celular. Encontrou o mesmo tom agressivo nas repetidas chamadas de Kendra.

Um calafrio a percorreu ao recordar-se da advertência de Lucan a respeito da amiga. Se ela tivesse caído nas mãos dos Corrompidos, já não era amiga dela. Era como se estivesse morta.

O telefone tocou na cozinha, e ela deu pulo, sobressaltada.

— Oh, meu Deus! — exclamou, tomada por um terror crescente. Tinha de sair dali. Um hotel, pensou. Algum lugar longínquo.

Algum lugar onde pudesse ocultar-se durante algum tempo e decidir o que fazer.

Gabrielle apanhou a bolsa e as chaves do BMW e correu para a porta. Abriu as correntes de proteção e girou a maçaneta. Assim que a porta se abriu, deparou-se com um rosto que outrora tinha sido amistoso. Agora, estava segura de que era o rosto de uma Seguidora.

— Vai a algum lugar, Gabby? — Kendra afastou o telefone celu­lar do ouvido e o desligou. O timbre do telefone da casa deixou de soar. Ela esboçou um sorriso débil e inclinou a cabeça num estranho ângulo. — Ultimamente, é impossível localizá-la.

Gabrielle se condoeu ao ver os olhos vazios e perdidos.

— Deixe-me passar, Kendra. Por favor. A morena riu de maneira estridente.

— Sinto muito, querida, mas não posso.

— Está com eles, não é? — Gabrielle estreitou os olhos, estudan­do a amiga. — Você está com os Corrompidos. Meu Deus, Kendra, o que ele lhe fizeram?

— Cale-se! — impôs ela, pousando o indicador sobre os lábios de Gabrielle. — Não há tempo para conversarmos. Temos de ir.

Assim que a Seguidora estendeu a mão para ela, Gabrielle recuou. Lembrou-se da adaga na bolsa e se perguntou se poderia tirá-la sem que Kendra percebesse. E, se conseguisse apanhá-la, seria capaz de utilizá-la contra sua amiga?

— Não me toque! — advertiu, enquanto deslizava os dedos lentamente pela abertura da bolsa. — Não vou a lugar nenhum com você.

Kendra mostrou os dentes, numa patética imitação de sorriso.

— Oh, acredito que deveria vir comigo, Gabby. A vida de Jamie depende de você.

Um temor gelado apertou o coração de Gabrielle.

— O... O quê?

Kendra fez um gesto com a cabeça em direção ao carro estaciona­do perto dali. O vidro lateral se abriu e ela avistou Jamie sentado no banco de trás, ao lado de um homem enorme.

— Gabrielle? — ele chamou com expressão de pânico.

— Oh, não! Jamie não. Kendra, por favor, não permita que lhe façam mal.

— Isso é algo que está completamente em suas mãos — disse Kendra em tom educado, retirando a bolsa das mãos dela. — Vou ficar com isso. Você não vai necessitar de nada do que leva aqui. — Fez um sinal a Gabrielle para que caminhasse diante dela em direção ao carro. — Vamos?

 

Lucan colocou duas barras de C4 debaixo dos enormes aquece­dores de água do asilo. Agachou-se diante do equipamento, estendeu as antenas do transmissor e conectou o microfone para informar seu progresso.

— Sala das caldeiras pronta — disse a Niko, que se encontrava no outro extremo da linha. — Sairei assim que colocar as outras três uni...

Ele se calou, subitamente imóvel. Passos abafados soaram do outro lado da porta fechada.

— Lucan? — Niko chamou, preocupado.

— Espere. Tenho companhia — murmurou em voz baixa enquan­to se aproximava em silêncio, preparando-se para receber o intruso com um golpe certeiro.

Levou a mão enluvada até o cabo da perigosa faca afiada escondi­da sob o casaco. Preferia usar a pistola e defender-se com um disparo certeiro, mas seria melhor não usar armas de fogo naquele momento. O estampido denunciaria a presença dos guerreiros, provocando um confronto perigoso. Além do mais, àquela altura, um disparo poderia acender os explosivos antes do tempo.

A maçaneta da sala de caldeiras girou lentamente. Lucan farejou o odor pútrido de um Corrompido, somado ao inconfundível aroma metálico do sangue humano. Ouviu grunhidos selvagens se confun­direm com o som de golpes, seguidos de um débil lamento da víti­ma de quem o bastardo tomava o sangue. A porta se abriu e o cheiro repugnante invadiu a sala, enquanto um Corrompido arrastava seu brinquedo moribundo para o interior escuro.

Lucan esperou a um lado da porta até que o vampiro entrasse, tão concentrado em sua presa que não percebeu a ameaça. Com um gesto preciso, ele levantou a mão e cravou a faca na caixa torácica do Corrompido. Ele rugiu, com as enormes mandíbulas abertas e os olhos amarelos inchados ao sentir o titânio penetrar no sistema circulatório.

O humano caiu no chão como se fosse um boneco gigante, e o corpo se contraiu numa série de espasmos, na agonia da morte. O Corrompido que se alimentara dele emitiu sons sibilantes e a pele se cobriu de manchas avermelhas como se tivesse sido orvalhado com ácido.

Assim que o corpo do vampiro, terminou sua rápida decompo­sição, outro deles se aproximou pelo corredor. Lucan se precipitou para a frente, mas antes que pudesse dar o primeiro golpe, o intruso se deteve abruptamente quando um braço negro o segurou por trás.

O brilho de uma lâmina fulgurou com a rapidez e a força de um raio, atravessando a garganta do Corrompido para separar a enorme cabeça do corpo com um corte limpo.

