Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ESPAÇONAVE ORION
A Patrulha das Estrelas
MZ - 4 NÃO RESPONDE
A esse tempo, Terra já dominava uma vasta área no universo, onde muitas culturas proliferavam. O major McLane era o comandante do cruzador Orion VII e, juntamente com sua equipe, já conseguira inúmeras vitórias para Terra. No entanto, ao se aproximarem de MZ-4, a estação retransmissora, a Orion percebe os estranhos sinais por ela emitidos; e aí se inicia mais uma dura prova para a tripulação da Orion VII.
A ESPAÇONAVE aproximava-se do gigantesco sol com velocidade pouco inferior à da luz. Aquela estrela distava trezentos e oitenta parsec da Terra, e possuía apenas um único planeta: Rhea.
Entre todos os planetas conhecidos, o Comando dos Pioneiros de Terra considerava Rhea o mais ameaçador, inútil e excitante — um planeta no estado primitivo, com o dobro da massa terrestre e um campo gravitacional muito mais intenso. A violentas tempestades de partículas méson nas camadas superiores da sua atmosfera impossibilitavam qualquer tentativa de aterissagem. A massa gasosa que cobria a fendilhada superfície não continha oxigênio; era constituída por um outro gás, que se incandescia sob o bombardeio dos meteoritos como um forte relâmpago. Incessantemente, um furacão varria, a mais de quinhentos quilômetros por hora, todo o planeta, impelindo à sua frente as massas de gás, criando nelas zonas da mais violenta turbulência e de quase total calmaria, e arrancando oceanos inteiros do seu leito.
Rhea constituía um desafio, uma provocação para qualquer cosmonauta.
Hoje, na era das unidades de propulsão superpotentes e dos ultra-seguros cascos das naves espaciais, podia-se pensar em muita coisa que, há uns duzentos anos, pertencia ainda ao reino da mais pura ficção. Rhea era realmente fora de série e, por isso mesmo, motivo de cisma para o comandante Cliff Allistair McLane. Ele estava voltando com seu cruzador de uma viagem de inspeção que o tinha levado até os limites do distrito espacial esférico controlado por Terra. Encontrava-se, agora, a setenta parsec — portanto a 228,2 anos-luz — da superfície limítrofe da esfera espacial, e dirigia-se ao planeta Rhea.
Voando a duzentos e vinte e nove mil e setecentos quilômetros por segundo, um infinitésimo abaixo da velocidade da luz, a nave aproximava-se silenciosamente do planeta. Saía do anonimato dos pontos luminosos do universo, tornando-se cada vez maior e mais brilhante, apresentando finalmente o seu verdadeiro aspecto. A nave de McLane pertencia à classe de cruzadores em forma de disco achatado com que eram equipadas as esquadrilhas do Reconhecimento Espacial Terrano: um reluzente engenho de aço, plástico e vidro. Era veloz, segura e fácil de manobrar; além disso, contava com uma tripulação que, sob o comando de McLane, já tinha alcançado um certo renome. No interior da nave só se ouvia um único ruído: o silvo das unidades propulsoras.
— Estamos somente a quinze minutos-luz de Rhea — disse uma voz na cabine de comando.
— Obrigado, Atan — respondeu McLane.
A nave prosseguia em seu vôo vertiginoso. A centenas de anos-luz ao redor não havia nada que fizesse lembrar Terra. Aqui. no quadrante oriental da projeção bidimensional do domínio terrano, só se encontravam estações retransmissoras, planetas com minúsculas colônias experimentais ou com grupos populacionais que ali permaneceram após o término da guerra. Não valia a pena estabelecer colônias a tal distância de Terra.
O disco consumia a distância. Na cabine de comando reinava uma tensão indefinida; bastava observar os semblantes dos ocupantes. Inclinado para a frente, McLane estava sentado na sua poltrona e examinava as imagens na gigantesca tela diante de si: uma infinidade de estrelas, um trecho da Via Láctea e o luminoso sol do planeta Rhea. Ninguém falava. Todos sabiam o que estava em jogo.
Mais uma vez Cliff McLane queria mostrar que, no seu dicionário, a palavra impossível não existia. Em outras ocasiões, quando se propusera a fazê-lo, tinha arriscado quase tudo para, no fim, sair vencedor. Também agora iria demonstrar a validade da lei que regia essa série de sucessos.
Engenheiro Sigbjörnson... astronavegador Shubashi... radiotécnica Legrelle... subcomandante Mario de Monti...
Estes eram os auxiliares diretos do comandante McLane a bordo do seu rápido cruzador espacial Órion VII. Sob sua liderança, seriam capazes de enfrentar o próprio inferno, e estavam sempre prontos a infringir, tranqüilamente, regulamentos de serviço e outras coisas incômodas do gênero, cuja observância pudesse afetar a fama que já tinham granjeado. Essa fama, que era objeto de discussões no bar do cassino Starlight, causava inveja aos cadetes e enchia de temores os amigos, pois conheciam muito bem os perigos a que McLane costumava se expor sem a menor vacilação, tão à vontade quanto um peixe dentro d'água. Mas essa fama chegava também aos gabinetes dos seus superiores, bem como aos ouvidos de Wamsler, chefe das Formações de Reconhecimento Espacial Terrano, e isso constituía o maior perigo para McLane e sua equipe.
— Distância de onze minutos-luz, Cliff.
— Obrigado.
O sol apresentava-se agora como um simples ponto na tela de radar; Rhea deveria aparecer à direita, mas a debilidade do eco não permitiu que se tornasse visível. Um jogo de amplifica-dores foi acoplado aos instrumentos e um filtro colocado sobre a imagem do sol; imediatamente, surgiu uma minúscula sombra à direita.
Helga Legrelle informou:
— Estabeleci contato radiofônico através da Estação Avançada IV.
McLane ligou o alto-falante à esquerda da tela e pediu:
— Transfira o contato para o aparelho do comandante.
Os alto-falantes emitiram uma série de estalidos secos, logo seguidos do uivo sibilante da estática, mesclada com as interferências solares. Helga Legrelle manipulou os filtros; a recepção ganhou volume e as palavras se tornaram mais claras.
— Estação Avançada IV chamando cruzador espacial Órion... Órion VII, responda!
McLane olhou para Helga e esboçou um riso malicioso; fez-lhe um sinal no sentido de não acusar o recebimento da mensagem.
A voz do robô não silenciava.
— ...Órion VII, responda... forneça suas coordenadas; isto é uma intimação... Estação Avançada IV chamando Órion!...
Os membros da tripulação não desviavam o olhar do rosto do comandante. Duas horas atrás, McLane havia feito uma exposição dos acontecimentos que iriam se desenrolar, e todos estavam entusiasmados com o seu plano. Se a nave não se consumisse em brasas ao penetrar na atmosfera de Rhea, poucos instantes os separariam da aterrizagem. A decisão estava tomada; e não era possível admitir que uma simples ordem radiofônica, transmitida através de uma rede de estações retransmissoras e com aproveitamento de uma dobra no espaço — o que lhe dava maior rapidez — jogasse por terra o plano estabelecido. O intenso olhar de Cliff parecia furar a tela à sua frente.
A tela circular, de dois metros de diâmetro, mostrava as estrelas da Via Láctea, destacando-se um sol rubro e o eco de um grande planeta envolto por uma auréola roxa. Incessantemente a voz do robô repetia a intimação:
— Órion... responda!
McLane sacudiu a cabeça; aquele sorriso continuava estampado no seu rosto. A expectativa dos outros crescia.
— Hasso! Ligue as máquinas auxiliares!
O engenheiro de bordo cumpriu a ordem, e as máquinas do cruzador, até então inoperantes, começaram a funcionar; inicialmente em ponto morto, pois a potência adicional que forneciam ainda era dispensável no momento.
— Helga... estabeleça contato!
— Contato estabelecido, Cliff! — respondeu Helga, girando o botão regulador do volume.
Subitamente, a cabine de comando transformou-se num inferno acústico. Três mensagens radiofônicas diferentes estavam sendo dirigidas simultaneamente à Órion. Obviamente, a nave tinha sido localizada pela estação de rastreamento — totalmente automatizada — no setor correspondente da 5.a Zona de Distância. A Estação Avançada IV berrava:
— ...ordem de exceção: Órion VII, volte imediatamente a Terra. Isto é uma ordem de grau Alfa da Suprema Comissão Espacial! Repito... informar coordenadas da rota e iniciar retorno a Terra... ordem de grau Alfa!
O sorriso sumiu da face de Cliff. Fez um gesto complicado que Helga, no entanto, entendeu imediatamente; afinal, McLane e sua equipe já vinham voando juntos há muito tempo. A Estação Avançada de Júpiter, através da qual Wamsler se mantinha em contato com suas naves, estava enviando uma mensagem similar na mesma freqüência:
— Estação Avançada de Júpiter chamando cruzador espacial Órion VII: comandante intimado a mudar rumo para Terra e a confirmar esta mensagem. Repito...
Uma nova voz, transmitindo informações não codificadas, mesclava-se estridentemente às duas mensagens:
— Rastreador 5 Leste 2 informa: Órion VII dirige-se neste instante ao Setor Espacial 5. Velocidade inferior à da luz. Meta aparente: sol de Rhea... Número: Delta 33.987 do Manual.
— Atenção... Órion VII... ordem de grau Alfa!
— Acuse recebimento de nossa mensagem!
Três vozes de robô, berrando em tom e intensidade diferentes, travavam uma batalha acústica insuportável nos alto-falantes. Helga Legrelle girou o botão, reduzindo o volume do vozerio. Uma seta acendeu-se na mesa de controle do comandante; era o aviso para ligar os amplificadores radiofônicos... Helga exclamou:
— Cliff!
— Droga! — disse McLane, com raiva. — Não é que nos localizaram mesmo! Bem, vamos dar-lhes a nossa resposta...
Aproximou seu queixo do microfone que, preso a uma haste flexível, se erguia da mesa como uma flor metálica. Pressionou o botão de contato e disse, em voz clara e alta:
— Aqui fala a nave Órion VII; comandante Cliff Allistair McLane. Mensagem para a Suprema Comissão Espacial, Seção 12, Divisão de Pesquisa Espacial. Para reforçar a minha afirmação de que, basicamente, é possível aterrizar em Rhea, planeta do sol Delta 33.987, dirijo-me a Rhea. Dentro de minutos iniciamos as manobras para o
pouso; como prova, vou deixar um robô radioemissor no planeta. Aqui falou a Órion VII; desligo.
McLane soltou o botão do microfone; ao mesmo tempo, Helga cortou a ligação, interrompendo assim todos os contatos radiofônicos da reluzente nave. Os sofridos nervos auditivos recuperavam-se paulatinamente. De repente, tornou-se possível ouvir novamente o zumbido dos propulsores, bem como a voz de Atan Shubashi:
— Só dez segundos-luz nos separam agora do planeta!
— Aprontar para o pouso! — gritou Cliff, voltando a exibir aquele sorriso. Sabia que estava pondo em jogo o seu posto, mas sabia também que sua tripulação e sua nave iam conseguir aterrizar em Rhea a qualquer custo. Hasso levantou-se, dirigindo-se ao elevador.
Vagarosamente, as largas mãos de Mario encaixaram o fecho do cinto de segurança. Hasso entrou no elevador, desceu os dois andares até a casa de máquinas e postou-se diante do seu quadro de controle. À sua frente, brilhava a tela retangular do videofone, mostrando, no momento, um trecho da cabine de comando, com Cliff sentado diante de sua mesa. Hasso acomodou-se em sua poltrona, apertou o cinto de segurança e fez seu olhar percorrer as numerosas escalas, controles e manetes.
— Tudo pronto, Hasso? — perguntou Cliff, sua voz vindo da tela.
O engenheiro olhou para cima, fez um gesto afirmativo e acoplou o agregado auxiliar. Eram agora quatro os motores a combater o campo gravitacional de Rhea; a nave lutava para não ser arrastada para baixo, para dentro do remoinho das forças liberadas de um jovem e tempestuoso planeta pré-cambriano.
Hasso ligou uma tela complementar; à direita do videofone aclarou-se um círculo, que ficou quase totalmente tomado pela imagem de Rhea. O planeta irradiava uma insuportável claridade, e Hasso pôde constatar a predominância absoluta de quatros cores:
O amarelo berrante correspondia às planícies; sabia-se que ainda não abrigavam qualquer tipo de vida; nem mesmo musgo crescia em Rhea. A areia amarela cobria superfícies de formas bizarras, que se estendiam por todo o gigantesco continente, o único que o planeta possuía.
O preto-azulado, sem brilho, caracterizava as cordilheiras, que formavam uma rede de negras nervuras, cobrindo meio planeta. Eram constituídas de rocha ígnea, basalto amontoado, formando ciclópicas configurações de arestas incrivelmente aguçadas, que ainda desconheciam os efeitos de uma erosão milenar; também o frio era fenômeno desconhecido neste mundo.
Vermelho-claro eram as crateras dos vulcões cônicos, que lançavam sem cessar cinzas, chamas e fumaça nos gases da atmosfera.
Verde-escuro era o mar do planeta. Ao longo da costa, havia faixas quilométricas nas quais o mar se apresentava branco e revolvido. Os furacões arrancavam enormes massas de água deste mar, arrastando-as por milhares de quilômetros, para depois lançá-las violentamente contra as montanhas, sobre as planícies, para dentro das crateras, e de volta ao seu leito. Vapor, fumaça, chamas, cores e um inimaginável turbilhão de forças elementares... isto era Rhea.
A Órion descia em direção ao planeta, reduzindo paulatinamente sua velocidade. Retardadores evitaram que o disco se rompesse ao meio; a gravidade artificial a bordo, mantida constante, era de 1g.
A nave encontrava-se a uma altura de dois mil quilômetros acima da crosta rochosa da borda setentrional do continente. A velocidade diminuía rapidamente; pouco faltava para que a Órion atingisse as camadas externas da atmosfera.
— Velocidade: setecentos quilômetros por hora — disse Hasso, observando o ponteiro triangular, de cor viva, cujo vértice superior percorria uma escala circular, da direita para a esquerda.
— Obrigado. E os raios antigravitacionais?
— Ainda não atingiram seus valores máximos.
Hasso acelerou as máquinas e sentiu que uma nova força se introduziu entre o impulso próprio da nave e a atração do planeta.
Os instrumentos, cujos sensores eletrônicos sondavam incessantemente o planeta, indicaram que concentrações gasosas dignas de nota só seriam encontradas a uns cem quilômetros da superfície. Cliff anunciou, em voz alta:
— Vamos dar um salto de mil e seiscentos quilômetros, Hasso. Vou transferir o controle dos instrumentos para a casa de máquinas. De acordo?
— Perfeitamente, Cliff — disse Hasso e girou o acelerador.
A súbita aceleração fez o disco tombar através do vácuo do universo; durante alguns segundos, continuou caindo com velocidade cada vez maior, e acabou readquirindo a sua posição normal. Os ponteiros triangulares do telêmetro pararam, trêmulos, em cima do valor 11 da escala graduada: cento e dez quilômetros; a velocidade de queda era, agora, de cem metros por segundo.
Dentro de dezoito minutos e meio a Órion tocaria o solo.
Um minuto depois, as primeiras partículas de ar cintilavam ao se chocarem com o anteparo que envolvia a nave; íons acelerados produziam um jogo de cores cada vez mais variadas. A atmosfera já se estava tornando mais densa e possuía um débil movimento próprio, acusado pelos instrumentos. O enorme ponteiro do cronômetro de bordo avançava inexoravelmente; a equipe sentia sua tensão aumentar. Gotículas de suor brilhavam na testa de
Cliff; suas mãos agarravam firmemente os manches do comando manual que, daqui a mais alguns minutos, se tornaria indispensável. Tudo dependia agora da habilidade do comandante: ser arrastado pelos tufões que se aproximavam, ou conseguir colocar a radiossonda no solo de Rhea. Mais dez minutos, e tinha chegado a hora.
Mãos firmes nos manches, Cliff sentiu a Órion ser agarrada pelo braço de um gigantesco ciclone. Imediatamente aumentou a velocidade, reduziu o movimento de descida quase a zero e deixou-se arrastar pela torrente. Numa trajetória espiral, de milhares de quilômetros de diâmetro, a nave lançava-se em direção ao olho do furacão. A massa gasosa sacudia o disco, tentando virá-lo; os raios magnéticos conseguiram dar estabilidade ao vôo, e somente uma série de pequenos abalos propagou-se pela espaçonave.
Aproximaram-se de um vulcão. Uma coluna de fogo flamejante, com mais de vinte mil metros de altura, erguia-se diante a Órion, penetrando nas nuvens; debaixo da nave deslocava-se, com incrível velocidade, a superfície do planeta, com suas características planícies amarelas e cordilheiras negras. Como um fantasma, a nave atravessou a coluna de fogo, acionou por alguns segundos todos os retardadores e assumiu uma posição oblíqua. As forças compressivas, despertadas durante o vôo em trajetória circular, estavam neutralizadas. A Órion aproximava-se do ponto terminal. Emergiu de uma formação de nuvens cinza-amarelas, descreveu uma curva apertada e começou a perder altura.
— Apenas mais mil metros, Cliff! — advertiu De Monti. McLane parecia não ouvir; depois acenou com a cabeça, em silêncio. Forçou a nave mais para baixo na calmaria do olho do ciclone e ativou a potência total do sistema antigravitacional. Segundos depois, parecendo um cogumelo metálico, a Órion pairava sobre um areai amarelo-vivo, do qual se erguiam as formas marcantes de aguçados e negros pedregulhos.
— Hasso? — Cliff estava exausto.
— Estou aqui; já ativei a radiossonda.
Cliff acenou e ordenou:
— Solte-a!
No casco inferior da nave, abriu-se uma comporta, que funcionava como o diafragma de uma câmera fotográfica. Preso a uma âncora mecânica, um objeto negro, esférico, baixou ao solo, guiado por um raio magnético. Numa pequena tela acima do pulso, Cliff observou os impulsos, que Helga tinha transformado em sinais óticos. Uma lâmpada-piloto apagou-se; a comporta estava novamente fechada.
— Vamos decolar verticalmente, através do olho do ciclone — avisou Cliff, puxando o manete do sistema antigravitacional. O disco elevou-se novamente, aumentando de velocidade.
Cliff e Hasso liberaram a força total dos propulsores e, poucos instantes depois, a nave alcançava novamente o espaço livre, sacudida, apenas vez por outra, por uma ramificação do ciclone.
Encontravam-se, outra vez, a dois mil quilômetros de Rhea, e Cliff iniciou as manobras para realizar o primeiro de uma série de saltos de transição, que deviam levai- a Órion de volta a Terra. Passadas algumas horas...
A equipe rodeava a poltrona do comandante; ainda exausto, Cliff observava as familiares constelações que apareciam na tela gigantesca; encontravam-se nas proximidades do sistema solar.
— De qualquer maneira, provamos que pousar naquele curioso planeta é apenas uma questão de bom senso. Outra coisa é mergulhar de cara num tufão; aí a situação poderia ficar bem preta — observou Cliff.
— Outro requisito fundamental — respondeu Hasso, saltando da viga na qual se sentara — é poder contar com máquinas em perfeito estado de funcionamento.
— ...e com um chefe que adora umas tantas extravagâncias — complementou Helga, com ambigüidade. — Se Wamsler quiser arrancar sua cabeça, você ao menos sabe por quê.
— Winston Woodrov Wamsler só late, mas não morde nunca — disse Cliff. Todos sentiam que estava de excelente humor. Se ele pudesse imaginar que sua observação constituía um dos enganos mais decisivos de toda sua vida, estaria agora voltando a Terra e à base de espaçonaves 104 com a mais negra das disposições de ânimo.
— Radioeco! — exclamou Helga.
— Terra nos tem de volta! — constatou Cliff e levantou-se.
O imenso espaço controlado por Terra tinha um diâmetro de novecentos parsec, ou seja, novecentas vezes 3,26 anos-luz. Esta esfera espacial tinha sido dividida em dez setores de distância, dispostas concentricamente em torno de Terra como centro absoluto, e numerados de 1 a 10, seguindo-se a cada número a designação de uma das quatro direções cardinais, nesta ordem: Leste, Norte, Oeste, Sul. Era como se uma maçã fosse repartida em quatro fatias; por sua vez, cada fatia era subdividida em cubos espaciais que, assim, apresentavam arestas tanto retas quanto curvilíneas; todo cadete tinha memorizado essas designações e poderia identificá-las até no mais profundo sono.
Dentro desta zona estava localizada a região controlada pelas Formações de Reconhecimento Espacial Terrana. Essas formações eram comandadas pelo marechal-do-espaço W. W. Wamsler.
E neste preciso instante ele estava em vias de explodir...
A FUNCIONALIDADE e o bom gosto da decoração do gabinete de Wamsler eram característicos a todas as instalações das Formações de Reconhecimento Espacial Terrana. O marechal-do-espaço Wamsler estava sentado atrás da sua espelhante mesa de trabalho; no silêncio reinante havia o presságio de uma explosão iminente.
Um débil zumbido fez-se ouvir por baixo da tampa da mesa.
Linha após linha, um robô projetava textos sobre uma tela; eram informes sucintos das operações das formações de reconhecimento, e Wamsler estudava-os com atenção. Ao ouvir um fino sonido, levantou os olhos.
Na tela do videofone, colocado diagonalmente em frente à mesa, apareceu um rosto, e uma voz disse, em tom rotineiro:
— Marechal Wamsler?
— Sim, o que há, Spring-Brauner?
— A chefe das Esquadrilhas Espaciais Rápidas acabou de chegar.
Por um instante, os negros olhos de Wamsler ficaram ocultos por trás das pesadas e sonolentas pálpebras; em seguida disse, com sua voz grave:
— Faça-a entrar.
Winston Woodrov Wamsler tinha uma aparência sombria, mareada pelos longos anos de serviço ativo e o peso das responsabilidades; tudo nele era negro: o uniforme com o largo fecho metálico no jaquetão; o cabelo, já bastante ralo; as espessas sobrancelhas e os olhos. O marechal aspirou profundamente, e reclinou-se na poltrona, o frio olhar dirigido à barreira. Algo começou a chiar.
Ao lado da enorme parede, coberta de mapas, brilhava, cintilante, um retângulo semitransparente: uma cascata de raios luminosos de cores variadas. Era mortífera; aquele que entrasse em contato com essa cortina de elétrons desenfreados estava perdido. Abruptamente, desabando como uma cortina de água não mais suprida, a barreira se desfez, seus raios mortais foram novamente recolhidos à barra projetora embutida no piso. O tenente-ordenança Spring-Brauner entrou no gabinete; ao seu lado, com passos enérgicos, caminhava uma figura invulgar; pararam diante da mesa de Wamsler.
— Boa noite — disse Winston Wamsler, a meia voz.
A voz de van Dyke era extremamente reservada e serena.
— Boa noite, marechal Wamsler. Brauner manteve-se imóvel ao lado da mulher de trinta e cinco anos e cabelo escuro. Lydia van Dyke trajava o uniforme das Esquadrilhas Espaciais Rápidas, ostentando a plaqueta de identificação no lado esquerdo do peito. Atrás das duas pessoas, a barreira se erguia novamente, vedando o ingresso ao gabinete.
Wamsler proferiu as primeiras palavras, dando início a uma conversa que prometia tornar-se tudo, menos agradável.
— General Van Dyke, suponho que sabe por que pedi que comparecesse à minha presença?
Os expressivos lábios da mulher distenderam-se num sorriso quase imperceptível, porém, francamente irônico.
— Posso imaginar. Digamos, McLane?
Wamsler não parecia ter muita vontade de prosseguir.
— Isso mesmo, general. Aquele pouso em Rhea, contrariando todas as ordens, quebrou-lhe a nuca.
Durante alguns instantes, houve um profundo silêncio; só se ouviam a pesada respiração do marechal e o leve ranger das botas quando uma das três pessoas se mexia. Van Dyke rompeu o silêncio e disse, sem perder sua expressão controlada:
— Vá lá, que o pouso em Rhea tenha contrariado ordens; mas, como técnica de navegação espacial, foi uma obra-prima. Dei uma espiada nas fitas do livro de bordo eletrônico.
Brauner era, sem dúvida, um homem de ótima aparência. Seu grande defeito era ter consciência disso, e de tentar convencer outros, insistentemente, a reconhecer este fato. Sem olhar para Van Dyke, objetou:
— O pouso foi realizado em total desrespeito a uma reiterada ordem de grau Alfa da Suprema Comissão Espacial. McLane admitiu ter recebido essa ordem.
Van Dyke olhou para o tenente, examinando-o de alto a baixo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.
— O que o senhor, tenente Spring-Brauner, mais apreciaria, é ver McLane ser condenado a trabalhos forçados nos pântanos de fósforo; isto não constitui nenhuma novidade para mim. E não só para mim, meu caro!
Wamsler deu um soco violento na mesa e berrou:
— Não vamos fugir do assunto!
— Ainda estamos falando de McLane — retrucou Lydia. O marechal sacudiu a cabeça.
— Simpatias ou antipatias pessoais não entram nessa discussão. O fato é que Cliff Allistair McLane é transferido, em caráter punitivo e com efeito imediato, para o serviço de patrulhamento das Formações de Reconhecimento Espacial.
Lydia empertigou-se diante do marechal; uma elegante mulher, com sua farda bem talhada e as longas botas de finíssimo couro sintético. Em voz meio baixa perguntou, secamente:
— Suponho que a idéia de me avisar primeiro, não passou na cabeça de ninguém; pelo que me consta, ainda sou a superior de McLane!
Wamsler levantou a mão num gesto desdenhoso.
— É por isso mesmo que solicitei a sua presença, general. McLane e sua equipe devem chegar aqui dentro de mais alguns minutos.
— Querem me proporcionar o duvidoso prazer de assistir à execução?
O sorriso de Lydia era de puro sarcasmo.
Wamsler encolheu seus largos ombros.
— Se pudesse, teria lhe poupado tudo isto, Lydia — respondeu em tom mais conciliador. — Mas, nem eu nem a senhora podemos fugir das nossas atribuições!
Houve uma pequena pausa; depois, Lydia perguntou:
— Tenho permissão para externar uma opinião pessoal?
Wamsler fez um gesto convidativo:
— À vontade, general.
— Considero esta punição — disse Lydia van Dyke com firmeza — como o maior e, sem dúvida, o mais desnecessário escândalo já ocorrido em toda a frota espacial de Terra.
A voz de Wamsler adquiriu uma intensidade considerável.
— Ah, é?! — gritou. — E as escapadas de McLane... suas incontáveis proezas voluntariosas?
— Como aquele vôo maluco para a segunda lua de Júpiter... lembram-se? — arriscou Brauner.
Wamsler ignorou a observação do tenente e continuou a enumerar as arbitrariedades de McLane.
— E o avanço para a base de Saturno na Segunda Guerra Interplanetária? E que dizer da sua intervenção totalmente arbitrária no planeta Alpha Centauro? Etc., etc. Nada disso constitui um escândalo, pelo visto; que me diz, general?
