Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REFÉM DO DESEJO / Margo Maguire
REFÉM DO DESEJO / Margo Maguire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

REFÉM DO DESEJO

  

 

         Nortúmbría, 1072, fim de verão. Castelo de Kettwyck

Sir Anvrai d'Arques olhava para os lados, inquieto, incapaz de descontrair-se. Não conseguia se envolver no ambiente alegre, nem com as músicas que eram executadas sem parar. As obras do castelo-forte não tinham sido concluídas. Além disso, nos últimos tempos os cavaleiros de lorde Kettwyck haviam se dedicado mais a ajudar na construção do que ao treinamento com objetivos de defesa.

Seria muito fácil para os escoceses atacarem o castelo du­rante as festividades em comemoração à chegada de Isabel e Kathryn, as duas filhas do lorde.

Apoiado na balaustrada superior, observava lady Isabel dan­çando com os incontáveis pretendentes.

— Anvrai d'Arques! — Hugh Bourdet, o auxiliar de maior confiança de lorde Kettwyck, estendeu a mão para saudá-lo efusivamente. — Bem que disseram que o senhor veio no lugar do barão Osbern. Fico satisfeito em encontrá-lo. Já faz dois anos que não nos vemos?

Apesar de respeitar o cavaleiro idoso, não se encontrava com disposição para conversar.

— Sim, se não for mais — Anvrai respondeu, com o cenho franzido.

— Noto que o senhor está muito sério. Hoje é um dia de festividades e descontração. — Hugh riu. — Segundo me consta, o senhor não assumiu o comando da guarnição do rei em Winchester.

Anvrai cerrou os dentes. Havia um ressentimento profundo entre ele e o rei Guilherme. De todos os cavaleiros que estavam na corte e podiam aproveitar a notoriedade de comandar um dos exércitos do monarca, Anvrai d'Arques fora o que rece­bera menores recompensas. Pelo menos, nada de substancial. Anvrai teria encontrado muita satisfação em possuir uma pe­quena propriedade... um lar... como recompensa pelos anos em que estivera a serviço de Guilherme. Antes e depois da batalha de Hastings.

Mas Guilherme não tinha intenção de recompensar o ho­mem que o desafiara. Por esse motivo, Anvrai d'Arques vivia nas casernas de Belmere, a serviço do barão Osbem d'Ivry, lorde de Belmere. O fato era uma permanente fonte de irrita­bilidade, mas não havia solução possível. Anvrai d'Arques era tão obstinado quanto Guilherme, o Conquistador.

Anvrai apontou para as muralhas de Kettwyck e explicou os motivos de sua preocupação.

— Sir Hugh, as fortificações ainda não foram terminadas. Será que lorde Henri não receia o ataque de escoceses?

— Nossos inimigos nunca demonstraram interesse em con­quistar nosso longínquo território a oeste — Hugh retrucou. — Mesmo assim, não deixamos de tomar precauções. Temos cavaleiros patrulhando o perímetro das muralhas que não estão terminadas e...

Anvrai escutara histórias a respeito das incursões violentas contra os cavaleiros normandos. Os escoceses eram bárbaros. Seqüestravam mulheres e crianças para serem escravizadas ou vendidas. O melhor seria poder contar com muralhas altas, além de cavaleiros armados nas rondas.

— O senhor acha que isso seria o suficiente para deter um bando de escoceses selvagens?

— Em breve esses ataques terminarão. Os arautos do rei Guilherme estão atualmente percorrendo a Nortúmbria, arre­gimentando vassalos para a luta. — Hugh observou as fes­tividades que tinham lugar embaixo, no salão. — O rei foi pessoalmente para o norte e reuniu legiões de cavaleiros no trajeto.

— Ir ao encontro do rei Malcolm em seu torrão natal será uma aventura arriscada.

— Concordo com sua opinião, mas o exército de Guilherme é muito mais numeroso. O mensageiro chegou há uma hora com ordens para que todos os súditos fossem até a foz do rio Tees, onde se encontram reunidos inúmeros navios norman­dos. O rei pretende arregimentar uma grande tropa sob seu comando.

— Até quando?

— Até o final do mês.

Anvrai deu um passo atrás, raciocinando com rapidez. Teria de agir sem perda de tempo. Era preciso organizar os cavalei­ros de Belmere sob seu comando.

— Nada deverá ser feito até amanhã — Hugh segurou ami­gavelmente o braço de Anvrai. — Por ora, concentremo-nos em apreciar a festa no salão nobre.

Anvrai negou com um gesto de cabeça.

— Isso não é para mim.

— Duvido que lorde Osbern o tenha enviado aqui somente para vigiar as ameias, mesmo que o senhor pretendesse fazer uma saída repentina. — Hugh deu um sorriso triste. — O se­nhor é um cavaleiro bastante conhecido e respeitado, apesar de ser tão jovem. Com certeza há uma legião de donzelas que esperam suas atenções.

Anvrai d'Arques ignorou o comentário, certo de que não fora mal-intencionado. Nenhum cavaleiro da Inglaterra ou da Normandia ignorava o aspecto chocante da fisionomia de An­vrai d'Arques. Mesmo os que não o conheciam, teriam ouvido comentários a respeito. O lado esquerdo do rosto dele era mar­cado por cicatrizes, e a órbita vazia que antigamente abrigara um olho causavam repugnância.

Fazia muito tempo que Anvrai aprendera uma lição amarga. Nenhuma jovem, da mais simples à mais atraente, poderia se interessar por ele. A não ser, era evidente, as que visavam uma generosa remuneração.

Qualquer homem poderia apreciar a beleza de uma jovem, sonhar em tocá-la ou mesmo em beijá-la. Se Anvrai tomasse atitude semelhante, seria chamado de ogro. Por esse motivo nunca lhe ocorria participar de danças ou festas.

— O senhor não pretende ir embora, não é? Ouvi dizer que lady Isabel escolherá um noivo esta noite — Hugh comentou. — Ainda teremos muitos brindes para erguer.

Anvrai descontraiu-se um pouco. Hugh tinha razão. Não havia motivo para ausentar-se naquele momento. Viera com ordens de representar Belmere e era o que faria. Deixara a tropa de prontidão, enquanto prestigiava o banquete em honra das filhas de lorde Kettwyck. Para o evento, até vestira uma túnica ricamente bordada. Nunca estivera com tão boa apa­rência como naquela noite.

— Está bem. Ficarei por hoje e amanhã cedo assistirei à missa. Depois irei embora. Tenho muitas incumbências em Belmere. Será preciso organizar tudo para a campanha militar de Guilherme.

— Acredito que lorde Osbern deve ter recebido a mensagem do rei e até já deve ter iniciado os preparativos.

Anvrai concordou. Conhecia lorde Osbern. Quando retor­nasse a Belmere, tudo estaria encaminhado.

— Lady Isabel, a mais velha das irmãs, é encantadora — Hugh comentou, mudando de assunto. — Talvez ela escolha sir Roger para marido, ou então sir Etienne Taillebois. Ambos são rapazes dignos e bem relacionados.

Anvrai deu de ombros. Ouvira dizer que lady Isabel teria permissão de fazer a escolha entre a multidão de nobres que o pai reunira no salão nobre. Por considerar-se um noivo ina­dequado para qualquer jovem, especialmente uma dama tão adorável como Isabel, tivera sorte por ter escapado das aten­ções de lorde Kettwyck. De qualquer forma, pouco lhe impor­tavam os atos das grandes famílias do reino.

Interessava-se muito mais pelas eminentes operações militares do rei Guilherme contra os escoceses. Embora ultima­mente não houvesse participado de nenhuma das batalhas do monarca, sabia que há muito o rei empenhava-se contra os ataques bárbaros dos habitantes do norte.

Anvrai avaliou o céu através da janela. Pareceu-lhe bastante provável contar com boas condições atmosféricas até a manha seguinte, quando empreenderia a volta a Belmere. Se tivesse sorte, o tempo continuaria estável por mais dois dias. Tempo necessário para chegar em casa e partir ao encontro do exército do rei Guilherme no rio Tees.

— Lady Isabel é muito atraente e fará um belo casamento — Hugh considerou. — O senhor estava no salão esta manhã quando ela contava histórias?

— Ah, sim — Anvrai d'Arques respondeu casualmente. E presenciara o interesse com que muitas crianças e um sem-número de adultos haviam acompanhado a história de um herói grego que Anvrai desconhecia. Isabel mudava a in­flexão de voz para cada personagem da narrativa e mantivera os ouvintes encantados.

Durante os trechos engraçados, os olhos cor de mel faisca­vam e os cabelos negros e brilhantes ganhavam vida sob a luz da manhã. Anvrai admitiu ter ficado cativo pela maneira en­volvente com que a formosa lady Isabel encadeara as palavras. Deixara-se levar pelo timbre suave daquela voz e chegara ao absurdo de imaginar que Isabel falava só para ele. Os aplausos entusiasmados haviam quebrado o encantamento. O que fora excelente. Ele não era daqueles que perdiam tempo com frivolidades.

— Milady iguala-se ao mais festejado dos bardos — Hugh alegou. — Se não for mais inventiva de que qualquer um dos poetas heróicos celtas. Ela contou histórias que eu nunca...

De repente, gritos estridentes abafaram a voz de Hugh e também a música. Anvrai desembainhou a espada e correu, lamentando não estar com a cota de malha nem com o escudo.

— Vamos! — Anvrai chamou Hugh.

Eles desceram de dois em dois os degraus de pedra e no patamar intermediário defrontaram-se com cinco escoceses munidos de espadas e escudos. Sem demora, Anvrai atraves­sou o peito do primeiro com a lâmina de folha larga, enquanto Hugh lutava com o segundo. Os três outros atacaram ao mes­mo tempo. Anvrai atirou um banco de madeira na direção deles e atingiu dois. O terceiro foi logo tirado de combate. Quando os dois desfalecidos se recuperaram e investiram con­tra Anvrai, Hugh veio em seu auxilio. Juntos, mataram os dois remanescentes e desceram o outro lance de escada rumo ao salão.

— Por onde eles entraram? — Anvrai quis saber.

— Deve ter sido pela muralha meridional, a única que real­mente não oferece resistência.

Anvrai murmurou uma imprecação. Eles viraram à esquer­da e tiveram de enfrentar mais dois escoceses. Aquela não era a única passagem vulnerável. A fortaleza e varias construções externas encontravam-se inacabadas. Ele e Hugh combateram os dois guerreiros. Anvrai estava aflito para alcançar o salão nobre. Era ali que os bárbaros estavam cometendo as maiores calamidades. Matavam quem ousasse defender-se e levavam os que poderiam aproveitar como escravos.

Anvrai e Hugh percorreram uma galeria lateral antes de chegar ao salão. Ali estavam crianças, mulheres aterrorizadas e as pessoas idosas demais para lutar. Gritos estridentes cortavam o ar por todos os lados. O caos se instalara.

— É preciso ir até o pátio — gritou Hugh. — Não vejo lady Isabel e sir Roger por aqui. Eles estão desprotegidos.

Anvrai teria de abrir caminho entre a multidão que se con­centrava no salão nobre, reunir o maior número possível de cavaleiros e rumar para o pátio. E no momento que lá chegasse, seria bem provável que os agressores já houvessem matado Roger e levado Isabel.

Os invasores, inclementes, haviam chegado às ameias do anteparo do torreão, de onde atiravam flechas para atingir os cavaleiros normandos que lutavam para defender o castelo-forte. Anvrai viu o pai de Roger cair. Porém, cercado por todos os lados, nada pôde fazer para ajudar o homem.

— Ao pátio! — Hugh insistiu.

Anvrai deu um golpe fatal no abdômen de um dos oponen­tes dianteiros, mas foi atacado por trás. Sentiu no ombro des­protegido a ponta de uma espada escocesa. Experimentou uma dor lancinante, mas não se deteve. Virou-se e combateu o mais novo agressor, enquanto recuava em direção ao pátio.

Quanto mais demorasse, pior seria. Os escoceses não hesi­tariam em capturar um prêmio tão encantador quanto lady Isa­bel. Vira várias jovens, a maioria delas servas, serem levadas pelos desvairados.

Anvrai conseguiu impedir o rapto de muitas mulheres e deu-lhes a oportunidade de fugir, porém os cavaleiros norman­dos estavam em menor número e tinham sido apanhados de surpresa. A patrulha de lorde Kettwyck falhara. Os convidados não usavam armadura e tinham sido feridos. Os escoceses ven­ciam a batalha de Kettwyck e retiravam-se com todos os itens de valor que podiam carregar. Ateavam fogo no que deixavam para trás, acrescentando ainda mais pânico à confusão reinante. Ferido e sangrando, Anvrai deixou o salão e foi combater do lado de fora do castelo. Os escoceses retardatários riam e provocavam os normandos derrotados. Embora o linguajar de­les fosse ininteligível, o tom de ameaça era bem claro. Os invasores proclamavam a vitória e caçoavam dos opositores normandos.

A ofensiva final foi o incêndio da estrebaria, com muitos cavalos presos no seu interior. Os escoceses haviam roubado tudo o que lhes interessava e destruído o restante.

Anvrai não viu sinal de Isabel nem de Roger. Por um ins­tante, considerou o que poderia acontecer àquela formosa don­zela. Seria um destino terrível para qualquer jovem inocente, independentemente de ser bela ou não. Suspirou, arrasado. Nada mais poderia ser feito. Isabel sumira.

— Eles foram para as colinas, sir! — um dos cavalariços gritou. — Os desgraçados atearam fogo em tudo e debandaram como ladrões miseráveis que na verdade são!

Anvrai não perdeu tempo. Em meio a cavalos apavorados pelas chamas e cavalariços que as combatiam com baldes de água, selou um garanhão de bom aspecto. Ordenou a vinte cavaleiros que fizessem o mesmo e liderou a comitiva que galopou atrás dos atacantes. Determinado, jurou a si mesmo que faria o que estivesse a seu alcance para resgatar a noiva de outro homem.

 

Isabel Louvet, a moça criada no convento de St. Marie, foi atirada no chão sem a menor cerimônia, como se fosse u saco de grãos. Rastejou até onde se encontrava Roger. O rapaz fora amarrado e deitado de costas em uma carroça, em meio a mercadorias roubadas pelos vitoriosos. Isabel reconheceu que, nem nos recônditos mais férteis de sua imaginação cria­tiva, poderia ter inventado uma história tão selvagem de ma­tança e crueldade. Agressores escoceses haviam invadido o castelo de seu pai, vindos de todos os lados, matando quem ousasse fazer-lhes oposição. Perdera o fôlego diante de tama­nha carnificina.

— Sir Roger! — Isabel gritou e foi puxada pelos cabelos.

Levou uma bofetada do atacante. Sentiu a vibração nos den­tes e seus lábios ficaram inchados. Engoliu em seco e escutou o homem vociferar palavras estranhas e violentas. Aturdida com a rudeza do tratamento, encolheu-se e protegeu a cabeça com as mãos. Não fora preparada para acontecimentos dessa espécie, durante os anos em que permanecera na abadia de St. Marie. Os escoceses a matariam se ela lhes causasse proble­mas. A seu redor, escutava sons abafados de gemidos, mas naquela escuridão pouco se podia enxergar. Apenas alguns olhares apavorados que certamente eram semelhantes ao dela.

O pobre Roger fora duramente atingido na cabeça. Nem tivera a oportunidade de puxar a espada da bainha. Desacor­dado, fora arrastado em direção à muralha do castelo-forte. Um dos atacantes a atirara sobre o ombro e a jogara sobre o lombo de um cavalo, antes de disparar rumo às colinas.

Isabel não se entregava com facilidade. Lutara, desesperada, para libertar-se. Socara as costas de seu captor e berrara sem parar. Em vão. Sem lhe dar a menor importância, os bandidos empreenderam desabalada carreira por cerca de uma hora, an­tes de fazer uma parada em um pequeno matagal no alto de um cômoro, ao norte do castelo de seu pai. Era ali que conti­nuavam esperando.

No silêncio, Isabel escutou o tropel dos cavalos nos cami­nhos abaixo deles. Abriu a boca para gritar um aviso, mas foi atirada ao chão, onde lhe puseram uma mordaça. Enquanto lhe amarrava o trapo sujo na boca, o homem sussurrava pala­vras estrangeiras, mas de sentido inconfundível. Isabel estre­meceu, enojada.

O imbecil se deitou sobre ela, impedindo-a de mover-se. Respirar ficava cada vez mais difícil. E Isabel nada podia fa­zer, enquanto os outros esperavam, emboscados, pelos normandos que vinham resgatá-la.

 

Algum lugar da Escócia, Uma semana depois

Anvrai não desperdiçou forças com ataques de ira ou com imprecações. Nem com preces.

Tinha uma tarefa para cumprir e seu futuro dependia do sucesso dessa realização. Virou a cabeça para a direita. A al­gema pesada de ferro que lhe segurava o pulso estava amarrada a uma corrente grossa. Esta, por sua vez, era presa em um toco de ferro robusto enfiado bem fundo no chão. O outro braço e as duas pernas estavam presos da mesma maneira.

Assim mesmo, teria de escapar. De qualquer jeito. Era o único pensamento que o mantinha alerta.

Sentia frio. O sal do suor fazia arder os ferimentos conseqüentes aos maus-tratos que lhe haviam impingido. Não con­seguia lembrar-se de quando fora torturado pela última vez, nem há quantos dias era prisioneiro desses bárbaros do norte.

Sacudiu as correntes que o amarravam. O ato simples de revolta resultou em um pontapé violento nas costelas por parte de um de seus captores. Anvrai achou melhor ficar imóvel e continuar impedindo a irritação. Nunca se sentira tão impo­tente, tão derrotado.

Nem mesmo sabia onde se encontrava. Se não houvesse sido designado para ir ao castelo de Kettwyck...

Se houvesse ido diretamente ao encontro do exército do rei Guilherme no rio Tees...

Se...

Há quantos dias, ou semanas, acontecera a comemoração pela chegada das filhas de lorde Kettwyck ao castelo? O nú­mero de cavaleiros de Kettwyck mortos durante o ataque à fortaleza fora muito grande. Por isso coubera a Anvrai d'Ar­ques, um visitante, a incumbência de liderar a perseguição aos escoceses que haviam seqüestrado Isabel e seu pretendente, sir Roger.

Os cavaleiros de Kettwyck haviam seguido a pista com mui­to cuidado e sem fazer ruído. Providências inúteis. Os esco­ceses esperavam às escondidas no meio de uma mata cerrada e caíram sobre os normandos de todos os lados. Pularam até mesmo de cima das árvores. Anvrai e seus homens, em mi­noria, foram dominados com facilidade.

Anvrai nem mesmo sabia se algum dos cavaleiros de sua pequena tropa estava vivo. A única lembrança era ter caído em uma emboscada e ter sido aprisionado em seguida.

Sentia dores por todo o corpo, mas acreditava que estivesse com apenas uma costela quebrada. Dos vários ferimentos re­sultantes da agressão violenta a que fora submetido, o do om­bro parecia-lhe em pior estado. Infeccionara e causava-lhe febre intermitente. Recordava-se vagamente de ter sido arremes­sado dentro de uma carroça de madeira tosca e em seguida acorrentado. Mas ignorava para onde fora levado e o que acon­tecera com Isabel e os demais prisioneiros.

O fato de não ter sido assassinado pelos escoceses, e opor­tunidades para isso não haviam faltado, tinha um significado provável. Eles pretendiam vendê-lo para algum chefe de clã que precisasse de braços fortes. Anvrai contava apenas com uma vista, mas tinha tamanho e força superiores à maioria dos homens. Os agressores deviam ter decidido que o trabalho de capturá-lo teria de ser recompensado pelo preço que obteriam pelo prisioneiro. Ou talvez apenas quisessem exibir um troféu da grande vitória contra os normandos.

Com muito custo, Anvrai levantou a cabeça e olhou de sos­laio para os arredores. Tentou adivinhar onde se encontrava e se aquele seria o destino final do trajeto. Ou se continuariam a viagem ao amanhecer. Por causa da febre e dos calafrios, tivera períodos de insônia desde o ataque a Kettwyck. Mesmo assim, não tinha certeza do que acontecera após sua captura. Tinha uma vaga idéia de uma travessia por mar.

Teria sido um sonho? Estariam ainda na Grã-Bretanha? Ou teriam ido para a costa irlandesa?

Não havia como saber se Isabel ou Roger se encontravam com ele. Tinha esperança de que não estivessem. O máximo que Anvrai podia almejar era escapar dali. Não desejava ser responsável pela donzela nem pelo jovem cavaleiro.

Era provável que Isabel de St. Marie já houvesse sido ven­dida. Era, sem comparação, a jovem mais atraente que Anvrai já conhecera. Tinha cabelos negros e brilhantes, olhos cor de mel emoldurados por cílios espessos e escuros. Tivera a gen­tileza de fitá-lo de passagem, sem se mostrar chocada pelo rosto deformado por cicatrizes. Quem o via pela primeira vez demonstrava, pelo menos, assombro. Apesar da familiaridade da reação que causava nas pessoas, Anvrai nunca se acostu­mara. De qualquer forma, nada poderia fazer por Isabel. Cada um deles teria de sobreviver como pudesse.

Havia escurecido quase por completo. Um dos guardas sol­tou a mão esquerda de Anvrai para que o prisioneiro pudesse comer uma côdea de pão que fora jogada a seu lado e beber água de uma caneca de barro deixada no chão imundo. Era apenas o suficiente para manter vivo um homem do porte de Anvrai d'Arques.

Quando mudou de posição para comer, a dor da costela partida e do ombro ferido espalhou-se pelo peito como se fosse causada por uma lança incandescente. Porém Anvrai já supor­tara sofrimentos maiores. Treinara exaustivamente para igno­rar tais desconfortos e aquelas chagas não constituíam uma exceção. Com uma das mãos soltas, seria capaz de soltar as outras algemas e libertar-se. Mas o sentinela mantinha vigi­lância estreita. Assim que Anvrai começou a puxar a corrente, o escocês pisou-lhe no pulso e imobilizou-o.

Anvrai recusava-se a acreditar que nada poderia ser feito. Embora sua energia normal estivesse diminuída por causa dos ferimentos, haveria de aparecer uma oportunidade para agir. Anvrai a aproveitaria sem hesitar, assim que seus captores diminuíssem os cuidados em algum momento. Tinha certeza de que teria força para arrancar as correntes do chão e libertar as mãos. Uma vez soltas as algemas de metal, os escoceses sangui­nários não o venceriam.

 

Lady Isabel de St. Marie recusava-se a ceder ao medo. Não sobrevivera àqueles últimos sete dias para depois entregar-se.

Ela e Kathryn haviam deixado a abadia de St. Marie e Rouen e enfrentado os rigores da viagem para chegar à propriedade do pai na Grã-Bretanha. Haviam suportado um sem número de dificuldades para rever os pais. Mas nada se comparava aos tormentos que tiveram de confrontar depois do ataque ao castelo de Kettwyck. Inúmeras pessoas haviam morrido e Isabel nem queria pensar no que teria acontecido com sua irmã e com seus pais.

Jurou a si mesma que não deixaria nenhum bárbaro violen­tá-la. Haveria de encontrar uma maneira de libertar-se das gar­ras desses escoceses miseráveis e fugir para bem longe. Os agressores brutais haviam se desentendido a respeito dela. De­pois de agarrá-la, haviam lhe rasgado as roupas. Mas Isabel tivera a sorte de contar com a intervenção do líder deles, um gigante de barba ruiva. Gritando, impediu-os de infligirem maiores sofrimentos à prisioneira. O chefe nem mesmo tentara se aproveitar dela.

Nem chegara a abordá-la com atrevimento. Apenas dissera palavras ríspidas, ao perceber seus movimentos mais lentos, devido à exaustão, que condenavam o excesso de mimos, e ordenara para ela continuar a marcha interminável rumo a norte. Era evidente que a salvaguardava com um propósito em mente.

Isabel receava até supor quais seriam esses objetivos.

Prestara bastante atenção ao trajeto que haviam feito e sabia em que direção se encontrava o castelo de Kettwyck. Roger não fora gravemente ferido, pois nem mesmo tivera oportuni­dade de lutar quando fora capturado. Os agressores não o tor­turaram em excesso. Ao contrário do que haviam feito com Anvrai d'Arques, que fora acorrentado no meio do cercado para animais.