Tegan ergueu a espada gotejando sangue e fitou Lucan com os olhos verdes, tranqüilos. O guerreiro era uma máquina assassina, e a linha fina dos lábios parecia reafirmar a promessa que fizera a Lucan: ele conheceria a fúria do titânio se a sede de sangue se apode­rasse dele.

Ao contemplá-lo agora, Lucan teve certeza de que, se Tegan cum­prisse a promessa, ele morreria antes de se dar conta da presença do guerreiro. Enfrentou o olhar frio e letal e saudou-o com um gesto da cabeça.

— Lucan? Diga alguma coisa! — Ouviu Niko através do fone de ouvido. — Você está bem?

— Sim. Tudo tranqüilo. — Lucan limpou a adaga na camisa do humano e a voltou a embainhá-la. — Vou para o porão na área norte para colocar o restante dos explosivos — disse a Nikolai, enquanto saía da sala das caldeiras e percorria o corredor vazio.

Quando Lucan voltou a levantar a vista, Tegan tinha desapare­cido, desvanecendo-se como o espectro da morte que era.

 

— Gabrielle, o que está acontecendo? O que houve com Kendra? Ela me procurou na galeria e disse que você tinha sofrido um acidente. Por que mentiu para mim?

Gabrielle não sabia como responder às perguntas que Jamie, ansio­so, sussurrava-lhe no assento de trás do carro, enquanto afastavam-se de Beacon Hill em direção ao centro da cidade. As luzes nas janelas dos arranha-céus do centro financeiro iluminavam o céu escuro.

Kendra permanecia em silêncio no banco da frente ao lado do con­dutor, um gorila de pescoço largo e óculos escuros que escondiam-lhe o rosto. Outro gigante da mesma proporção sentara-se ao lado da porta, ocupando metade do assento. Espremida entre a montanha de músculos e Jamie, Gabrielle se viu encurralada. Avaliou os dois gorilas discretamente. Não acreditava que fossem Corrompidos. Não parecia que escondesse presas enormes detrás dos lábios tensos, e pelo pouco que sabia dos mortais inimigos da Raça, ela e Jamie já estariam com as gargantas abertas se esses dois homens fossem Corrompidos viciados em sangue. Na certa, eram Seguidores, deduziu. Escravos humanos de um poderoso senhor vampiro, assim como Kendra.

— O que vão fazer conosco, Gabby?

— Não sei. — Ela estendeu o braço e apertou a mão de Jamie. Falava em voz baixa, mas estava segura de que seus captores ouviam cada uma de suas palavras. — Não acontecerá nada de mau a você. Eu prometo.

Desde que eles conseguissem sair daquele carro antes de chega­rem ao destino, ela completou para si. A regra de defesa própria mais básica de todas consistia em não se deixar levar para o campo inimi­go. As oportunidades de sobrevivência passariam a ser praticamente nulas se ela e Jamie estivessem em território dos Corrompidos.

Gabrielle procurou o olhar de Jamie e sustentou-o por um segun­do. Então, desviou a atenção para a trava de segurança da porta ao lado dele. Repetiu o movimento firme dos olhos até que a expressão de interrogação no rosto do amigo deu lugar à luz da compreensão.

Jamie assentiu com um gesto quase imperceptível da cabeça. Porém, quando começou a erguer as mãos na direção do pino na porta, Kendra se virou para trás.

— Falta pouco para chegarmos. Estão excitados? Eu estou ani­madíssima! Mal posso esperar para meu Mestre conhecê-la, Gabby. Ele vai devorá-la imediatamente.

Jamie se inclinou para a frente e explodiu:

— Sua cadela mentirosa!

— Jamie, não! — Gabrielle tentou detê-lo, aterrorizada.

Jamie não tinha idéia que seu inocente instinto de proteção pode­ria lhe custar a vida ao irritar Kendra ou os outros dois Seguidores que se encontravam no carro.

— Se tocar num fio de cabelo de qualquer um de nós, vou arrancar seus olhos!

— Jamie, pare com isso! — Gabrielle suplicou, puxando-o para trás para que ele voltasse a se encostar ao assento. — Acalme-se, por favor! Não vai acontecer nada conosco.

Kendra não se alterou. Olhou para ambos e deixou escapar uma risada estridente.

— Ah, Jamie... Você sempre agiu como o cãozinho de estimação de Gabby. É patético. — Com um sorriso satisfeito, deu as costas aos dois e se voltou para o condutor. — Pare no semáforo. Não queremos chamar a atenção da polícia por causa de uma infração de trânsito.

Gabrielle deixou escapar um suspiro de alívio. Jamie estava pres­sionado contra a porta, zangado. Quando os olhares de ambos se encontraram, ele se afastou ligeiramente para o lado, permitindo-lhe ver que a porta agora estava destravada.

O coração de Gabrielle bateu mais rápido. Ela não conseguiu dissimular o sorriso enquanto o veículo reduzia a marcha atrás da fileira de carros esperando que o semáforo abrisse. Aquela era a única oportunidade que teriam.

Gabrielle olhou para Jamie e se deu conta de que ele compreende­ra o plano perfeitamente bem. Sem tirar os olhos do semáforo, esperou dez segundos que pareceram horas. A luz vermelha piscou e mudou para verde. Os carros começaram a avançar diante deles. Assim que o Sedan acelerou, Jamie levou a mão à maçaneta e a abriu.

O ar fresco da noite invadiu o interior do veículo. Jamie saltou com agilidade e pisou no pavimento. Imediatamente, estendeu a mão para ajudar Gabrielle a escapar.

— Detenham esses dois! — gritou Kendra, furiosa. — Não dei­xem que escapem!