Com um sorriso paciente nos lábios, Lydia disse algo ao marechal que ele já sabia há muito tempo; mas não podia dizer em voz alta.
— Sem homens como McLane, e isso inclui a sua excelente equipe, provavelmente teríamos perdido as duas guerras interplanetárias.
Enquanto observava o mapa espacial ao lado da barreira, Wamsler murmurou, pensativo:
— Pode ser, Lydia...
De repente, voltou a ser agressivo e gritou, olhando para Brauner:
— Por todos os satélites de Chroma! Não estamos reunidos aqui para limpar a ficha desse homem!
Van Dyke interrompeu o marechal.
— McLane no serviço de patrulha-mento! Teria sido mais inteligente expulsá-lo de vez!
Brauner levantou a mão e, acreditando que ia fazer uma observação engraçada, disse:
— Não dramatize a coisa, general. Ninguém é insubstituível, nem mesmo McLane! Daqui a alguns anos, as nossas naves espaciais vão ser tripuladas somente por robôs!
Van Dyke voltou-se rapidamente.
— Espero ter o prazer — respondeu, com voz incisiva — de encontrar esses seus robôs também nas ante-salas dos diversos estados-maiores, ajudante-de-ordens Brauner. Também já sei, quem eu gostaria de ver substituído em primeiro lugar!
O sinal emitido pelo videofone interrompeu o duelo. Uma jovem, cadete do Serviço Espacial, apareceu na tela ao lado da barreira, Wamsler levantou as densas sobrancelhas e ficou a vista no aparelho.
— Marechal, a equipe da Órion está aqui na minha sala.
Wamsler ordenou:
— Faça-os esperar mais alguns instantes. Sim? O que é?
A pergunta era dirigida ao tenente; um pouco mais comedido, o ajudante disse:
— Não devíamos ouvir primeiro aquela funcionária do serviço de segurança, marechal?
— É claro; faça-a entrar! Spring-Brauner deu meia-volta e avançou até a barreira; em meio segundo, sua plaqueta de identificação foi checada pelo mecanismo de abertura e a barreira se desfez.
Lydia tinha se mantido imóvel até este instante. Agora, apoiou a mão direita na mesa de Wamsler e a outra nos quadris.
— Por acaso isto quer dizer — perguntou, piscando — que, além de tudo, McLane ainda vai ganhar de presente uma espiã a bordo?
Com resignação, Wamsler respondeu:
— Disposição da Suprema Comissão Espacial. Não posso fazer nada, Lydia.
Incrédula e desnorteada, Lydia van Dyke sacudia lentamente a cabeça.
Mais uma vez a barreira eletrônica sumiu temporariamente; Brauner atravessou a moldura retangular do dispositivo, acompanhado por uma mulher que trajava o uniforme cinza-escuro do Serviço de Segurança Galático. Durante alguns segundos, só se ouviam os passos do ajudante e o ruído dos saltos das botas. Lentamente, Lydia van Dyke virou-se e passou a examinar a recém-chegada.
O marechal permaneceu sentado; pensativo e algo intranqüilo, fixou o olhar no S inscrito no círculo que a funcionária ostentava do lado direito do busto. Dobrando o braço direito e tocando, brevemente, o ombro esquerdo com o dedo indicador, ela se apresentou, com voz agradavelmente baixa:
— Tenente de l.a classe Tamara Jagellovsk, do Serviço de Segurança Galático.
Wamsler apontou um dedo em direção a Lydia, que tinha permanecido em pé junto à mesa do marechal, e disse:
— Este é o general Van Dyke, chefe das Esquadrilhas Espaciais Rápidas; até este momento, a tripulação da Órion obedecia às suas ordens. Conhece os relatórios, documentos e processos disciplinares relativos à Órion VII e sua equipe, tenente Jagellovsk?
— Conheço, sim, marechal. Wamsler prosseguiu:
— Tomou conhecimento das suas tarefas e dos seus serviços a bordo da Órion, tenente?
Com bem ensaiada modéstia, Tamara respondeu:
— Na central do serviço de segurança recebi as mais detalhadas instruções e informações referentes ao caso.
Com um traço de ironia, Wamsler continuou:
— A senhora foi designada para ser o oficial de segurança a bordo da Órion VII. Como tal, é sua atribuição coibir qualquer desrespeito a ordens, violação dos regulamentos do serviço espacial, e infringimento da Lei da Esquadra; para isto, cabe-lhe tomar as medidas disciplinares que se fizerem necessárias, e comunicar, imediatamente, todas as ocorrências irregulares!
— São mais ou menos estes os termos da ordem que recebi, marechal.
A jovem estava ligeiramente nervosa, mas conseguiu se manter sob controle. Como se sentisse pena dela, Wamsler observou:
— Não vai ser nada fácil lidar com McLane e sua equipe, tenente Jagellovsk!
Sem se mostrar perturbada, Tamara respondeu:
— Isso eu já sabia.
Lydia van Dyke não conteve o riso; Wamsler fez-se de surdo e dirigiu-se novamente a Tamara:
— Bem, a senhora é ainda muito moça para uma missão de tal envergadura...
— Obrigado, marechal — respondeu
Tamara, sorrindo, e interrompendo a observação do marechal, que acrescentou:
— ... e não deve ter muita experiência do serviço galático.
Com a dose exata de sarcasmo admissível perante um superior, Tamara disse, segura de si mesma:
— E justamente eu acabei sendo escolhida, marechal!
Lydia van Dyke parecia satisfeita com o exame visual a que tinha submetido o tenente feminino. Tinha diante de si uma mulher loura, de olhos verdes e feições pouco delicadas, mas ainda bem femininas. O uniforme cinza-escuro era, sem dúvida, uma obra-prima do alfaiate oficial da esquadra e fazia jus ao seu conteúdo. As botas altas, que iam até os joelhos, ocultavam um par de pernas verdadeiramente clássicas, a julgar pelo pouco que se via delas. O cabelo descia em curva das orelhas, terminando em duas pontas junto ao queixo: era o penteado que estava na moda. Lydia van Dyke conhecia várias funcionárias do serviço de segurança bem mais feias e sabia que McLane era um grande apreciador de toda e qualquer beleza, principalmente daquela que ele via no sexo oposto.
Wamsler cortou essas divagações de maneira brutal.
— Muito bem... — disse, estendendo cada palavra — vamos dar início ao espetáculo.
Calcou um botão e a tela do videofone se iluminou; a cadete na ante-sala estava olhando para o marechal, e logo recebeu a sua ordem:
— Que entre o bando de McLane! Quatro pessoas aguardavam a decisiva entrada em cena do comandante.
McLane gozava de uma fama mais que duvidosa; mas o que o pessoal da frota mais admirava nele era sua autoconfiança. Representava o resultado de uma longa e difícil carreira que o tinha conduzido, através de incontáveis perigos e missões de incrível audácia, ao comando de um cruzador espacial. Seus homens apreciavam seu senso de camaradagem, bem como o fato de que, nem por uma fração de segundo, era apenas o chefe. Os colegas na esquadra respeitavam a sua capacidade de beber e o desprezo que manifestava em relação a incômodas convenções como ordens, disposições superiores e coisas do gênero. E as moças e mulheres, que tinha conhecido ao longo do seu caminho através do espaço, apreciavam o resto das suas qualidades que, como todos sabiam, nada ficavam a dever à sua coragem.
A ordem em que os tripulantes da Órion entravam, neste instante, no gabinete de Wamsler correspondia exatamente a esta autoconfiança.
Cliff Allistair McLane era o primeiro. Esbelto, com o curto cabelo castanho penteado sobre a testa, caminhava à frente dos seus homens. Só a reluzente plaqueta de identificação enfeitava o seu modesto uniforme preto.
Os cinco membros da equipe perfilaram-se diante da mesa de trabalho do marechal. Wamsler. Lydia, Brauner e Tamara tinham assistido ao desfile com as mais variadas emoções, e aguardavam, agora, o lance inicial de McLane.
Serenamente, o comandante cumpriu a formalidade regulamentar.
— Comandante McLane e a tripulação da Órion VII, marechal.
A HM-4, o modelo pesado do projetor de energia, pendia nos suportes do seu cinto; para um lança-raios, a arma possuía uma forma incomum.
Wamsler inspecionou os cinco com olhar penetrante e, em silêncio, começou a folhear documentos numa pasta de plástico.
— Major McLane — disse em seguida, lentamente e sem qualquer entonação — cumpre-me informá-lo da decisão que foi tomada.
McLane manteve-se em silenciosa expectativa; a equipe fixou o olhar, imóvel, sobre algum ponto na distância.
— O Comitê de Investigação da Comissão Espacial decretou o seguinte: o major McLane é exonerado, com efeito imediato, das suas funções nas Esquadrilhas Espaciais Rápidas, e deve-se considerar transferido, em caráter punitivo, para o Serviço do Patrulhamento Espacial!
Houve uma pequena pausa; depois, McLane perguntou:
— E por quanto tempo, marechal Wamsler?
Wamsler rosnou:
— Por trinta e seis meses!
— E por que razões? — indagou McLane, com estudada inocência.
Wamsler pestanejou, surpreso; em seguida, bateu com a pasta na mesa e disse, com voz categórica:
— Major McLane! Poupe-me o trabalho de ter que recitar, para os presentes, toda a volumosa ladainha dos seus espetáculos extraprograma!
Lançando um rápido olhar para Van Dyke, Wamsler continuou:
— No futuro, major, o menor infringimento do regulamento vai lhe valer a sua imediata demissão. Fui bem claro nesse ponto, comandante?
Com uma tranqüilidade sem igual, McLane observou:
— Marechal Wamsler! Se for da conveniência do estado-maior, tiraremos as nossas conclusões e quitamos, imediatamente, o Serviço Espacial.
— O senhor, agora vai me fazer o favor de calar sua boca — disse Lydia van Dyke de repente, antecipando-se a Wamsler.
Surpreso, McLane olhou para ela, e viu que piscava imperceptivelmente; somente o comandante percebeu.
— O senhor não vai quitar pura e simplesmente o serviço como um cadete ofendido; o que o senhor vai fazer, é comparecer novamente a minha presença daqui a três anos, entendeu?
McLane piscou com o olho direito, em retribuição, e respondeu, em atitude militar:
— Sim, general Van Dyke!
Lydia prestou continência a Wamsler, virou-se e saiu do gabinete, sem proferir mais uma palavra; a barreira extinguiu-se diante dela, incandescendo-se novamente quando já tinha cessado o duro ruído dos saltos no piso. Wamsler prosseguiu:
— Além disso, tenho aqui uma ordem do Comando Operacional, segundo a qual um agente do Serviço de Segurança Galático acompanhará todos os seus passos durante esses trinta e seis meses.
Wamsler tinha conseguido romper a calma sem limites do comandante. McLane inclinou-se para a frente e fez como se não tivesse entendido direito.
— Mas isto... — sussurrou, engasgando. Wamsler o interrompeu asperamente:
— Se me permite, dispenso seus comentários, McLane!
Wamsler esticou a pesada cabeça na direção de Tamara Jagellovsk.
— Major, apresento-lhe seu futuro oficial de segurança a bordo; tenente de l.a classe Tamara Jagellovsk. Sem dúvida é do seu conhecimento, McLane, que agentes do S.S.G. podem emitir ordens de grau Alfa?
Cinco olhares desconfiados dirigiram-se a Tamara. Com unanimidade emocional, a tripulação analisou a tenente, como se ela fosse um pedaço de escombro cósmico; por sua vez, Tamara devolveu os olhares e passou a examinar os cinco que a encaravam. Wamsler perdeu algo da sua segurança inicial.
— Espero que não haja aborrecimentos, McLane! — advertiu.
— O mesmo espero eu, marechal! — retrucou McLane, com uma ponta de arrogância; ainda estava olhando para Tamara. O comandante e o oficial do S.S.G. mediam-se como dois lutadores. Wamsler pigarreou e prosseguiu, com o olhar de McLane agora voltado para ele.
— Muito bem. Agora eu gostaria de discutir com os senhores alguns detalhes relativos à primeira missão no Serviço de Patrulhamento Espacial. Vão decolar amanhã às dezoito horas com destino a 10 Norte 219. Tarefa: fiscalizar, proteger e controlar toda a movimentação de espaçonaves e radiossatélites neste cubo.
— Marechal! — balbuciou McLane, fora de si — isto é uma tarefa para cadetes!
Com um sorriso frio e presença de espírito, Wamsler respondeu:
— Considere a missão como vôo recreativo, ou de repouso, como queira; aliás, eu já tinha notado seu aspecto meio fatigado. Tudo claro agora?
— Tudo — disse McLane, dando-se por vencido — tudo claro, marechal!
Por uma dessas razões inexplicáveis, o nome tinha-se enraizado: Cassino Starlight. Não longe da base, o estabelecimento ocupava uma enorme área na superfície terrestre, mas possuía ainda um grande trecho submerso, construído dentro de uma laguna tropical. Atrás de espessas paredes de vidro, viam-se cardumes de peixes exóticos e bancos de coral, em constante crescimento. Por todo o salão ouviam-se os sons da música, que emanavam de uma infinidade de alto-falantes bem disfarçados. Este ano, o compositor em voga era Tomas Peter, e era de sua autoria o Blues do Astronauta Mudo, que estava sendo executado neste momento.
A imensa tampa do bar prestava-se perfeitamente para a realização de corridas de cem metros rasos. McLane, cujo estado de ânimo tinha experimentado uma substancial melhoria com auxílio de álcool, estava sentado ao lado de Hasso e perguntou, sem maior motivação:
— Você quer mais um conhaque, Hasso?
Hasso Sigbjörnson fez um gesto que, no seu entender, devia exprimir repúdio e abstêmia.
— Não quero não, Cliff — respondeu, com determinação. — Para mim chega. Eu agora preciso ir... verdade, Cliff — acrescentou quando notou o riso malicioso no rosto do seu superior. — A rigor, eu já devia estar em casa há duas horas.
— Nada prende você aqui, Hasso!
A jovem, que estava atrás do bar, aproximou-se. Alguns anos atrás, as garçonetes iam ser substituídas por robôs; a conseqüência imediata desta decisão foi uma revolta na colônia dos astronautas e, desde então, tudo ficou como era.
McLane virou-se e observou os pares na pista de danças.
— Realmente, já está mais do que na hora para eu me mandar — constatou Hasso, sem se levantar; alguma coisa o oprimia e ele disse: — O que foi mesmo que você me perguntou ainda há pouco, Cliff?
— Eu lhe fiz alguma pergunta? — admirou-se Cliff. — Não que eu me lembre!
— Como, não? Não faz três segundos, você me perguntou se...
Cliff começou a rir gostosamente.
— Você tem razão — admitiu, chamando a moça atrás do bar — eu perguntei se você queria mais um conhaque.
— Quero sim, obrigado!
O aceno de Hasso espelhava o seu estado de resignação.
Os copos chegaram; altos e esbeltos cilindros, com pés luminosos; o álcool brilhava como uma pedra preciosa.
— Mas, depois desse, eu vou — disse Hasso — senão Ingrid vai ficar um bocado zangada!
— E com toda a razão! — confirmou McLane.
McLane tinha notado a expressão de insegurança nos olhos azuis do seu companheiro, o que lhe deu a certeza de que Hasso estava às voltas com um problema. O comandante girou seu copo entre os dedos, aguardando...
— Escute, Cliff... você não gostaria de dar um pulinho lá em casa?
McLane estourou numa gargalhada; alguns freqüentadores viraram-se em sua direção. Tinha reconhecido, de estalo, a natureza do problema de Hasso.
— Ora, bolas! — disse, voltando-se para o amigo — quer dizer que as coisas estão novamente naquele pé, não é?
— Pois é, Cliff... e eu tinha prometido solenemente a ela que ia parar.
Cliff ainda estava rindo.
— Afinal, quantas vezes você já fez essa promessa solene? Será que ela ainda acredita em alguma coisa que você diz, Hasso?
Hasso fez que sim e parecia acreditar no que dizia.
— Estou falando sério; eu vou parar!
Cliff bebeu demoradamente e colocou o copo de novo sobre o bar; seus olhos castanhos fixaram-se no rosto do engenheiro. Com voz calma, perguntou:
— Você pretende ou tinha pretendido parar?
Hasso era muito mais um homem de ação que de palavras. Não havia um único milímetro quadrado na sua sala de máquinas e no posto de combate que ele não conhecesse como a palma da mão. Mas, quando se tratava de expor os intrincados processos de sua vida interior, começava a improvisar. Alisou, pensativo, os seus bem escovados cabelos brancos, e declarou, categoricamente:
— Você precisa falar com ela, McLane!
— Eu sei disso — respondeu, Cliff, acenando com a cabeça.
Hasso enganchou o indicador no cinto de Cliff e puxou o comandante para junto dele.
— Cliff, sem você, eu não tenho coragem de ir para casa!
O sorriso que McLane ostentava não tinha nada de irônico; exprimia, ao contrário, a amizade e a profunda compreensão que unia os dois homens. Quando o olhar pensativo de Cliff começou a divagar pelo salão, teve a atenção retida por uma mulher loura e esbelta, que abria caminho através da pista de dança. O indicador de McLane parou junto ao nariz de Hasso, apontando para trás; Cliff disse:
— Parece que seu problema vai ser resolvido já, já!
Hasso virou-se rapidamente e ficou tenso quando reconheceu sua mulher.
— Acabou-se tudo! — disse, profundamente abatido — agora aconteceu.
McLane chamou a garçonete e pediu a conta.
Nervoso, Hasso mexia-se de um lado para o outro em cima do banco; finalmente, virou o rosto para Cliff. Era evidente que estava na expectativa de um violento temporal.
— Por todos os fantasmas do espaço, Cliff! Você não está pretendendo abandonar-me logo agora, está?
Tranqüilizando-o, Cliff respondeu:
— Não vou abandonar você, Hasso; só quis pagar a conta. Dá uma impressão muito melhor a ela se nossa conta já estiver paga.
Pagou e, descendo do seu banco, cumprimentou a mulher de Hasso com amabilidade:
— Boa noite, Ingrid; que prazer revê-la depois de tanto tempo!
A senhora Sigbjörnson, uma loura de muito boa aparência, lançou um olhar atento para Cliff e disse:
— Alô, major McLane!
Em seguida, virou-se para o marido. Com a paciência de uma sofrida esposa de astronauta, perguntou:
— Será que todas as reuniões das tripulações são realizadas aqui, Hasso?
— Algumas, sim, Ingrid — asseverou Hasso, enquanto Cliff acenava vivamente com a cabeça, em apoio ao amigo.
Mais encorajado, Hasso prosseguiu em sua explicação:
— Sabe Ingrid, isso depende muito do estado...
Ingrid cortou-lhe a palavra:
— O único estado que me interessa — disse com enganosa candura — é este em que você se encontra!
Aflito, Hasso levantou-se e disse:
— Nós já estávamos de saída, quando você chegou; acabei de propor a Cliff tomar mais uma cervejinha lá em casa.
A música tinha parado de tocar; dispersando-se, os pares dirigiam-se ao bar e ao restaurante, enquanto outros procuravam um lugar para conversar na imensa sala de estar atrás da pista de dança.
Deixando a boa educação de lado, Ingrid limitou-se a responder:
— Ah, é?
— Parece que você não está muito entusiasmada com a visita que nosso afamado comandante pretende fazer ao nosso modesto lar!
Contra sua vontade, Ingrid teve que sorrir.
— Ora, Hasso! Então você acha que até agora eu ainda não aprendi a lição? Sei perfeitamente o que está para acontecer toda a vez que você chega em casa com seu chefe a tiracolo!
Hasso estava pronto para capitular, sem esperanças.
— É verdade — murmurou, cabisbaixo — mas, você sabe, Ingrid... o que Cliff tinha em mente...
McLane fez um gesto complicado, apontando primeiro para si mesmo e depois para Hasso; conseguiu atrair a atenção de Ingrid, que lhe lançou um olhar compreensivo com apenas um traço de curiosidade.
— Não sei, como devo explicar o caso — disse McLane, mas Ingrid o interrompeu.
— Não precisa explicar nada, major; já sei: Hasso vai acompanhá-lo em mais uma missão, correto?
Hasso vislumbrou sua chance e intrometeu-se, agitado:
— Correto, Ingrid, é isso mesmo! Eu achei que seria melhor acompanhar Cliff ainda esta vez, só esta última vez!
— E logo agora, Ingrid — observou McLane — que a nossa popularidade nas altas esferas atingiu proporções inimagináveis.
— Eu já ouvi falar disso — respondeu Ingrid, em tom reservado.
— Até uma delatora do S.S.G. foi incorporada ao nosso grupo! — exclamou Hasso, indignado, espalmando as mãos num gesto de censura.
— Portanto, a senhora há de concordar comigo — disse McLane, com proposital formalismo e antes que Ingrid pudesse encetar uma resposta — que este é o pior momento possível para se pensar em substituir Hasso; e isto, sem levar em consideração que a capacidade de um eventual substituto nem de longe alcançaria a do seu marido.
A formalidade da exposição surtiu efeito; apesar de sua desilusão, Ingrid viu-se forçada a sorrir. Recostou-se no bar e encarou os dois homens que, na realidade, não estavam ostentando a melhor das aparências.
— Estou louca para que chegue o dia — disse Ingrid — em que vocês não consigam arranjar alguma desculpa esfarrapada.
— Cliff! — gritou Hasso, radiante, e deu uma forte pancada no ombro de McLane — ela riu!
— Digamos que ela... sorriu! — constatou McLane, fingindo-se ligeiramente abatido.
Ingrid sentou-se no banco de Hasso, e começou a contar pelos dedos:
— As crianças estão dormindo, os robôs foram desligados. Seu uniforme está limpo e o aluguel foi pago... neste caso, creio que vou ficar mais um pouco com vocês. Se o senhor major se dignar em me oferecer um coquetel, eu certamente não recusaria o convite.
Cliff dirigiu-lhe um sorriso de agradecimento e chamou a moça do bar. Hasso soltou um profundo suspiro de alívio que, para ele, soava quase como a sereia de partida...
Por muitas razões, as bases das espaçonaves eram todas subterrâneas.
Aqui, no norte do continente australiano, no golfo de Carpentaria, encontrava-se a Base 104. Entre Groote Eylandt e Duifken Point tinham sido construídos os estaleiros dos cruzadores, as vias de suprimento de energia, as instalações técnicas e os alojamentos do pessoal de serviço. Uma vasta rede de galerias e corredores secundários superpostos erguia-se do fundo do mar até a terra firme, interligados por vias de transporte e escadas rolantes. Uma escotilha abriu-se.
O corredor levava, em linha reta, às antecâmaras do campo de decolagem; tinha uns três metros de diâmetro, e sua iluminação provinha de luminárias embutidas, de trecho em trecho, no piso de plástico corrugado. McLane e sua equipe atravessavam esse corredor — com exceção de Mario, que já se encontrava a bordo da nave.
Entraram numa cabine de pressurização, que separava o campo de decolagem das demais instalações. Suas paredes e comportas eram capazes de resistir à tremenda pressão hidrostática que atuava sobre a base submarina. Silenciosamente, a espessa placa de aço se fechou atrás dos homens.
— Cadete McLane e equipe estão a caminho! — murmurou Cliff.
Hasso torceu os lábios num sorriso furtivo.
A comporta externa da cabine abriu-se, liberando o acesso ao campo de decolagem. O gigantesco cilindro de aço possuía um diâmetro de quase um quilômetro; no centro, pousara a Órion VII. Os holofotes, dispostos ao longo da periferia, lançavam seus possantes feixes de luz verticalmente para cima, mergulhando a cena numa luminosidade azulada e carregada de tensão. O chão da base, escavado na rocha submarina, por fusão, há um século, era revestido com enormes placas que evitavam a infiltração de água e resistiam às forças liberadas durante os pousos e decolagens. Uns trinta homens do serviço de solo estavam trabalhando.
Removiam máquinas e aparelhos de teste utilizados durante a revisão a que a Órion tinha sido submetida durante as últimas quarenta e oito horas.
McLane e seus companheiros dirigiram-se à nave.
Dez metros acima do solo, a Órion mantinha-se sobre um anel de raios antigravitacionais. Os círculos no chão designavam os pontos onde os raios incidiam. McLane foi o primeiro a entrar no elevador, um esbelto tubo telescópico que descia da parte inferior da nave até o solo; os outros o seguiram.
Uma luva cilíndrica cobriu a entrada, fechando o elevador; as largas faixas de vedação aderiram firmemente ao tubo e o dispositivo hidráulico alçou o elevador para o interior da nave.
A Órion VII era um disco achatado e de formato excepcional, com um diâmetro de cinqüenta metros. A altura, entre o piso corrugado do elevador e a ponta da antena do radar, era de uns doze metros. Duas escoras de aço, que se projetavam além da borda externa, suportavam os canhões da nave, abrigados em duas ogivas revestidas. Os ruídos familiares das máquinas receberam a tripulação, que se dirigiu às suas cabines para trocar a farda pelo traje de bordo.
Três minutos depois, Cliff entrou na sala de comando, um recinto circular de dez metros de diâmetro e repleto de instrumentos, aparelhos, poltronas e escoras metálicas.
— Tudo pronto, Mario? — perguntou Cliff, ocupando sua poltrona diante do painel de controle.
Cliff calcou uma série de teclas; sucessivamente, uma infinidade de luzes foi se acendendo: as luminárias no alto, os pequenos monitores entre as vigas cromadas do teto, as escalas e mostra-dores dos instrumentos e a gigantesca tela de imagem em frente ao assento do comandante.
Helga Legrelle, também trajando o macacão de bordo, entrou na cabine e sentou-se.
— Mario — a voz de McLane era calma — verificou a programação?
Os dedos do subcomandante estavam sobre o teclado da unidade de entrada do computador.
— Nosso gênio eletrônico está perfeito — respondeu — mas não me pergunte quantas garotas encantadoras do corpo de cadetes tiveram que levar o bolo por causa dele!
Com bem treinados movimentos, Helga girou uma série de botões; silenciosamente, uma vida misteriosa despertava nos aparelhos.
— Computador perfeito; curso e coordenadas de vôo?
— Tudo em ordem, Cliff! — respondeu De Monti.
— Controle de bordo!
Mario sentou-se ao lado de Cliff e, juntos, testaram as principais operações de comando.
— Controle completado — disse Mario ao fim de alguns minutos.
Hasso, o engenheiro de bordo, e Atan Shubashi, o astronavegador, entraram na cabine e ocuparam seus lugares; o teste de rotina prosseguiu.
Tamara Jagellovsk, tenente de l.a classe, desceu a estreita escada e entrou na sala de comando; ninguém deu-lhe atenção. Indecisa, parou, recostando-se finalmente numa das escoras recurvadas, em atitude de expectativa. Trajava o "pequeno uniforme de bordo", uma peça única cinza-escura.
O livro de bordo eletrônico já estava ligado.
Hasso puxou um microfone e comunicou:
— Máquina para comandante: campo de gravitação artificial em ação à hora zero menos seis segundos.