Isabel estava certa de que o infeliz cavaleiro sofria com algumas costelas quebradas. Não podia imaginar a extensão dos ferimentos de Anvrai, porém notara a roupa manchada de sangue. Na cabeça havia um corte horrível de onde partia uma trilha de sangue coagulado e sujo de terra, cobrindo o olho cego. Os lábios estavam rachados e descascados. Notava-se que os atacantes pretendiam enfraquecê-lo fazendo-o passar fome.

Apesar das condições precárias da saúde de Anvrai, não havia como duvidar que os algozes o temiam. Ela e Roger tinham sido atados a uma cerca de madeira com fitas de couro. Anvrai fora preso com correntes, os braços e as pernas seguros no chão com escoras. Isso tudo apesar da debilidade de suas condições físicas e de ele estar desarmado. Somente um mi­lagre poderia fazer com que Anvrai d'Arques causasse algum malefício aos escoceses.

Seis outros prisioneiros os acompanharam de início. Feliz­mente nem Kathryn nem seus pais se encontravam entre eles. Amarrados uns aos outros com cordas, haviam tropeçado mui­tas vezes no solo irregular por onde andavam descalços. Hos­tilizados e castigados de maneira ininterrupta durante vários dias, chegaram a um grande lago, ocasião em que os cativos tinham sido separados.

Lady Isabel, sir Roger e sir Anvrai tinham sido jogados em um barco que os trouxera até onde se encontravam no mo­mento. Os demais foram levados para longe, rumo a um destino desconhecido.

Ovelhas pastavam nas colinas que rodeavam a aldeia que se avistava ao longe. Pequenos barcos de vime recobertos de couro estavam ancorados na praia. Seria um belo cenário de pôr-do-sol, se não fosse a multidão de homens e mulheres que haviam deixado as choupanas para zombar deles pelas fendas das jaulas de madeira onde tinham sido presos. Quando olhavam para Anvrai, os comentários se intensificavam, como se soubessem da luta feroz que ele empreendera contra os captores.

Fora impressionante. Isabel nunca vira nada que se compa­rasse à intrepidez de sir Anvrai em uma batalha. Com uma espada, ele derrotara tantos agressores que Isabel perdera a conta. Anvrai d'Arques apenas sucumbira quando tivera de enfrentar quatro de uma só vez e um deles conseguira laçar-lhe as pernas com uma corda. Caíra como um tronco vigoroso de carvalho e levara dois atacantes junto com ele. Fora espancado brutalmente até o líder de barba ruiva resolver interrompê-los. Apesar da surpresa de não o terem matado, Isabel entendeu, que Anvrai fora poupado com algum propósito definido.

Assim como acontecera com ela. O estômago se contraía ao pensar no que viria a seguir. Ouvira falar de muitas mu­lheres que haviam preferido a morte, a perder a virgindade em mãos de carniceiros. Isabel nem mesmo sabia se encontraria coragem para morrer por sua virtude. Não se imaginava pu­lando na correnteza de um rio, de um precipício, ou enterrando uma arma no peito. Aliás, os escoceses não a deixariam nem chegar perto de uma faca de cozinha.

Estava encurralada e não havia escolha. Teria de submeter-se. Não entendia por que Hugh não viera resgatá-la.

Ele comandava os cavaleiros de Kettwyck. E fora sir Anvrai quem os liderara no combate. Piscou para afastar as lágrimas ao pensar no que poderia ter acontecido ao principal auxiliar de seu pai. Procurou nem imaginar qual o destino de sua irmã mais nova e de seus pais. Passava os dias rezando para que pudessem ter escapado do inimigo, hipótese pouco provável.

Seria preciso um milagre ou um plano mirabolante para ela mesma poder fugir dos atacantes e voltar a Kettwyck.

Desesperada, soluçou. O que entendia de estratégias e pla­nos? Ela apenas pretendera tornar-se uma freira, desejo que fora proibido por seu pai. Sem filhos do sexo masculino, sir Henri deixara claro que desejava herdeiros através das filhas.

Ele próprio escolhera um marido para Isabel. Um nobre com grande influência na corte do rei Guilherme. Lorde Bernard de Maubenc era um homem poderoso e rico, mas intei­ramente inaceitável sob o ponto de vista de Isabel. Ela jamais suportaria um brutamontes grosseiro que tinha a idade para ser seu pai. Se fosse obrigada a casar-se, o marido teria de ser gentil e jovem. E mais. Seria preciso que soubesse valorizar-lhe a alma sensível. Afinal, vivera num mosteiro desde a in­fância. Até por isso a chamavam de Isabel de St. Marie. Para ela os homens eram uma incógnita.

Após muita insistência, o pai concordara em permitir-lhe a escolha do marido.

Naquela altura, nada mais importava. Era improvável que ela e o belo sir Roger voltassem a Kettwyck, a menos que um deles conseguisse elaborar um belo estratagema de fuga.

Se estivesse no castelo, sentada diante da enorme lareira e entretendo os familiares com uma história a respeito de um ataque escocês onde uma donzela normanda fora capturada, qual seria o final? O atraente sir Roger seria o herói que a salvaria do destino nefando que a aguardava? Praticamente impossível. Roger jazia inconsciente no chão, com os punhos amarrados em uma estaca.

Um ligeiro movimento do outro lado chamou-lhe a atenção. Uma das mãos de Anvrai estava livre. Ele puxou devagar as correntes que o atavam. Em vão. Isabel suspirou. A salvação também não viria dali. Ela mesma teria de libertar-se.

Tinham sido trazidos para o norte, atravessando várzeas e colinas íngremes. Isabel tinha certeza de que poderia encontrar o caminho de volta, caso conseguisse escapar. Escurecera. Fi­tou as amarras de couro que a prendiam no pilar de madeira. Já ferira os pulsos em conseqüência das inúmeras tentativas de tirá-los do que os prendia.

De repente, fez-se um silêncio ameaçador. Os aldeões ca­laram-se com a aproximação do líder ruivo e barbado. Isabel ergueu-se sobre os joelhos. O chefe viera com outro homem, este com cabelos negros. Ela sentiu a pele arrepiada ao ver como os dois a miravam.

O segundo também usava barba e tinha um olhar penetrante que pareceu despi-la. Ele vestia calça justa de lã e uma túnica de pele que lhe deixava o peito e a barriga protuberante descobertos. Nos braços grossos, trazia pulseiras de aço trabalhado.

Isabel se enganara. O chefe do clã ou da aldeia era o mo­reno. Ele transpirava confiança e poder.

As mulheres que não paravam de rir haviam sumido, à en­trada dos dois homens no recinto cercado. Isabel ergueu o queixo e endireitou os ombros. Afinal de contas, era a filha do barão Henri Louvet e afilhada da rainha Mathilda. Não seria acuada por aqueles bárbaros.

O homem moreno segurou-lhe os cabelos e dobrou-lhe o pescoço para trás. Isabel não conseguiu evitar um grito. O camarada falou com o homem ruivo que sacudiu a cabeça e respondeu no idioma deles.

Os olhos de Isabel lacrimejaram por causa da dor no couro cabeludo. O homem a segurava com muita força. Se ela se movesse, ele poderia arrancar-lhe os cabelos pela raiz. Ele acariciou-lhe o pescoço e os ombros. Em seguida apertou-lhe os seios. Isabel cerrou os dentes e suportou a indignidade em silêncio. Mas quando ele levantou-lhe as saias, Isabel atingiu-o com um pontapé.

O bárbaro atirou a cabeça para trás e gargalhou, deixando à mostra dentes escuros e corroídos. Ele a soltou de repente e Isabel caiu para trás. Ela ignorou a dor dos pulsos e da cabeça e fitou Roger à procura de ajuda. Ele continuava inconsciente do outro lado do cercado.

Anvrai voltara a ficar imóvel. Isabel perguntou-se se o ato fora intencional para não chamar atenção. Ou Anvrai poderia estar morto. Oh, Deus! Lágrimas lhe toldaram a visão e o queixo começou a tremer. Não posso chorar! Isabel piscou várias vezes, inspirou fundo, tornou a sentar-se e não deu maior atenção aos dois homens que discutiam a seu respeito.

O ruivo curvou-se para cortar as tiras que a prendiam, mas o moreno impediu-o de executar a tarefa. Aparentemente con­cordara com o preço do ruivo e deixou várias moedas na mão engordurada do outro.

Lady Isabel Louvet, de St. Marie, compreendeu que acaba­va de ser vendida como escrava.

Mordeu o lábio para conter a humilhação. Conseguiu manter-se impassível enquanto o homem ruivo se afastava, depois de enfiar na algibeira as moedas recém-ganhas.

Em seguida avaliou todas as possibilidades que teria para matar o Barba Negra, como o chamaria agora.

Anvrai tentou virar a algema para os lados, apesar da dor e do sangramento nos pulsos. Procurava esticar a mão para a frente ao máximo. Empenhava-se na tentativa de segurar a corrente que o mantinha preso no chão. A distância era muito curta e o efeito alavanca, pequeno. Mas era preciso tentar qual­quer coisa.

Os malfeitores haviam levado Isabel com eles e o mais ig­norante dos soldados conhecia o significado de tal atitude.

Quando ela fora retirada do cercado, pela primeira vez An­vrai a observara com atenção. Nem mesmo sabia por que ficara tão chocado com a aparência da jovem nobre e bela.

Ela se encontrava desarrumada e suja. Os cabelos negros caíam pelas costas em grumos desordenados. A saia externa de seda fora arrancada. A jovem permanecera vestida apenas com o camisão tênue e a anágua rota. Os poucos detalhes não visíveis do corpo esbelto eram facilmente imagináveis.

Descalça e com as mãos amarradas para trás, tropeçou no piso irregular enquanto era empurrada para a frente pelos es­coceses. E Anvrai nada pudera fazer.

Também não lhe agradaria responsabilizar-se por Isabel. Uma coisa era lutar, homem contra homem, em defesa da pá­tria ou de uma propriedade. Essa outra se tomaria uma batalha particular e poderia causar-lhe sofrimento moral. O dever para com ela era muito semelhante à incumbência que o pai lhe dera antes de morrer, há muitos anos.

Anvrai não fora capaz de proteger a mãe e a irmã que ti­veram morte horrível. Os escandinavos haviam destruído a propriedade de sua família. Assassinaram seu pai e todos os que se opuseram à pilhagem. À beira da morte, Alain d'Arques mandara o jovem Anvrai levar a mãe e a irmã para um escon­derijo. Os três foram apanhados pelos assassinos bárbaros.

Seria melhor esquecer aquelas lembranças. Ele sobrevivera. E escaparia dos atacantes mais uma vez. Com ou sem Isabel. Frustrado, puxou a corrente com toda a força que conseguiu imprimir ao pulso que latejava por causa dos ferimentos. No entanto, era preciso maior cautela para não fazer ruído e não alertar os sentinelas que haviam permanecido de guarda. Fe­chou a mão sobre a corrente para evitar que os elos choca­lhassem e puxou com a energia que lhe restava.

A peça foi movida ligeiramente. Se conseguisse arrancá-la do chão, seria mais fácil fazer o mesmo com a outra mão. Mas também seria possível que os soldados notassem os movimen­tos estranhos.

Se pudesse usar as correntes soltas dos braços como armas, teria uma boa vantagem sobre os guardas.

A pouca luz do entardecer favoreceu Anvrai. Precisava li­bertar-se antes de que os guardas acendessem as tochas e per­cebessem o que se passava. Ainda não vira Roger, mas era bastante provável que o cavaleiro estivesse por perto. O man­cebo poderia estar inconsciente, deitado a uma certa distância. Por causa do olho cego, Anvrai poderia não tê-lo visto.

As pedras grosseiras do chão feriam os pés descalços de Isabel. O algoz a empurrava com brutalidade, enquanto dei­xavam para trás várias cabanas de madeira. Para evitar que o pavor a paralisasse, Isabel observava cada choça e tomava nota dos menores detalhes. Baldes, carroças, animais e montes de peles.

Ninguém viria em seu socorro. Roger e Anvrai não se encontravam fisicamente aptos, além de estarem muito bem amarrados. Não adiantaria esperar por nenhum herói que vies­se resgatá-la. A situação delicada não fazia parte de uma his­tória fantasiosa contada no solário de sua mãe ou no salão nobre do pai. Isabel estremeceu com a idéia do que lhe fora destinado. Suportar todas as iniqüidades que o tirano resolves­se impingir-lhe.

A maior habitação da aldeia era uma grande cabana de ma­deira com duas janelas fechadas, telhado de colmo e uma porta de madeira reforçada. Isabel desconfiou que era onde o chefe do clã, o Barba Negra, a esperava.

Ao lado da porta, dois escoceses espadaúdos montavam guarda, munidos de lanças. Eles sorriram com malícia e tece­ram comentários em voz baixa. Quando os dois começaram a rir alto, Isabel não hesitou mais. Virou-se e correu.

Isabel tentou despistá-los, com a vantagem da surpresa. Dis­parou para o lado e rodeou a moradia. Teve esperança de que a velocidade impedisse os captores de a alcançarem. Uma ou­tra hipótese seria distrair todos para que Roger e Anvrai tives­sem oportunidade de escapar.

Mas aquela era um suposição irracional e Isabel teve de abandoná-la. Deteve-se no único pensamento que lhe impor­tava no momento: fugir. Sentiu-se nauseada ao recordar a ima­gem daquele bárbaro estendendo os dedos gordos para tocá-la. Isabel, correndo com as mãos amarradas às costas, não ou­viu os gritos atrás de si, nem sentiu dor nos pés feridos. Con­tinuou o trajeto desesperado para a frente, em direção às co­linas, onde as ovelhas pastavam pacificamente no lusco-fusco do entardecer. Não pensava para onde iria. Só queria afastar-se daquela aldeia... e do destino que a aguardava.

De repente uma dor aguda na planta do pé a fez desequili­brar-se e cair. Tentou levantar-se. Uma tarefa muito difícil para quem estava com as mão atadas. Rolou para o lado e procurou ficar em pé. Mas foi agarrada com rudeza e levantada de uma só vez.

Um homem jogou-a no ombro e Isabel gritou, desesperada. A posição impedia-a de respirar e machucava-lhe os braços. Alguém lhe deu um soco. Isabel mordeu os lábios para não gritar de novo. Ninguém a ajudaria e ela mesma nada podia fazer.

O grandalhão carregou-a para a moradia do chefe do clã e jogou-a sobre um monte de peles ao lado do fogo. Os homens conversaram com o líder e usaram palavras ásperas. Na certa revelavam a ousadia da prisioneira que tentara fugir. Isabel conseguiu ficar de joelhos e avaliou o grande recinto. A ilu­minação era feita com velas de sebo e o cheiro delas espalha­va-se pelo ambiente. Restos de uma refeição gordurosa esta­vam sobre uma mesa situada em um dos cantos. Ao lado dos ossos descartados, uma pequena faca.

Isabel afastou o olhar da lâmina e abaixou a cabeça. Os cabelos caíram para a frente e cobriram as laterais do rosto. Se ela não fitasse o objeto, o sujeito poderia esquecer que deixara ali a faca. Seria fácil apossar-se do objeto que poderia servir de arma, se conseguisse distrair o Barba Negra por al­guns minutos.

Antes de mais nada, teria de fazer com que ele cortasse as cordas que lhe prendiam os pulsos. Ele teria um punhal no cinto? Isabel observou-o de maneira disfarçada e a resposta foi positiva. O homem tirou a espada da bainha depois de despedir os sujeitos que a haviam trazido e fechar a porta. Isabel engoliu em seco. Haviam ficado a sós. Ele se voltou e falou com ela.

Isabel procurou virar-se e ficar em pé. Mexeu os braços e os pulsos atados.

— Solte minhas mãos — ela pediu.

Apesar da voz trêmula — o que a desgostou — e de saber que ele não a entendia, Isabel teve certeza de que ele com­preenderia sua pretensão. Barba Negra deu alguns passos em sua direção e Isabel esforçou-se para não tremer. O sujei­to, um gigante, deteve-se, soltou o cinto e deixou a calça cair no chão.

Isabel cerrou os lábios para não gritar diante da exuberância da masculinidade que ele exibia, orgulhoso. Apesar de ingênua em muitos aspectos, tinha certeza do que aconteceria naquele recinto, se não tomasse alguma providência.

Inspirou fundo e desviou o olhar do que a ameaçava. Pre­cisava manter a compostura, se desejava vencer o chefe esco­cês pela astúcia e apoderar-se da faca.

Passou a língua nos lábios e percebeu que ele se inflamava ainda mais, como se isso fosse viável.

— Eu não lutarei mais e procurarei colaborar no que for possível — Isabel assegurou, como se ele pudesse entendê-la. Seu objetivo era manter uma calma aparente, sem demons­trar medo nem repulsa. Se não o enfrentasse com rebeldia, talvez ele a libertasse das cordas. Era preciso não perder a esperança de que ele ficasse desprotegido por alguns instantes. O suficiente para ela agarrar a faca.

Isabel sentiu as pernas trêmulas, quando ele chegou mais perto. O escocês tirou o punhal do cinto. Isabel prendeu a respiração. Barba Negra segurou as cordas e cortou-as de um só golpe.    

As mãos inertes penderam dos braços doloridos. De ime­diato foi impossível mexer um só dedo.

Isabel virou-se e sorriu, trêmula.

— Obrigada.

Ela não era versada na arte da sedução, mas teria de imitar os flertes que presenciara em Kettwyck entre criadas e cava­lariços, entre damas e cavaleiros. Testemunhara várias vezes o cortejar que envolvia rituais com que homens e mulheres procuravam atrair o interesse do futuro parceiro. Apesar disso nunca imaginara o que se escondia sob o calção dos rapazes nem que aquilo pudesse ser empregado como arma.

Isabel recuou alguns centímetros rumo à mesa. O Barba Negra seguiu-a. Ele tornou a falar, mas ela se concentrou em seu objetivo. A custo de um grande esforço para não vomitar, levantou uma das mãos e afastou-lhe os cabelos da testa, à guisa de carícia. Precisou de toda a sua força de vontade para não retroceder. O juba do sujeito era áspera e imunda. Isabel passou a palma nos cabelos enrolados.

Era imprescindível encantá-lo. Fazê-lo esquecer tudo, exceto que a desejava.

Lentamente, Isabel tocou no decote do próprio camisão e segurou o cordão fino que mantinha a peça no lugar. Mais um passo para trás e conseguiria alcançar a beira da mesa.

— Espero que não tenhamos de levar isso a extremos — ela sussurrou, ao agarrar a faca com a mão livre.

Desamarrou a corda delgada com vagar. Antes de o corpete cair, o Barba Negra investiu.

 

Já era quase noite fechada. Anvrai sentou-se e puxou a úl­tima estaca que o mantinha preso ao chão. Não deu a menor importância à dor no peito nem ao latejar pungente de sua cabeça. Com as mãos e pés soltos, não teria dificuldade em dominar os guardas escoceses. Só havia um deles de prontidão.

O guerreiro inimigo puxou a espada e atacou-o de imediato. Anvrai rolou de lado e ficou de joelhos. Não parava de girar as correntes ainda amarradas nas algemas. Os anéis de ferro chocaram-se com a espada e a arrancaram da mão do homem. Sem perda de tempo, Anvrai d'Arques acertou o camarada en­tre o tórax e o abdômen com uma das correntes, derrubando-o. Antes que o sentinela se erguesse, Anvrai levantou-o pela túnica e, segurando os elos pesados de ferro no punho fechado, socou-o. O homem não conseguiu defender-se dos golpes des­feridos por Anvrai.

A dor de cabeça tornara-se insuportável. Anvrai teve de fazer um esforço para ficar em pé no meio do cercado. Fixou o olhar na aldeia. Teve a impressão de que um tumulto estava em andamento. Talvez essa tivesse sido a razão de terem dei­xado apenas um guarda para vigiar Roger e a si próprio.

Roger estava inconsciente, ou quem sabe adormecido, e suas mãos tinham sido amarradas a um mourão da cerca. Anvrai aproximou-se dele e cutucou-o com o pé. O rapaz não reagiu. Anvrai agachou-se e cortou as amarras de couro que o prendiam ao toco, mas o repentino som de gritos vindos da aldeia fez com que se levantasse de imediato. Eram de Isabel.

Anvrai esqueceu as pontadas na cabeça e a tontura. Largou Roger e pulou sobre a cerca alta, carregando a espada que tirara do guarda. O caminho era escuro, mas algumas tochas iluminavam a aldeia. Ele foi naquela direção, usando as árvores e as touceiras para esconder-se. Caminhou o mais depressa que pôde, evitando expor-se. Ao chegar perto da primeira ca­bana, o cheiro penetrante de fumaça queimou-lhe a garganta. Uma das construções estava em chamas. Anvrai apressou-se até o centro do povoado e andou colado às cabanas e qualquer outra estrutura que servisse para escon­dê-lo. Não foi difícil ficar fora da vista de todos em meio à confusão que fora instalada no vilarejo. O incêndio era em uma cabana grande que ocupava a parte central do lugar. Ho­mens e mulheres corriam com baldes e jogavam água sobre as chamas.

Anvrai estreitou o olho sadio e procurou sinais da presença de Isabel em meio à balbúrdia. Ela poderia estar presa dentro da cabana...

Uma das venezianas de madeira dos fundos da construção foi aberta e uma nuvem de fumaça escapou pela janela. Alguns instantes depois, Anvrai viu um rosto... o de Isabel.

Ela tossia, engasgada pela falta de ar. Atirou para fora um monte de peles de animais e pôs as pernas sobre o parapeito.

Anvrai segurou-a, antes que ela atingisse o solo.

— Sir Anvrai! — Isabel gritou, surpreendida. — O senhor está...

— Conversaremos mais tarde — ele a interrompeu. — Milady está bem?

Isabel, pálida e parecendo perturbada, fitou-o com olhar ar­regalado e anuiu com um gesto de cabeça. No rosto, um grande hematoma. O lábio inferior estava descolorido e inchado, o camisão fino, sujo e rasgado. Anvrai conteve o desejo intenso de entrar na cabana e agredir a socos quem a maltratara. Teve esperança de que o homem do lado de dentro morresse quei­mado ali mesmo, antes de arder nas chamas do inferno.

Anvrai cerrou os dentes e virou Isabel para a direção de onde ele viera. Gostaria de fugir de imediato, mas era preciso voltar, aproveitando a vantagem de todos estarem azafamados por causa do incêndio. Depois de pegar Roger, teriam de en­contrar um esconderijo.

— Vamos! Não podemos perder tempo.

— Espere. — Isabel abaixou-se para reunir os objetos que haviam caído das peles. Deu a ele uma faca e uma panela, e pegou o resto.

— Deixe isso — Anvrai aconselhou-a. A faca poderia ser útil, mas a panela e os demais pertences somente atrapalhariam a velocidade da fuga.

— Nós... poderemos precisar disso...

Anvrai não perdeu tempo com discussões. Saiu à frente. Era responsável por Isabel, mas se ela não se apressasse, não poderia garantir-lhe a segurança.

Isabel mancava bastante, mas não se queixou durante a cor­rida até o local onde Roger estava deitado. Entraram no cer­cado por um portão de madeira. Isabel apressou-se até perto do jovem cavaleiro e ajoelhou-se a seu lado.

— Ele está... ele está vivo?

— Pelo menos estava, quando o deixei.

Isabel sacudiu o futuro marido levemente pelos ombros, mas não obteve resposta.

— Sir Roger! Roger! — Isabel chamou-o, insistente. — Sir Roger, precisamos sair daqui!

O único sentinela que ficara para cuidar dos presos ainda estava desmaiado por causa dos golpes que recebera de An­vrai. O tempo urgia. O homem logo acordaria e daria o alar­me. Para sorte deles, o fogo se alastrava. Isso aumentava as possibilidades de fuga enquanto os aldeões lutavam contra as chamas.

Um gemido débil escapou pelos lábios do cavaleiro incons­ciente. Anvrai abaixou-se sobre um dos joelhos, levantou o rapaz nos braços e jogou-o sobre o ombro. Estremeceu com a dor do lado, mas concluiu que não se tratava de uma costela quebrada. Embora o ferimento do ombro ardesse em brasa.