Uma pesada mão caiu sobre o ombro de Gabrielle e puxou-a para dentro. Ela se viu pressionada contra o enorme corpo do Seguidor, apertada por braços que mais pareciam barras de ferro.

— Gabby! — Jamie gritou, tentando alcançá-la.

— Vá embora! — ela gritou, num soluço desesperado. — Suma daqui! Vá, Jamie!

— Acelera, idiota! — Kendra gritou para o motorista ao ver que Jamie se dispunha a agarrar-se à maçaneta da porta para resgatar Gabrielle.

O motor rugiu, os pneus chiaram e o carro se uniu ao tráfego.

— O que faremos com ele? — o gorila no banco de trás quis saber.

— Deixe-o — ordenou Kendra em tom cortante. Dirigiu um sor­riso a Gabrielle, que se debatia em vão no assento traseiro. — Ele já serviu ao nosso propósito.

O Seguidor subjugou Gabrielle com força até o carro parar diante de um elegante edifício de escritórios. Os dois gigantes obrigaram Gabrielle a caminhar para a porta de entrada. Kendra falava com alguém pelo telefone celular e parecia ronronar de satisfação.

— Sim, ela está comigo. Vamos subir.

Kendra guardou o telefone no bolso e atravessou o hall vazio até a área de elevadores. Quando entraram apertou o botão da cobertura.

Gabrielle se lembrou imediatamente da noite em que Jamie fora a uma cobertura no centro da cidade para mostrar suas fotografias a um comprador anônimo. Quando o elevador parou e as portas se abriram, ela teve a horrível certeza de que o conheceria.

O Seguidor que a segurava empurrou-a para que entrasse, fazen­do-a tropeçar. O medo de Gabrielle se transformou em pânico.

Diante da parede de vidro se encontrava uma alta figura de cabe­los negros, com um longo sobretudo preto e óculos da mesma cor. Possuía o mesmo porte robusto dos guerreiros da Raça e dele ema­nava a mesma ameaça fria.

— Adiante — ele disse em um tom grave que trovejou como uma tormenta. — Gabrielle Maxwell, é um prazer finalmente conhecê-la. Ouvi falar muito de você.

Kendra se colocou ao lado dele, com expressão de adoração.

— Suponho que me trouxe aqui por alguma razão — disse Gabrielle, tentando não sentir pena por ter perdido Kendra, nem medo da criatura perigosa que convertera sua amiga no que era agora.

— Sou um grande admirador de seu trabalho. — Sorriu-lhe sem mostrar os dentes, enquanto afastava Kendra com um repelão. — Você fez fotos interessantes, srta. Maxwell. Infelizmente, terá de abandonar sua arte. Não é bom para meus negócios.

Gabrielle tentou agüentar o olhar tranqüilo e ameaçador que, sabia, focalizava-a por trás dos óculos.

— Quais são seus negócios? Quero dizer, além de corromper pessoas de bem.

— Dominar o mundo, é óbvio. — Um sorriso maligno curvou os lábios finos. — Acredita que há algo mais pelo que valha a pena lutar?

— Posso pensar em pelo menos uma coisa.

Uma sobrancelha escura se arqueou por cima dos aros dos óculos ante a resposta ácida.

— Ah, srta. Maxwell, se está se referindo a amor, terei de dar por terminado este agradável e breve encontro.

O vampiro juntou os dedos das mãos e os anéis brilharam sob a parca luz da sala. Gabrielle se incomodou com o olhar crítico quando ele se inclinou para a frente com as narinas dilatadas.

— Aproxime-se.

Ao ver que ela não se movia, o corpulento Seguidor que se encontrava atrás dela a empurrou para a frente. Gabrielle se deteve a poucos passos de distância do vampiro.

— Você tem um aroma delicioso — ele disse em voz baixa. — Cheira a uma flor, mas há algo mais. Alguém se alimentou de você recentemente. Um guerreiro? Não se incomode em negá-lo, posso farejá-lo em seu corpo.

Antes que Gabrielle pudesse dar-se conta, ele a segurou pelo pulso e a atraiu para si com um puxão. Fez com que ela inclinasse a cabe­ça para trás e afastou os cabelos que escondiam a mordida de Lucan e a marca debaixo da orelha esquerda.

— Uma Escolhida — grunhiu, passando os dedos pela pele do pescoço. — E recentemente reclamada como tal. Você fica mais interessante a cada segundo que passa, Gabrielle.

Ela não gostou do tom íntimo que o vampiro empregou ao pro­nunciar seu nome.

— Quem a mordeu, Escolhida? Que guerreiros você permitiu que se colocasse entre essas longas e formosas pernas?

— Vá para o inferno! — ela vociferou, apertando as mandíbulas.

— Não me vai dizer? — O vampiro estalou a língua e meneou a cabeça. — Está bem. Podemos descobrir muito em breve. Seu com­panheiro virá até você.

Ele se afastou e fez um sinal a um dos Seguidores que vigiavam de perto.

— Levem-na para o telhado.

Gabrielle se debateu contra seu captor, que a apertava com força contra a parede de músculos do peito, mas não pôde vencer a força do brutamontes. Ela foi forçada a seguir para uma porta de saída.

— Um momento! E quanto a mim? — queixou-se Kendra.

— Ah, sim. Enfermeira Kendra Delaney — o vampiro mur­murou, como se acabasse de se lembrar dela. — Quando tivermos saído, quero que vá para o telhado. Sei que a vista dele parecerá espetacular. Desfrute-a por um momento... e salte para o vazio.