— Tamara Jagellovsk, do Serviço de Segurança Galático, apresenta-se a bordo — disse Tamara, a meia voz. Continuava a ser ignorada pela tripulação, mas o livro de bordo tinha registrado os impulsos.
— Comandante para astronavegador — disse Cliff no seu microfone — aprontar computador para controle automático !
— Computador assume à hora zero menos dez segundos, chefe!
Atan Shubashi manipulava os controles.
Observando uma série de sinais eletrônicos e faixas luminosas que tinham aparecido nos seus instrumentos, Helga anunciou:
— Vigilância Espacial entrou no circuito. Raio-piloto firme. Órion e Base 104 em comunicação radiofônica com Estação Avançada IV.
Helga transferiu uma mensagem para o intercomunicador de bordo. O controle de vôo da base estava instalado numa compacta cabine, à prova de pressões, situada na borda superior do poço metálico, com ampla visão do campo de decolagem. A voz do encarregado ressoava nos alto-falantes:
— Aqui fala a Base 104. Controle de vôo para cruzador espacial rápido Órion VII... autorizado a decolar.
— Obrigado, base! — disse Cliff e cortou a ligação. A voz nos alto-falantes prosseguia:
— Base 104 transfere controle para Estação Avançada IV.
— Preparar para decolagem — ordenou Cliff. — Primeiro estágio de aceleração. Ligar equilibrador de pressão. Ativar campo de força gravitacional artificial!
Hasso e Atan manejavam seus comutadores e manetes. Com propositada indiferença, Cliff virou-se e olhou para Tamara. Com voz alta — que o livro de bordo registrou — disse, fingindo-se surpreso:
— Ora veja! A senhora também está aqui?
Tamara acenou e devolveu-lhe um sorriso sarcástico.
— Para decolar — prosseguiu McLane, com ironia — eu dispenso tanto o seu auxílio quanto a sua vigilância. Queira ter a bondade de voltar à sua cabine; ligue a comunicação de bordo... para isto, aperte um pequeno botão com as letras SCB: sistema de comunicação de bordo.
Sua falsa afabilidade tornou-se cáustica.
— Se preferir um contato visual recorra ao videofone. No armário embutido vai encontrar sua bagagem de bordo, rações compactas suficientes para doze meses e uma pistola paralisadora, caso queira imobilizar-se!, e se, porventura, a senhora se sentir muito mal mesmo, recorra aos nossos leitos frigoríficos, que estão dia e noite à sua disposição!
McLane virou-se e começou a observar a grande tela circular.
— Bem que gostaria de me congelar, não é mesmo, major McLane? — perguntou Tamara.
— Infelizmente, as minhas predileções não podem ser discutidas — resmungou McLane. — Agora, vá se deitar; mas antes ligue o campo gravitacional na sua cabine. Se lhe acontecer alguma coisa, ainda vão me acusar de tentativa de homicídio.
Tamara engoliu em seco, virou-se e dirigiu-se ao pequeno elevador que a levaria ao convés II. Enquanto a porta se fechava, ouviu as ordens seguintes do major.
— Hasso! Agregados de fótons a meia força.
O engenheiro pressionou três botões no painel de controle.
Um fino e cavernoso zumbido atravessou a nave, sacudindo as escoras; a uma determinada velocidade de rotação das máquinas, os diversos compartimentos entravam em ressonância; ultrapassado o valor crítico, as vibrações voltavam à sua amplitude normal.
— O computador assumiu o controle automático — informou Hasso.
— Ótimo! Então, vamos decolar! As equipes de serviço tinham-se retirado, e o campo estava vazio e escuro. A voz mecânica terminou a contagem regressiva e a Órion começou a erguer-se lentamente. Ao mesmo tempo, com gradual aumento de força, os projetores fizeram recuar as massas d'água.
Um redemoinho apareceu na superfície da enorme baía, ampliando constantemente seu diâmetro, até que a parede de água tumultuada atingiu o fundo do mar. Como uma fênix, a Órion elevou-se através do vazio desse poço líquido, atingiu a superfície e o turbilhonamento tornou-se cada vez mais lento; a calma retornava ao mar revolto; um pouco mais tarde, gigantescos vagalhões iriam fustigar as margens da baía. O ronco dos motores tornou-se mais uivante.
A enorme pressão exercida pela nave, que agora partia a plena potência rumo ao espaço, era neutralizada pelos retardadores. Ganhando velocidade, a Órion atravessou a troposfera e irrompeu através de uma formação de nuvens.
Vinte mil metros... a nave penetrava na estratosfera; a exaustão dos seus reatores pulverizou as últimas nuvens cirro-cúmulos...
Camada de Heaviside... camada inferior de Appleton... termosfera. A envoltória gasosa tornava-se cada vez menos densa... exosfera e cinturão de Van Allen. E a Órion projetava-se no espaço livre em direção ao Sol.
O gigantesco computador digital estava em pleno funcionamento, emitindo seu débil matraquear.
O ruído dos propulsores tornava-se paulatinamente mais baixo e, quando os motores passaram a operar nas freqüências ultrassônicas, cessou por completo.
Hasso levantou a mão, chamando a atenção de Cliff.
— Você pretende manter Tamara confinada na cabine durante toda a viagem? Sem dúvida ela vai considerar isto como cerceamento de liberdade... e você está se arriscando a uma nova punição!
Mario observou, com raiva:
— Não precisa muito, e a empáfia dela acaba; no fim, vai comer mansinha nas nossas mãos!
— ...ou nós nas mãos dela! — retrucou Shubashi, descrente.
— Não me faça rir! — disse Hasso.
— Até agora conseguimos remover todos os obstáculos que nos colocaram no caminho!
Atan Shubashi balançou a cabeça numa demonstração de profunda dúvida.
— Não sei, não — disse, pensativo
— mas há alguma coisa no nosso tenente Jagellovsk que decididamente não me agrada!
— Pois eu já descobri uma porção de coisas nela que me agradam bastante! — respondeu De Monti, exibindo um largo e vaidoso sorriso.
— Seu velho presunçoso! — disse Helga, com ênfase. — Se você pensa ter a menor chance...
— Mas, Helga, minha querida... — interrompeu De Monti, simulando surpresa — será que você já está ficando com ciúmes?
— Vá tomar banho! — limitou-se Helga a responder.
Hasso tentou acalmar os ânimos. Em tom professoral, declarou:
— Estamos discutindo o sexo dos anjos; para mim, Tamara não passa de um robô fantasiado de mulher; tenho dito.
Mario mexeu num botão e disse:
— Isso nós podemos verificar já, já! Vamos ver o que ela está fazendo.
Uma tela aclarou-se por cima do painel de instrumentos; a cabine de Tamara apareceu no videofone.
Com as pernas encolhidas, a agente do S.S.G. estava sentada no seu leito, lendo. Manejando o controle remoto, Mario obteve a ampliação máxima da lente, e conseguiu ler o título do livro: Hammersmith: Psicologia dos Astronautas. Com um gesto rápido, o subcomandante desligou o monitor.
— Acabamos de assistir — anunciou McLane — a uma intervenção na esfera íntima. Se você quiser falar com ela, sirva-se do SCB, como manda o figurino.
— Ora, bolas! — respondeu Mario, rindo. — Será que não se pode participar de uma leitura tão instrutiva?
Em seguida, calcou o botão do SCB na sua mesa e disse, no microfone:
— Tenente De Monti para oficial de segurança Jagellovsk: está me ouvindo? Então ligue o seu videofone, por favor.
Imediatamente, a imagem de Tamara reapareceu; sua resposta resumiu-se num breve "sim?"
Mario mobilizou todo o seu charme e dirigiu um sorriso amável à tela.
— Uma pergunta extra-oficial, tenente Jagellovsk. Após a partida, aceitaria um uísque no meu camarote?
Sem retribuir o sorriso, Tamara respondeu imediatamente:
— Uma pergunta oficial: o senhor realmente tem uísque?
— Se tenho uísque? — disse De Monti, quase ofendido. — tenho uma caixa inteirinha!
O rosto de Tamara cresceu na tela do monitor.
— Muito interessante. Agradeço-lhe imensamente pela informação. Vou ter que incluí-la no meu relatório.
A tela extingiu-se; Tamara tinha desligado o videofone.
McLane, Hasso, Helga e Shubashi caíram na risada; Mario permaneceu sentado diante do seu painel, com expressão abobalhada, e cocou a nuca.
O riso geral foi interrompido pelo aviso de Shubashi:
— Astronavegador para comandante!
— Sim, o que há? — perguntou Cliff, atento, e virou-se rapidamente.
— Estou recebendo um informe da estação meteorológica solar Dragon em Mercúrio. Transfiro para amplificadores.
Os chiados e crepitações das interferências inundaram a cabine; a voz automática de uma fita magnética -sem fim mal se fazia ouvir.
— De Dragon para todos... para todos... uma tempestade provocada por erupções solares desloca-se em direção Norte. Há perigo de fortes chuvas radiativas no Cubo 1. Dragon para todos...
Tamara retornou à sala de comando e recostou-se novamente na escora metálica. As interferências continuavam a emanar dos alto-falantes, mescladas de silvos.
— De Dragon para todos... Chuvas radiativas no Cubo Norte 1... Chuvas radiativas...
McLane desligou o piloto automático e efetuou uma rápida correção do curso. A Órion inclinou-se ligeiramente e desviou-se da reta imaginária que a levaria ao seu destino. O grande disco ainda estava se deslocando com velocidade inferior à da luz, e constituía-se num enorme alvo no espaço normal.
— ...para todos os cubos espaciais na vizinhança de Terra: as ondas de radiação têm um período de vinte e sete minutos,e deslocam-se...
As interferênciais tornaram ininteligível uma parte do aviso.
— ...intensidade de radiação atingiu valor cento e cinqüenta vezes maior que limites normais... Dragon para todos...
McLane ordenou:
— Basta. Desligue, Atan! Vamos abandonar o curso e seguir a rota de desvio. Verifique as respectivas coordenadas! Ocupem os seus postos! Ligar o computador!
Tamara aproximou-se da mesa de Cliff.
— Ouvi direito? — perguntou — outras coordenadas?
— Ouviu, sim! — rosnou McLane. — Outras coordenadas! Ou está, por acaso, cansada da vida?
— Não é nada disso — respondeu Tamara — mas eu exijo que a Estação Avançada IV seja informada da nossa mudança de curso, major McLane!
Hasso lançou um longo olhar para McLane, outro para a agente do S.S.G. e saiu calmamente da sala de comando, para ocupar seu lugar entre as máquinas no convés inferior. Shubashi dirigiu-se a Tamara.
— É totalmente indiferente para a estação avançada se alteramos a rota; acredita que eles poderiam nos ajudar?
E prosseguiu:
— Erupções na cromosfera do Sol desenvolvem velocidades de até setecentos quilômetros por hora. Causam perturbações na ionosfera e acabam com qualquer comunicação radiofônica. Essas radiações compõem-se de prótons e elétrons e, afastadas do Sol, podem atingir até dois mil quilômetros horários. Nossa nave correria um grave risco se mantivéssemos o curso atual.
Em voz mais alta, Tamara insistiu que sua exigência fosse cumprida. McLane, furioso, disse:
— No mínimo, em cubo espacial as comunicações entram em colapso por ocasião de uma erupção solar; quer que eu envie um mensageiro ao satélite?
Voltou-se para seus instrumentos e continuou a controlar a mudança de curso. Shubashi operava o computador, reprogramando linhas inteiras de dados. Helga manipulava os filtros do rádio, tentando entender um texto no meio daquela balbúrdia de interferências. Mas era em vão; as perturbações tornavam-se cada vez mais intensas. Em voz baixa, a jovem de cabelos negros e nariz pequeno, disse:
— E nós tínhamos receio de que este vôo ia ser a coisa mais chata deste mundo!
As primeiras partículas se chocaram contra o anteparo que envolvia a nave. Um ruído crepitante percorreu o disco; era como se uma força invisível estivesse esmagando o seu casco metálico.
— Atenção! — gritou Helga. — Aviso de emergência! Peguei os impulsos de uma ramificação; manobra de desvio; rápido, Cliff!
A Órion tombou ligeiramente e afastou-se da zona periférica da tempestade radiativa. A nave deslocava-se a uma velocidade que as partículas jamais poderiam atingir; por isso, o disco só era atingido, vez por outra, por uma dessas ramificações; e, exatamente por estes pontos de tangência, passava o novo curso que McLane tinha adotado.
Como uma pedra pulando de onda em onda, a Órion VII percorria a periferia da nuvem radiativa que se alastrava do Sol. Só mais alguns minutos separavam a nave do primeiro salto no hiperespaço, mas isto já seria novamente tarefa para o piloto automático.
Helga e Tamara tinham se postado ao lado de Shubashi, sentado em sua espumosa poltrona. Na enorme tela à sua frente, observavam o incomparável espetáculo das cascatas incandescentes e multicores, que se formavam quando o anteparo era atingido pelos fótons. Tamara não conseguia disfarçar seu nervosismo, já notado por todos.
— Conseguimos? — perguntou, com voz insegura.
— Sempre conseguimos, tenente! — disse Helga Legrelle. — Sabe, nossa equipe e o comandante McLane...
Neste preciso momento, a nave estremeceu sob o impacto de uma violenta explosão.
O QUE foi isso?! — exclamou Tamara, apavorada.
— Não foi nada — respondeu Helga, com um gesto displicente — apenas um pequeno estalo.
— Como é que a nave resiste? — perguntou Tamara, indecisa. — A intensidade da radiação já atingiu um múltiplo do valor normal.
Helga apontou para a parede externa e explicou:
— Primeiro vem o anteparo, depois o casco, seguido da camada de amortecimento; finalmente, temos as células para oxigênio, água e carga; seguem-se, ainda, o posto de lançamento, mais uma camada isolante, e depois a parede do casco interno...
Irritado, Atan Shubashi interrompeu a enumeração:
— Nunca ouvi uma coisa tão interessante! Você não poderia dar a sua aula para principiantes num lugar mais apropriado, Helga? Lá fora, por exemplo?
Uma nova explosão, seguida de fortíssima pancada, abalou a nave; mais uma vez Helga teve que acalmar Tamara; depois, virou-se para Shubashi e perguntou:
— Qual o bicho que lhe mordeu, Atan?
Atan abriu os braços num gesto pesaroso.
— Duzentos e sessenta e quatro está com verminose — anunciou sobriamente — e eu não posso estar com ele!
— Mas que coisa mais chata! — exclamou Helga. — Agora entendo o seu mau humor!
— Alguém quer me explicar — perguntou Tamara — o que significa duzentos e sessenta e quatro?
Helga prontificou-se:
— É o poodle preto dele, um amor de bichinho. Um dos trezentos e setenta e seis que ainda existem.
Tamara deu vazão à sua raiva:
— Realmente comoventes as suas preocupações! Estamos enfrentando uma tempestade solar, correndo sério perigo de vida, e o senhor fica aí se lamentando por causa de um cachorro...
A terceira explosão e o penetrante rangido que a seguiu foram mais violentos que os anteriores; desta vez, o abalo atingiu a central de comando; de algum lugar, veio o ruído de vidro estalando.
— Mas, o que é isso? — balbuciou Tamara, agarrando-se à mesa de Shubashi.
— O que a senhora acha? — perguntou Atan, com proposital indiferença.
Uma série de estalos secos sacudiu a nave; um violento solavanco por pouco não derrubava os tripulantes.
— Isto é!... isto quer dizer... — gaguejou Tamara, em pânico — nós vamos explodir!
Helga e Atan trocaram um olhar significativo. Do seu lugar, Mário de Monti confirmou:
— É isto mesmo! Nós vamos explodir!
Tamara virou-se para ele, apavorada; o medo desfigurava-lhe o rosto.
— Isto é algo — explicou Mario, gesticulando com o indicador — com que nós astronautas precisamos contar constantemente; com isso e uma série de coisas piores!
Tamara recuou lentamente e abraçou-se ao montante que suportava a mesa de McLane. Com voz ofegante, dirigiu-se ao comandante:
— Mas... o senhor precisa fazer alguma coisa, major! — disse, em pânico total.
McLane girou uma pesada chave e levantou-se; de pé, ao lado de sua poltrona, acenou com a cabeça e prometeu:
— E vou fazer alguma coisa, tenente!
Denotando um certo alívio, Tamara perguntou:
— E o que é que o senhor vai fazer, major McLane?
— Vou ver se como alguma coisa — respondeu McLane com a maior tranqüilidade e virou-se para Mario, que se levantou rapidamente.
— Brilhante idéia — disse o subcomandante, acariciando o estômago. — Estou convidado?
— É claro! — disse Cliff. — Aceita um bife ou prefere pastéis de camarão?
Saíram juntos da cabine de controle, dirigindo-se ao pequeno elevador. Tamara tinha perdido a fala; continuou a fixar o espantado olhar na porta, atrás da qual McLane e Mario de Monti já tinham desaparecido. Enquanto a nave prosseguia no seu vôo oscilante, Tamara conscientizou-se de que McLane e sua equipe eram, realmente, duros de roer — mesmo sob ponto de vista de um oficial do Serviço de Segurança Galático. Lembrou-se de que tinha ainda trinta e seis meses de convivência pela frente, e de repente perdeu totalmente a vontade de saborear o uísque proibido de Mario.
O achatado disco da Órion era um mecanismo totalmente integrado; suas peças componentes encaixavam-se com perfeição, e as inúmeras instalações tinham sido cuidadosamente ajustadas umas às outras. Como uma escuna em mar revolto, navegava pelas ondas errantes da tempestade, tocado, vez por outra, pelas protuberâncias energéticas que se lançavam pelo espaço solar. Toda vez que isto ocorria, a nave sofria um violento impacto, sem que fosse desviada da sua rota — o piloto automático encarregava-se de manter o curso constante, acionando as máquinas que geravam o campo antichoque. A descarga desses dispositivos era instantânea e fazia-se acompanhar de um tremendo estrondo — não eram outra coisa as explosões que tinham abalado a nave ainda há pouco. Mas Tamara desconhecia esse detalhe...
Enquanto os últimos tremores percorriam o disco, a velocidade tinha atingido o seu valor crítico. Os motores do sistema de propulsão hiperespacial entraram em ação e jogaram a nave para fora do espaço tridimensional. Abruptamente, os sacolejos cessaram por completo.
Durante dois dias a Órion ficaria mergulhada no hiperespaço isento de estrelas, realizando o seu vôo de transição. Após ter percorrido uma distância de quatrocentos e quarenta e oito parsec, voltaria ao espaço normal, rematerializando-se já nas proximidades do seu alvo.
A suave luz da cabine de Cliff acolheu os dois homens. McLane dirigiu-se ao dispositivo automático de preparo, e num seletor registrou os pratos que tinham escolhido para sua refeição. Dentro de segundos, seriam retirados da despensa da nave, aquecidos e encaminhados ao camarote. Mario retirou de uma gaveta dois pesados pratos retangulares de plástico e inseriu-os nas fendas do armário abastecedor laqueado.
O profundo silêncio da cabine era característico dos vôos através do hiperespaço. Um pouco de música quebraria a monotonia; Mario colocou um cassete no toca-fitas, regulando o volume. Depois, apoiando-se sobre a mesa, disse:
— Nunca vi você passar tão rente a uma nuvem de radiação... nem quero me lembrar daqueles solavancos! Precisava ter feito isso?
Com ar inocente, Cliff respondeu:
— Aquela senhora do S.S.G. não se manifestou veementemente contra a nossa mudança de coordenadas? Pois bem, alterei-as o mínimo possível, e a barulheira infernal que se seguiu foi mera conseqüência disso. Mas, afinal, a Órion já agüentou coisas muito piores!
— Entendi — disse Mario.
— Espero que o tenente Jagellovsk também entenda! — respondeu McLane.
— Você acredita que vai conseguir livrar-se dela, agindo desta maneira?
McLane olhou para Mario com uma expressão de duvida no rosto; depois apontou para a luz vermelha, que se tinha acendido.
— Vou tentar o possível e o impossível — respondeu.
Os dois pratos pedidos já tinham chegado ao armário; o dispositivo automático colocou-os sobre a prateleira em frente às fendas de recepção.
— Até que ela é bonitinha — observou Mario, a mente ocupada com os detalhes de um novo e mais habilidoso avanço.
— Uma cobra-coral também é bonitinha — retrucou Cliff, colocando os pratos na mesa. Sentaram-se e dedicaram-se à refeição.
— Uma coisa é certa — disse De Monti, subitamente, balançando um enorme naco de carne na ponta do garfo — Tamara jamais vai completar os três anos de serviço junto a nós. Das duas, uma: ou ela vai direto ao hospício após as três primeiras missões...
— Ou, então? — perguntou McLane, mastigando vigorosamente.
— ...vai ser o novo comandante da Órion! — concluiu De Monti categoricamente.
O restante do almoço decorreu em silêncio.
A Órion VII tinha retornado ao espaço normal não fazia dez minutos; no entanto, os seis tripulantes já se encontravam novamente reunidos na central de comando, arrancados do seu lazer por um repentino alarme de aproximação. Na tela circular surgira a imagem de um objeto misterioso, que pairava no espaço a uns dois segundos-luz da nave. No momento, a velocidade própria da Órion era praticamente nula.
— O que é isso? — perguntou Tamara.
O objeto tinha a aparência de um inseto morto, prateado, com asas retangulares e superdimensionadas. Curiosamente, girava, vagaroso, em torno de um eixo que não poderia ser o seu verdadeiro eixo de rotação.
— Distância: 488.980 quilômetros — informou Helga.
— Isto é um radiossatélite — respondeu McLane a Tamara, com um traço de amabilidade na voz. — Provavelmente um daqueles que já estão fora de funcionamento. Está conseguindo contato, Atan?
Shubashi mexia furiosamente nos seus instrumentos, auscultando toda a gama de freqüências.
— Consegui coisa alguma! — resmungou. — Aquele cacareco está pendurado, lá fora como um pássaro surdo-mudo!
Mario recolocou o catálogo na gaveta e anunciou em voz alta:
— Trata-se de um radiossatélite do tipo SKft 77; é possível que esteja avariado. Devia operar na freqüência da onda de hidrogênio; já tentou esta faixa, Atan?
— Já tentei todas! — respondeu Shubashi, irritado.
— Além disso — continuou McLane
— trata-se de um modelo obsoleto, uma ameaça para toda a navegação espacial. Mario! Anote as coordenadas exatas e a velocidade de deriva no livro de bordo; depois destrua-o!
— OK, chefe! — respondeu Mario, levantando-se para cumprir as ordens. O que Cliff receava aconteceu; Tamara interpelou-o imediatamente:
— Comandante McLane! O senhor tem autorização para destruir, sem mais nem menos um custoso radiossatélite?
Cliff respirou profundamente, recostou-se na poltrona e disse, devagar:
— Minha cara Tamara...
A voz gélida de Tamara cortou-lhe a palavra.
— Em primeiro lugar, não sou a sua cara Tamara e sim, caso o senhor se recorda, o oficial do S.S.G.; em segundo lugar, proíbo-lhe de destruir o satélite. Aquele aparelho tem um valor de...
— Aquele objeto lá fora, minha cara
— interrompeu por sua vez McLane, esforçando-se para não perder a calma
— não vale mais nada; muito pelo contrário, constitui-se numa ameaça a todas as tripulações que navegam neste cubo espacial!
— E ameaça por quê?
A paciência de McLane estava sendo submetida a uma dura prova. Tentou explicar:
— Primeiro porque naves espaciais podem colidir com este corpo; acontece que ele não emite mais nenhum sinal-piloto. Segundo porque não responde mais às tentativas de contato de naves que tencionam utilizá-lo como estação retransmissora. E, finalmente, porque todos esses corpos foram construídos com os cuidados necessários para que funcionem durante um longo espaço de tempo. No dia em que deixam de operar, tornam-se inúteis, viram sucata. Entendeu isso, tenente Jagellovsk?
Com ironia, Tamara respondeu:
— Então o senhor não acredita, que alguém já possa ter descoberto que este satélite não funciona mais?
— A senhora não tem mesmo noção de coisa alguma! — murmurou McLane, atônito diante de tamanho desconhecimento da realidade. — Nem eu sei quantos satélites, radiossondas e autômatos de radar pululam em todos os setores e cubos que controlamos. Quero cair morto se existir alguma entidade na nossa organização que se preocupa com satélites defeituosos e ainda tenha a incumbência de consertá-los!
A teimosia de McLane defrontava-se com a paciência de Tamara.
— Estou lhe avisando, comandante! — respondeu. — É provável que um tecnocruzador já esteja a caminho para examinar a avaria. O senhor não vai destruir o satélite!
Nada aconteceu durante um longo período de tempo. Apenas ouviram-se o zumbido dos motores e o crepitar seco na instalação renovadora do ar. Tamara devolvia com indiferença o olhar fixo que McLane lhe dirigia. Cliff lutava tenazmente para dominar o conflito que o invadia. Finalmente, após um esforço sobre-humano, conseguiu controlar-se; acenou para Mario e disse, pausada-mente:
— Tenente de Monti! Registre o seguinte no livro de bordo: A agente Jagellovsk do S.S.G. proíbe a destruição do radiossatélite inoperante nas coordenadas tais e tais, etc. O comandante vai voltar pra cama.
McLane levantou-se e foi até o elevador, sem olhar para ninguém. A porta estava se abrindo quando a voz de Atan Shubashi ressoou pela cabine:
— Receio que o comandante não vai poder dormir. Cliff, estamos próximos de MZ-4.
— Sei disso; talvez a uns três minutos-luz; e daí...?
Shubashi respondeu, alongando as palavras:
— Clarence não dá sinal de vida... e o seu radar já devia ter captado o nosso eco há muito tempo!
— O quê! — exclamou McLane, voltando de um salto à sua mesa.
Na grande tela via-se a imagem ampliada do satélite. Hasso mexia nos seus instrumentos; perplexo, disse:
— Gozado, MZ-4 não responde ao meu chamado; isto nunca aconteceu antes!
— O que quer dizer MZ-4? — perguntou Tamara, rapidamente, a Helga.
— MZ-4 é um asteróide — explicou a radiotécnica. — Um corpo rochoso com um diâmetro de mais ou menos um quilômetro. Foi capturado há trinta e cinco anos, recebeu um sistema de propulsão atômica e foi colocado numa órbita estável.
Na tela aparecia imóvel, a imagem de uma luz cinza-escura, destacada debilmente das trevas cósmicas pela luz que recebia de alguns sóis distantes.
— Para que fizeram isso? — perguntou Tamara, o olhar fixo na tela.
— MZ-4 serve como estação retransmissora no sistema de telecomunicações.
— E quem é Clarence?
Desta vez foi Mario quem respondeu:
— É o chefe da estação; além disso, um amigo nosso. Se não respondeu até agora, é porque está bêbado ou então... morto!
McLane se dirigiu a Shubashi:
— Sintonize mais uma vez e insista no chamado!