— O senhor não pode carregá-lo!

— Claro que posso! E por que não poderia fazê-lo?

— As suas costelas! Eu vi a maneira como eles lhe bateram! Anvrai espantou-se com a preocupação de Isabel, mas logo refletiu que os cuidados eram dirigidos a seu pretendente. Na

certa milady temia que Anvrai, por estar machucado, derru­basse o rapaz.

— Estou bem, lady Isabel.

Anvrai saiu do cercado e foi em frente, na direção das co­linas. Isabel segurou-o pelo braço e o deteve.

— Temos de ir até os barcos — ela disse, com firmeza.

— Onde? Quais barcos?

— Por aqui. — Isabel apontou o lado oposto à aldeia. — Ontem à noite, atravessamos de barco um lago extenso. É por ali que devemos voltar.

Cômoros não muito altos obscureciam a visão do lago ci­tado. Anvrai compreendeu que não se enganara totalmente a respeito da impressão de ter viajado de navio. Fugir pela água era um plano muito melhor de que tentar escapar pelas colinas. Estariam a quilômetros de distância, antes que os escoceses dessem pela falta deles.

O melhor de tudo seria não ter de carregar Roger por uma distância muito grande. O jovem cavaleiro poderia continuar a dormir em paz no casco de um bote.

Anvrai seguiu Isabel e, apesar da silhueta escura, reparou na esbelteza de seu corpo. Era impossível não se sentir atraído pelo meneio dos quadris bem-feitos.

Apesar do pé machucado, Isabel se movia com graça e fe­minilidade. Anvrai agradeceu a Deus a escuridão que não lhe permitia distinguir as curvas dos seios ou a parte interna das coxas. Rezou para que não chovesse. A água tomaria trans­parente o tecido da camisa.

— Sir Anvrai, o senhor sabe conduzir um barco? — Isabel lembrou-se da questão crucial.

— Creio que poderei dar um jeito.

Roger gemeu e começou a se mexer. Anvrai segurou-o com firmeza e continuou a caminhar. Concentrou-se na tarefa de seguir Isabel e manter o equilíbrio apesar do corpo largado do rapaz sobre o ombro. Isabel andava depressa. Não parecia dar importância ao que a fazia mancar cada vez mais. Anvrai não sabia o que acontecera na cabana, nem como Isabel conseguira escapar do que a constrangia. Nada lhe perguntaria. O assunto não lhe dizia respeito. Aquele era um problema que se referia única e exclusivamente a Isabel.

A obrigação de Anvrai d'Arques era libertá-la dos agres­sores.

O lago apareceu na frente deles e Anvrai escutou o barulho suave do movimento da água.

— Ali existe um cais acostável onde estão ancorados vários barcos de pesca. Nenhum deles é muito grande. Não tenho certeza em qual deveríamos embarcar.

Anvrai conhecia pouco a respeito de embarcações. Seria um desafio roubar um daqueles e navegar no escuro. Deter­minado, decidiu que nada seria um empecilho.

— Será melhor pegarmos o que estiver mais afastado. — Daquela maneira não teriam de rodear os outros e sairiam com maior rapidez.

Subiram no atracadouro de madeira onde se encontravam amarrados vários barcos de vime cobertos de couro. Eram bo­tes pequenos. Anvrai teve esperança de que um dos últimos tivesse tamanho suficiente para levar os três e não afundar.

Foi para a frente e deixou Roger no chão.

— Agora está na hora de acordar, meu rapaz — falou Anvrai e deu alguns tapas leves no rosto de Roger. — Vamos lá. Temos de subir no barco.

Roger inspirou fundo, gemeu e abriu os olhos, espantado.

— Lady Isabel?

— Temos de sair daqui depressa, sir Roger — explicou Isabel. — Logo estarão atrás de nós. Anvrai ajudou o outro a sentar-se.

— O que houve? — Roger indagou, aturdido. — Como chegamos até aqui?

— Deixemos as perguntas para depois — respondeu An­vrai, enérgico. — O senhor se sente capaz de subir no barco?

— Minha cabeça...

Inseguro, o jovem procurou levantar-se. Anvrai e Isabel se­guraram-no, um de cada lado, e conseguiram fazê-lo entrar na pequena embarcação. Isabel seguiu-o e depois Anvrai pulou para dentro.

Anvrai cortou com a espada a corda de amarração e em­purrou o barco para fora do molhe. Os remos estavam no fundo do barco. Anvrai segurou-os, sentou-se e começou a remar em direção do centro do lago.

— O sul é para lá — Isabel apontou para a margem mais afastada.

Anvrai dirigiu-os na direção correta e Isabel inclinou-se para o lado de Roger. O bote começou a balançar em conseqüência de tantos movimentos.

— Por favor, fique quieta, lady Isabel. Poderemos afundar desse jeito.

Seria uma sorte se eles não naufragassem. O bote compor­tava três, no máximo quatro pessoas. Além deles, havia redes e outros equipamentos de pesca no fundo. A pequena embar­cação navegava com grande parte do casco na água.

— Sir Roger está ferido — Isabel justificou-se, abaixada atrás de Anvrai.

Anvrai sentiu nas costas a respiração quente e vibrante de Isabel.

— Fique sentada e não discuta comigo. Apenas responda às minhas perguntas.

Seguiu-se um silêncio prolongado, enquanto as questões se amontoavam na mente de Anvrai. De repente, não o interessou mais o que acontecera com Isabel. Não queria escutar a res­peito de nenhum abuso ou sofrimento que Isabel pudesse ter sofrido. Ela não era sua irmã nem sua mãe. Muito menos sua esposa. Isabel teria de suportar os problemas sozinha. Anvrai d'Arques não era nenhum guardião de mulheres.

Anvrai continuou a remar. O movimento contínuo das pás na água acompanhavam a fumaça da aldeia que começava a cobrir o lago.

Isabel estremeceu e suspirou. Anvrai sentiu o corpo cálido encostado no seu, quando Isabel largou-se de encontro a ele.

— Eu o matei — Isabel afirmou. — Matei o chefe com sua própria faca.

Isabel teve esperança de que não estivesse com um cheiro tão pronunciado quanto o de Anvrai. Tremendo, afastou-se das costas largas e tornou a fitar a fumaça e as chamas que tragavam o pequeno povoado.

— Eu não pretendia causar devastação naquela aldeia — Isabel murmurou.

Eu matei um homem. Por tudo o que era mais sagrado, Isabel Louvet não fora educada para conhecer as maneiras rudes dos homens. Muito menos tivera informações de que deveria se proteger contra a vileza dos bárbaros. Seu pai na certa pretendera evitar que ela tivesse contato com qualquer infortúnio, e falhara. Existia até a possibilidade de lorde Henri ter perdido a vida no ataque a Kettwyck.

Nem queria pensar em tais horrores. Necessitaria de toda a sua energia para superar aquela noite.

— Ele caiu — Isabel sussurrou para si mesma, como se procurasse uma nova explicação para o que ocorrera. — De­pois que eu o apunhalei, o chefe do clã cambaleou para trás e caiu. A mão dele bateu em um castiçal. A vela caiu e co­meçou a incendiar tudo...

Anvrai continuou a remar, como se não escutasse. Isso de certa forma era conveniente. Ela não pensava em desabafar com um cavaleiro circunspecto e forte que provavelmente não entenderia sua urgência em narrar as atrocidades daquela noite. A própria Isabel não compreendia o que se passara. Não con­seguia ordenar os pensamentos de maneira lógica. E aquele sangue que secara em suas mãos... Com cuidado para não movimentar o barco, Isabel pôs as mãos na água e esfregou-as. Suspeitou que seria preciso várias lavagens para remover as manchas externas. Ela mesma jamais esqueceria o que acontecera. Secou as mãos em uma das peles que estavam a seus pés. Refletiu sobre o que roubara do Barba Negra. O homem que ela matara.

Lembrava-se de ter ficado paralisada, olhando para o gigante e para o ferimento profundo do abdômen de onde o sangue escorria em golfadas, enquanto as chamas devoravam a moradia.

— Fui eu mesma quem fez aquilo? — perguntou-se em um fio de voz.

Isabel juntou as pontas do decote do camisão. O Barba Negra rasgara o cordão, e a peça se abrira de modo indecoroso. A bela túnica que vestira na comemoração para sua chegada lhe fora roubada dias antes. Por isso fora obrigada a enfrentar os rigores do clima escocês usando apenas uma camisa fina de cambraia que outrora fora muito bonita. Naquela altura, suja e rasgada, nem mesmo se assemelhava às roupas modestas que usara na abadia.

Isabel tremeu de frio e de pavor. Com a graça de Deus, haveriam de escapar. Embora rezasse pela libertação, suas es­peranças encontravam a barreira da realidade. Anvrai estava ferido e sem condições físicas de remar até que estivessem em segurança. Roger continuava deitado, gemendo, incapaci­tado de ajudá-los.

A noite era muito escura para permitir uma navegabilidade precisa. Seria um milagre sobreviver à travessia do lago e al­cançar a outra margem.

— Sir Anvrai... o senhor está enxergando o outro lado? Ele hesitou alguns instantes.

— Não, lady Isabel. Não consigo ver nada — ele respondeu, mal-humorado.

A escuridão era inquietante. E ainda mais para um homem cego de um olho.

— Estranho que Não haja luar nem estrelas no céu esta noite.

— As nuvens devem estar mais densas. É possível que cho­va. E aí ficaremos ensopados.

— Acha que eles estão atrás de nós? — Isabel virou-se para espiar a escuridão que deixavam na retaguarda. Mal distinguiu as colinas que rodeavam a aldeia.

— Se estivessem no lago, iluminariam o caminho com tochas.

— É verdade. Não havia pensado nisso.

Ninguém cometeria a tolice de cruzar uma extensão tão grande de água no escuro. Além do mais, os perseguidores precisariam de claridade para encontrar os fugitivos. Não havia nenhuma luz. Isabel nada escutava além do som das palavras que diziam, do marulhar suave das ondas de encontro ao barco e do padejar dos remos na água.

A chuva conservou-se a distância, o que permitiu aos fugi­tivos continuar o trajeto por um certo período. Isabel notou que a respiração de Anvrai ficava mais difícil à medida que ele movia os remos para impelir o bote. Ele estava exausto e ferido. Não suportaria por muito mais tempo o esforço. Mas qual outra alternativa lhes restava? Roger estava semiconsciente e ela não possuía a menor noção de habilidade náutica. Admitiu que nem mesmo teria idéia por onde começar.

Seria conduzir o barco algo tão difícil? Isabel franziu a testa. Distinguindo a silhueta de Anvrai, observava a maneira como segurava os remos e impulsionava o barco pela água. Era uma atividade que certamente não requeria a menor inteligência. Apenas força bruta.

— Sir Anvrai, o senhor deve descansar um pouco — Isabel afirmou, disposta a executar a sua parte. — Não pode continuar a sacrificar-se dessa maneira.

— Bobagem. Posso remar muito bem.

— O senhor está exaurido.

Anvrai não respondeu e prosseguiu a puxar a água com os remos. Isabel pensou se todos os homens eram teimosos. Seu pai era, com toda a certeza. Tinham sido necessárias inúmeras discussões até ele desistir da idéia de casá-la com lorde Bernard. Anvrai não poderia continuar com aquele esforço, depois do que sofrera na mão dos escoceses.

— Por favor, sir Anvrai, permita-me ao menos tentar. Es­tamos bem à frente de nossos perseguidores.

Um resmungo de dor foi a única resposta.

— Apesar de ser mulher, tenho bastante força. — Pelo me­nos, era o que ela imaginava.

Na verdade, naquele momento duvidava que sua energia fosse suficiente para mexer o barco do lugar, mas tinha de ajudar Anvrai.

Ele murmurou qualquer coisa que Isabel não entendeu. Mas dali a instantes ele se virou e ajudou-a a mover-se até o centro do bote. Isabel segurou os remos, deslizou-os para dentro da água e o barco continuou em direção ao sul. Seus movimentos eram desajeitados. Afinal, jamais fizera nada parecido. Mas fez progressos, apesar da dúvida que ela imaginava estar es­tampada na fisionomia de Anvrai.

Isabel imaginou como o olho dele fora arrancado da órbita. Um ferimento daquele gênero teria provocado a morte de qualquer um. Anvrai não somente resistira ao desastre, mas continuara a enfrentar outras batalhas. Isabel estremeceu diante de tamanha barbaridade. Não imaginava como um ser humano suportava tal injúria.

O silêncio continuava no lago, quebrado apenas pelo ruído dos remos batendo na água e dos gemidos ocasionais de Roger. O cheiro de fumaça ainda presente no ar fez Isabel refletir que ainda não se encontravam a uma distância que lhes concedesse segurança. Entendeu que somente respiraria com maior con­fiança, quando chegassem à margem meridional.

Isabel nada enxergava em meio às trevas. Mas sempre tivera um poderoso senso de direção. Pediu a Deus que lhe conce­desse força suficiente para levar o barco a seu destino. Roger haveria de recuperar-se e os acompanharia pelos caminhos que os levariam ao sul, rumo a Kettwyck.

— Milady está lembrada de ter visto algum rio no trajeto para a aldeia?

Anvrai perscrutou a negrura que se estendia à frente do barco. Nada viu, mas percebeu algo diverso. A característica da água mudara. Já não era uma superfície plácida e quase parada.

— Não. Saímos da margem ao sul e fomos direto para o norte. Tenho certeza. Isto é, pelo menos foi o que me pareceu.

— Chegue para o lado. — Anvrai rastejou até o meio do bote e tomou os remos das mãos de Isabel cuja voz lhe parecia insegura. — Estamos na direção errada.

Anvrai esperava que não estivessem perto de uma cachoei­ra. Virar o barco custou-lhe um enorme sacrifício. A orienta­ção seguida por Isabel não fora correta.

Um relâmpago repentino trouxe-lhe uma visão mais exata de onde se encontravam e Anvrai começou a remar em direção à terra firme.                                                                

— Lady Isabel, olhe para trás e fique atenta. Se o clarão tornar a aparecer, será possível ver onde estamos,

— Mas eu... tenho certeza de que remei para o sul. Eu não poderia ter me desviado tanto do rumo.

Anvrai teria dado boas risadas diante do tom de increduli­dade, se a situação não fosse tão perigosa. Mais uma vez, a luz súbita e breve iluminou o local e Anvrai corrigiu o curso.

— Milady pode enxergar a aldeia?

— Não... Sim. Isto é, é possível ver fumaça sob as nuvens. Bem, penso que é fumaça.

— O cheiro já não está tão forte.

Anvrai não tinha idéia de onde se encontravam. Estava certo de que Isabel os levara para longe do povoado escocês, mas também não haviam se aproximado da outra extremidade do lago. Talvez ela houvesse remado em círculos concêntricos cada vez maiores.

— Estamos em um rio e teremos de ficar nele — Anvrai afirmou. — Deixaremos que a corrente nos leve para a frente. Para eles seria melhor poupar energia, embora a falta de controle fosse enervante. Anvrai não tinha certeza para onde se dirigiam. Somente podia corrigir a rota durante a iluminação ocasional e rápida dos relâmpagos. Apesar disso, não parecia haver nenhum lugar onde pudessem ancorar o bote. Dos dois lados do lago só avistava altos penhascos escarpados.

De qualquer modo, prosseguiram sem sobressaltos até que Roger levantou a cabeça e começou a vomitar no fundo do barco.

— Misericórdia — Anvrai murmurou, aborrecido. Então enfureceu-se quando o jovem teve outro acesso de enjôo. — Faça isso de novo, garoto, e eu atirarei na água essa sua carcaça arrebentada! — gritou.

— Deixe-o em paz! Ele está passando mal!

— Pois passará mal do lado de fora do bote!

A pequena embarcação começou a balançar. Anvrai perce­beu que Isabel saíra da popa. Engatinhando, chegou até ele e espremeu-se para passar para a parte de trás, empurrando o remo.

— Ele precisa de ajuda!

— Santo Deus! Milady, se virar esta porcaria de barco, não serei mais responsável pela senhora. Aliás, por nenhum dos dois!

A especialidade de Anvrai d'Arques eram as batalhas e os combates corpo a corpo. Responsabilizar-se por damas sensí­veis como a filha de lorde Henri era uma tarefa inaceitável.

Isabel não lhe deu confiança. Ergueu o futuro marido, en­quanto o bote continuava a oscilar. No escuro, Anvrai mal os distinguia. Mas foi possível perceber que o enfermo, seguro por Isabel, estava com o queixo apoiado na lateral de madeira O peso tornara-se excessivo na frente. Anvrai recuou alguns passos para tentar um equilíbrio melhor.

Seu mau humor acentuou-se quando escutou Roger vomitar novamente.

O rio continuou a carregá-los. Quando começou a chover, temeu que houvessem sido arrastados por muitos quilômetros correnteza abaixo. A pé não teriam ido tão longe. Não lhe ocorria onde poderiam estar localizados no momento. Mas certamente a uma boa distância dos escoceses, que não teriam como persegui-los, apesar de Isabel ter matado o chefe do clã. Além disso, os escoceses precisavam concentrar esforços na reconstrução da aldeia antes da chegada do inverno. Uma luz difusa iluminou o céu. A lua começava a aparecer por trás das nuvens de chuva. Anvrai percebeu que as margens eram irregulares e inacessíveis. Notou também que Isabel já não era mais uma sombra escura diante dele. Os cabelos mo­lhados colavam-se na cabeça. As equimoses do rosto e lábios destacavam-se na tez pálida. A roupa fina e ensopada não re­presentava nenhuma proteção contra o ar frio nem era um escudo para olhares masculinos. Mesmo que involuntários, como o dele.

Anvrai virou-se e pegou uma das peles que Isabel trouxera da cabana do chefe escocês. Atirou-a na direção de sua protegida.

— Cubra-se. Assim evitará resfriar-se. — Anvrai tornou a analisar a margem do rio. — Atracaremos ali... veja se consegue achar algum abrigo razoável.

— Pois não. Queira ter a bondade de pegar outra pele para que possa também cobrir sir Roger. — Isabel não se preocupou em disfarçar a ironia.

Anvrai apertou os dentes e evitou fitar a dama formosa que se desvelava em cuidados com o infeliz. Tentou visualizar um local adequado para ancorar, mas o rio de repente tornou-se mais turbulento. Virou-se, preocupado.

Perigosos afloramentos de rocha surgiam na água próximos às margens e a corrente fez o bote girar, descontrolado. Sem perda de tempo, Anvrai ficou de joelhos e começou a remar em direção ao sul.

— Lady Isabel! Pegue a outra pá e reme!

— Mas e sir Roger?

— Faça o que estou mandando. Agora!

Isabel tirou o doente de cima de seu colo e ajoelhou-se para executar as ordens recebidas.

Anvrai usou toda a força que lhe restava para virar o bote para fora do raio dos obstáculos.

— Precisamos sair do rio antes de colidir com essas rochas!

De repente, Isabel compreendeu o perigo real que os amea­çava. Arrastou-se para o lado de Anvrai e começou a remar. Os dois ignoraram a chuva que os castigava e lhes gelava os ossos. A manta de peles escorregou dos ombros, mas Isabel não se permitiu interromper o ritmo que seguia sob o comando de Anvrai.

— Por aqui!

Anvrai não sentia dor no ombro nem no peito. Só pensava em chegar à margem. A corrente jogava a pequena embarcação de um lado para outro. Eles escutaram o fundo raspar em al­guma coisa, mas o casco continuou intacto. Roger gemeu e distraiu a atenção de Isabel.

— Sir Roger está bem! — Anvrai gritou para ser ouvido. O barulho da chuva e das águas violentas era ensurdecedor. — Mas nos não estaremos, a não ser que consigamos sair da correnteza!

A luta contra as ondas turbulentas foi enorme. Roger virou-se de lado e vomitou mais uma vez. Embora Isabel se compadecesse do rapaz, não parou de remar um só minuto. O que foi uma boa sorte. Anvrai tinha consciência de que não conseguiria salvá-los sem ajuda. A chuva torrencial e o rio tumultuoso eram muito mais perigosos do que qualquer exército que já enfrentara. As provações da semana anterior haviam minado suas forças e ele duvidava que conseguisse enfrentar aquele desafio por muito tempo.

Isabel gritou, mas Anvrai não se voltou, concentrado em mover o remo, sempre impelindo o barco na direção que lhe parecia a mais correta. O ferimento do ombro começou a quei­mar apesar da chuva fria. Suas costelas doíam como se alguém estivesse apertando um torno em volta delas.

— Por quanto tempo teremos de continuar com esse em­penho? — Isabel teve de gritar para chamar a atenção de Anvrai.

— No rio?

— E claro! Onde o senhor queria que fosse?  

— Não sei, milady — retrucou Anvrai com o fôlego que lhe restava. — Mas se a senhora não continuar se esforçando, nossa jornada terminará prematuramente. No fundo do rio!

Isabel nada mais disse. Aplicou-se com afinco à tarefa di­fícil e procurou não pensar nas ondas que os atiravam de um lado a outro, A cada instante, um novo susto. Chegavam muito perto das rochas. Mas com a graça de Deus conseguiam ma­nobrar o bote e desviar-se do perigo. A correnteza tomou-se mais branda e Isabel deu um suspiro de alívio.

— Procure um lugar para ancorar! — Anvrai pediu. -Qualquer um que sirva de abrigo!

Os penhascos alcantilados elevavam-se de ambos os lados e as paredes de pedra pareciam não ter fim. Não se distinguia ne­nhum lugar mais acessível.

— Ali! — Isabel entusiasmou-se. — Lá em frente!

Ela apontou um afloramento mais baixo e eles se dirigiram para o local com ânimo redobrado. Anvrai percebeu que não se tratava de um abrigo apropriado para resguardá-los da chu­va, mas achou que seria possível tirar o barco da água e usá-lo como proteção contra a tempestade. De qualquer forma, esta­riam mais seguros fora do rio. Pelo menos teriam uma opor­tunidade para descansar.

— Mantenha o barco fora do alcance das pedras! — Anvrai ordenou. — Tentarei entrar ali!

Isabel não teve tempo de pensar na situação difícil em que se encontravam ou no que Anvrai pretendia fazer. Com o olhar atento às rochas, apoiava nelas o remo para impedir que ali se despedaçassem, durante a aproximação da saliência estreita de terra.

O barco oscilou perigosamente quando Anvrai se ergueu e procurou agarrar uma projeção afilada de rocha.

O barco bateu no promontório e foi arremessado de encon­tro à terra. A força do impacto desequilibrou Isabel e arran­cou-lhe o remo das mãos.

Ela tentou recuperar e instrumento e desesperou-se.

— Santo Deus! Não posso pegá-lo!

— Esqueça! Pule para fora e puxe o barco!

Isabel fitou a margem. Anvrai pedia-lhe o impossível. Ela não conseguiria executar a ordem.

— Sei que poderá fazer isso, lady Isabel! — O vento e a chuva puxavam-lhe a túnica com violência e arremessavam os cabelos negros para a frente do rosto.

— É muito longe! — Além disso não havia um incremeas gradual de terra e as águas eram profundas.

O pequeno barco foi sacudido e jogado para mais perto da terra. Isabel levantou-se e pulou. Voltou-se depressa e segu­rou o bote. Anvrai estendeu o remo que restara e Isabel agarrou-o.

— Puxe!

— E o que estou fazendo!

Um pouco depois, a lateral do pequeno barco bateu na margem rochosa e Isabel segurou-o com as duas mãos.

— Agarre-se nele! — ordenou Anvrai, aos brados, — Pre­ciso tirar sir Roger daqui!

Isabel procurou não tomar conhecimento da dor nas mãos e apoiou-se em um arbusto. Observou Anvrai erguer Roger, falar com ele, incentivando-o a ajudar para que pudessem sair dali.

— Não largue o barco!

Anvrai conseguiu sair do barco, e assim que pisaram em terra firme os dois homens caíram no chão. Imediatamente, e com força sobre-humana, Anvrai tomou o lugar de Isabel e puxou o barco para fora da água. Quando não havia mais perigo do barco ser arrastado para o rio, arrastou Roger para uma saliência de pedra que formava uma pequena área coberta, ao lado de um pinheiro. Aquilo os protegeria do vento e da chuva. Isabel largou-se ali, tremendo, ao lado do rapaz. Anvrai voltou ao local onde haviam atracado e puxou o barco até onde   estavam os outros. Deixou-o de lado para proteger o es­conderijo raso e sentou-se junto de Isabel.