Ela o fitou, aturdida. A seguir, abaixou a cabeça, mostrando que estava submetida à vontade do Mestre.

— Kendra! — Gabrielle gritou, desesperada por chegar até sua amiga. — Kendra, não obedeça!

O vampiro passou por ela sem mostrar nenhuma preocupação.

— Vamos. Não temos mais nada para resolver aqui.

 

Depois de colocar o último cartucho de C4 no extremo norte do asilo psiquiátrico, Lucan se esgueirou pelo duto de ventilação que conduzia ao exterior. Tirou a grade de proteção e pulou para o chão do terreno, sentindo o ar fresco no rosto.

— Niko, como estamos?

— Vamos bem. Tegan e Dante estão voltando e Gideon vem atrás de você.

— Excelente.

— Estou com o dedo no detonador. — A voz de Nikolai soou quase inaudível pelo ruído de um helicóptero que sobrevoava a área.

— É só dar a ordem, Lucan. Estou louco para fazer esses bastardos voarem pelos ares.

— Eu também — Lucan concordou, olhando para o céu notur­no com o cenho franzido, procurando o helicóptero. — Temos visita, Niko. Parece que um helicóptero está vindo para cá.

Assim que terminou a frase, a silhueta escura surgiu sobre as copas das árvores. Luzes vermelhas piscavam enquanto o veículo girava para o telhado e iniciava a descida.

O movimento das hélices trouxe a brisa e Lucan farejou o aro­ma dos pinheiros e do pólen... E de outro perfume que acelerou seu pulso.

— Oh, não! — exclamou assim que reconheceu o cheiro incon­fundível de jasmim. — Não toque no detonador, Niko! Por Deus, seja como for, não permita que este maldito edifício voe pelos ares!

Com uma mescla volátil de adrenalina e fúria, Lucan saltou para o telhado do asilo. O helicóptero acabava de pousar nos trilhos de aterrissagem. Precipitou-se para ele da beirada do edifício, com o corpo trêmulo pela fúria mais explosiva e instável que um cami­nhão carregado de C4. Tinha toda a intenção de arrancar as pernas de quem estivesse retendo Gabrielle.

Com a arma na mão, Lucan se aproximou por trás do helicóptero, com cuidado para que não fosse visto, e deu a volta pela cauda para acercar-se da porta do passageiro na cabine. Viu Gabrielle dentro do helicóptero, no assento traseiro. Parecia diminuta ao lado do gigante trajando negro, com os olhos escondidos sob os óculos escuros. Seu aroma o inundou, e o medo destroçou-lhe o coração.

Ele abriu com um puxão a porta da cabine e colocou a arma diante do rosto do algoz de Gabrielle ao mesmo tempo em que a segurava com a mão livre. Porém, ela foi puxada para trás antes que ele pudesse reagir.

— Lucan?! — exclamou ela, com os olhos arregalados pela sur­presa. — Oh, meu Deus, Lucan!

Ele avaliou rapidamente a situação. Dois seguidores ocupavam os assentos da frente. O co-piloto se virou com intenção de golpeá-lo, mas recebeu uma bala de titânio na cabeça. O corpo se desintegrou rapidamente, deixando um cheiro repugnante no ar.

A fração de segundo que Lucan levou para desviar os olhos foi o bastante para que o captor de Gabrielle a subjugasse com uma faca no pescoço. Sob a manga do casaco, insinuavam-se os dermoglifos que ele vira nas fotografias da Costa Oeste.

— Solte-a! — bradou Lucan ao líder dos Corrompidos.

— Eu sabia que você viria atrás dela, Lucan.

O arrogante tom de voz desconcertou Lucan. Ele conhecia aquele vampiro.

— Solte-a — insistiu —, e mostrarei por que estou aqui.

— Parece-me que não. — O vampiro de primeira geração abriu um sorriso largo, mostrando as presas afiadas. — Ela é encantadora, Lucan. Eu já imaginava que fosse sua.

Deus, ele conhecia aquela voz! A familiaridade ecoava de algum lugar profundo, enterrado em sua memória. Um nome se formou na mente de Lucan, cortante como o fio de uma espada.

Não, não era possível que fosse ele.

Concentrou-se para sair da confusão momentânea, mas o breve momento custou caro. Dois Corrompidos haviam subido ao telha­do sem que ele percebesse, e se aproximavam perigosamente. Com um grunhido, um deles arremeteu a porta do helicóptero e golpeou Lucan com violência.

— Lucan! — Gabrielle gritou, sentindo a lâmina se apertar em sua garganta. — Não!

Lucan estremeceu com o impacto e a arma voou de sua mão, caindo fora de seu alcance.

O Corrompido acertou-o com um murro potente na mandíbula. Lucan caiu, mas aproveitou-se do movimento para impulsionar o corpo e acertar o peito do Corrompido com um pontapé que o jogou longe. Precipitou-se sobre ele, enquanto tirava a faca escondida sob o casaco.

As hélices do helicóptero começaram a girar, anunciando que o piloto se preparava para levantar voo. Se Lucan permitisse que Gabrielle fosse levada, não restaria nenhuma esperança de voltar a vê-la com vida.

— Tire-nos daqui — ordenou o líder dos Corruptos ao piloto, enquanto as hélices do helicóptero giravam cada vez mais depressa.

Arrastando-se pelo telhado, Lucan travava violenta luta corpo­ral com o Corrompido que o atacara. Apesar da escuridão, Gabrielle avistou o vulto assustador do segundo se aproximar perigosamente.

— Lucan, cuidado! — gritou quase sem respiração, imobilizada pelo cortante fio de aço que ameaçava ser cravado na sua garganta.