Laconicamente, Shubashi respondeu:
— Estou na faixa certa, mas... nada! A uma distância de quatrocentos e quarenta e oito parsec de Terra, o asteróide pairava no espaço e silenciava. As espaçonaves que operavam neste cubo espacial utilizavam-no como radiofarol e como estação retransmissora nas suas comunicações hiper-radiofônicas. Só existia a mais remota possibilidade de que, um dia, pudesse deixar de operar — todas as instalações haviam sido projetadas em duplicata e dispunham de proteção adequada; além disso, a sua guarnição estava perfeitamente capacitada para realizar qualquer conserto. Shubashi insistia no seu chamado:
— Órion VII chamando MZ-4. Clarence, por favor, responda!... Só queremos estabelecer contato, mais nada!
— Ei! Ouça isto! — exclamou Helga, girando o botão de um amplificador. Ouviam-se os confusos sinais radiofônicos de um código que não devia estar sendo utilizado há muito tempo.
— Antes assim! — disse Mario, tranqüilizado. — Ainda estão vivos.
McLane levantou a mão pedindo silêncio, e pôs-se a escutar atentamente durante alguns segundos.
De repente, parecia que a reluzente cabine, com toda sua estonteante aparelhagem técnica, tinha sido invadida por uma ameaça inimaginável, pelo presságio de uma desgraça iminente.
— Isso aí — disse McLane, finalmente, enfatizando cada palavra — são grupos ternários que eu nunca ouvi em toda minha vida!
— Quer que eu aproxime a nave mais um pouco? — a voz de Hasso era calma.
— Quero sim! Eu preciso saber, o que...
— Comandante! Aparentemente, Tamara tinha se lembrado das suas funções; sua voz voltou ao normal, era novamente fria e incisiva.
— O que é? — perguntou McLane, distraído; sua mente estava ocupada com coisas mais importantes que a agente do S.S.G.
— Suas instruções foram claras: deve se dirigir o mais rapidamente possível para seu campo de operações!
— Nós estamos no campo de operações! — respondeu McLane, bruscamente, e virou-se para Helga: — Ligue mais outro amplificador e registre os sinais no livro de bordo!
Agrupados de três em três, os incompreensíveis sinais radiofônicos martelavam os tímpanos dos tripulantes. Pareciam originários de um outro mundo, e todos desconheciam o seu significado; de uma coisa, porém, tinham certeza absoluta: não era Clarence quem os emitia e representavam um perigo desconhecido.
— Escutem só isso aí! — disse McLane, com um tom de perplexidade. — MZ-4 ficou louco; provavelmente seu computador está com defeito; esse código não faz sentido algum, é a coisa mais maluca que já vi!
Tamara tocou levemente o ombro de McLane. O comandante virou-se bruscamente e cravou os olhos na agente, como se a visse pela primeira vez.
— O que quer desta vez? — perguntou, com raiva mal contida.
— Será que é importante para a sua missão, major, saber se MZ-4 ficou louco ou não? — indagou, com olhar firme.
Quando McLane começou a responder, um pesado silêncio alastrou-se pela cabine:
— Se a senhora fizesse parte do nosso grupo, tenente, eu lhe diria que não pode nem deve ser indiferente para nós saber o que houve com nosso amigo
Clarence. Mas, como a senhora não I passa de uma mera agente de segurança, dou-lhe uma resposta diferente; de acordo com os dados fornecidos pelo nosso computador, daqui a quarenta e oito horas o cruzador espacial automático Challenger vai passar por MZ-4 com um único objetivo: receber de lá uma correção do seu curso.
Shubashi, que conhecia bem o seu chefe e sabia o que tinha a fazer, aumentou o volume dos estranhos sinais. Cliff prosseguiu:
— Mas, se Challenger, em lugar da correção de curso, receber isto que a senhora está ouvindo, vai ocorrer uma catástrofe. Neste caso, é mais do que provável que o cruzador se choque com o asteróide.
Tamara baixou a cabeça.
— Estou começando a entender — disse. — Mas... a Órion não poderia fazer isto?... quero dizer... não poderíamos enviar daqui a reprogramação de curso para o Challenger?
O sorriso de McLane era um misto de ironia e raiva.
— Se a senhora não tivesse me impedido de destruir o satélite, essa possibilidade ainda existiria. Mas como esse satélite também recebe e retransmite os sinais estranhos; teríamos três emissores interferindo um com os outros: o nosso, o de MZ-4 e o do satélite. Portanto, é impossível, reprogramar o computador do Challenger!
Shubashi e Mario trocaram um rápido olhar.
Tamara encontrava-se numa situação difícil; tinha que lutar contra cinco adversários bem entrosados. Estava abalada pelo golpe recebido, mas não deu mostras disso quando perguntou:
— E o que pretende fazer agora, major?
— Vamos pousar no asteróide, e tentar corrigir o defeito.
— Muito bem, estou de acordo — disse Tamara, e acrescentou: — por outro lado, major, suponho que sabe o que poderá significar uma mudança de rumo não autorizada, consideradas as suas transgressões anteriores?
— Claro que sei! — respondeu McLane secamente. — Meu único consolo é que a senhora só vai fazer o seu relatório após nosso retorno a Terra. Não faz idéia, quantas desculpas terei arranjado até lá!
Um pouco mais acelerada, a Orion aproximava-se, silenciosamente e sem emissão de energia, daquela esfera pétrea, reduzindo, depois, a velocidade. Inscrevendo-se numa trajetória circular, descreveu três órbitas distintas em torno do ermo corpo espacial e parou, finalmente, por cima da cúpula da estação, a um quilômetro de altura. As velocidades dos dois corpos tinham sido ajustadas. Uma sensação de expectativa apoderou-se da tripulação que, postada diante da tela do comandante, observava a nítida imagem.
Lá estavam as torres de transmissão, e a instalação de radar protegida por uma cúpula plástica; dominando a cena, via-se a reluzente superfície da abóbada que cobria praticamente todas as demais instalações: os alojamentos da guarnição, o gigantesco centro de computação, a rede dos corredores e o pequeno campo de pouso destinado às naves auxiliares. Ao lado, destacava-se a abertura do poço para os pousos magnéticos, realizáveis apenas por naves auxiliares do tipo Lancet.
— Maldição! — rosnou McLane — alguma coisa aconteceu lá embaixo!
Nada se mexia... somente aqueles estranhos sinais continuavam a emanar dos alto-falantes.
448 pc... a quatrocentos e quarenta e oito parsec de Terra... um parsec eqüivale a 3,26 anos-luz, ou seja, corresponde à distância que um raio luminoso percorre neste espaço de tempo. Era este o raio de uma imaginária esfera espacial que representava o domínio de Terra. O que jazia além desta fronteira invisível, era desconhecido.
Clarence e seus homens guarneciam uma das estações avançadas; o serviço era perigoso e os contatos com Terra limitavam-se às comunicações radiofônicas e a esporádicas visitas de uma ou outra nave. A Órion pairava, imóvel, sobre o rochoso asteróide desprovido de atmosfera, vida e luz... Com voz tensa mas controlada, McLane ordenou:
— Cortar propulsão. Desligar geradores. Ancorar nave em MZ-4.
Mario executou uma série de manobras e os motores emudeceram.
— Estamos a uma altura de exatamente novecentos metros do asteróide, Cliff— informou Helga.
— E eu — disse Shubashi, apontando para os pesados audiofones que lhe cobriam os ouvidos — continuo a receber aqueles truncados grupos ternários. Para mim, é totalmente inexplicável; de onde...
— Vamos dar uma espiada — interrompeu McLane. — Preciso de dois voluntários.
— Quando é que você vai parar com essa mania de procurar voluntários? Ninguém quer ser voluntário! — disse Hasso. — Então, para que você precisa de mim?
McLane sorriu ligeiramente, mas sua expressão continuava séria.
— Obrigado, Hasso. Já que é assim, você vai com Atan.
— Está perfeito! — disse Shubashi.
— Lancet I... Aprontar canal de ejeção! Vestir trajes pressurizados! Não esquecer armas!
Shubashi sacudiu a cabeça, lançou um olhar de curiosidade para McLane e perguntou:
— Para que os trajes pressurizados, Cliff? A instalação de oxigênio em MZ-4 é melhor que a nossa!
— Onde há uma emissora tão maluca quanto essa — respondeu McLane
— pode haver também uma instalação de oxigênio pifada, entendeu? Agora, tratem de ocupar a Lancet!
Com passadas enérgicas, Mario, Atan e Hasso deixaram a cabine de controle. Tamara se sentou na poltrona vazia, ao lado de Cliff, e perguntou:
— Por que está fazendo tudo isso, major?
— Faria outra coisa no meu lugar?
— retrucou McLane em tom agressivo.
— Recebi ordens para serem cumpridas — disse Tamara, fitando o rosto do comandante.
— Um robô também age assim — observou McLane — só faz o que lhe mandaram.
Tamara arreganhou os dentes.
— Agora que eu o conheço bem, major, venero cada vez mais os robôs; eles, ao menos, cumprem com o dever.
Cliff encolheu os ombros.
— Quer dizer que, na sua opinião, o homem está se tornando um inútil?
— Não deixa de ter razão, major — disse Tamara, apontando para os sinais luminosos que marcavam o caminho dos três tripulantes através da nave. — Um robô descobriria, com muito maior rapidez que um ser humano, o que há de errado com Clarence.
As naves auxiliares Lancet, alojadas a bordo da Órion de ambos os lados da cabine central, possuíam uma configuração curiosa. A parte inferior, esférica, era encimada por um disco em forma de lente e que, na casca superior, apresentava uma série de pequenas cúpulas de Polexol. O acesso era feito através da comporta de uma eclusa, situada no trecho inferior da parte esférica. Duas catapultas, que geravam um campo magnético, encarregavam-se de lançar as Lancet no espaço através dos canais de ejeção, que tinham a sua estanqueidade garantida por um duplo sistema de comportas.
Mario já tinha ocupado seu lugar no posto de controle de lançamento, quando Hasso e Atan ainda caminhavam pelo sinuoso corredor em direção à Lancet. Finalmente, chegaram e pararam diante da comporta da pequena nave. Fecharam os apertados trajes espaciais e ligaram os fones embutidos nos transparentes capacetes.
— Tudo pronto, Hasso? — perguntou Atan, passando os dedos pelo cabo da pistola energética.
— Os agregados funcionam com a costumeira confiabilidade, Atan! — respondeu Hasso. com aparente jocosidade, e acionou uma possante chave.
Silenciosamente, a comporta externa abriu-se e os dois homens entraram no bojo da Lancet, Atrás deles, o sistema de pressurização entrou em prontidão: protegeria a nave contra o vácuo do universo. Passaram pela segunda comporta, transpondo a eclusa. Em seguida, fecharam as duas comportas e subiram, pela pequena rampa, à parte superior da nave.
— Lancet I pronta para lançamento!
Mario concentrou a atenção no painel de instrumentos e pediu:
— Lancet! Checar C.O.R.B.! Hasso encarregou-se da verificação de rotina, pedida pelo subcomandante:
— Combustível e motores... OK! Oxigênio... idem. Rádio... não acusa falhas. Baterias... carregadas. Estamos prontos, comandante!
Pelo videofone, McLane disse:
— Lancet liberada para lançamento! Iniciar contagem regressiva!
De Monti abriu a eclusa externa da nave-mãe e ativou o campo magnético da rampa. Imediatamente, as sapatas imantadas aderiram firmemente ao casco da Lancet e, num vertiginoso deslocamento ao longo das suas guias, impeliram a nave auxiliar verticalmente para fora da Órion, com uma aceleração de apenas 4 g.
Numa última operação, Mario soltou os ímãs e fechou novamente as comportas da Órion. A Lancet estava no espaço...
McLane, Helga e Tamara observavam a tela de imagem em frente à mesa de controle. Nitidamente visível, a Lancet pairava entre a Órion e o asteróide; suas vinte pequenas cúpulas irradiavam luminosidade. Hasso ligou os propulsores por alguns instantes, iniciando a sua descida ao asteróide. Dos alto-falantes vinha o murmúrio das palavras que trocava com Atan.
O monitor, logo acima do campo de visão de McLane, mostrava um setor da pequena cabine. Silêncio total. Ninguém ousava proferir uma palavra sequer.
Os longos anos de permanência no espaço tinham desenvolvido em McLane um sexto sentido para situações perigosas. Era uma sensação de alerta que emanava do seu íntimo; era verdadeira, mas não podia ser demonstrada por fatos reais. McLane não sabia o que estava ocorrendo em MZ-4; sabia, porém, que Hasso e Atan estavam se dirigindo para um mistério.
Finalmente, rompeu o silêncio:
— Hasso?
— Sim, comandante?
A nave não distava mais que cem metros da superfície do asteróide.
— Viram algo de anormal? — perguntou McLane, visivelmente preocupado.
— Até agora, não, Cliff. Só que não há o menor sinal de vida; está tudo inerte!
— Avisem imediatamente se houver algum acontecimento fora do comum, sim?
— Fique descansado que avisamos chefe! — prometeu Hasso.
Quando a Lancet se encontrava ainda a setenta e cinco metros da rochosa superfície, o fino ponteiro de um dos instrumentos oscilou vivamente, voltando em frações de segundo à posição inicial. Hasso tinha percebido a estranha oscilação e já ia informar McLane, quando a nave com suas corcundas luminosas mergulhou na escuridão do poço de pouso.
A eletrônica despia as vozes dos astronautas de qualquer timbre pessoal; eram captadas pelos minúsculos microfones embutidos no fecho do capacete, junto às cordas vocais, irradiadas pelas antenas fixadas sobre os ombros e, finalmente, reproduzidas no pequeno alto-falante na altura dos ouvidos. Hasso e Atan ligaram os microaparelhos nas suas pulseiras e desembarcaram.
Os passos soavam abafados, vagos, difusos, quase abaixo da faixa audível. Os ultra-sensíveis microfones nos trajes espaciais conseguiram captar esses impulsos, reproduzindo-os já amplificados.
— Vamos à eclusa da instalação, Atan — sussurrou Hasso.
Em silêncio, percorreram os vinte metros que os separavam da comporta. Atan colocou a mão sobre a célula fotoelétrica, a comporta abriu-se, e, segundos mais tarde, os homens já estavam caminhando pelo sistema de corredores da estação retransmissora. Hasso consultou o seu aparelho de pulso. O luminoso triângulo de uma escala deslizante tinha parado em cima de uma marcação inusitada: zero!
— Pare, Atan! — disse Hasso; seu olhar era de perplexidade.
— O que houve? — perguntou a voz junto aos seus ouvidos.
— Dê uma espiada no seu manômetro! Um aquário contém mais oxigênio que todo este setor dos corredores!
Diante deles havia um corredor totalmente às escuras; nem mesmo as luzes de emergência estavam acesas.
— Deve ter havido pane na instalação hidropônica ou na de renovação de ar — opinou Shubashi.
— E os geradores também estão parados — constatou seu companheiro.
— Aqui tem dente de coelho... — murmurou Shubashi, sem terminar a frase.
Consultaram, mais uma vez, os manômetros: a marcação continuava em zero; não havia pressão de oxigênio no corredor. Ligaram as lanternas; dois intensos feixes de luz começaram a dançar à sua frente, enquanto avançavam contando os passos. O silêncio e a escuridão transmitiam algo de irreal.
— Está ouvindo? — sussurrou Hasso de repente.
Os dois homens pararam como se tivessem esbarrado num muro invisível. A potência da emissora de MZ-4 era de tal ordem que os sinais se tornaram audíveis mesmo pelos fones dos capacetes. E lá estavam, precisos e nítidos, aqueles grupos ternários do código misterioso.
— Estou ouvindo, sim! — respondeu Atan, num sussurro.
Entreolharam-se através do vidro de quartzo dos seus capacetes; Atan não tirava a mão do cabo da pistola. Com passos lentos e cautelosos, continuaram a avançar pelo longo corredor. Incessantemente, os feixes de luz varavam a escuridão. De repente, revelaram as bocas de três outras galerias, que partiam da praça circular formada pelo alargamento do corredor. Hasso e Atan tinham chegado a um cruzamento. Passaram a examinar as paredes em sua volta.
— Ali, Hasso, à esquerda! — murmurou Atan; o brilho dos seus olhos negros tornou-se desafiante. Sacaram as armas energéticas ao mesmo tempo. Lentamente, a pesada porta hexagonal começou a girar em torno dos pinos centrais; descreveu um arco de noventa graus, e parou. Com redobrada atenção, os dois homens passaram pela direita e pela esquerda da espessa placa de aço e entraram na grande sala. Estavam na central semi-automática de MZ-4. Subitamente, os débeis sinais radiofônicos sumiram.
Dois círculos de luz deslizavam sobre chaves e interruptores, complicados arranjos de tubos e twistores, e multicoloridos feixes de cabos. Finalmente fixaram-se sobre as fracamente iluminadas escalas da instalação.
Adiantaram-se mais alguns passos; os círculos luminosos diminuíram, ganhando em intensidade.
— Veja só isto! — disse Atan, em voz baixa.
Não havia ninguém na sala, mas os objetos espalhados por toda a parte mostravam que, ainda há pouco, as poltronas e mesas estavam sendo utilizadas. Era como se os ocupantes tivessem fugido em desabalada carreira. Atan e Hasso ligaram os microfones externos; era uma medida de segurança adicional, pois o vácuo que os envolvia não propagaria qualquer onda sonora.
— São poucos os aparelhos que conseguem captar sinais nesta freqüência — constatou Shubashi, apontando para o seletor de ondas. — Ainda bem, que Órion é uma das naves mais modernas; senão jamais teríamos ouvido aquelas combinações ternárias.
Hasso girou nos calcanhares, descrevendo lentamente uma volta completa. Nada. Ninguém.
— Mas, Clarence e seus homens... eles têm que estar em algum lugar! — disse, elevando um pouco a voz.
— Algo me diz, que eles fugiram — respondeu Atan.
— Vamos adiante!
Havia uma segunda porta na central de operações; a leveza de movimento com que se abriu evidenciou, logo, que atrás dela também não havia pressão atmosférica. Entraram. A julgar pelas instalações, parecia tratar-se da sala de prontidão dos telegrafistas.
— A mesma coisa... ninguém! — cochichou Hasso, com emoção reprimida.
Os cones luminosos das lanternas percorriam a sala. Por alguns segundos tornavam visíveis as estantes repletas de fitas magnéticas: os desenhos nas paredes — frutos das longas horas de espera — o possante aparelho de som estereofônico...
O grito mal abafado de Hasso explodiu no silêncio:
— Veja!
Sua lanterna iluminava um quadro fantástico. Dois homens estavam sentados à mesa, imóveis, paralisados; seus movimentos haviam sido interrompidos no meio. Diante deles, pratos com sobras de uma refeição indefinível. Ao lado de um dos pratos, estava aberto um pequeno livro impresso no papel fino que caracterizava as edições especiais para astronautas.
— Jim e François? — sussurrou Shubashi, apavorado.
— São eles sim; e mortos... paralisados instantaneamente... em plena atividade...
Horrorizados, os dois companheiros observavam a cena. Os rostos e as mãos das infortunadas vítimas já começavam a mudar de cor. As incontáveis veiazinhas, estouradas, tornavam o quadro ainda mais horripilante.
— É uma nova maneira de morrer — murmurou Atan. — Onde já se viu alguém morrer assim, paralisado, com o garfo na mão e os olhos fitos nas páginas de um livro?
Atan virou-se e dirigiu-se, rapidamente, à porta seguinte; atrás dele, Hasso empunhava a arma. Não tinham mais dúvida que um temível inimigo estava à espreita na estação. A porta de correr deslizou sem o menor ruído. Uma placa na altura dos olhos indicava que estavam diante da central de comando.
— Cuidado, Hasso — advertiu Atan; lado a lado, os homens entraram na enorme sala. Diante deles, preso ao chão e ao teto, encontrava-se um gigantesco mapa astronômico circular, de uns oito metros de diâmetro. Representava, em projeção bidimensional, os cubos espaciais situados em torno de MZ-4. Estava apagado...
— Veja ali!
Como uma poça d'água, os dois cones luminosos alastraram-se pelo chão. Revelaram os pés de um homem e continuaram a subir pelo corpo ereto. Era Clarence. Estava imóvel, empertigado e sua mão apontava, quase verticalmente, na direção de uma constelação de três sóis, circundados pelos finos anéis das órbitas planetárias. Ao lado de Clarence, um outro homem estava sentado junto à unidade de entrada de um computador, os dedos sobre o teclado. Ambos estavam mortos, atingidos fulminantemente pelo inimigo invisível.
— Um sujeito pode ser morto de várias maneiras — cochichou Atan — mas esta eu não conhecia; é simplesmente diabólica.
Lançou um olhar furtivo pela sala, receoso que sua voz pudesse provocar um novo ataque do inimigo.
— ...e não tem nada a ver com o suprimento de oxigênio — acrescentou Hasso. — Isso não é cara de quem morreu asfixiado.
Atan encostou a mão enluvada na parede.
Instantaneamente, um fino zumbido propagou-se pelo seu traje metalizado; emanava das paredes.
— A instalação renovadora está funcionando — disse o astronavegador. — Só que à toa; não renova coisa alguma.
Aproximaram-se da porta. Encostando as mãos na pesada placa de aço, sentiram novas vibrações. Perceberam, então, o pesado caminhar na sala adjacente. Os lentos passos ritmados aproximavam-se, paravam e afastavam-se novamente. Os homens trocaram um rápido olhar; depois Atan acenou imperceptivelmente.
Controlando o movimento com as mãos enluvadas, abriram a porta, centímetro por centímetro...
A escuridão era total, mas na casa de máquinas, na frente deles, um vulto luminoso deslocava-se da direita para a esquerda. Numa fração de segundo compreenderam que ali estava um dos seus sinistros e silenciosos inimigos. Indiscutivelmente, seu aspecto era humanóide; apresentava o contorno arredondado de um homem de vidro. Era feito de uma substância leitosa que possuía luminescência própria. Atan vislumbrou algo parecido com um sistema nervoso, um emaranhado de fios negros de espessura variada. Cutucou seu companheiro com o cotovelo. No mesmo instante, o estranho ser parou, bem em frente a um painel de controle; alavancas, chaves, teclas, tudo era perfeitamente visível através do seu corpo. Em seguida, e ainda em silêncio, apontou um braço em direção aos dois homens.
— Fogo! — exclamou Hasso, ofegante.
Os raios dos projetores mergulharam a sala numa claridade branco-azulada e atingiram em cheio o corpo do estranho na altura do peito. O que se seguiu deixou os homens da Órion atônitos: os raios das suas armas mortíferas simplesmente atravessaram o corpo atingido e incidiram sobre o painel de controle. Numa fração de segundo, o metal fundiu-se e desapareceu numa chuva de fagulhas. Atan mirou a cabeça do estranho. Novamente o delgado raio letal partiu da boca do projetor na direção daquele ser. E nada aconteceu.
O estranho ficou parado por alguns segundos; depois, virou-se e continuou a caminhar para a esquerda até desaparecer, oculto por um conjunto de gigantescas máquinas.
Atan e Hasso entreolharam-se, horrorizados, e tocaram em retirada, fechando a porta de aço, apressadamente.
Respirando com dificuldade, Atan perguntou:
— Hasso... quem... o que era aquilo? O engenheiro sacudiu a cabeça, manifestando sua perplexidade.
— Eu não sei, Atan. Mas garanto que não era um ser humano.
Atan reviveu o acontecido:
— Os raios passaram pelo corpo dele sem qualquer efeito... e as nossas armas são capazes de fundir qualquer aço... Como esse sujeito agüentou?!
— São extraterranos — concluiu Hasso. — Invadiram nosso domínio; de onde vieram, ninguém sabe. Precisamos avisar a Órion agora mesmo!
Regulou seu transmissor, aumentando a potência de emissão, e iniciou a mensagem:
— Sigbjörnson em MZ-4 chamando Órion VII!
A resposta de Mario veio imediatamente; sua voz, tensa, traduzia a preocupação que reinava a bordo.
— Estou ouvindo, Hasso. O que aconteceu?
Com mal contida emoção, Hasso relatou:
— Clarence e seus homens estão mortos. Morreram de uma maneira inexplicável. Você está me ouvindo bem?
O respiração ofegante de Mario foi abafada pela voz de McLane:
— Estamos ouvindo, Hasso; prossiga!
— Encontramos um extraterrano e atiramos nele. Nem tomou conhecimento dos nossos raios; simplesmente atravessaram seu corpo sem lhe causar o menor mal!
— O quê?! — gritou McLane. — Extraterranos?! Aqui, neste cubo espacial? Isso não é possível!
Hasso insistiu, com veemência:
— E a pura realidade, Cliff! Vimos com estes nossos olhos que o estranho era imune aos nossos projetores energéticos!
— Onde vocês estão? — perguntou McLane, já mais controlado.
— Na sala de controle.
— Os estranhos notaram vocês, Hasso?
— É mais do que provável, a não ser que estivessem todos cegos. É possível que nos tomaram por robôs; afinal, ainda estamos vivos.
— Voltem imediatamente à Lancet, seus malandros! — gritou Cliff, com um indisfarçável tom de carinho na voz. — Recorram à decolagem de emergência! E agora caiam fora daí, vamos!
CLIFF Allistair McLane afastou-se do microfone. A seu lado, Mario, Helga e Tamara não desviavam o olhar da grande tela circular. McLane dirigiu-se a Helga:
— Mantenha o espaço em nossa volta sob observação permanente!
— Sim, chefe! — disse Helga, voltando rapidamente ao seu transmissor.
— Alerta geral! Ocupar postos de combate, Mario!
De Monti sumiu da cabine de controle. Meio convés acima, próximo à borda do disco, encontravam-se os dois postos de combate da nave.
Incrédula, Tamara observou:
— Seres extraterranos aqui?! No nosso domínio?
McLane, ocupado com os preparativos para a partida rápida da Órion, respondeu sem desviar a atenção dos maneies e instrumentos:
— Este asteróide é uma das bases de apoio mais avançadas de Terra. Está a apenas alguns anos-luz da fronteira da nossa esfera espacial. No momento não estamos em condições de controlar eficientemente uma região maior.
— Alguma vez já houve indícios de que, além de nós terranos, outros seres habitem esta galáxia? — perguntou Tamara, aflita.
Visivelmente irritado, McLane respondeu:
— Parece que sua formação lhe deu uma visão por demais antropocêntrica do universo! Somente na nossa galáxia existem cerca de sete bilhões de planetas capazes de ter originado alguma forma de vida inteligente. Onde foi que arranjou tamanha presunção de supor que nós somos os únicos bípedes com capacidade de somar e multiplicar?
— Também não sou tão boba, assim! — retrucou Tamara. — Mas, teoricamente...
McLane cortou-lhe a palavra.
— O que Hasso acabou de nos informar não tinha nada de teórico! — pegou o microfone: — Órion VII chamando Sigbjörnson em MZ-4! Hasso... onde vocês estão agora? Quando vão decolar?
A voz do engenheiro ressoou nos alto-falantes:
— Hasso falando, comandante. Estamos a caminho do poço de pouso.
— Ótimo. Tiveram novo encontro com os estranhos?
— Não. Estão nos deixando em paz. Por quê, não sei. Estamos correndo que nem doidos para o poço.