— Suas mãos estão machucadas.

Isabel não sentia dor. Suas mãos estavam geladas. Anvrai tomou-as entre as dele, levou-as à boca e soprou-as. O hálito quente foi benfazejo. Exausta e com frio, Isabel não se impor­tou de ser tocada por aquele cavaleiro de rosto deformado por cicatrizes.

— Sir Roger está muito mal.

— Eu sei — respondeu Anvrai em voz baixa.

— Há algo que possamos fazer por ele?

— Aqui não. Temos de descansar e esperar a tormenta amainar.

— Então o que faremos?

— Voltaremos ao bote e continuaremos a viagem.

— Não poderemos fazer isso,

Anvrai interrompeu as massagens que começara a fazer nas mãos de Isabel.

— E por que não?

— Porque o rio corre para oeste. Ele nos desviou quilômetros de nosso destino.

 

Anvrai acordou por volta do meio-dia. A chuva dera uma trégua e o céu começava a clarear. Isabel continuava dormindo e Roger estava inconsciente. O ferimento em sua cabeça não permitia um bom prognóstico, considerando-se que ele vomitara por isso. Anvrai tinha alguma experiência na arte de curar e sabia que uma pancada no crânio poderia causar a morte muitas horas após a ocorrência.

Mas nada poderia fazer por Roger. No momento não dis­punha de ervas ou poções. Nem mesmo tinha condições de manter o enfermo aquecido. Se ele morresse, Isabel teria de procurar outro marido.

Os cabelos de Isabel haviam secado e se transformaram numa massa de cachos escuros. Mas por causa da chuva, es­tava bem mais limpa de quando a socorrera ao lado da cabana em chamas.

Anvrai imaginou o que na realidade acontecera dentro da moradia do líder escocês. Com toda a certeza lady Isabel não matara o homem como ela imaginava ter feito. Nenhuma mulher normanda, principalmente uma tão bem-nascida como lady Isabel, poderia ter dominado o homenzarrão de barba ne­gra e tê-lo matado com a arma pertencente a ele. Teria de haver outra explicação.

Isabel estava deitada de lado, com um braço debaixo da cabeça e as mãos sob o queixo. A pele dos pulsos estava com escoriações, as unhas mostravam-se dilaceradas e sujas. Havia manchas de sangue nos dedos. A expressão de seu rosto exibia a pureza de uma criança. Entretanto as curvas mal escondidas pelo tecido fino e úmido da camisa eram o de uma mulher em pleno viço. As faces estavam encovadas e apresentavam uma grande mancha roxa. Havia hematomas também espalhados pelo corpo.

Anvrai desviou o olhar antes de começar a apiedar-se de Isabel. A comiseração seria inaceitável. Só lhe importava sal­var todos da situação precária em que se encontravam.

Tinha prática suficiente para saber que as condições tende­riam a piorar. Seria preciso sair dali para encontrar comida. E o mais depressa possível. Ele passava fome desde que fora capturado. Admirava-se que ainda tivesse energia para lutar.

Anvrai foi até a beira da água e examinou a linha da mar­gem, à procura de um lugar com melhores condições para um pequeno descanso.

Seria preferível terem ido para leste. Porém mesmo que conseguisse remar contra a correnteza, os penhascos escarpa­dos naquele local impediriam qualquer atracação. As monta­nhas de pedras continuavam a oeste, mas a curva permitia uma visão mais clara do local.

— Dá para ver algo que nos seja útil?

Virou-se ao ouvir a voz de Isabel. Conseguira abafar todos os resquícios de desejo, mas quando a olhou, o esforço caiu por terra. Isabel segurava o corpete fechado com pura modéstia e a camisa longa colava-se no corpo por causa da umidade. Os pequenos ferimentos e as manchas roxas espalhadas nos braços e rosto faziam-na parecer indefesa. Anvrai enfureceu-se pela vontade que sentiu de acarinhá-la.

Para ser sincero, não se conformava com o que vinha acon­tecendo desde a noite da comemoração em Kettwyck. Nem com a própria falta de perícia em proteger Isabel e todos os que haviam sido capturados ou mortos. Sem pensar na simplicidade de lorde Kettwyck, por ter reunido tantos normandos antes de completar a construção da fortaleza e por deixá-los expostos ao perigo. Recriminava-se também por não ter agido antes, sabendo como era fácil falhar na proteção daqueles que mais precisavam da mesma. Mulheres e crianças.

— Não há nada a leste — ele respondeu à pergunta de Isabel. — Até onde a vista alcança, somente escarpas altas e íngremes.

Isabel aproximou-se da beira da água. O vento enfunava a barra da camisa e levantava-a acima dos tornozelos. Anvrai desviou o olhar. Isabel não tinha idéia de como era sedutora, nem da dificuldade que ele enfrentava para não se incomodar por isso. Anvrai recusava-se a afundar no pântano do desejo e passar a depender disso.

Aprendera a agir com indiferença e não permitia que emo­ções o governassem. Elas causavam muito sofrimento.

— A água corre com rapidez por aqui — Isabel comentou.

__ É verdade. Se nos mantivermos próximo da margem e deixarmos a corrente agir...

— Esse não é o caminho certo — Isabel protestou. — De­vemos ir para leste e para o sul.

Anvrai cruzou os braços na altura do peito e rezou para que Isabel o imitasse. Assim não seria tentado a cobiçar-lhe os seios fartos e eretos, nem os mamilos que se projetavam por causa do frio. Apontou com a cabeça uma área verde a oeste.

— Usaremos a correnteza para chegar até aquela enseada. Dali poderemos caminhar para o interior e encontrar uma trilha que nos leve para o sul.

— Como é que o senhor sabe...

— Não sei. Mas é nossa única opção.

Anvrai voltou até o barco e puxou-o do recanto onde Roger continuava desmaiado. Ajoelhou-se ao lado dele, afastou-lhe os cabelos da testa e examinou a protuberância da têmpora. Era do tamanho de um ovo de galinha, púrpura e verde. Le­vantou as pálpebras do rapaz e nada percebeu de errado. Os dois olhos estavam no lugar. E como os globos oculares lhe pareceram normais, era provável que o jovem superasse os efeitos da pancada na cabeça, se não ocorresse nenhuma outra complicação.

Anvrai levantou-se e arrastou o barco até a beira da água. Endireitou-o e voltou até onde Roger estava deitado. Determinado, concentrou-se nas tarefas que teria pela frente. Esse era seu forte. Enfrentar batalhas e aspectos práticos de sobre­vivência. Não era o momento de desperdiçar energia preocupando-se com o estado de um nobre raquítico ou com os pequenos ferimentos de Isabel. Ela estava em condições de ficar em pé de andar e até de remar. Os dois teriam de combinar forças e recursos, se pretendessem vencer as agruras.

Deveriam ter posto as peles para secar. Elas formavam um monte encharcado na beira da água. Anvrai ainda estava era posse da espada que tomara do sentinela. Felizmente não a perdera durante a noite, em meio à tempestade, como acontecera com o remo. Apesar de ter sido frustrante perder o remo, Isabel não fora culpada. O barco batera nas pedras e por pouco Isabel não caíra junto. Ela nada poderia ter feito.

Levantou o mancebo do chão, levou-o até o barco e virou-se.

— Pode entrar, lady Isabel. Eu empurrarei o bote para a água e...

A nudez quase total de Isabel tomou a perturbá-lo, apesar da certeza de que ela não o tentava intencionalmente. As aten­ções dela estavam fixadas em Roger.

Anvrai tirou a túnica pela cabeça e entregou-lhe.

— Vista isto, milady. Ficará mais... aquecida.

E coberta. Caso contrário, seria impossível manter a mente centrada de modo exclusivo nos objetivos prioritários do mo­mento.

Seria pedir demais que sir Anvrai d'Arques não houvesse notado a inconveniência de seu traje. Ou melhor, a falta dele. Isabel sentiu o rosto em fogo de tanta vergonha. De olhos baixos, aceitou o oferecimento e vestiu a peça pela cabeça.

Abriu a boca para agradecer e desistiu em seguida, por não saber o que diria. Confusa, não queria ofendê-lo com alguma palavra inadequada.

Isabel nunca vira um homem de tórax desnudo. Nenhum dos trabalhadores ou sacerdotes que freqüentavam o convento ousaria despir-se nas dependências da comunidade religiosa. E mesmo que o fizessem, certamente nenhum deles teria a estrutura física impressionante de Anvrai d'Arques.

A calça estava presa abaixo da cintura e Isabel ficou admi­rada com os músculos rijos que ondulavam no abdômen.

Os pêlos escuros que cobriam o peito desciam pelo centro e escondiam-se sob a calça. Isabel imaginou se a masculini­dade de sir Anvrai era...

Não deveria imaginar nada!

Mirou o tórax e depois o rosto. A barba crescera desde que haviam sido capturados e cobria grande parte das cicatrizes.

Desviou o olhar. O calor repentino certamente se devia à túnica de sir Anvrai que ela acabara de vestir. Enrolou as man­gas para cima e fitou as mãos cheias de bolhas. Permanecia a sensação estranha de que o sangue viscoso do Barba Negra penetrara em sua pele.

— O que vamos fazer agora? — Isabel perguntou, decidida a cooperar.

— Empurrarei a embarcação para a água. Eu a manterei firme enquanto milady entra e depois pularei para dentro, en­quanto milady segura.

O barco pesava mais do que aparentava e era muito desa­jeitado para quem tivesse de manobrá-lo em terra. Isabel admirou-se por Anvrai ter conseguido tirá-lo da água, quando haviam atracado. Ajoelhou-se no solo pedregoso e ajudou-o a empurrar o único meio de transporte de que dispunham nas atuais circunstâncias.

O barco foi abaixado na água. Isabel entrou e depois em­preendeu uma boa luta até Anvrai conseguir embarcar. Teve de ficar em pé e agarrar-se nas rochas para impedir que o bote se afastasse antes de Anvrai entrar.

Anvrai assumiu sua posição no centro do barco. Roger foi deitado na frente, e Isabel seguia atrás, incapaz de tirar os olhos dos músculos das costas de Anvrai que se movimentavam no ritmo do remo.

Não se conformava como Anvrai ainda podia mover o bra­ço, ele tinha um enorme ferimento no ombro. E pior. Ele ma­nobrava o barco com destreza, mantendo-o próximo da mar­gem, evitando as rochas e as águas turbulentas. O trajeto era muito difícil. Com freqüência, Anvrai era obrigado a usar o remo para desviá-los das pedras pontudas e protuberantes que impediam a passagem. O que não o impedia de mantê-los afas­tados da correnteza igualmente perigosa. Anvrai levou-os rio abaixo devagar, em direção à enseada que avistara antes.

Roger permanecia inconsciente, o que deixava Isabel muito preocupada.

— Será que sir Roger... — Isabel engoliu cm seco. — Re­ceio que ele... existe a possibilidade de sir Roger...

— Morrer?

— Fale baixo! E se ele o ouvir?

— Se ele me escutar, saberá que suas condições são pés­simas.

Isabel inspirou fundo. Seus piores receios eram confirma­dos. Assustada, levantou o olhar até o final do escarpamento alto que se avizinhava. Mesmo se conseguissem encostar o barco em um lugar seguro, o doente não teria condições de prosseguir a pé e muito menos escalar o paredão de rocha. Quando recobrasse a consciência, seria necessário um bom tempo de recuperação. Só depois poderiam pensar em um trajeto que os conduzissem ao sul. Sem esquecer do detalhe mais importante. Seria imperativo passar longe da região dominada por es­coceses.

E se sir Roger não resistisse?

Na verdade, havia a probabilidade de qualquer um dos três vir a falecer. Ou de todos morrerem. O barco poderia ser le­vado pela corrente fluvial e despedaçar-se de encontro às ro­chas. Roger não teria como sobreviver e Isabel não era exímia nadadora. Anvrai certamente sabia nadar, mas conseguiria sal­var a si mesmo e a eles?

Anvrai governava o bote com um só remo, e Isabel não tinha idéia de onde ele tirava energia para continuar no rumo certo. Ela fitou as próprias mãos. Mesmo que não houvesse perdido o instrumento de madeira, era quase certo que não poderia manejá-lo. Bolhas, sangue e ulcerações cobriam as palmas e os dedos. Os ossos das mãos estavam tão doloridos como se um carro de boi houvesse passado sobre elas.

Sua vida não fora cheia de mimos. Até se admirava que um pouco de trabalho houvesse provocado um efeito tão devastador. Na abadia, todas cumpriam as tarefas com afinco na cozinha e nos jardins. No entanto... nunca tivera de matar um homem. Enfiou as mãos na água e esfregou-as. A sensação de estarem ensangüentadas não desaparecia.

Horrorizada pelo que fizera, fechou as mãos em punhos e olhou para a frente. Para o destino imediato deles.

A angra apareceu com maior clareza. Uma saliência de ter­ra, pinheiros esparsos, solo escuro coberto de turfa. Um imen­so rochedo de pedra elevava-se próximo de onde eles iriam encostar.

Isabel combateu uma sensação de enjôo à vista de tamanho obstáculo e de desespero. Não lhe ocorria onde encontrariam um caminho que os levasse para o sul, para longe do rio. Sabia que jamais conseguiria escalar nenhum precipício da­quela altura.

— O que faremos depois de chegar à enseada? — ela per­guntou com esperança de que Anvrai não afirmasse que teriam de subir.

— Não posso afirmar nada, até chegarmos lá.

— Pretendo permanecer ao lado de sir Roger.

Anvrai nada respondeu, nem mudou o ritmo de velocidade do barco. Era como se não houvesse escutado a afirmativa, o que era pouco provável. Era possível que Anvrai d'Arques prosseguisse viagem sozinho, assim que pisassem em terra fir­me. Roger certamente não poderia caminhar.

Isabel fitou o provável futuro marido que continuava inerte na frente da embarcação. A postura era a de uma criança dor­mindo sem preocupações, protegido por pais zelosos.

Era uma comparação injusta. O rapaz estava gravemente ferido. Sentiu um nó na garganta, quando pensou no destino do jovem lorde. Eles estavam nas mãos de Deus e a ela só restava rezar pela misericórdia divina.

Anvrai manobrava cuidadosamente o barco próximo à mar­gem irregular, mas a turbulência das água aumentou e a na­vegação tornou-se mais perigosa.

Os músculos de Anvrai retesavam-se a cada movimento com o remo. Isabel temeu que ele não conseguisse mantê-los fora da situação de risco e sentiu-se uma inútil por não poder ajudá-lo.

— Há uma cachoeira ali na frente! — gritou Anvrai. Mais uma vez o barulho do vento e das água impedia que eles se ouvissem sem terem que gritar.

Isabel entendeu que Anvrai chegava ao limite de suas forças na tentativa de impedir que eles despencassem na queda-d'água. Ele lutava com furor para evitar que a força do rio os puxasse, o que se tornava mais difícil à medida que se apro­ximavam da catarata.

Depois de alguns minutos, Anvrai tentou uma manobra de atracação na baía e o bote roçou nas pedras.

— Lady Isabel! Vá para a esquerda! Faça força contra as rochas para que nos afastemos!

O barco balançou com a mudança de posição de Isabel, mas continuou flutuando. Anvrai conseguiu sair da correnteza ameaçadora e entrar nas águas calmas da enseada. Impulsio­nou o bote de encontro à saliência de terra rochosa e desem­barcou de maneira desajeitada para equilibrar o barco. Pendu­rou-se no remo, enquanto Isabel agarrava a outra extremidade para manter o bote no lugar. Tirou Roger de dentro e ajudou Isabel a descer. Em seguida, para assombro dela, ainda puxou a embarcação para fora da água. Anvrai d'Arques largou-se no chão, imóvel. Teria desmaiado?

Isabel não lhe percebeu nenhum movimento, exceto o do peito que se erguia e abaixava, arfando. Ajoelhou-se ao lado de seu pretendente, que estava com respiração normal.

— Sir Roger? — Isabel tocou-lhe a testa.

Ele se mexeu um pouco, virou-se, mas não abriu os olhos. Deu um pequeno gemido.

— Pode escutar-me, sir Roger?

Nenhum sinal de entendimento. Isabel afastou a mão e se­gurou o próprio tornozelo. Era preciso ver onde haviam atra­cado e procurar por uma maneira de sair dali.

Levantou-se e deu um passo. Quase caiu por causa da dor no pé ferido durante a fuga da aldeia escocesa na noite anterior. Encostou-se no tronco maciço de uma árvore próxima e le­vantou a perna. Grande inchaço e forte vermelhidão rodeavam um ferimento profundo na planta do pé. O terror e o desespero para fugir impediram que prestasse atenção à ferida. Naquela altura, o pé inteiro latejava sem parar.

Se estivesse em Kettwyck ou na abadia, haveria tempo para queixumes e mimos. Não poderia dar-se a esse luxo no mo­mento. Rasgou uma tira da barra da camisa estragada, sentou-se e enfaixou o pé. Ergueu-se de novo e, mancando, iniciou a exploração do local.

O terreno era coberto de seixos pontiagudos e arbustos bai­xos. Árvores altas obscureciam o aspecto aterrador do paredão imenso de rocha cinzenta que bloqueava qualquer caminho rumo ao sul. Olhou para cima. Árvores e raízes. Nada mais. Mais próximo da muralha, via sinais de um povoado. Um anel de fogueira extinta e um velho bote abandonado entre os ar­bustos, perto da base do muro.

Quem teria acendido aquela fogueira?, perguntou-se. Como teriam chegado até ali? No bote que estava apodrecendo? Se continuasse a busca, descobriria uma trilha ligando a enseada ao alto do despenhadeiro?

Caminhou mais um pouco e encontrou uma cruz de madeira fincada no chão, em frente a uma abertura na parede rochosa. Surpresa, andou até o local, convencida de que o objeto sa­grado era um sinal dos Céus. Talvez a indicação de uma vereda que os afastaria daquela praia deserta.

Esperançosa, aproximou-se da cruz, A fenda escura era a entrada de uma caverna. Virou-se. Nenhum sinal de vida. Nem vestígios de um caminho, por mais estreito que fosse, que lhes

permitisse sair dali.

Voltou-se para a abertura apertada e entrou. Na medida em que ia para a frente, a caverna ficava mais escura, mas também mais quente. Não sentiu mais o vento gelado que soprava do lado de fora. Prosseguia devagar, colada na parede. A uma certa altura tropeçou, perdeu o equilíbrio e estatelou-se nas pedras duras, ferindo as mãos empoladas.

Procurou controlar o desespero e as lágrimas. Ergueu-se devagar, poupando as mãos e o pé feridos. Nisso, com a vista já acostumada à escuridão, enxergou um espectro horrível. Metade ossos e metade carne putrefata, onde outrora deveria ter existido um rosto. Isabel Louvet gritou a plenos pulmões.

Anvrai agarrou a espada e correu, assim que escutou a voz de Isabel. Repreendeu-se por não tê-la avisado para não se afastar. Tarde demais. Ao ver sinais de ocupação humana diante de uma gruta, preparou-se para uma contenda, mesmo com a pos­sibilidade de um final desalentador. Sentia-se mais fraco. Sua energia diminuíra consideravelmente. Seria quase impossível resgatar Isabel se o atacante estives­se disposto a uma luta feroz.

Isabel saiu correndo da caverna no mesmo instante em que Anvrai se aproximou. Ele a segurou pelo braço e empurrou-a para trás de si.

— Quantos estão aí dentro? — Anvrai indagou, levantou a arma e ficou imóvel.

— Um — Isabel afirmou com voz estridente. — Vi somente um. Ele era horrível!

Anvrai preparou-se para atacar, mas ninguém apareceu.

— Ele estava armado?

Isabel não respondeu, e Anvrai virou-se para ela para ver as lágrimas brilharem nos belos olhos cor de mel e o queixo tremulo.

— E... ele e... está m... morto — ela gaguejou. Anvrai abaixou a espada.

— Milady matou outro...

Não houve tempo de preparar-se para a réplica. Isabel jo­gou-se em seus braços e começou a soluçar.

— Eu f... fiquei c... com t... tanto m... medo...

Isabel pressionou o rosto no peito másculo. Por instinto, Anvrai abraçou-a pelos ombros. Isabel era delicada e pareceu-lhe vulnerável. Ele se sentiu deslocado, inconveniente. Não fizera nada por Isabel. Não impedira que fosse raptada, não a resgatara em Kettwyck, nem a salvara do escocês de barba negra. E então aquilo!

— Não sei há quanto tempo ele está morto — Isabel alegou, tremendo. — Acho que não muito... o corpo ainda...

— Milady não o matou?

— Eu? Oh, não. O cadáver estava esticado lá. Eu tropecei e... caí sobre ele.

— Espere-me aqui.

Anvrai afastou-a e entrou na gruta. Esperou um pouco para a vista adaptar-se à escuridão. Não demorou muito e deparou-se com o defunto. Ajoelhou-se em uma perna e examinou-o. Era o corpo de um homem. Talvez o de um homem santo, a julgar pelo crucifixo preso em um fio fino de couro. Levantou-se e examinou o local. Encontrou restos dos pertences do morto.

Anvrai saiu da caverna. Isabel estava de costas, tremendo de frio. A túnica era grande demais para ela. As pernas estavam desnudas para baixo dos joelhos e ela enfaixara um dos pés com uma tira rasgada da camisa.

A visão da silhueta delicada e frágil comoveu-o. O que não lhe agradou de maneira nenhuma. Anvrai abandonara toda a sua ternura junto com as mortes violentas de sua família. Não pretendia aumentar a fila de pretendentes à mão de lady Isabel Louvet.

— Lady Isabel, por favor, volte para cuidar de sir Roger. Fique com ele até o meu retorno.

Ela concordou com um aceno de cabeça e afastou-se, dei­xando o morto aos cuidados do cavaleiro Anvrai d'Arques.

Não demorou muito e Anvrai encontrou tochas e pedernei­ras dentro da caverna. Acendeu archotes e a gruta foi ilumi­nada. Havia ferramentas, utensílios de cozinha e peles. Tirou as roupas do defunto e enrolou-o em uma das peles. Puxou-o para fora da caverna e arrastou-o até a margem. Não havia local para enterrá-lo. Por isso jogou-o para dentro do bote de­teriorado e levou o conjunto para a água. A forte correnteza encarregou-se do resto. Em alguns minutos, o bote sumiu do raio de visão dele.

Voltou ao local onde deixara Roger. Sentada ao lado dele, Isabel cuidava de um ferimento no pé. Anvrai abaixou-se e segurou o pé de Isabel. Lamentou não estar com sua extensa coleção de ervas curativas e ungüentos que eram guardados em seu quarto de Belmere. Contudo, um linimento teria de ser preparado com urgência. Se percorresse as redondezas, seria provável encontrar algo proveitoso crescendo no final da estação. Anvrai soltou-lhe o pé e pôs Roger sobre o ombro.

— Vamos. A caverna está vazia. — Levantou-se. — Po­deremos usá-la como abrigo até este rapaz se recuperar.

Isabel seguiu-o em silêncio e quando se aproximaram da cruz de madeira, Isabel parou. Anvrai sentiu o nervosismo dela, mas dessa vez não se co­moveu. Apressou-a com rispidez, apenas com o intuito de con­vencê-la a entrar. Disse que precisavam descansar e que a caverna era o melhor lugar de que dispunham no momento para um repouso.

— O corpo já não está mais aqui!

— Eu sei. Vi quando o senhor lançou-o na água.

Anvrai adiantou-se e carregou o jovem inconsciente para dentro da gruta. Deitou o enfermo no catre do eremita e co­briu-o com uma das peles. Apanhou a panela do falecido e saiu. Havia tarefas a serem executadas, antes de permitir-se um descanso. E antes de cometer o erro de consolar uma jovem atraente de cabelos negros que estava parada na entrada da caverna, com expressão de infortúnio. Damas belas e bem-nascidas abominavam sua companhia e mais ainda seu cari­nho. Ele não tinha a menor pretensão de insinuar-se nas boas graças de Isabel e depois ser humilhado.