O líder dos Corrompidos se inclinou diante dela para olhar o que estava acontecendo no telhado. Lucan havia se erguido, e abriu o ven­tre do primeiro dos Corrompidos que o atacara. O grito pavoroso se fez ouvir acima do ruído das hélices e o corpo começou a se convulsionar, desintegrando-se numa fração de segundos.

Lucan girou a cabeça na direção do helicóptero. Tinha os olhos cheios de fúria, brilhando como duas pedras de âmbar acesas com o fogo do inferno. Precipitou-se para a frente, rugindo, arremetendo os ombros contra o helicóptero como um trem de carga.

— Tire-nos daqui agora mesmo! — gritou o líder dos Corruptos, demonstrando preocupação pela primeira vez.

O helicóptero começou a subir. Gabrielle tentou aliviar a pressão da faca, apertando-se contra o encosto do assento. Se pudesse encon­trar uma forma de afastar o braço do vampiro, talvez conseguisse alcançar a porta da cabine.

Naquele momento, o aparelho sofreu um abalo repentino, como se tivesse se chocado contra alguma parte do edifício. O motor gemeu com o esforço para manter o movimento de ascensão.

— Seu idiota! Eu mandei tirar-nos daqui!

— Estou tentando, senhor! — gritou o Seguidor que pilotava o aparelho. Levantou uma alavanca e o motor protestou com um terrível rangido.

Outra violenta oscilação sacudiu o helicóptero, com uma força descomunal puxando-o para baixo. A cabine se inclinou para a frente e o captor do Gabrielle perdeu o equilíbrio, deixando de prestar aten­ção nela durante um momento. A faca se afastou de seu pescoço.

Com uma repentina decisão, Gabrielle se lançou para o lado e impulsionou as pernas na direção do peito do vampiro. O impacto o arremessou contra o banco do piloto. O aparelho sacolejou mais uma vez, e Gabrielle se precipitou para a frente, empenhando-se em alcançar a porta da cabine. Com esforço sobre-humano, conseguiu abri-la, enquanto o helicóptero se balançava de um lado para o outro.

Seu captor se recompôs e estava a ponto de alcançá-la. No caos que se instalara dentro do aparelho, ele havia perdido os óculos escu­ros. Fitou-a com gélidos olhos acinzentados onde fulgurava a mais pura crueldade.

— Diga a Lucan que isso não terminou — ameaçou, pronun­ciando as palavras num sussurro diabólico.

— Vá para o inferno! — respondeu Gabrielle, lançando-se pela porta aberta.

Ela caiu no chão do telhado e rolou para o lado. Assim que a viu, Lucan soltou o trilho de aterrissagem do helicóptero. O aparelho se elevou repentinamente e começou a dar voltas sobre si, fora de controle, enquanto o piloto se esforçava por dominá-lo.

Lucan correu para perto de Gabrielle e ajudou-a a se por de pé. Percorreu as mãos por todo o corpo dela para se assegurar de que estava bem.

— Eu estou bem — ela garantiu, ainda tremendo sob efeito da intensa descarga de adrenalina. — Lucan, atrás de você!

No telhado, o outro Corrompido se dirigia para eles. Lucan enfren­tou o desafio com prazer, agora que Gabrielle estava com ele. Todos os músculos de seu corpo vibraram com energia renovada quando tirou outra faca e se aproximou da ameaça.

A luta foi selvagem e rápida. Lucan e o Corrompido se enfren­taram num mortal combate corpo a corpo. Ele recebeu mais de um golpe, mas nada poderia detê-lo. O sangue de Gabrielle ainda o forta­lecia, alimentando uma fúria que faria com que enfrentasse dez opo­nentes de uma só vez. Lutou com eficiência letal, e acabou com o Corrompido com um corte vertical que lhe atravessou o corpo.

Lucan não esperou para ver o efeito do titânio. Deu a volta e correu para Gabrielle. Tomou-a nos braços e abraçou-a com força. Poderia ficar assim a noite toda, sentindo a pulsação e o calor do corpo suave.

Com relutância, ele se afastou e pousou um beijo suave nos lábios macios.

— Temos de sair daqui, querida. Agora mesmo.

Sobre suas cabeças, o helicóptero continuava subindo. O vampi­ro de primeira geração que tinha capturado Gabrielle olhou para bai­xo e dirigiu uma saudação à Lucan, sorrindo enquanto o aparelho se erguia no céu noturno.

— Oh, Deus, Lucan! Estava tão assustada. Se tivesse acontecido algo com você...

O murmúrio de Gabrielle o fez esquecer o inimigo que escapava. A única coisa que importava era tê-la do seu lado.

— Como diabos capturaram você? — perguntou com voz trêmula.

— Depois de que você partiu do complexo esta noite, eu precisava de tempo para pensar. Fui para casa, e Kendra apareceu. Ela enganou Jamie e o fez refém. Eu não podia deixar que lhe fizesse mal. Kendra é... Ou melhor, era, uma Seguidora, Lucan. Agora, minha amiga está morta. — Gabrielle não conseguiu reprimir as lágrimas. — Ao menos, Jamie escapou. Ele deve estar em algum lugar no centro da cidade, aterrorizado. Tenho de encontrá-lo e lhe dizer que tudo está bem.

Lucan ouviu o som grave do helicóptero que continuava subindo sobre suas cabeças. Tinha de sinalizar a Niko que explodisse o asilo antes que os Corrompidos tivessem oportunidade de escapar.

— Vamos embora daqui, e prometo que me encarregarei do resto. — Ele tomou Gabrielle nos braços. — Segure-se em mim com toda força que puder.