Tamara, muito nervosa e brincando distraidamente com sua plaqueta de identificação, perguntou a McLane:
— Se os estranhos mataram Clarence e sua equipe sem aparente motivo, por que, então, não atacam também Hasso e Atan?
McLane estava acelerando os motores da Órion.
— Não sei ler pensamentos, minha cara — respondeu, com sarcasmo. — Quanto mais pensamentos de não-humanóides!
O grito vindo da mesa do rádio dilacerou a tensa atmosfera da cabine de comando.
— Cliff! Objetos não identificados! McLane girou a poltrona rapidamente em direção à tela.
— O quê? Onde? Imediatamente, Helga transferiu os impulsos recebidos para a tela do comandante.
— O radar está acusando contato com quatro... cinco... com sete naves desconhecidas, Cliff!
Os ruídos estalantes do astrossonar emanaram dos alto-falantes. Pequenos pontos surgiram na tela de McLane. A rapidez com que se tornavam maiores indicava que estavam se aproximando com velocidade inacreditável. McLane concentrou a atenção sobre o primeiro dos sete objetos: era uma esfera com duas asas esbeltas.
— Distância?
Sem o auxílio de equipamento adequado, era praticamente impossível avaliar no espaço a distância de objeto de tamanho ignorado. Qualquer avaliação se tornava precária pela falta de um marco que pudesse servir de termo de comparação.
— Quarenta segundos-luz, trinta e nove... trinta e sete... Cliff? Estão desenvolvendo uma velocidade absurda!
A situação tornava-se crítica. O perigo aumentava à medida que, vertiginosamente, as sete naves se aproximavam do asteróide, onde se encontravam ainda dois membros da tripulação da Órion.
— Temos que cair fora daqui imediatamente! — avisou McLane. — Do jeito que estamos somos um alvo ideal para eles; precisamos ganhar velocidade para poder manobrar. Aprontar para partida de emergência!
— E Hasso e Atan?! — gritou De Monti.
Cliff agarrou o microfone de Helga:
— Hasso! Atan! Por que estão demorando tanto? O que é que houve? Não estão no poço de decolagem?
Hasso esforçava-se para manter a voz calma, sem deixar transparecer o pânico que tinha tomado conta dos dois homens em MZ-4.
— Estamos na Lancet, Cliff, mas não podemos partir. Destruíram a nossa eletrônica!
McLane raciocinou durante um instante; depois disse, com voz entrecortada:
— Parece que vamos ser atacados; sete naves estranhas estão se aproximando de nós. Não posso mais esperar um segundo sequer por vocês!
Ainda aparentemente calmo, Hasso perguntou:
— Será que você consegue realizar a manobra da partida rápida sem meu auxílio, Cliff?
— Vou ter que tentar, Hasso! Pretendo partir e ficar na expectativa. Se nos atacarem, vamos reagir. Escondam-se no.asteróide o melhor que puderem, mais tarde viremos apanhar vocês. Desligo.
McLane desconectou todas as ligações da mesa de Hasso e transferiu os comandos para seu painel de controle. Em seguida, girou a chave de ignição até o batente. Instantaneamente, a nave soltou a ancoragem e projetou-se nas trevas do universo.
A formação triangular das sete naves inimigas desfez-se, lentamente, enfileirando-se, avançavam agora em linha única.
— Doze segundos-luz! — avisou Helga.
Tamara estava sentada ao lado de McLane. Ouvia-se o fino martelar do computador digital; com os primeiros dados já processados, Helga dirigiu-se à unidade de saída para analisar a larga fita perfurada que se desenrolava lentamente.
— O curso está programado corretamente — informou. — As correções já estão sendo fornecidas às máquinas.
McLane acenou, lançou um rápido olhar para a tela de imagem e depois fitou o rosto de Mario, que aparecia no monitor acima da sua cabeça.
— Só dispomos de poucos segundos para atingir a distância mínima de fuga, Mario! — virando-se para Tamara, disse: — E tenho uma tarefa para a senhora, tenente! É um pouco complicada, mas Helga vai lhe mostrar como proceder. Quero que emita um impulso na onda de luz que possa ser captado pela estação amplificadora mais próxima, onde deverá ser transformado num hiperimpulso. Estabeleça este impulso e envie a seguinte mensagem: De Órion VII para Suprema Comissão Espacial e Formações de Reconhecimento Espacial. Extraterranos em MZ-4, no cubo 10 Norte 219. Eliminaram a guarnição. Sete naves estranhas em vôo de aproximação. Combates iminentes.
Tamara levantou-se e perguntou, estupefata:
— Mas...?
— O que é que ainda está esperando, tenente? — berrou McLane.
— Pelo que entendi, toda a comunicação radiofônica neste cubo está em pane por causa de interferências; certo?
— Onde foi que arranjou essa idéia? — perguntou McLane, exaltado.
— E aquele radiossatélite, comandante?
— Ainda existem outras estações retransmissoras, minha jovem — disse McLane. — Agora, faça o que lhe pedi. Mais tarde teremos tempo de sobra para explicações... se conseguirmos sobreviver!
Tamara encolheu os ombros e sentou-se ao lado de Helga, que selecionou uma faixa de ondas e ligou o microfone.
No posto de combate, Mario de Monti dedicava sua atenção ao dispositivo de mira. Três círculos fluorescentes deslizavam na tela, aproximando-se uns dos outros num movimento de superposição. Numa outra tela, aparecia a imagem das naves estranhas, que continuavam a avançar em linha. Com voz calma, Mario informou:
— Telemetria em operação. Objetos nítidos e enquadrados. Distância: quinze segundos-luz.
— Nossa velocidade aumentou, Mario, e a distância ainda é suficientemente grande para nos garantir alguma liberdade de ação; você conseguiria atingi-los?
Mario visou a lente do videofone e disse:
— Seria uma tentativa inútil, Cliff; ainda estão longe demais para isso!
Um uivo penetrante encobriu todos os outros ruídos.
Sucessivamente, as escalas luminosas do computador foram se apagando; o matraquear da máquina de escrever acoplada cessou. No meio da barulheira infernal, ouviu-se o grito lancinante de Helga:
— McLane... nosso computador... está pifando!
Helga, tentando levantar-se rapidamente, sentiu uma força descomunal imprensá-la de encontro ao painel de controle. A Órion tinha sido atingida por um raio misterioso que lhe impôs uma súbita e violenta aceleração. Instantaneamente, os retardadores entraram em ação, mas o efeito neutralizador não se fez sentir. Mostraram-se totalmente ineficazes diante da inconcebível ordem de grandeza das forças que fustigavam a nave, gerando um campo gravitacional no seu interior. McLane cambaleou e foi lançado em direção à grande tela de imagem. Ainda conseguiu estender os braços, amortecendo em parte o impacto. Num tremendo esforço, tentou levantar-se, mas não conseguiu. Começou a virar a cabeça, num movimento, em câmara lenta; através das lágrimas que lhe embaciavam os olhos, vislumbrou Tamara, imprensada no assento por mão invisível.
— O que... aconteceu... com... Orion, major? — gaguejou Tamara.
— Não sei bem — respondeu McLane, ofegante. — Estamos sendo acelerados ou então os estranhos estão criando um outro campo gravitacional de grande intensidade.
Helga continuava imprensada contra o painel do transmissor; seus olhos distavam apenas centímetros dos mostradores dos instrumentos. Alguns ponteiros começaram a oscilar de maneira incomum e depois pararam, apontando para o zero.
— Cliff — gemeu Helga — conseguiram provocar um curto-circuito na nossa rede; todos os aparelhos estão pifados!
McLane fez um novo esforço para se levantar, mas a força invisível o lançou de volta contra a maltratada tela de imagem que, até então, tinha suportado bem o peso do comandante. Restava ver até que ponto o material resistiria a um peso que a aceleração aumentava a cada instante...
— Transfira o controle para a eletrônica... tente... — respondeu McLane, arquejante.
O uivo enervante da aceleração involuntária cessou de repente, mas só por alguns segundos; logo depois, voltou a dilacerar os ouvidos com a mesma intensidade e parou novamente. O funcionamento dos motores era irregular e falho; os condutores estavam transportando um tremendo excesso de carga e dificilmente suportariam esta solicitação extraordinária por muito tempo.
— Mario... os canhões! — gritou McLane.
A distância era agora de cem segundos-luz. Isto significava que a Órion tinha sido acelerada durante um minuto e meio, com uma velocidade bem próxima à da luz. Apesar disso, as naves continuavam a se deslocar no espaço normal. A força estranha tinha agarrado o cruzador para, literalmente, atirá-lo longe. O subcomandante gritou no microfone do monitor:
— Cai fora, Cliff! Não temos nada para enfrentar o poderio deles; estamos indefesos!
Mais alguns segundos se passaram, com insuportável lentidão.
— Não está conseguindo, major! — soluçou Tamara, furiosa. — Tente saltar de volta para o hiperespaço.
— Não posso tentar, não tenho como! — berrou McLane em meio àquele inferno de som e movimento. — Helga, será que você consegue ligar tudo ao segundo sistema?
— Vou tentar, Cliff!
Com um ingente esforço, Helga conseguiu deslocar a mão sobre o painel, alcançou a chave e seus dedos trêmulos calcaram o botão.
— Ótimo! — suspirou McLane. — Agora vamos conseguir! Vôo no hiperespaço. Coordenadas de MZ-4. Vou tentar resgatar Hasso e Atan!
— Perca as esperanças, major! — advertiu Tamara. — Seremos fatalmente alcançados pelo inimigo; e, aí, ele acaba de vez com a nossa nave!
Mas, McLane, no momento, só estava interessado em conseguir completar a manobra que Helga tinha iniciado com êxito. Finalmente, conseguiu colocar a mão sobre uma chave que se encontrava no outro lado do painel. Com dedos quase enrijecidos pelo esforço, retirou a tampa protetora de plástico e pressionou o botão. No mesmo instante, ouviu-se um forte estalido metálico e tudo voltou ao normal. Como por encanto, o campo gravitacional artificial dissipou-se; a nave estava liberta. Segundos após, efetuou o grande salto, mergulhando no hiperespaço. McLane ergueu-se da tela.
Helga já estava recalibrando os principais instrumentos.
— O alcance do equipamento desses camaradas — comentou — é algo tão fantástico que deixa longe o mais desvairado sonho dos nossos técnicos.
McLane ignorou o comentário; estava preocupado com a observação de Tamara. Com ar pensativo, murmurou:
— Mas, eu não posso simplesmente abandonar Hasso e Atan em MZ-4!
Tamara levantou-se, passando a mão pela testa, disse:
— Major McLane! O que está em jogo é algo mais importante que a sorte desses dois membros da tripulação! Empregando meios desconhecidos para nós, naves estranhas puseram a Órion fora de combate. A eletrônica registrou todos os dados relativos a esse acontecimento, e é absolutamente necessário que estas fitas cheguem às mãos dos órgãos competentes em Terra. O que ocorreu poderá ter sido o início de uma invasão geral!
— Qual é a distância, Helga? — perguntou McLane, indiferente às palavras de Tamara. Seus músculos doloridos começaram a tremer ligeiramente.
— Duzentos e quarenta segundos-luz, Cliff.
— Se tiverem a intenção de nos perseguir, pegam-nos em três tempos.
Mario tinha retornado do posto de combate, banhado em suor.
— Cliff, quem quer que sejam estão décadas à nossa frente. Se chegam perto, abrem-nos no meio como uma ostra!
Helga apontou para um diagrama de curso que, luminoso, se delineava na tela negra do computador analógico. Viam-se duas curvas que se interceptavam num único ponto.
— Creio que eles não querem nada com a gente — disse Helga. — Acabei de analisar suas trajetórias: o que eles querem mesmo é ir para MZ-4!
Resignado e pensativo, De Monti observou:
— E nós estamos aqui de mãos atadas! Não há nada que podemos fazer!
— Podemos, sim... e devemos! — disse Tamara, com voz decidida.
— Não diga! — resmungou McLane, virando-se para ela. — Posso saber qual é a sua sugestão?
Sem o menor traço de ironia, Tamara explicou:
— O senhor conhece a ordem Alfa III b tão bem quanto eu, Cliff. É uma ordem a que todos os comandantes de cruzadores espaciais têm que obedecer. McLane limitou-se a acenar afirmativamente; estava abalado. Helga e Mario entreolharam-se, surpresos; depois compreenderam onde Tamara queria chegar. A agente do S.S.G. continuou:
— Comandante, quero que diga apenas a pura verdade: está ou não em condições técnicas para destruir a estação MZ-4 antes que os estranhos consigam nos interceptar?
— A possibilidade técnica existe, sim. Poderia destruir MZ-4 por combustão energética. Mas ninguém neste universo vai me obrigar a destruir a base, enquanto houver a menor possibilidade de Hasso e Atan ainda estarem vivos!
Lentamente, Tamara começou a recitar o artigo do juramento dos astronautas, que se referia ã ordem Alfa III b:
— Toda e qualquer base espacial que venha a ser dominada por forças ou seres extraterranos deverá ser destruída, sem consideração de possíveis baixas próprias... Major McLane, estou lhe dando uma ordem de grau Alfa no sentido de seguir, à risca, as disposições contidas neste artigo!
— A senhora ficou louca, tenente?! — gritou Mario.
— Não, Mario — disse Cliff, sem qualquer entonação na voz — ela tem razão; ela tem toda a razão.
Depois virou-se para Helga:
— Mensagem hiper-radiofônica para as Formações de Reconhecimento Espacial em Terra. Fala o major McLane, comandante do cruzador espacial rápido Órion VII. Seguindo instruções do oficial de segurança, estou tentando destruir a estação retransmissora MZ-4. Está fora de dúvida que a base se encontra em poder de extraterranos. As naves inimigas superam-nos largamente em alcance e velocidade. Por isso, vamos retornar a Terra. Comunico as seguintes baixas: Hasso Sigbjörnson, engenheiro, e Atan Shubashi, astronavegador. Desligo.
Com a mesma falta de expressão, dirigiu-se a Mario:
— Aprontar ejetor de energia!
— Eu nunca poderia esperar uma coisa dessas de você! — disse De Monti e saiu da cabine.
O autocontrole de McLane tinha chegado ao fim. Martelando a tampa da mesa com os punhos, berrou:
— Você não está querendo que eu telefone para eles e diga: "meus queridos amigos, sinto muito, mas agora tenho que acabar com vocês"?
Dominou-se, a duras penas, e dirigiu-se ao elevador.
— Vai a algum lugar? — perguntou Tamara, com exasperante calma.
— Vou, sim! — retrucou, novamente agressivo. — Ou prefere ir no meu lugar?
— Comandante McLane... — começou Tamara.
— Comandante?! — observou McLane, franzindo as sobrancelhas. — Acabo de quitar meu serviço na esquadra espacial!
A porta semicircular do elevador fechou-se atrás dele.
Projetando-se através do hiperespaço, a Orion retornava ao asteróide; segundos depois, rematerializou-se nas proximidades da esfera rochosa. A minúscula lua delineava-se nitidamente na tela, e nada indicava que tinha sido ocupada por estranhos. A Órion começou a perder velocidade.
— Desista, Atan! — disse
Hasso e, cansado, recostou-se na parede da Lancet. — Os nossos amigos fizeram o serviço completo.
Shubashi trabalhava febrilmente na eletrônica, examinando e testando transistores e circuitos. Descobriu que as células do comando energético estavam defeituosas e não podiam ser consertadas com os meios disponíveis.
— É verdade — disse, atirando uma chave de fenda no chão — não deixaram nada para depois! E nós aqui, na ratoeira!
Hasso ensaiou um sorriso e disse, sem muita convicção:
— McLane vai nos tirar desse buraco!
— Se ele puder, sim — respondeu Atan, bastante resignado. — Você quer saber de uma coisa? Eu acho que nosso dia chegou!
Hasso lançou um olhar sombrio para o companheiro.
— Não quero saber de nada! — respondeu, com obstinação.
Atan expôs os seus pensamentos:
— Se Cliff se envolveu num combate com aqueles sujeitos, a essa altura já deve estar morto. Você mesmo viu que eles são imunes aos nossos raios; não dá o que pensar? Por exemplo, a infinita superioridade das naves deles? Não, meu caro, McLane não teve a menor chance!
— Se não me engano — disse Hasso, com ar esperançoso — esta afirmação já foi feita, não me lembro quantas vezes!
Nenhum dos dois desconfiava que suas vidas estavam por um fio. Enquanto se levantaram e abandonaram a Lancet. a Órion pairava, imóvel, acima do asteróide.
Os três círculos luminosos do dispositivo de mira deslizavam lentamente sobre a tela; em dado momento, tornaram-se concêntricos. o centro comum apontando diretamente para a abóbada que abrigava as instalações e os alojamentos de MZ-4. Mario largou as alças do mecanismo de ajustagem como se estivessem em brasa. Levantou-se de um só pulo e disse, por entre os dentes cerrados:
— Faça-o você mesmo!
McLane, que se aproximava, parou abruptamente entre a borda da poltrona e a tela do dispositivo de mira. Olhou, de lado, para o rosto de Mario que, com uma expressão de profundo desprezo, lhe voltou as costas. O comandante aspirou profundamente e apertou o gatilho. Dois eletródios começaram a aproximar-se um do outro, por trás de uma espessa blindagem de quartzo. Bastava que se tocassem e o curto-circuito resultante libertaria a torrente energética que, através dos projetores, se lançaria devastadoramente sobre o alvo.
O disparador automático emitia um fino zumbido.
A distância entre os veios metálicos era cada vez menor; poucos centímetros separavam as duas pontas. O suor escorria da testa de Mario, mas o subcomandante tremia de frio. De repente, com um golpe curto e rápido, McLane bateu com a quina da mão na trave de segurança do disparador. Instantaneamente, os dois eletródios cessaram seu movimento de aproximação.
O rosto de Tamara apareceu na tela do videofone; sua voz era ríspida:
— Comandante McLane, prossiga! Obedeça às ordens! O senhor tem que destruir MZ-4!
Cliff ergueu a cabeça e lançou um olhar selvagem em direção à imagem na tela. Só ele sabia o quanto lhe havia custado apertar aquele gatilho. Agora, era incapaz de fazê-lo novamente.
— Sei, que tenho que destruí-lo! — berrou, com a voz rouca de emoção — mas eu não quero, entendeu? Eu não posso!
Em rápida sucessão, uma série de mostradores retangulares apagou-se. Alarmado, De Monti agarrou seu chefe pelo braço e apontou para os instrumentos cegos:
— Cliff, estão drenando toda a nossa energia operacional!
— Que quer dizer isso? — perguntou Tamara.
— Isto quer dizer, para todos os efeitos, que não podemos mais destruir MZ-4, mesmo se quiséssemos.
Apertou a tecla fatídica. Imediatamente, os dois eletródios voltaram a se deslocar, aproximando-se perigosamente. Mais um breve instante, e o arco voltaico saltaria de uma ponta à outra. Mas nada aconteceu.
— Comandante — anunciou Helga pelo intercomunicador — reduziram a distância para cinqüenta segundos-luz; estão se aproximando rapidamente!
— Cliff — suplicou Mario — não há nada que podemos fazer no momento; vamos dar o fora; só nos resta a partida rápida!
— Muito bem; então vamos ver se funciona!
McLane saiu na disparada do posto de combate e jogou-se na poltrona em frente ao seu painel de controle. A eletrônica já tinha recanalizado o fluxo-energético, capacitando os propulsores a desenvolver a potência necessária, e a Órion partiu como um raio; na sua esteira, uma névoa de íons pairava no espaço. O inimigo estava se aproximando implacavelmente.
McLane torturava seu cérebro à procura de um desfecho para a missão, que não envolvesse luta, destruição e morte. Meia hora mais tarde, a trinta minutos-luz do asteróide, a Órion parou no espaço, ocupando uma posição de vigilante expectativa.
A sala era ampla e escura. No meio de incontáveis aparelhos inoperantes e painéis de instrumentos apagados, havia uma tela de radar que, misteriosamente, estava em funcionamento. Hasso e Atan passaram a observá-la. as armas destravadas nas mãos; até agora, nenhum dos extraterranos tinha se aproximado deles. Hasso apontou para a tela, cujo ponteiro girava com incrível rapidez. Sete pontos luminosos destacavam-se do fundo escuro.
— Lá vêm eles — disse Hasso — e não falta um sequer!
Lançou um olhar significativo para Atan, e acrescentou:
— Portanto, se realmente houve um combate, Cliff não conseguiu destruir uma única. Será que a Órion ainda existe?
— Creio que não; agora mesmo tentei estabelecer contato com ela... nenhuma resposta!
— O que significa: a Órion foi aniquilada e McLane está morto.
— Morto como nós.
Hasso raciocinava. Na sua longa vida de astronauta, tinha conhecido alguns planetas cujos habitantes ainda rastejavam no crepúsculo de uma pré-cultura. Mas esta era a primeira vez que se defrontava com seres inteligentes, e estava firmemente convencido de que escaparia à ameaça mortal que representavam. No íntimo, não acreditava na morte de McLane. Virou-se para Atan e disse:
— Mas, até lá, vamos aplicar alguns dos nossos truques. Conhecemos essa estação e suas instalações como a palma da mão. Se formos para o além, alguns daqueles transparentes vão ter que nos acompanhar.
Shubashi soltou um riso curto e irritado.
— E como é que você pretende fazer isso, Hasso? São imunes às nossas armas; a energia atravessa o corpo deles sem causar a menor lesão. Não têm necessidade de oxigênio ou de outro gás qualquer para viver e...
Uma expressão pensativa apareceu nos olhos do engenheiro.
— Oxigênio... — murmurou.
Atan virou-se rapidamente e cravou os olhos espantados no rosto de Hasso.
— Se eles... — começou a frase, sem terminá-la. Hasso acenou levemente com a cabeça e esboçou um sorriso; o primeiro que deu em MZ-4...
— Nós somos idiotas — constatou. — Se eles não precisam de oxigênio, muito bem; é problema deles. Mas, por que então desligaram ou destruíram toda a instalação? Só há uma explicação: para eles, oxigênio é tóxico, é veneno! Provavelmente seu metabolismo baseia-se numa espécie de catalise.
— E já sei no que você está pensando! — exclamou Atan. — Portanto... vamos procurar o comando da instalação de reserva!
— Adivinhou! — respondeu Hasso. — E olhe que a unidade renovadora ainda está funcionando!
Afastaram-se da tela de radar, acima da qual uma série de sinais luminosos estava se acendendo; eram as luzes de aviso que acusavam a aproximação final das sete naves.
Dentro de segundos, os dois homens encontraram o que estavam procurando: a mesa de controle dos sistemas de suprimento da estação.
Havia três jogos completos de todos os instrumentos, o que garantia o perfeito funcionamento dos inúmeros comandos que podiam ser operados nesta mesa: pressão atmosférica, composição volumétrica de gases, campo gravitacional, geradores e calefação, fluxo energético... a instalação de controle era completa. Hasso sentou-se na poltrona e começou a estudar os letreiros e as setas que interligavam chaves e mostradores.
— Aqui está, é esse — disse, após alguns instantes, apontando para uma pequena chave, destacada pelo cone de luz da sua lanterna.
— Então, mãos à obra! — disse Atan, eufórico. Hasso não se mexeu. Surpreso, Atan perguntou:
— Mas o que você ainda está esperando?
Com voz calma e objetiva, Hasso explicou:
— Se abrimos os tanques agora, inundamos o sistema de cavernas do asteróide, matando talvez os poucos estranhos que aqui se encontram. Mas não se esqueça das sete naves que ainda vão pousar. E o que vai acontecer então?
Atan agora já acompanhava o raciocínio do companheiro e concluiu:
— Eles desembarcam, constatam que o asteróide está cheio de oxigênio e compreendem a situação em que se encontram. Aí nos matam. Além disso, nem vão pensar em penetrar nas galerias se descobrirem que existe oxigênio do outro lado da eclusa.
— Provavelmente usam trajes espaciais — disse Hasso. — Mas não vejo mal algum em realizar um teste nesse sentido. Por outro lado, se conseguíssemos reunir todos aqui embaixo, aquela nossa idéia quanto ao oxigênio poderia funcionar.
O risco era considerável. Os dedos de Hasso não tinham largado um instante sequer o pequeno botão, que ainda estava ajustado ao zero da escala. Se Hasso o girasse até a marcação abastecer, a estação seria inundada de oxigênio. Acionando uma outra chave, adicionaria bióxido de carbono e traços de outros gases. Essa mistura mataria os intrusos. A esta altura, só uns poucos minutos separavam os invasores do pouso em MZ-4. Não restava dúvida que estes recintos constituíam o seu objetivo. O que fazer?
— Eles vão entrar aqui e nos matar, como mataram Clarence e os seus homens, Hasso — disse Atan, resignado, sem ver outra alternativa.
Hasso continuava a raciocinar.
— E por que será que esses que já estão aqui ainda não nos mataram?
— Talvez por razões práticas; pode ser que pretendam usar-nos como cobaias. Afinal, devem estar preparando um ataque de surpresa a Terra e seus domínios; nesse caso, precisam de nós vivos para estudar nossos hábitos e nos interrogar.
— É! — disse Shubashi. — Caímos direitinho na armadilha deles; tudo que têm a fazer é nos apanhar e carregar para onde quiserem!
Hasso procurava raciocinar febrilmente; agora não havia mais tempo a perder. A primeira nave já tinha iniciado as manobras para o pouso.
— De alguma maneira — disse ele — destruíram a instalação de oxigênio; como e onde, nós vamos descobrir agora mesmo. Vou tentar inundar esta sala.
Sucessivamente, fechou os registros magnéticos das tubulações que abasteciam os recintos adjacentes. Agora, só restava a central de comando... Com um gesto brusco, Hasso girou o botão até o batente. Os segundos passavam com exasperante lentidão... três, quatro...
Hasso e Atan calibraram os microfones externos para a sensibilidade máxima. O sibilar do ar injetado e o zumbido das turbinas deviam ressoar nos alto-falantes como uma cascata. Mas nada ouviram. Nem uma única lâmpada-piloto estava acesa.
— Nada! — gritou Shubashi. — Está tudo pifado!
— Vou ver se descubro o defeito! — respondeu Hasso.
Conseguiu desaparafusar a tampa dianteira do painel. Examinou a fiação e as conexões; pareciam intactas. Apesar disso, a instalação não funcionava. Hasso ligou os circuitos num dos painéis de reserva. A lâmpada-piloto da segunda instalação acendeu-se.
Hasso procedeu como da primeira vez: isolou as salas vizinhas e girou o botão.
Clique! Nada. Não se ouvia nem o deslocamento da massa gasosa nem o ruído das turbinas.
— É um caso perdido! — disse Shubashi, desolado.
Somente cinco pontos luminosos eram ainda visíveis na tela do radar. Um sinal indicou que uma das naves havia pousado nas proximidades da abóbada da estação; uma outra estava pairando a tão pouca altura do asteróide que não podia mais ser detectada pelos impulsos do radar.
— Agora é tarde! — sussurrou Shubashi. — Estão pousando!