Voltou à pequena embarcação que haviam roubado dos es­coceses e pegou os poucos pertences que lá haviam deixado. Pendurou as peles molhadas em ramos de árvores para secar e encheu a caçarola do ermitão com água fresca. Voltou para a caverna com a água e as mantas enroladas que Isabel furtara do chefe escocês. Ela entrara na caverna e estava sentada perto de Roger. Abraçada em si mesma e com as pernas sob o corpo. A tez mostrava-se ainda mais pálida sob a luz tremeluzente das tochas que ele acendera antes. Os hematomas e o lábio ferido realçavam-lhe a beleza delicada e as diferenças entre os dois mundos. A nobreza de Isabel Louvet e a simplicidade do cavaleiro Anvrai d'Arques.

Anvrai entregou-lhe uma das mantas secas. — Use-a. Assim milady se aquecerá. Anvrai deixou a vasilha no chão e apanhou um dos archotes. A lareira não passava de um círculo de pedras. Havia fuligem na parede e uma pequena linha de claridade no teto da furna. A ventilação seria adequada. Não demorou muito e Anvrai acendeu um belo fogo. Sentou-se no chão, defronte a Isabel e Roger. O estômago roncou e lembrou-o da fome. Isso signi­ficava que teria de caçar para que pudessem comer. Se nada conseguisse pegar, aumentaria o número dos problemas. Antes de mais nada, precisava de algumas horas de sono ininterrupto.

As pálpebras fecharam-se e sua cabeça pendeu. Isabel che­gou perto e agachou-se diante dele. Anvrai congregou o pouco de energia que lhe sobrara e abriu os olhos. Isabel trouxera uma das mantas enroladas que ela surrupiara do Barba Negra. E quando a desenrolou, o cheiro de algo comestível foi ime­diato. Anvrai despertou, sem saber do que se tratava.

Isabel partiu um pequeno pedaço de pão e entregou-lhe o restante. Ela mirou o desfalecido e os demais itens que se encontravam dentro da pele.

— Peguei também algumas maçãs.

Anvrai aceitou o que lhe era oferecido e experimentou o pão preto.

— Isso estava sobre a mesa do Barba Negra — ela explicou. — Peguei tudo o que foi possível carregar.

Anvrai tomou água para engolir o pão seco. Estava admi­rado com Isabel. Em uma situação extrema, ela não somente matara um agressor, como também planejara a maneira de fugir e de levar artigos de primeira necessidade. Comida e peles para se aquecer. Atitudes bem mais sensatas do que as esperadas de muitos cavaleiros iniciantes.

Isabel pegou o pedaço de pão e voltou para o lado de Roger. Um pouco de alimento mudava o ânimo. Anvrai sentiu-se mais disposto e decidiu explorar os arredores, enquanto havia luz do sol. Melhor isso de que observar Isabel se desvelando em cuidados com o jovem pretendente desmaiado.

— Se ele acordar, faça-o beber um pouco de água — Anvrai avisou, antes de sair da caverna.

A julgar pelas condições do bote e pelo lar que o eremita arrumara dentro da caverna, era de se supor que o homem vivera naquele fim de mundo por um bom tempo. Anos, talvez. Anvrai presumiu que pudesse haver um caminho no alto do talude, mas nada encontrou. Não havia como subir e a saliência do rochedo terminava abruptamente logo depois da caverna, onde o rio cascateava sobre uma ravina escarpada e se trans­formava em cachoeira.

Intrigado, retornou para a gruta, procurando entender como o ermitão sobrevivera naquele local. Isabel continuava a cuidar de Roger. Falava com suavidade, levantando-lhe a cabeça e tentando fazer com que bebesse água.

A visão das mãos macias alisando os cabelos daquele jovem e o som da voz terna fez o sangue de Anvrai correr mais rápido nas veias. Irritado, pegou uma tocha e foi até o fundo da ca­verna. Tomou essa atitude antes de dar asas a seus impulsos animalescos.

Se cometesse tal insanidade, não seria melhor do que os escoceses que a haviam raptado. Nem mais honrado do que os bárbaros que haviam violado e matado sua mãe e sua irmã.

Decidido a tirar Isabel do pensamento, relanceou um olhar ao redor. A moradia de pedra era maior do que lhe parecera no começo. Havia mais dois cômodos quase invisíveis por causa do teto baixo. Ajoelhou-se e segurou a tocha na primeira das entradas. Notou várias ferramentas e utensílios de cozinha esparramados pelo chão.

A abertura seguinte era uma passagem e Anvrai rastejou para entrar. Uma vez dentro, pôde erguer-se, mas teve de ficar curvado. Vinte passos à frente, descobriu uma grande pedra que tampava uma saída.

Deixou a tocha no chão, abaixou-se e, apesar do ombro ferido, empurrou a pedra e tirou-a do lugar.

 

Isabel finalmente aqueceu-se com o fogo que Anvrai acen­dera. O que não a impediu de sentir-se presa e apreensiva dentro da caverna. Não tinha conhecimento de como cuidar de enfermos. Aquele encargo nunca lhe coubera na abadia.

— Beba só mais um pouquinho, por favor. — Isabel en­costou a tigela com água nos lábios do jovem cavaleiro.

Fitou-o e achou difícil de acreditar que fosse o mesmo jo­vem elegante e encantador que lhe parecera o melhor dos pre­tendentes para marido. Os lábios secos estavam rachados. O cheiro de suor era ainda mais intenso que o de Anvrai. A barba rala crescera mais ao redor da boca e menos nas faces. Em ambos os lugares estava emaranhada e suja.

Convenceu-se de que teria de voltar para o convento. De­pois da experiência penosa por que atravessava, o pai teria de esquecer a pretensão de casá-la e permitir-lhe voltar a Rouen para receber os sacramentos da ordem. Seu lugar não era na­quele mundo onde os homens esmeravam-se em demonstrar brutalidade.

Roger engoliu um pouco de água, depois de engasgar e cuspir. Se ele continuasse a beber, certamente haveria de querer aliviar-se. A idéia de ter de ajudá-lo não lhe agradou. A decisão de ficar ao lado de Roger a qualquer custo começava a parecer-lhe não acertada. Esperava que sir Anvrai ficasse, com ela até sir Roger encontrar-se em condições de viajar.

Por que seu pai insistira para que ela e Kathryn voltassem para Kettwyck? Ele não compreendera o perigo que corriam? Isabel suspirou. O que teria acontecido com sua irmã e seus pais? Teriam sobrevivido ao ataque? Kathryn também teria sido raptada?

Kathryn ficara eufórica ao saber que deixariam o mosteiro. Sempre fora entusiasmada por matrimônios. Falava com freqüência nos seus desejos de ter uma vida diferente, de ter um marido a quem pudesse amar e na ânsia de ser mãe.

— Há um caminho para sair daqui.

Isabel assustou-se. A afirmação de Anvrai distraiu-a dos pensamentos saudosos. Limpou com as costas da mão as lá­grimas que haviam aflorado em seus olhos.

— Verdade? Como assim? Onde?

Observou os dois homens. Não sabia qual deles ameaçava mais sua paz de espírito. Anvrai continuava com o tronco mus­culoso despido. Embora ele parecesse imune ao frio, Isabel esperava vê-lo cobrir com brevidade os largos ombros bron­zeados com a pele que estava em seu poder. Certamente não seria pedir demais.

— Venha, eu lhe mostrarei.

Resignada a seguir o cavaleiro que tanto a perturbava, Isabel levantou-se e cambaleou. Primeiro ele indicou um esconderijo de peles sujas.

— Algumas poderão nos ser úteis.

Anvrai empurrou as peles para o lado e expôs várias ferra­mentas ao lado de uma faca e uma vasilha.

— Estas são armadilhas — ele explicou, levantando os laços de couro.

Isabel sentiu um arrepio na espinha ao notar como as mãos de Anvrai eram grandes e fortes. Ele era alto e seu físico, musculoso. Foi impossível não se perder em pensamentos inu­sitados e indesejáveis. Comparou Anvrai com o infeliz cava­leiro que jazia inconsciente do outro lado da caverna e ima­ginou qual a sensação de ser acariciada por um homem tão vigoroso. Sacudiu a cabeça para afastar as imagens pecaminosas.

Ah! Não entendia como os ferimentos não haviam debili­tado sir Anvrai. Ele se esforçara ao extremo para tirá-los da aldeia escocesa e cuidara, apesar dos modos um tanto gros­seiros, dela e de sir Roger.

— Com estas armadilhas poderei pegar algumas lebres. Quem sabe uma perdiz,

Até aquela voz potente a perturbava. O que não ocorrera durante as interlocuções com sir Roger. Um calor incomum invadiu-a e ela teve a impressão de que seus ossos amoleciam.

Isabel concordou com um aceno de cabeça e, apesar das pernas bambas, seguiu-o até um túnel cavado no meio da ro­cha. Abaixou-se para entrar e foi atrás de Anvrai, que ilumi­nava o caminho com uma tocha. No final da passagem, a cla­ridade da luz do sol. O paredão de rocha era largo. Apesar disso, sentiu tontura e o estômago pesado. Recuou até a parede da gruta e fechou os olhos para não ver o vale estreito que estava muito abaixo. Tremendo, abraçou-se por causa do vento que atravessava a camisa fina. O enjôo tornava-se mais forte.

Entreabriu os olhos. Não teria condições de descer até aque­la várzea, mesmo que estivesse calçada e com roupas quentes. Sempre tivera problemas com altura, até quando olhava atra­vés de janelas muito elevadas.

E sir Roger... Quanto tempo demoraria até ele poder ficar em pé, andar e descer dali?

Anvrai assustou-a, ao caminhar até a beira. Apavorada, Isa­bel virou-se para voltar pelo túnel, mas Anvrai impediu-a de prosseguir.

— Venha até aqui, lady Isabel. Ela sacudiu a cabeça.

— Não posso.

— Não é tão alto quanto parece.

— Mas é alto o suficiente... — Isabel envergonhou-se de sua voz trêmula.

Apesar do orgulho ferido, não ousou olhar o precipício. Aquilo iria piorar ainda mais a agitação nervosa no estômago, o mal-estar e o arrepio nas pernas.

Escutou Anvrai resmungar qualquer coisa. Não entendeu as palavras, mas supôs o significado delas. E diante de seu olhar apavorado, ele desceu e sumiu.

Anvrai chegou ao vale e expôs-se ao vento para esfriar o sangue aquecido. Fora impossível não reagir diante daquela demonstração de feminilidade poderosa. Ela estremecera com

a proposição de percorrer o despenhadeiro de cima para baixo. Tivera de lutar contra a vontade de pegar Isabel no colo e descer com ela nos braços.

O que seria uma atitude contrária à razão. O caminho era perfeitamente seguro; e a distância até a várzea, pequena. Co­nhecera homens que não suportavam a visão de grandes alti­tudes. Já vira arqueiros que não podiam subir até as ameias por causa das vertigens. Sem dúvida, Isabel sofria do mesmo mal. Trouxera uma armadilha e uma pele grande. Ajoelhou-se, estendeu a manta e fez um corte no centro. Vestiu a túnica rústica pela cabeça e, para mantê-la no lugar, amarrou-a na cintura com uma corda.

Encontrara na caverna muitos objetos de utilidade. Mas fal­tava o mais importante. Alimento. Teria de remediar de ime­diato essa questão. Seguiu o caminho estreito até o vale e pre­parou as armadilhas em meio às árvores. Em seguida foi até um pedaço de terra que lhe pareceu ter sido cultivado — pro­vavelmente pelo ermitão — e no trajeto colheu um pouco de echinacea e calêndula que cresciam nas proximidades. Na hor­ta abandonada encontrou repolhos e um pouco de cebola que não tardariam a apodrecer. Notou um ninho de faisão com três ovos. Anvrai pegou os ovos, colheu os vegetais, ajeitou-os na frente de sua túnica improvisada e voltou para a caverna, onde encontrou Isabel dormindo ao lado de Roger.

A faixa que estava enrolada no pé da jovem dama lhe cha­mara a atenção. Cobria um ferimento de mau aspecto e sujeito a piorar com facilidade.

Anvrai aprendera duras lições no campo de batalha. A mais importante delas era que ferimentos nem sempre eram responsáveis por uma morte imediata. Algumas vezes infeccionavam e putrefaziam os tecidos circundantes. A agonia da morte sobreviria após dias ou até semanas.

Deixou o que trouxera perto do fogo. Impediria que um mal maior acontecesse a Isabel. Triturou as folhas e as raízes das ervas medicinais e reduziu-as a um pó seco. Adicionou água quente e sentou-se ao lado de Isabel. Tocou-a, mas ela não se mexeu. Exausta, mergulhara em um sono pesado.

As mãos de Isabel haviam se transformado em uma chaga só, de tantas bolhas. A pele sedosa não estava acostumada ao trabalho pesado. Remar fora uma agressão aos dedos e às pal­mas delicadas. Se tivesse um frasco de ungüento curativo, po­deria aliviar os ferimentos das mãos e pulsos. Sabia muito bem o tamanho do desconforto que eles causavam.

Passou levemente a ponta do polegar nas bolhas, como se o afago pudesse diminuir o sofrimento de Isabel.

Largou as mãos dela com cuidado e pôs no colo o pé ferido. Desenfaixou-o e lavou o corte. Se estivesse acordada, Isabel teria receado ser tocada por ele.

Ah, como Anvrai desejava que seu rosto não fosse tão re­pulsivo! Fazia muito tempo que perdera a esperança de aca­riciar uma jovem atraente. Seu destino fora traçado desde a infância. Não teria filhos, não deixaria propriedades nem ri­quezas.

Anvrai d'Arques era um cavaleiro sem bens. Um homem que vivia à custa de sua habilidade no manejo da espada. Uma ocupação que se tornara intolerável para ele. E que mulher, bonita ou feia, aceitaria um marido que se recusava a cumprir as ordens do rei e por isso não fora recompensado?

Inspirou e expirou com um gemido. De nada adiantaria re­volver ocorrências passadas. Concentrou-se no pé de Isabel. O corte era profundo. Aplicou o cataplasma e tornou a enfai­xar o membro afetado. Com alguns cuidados, o corte fecharia assim mesmo.

Enquanto isso, Isabel não poderia fazer longas caminhadas. O que incluía a trilha que descobrira até os campos e a mata do vale, onde ele deixara as armadilhas para apanhar algum animal ou uma ave. Durante alguns dias, eles teriam de ficar presos por força das circunstâncias. Cobriu Isabel com uma das peles do homem solitário que vivera ali e afastou-se.

O cansaço temporariamente esquecido pelo pão que comera voltou a incomodá-lo. Estirou os músculos e ossos doloridos. O esforço aumentou o mal-estar. Anvrai estirou-se no chão e adormeceu.

Isabel encontrava-se aquecida e segura em seu refúgio repleto de pétalas de rosas e de peles. Ouviu os primeiros sons do amanhecer e experimentou no rosto o calor do sol da Fran­ça. Uma voz masculina, profunda e ressonante, desencadeou nela um frêmito de expectativa. Uma sensação nunca antes experimentada. Fitou o recém-chegado e teve a nítida impres­são de que seu sangue disparava à vista do físico vigoroso e dos músculos bem delineados.

Não podia ver seu rosto, mas sabia que era de seu amado. Aquele cujo toque lhe proporcionava imenso prazer.

— Milady deseja comer?

Confusa por escutar uma voz diferente, imperiosa, Isabel descerrou as pálpebras e olhou para cima. Deparou-se com a fisionomia deformada de Anvrai. Recuou de imediato e Anvrai afastou-se, deixando um bom espaço entre eles.

— Já amanheceu, milady — ele comentou, com secura. — Temos ovos para a refeição matinal.

Isabel sentou-se, lamentando ter de abandonar a paz e o contentamento de seu belo sonho. Faminta, percebeu seu es­tômago roncar quando Anvrai estendeu-lhe uma tigela com um ovo cozido.

— Obrigada.

A resposta não passou de um resmungo mal-humorado. Isa­bel deu uma mordida no ovo quente. Bem, sir Anvrai podia não ser civilizado, mas pelo menos entendia alguma coisa de cozinha. Isabel terminou de comer. Anvrai afastou-se, falou com Roger e obteve resposta.

— Ele está acordado!

— Sim, está.

— Lady Isabel? — Roger chamou-a com voz esganiçada. — Como está?

Ela deixou a tigela no chão e aproximou-se do ferido. Se­gurou-lhe a mão e passou-a no rosto. — Muito bem! Eu estava tão preocupada com o senhor! Ele fechou os olhos. Anvrai retornou e entregou-lhe uma caneca com água.

— Ele está febril. Veja se consegue fazê-lo beber.

A pele de Roger queimava. Isabel ajudou-o a beber metade do líquido. Ao ver que ele rejeitava o resto, deitou-lhe a cabeça em uma pela macia que encontrara ao lado e cobriu-o com uma das mantas que roubara da cabana do Barba Negra. De­duziu que Anvrai deveria tê-las trazido para dentro, pois es­tavam secas e empilhadas ao lado do espaço onde ela dormira. Anvrai sentou-se ao lado do fogo, onde, munido com a faca do eremita, entreteve-se com um pedaço de pele. Cortou dois quadrados e duas longas tiras de couro.

— O que o senhor está fazendo?

— Um par de sapatos para milady. — Anvrai tornou a apro­ximar-se e agachou-se a seu lado. — Dê-me o pé.

Ela estendeu a perna direita. Anvrai enrolou a pele no pé e amarrou-a com a tira de couro. Fez o mesmo com o esquerdo e Isabel experimentou uma sensação estranha. Perturbadora. Semelhante à agitação que vivenciara durante o sonho.

— Pode deixar, que eu mesma termino. — Ela tirou o pé do alcance das mãos competentes de Anvrai.

Orgulhosa, disse a si mesma que não necessitava de assis­tência para uma tarefa tão simples. Também não queria dar margem às sensações violentas causadas pelo toque de Anvrai em sua pele.

Arrependida pelo tom grosseiro com que se expressara, agradeceu a Anvrai o empenho e a preocupação. Levantou-se e caminhou pela gruta, ida e volta. Desde o começo, sir Anvrai se mostrara dedicado para com eles. A descortesia fora intei­ramente despropositada. Para seu consolo, Anvrai não pareceu ter notado o compor­tamento grosseiro. Ele se ocupara em procurar uma panela e naquele momento saía com a vasilha nas mãos. Isabel sentou-se ao lado de Roger, alisou-lhe os cabelos para trás e analisou um futuro ao lado dele.

Aprendera como administrar uma grande residência, com criados e haveres, nos anos em que estivera na abadia. Durante muito tempo não entendera que vinha sendo preparada para assumir os deveres de castelã, quando se casasse. Embora sou­besse quanta comida deveria ser preparada para uma mansão com quarenta pessoas e quantos pães deveriam ser assados diariamente, nada entendia sobre os deveres de uma esposa. Vivera no convento desde os dez anos.

Nunca tivera contato com casais. Portanto, não lhes teste­munhara o comportamento. O que se esperava de uma esposa? Bem, em primeiro lugar, gerar e criar filhos para o marido. Mas se esse processo trazia implícito uma submissão como o Barba Negra insinuara, nada feito. Entretanto, era preciso ser sincera. Em Kettwyck, presenciara muitas vezes o flerte entre homens e mulheres. A animação deles em nada sugeria que o casamento fosse sempre um acontecimento detestável. Na ver­dade, muitas mulheres só pensavam em matrimônio. Fitou de viés o pretendente à sua mão. Imaginou-se deitada com ele, sendo beijada por ele e... fazendo amor com ele.

O jovem cavaleiro gemeu e virou-se de lado, na direção dela. Isabel achou que estava na hora de testar os sapatos. Pensando nisso, resolveu sair.

A pele amaciava as pisadas. Apesar do ferimento dolorido no pé, a bota improvisada tomava o caminhar tolerável. A temperatura do lado de fora da gruta estava amena e Isabel imaginou para onde Anvrai poderia ter ido. Achando que teria se dirigido ao barco, foi em direção contrária, para oeste do

talude. Prestou atenção ao solo, evitando as rochas pontiagudas e logo chegou a beira da mata.

Anvrai estava em pé ao lado da ribanceira. A túnica de pele fora deixada no chão. De perfil, ele não a enxergou, pois Isabel se aproximara pela esquerda. O lado do olho cego. Permaneceu em silêncio e observou-o barbear o rosto e o pescoço.

Isabel considerou aquele um procedimento delicado para mãos grandes e rústicas. Anvrai raspava a lâmina da base do pescoço no sentido do queixo em movimentos repetidos. Os músculos do pescoço eram fortes e o contorno do queixo, bem delineado.

Contemplou o peito que parecia uma escultura, tão diferente dela. De maneira inconsciente, passou a mão no busto e sentiu a suave plenitude.

Isabel afrouxou os laços da túnica que vestia sobre a ca­misa. Nem mesmo o vento esfriou a pele aquecida. Abanou-se com uma ponta da barra. Seria melhor voltar e ver como sir Roger estava passando. Suspirou. Não tinha vontade de tirar os olhos do físico masculino e perfeito do cavaleiro sir Anvrai d' Arques.

Considerou que se tratava de mera curiosidade. Não tinha por sir Anvrai nenhum interesse em particular. Apenas a di­ferença dele em relação aos poucos homens que conhecera a impelia para cometer uma pequena indiscrição. Passou a mão no próprio abdômen. Não possuía ondulações musculares se­melhantes às de sir Anvrai. Seus quadris também não eram estreitos como os dele.

Anvrai tirou a calça e deixou-a no chão. Isabel não sentiu medo nem repulsa, como acontecera diante do Barba Negra.

Ficou fascinada com o poder demonstrado por aquela nudez. Um deus grego.

Enrubesceu e imaginou se o calor a derreteria. Recriminou-se. Era impróprio — indecente mesmo — observá-lo sem que ele se desse conta do fato. Apesar disso, não foi embora até Anvrai entrar na água. Aproveitou aquele momento de distração para voltar por onde viera.

Roger era mais baixo que Anvrai e sua constituição esguia jamais se igualaria à robustez de Anvrai. Isabel imaginou qual teria sido o destino deles, se tivessem de contar com a delica­deza de Roger, em vez da intrepidez e da perícia de Anvrai.

Com receio da resposta que antecipava, Isabel encaminhou-se para onde estava a pequena embarcação furtada dos esco­ceses. Enfiou as mãos na água e lavou-as. Refrescou as arranhaduras e as bolhas. Tentou arrancar os últimos vestígios de sangue do chefe escocês.

Sir Anvrai d'Arques, o glorioso cavaleiro, sentiu-se quase humano de novo. Usara a lâmina do ermitão para barbear o rosto e esfregara a sujeira de todos os poros do corpo. Naquele momento, sentiu-se com nova disposição para verificar as ar­madilhas que preparara.

Voltou para a caverna. Roger estava sozinho. Isabel devia ter ido em busca de alguma novidade.

Anvrai disse a si mesmo que seria impossível para Isabel perder-se em um lugar tão pequeno. Mais tranqüilo, foi em direção ao túnel cuja saída se encontrava ao sul da furna. Do lado de fora, percebeu que o vento aumentara de intensidade e nuvens escuras se aproximavam. Não tardaria a esfriar.

Refletiu se lady Isabel notaria a mudança nas condições atmosféricas. Talvez fosse melhor esquecer os engenhos para apanhar animais e sair à procura dela. Sentiria o prenúncio de tempestade no vento frio e voltaria para a gruta?

Virou-se, disposto a caminhar de volta pela passagem por dentro da pedra. Deu alguns passos e se deteve. Isabel era uma mulher adulta que podia tomar conta de si mesma. Pela apa­rência sombria do céu, ficariam presos na caverna por no mí­nimo mais um dia. Era preciso pensar na alimentação. Espe­rava que os laços de couro lhes reservassem uma boa surpresa. Fazia muito tempo que não comiam algo substancial.

Anvrai parou em cima da várzea e observou a paisagem em busca de caminhos que pudessem levá-los para o sul, de volta à Inglaterra. A rota não lhe pareceu difícil, no entanto teria de contar com dois percalços. Se sir Roger sobrevivesse, estaria muito fraco. E o pé de Isabel estava muito ferido.