Gabrielle o envolveu pelo pescoço, e ele a beijou nos lábios, aliviado por tê-la nos braços.

— Não se solte em momento algum — advertiu, fitando os olhos brilhantes de sua Escolhida.

Então, Lucan se posicionou na amurada do telhado e pulou para o chão com toda a suavidade de que foi capaz.

— Lucan! Diga alguma coisa, parceiro! — Nikolai chamou pelo fone de ouvido. — Onde você está? Que diabos está acontecendo aí?

— Tudo vai bem — respondeu ele, carregando Gabrielle pelo ter­reno escuro recoberto de relva em direção ao carro. — Agora tudo está bem. Acione o detonador, e vamos acabar com isso de uma vez por todas.

Protegida pelos braços fortes, Gabrielle avistou o carro negro parado a poucos metros do portão principal do asilo. Atrás dela, todo o complexo de edifícios voava pelos ares como uma infernal bola de fogo.

Lucan e seus irmãos tinham conseguido. O quartel general dos Corrompidos foi extinto da face da Terra com um incrível golpe. O helicóptero conseguira escapar da explosão e desapareceu no céu, envolto na fumaça negra que subia pelos ares.

Lucan colocou-a gentilmente no chão, e ela entrou no carro, apertando-se entre Dante, Niko e Tegan. Lucan seguiu na frente com Gideon ao volante.

Durante o trajeto, os guerreiros permaneceram em silêncio. Não havia tensão no ar, e sim, uma espécie de regozijo mudo. Lucan olhava pela janela, perscrutando o céu, com a mesma expressão de surpresa, incredulidade e atordoamento que Gabrielle vira quando se encontrava no telhado. Quando ele abriu a porta do helicóptero, foi como se tivesse visto um fantasma.

Naquele momento, Lucan continuava com o mesmo estado de ânimo, enquanto Gideon conduzia o carro em direção à garagem da sede dos guerreiros.

Quando desligou o motor, Lucan finalmente deu voz aos sentimentos.

— Esta noite, conseguimos uma importante vitória contra nossos inimigos, e vingamos Conlan e Rio.

— Eles teriam exultado ao ver o covil dos Corruptos explodir — Gideon completou.

Lucan assentiu na escuridão do veículo.

— Mas não nos equivoquemos. Estamos entrando numa nova fase do conflito com os Corrompidos. Agora é guerra, mais do que nun­ca. Esta noite, eliminamos o ninho de vespas, mas o líder continua vivo.

— Ele que fuja. Logo o apanharemos — Dante afirmou com expressão confiante.

Porém, Lucan negou com um gesto grave.

— Esse Corrupto não é como os outros. Não será fácil apanhá-lo. Ele se antecipará aos nossos movimentos, pois conhece nossas táticas. A Ordem terá de fortalecer as estratégias. Temos de nos orga­nizar e arrebanhar o maior número possível de guerreiros.

— Você acha que o vampiro da Costa Oeste à frente dos Corrompidos é um Gen Um?

— Estou seguro disso — Lucan afirmou com convicção. — Ele estava no helicóptero esta noite, e fez Gabrielle refém.

Lucan se virou para o banco de trás e pousou a mão no braço de Gabrielle, como se a simples visão tranqüilizasse sua alma.

— E esse bastardo não é um Corrompido. Ele já foi um guerreiro, como nós. Chama-se Marek.

Gabrielle sentiu a onda gélida que atravessou o ar e se cravou em Lucan, e soube que Tegan estava olhando para ele.

Lucan também sabia. Virou a cabeça e olhou para os outros guerreiros.

— Marek é meu irmão.

 

A carga da revelação de Lucan ainda pesava no ar enquanto saí­am do veículo e desciam pelo elevador do hangar para o subsolo do complexo.

Gabrielle entrelaçou os dedos da mão com os de Lucan. Seu cora­ção se comoveu, cheio de compaixão. Ele a fitou e captou a preocu­pação nos olhos dela.

As expressões dos guerreiros também se mostravam preocupa­das. Mantiveram-se em silêncio, mas todos sabiam do significado do que haviam descoberto naquela noite. Chegaria o momento em que Lucan teria de enfrentar a necessidade de matar seu próprio irmão... Ou de ser morto por ele.

Gabrielle ainda não conseguira aceitar a frieza desse fato no momento em que as portas do elevador se abriram. Savannah e Danika, que esperavam com ansiedade pelo retorno dos guerreiros, correram ao encontro deles. Foram recebidos com muitas perguntas sobre o resultado da missão daquela noite, assim como de por que Gabrielle partira do complexo sem dizer nenhuma palavra a ninguém. Gabrielle estava muito cansada para responder. Sentia-se esgotada depois da terrível experiência. Porém, sabia que logo teria de oferecer algumas respostas, ao menos, para Lucan.

Os guerreiros se afastaram em meio a uma discussão sobre táti­cas e novas estratégias de batalha contra os Corrompidos. Savannah e Danika empurraram Gabrielle em direção contrária, e se mostraram preocupadas com os vários arranhões e contusões. Insistiram para que tomasse um longo banho enquanto preparavam algo para comer.

Gabrielle concordou a contragosto. No entanto, o perfumado vapor do banho que as novas amigas prepararam, tampouco as incrí­veis habilidades culinárias de Savannah conseguiram relaxá-la.

Ela não parava de pensar em Lucan, Jamie e tudo o que tinha acon­tecido naquela noite. Devia a vida a Lucan. Amava-o mais do que tudo e seria eternamente grata por tê-la resgatado, mas isso não mudava os fatos. Sentia-se mal a cada vez que pensava na frieza dele depois de fazerem amor. Não podia permanecer no complexo. E não importava o que ele dissesse, recusava-se a ir para um Darkhaven.