— Maldita instalação! — disse Hasso, cerrando os dentes. — Oxigênio... onde é que eu vou arranjar oxigênio?
— Na Lancet — gritou Atan e se pôs a correr — o tanque de oxigênio!
Aos pulos, atravessaram a sala de controle e abriram a porta de aço. Em desabalada carreira, percorreram a galeria até o cruzamento. Mudaram bruscamente de direção, penetrando no corredor que levava até a eclusa do poço de pouso. E lá se encontrava a Lancet...
Corriam sem parar, ofegantes, as armas nos punhos cerrados. Pouco importava que fossem inoperantes diante daqueles intrusos; mais importante era a sensação de segurança que transmitiam aos dois homens em disparada.
Subitamente, as paredes do corredor começaram a irradiar uma intensa luminosidade.
Atan e Hasso cambalearam mais alguns metros e pararam... mas nada aconteceu. Obviamente, um dos estranhos tinha acionado um interruptor.
— Vamos adiante! — cochichou Atan.
Passaram pela eclusa; segundos após, estavam no interior da Lancet.
Em condições normais, o suprimento do tanque de oxigênio era suficiente para dois homens durante vinte dias. Febrilmente, Hasso arrancou o recipiente retangular dos suportes e olhou para o manômetro... zero! Virou o tanque e olhou, estarrecido, para o rombo no fundo, pelo qual o gás havia escapado. Examinando o piso do depósito da Lancet, descobriu que um feixe de raios tinha perfurado a nave em toda a largura, arrebentando-lhe o casco e atingindo a bateria de oxigênio. Com profundo abatimento, Hasso largou o tanque vazio no chão e disse:
— Pensaram mesmo em tudo!
A vibração de uma possante máquina começou a se propagar pela parede metálica da nave.
— A plataforma do elevador! — disse Hasso. — Significa que já iniciaram o desembarque!
— Vamos voltar imediatamente para a sala de comando! — disse Shubashi de repente. A expressão nos olhos de Hasso era de pura estupefação.
Atan abriu um dos estojos que trazia ao cinto, e retirou uma pequena caixa metálica, retangular. Em uma das faces menores havia duas válvulas, providas de minúsculos registros eletrônicos. Cabia perfeitamente na palma da mão, e Atan a exibiu aos olhos espantados de Hasso.
— E isto aqui... — disse, em tom triunfante — por acaso não é oxigênio?
— Nossos tanquezinhos de emergência! — suspirou Hasso, tirando o seu do estojo. — Agora são as nossas armas! Se bem que insuficientes para cobrir toda a estação.
— Não se preocupe com isso agora. Vamos indo!
Desceram apressadamente da Lancet, transpuseram a eclusa e, mais uma vez, penetraram no longo corredor. Numa emergência, os pequenos tanques podiam suprir os astronautas com oxigênio suficiente para mais cento e vinte horas de vida. Agora, estavam transformados em armas, que os dois homens empunhavam com convicção muito maior que as pistolas energéticas que traziam na outra mão.
Correndo sem parar; enveredaram pelo segundo corredor, que levava à central de comando. Ofegantes, pararam na frente da porta fechada. Durante alguns instantes, entreolharam-se em silêncio. Finalmente, Atan perguntou:
— Como você acha que devemos agir?
— Temos que liberar toda a carga instantaneamente — respondeu Hasso — como, ainda não sei... Além disso, precisamos ter certeza de que todos eles estarão naquela sala quando explodirmos os tanques.
— Você está pensando na sala de controle?
— Isso mesmo! — confirmou Hasso. Ouviram passos; aparentemente, os estranhos estavam começando a se reunir na sala de controle. O plano deles parecia perfeito: matariam a guarnição de uma das bases mais avançadas de Terra e tomariam posse de tudo que lhes pudesse oferecer algum interesse. Neste instante, os vitoriosos invasores estavam aguardando a chegada dos ocupantes das sete naves.
Hasso e Atan sentiam as vibrações incessantes do sobe-desce dos elevadores; os passos atrás da porta multiplicavam-se.
Um fino zumbido enchia-lhes os ouvidos. Era impossível que viesse de fora; não havia ar que permitisse a propagação de ondas sonoras. Era como se o ruído se originasse no próprio tímpano. Hasso abriu a porta e espiou pela fresta milimétrica.
— A sala já está cheia deles — sussurrou no ouvido de Atan. — Eu acho que está na hora!
— Aguarde mais um pouco — respondeu Atan — ainda não chegaram todos!
Ao fim de trinta segundos angustiantes, notaram que o elevador tinha parado. A intensidade das vibrações indicou que a plataforma repousava sobre o piso inferior da estação; o desembarque havia terminado.
— Pelo que consigo enxergar — comentou Atan — nenhum deles usa capacete!
O estranho zumbido nos ouvidos dos dois terranos tornava-se cada vez mais intenso. Eram vibrações que pareciam emanar das suas próprias células. Seria esta a forma pela qual os intrusos se comunicavam? Subitamente, as vibrações cessaram.
— Estão todos aí! disse Atan. -É agora!
Abriram a porta mais alguns centímetros e viram que ela dava acesso a uma pequena ante-sala, separada da sala de controle por uma extensa parede divisória. Atrás dela, os dois homens vislumbravam as silhuetas dos estranhos, que circulavam entre as máquinas, se agrupavam em torno dos painéis de controle e se reuniam em frente ao grande mapa astronômico. Seu aspecto era impressionante. O corpo, de formas humanas, parecia ser feito de vidro leitoso; o sistema nervoso — ou algum misterioso aparelho circulatório — era constituído de veias negras, que pulsavam incessantemente. Eram esbeltos com altura um pouco inferior a dois metros.
Todos, sem uma única exceção, tinham as costas voltadas, para os dois homens. Cuidadosamente, Hasso avaliou a distância.
Os dois pequenos tanques tinham sido atados por um pedaço de fita adesiva, com a qual os astronautas conseguiam vedar pequenos furos nos seus trajes espaciais. Arremessados por
Hasso, resvalaram pelo piso até o mapa astronômico. Ninguém tinha ouvido o menor ruído — também para os estranhos, a propagação do som devia depender da existência de um meio gasoso.
— Mire com cuidado! — implorou Hasso, sentindo o suor frio lhe escorrer pelo corpo.
Atan Shubashi apontou a arma para os dois tanques. No mesmo instante, um dos seres estranhos se virou.
QUATRO homens estavam sentados em volta da mesa de tamanho invulgar. Fitavam-se com uma expressão preocupada nos olhos, mergulhados no profundo silêncio que reinava no gabinete.
— ...e, portanto, a dura realidade é esta: uma raça de cosmonautas extra -terranos invadiu o nosso domínio. É inacreditável.
Sir Arthur, o chefe do estado-maior, era um homem de estatura média e feições marcantes. Apesar dos seus cinqüenta anos, o cabelo grisalho continuava cheio, sem sinais de calvície. Os olhos cinzentos, que brilhavam com uma expressão contundente, estavam fixados no rosto do homenzinho sentado à sua frente.
— Mais dia, menos dia, isto teria que acontecer — observou o coronel Villa em tom impassível.
— Sua indiferença devolveu-me a tranqüilidade, coronel Villa! — disse sir Arthur, com indisfarçado sarcasmo, e inclinou-se em direção ao seu interlocutor. Era mais baixo e esbelto que o corpulento marechal ao seu lado, mas a expressão decidida do seu rosto deixava prever que defenderia um ponto de vista até o fim.
Villa manteve-se imperturbável, mas havia um traço de ironia na sua voz quando disse:
— Fiz a minha observação com esta finalidade.
— Já que, na sua clarividência, o senhor previu a invasão, coronel — insistiu sir Arthur — previu também por acaso que os intrusos são imunes às nossas armas energéticas e que dispõem de naves espaciais infinitamente superiores às nossas?
Villa acenou com ironia. Trajava o uniforme cinza-claro do serviço de segurança. Abaixo do ombro direito, via-se o emblema da corporação. Era um homenzinho de constituição delicada, suas mãos eram finas e nervosas.
Sir Arthur dirigiu-se a Wamsler:
— Como foi mesmo aquele trecho da última mensagem de McLane, marechal?
Wamsler olhou para sir Arthur com um ar de espanto; não tinha compreendido a pergunta. Sua mente estava ocupada em imaginar que fim teria levado o seu melhor homem. O que teria acontecido com a Órion...
— Se McLane não dispõe de outro recurso a não ser a fuga, isto prova que o inimigo é, realmente, superior.
— É mesmo? — fez-se ouvir Villa. Os ânimos começaram a ficar mais exaltados. No gigantesco mapa espacial, um minúsculo ponto luminoso mudava constantemente de cor. Marcava a posição de MZ-4; as coordenadas estavam inscritas ao lado: 10 Norte 219...
Os quatro homens haviam sido convocados para discutir a situação. Desde o tempo em que os terranos realizaram as primeiras penetrações na selva do universo, esta era a primeira vez que tinham encontrado seres cuja inteligência se comparava à dos homens; talvez fosse até superior... Era um fato inédito na história da navegação espacial, e decidiu-se não levá-lo ao conhecimento público.
— Nosso domínio — disse Wamsler, visivelmente atormentado pela incerteza — é uma esfera espacial oca com um diâmetro de novecentos parsec.
Sua mão carnuda apontou para o mapa na parede.
— Este diâmetro, meus senhores — continuou — é uma grandeza geométrica inteiramente arbitrária. Nem sabemos ao certo o que existe em todos esses milhares de cubos espaciais. É claro que medimos e registramos, um por um, todos os corpos cósmicos, anotando, além disso, sua posição. Mas não sabemos o que existe além das nossas fronteiras; por assim dizer, ignoramos o que há atrás daquele morro. E é de lá que vêm esses estranhos; ainda tivemos muita sorte de descobri-los logo que atravessaram a fronteira. Villa pediu a palavra.
— Concordo; mesmo levando em consideração as características especiais desse encontro. Nosso primeiro contato com os estranhos consistiu de homicídio e morte, de agressão e aniquilamento. Foi uma pena.
— A agressão partiu deles, não de nós! — lembrou sir Arthur, com rispidez.
O coronel Villa era um tático astucioso e um hábil negociador. Para ele, a guerra era apenas o último recurso; muita coisa podia ser tentada antes de se recorrer às armas. A presença de Villa nesta reunião tinha um único objetivo: impedir uma ação precipitada.
Não externou, porém, seus pensamentos. Sabia que Wamsler pensava e agiria como ele. Há muitos anos vinha imaginando como seria o primeiro contato com extraterranos. Agora, todos já o sabiam.
— Cavalheiros! — disse Kublai-Krim, levantando a voz para se fazer ouvir. — Não sei se o momento é oportuno para discussões fundamentais. A situação é clara: forças extraterranas ocuparam um asteróide retransmissor avançado e mataram a guarnição. Decretei o estado de alerta para as Frotas Estratégicas 1 e 2, e solicito a liberação das ordens de ataque.
Villa sorriu ligeiramente.
— Felizmente, seu pedido só poderá ser concedido por unanimidade dos presentes. E vai ter que lutar um bocado, Kublai, para conseguir meu voto!
Os dedos de Villa voltaram a tamborilar na mesa.
— Os estranhos estão lá, quanto a isso, não há dúvida. Apareceram na fronteira e encontraram Clarence e seus homens. A morte da guarnição do asteróide pode ter sido obra do acaso, ou conseqüência de um mal-entendido. Favor reparar que eu disse pode ter sido!
— Belo mal-entendido! — observou Wamsler.
Villa respondeu, com um sorriso amável nos lábios:
— É perfeitamente possível que tudo decorreu da dificuldade ou mesmo impossibilidade em estabelecer uma comunicação entre eles. Vamos aguardar o relatório de McLane, ou de uma outra nave, caso ele tenha morrido. Na minha opinião, devemos, por todos os meios, procurar estabelecer contato com os estranhos e o que eu entendo por contato, sir Arthur, não é o envio de uma frota que cospe raios energéticos a torto e a direito.
Kublai-Krim manteve-se em silêncio durante alguns segundos; depois, com voz mais calma, disse:
— Até agora não tínhamos a menor noção da existência desses extraterranos.
— Mas, general! — exclamou Villa, pasmo — há séculos que estamos captando sinais provindos do universo. E uma grande parte deles, isso nossos cientistas constataram, não é oriunda de radioestrelas e, sim, uma forma de manifestação de inteligências alienígenas.
— Não me importo com as tais inteligências — gritou Kublai-Krim, tentando alisar seu cabelo eriçado — desde que nos deixem em paz!
— Perdoe-me a observação — respondeu Villa, com cativante afabilidade — mas esta sua mentalidade é o que há de atrasado.
— A sua falta de respeito... — explodiu Kublai-Krim se engasgando.
Villa sorriu, maliciosamente; depois, com o olhar alheio, comentou:
— Nós, terranos, somos uma raça cheia de contradições. O que conseguimos criar durante os últimos séculos não foi pouco; e tudo sob o signo do Progresso. Estabelecemos colônias em Marte, em Mercúrio e em quase todos os planetas e luas do sistema solar e alguns outros no nosso domínio. Mas a mentalidade dos militares manteve-se inalterada desde a era dos faraós. NÓS SOMOS NÓS! Defendemos intransigentemente o rígido esquema das nossas concepções arcaicas; e se alguém tiver a ousadia de contestá-las, não perdemos tempo em discussões, entregamos a palavra às armas energéticas. Está para acontecer isso de novo no caso McLane.
Wamsler levantou a mão e Villa lançou-lhe um olhar indagador.
— A questão continua em aberto — disse Wamsler; via-se que estava indeciso — ou colocamos as frotas espaciais estratégicas em marcha, ou... coronel Villa, tem alguma sugestão?
Villa levantou-se e disse, com voz clara e firme:
— Sou totalmente contra um envolvimento nosso em combates de grande envergadura. Não estamos em condições de sustentar uma guerra de duração e proporções imprevisíveis. Antes de tomar qualquer decisão, precisamos esclarecer três pontos fundamentais: quem são esses estranhos? O que querem de nós? E, finalmente, qual o seu potencial?
Wamsler, também se levantando, disse:
— Quanto aos meios de que eles dispõem... espero que McLane esteja vivo para poder lhe contar uma história bem triste a esse respeito, coronel Villa!
A conferência foi encerrada com esta resolução; ninguém sabia o que tinha realmente acontecido.
Na mesma fração de segundo em que o corpo transparente e leitoso começou a se mexer, Atan apertou o gatilho.
Um fino raio estendeu-se do ejetor da arma aos tanques abaixo do mapa, e a energia fundiu o aço dos recipientes.
Com uma tremenda explosão, o gás comprimido libertou-se instantaneamente. Em apenas um segundo, a sala de controle estava inundada de oxigênio puro, sob a pressão de uma e meia atmosfera. A onda de choque esmagou os painéis dos instrumentos e atingiu os dois homens...
Viram a pesada porta de aço ser arrancada como a tampa de uma lata; em seguida, foram arremessados ao chão e arrastados por uns vinte metros, até baterem violentamente numa parede. Por alguns segundos, Hasso perdeu os sentidos. Amparado por Atan, voltou a si e gaguejou:
— Que foi que aconteceu?
Atan não respondeu. Examinava os aparelhos do seu traje; Com alívio, verificou que todos ainda funcionavam. Agora, os ruídos externos podiam ser ouvidos nos alto-falantes dos capacetes: o zumbido firme da instalação renovadora, o som metálico de uma grelha que batia contra uma das pequenas turbinas...
Atan capengou até a passagem devastada e ocultou-se por trás dos escombros. Seus olhos vasculharam a sala de controle. Os estranhos não representavam mais ameaça alguma. Nenhum deles estava com vida.
— Tivemos sorte? — perguntou a voz junto ao seu ouvido.
— Tivemos, sim; estamos fora de perigo — suspirou Atan.
Seus joelhos começaram a tremer incontrolavelmente; agarrou-se no que tinha sobrado da moldura da porta e arreganhou os dentes para Hasso.
— Eu sabia o tempo todo que ia dar certo! — disse, ofegante, num misto de euforia e fadiga. — Eu sou um gênio!
— Já que você é um gênio — disse Hasso — provavelmente vai poder me explicar como vamos sair desse buraco!
Entreolharam-se e compreenderam. Tinham afastado uma ameaça, mas as outras persistiam, inalteradas. Dispunham de aparelhagem técnica, de alimentos e de ar... mas não de um meio de transporte que os pudesse retirar de MZ-4. Nas condições em que a Lancet se encontrava, não alcançaria nem o cubo espacial vizinho; a situação se agravava pois o cruzador-laboratório Challenger estava se projetando na direção do asteróide, em busca da correção do seu curso.
— Parece que não vamos poder descansar a cabeça — disse Hasso, passando a mão enluvada pelo capacete de quartzo — daqui há quarenta e três horas, a Challenger vai se espatifar contra o asteróide.
Alpha Centauri distava 1,3 parsec de Terra. Possuía uma massa total 2,1 vezes maior que a do sol terrestre e pertencia ao grupo das estrelas duplas visuais. Em torno de um sol girava um satélite escuro; no caso, era um planeta ermo. De todas as constelações similares, era a que mais próxima ficava de Terra. Como por encanto, um disco delgado surgiu do nada, fora do campo de atração deste sol.
A Órion tinha se rematerializado do hiperespaço.
McLane, De Monti, Tamara e Helga mantinham-se em silêncio. O retorno prematuro da Órion VII ao espaço normal tinha sido motivado pelo aviso do computador, que exigia uma verificação das coordenadas do curso. Em poucos segundos, constataram que a trajetória do vôo estava correta. McLane estava sentado em frente à sua tela, com uma expressão petrificada no rosto.
— Contacto estabelecido com radiossatélite 1/Norte — disse Helga, a meia voz. — Vamos pousar dentro de poucas horas.
— Entendido.
O opressivo silêncio perdurou por mais meio minuto. Ouviu-se, então, a voz de McLane:
— Mensagem hiper-radiofônica para Estação Avançada Júpiter: Órion VII solicita hora de pouso em Terra, Base 104.
Tamara colocou a mão no ombro de Cliff McLane.
— Posso imaginar o seu estado de ânimo — disse ela.
McLane limitou-se a um rápido aceno, e continuou a olhar distraidamente para Helga, ocupada em registrar no livro de bordo as informações que Júpiter fornecia. Segundos depois, a Órion mergulhou novamente no hiperespaço.
— Não quero importunar — continuou Tamara — mas se o senhor quiser, comandante, eu me encarrego de falar com a senhora Sigbjörnson.
McLane dirigiu um olhar ausente para Tamara. O cruzador espacial rápido tinha empreendido a fuga diante das naves inimigas. Não havia mais dúvida que os dois companheiros estavam mortos, os invasores os haviam matado da mesma forma que tinham feito com Clarence e seus homens.
— Obrigado — respondeu, com voz cansada. — É muito generoso de sua parte... fico-lhe muito agradecido, mesmo, mas... esta tarefa eu não posso delegar a ninguém. Se não fosse por mim, Hasso podia estar agora pescando tranqüilamente entre os bancos de coral da Grande Barreira de Recifes.
A voz de Mario fez-se ouvir:
— Cliff, há algo que esquecemos completamente!
— Não esqueci, não, Mario — respondeu McLane, indiferente. — Você se refere à Challenger.
— Mas, se não tomarmos uma providência qualquer, dentro de poucas horas o cruzador vai se chocar com MZ-4 — disse Mario; e acrescentou: — Nesse impacto, uma boa parte do asteróide será destruída!
— Podíamos voltar e tentar desviá-lo, Cliff — sugeriu Helga.
— Para quê? — perguntou McLane, laconicamente. — O asteróide foi ocupado pelos extraterranos; Hasso e Atan estão mortos. As naves estranhas pouco nos interessam e, quanto à estação, já não tem mais utilidade alguma.
Tamara Jagellovsk começou a enumerar:
— O cruzador-laboratório é totalmente automatizado. Não há seres humanos a bordo, só robôs, aparelhagem científica e carga. A Challenger vai fazer exatamente aquilo que nós não conseguimos concretizar.
— Fazer o quê? — perguntou Helga.
— Destruir o asteróide!
A Challenger tinha por destino um planeta no cubo 10/Norte 360. Segundo a correção de curso que deveria receber de MZ-4, este planeta se encontrava num cubo vizinho ao do asteróide. A nave e sua carga estavam sendo ansiosamente esperadas por um pequeno destacamento de pioneiros.
McLane tinha se lembrado disso e tomou- nota do detalhe, enquanto a Órion prosseguia em sua vertiginosa volta a Terra.
Algumas centenas de pessoas
aguardavam a chegada da nave e do seu comandante. Wamsler esperava por Cliff — precisava saber se havia ameaça de guerra — e o coronel Villa estava à espera de Tamara... A sorte de Terra dependia de uma única nave.
Mergulhada no hiperespaço, a Challenger projetava-se pelo universo. O aspecto externo das naves era quase igual. A Challenger apenas não possuía o armamento da Órion, pois era lenta e pesada demais para poder revidar um ataque; além do mais, somente o computador do comando automático era capaz de reagir, dentro de certos limites. Essas limitações já eram evidenciadas pelo fato de que a nave tinha necessidade de passar nas proximidades de MZ-4, a fim de conseguir a correção de curso.
Era praticamente impossível manter um rumo correto no vôo espacial. Desvios de rota de até cem quilômetros ocorriam com freqüência, pois as distâncias a percorrer eram grandes demais. Por mais precisas que fossem, as correções de curso jamais conseguiam eliminar por completo os desvios e as derivas verificados nas trajetórias das naves.
O radar estava cego; a nave deslocava-se no hiperespaço.
O espaço tridimensional não existia para as máquinas e os aparelhos, com uma exceção. Era o transmissor hiper-radiofônico; no momento, estava recebendo o sinal do radiofarol automatizado de MZ-4. Passou a analisar o impulso...
E descobriu que a nave estava se dirigindo exatamente para o local onde, separado por aquele meio misterioso do espaço de ordem superior, o asteróide devia estar pairando, invisível. Enviou um sinal de identificação.
Alguém em MZ-4 devia receber o impulso, descobrir a trajetória de colisão, e providenciar, imediatamente, uma correção de curso. E isto, dentro de poucos minutos; caso contrário, o cruzador atingiria em cheio a abóboda construída na superfície deste mundo de rocha. Mas a guarnição do satélite estava morta e a aparelhagem não funcionava. O computador da Challenger registrou a falta de resposta e acionou um aparelho automático. Imediatamente, a nave começou a lançar no espaço o seu grito de socorro, gravado por voz de robô numa fita sem fim, e emitido na onda de emergência.
— Challenger para MZ-4... Challenger para MZ-4... pedimos com urgência novas coordenadas. Repito: Challenger para MZ-4...
O asteróide continuava a silenciar obstinadamente. O disco aproximava-se, voando no hiperespaço a uma velocidade que não podia ser determinada com precisão. A reta da trajetória apontava para um ponto que tangenciava a órbita circular de MZ-4. O computador da Challenger amplificou a potência de emissão.
— Challenger para MZ-4... calculamos curso de colisão... perigo de colisão iminente... solicitamos urgente correção de curso ou impulso de parada instantânea... Challenger para MZ-4...
A antena só irradiava o sinal do radiofarol. A distância era de apenas duzentos e oitenta segundos-luz. 280 vezes 299791 quilômetros (mais 1 quilômetro por segundo).
Estava para ocorrer uma nova catástrofe.
A SALA estava mergulhada numa penumbra misteriosa. Ao zumbido constante das turbinas, juntavam-se os ruídos de ferramentas e o chiado de uma serra. Vez por outra, ouvia-se o crepitar seco das grelhas de calefação. Só havia luz nas proximidades das grandes máquinas e atrás da barreira formada pelos quadros de controle; o restante do recinto estava às escuras. De repente, predominou o martelar de sons agudos.
Uma voz distante fez-se ouvir. A estática do universo interferia com as palavras, enunciadas de maneira lenta e nítida.
— ... solicito... novas... coordenadas...
A um assobio agudo seguiu-se uma cascata de estalidos estridentes. Alguém praguejou, e aço bateu contra aço. Um dos dois homens tinha arremessado, com raiva, uma chave de fenda eletrônica contra a parede do quadro.
— É de arrancar os cabelos! — gemeu Shubashi.
Numa mesa colocada num pequeno espaço livre entre as máquinas e os painéis semidesmontados havia xícaras e pesados pratos plásticos retangulares, espalhados em meio a restos de comida e embalagens rasgadas de rações alimentícias. Atan sentou-se à mesa.
Levando a xícara à boca Hasso disse:
— Até agora, fomos bem sucedidos em tudo.
— Certo! — confirmou Atan.
— Liquidamos os extraterranos e conservamos seus restos mortais nas câmaras frigoríficas... consertamos o automático da instalação renovadora... conseguimos acertar a dosagem dos gases... só estamos apanhando dessa droga aí!
Hasso contemplou o transmissor desmontado com um misto de raiva e frustração.
Os homens não haviam perdido tempo. Começaram a trabalhar assim que tinham se recuperado dos efeitos da explosão. Isolaram um trecho do sistema de corredores, limitando o abastecimento de ar renovado apenas à sala de comando e a um recinto adjacente. Depois, consertaram a instalação renovadora de ar, e adicionaram 78% de nitrogênio ao oxigênio puro que tinham liberado.
Dosaram a composição volumétrica do ar com auxílio de pequenos recipientes que continham bióxido de carbono e gases nobres. Quando o teor de oxigênio ficou reduzido a 25%, a composição estava correta; puderam então, tirar os trajes espaciais, os capacetes e as luvas. Depois, trataram de alimentar-se.
— E daqui a pouco esse cruzador idiota vai nos estourar — disse Hasso.
— E só por que somos incapazes de descobrir o defeito nesse maldito transmissor!
— ...solicito novas coordenadas.... distância crítica...
O efeito da distorção radiofônica, enorme através de tais distâncias, fazia com que a voz do robô soasse distante.
Um único aparelho funcionava perfeitamente.
Com ar pensativo, Hasso observava o pisca-pisca das pequenas lâmpadas e a dança dos ponteiros no radiofarol automático, que irradiava seus impulsos tanto pelo espaço tridimensional quanto pelo hiperespaço. De uma certa maneira, funcionava como um farol convencional, cujos sinais luminosos são visíveis tanto no mar quanto em terra firme. O computador da Challenger orientava-se dentro desse esquema. E quase já não havia mais tempo para retificar o curso...
— Se nós estamos captando perfeitamente os impulsos da Challenger — disse Atan, tentando mobilizar todos os seus conhecimentos de astronavegador — então também devia ser possível emitir sinais para o diabo daquela nave!
— Claro, desde que o transmissor não tenha sido adaptado a uma técnica que eu desconheço.
— Você está se referindo àqueles grupos ternários de ainda há pouco...? — perguntou Atan.
— Isso mesmo! Olhe, há corrente na instalação e ela está funcionando direitinho. Mas... é só ligar um dos instrumentos de teste, e pronto! Nenhum deles acusa coisa alguma. Há horas que estou tentando descobrir por quê!