Nenhum dos dois aspectos eram favoráveis a um rápido deslocamento.

Era possível que o ermitão dispusesse de uma carroça para carregar lenha e grãos de volta para seu reduto. O veículo poderia estar escondido em algum canto. Se assim fosse, Isabel e Roger poderiam ir sentados, enquanto ele os puxava de volta a Kettwyck.

Com esse propósito em mente, Anvrai deslocou-se com cui­dado para baixo, observando se havia marcas de rodas. Nada. Nenhum vestígio. Ficou mais animado quando chegou perto das armadilhas. Dois pássaros tinham sido apanhados. Anvrai pegou as duas perdizes gordas, recolheu mais ovos e tornou a preparar as engenhocas, antes de retomar à caverna, onde Roger estava gemendo.

— Onde está lady Isabel? — o rapaz perguntou com voz fraca.

Anvrai lamentou nada poder fazer por ele. Era preciso energia e preparo físico para vencer a difícil batalha pela vida. Deixou as aves no chão perto do fogo e foi até a entrada da caverna.

A cerração vinda da água começava a cobrir o solo. Isabel já deveria ter voltado. Tivera tempo suficiente para satisfazer suas necessidades. Apesar de ser adulta e inteligente, pare­cia não ter juízo para retornar diante de uma tempestade em formação.

Caminhou até o local onde atracara o barco. Isabel estava curvada sobre a água e lavava as mãos. Tirara a túnica em­prestada e o tecido fino da camisa moldava-lhe as formas com tal nitidez que era possível ver uma mancha de nascença de um dos lados dos quadris.

Isabel caiu sentada, quando Anvrai pigarreou.

— O senhor assustou-me! — Ela corou, mas não desviou o olhar como costumava fazer.

— Parece que vai chover... — Ele não pensara em inti­midá-la.

Isabel parecia uma deusa emergindo da névoa. Pele clara, olhos dourados e cachos de cabelos negros caindo pelas costas.

— A sua barba...

— Estava coçando muito. Nosso amigo solitário deixou uma lâmina... Não vi motivos para não a usar.

— O senhor tem de barbear-se todos os dias?

A dúvida presente na fisionomia de Isabel era um indicativo de que ela nada entendia de homens e de seus costumes. Anvrai anuiu, pouco à vontade de estar sendo analisado.

— O senhor cortou-se. — Isabel ficou em pé, aproximou-se e tocou no pescoço de Anvrai. — Aqui...

Os cabelos de Isabel estavam molhados, assim como a fren­te da camisa aberta de maneira convidativa. A parte superior do busto ficava visível e os mamilos rijos se destacavam sob o tecido fino.

Anvrai engoliu em seco. Precisava correr dali.

— E aqui...

Isabel tocou-lhe o rosto e Anvrai segurou-lhe o pulso para deter aquele martírio. Sabia que ela não era o tipo de mulher que aceitaria seus avanços.

— Algumas cicatrizes a mais não farão diferença. — O tom grosseiro incomodou a ele mesmo. — Está na hora de voltar.

Isabel curvou-se para recolher a túnica e Anvrai fez um gesto semelhante. A cabeça de um chocou-se com a do outro.

— Pode deixar, milady, que eu pego.

Ela ficou imóvel, com as mãos largadas e segurou a peça que lhe era entregue.

— Cubra-se, lady Isabel.

Ela obedeceu, mas não com a agilidade desejável. Anvrai gostaria de saber se Isabel tinha idéia da atração que exercia sobre ele.

— Sir Roger está chamando por milady.

Isabel não via motivos para o mau humor de Anvrai. No momento, encontravam-se em segurança e contavam com um ótimo esconderijo como abrigo. O mais provável era que ele lamentasse o fato de não poder voltar com presteza. Um atraso causado por Roger e por ela.

Isabel cruzou os braços na altura do peito.

— Sir Anvrai, sinta-se à vontade para ir embora, se quiser.

— Ir embora, se eu quiser?

— Isso mesmo. Pode me deixar aqui com sir Roger. Nós nos arranjaremos, mesmo sem o senhor.

— Morrerão de fome.

— Pensarei em alguma coisa. — Não era o que ela sempre fazia?

Anvrai fitou-a com ceticismo, mas Isabel encarou-o, desa­fiadora.

— Eu fugi do chefe escocês e tive a idéia de escaparmos de barco, está lembrado?

— E quase morremos no rio.

Ela admitiu que não fora uma tarefa fácil.

— Mas conseguimos. Eu poderei voltar a Kettwyck. Não duvide disso.

Lady Isabel Louvet, de St. Marie, levantou o queixo, endi­reitou os ombros e caminhou de volta à caverna, como uma rainha. Anvrai d'Arques seguiu-a.

A chuva começou a cair assim que eles entraram. O fogo aceso aquecera a gruta e o local ficara aconchegante.

— Aves! — Isabel alegrou-se ao ver as duas perdizes no chão. Sorriu para Anvrai. — Nós não morreremos de fome. — Fitou os repolhos e as cebolas.

Anvrai pegou uma das aves e foi para o fundo da caverna, enquanto Isabel se ajoelhava ao lado de Roger. Fora injusta nas reflexões a respeito do rapaz. Ele estava doente e esse era o único motivo por que parecia tão sem graça, tão... incom­petente.

Rasgou outra tira da barra da camisa, molhou-a e fez uma compressa na protuberância da cabeça do ferido.

— Lady Isabel — ele gemeu — que bom que está aqui.

— Estou, sir Roger — ela respondeu, carinhosa. — Como está se sentindo?

— Minha cabeça... meu peito...

— Seu peito está doendo?

Ele engoliu em seco e fez um gesto leve de anuência com a cabeça.

— Está muito machucado?

— Sim.

Isabel abriu-lhe os cordões da túnica e fitou o peito que desnudara. Não havia cortes ou ferimentos evidentes. Também não havia músculos ou pêlos. Ela levantou os olhos e fitou-o, enquanto lhe apertava o peito com a mão.

— Está doendo?

O mancebo estremeceu.

— Sim.

— E agora? — Isabel moveu a mão para o outro lado.

— Também.

Não foi possível sentir uma camada musculosa sob a pele fina. Era óbvio que Roger não tinha treinamento de lutas. Era um cavaleiro pacífico, que dava mais atenção à virtude e as orações do que às guerras. Era exatamente o modelo de homem que ela decidira escolher para marido. Um homem terno e bondoso. Um que lhe entendesse as sensibilidades.

— Beba um pouco de água, sir Roger.

Ele bebericou alguns goles da vasilha que Isabel lhe encos­tara nos lábios e derrubou um pouco do líquido no peito. Ela o limpou e esqueceu do curto diálogo que mantivera com Anvrai. Ele era rude. Não se preocupava nem entendia sentimen­tos de compaixão, humanidade, simpatia e ternura. Além disso, jamais deveria ter ficado sem roupas em um local onde poderia ser visto. E ainda por cima, fazendo demonstrações absolutamente inadequadas diante de uma jovem virtuosa!

Anvrai demorou um bom tempo para tirar as penas da perdiz e cortá-la em partes. Quando terminou, pôs os pedaços na panela com água e levou tudo ao fogo. Cortou uma cebola e um repolho e acrescentou-os ao conteúdo.

Roger voltara a dormir. Isabel recostou-se na parede e de­samarrou o laço que mantinha a bota de pele no lugar. Desen­faixou o pé e examinou o corte infeccionado.

— Oh! — A pele estava esverdeada, com um aspecto hor­rível.

— É um cataplasma — explicou Anvrai, sem se voltar. — Eu o apliquei à noite, enquanto milady dormia.

— Não pode ser! Eu não acordei?

— Não. Creio que estivesse esgotada.

— O senhor não estava? Ele sacudiu a cabeça.

— Não tanto como milady.

Isabel tirou o curativo e limpou a pele com a tira molhada que usara na cabeça de sir Roger. O ferimento era fundo, mas não estava vermelho, nem se via pus.

— Deixe-me ver. — Anvrai agachou-se ao seu lado. Segurou-lhe o pé e virou-o com delicadeza para examiná-lo à luz das chamas. — Está cicatrizando muito bem.

Ele preparou outro cataplasma, cobriu a ulceração e enfai­xou o pé com cuidado. Trabalhou sem falar e o silêncio tor­nou-se quase palpável entre eles. Isabel admitiu que experi­mentava uma sensação estranha. Anvrai segurava-lhe o pé com intimidade. Inebriada por um langor cálido, pensou que seria capaz de derreter se o curativo se estendesse por mais tempo. Analisou o rosto de Anvrai. Ele tinha o nariz reto e lábios carnudos que ele contraía levemente enquanto se concentrava no que fazia.

Roger acordou de novo e chamou-a.

— Água, milady, por favor. — A voz não poderia ser mais fraca.

Anvrai sentou-se sobre os calcanhares e deu-lhe espaço para passar. Ela sentiu o olhar intenso às suas costas, enquanto se sentava ao lado do enfermo a quem ofereceu goles de água e palavras gentis.

A chuva torrencial os isolava do resto do mundo. Isabel considerou que não se tratava de uma ocorrência desagradável. A refeição fervilhava na panela. Dentro da gruta estava quente e havia segurança. Sir Roger haveria de sarar.

Se houvesse permanecido no convento de St. Marie, jamais teria passado por um momento semelhante. Jamais teria sen­tido calafrios pela masculinidade inquestionável de sir Anvrai. O cavaleiro d'Arques despertara nela uma faceta que lhe era totalmente desconhecida.

Umedeceu os lábios e olhou para Anvrai.

— Por que será que aquele homem veio para cá?

— O nosso antecessor solitário?

Isabel assentiu e Anvrai deu de ombros, adicionando mais um graveto na fogueira.

— Não acredito que uma pessoa procure afastar-se de tudo e de todos. Talvez ele tenha sido coagido ou sofrido um naufrágio... Quem poderá saber? O ser humano consegue habi­tuar-se às mais diversas condições. Milady não se acostumou no convento?

— Ah, sim, mas lá era diferente.

— Na verdade, não muito — contestou Anvrai. — Milady tinha pouco contato com o mundo exterior. Vivia entre quatro paredes e tinha as freiras como companhia.

— No mosteiro havia uma comunidade. Aqui, o eremita vivia só.

Ele não respondeu e misturou o conteúdo da panela. Um aroma apetitoso emanava do caldo e Isabel sentiu o estômago contrair-se de fome.

— Há muitos motivos para um homem procurar a solidão — Anvrai comentou, algum tempo depois, sem a fitar.

Isabel compreendeu que ele falava por experiência própria. Ora, mas o que entenderia de solidão um homem tão afamado? Sir Anvrai era um cavaleiro poderoso cuja reputação era conhecida por todos em Kettwyck. Certamente ele nunca sentira necessidade de isolar-se do mundo.

— Cite um deles.

 

Santo Deus, lady Isabel não o deixaria sossegado? Depois de tratar-lhe do pé e de preparar a refeição, seria dema­siado pedir um pouco de paz e tranquilidade?

Anvrai foi até o recinto onde o eremita guardava os supri­mentos. Havia muito para ser feito antes de que pudessem deixar a caverna e procurar o caminho da Inglaterra. Estavam no fim da estação e ele ouvira falar dos rigores do inverno no norte. Quanto antes fossem para o sul, melhor para todos.

As peles eram em número suficiente para fazer uma túnica para cada um, talvez mais. Felizmente reservara os sapatos e as roupas do defunto, antes de atirá-lo na correnteza. O traje e o calçado serviriam apenas para sir Roger. Se o rapaz se recuperasse, era o que vestiria quando fossem embora e não saberia que as roupas eram herança de um morto.

Teria necessidade de agasalhos contra o frio, pois durante o trajeto certamente não encontrariam muitos abrigos à dis­posição.

— Sir Anvrai, sou muito boa costureira — Isabel explicou, ao vê-lo sentar-se com as peles no colo. — Se o senhor prefere caçar e cozinhar, eu poderei costurar.

Diante da expressão duvidosa que ele não conseguiu dis­farçar, ela se ajoelhou a seu lado e tirou-lhe a agulha de osso da mão.

— Estou falando a verdade. Sei costurar muito bem. Isabel começou a separar os pedaços de couro e de peles.

— Suas mãos, milady... — ele se inquietou. As bolhas não cicatrizadas haveriam de piorar com a tarefa.

— Sir Anvrai, estou acostumada a participar. — ela afirmou, ofendida. — Sempre desempenhei minha parte a contento. Por favor, empreste-me a faca.

Isabel segurou o objeto que lhe era estendido e cortou pelo meio um longo pedaço de couro.

— Primeiro farei mangas para a sua túnica.

— Isso não é prioridade. Milady é quem precisa de proteção mais adequada.

— Aqui há peles suficientes para todos — alegou, deter­minada. — Não discuta, por favor.

Anvrai cruzou os braços e observou os dedos ágeis. Lady Isabel Louvet não mentira. Ela conhecia o ofício, na certa aprendido com as irmãs na abadia.

Isabel cortou buracos pequenos nas bordas. Depois, com a agulha e um cordão fino transformou a pele em mangas. Exa­minou-as com olhar aprovativo e pediu-lhe para levantar-se.

— Dê-me seu braço, sir Anvrai.

Ao percebê-la tensa e irritadiça, ele não controlou a vontade de aliviar a tensão com uma brincadeira.

— Não posso. Acho que está preso.

Isabel fitou-o com ironia e Anvrai desconfiou que o chiste não atingira o alvo.

— Meu braço está preso em meu corpo, milady.

— Muito engraçado! — Isabel aproximou-se com uma das mangas. — Estique-o para a frente.

Ela deslizou a manga para cima do braço musculoso.

— O senhor não tem sentido frio com a pele exposta?

— Não muito.

— Nem mesmo sem sua túnica? Fiquei muito grata pelo empréstimo, porém...

— Não se impressione, milady. Não costumo sentir muito frio.

Seria lady Isabel tão ingênua? Ela nem mesmo entendera que o fato de aquecê-la fora apenas uma parte do ato bene­mérito.

— Esta túnica é muito bem-feita. — Isabel não ocultou ter ficado encabulada. — Foi sua... esposa que a costurou?

— Não tenho esposa.

— Ah... O trabalho de agulha é muito bem-feito, por isso presumi que... — Ela franziu a testa. — Sir Anvrai, não me lembro de tê-lo visto entre os cavaleiros pretendentes à minha mão que se reuniram em Kettwyck. Se estivesse lá, eu teria me recordado.

— Não, milady. Eu não fazia parte do cortejo de inte­ressados.

Será que ela não pretendia mais parar de mexer com o braço e o ombro dele? Quanto tempo seria necessário para costurar uma manga tão simples?

— Então o senhor deve tê-la comprado na França, onde o artesanato é...

— Nada disso. A túnica é de um amigo que me emprestou para eu vestir no banquete de Kettwyck.

— Entendi. — Isabel hesitou por alguns instantes e depois recomeçou a medir.

— Foi a esposa de meu amigo saxão quem executou a obra de arte.

Ele diria qualquer coisa para não pensar nas mãos que o tocavam. Não se lembrava de nenhuma outra mulher que hou­vesse encostado nele com tanta boa vontade. Sentia-se zonzo. Ou melhor, intoxicado.

Isabel passou a comparar a parte da frente com a de trás da veste rústica que Anvrai improvisara. Ele não obtinha re­sultados favoráveis nas tentativas de afastar o pensamento das mãos que encostavam em sua pele desnuda.

— Espere, milady. Será preferível tirar a túnica para faci­litar seu trabalho.

— Só mais um momento. Eu a consertarei, mas preciso ver qual a melhor maneira de fazê-lo.

Isabel soltou o cinto de couro que Anvrai amarrara na cin­tura para manter a roupa de pele no lugar e puxou a peça pa­ra trás.

— Acho que assim ficará melhor. Levante os braços, sir Anvrai, por favor.

Ele fechou o olho e procurou evitar a excitação pelas carí­cias involuntárias da bela e habilidosa costureira.

— Eu tinha certeza de que os escoceses haviam quebrado suas costelas — Isabel comentou em voz baixa e passou a ponta dos dedos nas equimoses laterais. — Mas o senhor está se movimentando muito bem.

— Nada foi quebrado — ele retrucou com secura. — Mi­lady já terminou?

— Sim, já. Por favor, tire a túnica para que eu possa con­sertá-la.

Anvrai acedeu à solicitação e, vestido apenas com a calça, foi até o outro lado da gruta, onde o ocupante anterior guardava os pertences. Com uma tocha erguida, examinou pela enésima vez o que ali fora deixado. Precisava esquecer a sensação in­tensa provocada pelo toque de Isabel.

Existiria a possibilidade de ela não sentir repulsa por seu rosto e suas cicatrizes? Talvez a houvesse interpretado mal. Era possível que Isabel fosse diferente das outras belas jovens que conhecera. Mesmo assim, estava destinada a Roger, o que representava um grande alívio para Anvrai. Não era, em última instância, responsável por lady Isabel Louvet.

Isabel trabalhou em silêncio e com eficiência notável, até o enfermo acordar. Quando o rapaz sentou-se, ela acorreu de imediato. Trouxe caldo da perdiz cozida e insistiu para que ele comesse, mesmo antes de ela saciar a fome. Quem os visse, poderia imaginar que ela e o rapaz estavam sozinhos na caverna.

— Não me lembro do que aconteceu — disse Roger com voz fraca. — O que houve, lady Isabel? Tenho a vaga impres­são de que me amarraram em um tronco... acho que foi em uma aldeia. — Fitou-a com interrogação. — Como foi que saímos de lá?

Ela estremeceu.

— Falaremos sobre isso quando estiver melhor, sir Roger.

— Mas o que houve? — ele teimou em esclarecer os fatos. Tentou sentar-se, mas ela o segurou pelo ombro, impedindo-o de fazê-lo. — Aquele escocês bárbaro a violou, lady Isabel! Eu o matarei! Eu...

— Sir Roger, por favor, continue deitado.

Com o queixo contraído, Anvrai fitou a figura esguia que lutava com Roger. Já testemunhara uma infinidade de horrores de guerra. Presenciara a morte de sua mãe e de sua irmã, antes de ter um olho perfurado e ter sido abandonado como morto. Era a mesma sensação de impotência que o acometia quando olhava para Isabel.

Uma árdua e longa jornada os aguardava. E não seria Roger quem haveria de proteger Isabel. Embora ele próprio não ti­vesse certeza de que seria capaz de mantê-la em segurança até o destino final: Kettwyck.

— Nós fugimos dos escoceses antes que algo de mal pu­desse acontecer-me.

— Santo Deus, onde estavam os soldados de seu pai? Por que fomos deixados à ira daqueles selvagens?

— Sir Roger, os cavaleiros de meu pai estavam em menor número. Receio que sir Hugh, o mais eficiente auxiliar de meu pai...

— Menor número de normandos? — Incrédulo, ele aumen­tou o tom de voz. — Em relação aos escoceses?

— Sir Anvrai veio em nosso auxílio. — Roger notou-o pela primeira vez. — Mas ele e seus homens foram derrotados.

Roger fechou os olhos e ajeitou-se sobre a manta de pele.

— Então nem mesmo esse monstro conseguiu nos salvar.

Isabel estava convencida de que a grosseria de sir Roger fora causada peia doença. Com toda a certeza ele prezava a tentativa de sir Anvrai para salvá-los. Ele nem se lembrava de que os escoceses haviam emboscado Anvrai e seus cavaleiros, derrotando-os antes da chegada.

— Os bárbaros estavam em grande número. — Ela espiou por sobre o ombro, com a esperança de que Anvrai não houvesse escutado o insulto dito por sir Roger.

— Conte-me o que aconteceu — o doente pediu. Anvrai atirou um pedaço de lenha no fogo e recostou-se na parede. A sua presença transmitia segurança e força. Isabel tinha convicção de que ela e sir Roger estariam protegidos, enquanto estivessem sob os cuidados do cavaleiro d'Arques. Era uma emoção peculiar transmitida pela masculinidade na­tural e não lapidada de sir Anvrai. Duas semanas antes, teria ficado inquieta por causa de seu porte avantajado e com o poder de sua força. Naquela altura, não se sentia nem um pou­co ameaçada.

— Sir Roger, trata-se de uma longa história e o senhor pre­cisa descansar.

Ela não queria comentar o que fizera. O que acontecera fora terrível demais. E muito pessoal para ser compartilhado com sir Roger. Ainda mais que ele se encontrava em estado de espírito tão pouco generoso.

O que sir Roger pensaria, se soubesse o que ela fizera?

Sentiu um nó na garganta e lágrimas vieram-lhe aos olhos. Afastou-se depressa.

Seria melhor que ela nunca mais tornasse a pensar no hor­rível incidente. Relembrar tudo aquilo de nada lhe serviria. Limpou as lágrimas com as costas da mão e apanhou a túnica que estava fazendo.

Não seria uma peça de vestuário tão fina como a que Anvrai tirara do corpo para servi-la, mas haveria de protegê-lo do frio. Passou os dedos na barra da veste que usava. Perfeita.

— Os bordados desta peça são maravilhosos — Isabel co­mentou com Anvrai. — A esposa de seu amigo é muito ha­bilidosa.

— É verdade. Lady Elena tem muitos talentos.

— Elena... é saxônia?

— Sim.

A resposta curta foi claramente destinada a encerrar o as­sunto. Isabel gostaria de saber onde ele vivia, quem eram seus amigos e quem o amava.

Anvrai era muito mais novo do que aparentava. Deveria ser ainda um jovem quando ganhara a reputação em Hastings, seis anos antes.

— Qual a sua idade, sir Anvrai?

— Eu já vi passar vinte e sete verões, milady. A senhora já terminou a costura?

— Eu... — Isabel levantou o trabalho do colo. — Falta pouco. Deixe-me amarrar o último laço.

Em segundos, ela entregou a peça pronta. Anvrai vestiu-a pela cabeça e Isabel ficou satisfeita ao ver que estava no tamanho certo. Ela estendeu o cinto que foi amarrado no lugar devido.

Isabel fitou-o e notou uma expressão inequívoca, embora fugaz, de agrado, antes de ele se virar e sair da caverna. Anvrai entrou no túnel e ela temeu tê-lo aborrecido com questões não pertinentes. Ele fora derrotado pelos escoceses em Kettwyck, mas graças à sua força e perícia todos estavam vivos e prote­gidos dentro daquele abrigo.

— Lady Isabel? — Roger acordara mais uma vez e a cha­mava.

Isabel pôs caldo com carne em uma tigela e sentou-se ao lado dele.

— Sir Roger, conte-me a respeito de sua propriedade na Inglaterra.

— Chama-se Pirou. Quando voltarmos, o castelo estará ter­minado e pronto para morarmos.

Ela refletiu a respeito da propriedade magnífica que fora concedida para sir Roger. Ele era muito bem relacionado com a corte do rei Guilherme. E segundo lorde Kettwyck, sir Roger seria contemplado com honrarias e títulos incomparáveis.

O enfermo recostou-se em um dos cotovelos.

— Eu não perdi as esperanças de levá-la para Pirou como minha esposa.

— Eu sei.

— Lady Isabel, já recebi o consentimento de seu pai e eu gostaria de perguntar a milady se...

— Sir Roger, deixemos para mais tarde qualquer discussão relativa a casamento. Vamos primeiro sair da Escócia... vivos.

— Lady Isabel, nunca estive tão certo a respeito de uma coisa.

Mas ela não estava. Antes do ataque a Kettwyck, acreditava que sir Roger seria o noivo perfeito. Tinha olhos negros e sinceros. Apesar do rosto barbado no momento, era um jovem atraente. Terno e sensível, bem diferente dos soldados gros­seiros que estavam a serviço de seu pai. O oposto de sir Anvrai d'Arques.

Sacudiu a cabeça para afastar ponderações sem sentido. Era uma tola em questionar a escolha que fizera em Kettwyck. Quando se casasse com sir Roger, seria a castelã de uma pro­priedade esplendorosa e esposa de um homem capaz de en­tender-lhe a alma sensível.

Teria uma ocupação meritória e valiosa.

Foram precisos mais dois dias para Roger poder viajar. Du­rante esse tempo, Isabel usou todas as peles disponíveis para confeccionar roupas quentes, embora rústicas, para enfrentar a jornada. Anvrai não encontrara nenhuma carroça e explicou para Isabel que teriam de levar tudo o que haviam achado na caverna.