Então, que alternativa lhe restava? Tampouco podia voltar para seu apartamento. Sua antiga vida já não existia mais. Voltar para ela significava negar tudo o que tinha experimentado com Lucan durante as últimas semanas. Teria de negar tudo o que agora sabia sobre si e sobre sua conexão com a Raça.

A verdade era que não sabia mais qual era seu lugar. Não sabia por onde começar a procurar, e depois de dar voltas pelo labirinto do complexo, ela se encontrou em pé diante do apartamento de Lucan.

A porta estava entreaberta e um facho de luz saía do interior. Gabrielle a empurrou e entrou.

O quarto adjacente estava iluminado por inúmeras velas. Ela parou à porta e ficou ali, maravilhada com o que viu.

O austero dormitório de Lucan parecia ter se transformado num sonho, com um castiçal de intrincado trabalho em prata a cada can­to. A cama estava coberta por uma esplêndida manta de seda verme­lha. No chão, diante da lareira, espalhavam-se inúmeras almofadas da mesma cor da colcha. Ela admirou o ambiente romântico, acolhe-dor, preparado para amar.

Ela deu um passo à frente e, às suas costas, a porta se fechou brandamente.

Lucan estava de pé no outro extremo do quarto. Tinha os cabe­los molhados e usava um roupão de cetim vermelho que chegava aos tornozelos. O olhar cálido se fundiu com o de Gabrielle.

— Para você — disse, abrangendo o ambiente romântico com um gesto largo. — Para nós, esta noite. Quero que tudo seja especial para você.

Uma intensa comoção apertou a garganta de Gabrielle. Porém, mesmo tocada no coração pelo gesto de Lucan, ela não podia sequer pensar em fazer amor depois da última vez em que estivera naquele mesmo quarto.

— Quando saí daqui, não pensava retornar — ela afirmou, man­tendo distância segura. Se permitisse a proximidade física, não teria forças para lhe dizer tudo o que pretendia.

— Não posso voltar a fazer isso, Lucan. Necessito de coisas que você não pode me dar.

— Diga-me que coisas você necessita. — Embora mantivesse um tom suave, foi uma ordem inequívoca. Ele se aproximou com pas­sos cautelosos, como se notasse que podia ser rechaçado. — Do que você necessita?

Ela negou com a cabeça.

— Do que adiantaria dizer?

Lucan avançou mais alguns passos, lentamente, e se deteve a poucos centímetros de distância.

— Eu gostaria de saber. Tenho curiosidade de saber o que me custaria para convencê-la a ficar comigo.

— Para passar a noite? — perguntou ela em voz baixa, odiando-se por necessitar com tanta urgência daqueles braços ao redor de seu corpo.

— Quero você, e estou disposto a oferecer o que quiser, Gabrielle. Basta que me diga do que necessita.

— Da sua confiança — ela declarou, pedindo algo que supôs estar fora do alcance de Lucan. — Não posso continuar a... fazer isso, se você não confia em mim.

— Eu confio em você — Lucan declarou com tanta solenidade que ela quase acreditou. — Você é a única que me conheceu de ver­dade, Gabrielle. Não posso ocultar nada de você. Já viu tudo de mim, e o pior, certamente. Eu gostaria de ter a oportunidade de lhe mostrar a parte boa que há em mim.

Ele se aproximou um pouco mais. Gabrielle sentiu o calor que emanava do corpo viril, assim como a onda de desejo quase palpável.

— Quero que se sinta tão segura comigo como eu me senti com você. Assim, a pergunta é: você pode confiar em mim, agora que sabe tudo a meu respeito?

— Sempre confiei em você, Lucan. Sempre confiarei. Mas não é isso...

— O que é, então? — perguntou ele, interrompendo a rápida negativa. — Diga-me o que mais posso lhe dar para que fique.

— Isso não vai funcionar — disse ela, retrocedendo um passo. — Não posso ficar. Não dessa maneira. Não agora que meu amigo Jamie...

— Ele está a salvo. — Ao ver que ela o fitava com expressão confusa, acrescentou: — Mandei Dante ao exterior assim que che­gamos, incumbido de encontrá-lo. Ele retornou minutos atrás e me informou que achou seu amigo numa delegacia de polícia do centro da cidade e o levou para casa.

Gabrielle sentiu que o alívio a embargava, mas imediatamente a preocupação o substituiu.

— Dante apagou a memória dele?

Lucan negou com a cabeça.

— Pensei que não era justo que eu tomasse essa decisão. Dante disse simplesmente que você também estava a salvo e que entraria em contato com ele para lhe explicar tudo. O que dirá ao seu amigo é decisão sua. Está vendo? Confiança, Gabrielle.

— Obrigada — ela murmurou, reconfortada pela consideração. — Obrigada por ter me ajudado esta noite. Você salvou minha vida.

— Então, por que tem medo agora?

— Não tenho medo — ela retrucou, sem perceber que recuava até que a cama bloqueou-lhe a fuga. Num instante, Lucan estava diante dela.

— O que mais quer de mim, Gabrielle?

— Nada — ela disse num fio de voz.

— Absolutamente nada?

— Por favor, não me faça desejar ficar esta noite quando amanhã você me pedirá para ir embora. Deixe que eu vá agora, Lucan.

— Não posso fazer isso. — Ele tomou a mão delicada e a levou aos lábios. Gabrielle sentiu a suavidade dos lábios nos dedos e se viu presa de um encantamento que somente Lucan podia exercer. Ele levou a mão dela ao peito, apertando a palma contra o coração.