Há tempos, os terranos haviam capturado esse pequeno asteróide, instalando sistemas propulsores em diversos pontos da sua superfície, e determinando os valores da sua aceleração e do seu movimento de rotação. Depois, colocaram-no numa órbita estável, da qual nunca mais se desviou.
E em direção a esta esfera rochosa, com cerca de um quilômetro de diâmetro, lançava-se uma nave, impulsionada por reatores atômicos cuja energia cinética era infinita. Infinita?
Deslocava-se no hiperespaço. Segundo a teoria matemática de Riemann, o choque entre dois corpos, um no hiperespaço e o outro no espaço tridimensional, devia ocasionar uma catástrofe de proporções cósmicas. Como até então isto não ocorrera, não ficara, ainda, provada a validade dessa teoria. Hasso e Atan faziam votos para que estivesse errada; mas a incerteza os amedrontava.
— Está entendendo? — perguntou Hasso. — Esses sujeitos modificaram inteiramente a peça básica do transmissor. Só que a técnica deles não tem nada em comum com a nossa; há vinte horas que estou tentando arrancar as peças novas para substituí-las pelas sobressalentes que encontrei no almoxarifado. Mas há coisas demais para mexer. Veja só essa quantidade de condutores, transistores e controles!... Essas bolinhas curiosas, que eu vi hoje pela primeira vez. Se não conseguirmos afastar a Challenger do seu curso de colisão, o nosso asteróide vai explodir!
— E explodir numa detonação que, eventualmente, pode devastar a metade da galáxia! — comentou Atan, em voz baixa.
— Você agora disse tudo! — finalizou Hasso, dirigindo-se com passos resolutos ao transmissor. Arrancou mais alguns condutores.
— Challenger para MZ-4... solicito novas coordenadas de curso... solicito...
— Quanto tempo nos resta? — perguntou Hasso, retirando uma peça blindada da instalação para, logo depois, abri-la e começar a examinar o conteúdo.
— Cento e oitenta minutos, Hasso! Três horas apenas... Ambos sabiam que tudo dependia deles; se não conseguissem rematerializar Challenger do hiperespaço em tempo, Terra perderia, inapelavelmente, um valioso material...
As naves inimigas ali pousadas poderiam ser desmontadas ou rebocadas; o seu interior revelaria os segredos da técnica dos estranhos.
Os corpos dos extraterranos jaziam nas câmaras frigoríficas; cientistas terranos poderiam dissecá-los e tirar conclusões preciosas quanto à sua forma de vida. Contudo, para isso, o cruzador teria que ser desviado do seu curso de colisão...
— Atan... use essas! — disse Hasso e lançou um jogo completo de transistores em direção ao companheiro.
Atan apanhou o jogo no ar, identificou-o e riscou o número correspondente da lista de peças. Em seguida, pôs-se a montar um complicado conjunto eletrônico. Quando Hasso acabou de soldar as últimas conexões, tinham progredido mais um pouco.
— Vamos a outro teste, Atan? — perguntou Hasso.
Atan fez que sim.
Durante as últimas vinte horas, os homens não tinham dormido mais que sessenta minutos, e o café quente que bebiam a toda hora já tinha perdido todo o efeito revigorante. Ligaram o aparelho de teste ao condutor da antena.
Como astronavegador, Atan conhecia, evidentemente, o código a que respondiam os controles das máquinas de uma nave espacial. Se conseguissem emitir esse código uma única vez, a Challenger sairia do hiperespaço. Nessas condições, o choque com o asteróide seria relativamente inofensivo: um corpo de rocha viva, com um quilômetro de diâmetro, resistiria facilmente ao impacto da nave.
— Então, vamos lá!
Já tinham gravado a instrução codificada numa larga fita magnética. Hasso ligou o circuito.
Pequenas faíscas dançaram por alguns segundos entre os fios e as placas do aparelho que se aquecia. Com um ar de expectativa, Hasso dirigiu-se ao painel e acionou os controles. Dois terços dos instrumentos responderam aos impulsos; seus ponteiros oscilaram. Os dois homens entreolharam-se, em silêncio. Em seguida, Hasso calcou a tecla de partida. Imediatamente, o carretel da fita sem fim começou a girar, lentamente.
— Nada, outra vez! — exclamou Atan, completando com um palavrão.
As escalas do aparelho de teste continuavam mortas; portanto, a antena na superfície do asteróide não estava recebendo corrente; não tinha condições de emitir um único impulso sequer...
— Vamos, Hasso! Depressa! — implorou Atan, com voz febril, e voltou correndo para o improvisado local de trabalho atrás dos armários, aquela ilha de luz na imensa sala escura... Rebobinaram a fita e Hasso prosseguiu na desmontagem de peças, substituindo-as pelas que Atan lhe entregava.
Trabalhando incessantemente, revolviam as entranhas daquele transmissor obstinado. Cortaram fios, soldaram conexões, modificaram circuitos...
E passaram-se mais cento e trinta minutos.
— Mal consigo ficar de pé — disse Hasso, friccionando os dedos — e quase não enxergo mais nada de tanta lágrima nos olhos. Mas agora falta pouco.
Tinham descoberto um pequeno andaime para montagens e Hasso equilibrava-se na plataforma.
— Vinte e três... sessenta e um, Atan!
Quase não conseguiu aparar a pesada placa, coberta por inúmeros retângulos, cubos, esferas e cabos multicores. Cuidadosamente, Hasso encaixou a complexa peça num trilho magnético e ligou uma meia dúzia de fios.
— Fiz o que pude — comentou, enquanto a pequena plataforma descia ao chão.
— Vamos tentar de novo!
Mais uma vez ligaram o aparelho e calcaram a tecla de partida. E mais uma vez observaram o movimento da fita e o pisca-pisca das incontáveis lampadazinhas.
Mas desta vez o ponteiro do voltímetro oscilou.
— Pare! — gritou Atan, de repente — descobri uma coisa!
— O quê? — perguntou Hasso, curioso.
— O transmissor parece funcionar a contento. Mas a corrente da rede de alimentação está com a ciclagem errada. Reparei isso naquela lâmpada incandescente; apresenta um ritmo diferente. Aí é que está o defeito! Provavelmente instalaram um adaptador de ciclagem na linha entre o dínamo e a entrada do transmissor.
Não foi difícil encontrar o cabo alimentador: corria numa valeta embutida no piso, passando por uma caixa de distribuição. Nada encontraram de anormal.
— Quanto tempo falta? — perguntou Hasso.
— Vinte e dois minutos — respondeu Atan, após consultar seu pesado relógio de pulso.
Meteram-se rapidamente nos seus trajes espaciais, atarraxaram os capacetes e calçaram as luvas. Saíram da sala de controle e percorreram dois corredores; finalmente, chegaram à sala onde estava instalada a pilha atômica.
A freqüência normal de uma corrente alternada comum era de cinqüenta ciclos por segundo. As variações no aclaramento de uma lâmpada incandescente ainda podiam ser detectadas a olho nu, mas era quase impossível avaliar corretamente a freqüência dessas oscilações. No entanto Atan havia notado a ciclagem diferente.
Desta vez, não encontraram dificuldades.
Afixado num dos condutores, descobriram um pequeno e inconspícuo aparelho; não se detiveram em retirá-lo. Com umas poucas manobras, fizeram a corrente de alimentação passar por um outro circuito, previamente examinado com todo o rigor. Agora, a freqüência da rede devia corresponder ao valor normal; caso contrário, nada mais adiantaria. Um último teste... a corrente manteve-se constante.
— A tela está ligada? — perguntou Atan.
— Está, sim! Se conseguirmos convencer a Challenger a voltar ao espaço normal, sua imagem devia aparecer imediatamente. Vamos ver!
Atan soltou as garras do aparelho de teste e Hasso apertou a tecla.
A tensão tinha chegado ao máximo, mas os dois homens estavam por demais exaustos para ainda sentirem as pernas tremer e o suor brotar de todos os poros. Por seu lado, a antena estava irradiando os impulsos...
— Challenger para MZ-4... solicito... — a voz insistente do robô ainda chegou a dizer; depois, silenciou, aparentemente surpresa. E no mesmo instante, a imagem do imponente disco apareceu na tela. A nave aproximava-se com uma velocidade alucinante; a imagem crescia assustadoramente.
— Por via das dúvidas — rouquejou Atan — acho bom verificar, mais uma vez, se estamos bem fechadinhos dentro da nossa fantasia. Pois, se a vedação dos corredores e das eclusas for destruída, amigo Hasso...
Inspecionaram-se um ao outro e verificaram a reserva de ar; o suprimento daria para mais meio dia. Voltaram a observar a tela; o vulto da Challenger não parava de crescer.
Já era possível distinguir, na luz crepuscular do universo, as arestas e saliências da nave, as finas linhas que marcavam o contorno das comportas, e a antena na curvatura superior do disco. Instintivamente, Atan e Hasso agarraram-se ao armário do transmissor. A fita continuava a passar pelas cabeças magnéticas, emitindo a ordem para retornar do hiperespaço.
Não mais de setenta metros ainda separavam a Challenger da superfície, quando...
A detonação foi terrível. Por uma fração de segundo interminável, a nave parecia estar parada; depois, uma explosão incrivelmente violenta estraçalhou o cruzador. Rachou-se ao meio, uma enorme bola de fogo apareceu e escombros projetaram-se em todas as direções. Um abalo quase imperceptível propagou-se pelo asteróide. Depois houve silêncio.
— Mas... — disse Shubashi.
— Também estou vendo — murmurou Hasso, colocando o braço no ombro do companheiro.
E o que estavam vendo era espantoso.
Com o contorno nitidamente delineado, um campo de força envolvia o asteróide. Devia ser um anteparo magnético destinado a neutralizar pressões vindas de fora. Mais propriamente uma proteção para as sete naves que para o asteróide.
— Está tudo acabado — disse Hasso — agora só tenho mais uma coisa a fazer — e dirigiu-se, de pernas bambas, ao transmissor.
Desligou a fita e apertou um botão. Uma tabela iluminou-se à sua frente; nela, constavam os números de chamada das estações retransmissoras mais próximas e os respectivos códigos.
— A que nos serve — disse Hasso — é a estação 9/Norte 201 — e bateu as letras do código no teclado de um computador primitivo.
Em seguida, redigiu a mensagem.
— De MZ-4 para 9/Norte 201... H.S... T.A.T... T.R.A.V. Atan Shubashi e Hasso Sigbjörnson chamando autoridades interessadas... asteróide sem avarias de monta... matamos todos os invasores por explosão de oxigênio... espécimes conservados em câmara frigorífica... sete naves inimigas intactas na superfície do asteróide... membros tripulação Órion ilesos, mas cansados... anteparo magnético dos estranhos causou explosão da Challenger... solicitamos envio imediato de McLane para nosso resgate... desligo.
Arreganhou os dentes e, com o que lhe sobrou de forças, acrescentou:
— Complemento mensagem... se possível, operação resgate sem auxílio de oficial do S.S.G...Desligo.
Virou-se para Atan e disse:
— Meu velho, agora eu só quero é dormir! Vamos procurar dois leitos confortáveis e ferrar no sono. Não demora muito, e McLane bate na porta!...
Seguramente durante um quarto de hora as sereias de alarme tiveram que lançar seus uivos pela sala de controle, até que Atan acordasse. Lançou um olhar ao redor de si e viu a fenomenal desordem na qual se encontrava. Somente agora percebeu que tinha caído da poltrona durante o sono. Não tinha sentido nada. Sentiu, porém, algo de que se lembrava muito bem do seu tempo de cadete: um traje espacial não era um pijama. Devia ter manchas azuis pelo corpo todo.
Hasso estava esticado no piso de aço e roncava. Atan cambaleou até o pequeno painel e desligou a sereia. Na tela, estava a imagem de dois cruzadores rápidos. Atan não conseguiu ler as identificações; ficou, pois, sem saber se McLane havia chegado. Com exceção do radar, do radiofarol e do transmissor hiper-radiofônico, nenhum outro aparelho de comunicação funcionava.
— Hasso! — berrou Atan Shubashi. — Eles chegaram!
A muito custo, o engenheiro acordou. Olhou para Atan com os olhos esbugalhados; não estava entendendo o que se passava.
— O quê? — perguntou.
— Chegaram dois cruzadores rápidos para nos apanhar — disse Shubashi, ajudando Hasso a erguer-se — só que os nossos problemas ainda não acabaram.
Aos poucos, Hasso recuperou a lucidez.
— E mesmo! — lembrou-se. — Lancei está no poço de pouso, incapaz de levantar vôo. E um campo magnético envolve o asteróide. Nós não podemos sair e nossos amigos não podem entrar. Portanto, que fazemos?
— Antes de mais nada — respondeu Atan — podíamos sinalizar para eles com as luzes de posição do poço. Em seguida, temos que tentar eliminar a barreira.
— Mais trabalho, ainda! — suspirou Hasso. — Ainda tem um pouco daquele presunto enlatado?
— Vai ter que trabalhar de novo! — disse Atan, rindo. — Presunto? Tem, sim. Está lá em cima da mesa. Ligue a cafeteira.
Haviam dormido quatorze horas seguidas; Hasso ainda bocejava. Atan tratou de fazer o café ele mesmo. Jogou um cubinho de café em pó, comprimido, na cafeteira automática e colocou uma caneca debaixo da torneira. Depois, dirigiu-se aos painéis de controle, procurando os interruptores das luzes de posição do poço. Encontrou-os após alguns minutos e imediatamente os utilizou como semáforo; sua primeira mensagem, em código morse, foi um pedido de contacto.
Os possantes faróis de pouso da primeira nave acenderam-se, nitidamente destacados na tela de imagem.
— Beteigeuze... — sinalizaram as luzes — ...estamos entendendo.
— Então vamos ao trabalho! — disse Atan, e foi encher a sua xícara. Comeram e beberam, fecharam os capacetes e saíram à procura da instalação dos estranhos, que gerava o anteparo magnético.
PRIMEIRO dirigiram-se à central de energia.
Examinaram a pilha atômica e não encontraram nada. Os feixes de cabos, que partiam dos dois geradores, terminavam nas grandes caixas de fusíveis. Nada mais havia nas paredes.
— Vamos procurar na sala II — disse Hasso e apontou para a comporta à prova de radiação, que separava o outro corredor da central de energia.
A sala II era o almoxarifado. Encontraram embalagens de todos os tipos; inscrições em caracteres terranos indicavam o conteúdo e a quantidade. No meio da sala, havia um conjunto de recipientes tetraédricos, com caracteres ou desenhos desconhecidos, em alto relevo. Atan não os tinha percebido antes, absorto na sua procura.
— Isto pertence aos nossos amigos transparentes — disse Hasso e chutou o material elástico com a pesada bota do traje espacial. — Mais um troço para manter ocupados os nossos biólogos.
Também aqui não encontraram nada.
— Nos corredores e poços também não deve haver nada — monologou Hasso, alisando o curto cabelo branco; quando sua mão tocava o queixo, ouvia o roçar da barba. Recolocou o capacete e saiu da sala que tinha vasculhado sozinho. Atan chamou-o pelo fone do capacete:
— Hasso?
— Estou aqui, no recinto ao lado da sala de controle — respondeu, com pressa. — Encontrou alguma coisa?
— Creio que sim. No momento estou nas proximidades do poço de pouso, na superfície do asteróide.
— Então tome cuidado — disse Hasso e abriu rapidamente a porta que dava acesso a um dos corredores — para não sair voando e bater no anteparo magnético! O campo gravitacional artificial ainda está intacto?
— Está, sim!
— Desculpe-me se estou me intrometendo na sua conversa — disse, de repente, uma voz diferente junto aos ouvidos de Hasso. — Mas, finalmente, consegui sintonizar a onda do seu aparelho de capacete. Está passando bem, aí embaixo?
Hasso riu e sabia que Atan também estava ouvindo a nova voz.
Com passos rápidos e decididos dirigiu-se à rampa, ao lado do poço, que ligava a ante-sala do poço com o vácuo do universo.
— Estou, sim, obrigado — respondeu. — O senhor é o radiotelegrafista da Beteigeuze, não é?
— Correto. Já estamos esperando uma eternidade. E seus superiores já estão doidos para botar a mão nos seus relatórios!
— Que esperem mais um pouco — disse Hasso. — Primeiro precisamos descobrir o controle que desliga a barreira magnética.
— Faço votos que o encontre logo! Hasso subiu a rampa e, de repente, encontrou-se frente a frente com o imediatismo do cosmos. Os dois cruzadores eram como mensageiros de um mundo infinitamente distante. De qualquer maneira, apenas poucas horas ainda separavam os homens da civilização e dos seus camaradas.
— Onde você está, Atan? — gritou Hasso, aflito.
— Eu vejo você, Hasso. Estou à direita, a uns trinta metros.
Hasso virou-se para a direita. Acima dele, brilhavam as estrelas, imóveis como diamantes num fundo de veludo. Não cintilavam, pois não havia atmosfera que retratasse e desviasse os raios que emitiam. Com vagar, Hasso retomou os passos.
A lanterna no seu cinto acendeu-se e iluminou o caminho, que levava através de rochas escarpadas. A seu lado, apareceu uma lâmpada vermelha: uma das luzes de aproximação do poço de pouso. Parou e olhou para baixo, lã estava, inválida, a Lancet e obstruía o poço.
— Só mais uns vinte metros, Hasso! — disse a voz de Atan.
Subitamente, um turbilhão de pensamentos assaltou-lhe a mente. Lembrou-se das horas que tinham passado juntos e dos perigos que agora já não existiam mais. Sentiu-se tomado por uma estranha sensação de mal-estar. Atan e ele, Hasso, seriam recepcionados como heróis. Tinham conservado os corpos dos extraterranos, descoberto uma infinidade de materiais e... capturado sete naves novas em folha, intactas. Tudo isso tinha ocorrido quase sem interferência por parte deles. E por mais de uma vez, as suas vidas tinham corrido sério perigo.
Hasso parou junto a Atan.
— Foi isso que você encontrou? — perguntou, com espanto.
— Não encontrei mais nada. Mas duvido que os estranhos tenham escondido outros trecos desses por aí.
— Decididamente, esse negócio não foi fabricado em Terra — disse Hasso e acocorou-se. O cone de luz revelou uma curiosa construção: fundida na rocha havia uma configuração composta de esferas, tubos e triângulos, que apontavam para todos os lados.
— Se você conseguir descobrir um interruptor nessa bagunça toda — disse Atan — então faça-me o favor de acioná-lo.
Hasso pôs-se a examinar o estranho conjunto. Uma técnica inimaginável tinha sido empregada na sua confecção. Uma massa gelatinosa, branca, fluía sobre as rochas, cobrindo-as numa largura de dois metros; mais para cima, a massa branca afinava-se, formando um caule esbelto. De uma grande esfera negra, saíam espinhos de forma triangular, com outras bolas presas nas pontas e que reluziam num vermelho intenso, quase ao rubro. Tubos de vidro, nos quais pulsava um líquido purpúreo, interligavam as esferas menores, formando uma rede totalmente confusa. No lado que estava examinando, Hasso nada encontrou que se assemelhasse a um interruptor.
— Como é que estão indo? — perguntou o telegrafista da Beteigeuze.
— Nada ainda! — respondeu Atan, aborrecido. Contornou o curioso objeto, que devia ter uns dois metros de altura. Em cada uma das quinze esferas superiores havia dois triângulos curvilíneos, cujos vértices apontavam para as estrelas. O olhar perplexo de Hasso deslizava pelas formas e curvas, à procura de um sentido para todo este amontoado estranho; nada, porém, parecia fazer sentido. Mas, em uma das esferas, à altura do peito, descobriu um orifício, do tamanho de um punho, do qual emanava uma luminescência difusa. Hasso colocou a mão enluvada sobre a abertura.
— Beteigeuze! — chamou Atan, imediatamente. — Pode efetuar uma medição?
— Que tipo de medição?
Atan dirigiu seu olhar para as duas naves, que pairavam lado a lado sobre o asteróide, irradiando uma fraca luminosidade e ocultando parte das estrelas.
— Uma medição da intensidade do campo magnético. Parece que, agora, vocês poderiam se aproximar sem perigo algum — informou Atan — pode ser que me engano, mas eu já não vejo aquela fraca luminescência difusa em torno do asteróide.
— Entendido; vamos testar!
Os dois homens sobre a superfície rochosa da minúscula lua esperaram, impacientes. Continuavam exaustos e famintos, mas a excitação do momento fez com que esquecessem cansaço e fome. O outro cruzador era a Krüger 60, em tudo idêntica à Beteigeuze e à Órion VII; todas três pertenciam a uma das mais modernas séries em construção.
— O campo magnético sumiu — informou o telegrafista, e ouviu a voz de Hasso dizer:
— Ainda temos um outro problema. A nossa nave auxiliar, a Lancet, está no poço de pouso, incapaz de partir. Quando pousamos, os estranhos deixaram-nos passar por uma abertura no seu anteparo, exatamente como fizeram com suas próprias naves. Quando destruíram a instalação de oxigênio da Lancet, acabaram por destruir também todos os cabos principais do controle. Pode nos ajudar?
— Mas é claro! — disse o operador, e Hasso e Atan ouviram as palavras de uma rápida consultação.
O telegrafista informou: — Nós vamos levar a nossa nave auxiliar para dentro do poço e alçamos a sua por meio de cabos magnéticos. Deixamos ela na superfície do asteróide e levamos os senhores de volta a Terra.
— Perfeito — disse Hasso. — Nós aguardamos.
Voltaram pelas escarpadas rochas até a rampa e, pouco depois, fecharam a comporta que separava o poço de pouso da ante-sala.
O resto foi simples e não levou mais que cinco minutos:
A Beteigeuze catapultou uma Lancet, que descreveu um elegante arco e baixou sobre o poço. Soltou vários cabos de plástico, com núcleo metálico, e enormes pratos magnéticos nas extremidades. Sem qualquer ruído, os ímãs aderiram ao casco da Lancet avariada. O piloto da nave de socorro acionou os agregados suplementares, a Lancet foi içada do poço e baixada ao solo do asteróide a uns cinqüenta metros de distância. Em seguida, a nave auxiliar pousou no poço. A comporta abriu-se, lentamente, e dois homens em trajes espaciais entraram na eclusa. Hasso ergueu a mão e acenou.
Conversaram por meio dos fones até chegarem à sala de controle pressurizada. Somente então os quatro homens puderam se cumprimentar.
— Comandante Figueras, do cruzador rápido Beteigeuze — disse o homem alto, estendendo a mão enluvada, depois de ter retirado o capacete. — Fomos incumbidos de resgatá-los antes que chegue a esquadrilha com um mundo de cientistas a bordo.
— Bem-vindos em MZ-4 — disse Hasso secamente.
— Podemos partir? — perguntou Figueras e apresentou o subcomandante.
— Claro — respondeu Atan. — Não temos muita bagagem. O que vai acontecer com o resto das coisas aqui?
— Parece que quatro naves partiram pouco depois da nossa decolagem. Trazem uma porção de cosmobiólogos, técnicos e repórteres para cá. Quando chegarem, vai acabar o sossego — disse Figueras.
O subcomandante estava examinando, com curiosidade, os aparelhos desmontados e a desordem sem igual que dominava o ambiente. Fez um aceno elogioso e riu.
— Muito aconchegante este seu esconderijo. Mesmo com a bagunça antológica.
Hasso devolveu o aceno e disse:
— Infelizmente, não foi o senhor quem tremeu que nem vara verde neste esconderijo! Já tentou, alguma vez, evitar uma colisão no hiperespaço com auxílio de um transmissor remodulado por inteligências extraterranas?
— Ah! Então foram os senhores quem fizeram isso? — perguntou o subcomandante, espantado.
— Claro que fomos nós! — disse Atan, com desprendimento. — Nós, os homens da Órion!
Hasso perguntou:
— E a guarnição do asteróide? Vai ser substituída?
— Claro! As naves estão trazendo uma tropa superarmada — respondeu Figueras. — Agora, ouçam; tenho ordens de levá-los o mais rapidamente possível à presença de Wamsler e Villa. Podemos ir?
— Sim! — responderam Atan e Hasso a uma só voz.
— Mas, antes, eu gostaria de dar uma rápida espiada naquelas naves — pediu o subcomandante, com o olhar gélido perdido na distância e os lábios contorcidos numa expressão de determinação e raiva. Ele e seus companheiros sabiam que perigo para Terra representava o súbito aparecimento dos estranhos aqui, na longínqua fronteira; quanto mais pudessem conhecer do inimigo, tanto melhor poderiam se defender.
— Muito bem — concordou o comandante Figueras. — Fechem os capacetes e sintonizem os fones. Vamos tentar penetrar em uma das naves?
— Se for possível, comandante! Hasso e Atan também apoiaram a idéia. Estavam mais do que interessados em conhecer de perto sua própria conquista.
— Mas depois nós partimos, e rápido! — advertiu Figueras. — Temos muito pouco tempo!
Passaram pelos dois mortos, que tinham sido paralisados em meio à sua refeição e, subindo pela rampa ao lado do poço, chegaram à superfície do asteróide.
— À direita! — disse Atan, laconicamente.
Com os cones de luz das lanternas no cinto rasgando a escuridão, foram descobrindo seu caminho por entre as rochas escarpadas e negras. Após uma curta mas fatigante caminhada de uns cento e cinqüenta metros, chegaram ao local do pouso; a primeira das naves inimigas erguia-se à sua frente. Uma esfera de quarenta metros de diâmetro.
Brilhava como prata polida e no seu casco refletiam-se as formas imóveis das outras naves e dos cruzadores terranos.
Um largo anel, formado por triângulos de aço, apoiava o corpo esférico no solo; da calota superior, duas peças esbeltas projetavam-se para ambos os lados e para cima: assemelhavam-se a graciosas asas de libélula; nas duas pontas, uma série de pequenos objetos, em forma de gota, irradiava uma luminescência vermelha intensa, idêntica, à emanada pelo projetor do campo magnético.
As sete naves estavam dispostas numa única fileira, estendida ao longo de um arco de circunferência. A última só era parcialmente visível no horizonte da pequena lua rochosa.
Os dois oficiais passaram por Hasso
e Atan, e tocaram o casco da nave levemente com a mão enluvada. Depois, alguns metros mais adiante, descobriram o contorno de uma comporta, que em nada se assemelhava àquelas das naves terranas.
Era como uma vedação constituída de energia pura; destacava-se do corpo prateado como uma abertura negra, cintilante, em constante agitação. Figueras sacudiu a cabeça e disse, rompendo o tenso silêncio:
— Acho melhor não tocar em coisa alguma; vamos deixar isso para os cientistas.
— Tem razão, comandante — concordou Hasso — de qualquer maneira, seremos os primeiros a saber das suas descobertas.
— Então, vamos embora! — disse Atan e pôs-se em marcha.