Isabel fez uma sacola com restos de peles, couros e três xales compridos que também lhes serviriam para se cobrir.

O pé cicatrizara quase totalmente, o que lhe permitiria en­frentar a marcha sem mancar. Anvrai continuou a fazer o cu­rativo com o cataplasma e, toda vez, enfaixava o ferimento com todo o cuidado. Isabel, acostumada ao toque suave de Anvrai, recostava-se com descontração. Fechava os olhos e suspirava, apreciando aquele desvelo.

Claro que não se tratava disso, mas Anvrai permitia-lhe essa pequena ilusão.

Ele não os avisou com antecedência quando seria a hora de deixar o abrigo temporário e descer a trilha até o vale.

Aquele seria um ótimo dia para viajar. O sol brilhava e a temperatura era agradável. O frio não tardaria a chegar e Anvrai pretendia estar bem longe quando o tempo mudasse.

Durante sua permanência na caverna, Isabel não fora ao vale. Preferia passar as horas vagas ao lado de sir Roger.

— É muito cedo para irmos embora — ela protestou, ao ver Anvrai juntando os poucos pertences na sacola.

Ele não lhe deu atenção nem resposta e ela se irritou.

— Sir Roger não está em condições de levantar-se! Isabel estava em pé ao lado do pretendente, parecendo uma valquíria nórdica. Os olhos cor de mel faiscavam e os cabelos negros esvoaçaram quando ela virou a cabeça de lado.

Anvrai desviou o olhar, desconcertado pela excitação que o assaltava ao vê-la proteger ferozmente o companheiro.

— Ele precisa caminhar um pouco. — Anvrai enfiou as armadilhas na sacola. — Levarei o que for preciso e temos de partir sem demora.

— Não se preocupe, lady Isabel, darei um jeito. Estou me sentindo bem melhor.

Durante o dia, Roger fizera pequenos passeios do lado de fora da caverna. Ele e Isabel haviam se sentado sobre tocos de árvores. Falavam sobre o mundo deles ou então ficavam em silêncio e se compraziam com a presença um do outro. Anvrai fora excluído da companhia deles.

Bem, teve de admitir que ele mesmo se excluíra. Os dois pareciam perfeitos um para o outro. Eram bonitos e bem-nascidos. A experiência de terem sido raptados pelos escoceses os aproximara. Roger usara a lâmina do ermitão para barbear-se e transformara-se no mesmo rapaz atraente que Anvrai vira pela primeira vez em Kettwyck. O manto do falecido escondia a magreza do rapaz, fazendo com que se assemelhasse a um homem bem desenvolvido.

Anvrai atirou a correia da sacola por sobre o ombro e atra­vessou o túnel, como fizera por vezes incontáveis desde a che­gada à gruta. Isabel não voltara lá depois do primeiro dia, por causa da altura que lhe causava vertigens.

Esperou Roger e Isabel aparecerem na saída e deixou aos cuidados do jovem cavaleiro a descida de Isabel. Tinha certeza de que, uma vez alcançada a trilha, o medo desapareceria.

Roger chegou à beira do despenhadeiro e, de mãos na cin­tura, supervisionou a paisagem circundante, como se fosse o dono das terras.

— Ah, então foi aqui que o senhor encontrou nossa comida — comentou Roger com desdém, e olhou para trás. — Venha, lady Isabel.

Ela estava parada na abertura do túnel, sem se mexer. Pá­lida, olhava de um lado para outro, em pânico. Tentou falar, mas as palavras não saíram.

Anvrai, enternecido pelo medo de Isabel, pensou em aju­dá-la. Mas aquela não era sua tarefa. Abaixou-se e escorregou devagar pela ribanceira, para longe deles. Era obrigação do pretendente ocupar-se com a única fraqueza de sua futura esposa.

O caminho não era difícil depois do primeiro trecho mais íngreme. Se Roger a ajudasse naquela descida, Isabel seguiria em frente com tranquilidade.

Anvrai alcançou a base do talude e esperou por Roger e Isabel. O sol era convidativo. Sentou-se sobre uma pedra larga e esperou. Esporadicamente escutava a voz de sir Roger trazida pelo vento. Esperou mais algum tempo e ninguém apareceu.

Tirou a sacola do ombro e deixou-a ao lado da pedra. Voltou até a saliência do rochedo, onde encontrou Roger tentando convencer Isabel a descer com ele. Ela estava paralisada pelo medo, incapaz de se mover.

Passou por Roger, segurou o braço de Isabel, virou-a e er­gueu-a nos braços. Não perdeu tempo, nem escutou-lhe os protestos. Foi até a beira do talude e pulou. Apesar das con­torções de Isabel, segurou-a com firmeza, carregando-a até a rocha onde deixara a sacola.

Isabel acalmou-se, mas Anvrai não a soltou. Ela segurou-se com firmeza no pescoço dele e encostou o rosto no peito largo, enquanto desciam o vale. Roger chamou-os, mas Anvrai não escutou. Sua atenção estava concentrada na pressão do corpo flexível em seus braços.

Não demoraram a chegar ao fundo do vale e Isabel não o soltou de imediato. Anvrai permitiu-se um momento de prazer, antes de deixá-la no chão.

— Vejo que as histórias a seu respeito são verdadeiras — comentou Roger com irritação, ao aproximar-se por trás. — O senhor é ainda mais bárbaro do que eles dizem.

Anvrai retomou a sacola e continuou andando. Isabel acom­panhou-o, sem fazer comentários. Ele caminhava devagar, em consideração à convalescença de sir Roger.

— Fico imaginando a que distância estamos da Inglaterra — disse Roger.

— É impossível afirmar qualquer coisa — Isabel respondeu. — Nós andamos muitos dias antes de alcançar a aldeia esco­cesa. Quando fugimos, o rio carregou-nos para longe de nosso caminho.

— Meu pai deve ter mobilizado seus cavaleiros para vas­culhar o norte do país à nossa procura — Roger informou com altivez.

Anvrai emitiu um resmungo de pouco caso. Os homens de lorde de Neuville estavam a caminho de Lothian com o rei Guilherme, para desafiar o monarca escocês, A perda de um filho mimado não seria prioridade. Lorde Kettwyck estaria bem mais interessado em mandar uma tropa atrás deles, mas ele ficara desfalcado de soldados na noite do ataque.

— O que disse? — Roger indignou-se. — Por que o senhor está zombando, sir Anvrai?

— O rei Guilherme congregou forças para acompanhá-lo até a foz do rio Tees. Dali, ele planeja ir para o norte, ao encontro do rei Malcolm. Os cavaleiros de Neuville já devem ter ido ao encontro do exército de Guilherme.

— Por que não fui informado dessa campanha? — Roger não se conformava.

Anvrai achou graça na indignação do jovem cavaleiro. Mes­mo que Roger tivesse experiência militar, não seria convocado para o campo de batalha. Ele possuía mais aptidão para cortejador do que para soldado.

— Claro que o senhor seria informado, sir Roger — Isabel intercedeu. — Certamente tratou-se de um descuido por causa da festa.

A capacidade de resistência de Roger durou apertas até o fim da tarde. Anvrai andava então a uma velocidade razoá­vel. Quando pararam, o pé de Isabel latejava e Roger estava exausto,

— Montar acampamento — Anvrai avisou, quando saíram do caminho e foram até a mata cerrada próxima.

Chegaram a um regato cristalino, onde Isabel ajoelhou-se e bebeu água com as mãos em concha.

Anvrai tirou os laços da sacola. Avisou-os que iria procurar comida e embrenhou-se na floresta.

— Onde estão as tigelas? — Roger perguntou. — Nós as trouxemos, não?

— Claro que sim.

Isabel procurou-as na sacola e entregou a ele uma delas. Em seguida foi buscar lenha para acender o fogo. A noite prometia ser gelada. Seria melhor prevenir-se. Além do mais, se Anvrai trouxesse comida, teriam de cozinhá-la.

Ela preparou uma fogueira circular e reparou no cansaço de sir Roger. Haviam deixado a caverna bem cedo. Ele pre­cisaria de mais um ou dois dias de repouso para recobrar a energia antes de viajar. Apesar disso, agradava-lhe estar em atividade. Perder mais tempo na ociosidade haveria de deixá-la irritada.

Quando Anvrai retornou, Isabel acendera o fogo e Roger descansava, envolto em uma das estolas de pele que ela fizera. Orgulhava-se com o que executara durante a ausência de Anvrai, ainda mais se comparado com o comportamento ver­gonhoso que ela tivera, quando haviam saído da gruta. Não imaginava a causa daquele pavor de alturas. Mas sempre fora daquela maneira. Se Anvrai não a houvesse levado no colo, com certeza ainda estaria em pé na beira do talude, imóvel e apavorada.

Poucas vezes sentira tanta segurança como experimentara nos braços de Anvrai. Mantivera os olhos cerrados durante a descida e imaginara que Roger a carregava.

Ou melhor, tentara imaginar. Infelizmente, estava bem fa­miliarizada com os músculos poderosos e com a força extraor­dinária de Anvrai d'Arques. Não poderia confundi-lo com sir Roger. Refletiu qual seria a sensação de encostar o rosto no peito másculo e desnudo, em vez da túnica de pele, ou como reagiria se o beijasse.

Horrorizada com a direção tomada por seus pensamentos, desenrolou o resto de comida que haviam trazido. Ofereceu para Roger e depois para Anvrai.

— Se suas armadilhas funcionarem, sir Anvrai, talvez pos­samos comer a carne amanhã.

Anvrai ergueu as sobrancelhas e ela se perguntou se sua afirmativa fora mal interpretada. Ele pensaria em pegar algum animal antes do anoitecer?

— Sim, milady.

— Sir Anvrai, temos comida suficiente para esta noite. Ele aceitou a porção que lhe fora oferecida e sentou-se perto do fogo.

Ao ver que Roger já adormecera, Isabel guardou as tigelas e pendurou a sacola no ramo de uma árvore.

A noite chegara e a luz oscilante das chamas lançava som­bras agourentas na mata circundante.

— Espero que não haja nenhuma aldeia nas proximidades. — Ela olhou ao redor, inquieta.

— Não encontrei nada — Anvrai tranquilizou-a. — Quando preparei as armadilhas, perscrutei as redondezas e não vi ne­nhum sinal de povoamento.

— E se alguém enxergar a fumaça de nossa fogueira?

— Isso é pouco provável. Isabel sentou-se perto de Anvrai.

— Existem lobos por aqui? — ela perguntou. — Lembro-me de ter ouvido sobre a existência desses animais na região norte.

Anvrai pareceu hesitar, antes de responder.

— Não. Não vi vestígios de lobos.

Ela fitou Roger de relance. O cavaleiro dormia como uma criança. Perguntou a si mesma se também descansaria com tal facilidade. Chegou mais perto de Anvrai.

— Como está seu pé, milady?

— Ah, creio que bem. Talvez fosse melhor o senhor dar uma espiada.

Isabel gostava de sua habilidade e delicadeza. O ferimento estava quase cicatrizado, mas outra aplicação do cataplasma seria benéfica.

Anvrai ficou em pé e afastou-se para providenciar o neces­sário para a tarefa. Isabel inquietou-se ao vê-lo desaparecer no escuro, mesmo sem razão para ter medo. Acreditara nele quando lhe garantira não haver pessoas nem lobos ao redor.

Estremeceu e agasalhou-se melhor com o xale que lhe cobria os ombros. O vento estava frio e a noite tendia a gelar.

Anvrai voltou logo. Sentou-se em um local onde Isabel pu­desse estender a perna e apoiar o pé em seu colo. Ele soltou os cordões da bota improvisada de pele e, com cuidado, de­senrolou a faixa. Examinou o corte na planta e mostrou-se satisfeito.

— Está quase fechado.

— Mas ainda sinto dores.

— No corte?

— Não... nos músculos. Anvrai anuiu.

— E consequência de andar o dia inteiro. — Ele segurou-lhe a extremidade da perna com as mãos ásperas e fez massagens relaxantes na sola e no peito do pé. — Milady logo esquecerá disso.

Ela se apoiou para trás nos cotovelos e cerrou as pálpebras. Era muito prazeroso sentir o toque experiente de Anvrai. Ele continuou com as compressões e Isabel virou-se para dar aces­so ao tornozelo.

Anvrai tirou-lhe a outra bota e tratou o outro membro de maneira semelhante. Avançou no local de compressão e Isabel abriu os olhos ao sentir as mãos de Anvrai em sua perna. Fitou-o, mas não se mexeu, apesar da impropriedade da ex­periência. Seu pé não deveria estar no colo de Anvrai, nem ela deveria permitir-lhe carícias tão íntimas. Arrepiada, sentia o busto inflado e o ventre contraído. Uma sensação totalmente estranha, embora muito agradável. Não encontrou forças para se afastar.

— Sir Anvrai, devo esperar que meu marido faça isso de­pois de eu me casar?

O ritmo das mãos dele não mudou. Anvrai ergueu a cabeça e encarou-a.

— Eu não saberei dizer-lhe, milady. Os deveres de um ma­rido são desconhecidos para mim.

Ele se expressara com voz calma, mas com um alheamento que fazia supor tratar-se de um assunto desagradável.

— Onde o senhor aprendeu tanto a respeito da arte de curar?

— Isabel procurou um tema mais seguro.

— Na casa onde fui criado — Anvrai respondeu. — A dama do castelo cultivava plantas medicinais e as usava na proprie­dade e na aldeia. Foi ela quem me ensinou a curar.

Isabel refletiu que Anvrai deveria ser uma criança na época, pois iniciara o treinamento de cavaleiro quando era bem jo­vem. Perguntou a si mesma se ele teria sido um menino feroz e concluiu pela negativa. Ele sabia agir com carinho, mesmo sendo um guerreiro temido.

O calor das mãos de Anvrai subia pelas pernas, abdômen e mais adiante. Os ossos novamente pareciam amolecer e Isa­bel desejava algo mais, mesmo sem saber o quê.

— Talvez o senhor pudesse ensinar essa arte para sir Roger. — ela sugeriu.

Anvrai interrompeu-se de repente. Pôs o cataplasma no cor­te, enfaixou o pé e levantou-se.

— Milady não terá necessidade de outro curativo, eu lhe asseguro. O ferimento está quase fechado.

Confusa pela atitude intempestiva de Anvrai, Isabel enrolou os pés nas botas de pele e amarrou-as.

— Obrigada, sir Anvrai. — Ela se levantou e fitou-o com seriedade. -— Eu lhe agradeço também por hoje cedo. Se o senhor não houvesse me carregado para descer o despenha­deiro... eu jamais o teria feito sozinha.

— Não há por que agradecer. Precisávamos sair cedo e aproveitar o sol para adiantar o trajeto. — Anvrai entregou-lhe o xale que fora feito para ele e caminhou até o lado oposto da fogueira. — Vai precisar disso mais do que eu.

 

Pela manhã, Anvrai tirou as duas aves gordas que haviam caído no laço e recolheu os ovos dos ninhos que avistara na mata no dia anterior. Fariam uma refeição leve antes de retomar a jornada rumo à Inglaterra. Comeriam a ave cozida ao meio-dia.

Enquanto tomavam o desjejum, demonstrou ansiedade para recomeçar a viagem. Precisava ocupar a mente e esquecer os momentos da noite anterior, quando segurara os pés delicados de Isabel. Cometera um erro em massagear-lhe as panturrilhas, em esfregar-lhe a pele e os músculos dos tornozelos. Isabel não se opusera à ousadia inesperada. Pelo contrário. O atrevimento pareceu ter lhe agradado. Ela nem poderia imaginar o efeito que a reação levemente erótica tivera nele.

Tivera vontade de ajoelhar-se diante de Isabel, de apoiar nos ombros as pernas delicadas e ensinar-lhe o sentido do pra­zer verdadeiro. Ele a beijaria com imensa ternura e experi­mentaria o sabor de cada centímetro de pele sedosa. Faria com que ela tremesse de ansiedade quando o fitasse, sem sentir repulsa. Os olhos cor de mel brilhariam de desejo.

— O que o senhor supõe que possa ter acontecido à Kathryn, minha irmã?

Anvrai teve de abandonar o mundo onírico e voltar ao pre­sente. A dura realidade. As intimidades amorosas com que ele sonhara eram para os outros. Para homens que não tivessem cicatrizes nem fossem desfigurados. Para aqueles que aparen­tassem ser capazes de proteger uma mulher. Anvrai d'Arques não poderia fazer promessas a nenhuma delas. Teria de con­tinuar com a mesma conduta que sempre tivera. Manter-se afastado de quaisquer sentimentos e endurecer o coração.

— Ela... provavelmente foi raptada — afirmou Roger.

— O senhor a viu? — Isabel levantou a cabeça.

Anvrai deduziu que ela não dormira bem, pelas olheiras escuras que se destacavam na pele clara. Mesmo sem que ela falasse muito no assunto, várias vezes ele a surpreendera com o olhar distante e triste, os ombros curvados para a frente. Não havia como duvidar que o destino da família fosse motivo de amargura constante para Isabel. Ele mesmo conhecia bem esse sentimento.

Roger encolheu os ombros.

— Eles levaram todas as mulheres que puderam carregar.

— Sonhei com Kathryn a noite passada — ela afirmou. — No sonho o chefe escocês nos agarrou a ambas...

— Milady ainda não me disse como conseguiu escapar dele — Roger tomou a insistir no esclarecimento.

— Isso não importa. — Isabel abraçou as pernas e aper­tou-as junto ao corpo.

— Como milady, que não é nenhuma guerreira, soube o que deveria fazer?

Anvrai se perguntara a mesma coisa. Não concebia como uma jovem delicada, de família nobre e criada em um con­vento, conseguira matar um homem grande e gordo como o escocês de barba negra. Era de admirar-se a coragem e o es­pírito alerta que ela demonstrara diante do perigo.

— Não entendo nada de lutas ou batalhas — Isabel asse­verou em voz baixa. — Eu nada podia fazer além de supor o que aconteceria, como se estivesse contando a história de mi­nha desventura.

Roger arqueou as sobrancelhas.

— Quer dizer que milady pensou a respeito de sua captura como se fosse uma de suas histórias?

— Isso mesmo, Se eu estivesse fazendo uma narrativa, meu herói teria vindo salvar-me. Mas milorde estava ferido.

— Ah, lady Isabel, se eu pudesse — o jovem segurou-lhe as mãos e fitou-a com sinceridade —, teria disparado em seu encalço. — Suspirou. — Depois de me bater, eles me amar­raram. Eu me encontrava incapacitado.

Anvrai conteve a vontade de afirmar que o rapaz, nem em seus melhores dias, teria condições de ajudar Isabel. E ela pensava naquele cavaleiro inexperiente como seu herói. Irri­tado, começou a juntar os vasilhames e guardou-os na sacola.

Não lhe escapou o olhar enternecido de Isabel para seu herói.

— Por isso mesmo concluí que teria de agir em meu próprio benefício. E... foi o que eu fiz.

— Não entendo. — Roger franziu a testa e sacudiu a cabe­ça. — O que foi que milady fez? Por que eles nos deixaram escapar?

— Lady Isabel matou o chefe do clã e incendiou a aldeia — Anvrai explicou com rispidez, levantou-se e despejou água no fogo. — Está na hora de levantar acampamento.

Ele jogou as duas aves mortas sobre o ombro e caminhou até a trilha. Sua raiva era tamanha que seria capaz de deixar os dois pombinhos encontrarem sozinhos o caminho para a Inglaterra. Roger de Neuville, o grande herói, que tentasse buscar comida e os levasse até o sul.

O casal apaixonado seguiu-o a uma certa distância e Anvrai aos poucos se acalmou. Tornara-se claro que ele não figurava como personagem da história do rapto de lady Isabel Louvet. Apesar disso, ela não o evitava e parecia gostar de seus cui­dados. Mas o sentimento maior seria apenas a gratidão. Nada além disso.

Anvrai embrenhou-se pela floresta, sem noção do que os rodeava. Foi quando um som de vozes o deteve. Uma tropa de escoceses apareceu ao longe, mal vestidos e muito bem armados. Traziam espadas de folha larga e acha-d'armas. Por sorte, os inimigos não os avistaram.

Anvrai virou-se para trás e impediu a passagem de Isabel e de Roger. Levou um dedo aos lábios e apontou o caminho com a outra mão. Com um gesto rápido, fez sinal aos compa­nheiros para que se ocultassem atrás de uma árvore próxima.

Ele mesmo aproveitou um carvalho maciço como esconde­rijo. Com a mão no cabo da espada, vigiou os escoceses. Não demorou e Isabel correu para agachar-se a seu lado. Em si­lêncio, os três escutaram a conversa em voz alta dos escoceses.

— Será que eles poderão nos encontrar, sir Anvrai? — ela sussurrou, arfando.

Surpreendeu-o a presença inesperada de Isabel. Cobriu-lhe a boca com a mão e inclinou-se para pedir, com voz quase inaudível, para que ficasse quieta.

Abraçou-a pela cintura e conservou-a bem perto dele. Supôs que Isabel estivesse com medo, pois ela não parava de tremer. Também não deveria ser de frio, pois ela estava agasalhada.

Teceu considerações a respeito do que faria o herói da his­tória de Isabel.

Isabel mal podia respirar. Anvrai tinha uma espada, Roger, nenhuma. O afamado cavaleiro não seria capaz de protegê-los, se os escoceses os descobrissem.

Anvrai a abraçava pela cintura e a segurava firme de en­contro ao peito. Ele cochichou em seu ouvido e ela estremeceu, sem entender o que ele dizia.

— ...e eles passarão longe de nós. — A voz suave e pro­funda, reverberou no interior de Isabel.

Ela se virou para analisar Roger. Era elegante e bonito, apesar das condições adversas por que passavam. Conjeturou como seria se ele a abraçasse. Recriminou-se. Deveria ter ficado ao lado de Roger e procurado o conforto de sua proteção. Entretanto, de modo inconsciente, correra para o lado de Anvrai.

Isabel prendeu o fôlego. Os escoceses se adiantaram e pas­saram por eles, sem vê-los. Mais aliviada, voltou a respirar e encostou-se no corpo quente de Anvrai. Permitiu que ele a aquecesse do frio que lhe penetrava os ossos. O peito largo era uma parede sólida às suas costas. As pernas dele apoiavam as suas, impedindo-a de cair.

As mãos de Anvrai eram firmes e ternas, exatamente como se lembrava delas nas massagens da noite passada. O contato com Anvrai a deixara zonza e disparara seu coração. O interlúdio íntimo fora uma experiência inédita para ela. Tivera a impressão de que Anvrai lhe acariciava o corpo inteiro, até os locais mais particulares.

Aqueles sensações perturbadoras começavam a partir da cintura, onde sentia o aperto da mão de Anvrai. Imaginou aqueles dedos subindo até o busto, onde se deteriam em afa­gos. Ela se afastou ao sentir os mamilos túrgidos. Levou uma das mãos ao peito, como se quisesse impedir que o coração saltasse para fora.

Sem dizer nada e sem levantar o rosto, voltou para o lado de Roger e segurou-lhe o braço. Os escoceses haviam passado. Estava na hora de prosseguir a longa viagem, como Anvrai enfatizara antes.

— Esperem — Anvrai chamou-os.

Isabel e Roger pararam, mas ela não o encarou, enrubescida. Temeu que Anvrai lhe desvendasse os pensamentos totalmente inadequados.

Ela escolhera sir Roger por suas maneiras gentis. Apesar disso, era o poder masculino e não refinado de Anvrai que a atraía. O cavaleiro cujos atos heróicos eram conhecidos de sobejo.

— Será melhor evitarmos os caminhos mais usados. Pros­seguiremos por dentro das florestas, na medida do possível.

— O terreno será muito acidentado e irregular. O pé de Isabel ainda não está curado...

— Não se preocupe, sir Roger. Meu pé não me incomoda mais. Sir Anvrai tem razão. Não tenho a menor vontade de encontrar mais escoceses pelo trajeto — Isabel alegou com voz firme, sem demonstrar nenhum sinal da agitação interna que a acossava.

Seguiu Anvrai, apesar do tormento representado pela visão das costas largas e das pernas longas e musculosas. Não queria pensar naquele físico poderoso nem como ela se sentira per­turbada quando o vira semidespido.