— Não posso deixá-la partir, Gabrielle. Porque, queira ou não, você tem meu coração, e meu amor, se o aceitar.

Ela engoliu com dificuldade.

— O quê?

— Amo você, Gabrielle. — Lucan pronunciou as palavras em voz baixa, como uma carícia que ela sentiu no mais profundo da alma. — Gabrielle Maxwell, amo você mais que a vida. Estive sozi­nho durante muito tempo, e não percebi até que quase fosse tarde demais. — Ele se interrompeu e a fitou com intensidade. — Não é tarde demais... Ou é, Gabrielle?

Ele a amava! Uma alegria pura e brilhante invadiu o peito de Gabrielle.

— Diga mais uma vez — pediu num sussurro, ansiando por saber se o momento era real.

— Amo você, Gabrielle, até o último sopro de vida que eu tiver. Eu te amo.

— Lucan. — Ela pronunciou o nome num suspiro, com lágrimas que se derramaram pela face.

Ele a tomou entre os braços e a beijou, profunda e apaixonada­mente. O coração de Gabrielle queria levantar voo e o sangue se incendiou em suas veias.

— Você merece alguém melhor do que eu — ele disse em tom reverente. — Conhece meus demônios. Poderá me amar e me aceitar apesar de conhecer minhas fraquezas?

Gabrielle pousou as palmas das mãos no rosto adorado e o enca­rou, expressando com o olhar todo o amor que sentia.

— Você nunca foi fraco, Lucan. Eu te amarei seja como for. Juntos podemos superar tudo.

— Você me faz acreditar nisso. Você me deu esperança. — Com um gesto terno, acariciou-lhe os cabelos e percorreu o rosto com o olhar. — Meu Deus, você é deliciosa! Poderia ter qualquer um, da Raça ou humano...

— Você é o único a quem quero.

— Minha doce Gabrielle. — Ele sorriu, transbordando amor. — Eu não aceitaria se fosse de outra maneira. Nunca desejei alguém de forma tão egoísta como quero você neste momento. Seja minha, Gabrielle.

— Eu já sou.

Ele engoliu a saliva e abaixou os olhos como se de repente se sentisse inseguro.

— Eu quis dizer para sempre. Não posso aceitar menos que isso. Gabrielle, você me aceita como companheiro?

— Para sempre — sussurrou ela, inclinando-se na cama e trazendo-o para si. — Sou tua, Lucan, para sempre.

Lucan a beijou e, quando se afastou, levou a mão até uma adaga de ouro sobre o criado-mudo. Aproximou-a de seu rosto. Gabrielle se sobressaltou ao ver que pousava a lâmina nos lábios.

— Lucan...

Ele a olhava com ternura e seriedade.

— Você me deu seu sangue para me curar. Você me fortalece e me protege. Você é a única que quero, e a única que sempre necessitarei.

Gabrielle nunca o ouvira falar com tanta solenidade. As íris bri­lharam, e o pálido tom acinzentado se mesclou com a cor âmbar e com a profundidade da emoção.

— Gabrielle, conceda-me a honra de aceitar meu sangue para selar nosso vínculo.

A voz de Gabrielle soou débil, como se estivesse hipnotizada.

— Sim.

Lucan abaixou a cabeça e levou a adaga até o lábio inferior. Passou o fio com um gesto rápido, e o sangue tingiu a boca sensual.

— Venha. Deixe-me amá-la — sussurrou, unindo os lábios escarlates aos dela.

Nada poderia tê-la preparado para o que sentiu ao provar pela primeira vez o doce sangue de Lucan. Mais intenso que o vinho, instantaneamente embriagador, o sangue dele fluiu por sua língua com toda sua força e poder. Uma luz ofuscante a invadiu até os recan­tos mais sombrios da alma e lhe ofereceu uma visão do futuro que a esperava como companheira de Lucan.

Gabrielle foi invadida pela mais plena felicidade, incendiada de calor e de uma alegria que nunca antes tinha experimentado. O desejo fluiu, mais intenso do que nunca.

Um profundo gemido de prazer brotou de sua garganta, e empur­rou Lucan, fazendo-o se deitar de costas. Ela se despiu em um instante e posicionou-se sobre o membro ereto, pronto para ela. Os formo­sos desenhos da pele mostravam profunda cor púrpura. Gabrielle se inclinou para a frente e passou a língua pelas linhas sinuosas e intrincadas que cobriam o corpo másculo, das coxas até o umbigo, subindo até os músculos do peito e ombros.

Pertencia àquele homem. O pensamento a estremeceu, despertan­do a súbita consciência de possessividade, feroz e primitiva. Nunca o desejara tanto como naquele momento.

Gabrielle olhou para Lucan com uma necessidade puramente car­nal, quase sem saber por onde começar. Desejava devorá-lo, adorá-lo, aplacar o incêndio que a queimava como um fogo que nunca se apaga.

— Você deveria ter me avisado que me daria um afrodisíaco — murmurou, ofegante.

— E estragar a surpresa? — ele provocou com um sorriso.

— Ria enquanto pode... — Gabrielle arqueou uma sobrancelha, tomou seu membro ereto e deslizou a mão até a base com um movi­mento lento. — Você me prometeu a eternidade. Vai se arrepender por isso. Eu vou exigir tudo de você. Vou torturá-lo até você implorar que eu pare...

— Ah, é mesmo? — A resposta soou como um gemido estran­gulado, enquanto Lucan se virava para posicionar-se sobre ela. — Meu amor, eu ficarei encantado por você tentar...

 

                                                                                Lara Adrian  

 

 

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