Voltaram pelo mesmo caminho, desceram a rampa e alojaram-se na Lancet. A esfera achatada com as numerosas cúpulas desprendeu-se do chão do poço de pouso e retornou à Beteigeuze. As comportas da eclusa fecharam-se, e imediatamente os dois cruzadores puseram-se em movimento; cubo 10 Norte 219: em poucos instantes, atingiram a velocidade da luz e mergulharam no cinza pulverulento do hiper-espaço, rumo a Terra. Hasso e Atan já não ouviam o fino martelar do computador; de barba crescida e exaustos, tinham-se largado nos seus leitos e estavam dormindo a sono solto.
Cubo 1 Zero UM...
Com um uivo sibilante as duas naves apareceram sobre o mar; aguardando as instruções para o pouso, descreveram uma imensa circunferência, passando por numerosos pontos marcantes do mapa terrano:
— Controle Base 104 chamando naves Krüger e Beteigeuze!
Os dois radiotelegrafistas estabeleceram contato com a torre.
— Seu pouso está previsto para daqui a exatamente cem segundos. Shubashi e Sigbjörnson estão a bordo?
— Sãos e salvos!
— O coronel Villa espera-os dentro de três horas.
— Escapamos por um triz! — sussurrou Atan, ainda sob a impressão dos maus momentos por que tinham passado.
O CORONEL Villa parecia ser um homem que, aparentemente, não envelhecia. Ninguém jamais o havia visto em atitude diferente: sentado atrás da sua mesa de trabalho, com um sorriso sarcástico nos lábios e tamborilando com os dedos da mão direita no vidro espelhento. Linha após linha, os relatórios iam surgindo na tela à sua frente.
Os dados, que tinham sido acumulados, eram da maior importância. Revelaram como eram descomunais as forças que haviam, impiedosamente, agarrado a Órion, quase a destruindo. Outros relatórios começaram a ser projetados sobre a tela, complementados por hiper-radiofotos, transmitidos pelas naves que haviam chegado ao asteróide. Mostravam tudo que já tinha sido descoberto em MZ-4: a guarnição morta... os alimentos dos extraterranos... as sete naves... a curiosa configuração do gerador do campo magnético... os trabalhos de Hasso e Atan...
Villa suspirou de leve, e desligou o projetor. Voltou sua atenção para a projeção esférica tridimensional; perto do pólo superior, passava a linha que marcava a fronteira...
— Só aborrecimentos! — disse Villa, e permitiu-se o luxo de um tímido sorriso. Ouviu um breve apito e olhou para a tela do videofone, que o comunicava com a ante-sala.
— A tenente de l.a classe, Tamara Jagellovsk — anunciou a ordenança.
— Faça-a entrar — respondeu Villa. Tamara atravessou a cortina eletrônica e dirigiu-se, com passos rápidos, até a mesa. Bateu continência e perguntou:
— O senhor mandou-me chamar, coronel?
— Mandei, sim; sente-se, tenente! Tamara sentou-se numa poltrona de molejo macio e espaldar alto, cruzou as pernas esbeltas e encarou Villa com um ar de expectativa.
— O que a senhora sabe?
— Não mais do que os boatos que estão circulando por toda parte — respondeu Tamara. — Também ouvi dizer que Shubashi e Sigbjörnson estão vivos.
— E, para seu desgosto pessoal, o major McLane também não morreu.
Tamara sorriu, mas não respondeu.
— Daqui a pouco, ele vai aparecer aqui — prometeu-lhe Villa. — Faça uma forcinha para não lhe arrancar os olhos, assim que ele entrar. Ademais, solicitei a presença de Sigbjörnson e Shubashi.
— Muito bem. E eu vou fazer o que durante esta entrevista? — perguntou Tamara.
— Apenas ouvir. Afinal, se não me falha a memória, a senhora ainda vai servir trinta e cinco meses e vinte dias como oficial de segurança na Órion.
Enquanto examinava suas bem cuidadas unhas, Tamara respondeu:
— É, sim. E estou adorando a minha missão. Falei com ironia, coronel Villa.
— Todos nós temos problemas — disse Villa, insensível. — O seu é um dos menores que eu conheço. Por falar nisso, qual é o comportamento de McLane perante sua pessoa? Afora o fato de que ele gostaria de torcer-lhe o pescoço.
— Não posso me queixar — disse Tamara, num tom amável. — Conheço coisas piores; receio que ele acaba se acostumando comigo.
Foi a primeira vez que viu seu superior rir de boca aberta. Um breve apito soou e o rosto da ordenança apareceu na tela do videofone.
— O comandante McLane acaba de chegar, coronel.
— Já estava ficando impaciente — respondeu Villa e olhou para Cliff, que transpôs a barreira, aproximou-se e bateu continência.
— Creio que já se conheciam, não? — perguntou Villa, com sarcasmo, apontando para Tamara. A agente do
S.S.G. cumprimentou Cliff com um breve aceno da cabeça. McLane sentou-se; três poltronas vazias separavam-no de Tamara...
— Vamos, primeiro, às formalidades — disse Villa. — Devo dar-lhe a entender, major McLane, que o senhor e seus comandados são merecedores da nossa mais alta consideração.
— Obrigado — disse Cliff, secamente. — Sem a interferência de um oficial do S.S.G., nosso trabalho teria sido mais bem feito.
— Não seja ingrato! — advertiu Villa. — A tenente Jagellovsk está fazendo tudo que pode para impedir que o senhor cometa mais algum dos seus famosos disparates.
Mais uma vez Cliff acenou, mas nem mesmo Villa fazia idéia do que esse aceno significava.
— Recebeu os relatórios? — continuou Villa.
— Sim, claro. Onde estão Hasso e Atan? — perguntou Cliff.
— Devem chegar a qualquer momento — respondeu Villa. — Terra deve um bocado a esses dois homens!
— Isto é verdade! — observou
McLane. — Se não tivéssemos pousado em MZ-4 por obra do mais puro acaso, a situação agora poderia ser bem diferente... e bem mais perigosa!
Hasso e Atan foram anunciados e entraram no gabinete. Cliff levantou-se de um pulo e cumprimentou os companheiros efusivamente. Reparou, imediatamente, pelas profundas olheiras de Hasso e o afilado nariz de Atan, que os dois homens ainda traziam no rosto as marcas do susto que tinham passado.
— Sentem-se, por favor — disse Villa e apontou para as poltronas vazias entre Tamara e Cliff.
— Obrigado.
Sentaram-se e, pela maneira como o fizeram, Cliff teve a certeza que seus amigos sofriam das dores musculares mais atrozes do cosmos; mal conteve um riso.
Villa acendeu uma lâmpada na sua mesa; o S no seu peito brilhava.
— Agora — pediu — contem exatamente o que aconteceu. Como se salvaram? Quero dizer... quem ou o que fez a Challenger explodir antes que se espatifasse no asteróide?
Atan lançou um olhar encorajador para Hasso. O engenheiro limpou a voz e disse:
— Conseguimos consertar o transmissor; os estranhos tinham-no modificado para seus próprios fins.
Villa fixou o olhar no gigantesco mapa.
— Teria sido uma catástrofe de proporções inimagináveis — disse. — E a Challenger?
— Vinha a toda em direção ao asteróide — disse Atan, e fez um movimento com a mão estendida, para ilustrar o fato.
— E houve a colisão?
— Não; não chegou a se chocar com o asteróide — disse Hasso. — Os invasores tinham erigido um anteparo magnético, que abriram apenas duas vezes. Uma, para nos deixar passar com a Lancet; e, a segunda, para possibilitar o pouso das suas próprias naves.
— Quer dizer — disse Cliff — que o cruzador-laboratório se chocou contra o escudo magnético.
— Certo. E foi estraçalhado. Reduzido a um milhão de cacos.
— A esta altura, os estranhos já estavam mortos, sufocados pelo oxigênio dos seus tanques?
— Estavam, sim; mas deixaram como herança aquele anteparo magnético e uma coleção de aparelhos inteiramente loucos.
— Obviamente, queriam levar alguns terranos como cobaias — disse Villa, em tom de fria objetividade.
— Também tivemos essa impressão — disse Hasso, lançando um olhar pensativo ao coronel.
— Tudo isso deve ter sido uma bagatela para os homens da Órion — disse a voz mordaz de Tamara. McLane virou-se e dirigiu-lhe um olhar enigmático.
— Uma ninharia — retrucou Atan, procurando controlar a voz — que exigiu vinte horas do mais árduo trabalho e nos levou à beira do abismo. Foi aí que vimos quanta falta nos fazia a sua ajuda!
Cliff não se conteve mais e caiu numa estrondosa gargalhada; Tamara enrubesceu. Era óbvio que Villa se divertia; olhou, maliciosamente, para McLane e Tamara, e disse:
— Gostei do diálogo; foi muito revelador. É gratificante ver o bom entendimento a que já chegaram, após tão pouca convivência — e sorriu ligeiramente.
— Eu creio, coronel Villa — respondeu McLane, de cara fechada — que a tenente Jagellovsk acaba se acostumando aos homens da Órion!
— Quem vai se acostumar a quem — vociferou Tamara — o futuro vai revelar. Mas há uma coisa em especial, à qual eu não vou me acostumar nunca!
— E que coisa horrível vem a ser esta? — perguntou Cliff; sua expressão era um misto de surpresa e inocência.
— As suas mentiras constantes! — fulminou Tamara.
— As minhas mentiras? — admirou-se Cliff, franzindo as sobrancelhas.
— Está querendo dizer que alguma vez lhe menti? Nem sonhando eu faria uma coisa dessas!
Tamara apoiou as mãos nos quadris e fitou Cliff com um olhar penetrante.
— Claro que não faria isso; jamais! Mas, como era mesmo aquela história do radiossatélite surdo-mudo?
A pergunta pegou Cliff em cheio.
— Aquela história, tenente — começou a explicar — foi uma... — mas Tamara cortou-lhe a palavra na mesma hora.
— ...uma mentira deslavada de sua parte, major McLane! E se o senhor pensa que vai continuar a...
A voz incisiva de Villa acabou com a discussão:
— Infelizmente, ainda tenho não sei quantos compromissos; de modo que não posso me dar ao luxo de assistir por mais tempo a esta agradável, digamos, conversação. Mas, eu acho, tenente Jagellovsk, que esse tipo de problema se discute com auxílio de uma boa dose de uísque; convide o comandante!
McLane levantou-se, bateu continência e disse, em tom formal:
— Desejo comunicar que a tenente Jagellovsk é uma fervorosa antialcoolista e detesta qualquer bebida espirituosa.
— O quê?! — exclamou Tamara. — Quem foi que lhe disse que eu não bebo?
— A senhora jurou que ia denunciar Mario, porque ele proferiu a palavra uísque a bordo!
Parecia que Cliff tinha necessidade de se defender. Um suave sorriso iluminou o rosto de Hasso.
— Certo, McLane! A bordo! — disse Tamara. — Mas quem é que vai nos obrigar a discutir nossos assuntos particulares a bordo da Órion? Por acaso não existem bares aos montes? Como o Starlight, para citar apenas um?
Todos riram, menos McLane, que resolveu consultar o seu relógio de pulso.
Despediram-se de Villa; a meio caminho da barreira eletrônica, a voz do coronel pediu que parassem. Viraram-se em sua direção. Villa pigarreou e disse:
— Major McLane! Não há a menor dúvida que o senhor prestou um inestimável serviço a Terra. Mas, aqui vai uma advertência: não pense que vai poder prosseguir em suas extravagâncias mirabolantes só porque teve uma sorte descomunal nesta última enrascada em que se meteu. O sucesso alcançado em nada vai afetar as medidas disciplinares que foram tomadas. Vai continuar no Serviço de Patrulha-mento... e sob vigilância. Por mais trinta e cinco meses e vinte dias!
— Boa noite — disse Cliff e deu meia-volta.
HOJE, o cassino Starlight fazia jus ao seu nome... na noite límpida, um céu de estrelas cobria a pista de danças e os incontáveis nichos do enorme estabelecimento, que ocupava boa parte de uma ilha na margem ocidental da baía. Ligava-se à base submarina por várias extensões da vasta rede de galerias submersas; pequenos carros trafegavam por estes corredores, proporcionando condução rápida às pessoas que, aos milhares, procuravam um pouco de entretenimento na superfície, de preferência no Starlight... Os seus imensos salões eram freqüentados por representantes de todas as camadas da população da gigantesca Base 104: astronautas, membros das turmas de manutenção, operadores dos centros de computação, funcionários... todos que aqui moravam e trabalhavam ansiavam por passar algumas horas de lazer neste oásis.
O local estava superlotado, mas o centro de atenções era a tripulação do cruzador Órion VII, sentada à volta de uma enorme mesa circular.
O comandante Cliff Allistair McLane rodava um copo cilíndrico entre os dedos; a seu lado, Hasso Sigbjörnson conversava com a esposa, enquanto o robô tomava conta das crianças.
— Meus amigos — disse Cliff, em voz alta — bebo à saúde da nossa valorosa tripulação, que não hesita em enfrentar os maiores perigos, inclusive o Serviço de Segurança Galático.
Responderam com uma estrondosa gargalhada. Tamara não se deu por vencida. Ergueu sua taça e respondeu, com a mesma presença de espírito:
— E eu bebo à saúde de um comandante, que é tão inteligente que até arranjou uma governanta para fiscalizar as suas travessuras!
Cliff deu um sorriso meio amarelo. Estavam aqui há horas. Haviam combinado tudo a respeito do programa desta noite pelos videofones. A primeira providência de Atan foi convidar um membro do corpo de cadetes feminino. A sua surpreendente capacidade de recuperação tinha impressionado a todos.
— Grato pelo brinde — respondeu Cliff, e deu uma leve cotovelada em Hasso. — Dias difíceis esperam-nos na próxima missão; mas tudo faremos para não cometer alguma besteira; espero que, assim, prezada tenente Jagellovsk, a senhora vai achar a vida a bordo a coisa mais chata do mundo!
Tamara sorveu um longo gole, e depois respondeu:
— Duvido que isso aconteça enquanto o senhor estiver no comando, major!
A mulher de Hasso acenou para Tamara, num gesto de profunda compreensão.
Uma pequena nuvem pairava, imóvel, sob as estrelas. A orquestra estava tocando mais um sucesso de Thomas Peter: O Sonho do Spacenik.
Mario de Monti dedicava sua atenção a Helga Legrelle. Lá no alto, visível através da abertura no teto do cassino, um ponto luminoso, inconspícuo, percorria uma trajetória retilínea: a Estação Avançada IV.
Com as mentes mais desanuviadas, começaram a vislumbrar o alcance da sua intervenção; no íntimo, sentiam-se todos como heróis.
— O que teria acontecido se não tivéssemos captado aqueles grupos ternários do código dos estranhos? — perguntou Helga Legrelle, oficial da Vigilância Espacial.
— Não teríamos pousado em MZ-4 — disse Atan.
— É provável que teríamos sido envolvidos numa batalha espacial — observou Hasso, com expressão séria. — O que não teria agradado a nenhum de nós.
— No mínimo não seríamos tão famosos como agora — disse Mario, alegremente. — E alguém não precisava se aborrecer por causa de mais uma façanha bem sucedida de McLane e sua equipe, apesar de sua transferência para o Serviço dos Idiotas.
— Sei, a quem você se está referindo — disse Cliff, com ar sombrio — lá vem ele!
Viraram as cabeças. O ajudante-de-ordens Spring-Brauner vinha caminhando, a passos lentos, pela faixa que separava os nichos da pista de danças; parecia estar à procura de alguém.
— Um dos meus amigos mais íntimos — comentou Hasso.
A roda manteve-se em silenciosa expectativa e ninguém o cumprimentou, nem mesmo Tamara. Brauner inclinou a cabeça ligeiramente e perguntou:
— Por acaso, viram o meu chefe? Cliff olhou para ele por cima do ombro e respondeu com outra pergunta:
— E quem haveria de ser o seu chefe, meu querido?
Podia permitir-se a irreverência; seu posto era superior ao do ajudante.
— O marechal Wamsler — disse Brauner, engolindo em seco.
— Ainda não tivemos a honra e o prazer — disse Hasso — mas se ele aparecer por aqui...
— E isto vai acontecer — interrompeu Tamara, e Cliff mal pôde acreditar no que ouvia — pois ele certamente não vai deixar de congratular a destemida equipe da Órion...
Foi Atan quem complementou a observação interrompida de Hasso:
— ...nós vamos lembrar a ele que deve se apresentar imediatamente ao senhor!
Spring-Brauner lançou-lhe um olhar furioso e retirou-se, sem proferir mais uma palavra.
Entreolharam-se, com uma expressão da mais pura malícia, e riram; até este instante, a noite não havia sido lá essas coisas...
Cliff tornou-se pensativo; voltou a rodar o copo entre os dedos e lançou furtivos olhares em direção aos companheiros; estavam todos aqui, com ele...
Atan Shubashi, o astronavegador. Nome respeitado nos meios científicos; autor de um método revolucionário para a determinação rápida da velocidade de rotação dos corpos celestes que orbitavam em torno do Sol. Como cadete, estabeleceu uma teoria que, anos mais tarde, teve ensejo de comprovar durante uma missão: descobriu o segundo satélite do Sol BD8.° 4352, e o classificou...
Helga Legrelle. O mais jovem oficial da Vigilância Espacial em toda a esquadra... Cliff sorriu, quando se recordou do dia em que ela, pela primeira vez, colocou os pés em sua nave...
Mario de Monti, seu subcomandante. Aparentemente calmo e fleumático, surpreendia a todos que chegaram a conhecê-lo melhor. A sua memória era assombrosa; sabia de cor as coordenadas de, no mínimo, duas mil estações dentro da esfera espacial de Terra; tinha mentalizado todos os códigos do complicado computador de bordo — uma façanha impossível para um cérebro menos privilegiado...
E o seu melhor homem: Hasso Sigbjörnson. Com cinqüenta anos de idade e da confiabilidade de um relógio de precisão. Os melhoramentos que introduziu nos sistemas de propulsão das naves durante os trinta anos de sua carreira, granjearam-lhe a fama. Reiterava, a cada instante, que só continuava a voar por razões sentimentais; era amigo inseparável de Cliff. No fundo, havia mais uma razão: não sabia de lugar melhor para pensar e experimentar, que a bordo da nave do seu chefe... Só restava um corpo estranho.
Tamara Jagellovsk, tenente do S.S.G. Cliff apanhou um copo cheio da bandeja de um robô, que circulava entre as mesas, e analisou, discretamente, as feições da agente de segurança. Sem dúvida era bonitinha; mas havia algo nela que o irritava sobremodo; não era a sua patente, nem tampouco a função que exercia.
A pergunta de Ingrid pôs fim às suas divagações:
— Em que está pensando, comandante?
— Não é nada de importante — disse, ainda meio distraído, e sacudiu a cabeça. — Estou tentando imaginar como é que as coisas vão ser daqui por diante. Afinal, descobrimos seres estranhos na nossa fronteira, que dispõem de uma técnica muito superior à nossa. Tenho certeza de que vão tentar penetrar mais profundamente no nosso domínio. E, aí, eu me pergunto por quanto tempo vamos poder detê-los.
Tamara virou-se para Cliff com uma expressão apreensiva e perguntou:
— Acredita, portanto, que vai haver guerra?
A roda silenciou e começou a prestar atenção na conversa. McLane tomou um gole de uísque e disse:
— Não creio que a guerra seja inevitável, nem tampouco que vá estourar de imediato. Estou pensando em outras coisas que considero muito mais perigosas.
— Está começando a me interessar — disse Hasso — continue a falar.
— Tenho receio de ações isoladas em pequena escala. Como, por exemplo, incursões realizadas em sigilo. Inquietação e agitação entre os colonos. Decisões arbitrárias, tomadas em face da presença do inimigo. Sabotagem e outros atos terroristas. No final das contas, tudo isto pode ser muito mais perigoso do que uma guerra aberta.
— Nesse caso, nós nos encontramos na hora certa! — disse Tamara, com absoluta sinceridade.
Visivelmente nervoso, Atan começou a rir baixinho.
— ...encontramos... essa é boa! — exclamou. — Ninguém encontrou ninguém! A senhora nos foi receitada como um remédio amargo qualquer!
— Geralmente — disse Ingrid, rindo — os remédios amargos são os que melhor efeito fazem.
Cliff fitou os olhos de Tamara com uma expressão pensativa e perguntou:
— Por que fez aquela observação? Algum motivo houve.
— Nunca faço nada, sem pensar antes — respondeu Tamara, com firmeza. — Mas eu acho que os pequenos vôos que o senhor vai realizar, comigo a bordo, é claro, eventualmente podem ser muito mais interessantes que deslocamentos de frotas inteiras. Tenho certeza de que os próximos meses não serão nada enfadonhos; e já estou ansiosa para partir!
— É uma alegria para nós — disse Hasso, bem-humorado — poder contar com tão extraordinária coragem pessoal por parte de um oficial feminino do S.S.G.!
A freqüência já tinha diminuído bastante. Cliff consultou seu relógio de piloto: vinte e três horas. Alguma missão devia ser iniciada dentro de instantes: a ausência de comandantes de naves espaciais era flagrante. A orquestra tinha parado de tocar.
— Está falando sério? — perguntou Atan, dirigindo-se a Tamara. — Acredita, mesmo, que temos dias turbulentos pela frente?
— Claro! Basicamente, o seu comandante e eu temos os mesmos pontos de vista, Atan — respondeu Tamara, com cordialidade. — Apesar de ele não querer acreditar nisso. Já descobri qual o motivo do conflito entre mim e ele: é o seu medo de que alguém possa tolher a sua liberdade de ação.
— Ao menos, vê-se que ela está lendo A Psicologia dos Astronautas — observou Mario de Monti. Hasso riu abertamente.
— Uma leitura que só posso lhe recomendar — respondeu Tamara, rapidamente. — É ótima para se conhecer melhor as pessoas!
— Agradeço a recomendação — disse Mario, rindo maliciosamente — mas já me conheço bem; bem demais, não é, garota?
A pergunta era dirigida a Helga, que acenou com a cabeça e se dedicou ao seu copo, sufocando um acesso de riso. Às vezes, achava Mario convencido demais, como agora.
— Algum dia eu vou poder lhe mostrar como está sendo injusto, Mario! — disse Tamara, sem o menor traço de ironia na voz. — Aguarde esse dia e depois lembre-se do que acabo de dizer!
— Acaba de dizer o quê? — perguntou, de repente, uma voz grave.
Levantaram o olhar e viram o rosto largo do marechal Winston Woodrov Wamsler.
— Não se levantem! — disse, em tom de comando.
Puxou uma cadeira, chamou o garçom e pediu um copo de uísque. Depois de inspecionar, um por um, os rostos à sua frente, disse:
— Alegro-me que a Órion tenha voltado sã e salva, e coberta de glórias. Não é o que eu digo sempre?
— O que o senhor diz sempre? — perguntou Cliff, curioso.
— Que o major McLane só precisa de uma nave; o resto é obra do acaso. Até agora, não houve uma única vez em que não se viu às voltas com alguma situação maluca, McLane. Como é que se sente?
— Por enquanto, bem, obrigado — respondeu Cliff, meio desconfiado. — Não vai me dizer que veio para cá com outra missão no bolso?
Wamsler pegou o copo, analisou-o por um instante, e disse:
— Não vim com essa intenção. Mas... pode-me cobrar a promessa, não demora e tenho algo para a Órion, na linha de MZ-4.
— Por favor, arrume outra coisa, marechal! — exclamou Hasso. — Só de pensar nesse caso, sinto arrepios!
Wamsler estava bem-humorado; já devia ter encerrado o expediente.
— Meus amigos — disse, olhando em redor — a situação é grave!
— É o que estávamos discutindo, marechal — disse Tamara. — Na sua opinião, quais serão as conseqüências desse primeiro contato com os estranhos?
Wamsler encolheu os ombros largos e começou a falar, pausadamente:
— Não sou dado a fazer previsões, mas a história terrana registra uma série de acontecimentos, que apresentam uma certa analogia com a presente situação. Vamos entrar numa fase de perturbação da ordem, de revolta contra o poder estabelecido. Algumas colônias vão tentar obter a independência, se preciso, com emprego da violência. Devemos contar com atos de sabotagem, praticados por bandidos que vislumbram sua grande chance nesse clima de inquietação geral. Perigos latentes, ameaças ocultas, é isso que vamos ter que enfrentar. Acresçam a isso, as tentativas dos estranhos de se aproximarem, cada vez mais, do coração da nossa esfera espacial, de Terra.
Um longo silêncio seguiu-se às palavras de Wamsler. Finalmente, Cliff perguntou:
— Quanto tempo temos de folga?
— Trinta dias, se nada de anormal ocorrer — respondeu o marechal.
— E em que recanto do nosso pequeno universo o senhor acha que vai surgir o próximo problema, marechal? Um problema, bem entendido, que somente os homens, e as mulheres, da Órion conseguem resolver?
Wamsler arreganhou os dentes num riso largo e franco.
— Não vejo chegar o dia em que vai queimar essa sua língua desrespeitosa, McLane! disse Wamsler. — Não vou arriscar um prognóstico. Porém, para saciar, pelo menos um pouco a sua imensa sede de saber...
— Estou prevendo coisas horripilantes! — sussurrou Shubashi.
— ...vai participar de um curso, daqui a dois dias.
— Eu ouvi direito?... Curso? — perguntou Tamara. — Para que, se o nosso comandante já é um sabe-tudo?
Wamsler acenou solenemente com a enorme cabeça.
— Ouviu direito, sim; eu disse curso. Para seu governo, estamos realizando um curso prático para cadetes, e que versa sobre as funções de robôs simples. No momento, major McLane, o senhor não passa de um cadete e vai participar deste curso. E a sua tripulação também.
McLane controlou-se exemplarmente. Raciocinou rapidamente e depois disse:
— Sabia, marechal, que está sendo seguido?
Wamsler sacudiu a cabeça e franziu as sobrancelhas.
— Não sabia, não; e por quem?
Parecia que esta noite Wamsler estava disposto a aturar uma boa dose de gracejos. Começou a rir estrondosamente.
Num instante, voltou a ficar sério e chamou McLane para perto. Dirigiram-se ao elevador que ligava o cassino ao sistema submarino da base. Wamsler pousou sua mão carnuda no braço do comandante e disse, enfatizando cada palavra:
— Não tenha ilusões, McLane! Sabe que eu gosto de uma brincadeira; por outro lado eu sei que o caso MZ-4 nos colocou, subitamente, diante do perigo de uma guerra entre duas raças. Mantenha os olhos abertos e não se deixe levar pela impetuosidade. Só antevejo tempos perigosos, ameaças desconhecidas na espreita. Assim, como uma infecção, compreende? Se não conseguirmos descobrir o foco, poderá se alastrar por todo o espaço que nos cerca.
McLane bateu uma continência meio relaxada.
— Estou preparado! — disse. — Afinal, é notório que os grandes perigos exercem uma atração magnética sobre a Órion e sua tripulação.
— Pare de falar besteiras, Cliff! E vê se não inferniza demais a vida daquela menina, ouviu?
— Isto não depende apenas de mim! — respondeu Cliff.
— Receio — finalizou Wamsler, num tom ominoso — que vamos nos reencontrar mais cedo do que eu pensava!
Hans Kneifel
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