Agradeceu aos Céus pela presença de sir Roger. O jovem cavaleiro trazia um pouco de bom senso àquela situação insana.

Virou-se para ele e sentiu-se mais segura.

— Sir Roger, fale-me a respeito de sua mãe e de suas irmãs.

Anvrai procurou por um abrigo onde pudessem passar a noite. Nuvens escuras cobriam o céu. Esfriava. Prometera a si mesmo fazer o possível para manter Isabel e o pretendente aquecidos e secos até o amanhecer.

Entendeu que Isabel não agüentaria andar por mais tempo, quando ela começou a poupar o pé ferido, sem se lamentar. Roger não perdeu tempo em avisá-lo do desconforto.

Isabel estava com um aspecto melhor naquele dia, O lábio desinchara e o hematoma do rosto quase desaparecera. Apenas as bolhas nas mãos continuavam em carne viva. Roger pouco a ajudava, entretido com os próprios queixumes. Nem mesmo lhe oferecia o braço para ajudá-la a enfrentar o solo acidentado da mata.

— Parece que vai chover — o rapaz comentou.

— O que não me surpreenderia — Anvrai retrucou.

— O senhor tem alguma idéia de onde poderemos achar um esconderijo?

— Não. E o senhor? — A resposta fora grosseira, pois sua paciência com Neuville diminuía com o passar das horas. Em­bora não quisesse a responsabilidade de cuidar dos namorados, não tinha outra alternativa. — Continuaremos andando o má­ximo que pudermos.

Um grito agudo chegou até eles. Pararam imediatamente e Anvrai puxou a espada.

— Pareceu-me voz de mulher — Isabel murmurou. Anvrai concordou.

— Venham atrás de mim.

Com cuidado, Anvrai caminhou na direção do som. Eles chegaram a uma cabana decrépita situada em uma pequena clareira à margem da mata. Atrás do casebre havia um cubículo e um pequeno telheiro. Mais adiante, um córrego. Do outro lado, um campo com a colheita pela metade.

— Fiquem aqui — Anvrai ordenou.

Aproximou-se da cabana sem fazer ruído. De dentro, nada escutou. Abriu a porta com a ponta da espada.

Estava escuro, mas ele pôde enxergar um corpo estendido em uma cama. Uma jovem.

— Jesus — sussurrou para si mesmo.

A moça estava viva, respirava com dificuldade e gemia oca­sionalmente. Ela não notou a presença do estranho. Jogou para o lado a manta de lã e expôs a gravidez em estágio final.

Estava sozinha. Ninguém para ajudá-la a dar à luz a criança. Anvrai suspirou. Durante os anos em que enfrentara as bata­lhas, lidara com todos os tipos de ferimentos. Mas o nascimento era o único processo que lhe constrangia o estômago. Conservara na memória os gritos de agonia de sua mãe durante os trabalhos de parto.

Anvrai procurou afastar as lembranças que o incomoda­vam e voltou a si. Isabel e Roger esperavam sob a copa de uma árvore. Fez sinal para que se aproximassem e entrou na choupana.

Dirigiu-se à jovem deitada com suavidade, supondo que ela não o entendesse.

A moça demonstrou grande surpresa.

— Normando! O senhor é nor...

A moça apertou a barriga e jogou as pernas para.cima, gri­tando de dor. Anvrai deixou de lado a espada e fitou Isabel como quem pedia socorro.

— Meu Deus! — Isabel aproximou-se. — Ela não passa de uma criança!

— É verdade. E é normanda.

— Pode me compreender? — Isabel perguntou à jovem. A menina segurou-lhe a mão e apertou-a na face molhada de lágrimas.

— Ajude-me! Por favor!

Anvrai tirou a sacola do ombro e deixou as duas perdizes perto da lareira. Foi até a porta, passou por Roger, aflito para escapar do confinamento daquele cubículo.

Isabel segurou-o pelo braço.

— O que deverei fazer?

— Não sou parteiro, milady.

— Mas o senhor conhece alguma coisa a respeito de nas­cimento, não é?

— Muito pouco — Anvrai retrucou, estremecendo.

A resposta de Anvrai não representou um bom prognóstico para a jovem grávida. Isabel nada conhecia a respeito de crian­ças, nem tinha idéia de como se processava o nascimento.

Aquilo não era algo que se ensinasse no mosteiro de St. Marie.

Soltou o braço de Anvrai e observou-o sair da cabana. Refletiu que aquela situação o deixara inquieto e inseguro.

Franziu o nariz e inclinou-se para falar com a jovem deitada no catre.

— Qual é seu nome?

— Mathilde... Tillie.

— Sou Isabel Louvet, de St. Marie. Como chegou até aqui?

— Os escoceses me levaram de Haut Whysile na época do último Natal. Eles mataram milorde e mila... — O ventre de Tillie contraiu-se e ela gemeu pelo sofrimento.

Isabel lamentou nada poder fazer para aliviar-lhe a dor. Til­lie era muito mais nova do que Kathryn. Estremeceu ao pensar que a irmã poderia ter sido submetida a uma trajetória semelhante. Raptada, violada e engravidada por algum escocês bár­baro. Kathryn teria encontrado uma maneira de fugir do mes­mo destino de Tillie?

Bem, mas aquele não era o momento para pensar em Kathryn, enquanto Tillie sofria tanto.

A porta da cabana foi aberta. Anvrai retornava, com os ca­belos e roupas molhados pela chuva. Pôs uma cadeira de três pernas ao lado da cama para Isabel sentar-se. Parou ao lado delas e cruzou os braços.

— Onde está o escocês... o homem que a trouxe aqui? — indagou, de cenho franzido.  

O rosto miúdo e sardento de Tillie ficou ainda menor quan­do ela arregalou os olhos.

— Não tenha medo de sir Anvrai — Isabel tranquilizou-a. — Ele não é tão feroz quanto parece.

Tillie engoliu em seco.

— Ele morreu.

— Onde estão os outros?

— Não havia mais ninguém aqui... nos últimos tempos. Outra contração a atingiu e Tillie agarrou a mão de Isabel com tanta força que foi difícil conter um grito. Quando Tillie a soltou, Isabel piscou para afastar as lágrimas que haviam se formado em seus olhos.

— Perdoe-me por machucá-la, milady — Tillie desculpou-se. — Mas quando a dor chega... Eu estava com tanto medo antes de milady surgir como por milagre...

— Agora estamos aqui. — Isabel andou até Anvrai e se­gurou-lhe o braço. — Nós a ajudaremos a enfrentar este mo­mento.

Outro momento de contração sobreveio e foi embora. Isabel pediu para Anvrai trazer um recipiente com água.

Anvrai mostrou-se aliviado por ter uma tarefa com que se ocupar, mas Isabel sentiu um momento de pânico quando ele saiu da choupana. Anvrai parecia sempre saber o que fazer e ela aprendera a confiar nele.

Mirou Roger de soslaio. O jovem e sensível cavaleiro estava sentado junto à mesa rústica, do outro lado do cômodo.

— Sir Roger, por favor, veja se encontra panos limpos.

— Lady Isabel, a senhora deveria repousar. Ela franziu a testa.

— Não enquanto esta criança precisar de mim.

— Criança? Por acaso sabe se essa criança não fez as vezes de meretriz para um escocês selvagem?

Isabel deduziu que Roger não entendia o que acontecera com Tillie, ou não falaria de maneira tão agressiva e dispa­ratada.

— Sir Roger, preciso de panos limpos. Milorde poderia consegui-los para mim? Eu lhe agradeço muito pela gentileza.

Roger resmungou, mas enquanto o trabalho de parto de Til­lie avançava, ele pegou todos os pedaços de tecido que en­controu nas arcas e deixou-os sobre uma mesa baixa que estava ao lado da cama. Logo depois, Anvrai voltou com uma panela cheia de água. Derramou um pouco em uma tigela e deu-a para Isabel. Acendeu o fogo para aquecer o resto... e também o casebre.

Isabel ensopou na água fria uma das toalhas que Roger trou­xera. Em um dos intervalos entre as dores, pôs a toalha dobrada na testa de Tillie. Depois foi até a lareira onde Anvrai se ocu­pava com a lenha.

— Por favor, diga-me o que devo fazer com Tillie. Ela está com muitas dores.

— Essa é uma especialidade feminina, milady. Terá de ar­ranjar-se sozinha.

Anvrai pareceu irritar-se novamente e voltou a sair. Inse­gura, Isabel sentou-se ao lado de Tillie e confortou-a como pôde durante os acessos. Oferecia-lhe água aos goles e esfre­gava-lhe as costas nos momentos de dor. Mesmo que lhe pa­recessem atitudes sem grande valor, era a única coisa que lhe ocorria fazer.

As horas se passavam e a escuridão tomou conta do local. Roger estendeu a manta no chão perto do fogo e adormeceu quando a chuva fina transformou-se em tempestade. Anvrai voltou e começou a preparar as aves que trouxera. Depois sentou-se em uma das duas cadeiras, reclinou-se e cochilou, sem oferecer ajuda.

— Tillie — Isabel sussurrou —, parece que nós duas tere­mos de trazer seu bebê ao mundo.

Naquele momento a cama ficou encharcada com um jato líquido. A partir daí, as dores ficaram mais intensas e freqüentes.

Desesperada, a moça acordou Roger com seus gritos de agonia.

— Está vindo!

O grito de Tillie acabou com a possibilidade de dormir e de não se envolver no nascimento da criança. Anvrai viu o olhar apavorado de Isabel e compreendeu que não lhe restava outra escolha a não ser ajudá-la.

— Essa é a bolsa das águas.

Anvrai nunca esquecera dos dois natimortos que sua mãe dera à luz.

Tivera certeza de que, pelos gritos de agonia, a mãe mor­reria de dor. Entretanto as servas haviam assegurado a ele e a Beatrice, sua irmã, que aquele era um processo normal de nascimento. Aqueles dois bebês pequeninos, seus irmãos, não chegaram vivos ao mundo. Sentiu o gosto amargo da bílis na boca. Fazia anos que não se recordava daqueles episódios, daquelas perdas. E admitiu que eram memórias pálidas em relação aos assassinatos hediondos de sua mãe e de sua irmã.

Cerrou os dentes e fitou o sofrimento de Tillie.

— Depois do rompimento da bolsa, o bebê não tarda em nascer.

Isabel contemplou-o com olhar agradecido e quase o fez esquecer as tristes recordações. A expressão iluminada fez com que se apagassem aos poucos as imagens das pequenas criaturas nos braços da mãe e das lágrimas quando o marido as levava para o enterro.

— Escutou, Tillie? — Isabel animou-se. — Está quase no final! Seu sofrimento vai acabar!

A atenção da mocinha estava concentrada no baixo-ventre. Tillie emitiu algo parecido com um grunhido e deitou-se de costas. Relutante, Anvrai segurou-lhe os tornozelos e empur­rou-os para trás. Curvou-lhe os joelhos, como vira a parteira fazer com sua mãe. Era tão pequeno que nem mesmo o tinham visto entrar no quarto de sua mãe. Nessa ocasião, temera que as dores fossem matá-la.

— Agora terá de empurrar, Tillie — ele a avisou. — Em­purre o bebê para baixo.

Isabel fitou-o, admirada.

— O senhor sabe o que fazer, sir Anvrai.

— Muito pouco. Lady Isabel, tome meu lugar.

Ele a segurou pelo braço e deixou-a ao lado das pernas da parturiente.

— A natureza seguirá seu curso natural daqui para a frente. Anvrai fez menção de se retirar, mas Isabel deteve-o mais uma vez.

— Por favor, não vá — implorou. Ele não teve como recusar.

Carrancudo, ficou em pé ao lado da cabeça de Tillie.

— Levante-lhe o vestido e observe a cabeça da criança — Anvrai avisou, resignado.

Isabel fez o que lhe era ensinado, enquanto Anvrai procu­rava acalmar a garota. Ele segurou-lhe os ombros e avisou-a para empurrar, quando a contração chegasse.

Isabel maravilhou-se com o milagre da natureza que nunca presenciara. O nascimento de um bebê.

— Respire devagar — Anvrai murmurou. — Isso mesmo... muito bem.

A garota deu um choramingo, mas quando a próxima con­tração sobreveio, ela resmungou e empurrou.

— Está aqui, Tillie! Continue! — Isabel pôs as mãos sob a cabeça do bebê.

Tillie tomou a fazer força. O bebê virou-se e os ombros deslizaram para fora. Anvrai fitou a criança com atenção, mas não foi capaz de dizer se estava viva.

— Mais uma vez!

Tillie respirou fundo antes de erguer-se nos cotovelos, dis­posta para mais um empurrão. Anvrai segurou-lhe as costas e Tillie fez força para baixo. Um momento depois, a criança nasceu.

— É uma menina — Isabel disse, emocionada. Piscou para afastar as lágrimas que lhe toldavam a visão. — É maravilhosa.

Anvrai sentiu um aperto na garganta, mas tratou de endu­recer o coração. Observou a pequena criatura nos braços de Isabel, enquanto Tillie se largava na cama, exausta. Ele achou difícil respirar ao ver os dedos pequeninos das mãos da recém-nascida que se abriam e fechavam, e os pés perfeitos que davam pontapés no ar. A menina parecia desesperada pa­ra respirar, balançando braços e pernas, angustiada. Segurou a criança que, de repente, começou a chorar. Ele suspirou, aliviado.

Pelo choro vigoroso e pelas faces coradas, o bebê parecia saudável. Assim mesmo, Anvrai não estava confiante. Isabel lavou a filha de Tillie com água tépida. Ele amarrou e cortou o cordão umbilical que unia o bebê à jovem mãe. Isabel em­brulhou a menina em uma manta de lã macia e a entregou a Tillie.

— Aqui está sua filha, Tillie.

Ele achou difícil compreender como Isabel não se dava con­ta da existência de limites tão frágeis e ínfimos entre a vida e a morte. Aquele parto poderia ter terminado de maneira de­sastrosa. Apesar disso, a luminosidade do rosto de Isabel pa­recia refletir a satisfação de seu interior. Sua beleza aumentara e ele quase pôde esquecer as tragédias do passado.

— Veja as unhas de seu dedos minúsculos — Isabel co­mentou, esticando e separando com cuidado os dedos da crian­ça. — Veja a boquinha. Os lábios rosados parecem pétalas de uma flor.

Como os de Isabel, Anvrai pensou, com um aperto no co­ração.

Fitando os lábios polpudos de Isabel, cogitou beijá-los e sentir o sabor suave do interior daquela boca. Era uma loucura, mas ele não conseguia pensar em outra coisa.

— Qual o nome que pretende dar a ela, Tillie? — Isabel estremeceu, procurando disfarçar o embaraço. Era impossível não notar o olhar fixo de Anvrai. Aquela proximidade tinha como consequência uma forte atração que a arrastava. Inde­pendentemente da própria vontade, deu alguns passos e apro­ximou-se de Anvrai até sentir-lhe o calor do corpo. Uma for­ça até então incógnita a impelia para encostar-se nele, para certificar-se da rijeza de seus músculos de encontro à maciez dos seus.

Seus sentidos estavam tomados por imagens e pela presença de Anvrai. Ele fora muito bondoso e gentil com Tillie e o bebê.

— Não sei como vou chamá-la — Tillie respondeu à per­gunta que Isabel nem mesmo se lembrava de ter formula­do. De repente, estremeceu de dor. — Acho que vem vindo mais um!

Anvrai pigarreou.

— Não, Tillie. São a placenta e as membranas expulsas após o parto. Depois estará terminado.

Com cuidado, ele tirou a menina das mãos de Tillie e de­volveu-a para Isabel. As mãos de ambos se tocaram e mais uma vez, ela foi afetada pela ternura do gesto, apesar da as­pereza da pele de Anvrai. A fisionomia dele parecia ter perdido a sisudez que o caracterizava e as cicatrizes não pareciam tão horríveis quanto antes. Ainda comovida pelo nascimento da filha de Tillie, imaginou que seu coração fosse estourar ao sentir o toque dos dedos fortes. Inspirou fundo e caminhou até a lareira com a menina apoiada no ombro. A cabana era muito pequena. Não era possível afastar-se muito de Anvrai nem dos pensamentos indecorosos que a assaltavam.

Apesar da chaminé para canalizar a fumaça, uma parte da mesma conservava-se sob o teto rústico. As perdizes assavam sobre o fogo. A gordura que caía sibilava e crepitava ao gotejar nas chamas.

Roger dormia profundamente, como se nada houvesse acontecido ali dentro.

Isabel acariciou a testa da criança e procurou manter-se tranqüila, apesar das emoções conflitantes. Admitiu que não havia mais motivos para sentir-se nervosa e agitada.

Um pouco de ar fresco para respirar haveria de lhe fazer bem, ela refletiu.

Com o bebê agasalhado, abriu a porta da choupana e espiou para fora. O temporal amainara, mas persistia uma chuva fina. A atmosfera pacífica era convidativa. Voltou até a cama e deixou o bebê nos braços da mãe. A criança começou a mamar de imediato.

Sempre comovida, viu a mão pequenina que pressionava o busto da mãe. Era como se ela mesma houvesse dado à luz e agora amamentasse a recém-nascida.

Aqueles sentimentos descontrolados e estranhos a alarma­vam. Limpou as lágrimas e correu para fora. Deu a volta na cabana sob o beiral, protegendo-se da chuva que voltava a engrossar.

Abraçou-se por causa do frio. Recriminou a si mes­ma pela vontade de chorar que não a abandonava desde que haviam chegado ao lar modesto de Tillie.

Tudo terminara a contento. Tillie e a filha estavam bem e saudáveis. Apesar disso, não continha o pranto insistente. O nevoeiro umedeceu-lhe os cabelos e a roupa, apesar da aba do telhado. Estremeceu. O choro continuava. Por sua mãe, seu pai, por Kathryn e por ela mesma ter escapado de um destino semelhante ao de Tillie.

— Lady Isabel.

Ela sentiu um aperto na garganta e não conseguiu responder. Levantou a cabeça e fitou Anvrai. Em vão, tentou impedir que o queixo tremesse.

Ele a segurou pelos ombros, olhou-a por alguns momentos antes de abraçá-la. Isabel deu livre vazão às lagrimas que en­soparam a frente da túnica de Anvrai, enquanto a chuva se encarregava de molhar os ombros largos. Mas ele não parecia importar-se com nada. Continuou a abraçá-la e a acariciar-lhe as costas. Ela escutava a voz profunda e quente que ecoava através de seu busto, mas não entendia as palavras.

Anvrai era forte. Sólido seria o termo mais exato. Lembrou-se do primeiro dia na caverna quando percebera os músculos compactos dos braços e dos ombros. Confessou a si mesma que pensara no poder dos quadris estreitos e na masculinidade que ficava aninhada entre as pernas.

Isabel sentia-se perfeitamente bem enlaçada por ele. Era como se a instabilidade emocional não a incomodasse, enquan­to ele a mantivesse apertada de encontro ao peito que ela, em momento de ousadia, passara a acariciar. Corajosa, deslizou a mão por dentro da túnica de Anvrai e foi afetada pela suavi­dade da pele desnuda. Com a ponta dos dedos, acariciou os pêlos encaracolados.

— O senhor é tão forte — sussurrou. Anvrai pronunciou um som inarticulado, quando sentiu o roçar nos mamilos escuros e achatados que endureceram ime­diatamente. Assim como os dela.

Isabel nunca se incomodara com a própria feminilidade. Naquele momento, a noção de ser mulher tremeluzia, quente e líquida, de dentro para fora. As partes mais sensíveis de seu corpo incendiavam-se. Olhou para Anvrai, Ele inclinara a ca­beça em sua direção e os lábios dele estavam a poucos centí­metros dos seus. Ela venceu a distância que havia entre ambos e beijou-o levemente.

Anvrai preenchia-lhe os sentidos, como se a completasse. O odor másculo e molhado a rodeava e o sabor daquela boca deixou-a zonza. Sentiu no busto o palpitar do coração de An­vrai. Se ele não a estivesse segurando pela cintura, teria caído.

Anvrai tornou o beijo mais exigente e profundo. Isabel abriu os lábios, saboreando a invasão. Ele sugou-lhe a língua e, com uma das mãos, apertou-lhe o quadril de encontro à vigorosa ânsia masculina.

Ela conteve a respiração quando Anvrai segurou-lhe os seios com a mão em concha. Imaginou-o em pé na ribanceira rochosa do rio, desnudo, glorioso, poderosamente masculino. Pressionada nele teve consciência de que uma parte de seu corpo, que sempre fora inerte, palpitava. Bem no meio das pernas. Trêmula, segurou-o pela nuca. Naquele instante, An­vrai abaixou-lhe a túnica pelos ombros.

A peça passou pelos braços e parou na cintura, deixando o busto parcialmente exposto.

Anvrai afastou os lábios e beijou-lhe o pescoço, enquanto acariciava o busto perfeito. Depois se concentrou em provocar os mamilos que, muito sensíveis, se enrijeceram. Isabel sentiu a pele do corpo arrepiar-se e não conteve um gemido.

— Milady é tão linda...

Anvrai continuou o caminho de beijos pelos ombros, colo e se deteve nos seios. Isabel não entendia como ainda não desmaiara. Anvrai deslizou-lhe a mão por dentro da camisa. Tocou o ventre sedoso e continuou em linha decrescente. Ela deu um pequeno grito quando sentiu o toque no local que palpitava como se tivesse vida própria. Deixou a cabeça pender para trás e fechou os olhos.

Devia ser como estar no Paraíso. Isabel sentia calor e frio ao mesmo tempo.

Ela segurou o rosto másculo entre as mãos e beijou-o. Em­bora não tivesse noção do que fazer, desejou ter algum lugar para ir, onde pudessem ficar a sós e satisfazer uma necessidade selvagem que brotava dentro dela.

De repente, Anvrai segurou-lhe os pulsos. Arfando, afas­tou-a, imobilizando-a.

— Isabel... milady. nós... Isso não foi bom... não devemos fazer... -— ele inspirou fundo diversas vezes. — Milady não precisava beijar-me... nem deveria tê-lo feito.

Ela o fitou, intrigada.

— O que o senhor...

— Eu não a desonrarei, milady. Eu jamais me perdoaria, se o fizesse.

Anvrai d'Arques soltou-lhe os braços, virou-se e saiu em meio à chuva que se tornara bem mais intensa. Isabel ficou parada, boquiaberta, os braços caídos, confusa, enquanto An­vrai sumia no meio da cerração.

 

Anvrai não encontrou desculpa para seu comportamento inqualificável. Isabel escolhera Roger. Aproveitar-se de uma mulher em um momento em que ela se encontrava vul­nerável não fazia parte de sua natureza que sempre considerara honrada. Em circunstâncias normais, aquele interlúdio român­tico sob o abrigo da beira do telhado jamais teria acontecido.

Roger era quem deveria confortá-la. Roger deveria tê-la bei­jado, acariciado seu seio e suas partes mais íntimas.

Ele não se conformava com o que fizera. Encontrava-se excitado ao máximo e era provável que assim ficasse, enquan­to Isabel estivesse por perto. O único recurso seria afastar-se dela.

Mas como? Seria impossível!

Voltou ao casebre, ensopado. Isabel estava cozinhando e irradiava tensão. Fazia movimentos desajeitados e rígidos, en­quanto trabalhava. Nem lhe dirigiu a palavra ao vê-lo entrar. Continuou a mexer o conteúdo de uma tigela de barro, seguin­do as instruções de Tillie que estava deitada.

— São bolinhos bem simples — a garota afirmou, enver­gonhada. — Mas com a carne que sir Anvrai trouxe, teremos uma bela refeição.

— Diga-me o que fazer em seguida — Isabel pediu.

Roger, acordado por milagre, ocupava o banco de três per­nas, recostado na parede. No meio do recinto, um balde para coletar a chuva que penetrava por um buraco do forro. A recém-nascida começou a chorar e Tillie amamentou-a.

No conjunto, era um local melancólico.

Anvrai tirou as aves do espeto que estava sobre as chamas, colocou-as sobre a mesa e cortou a carne. Isabel fazia questão de não encará-lo, sempre mexendo a massa dos bolinhos.

— Se o senhor não se incomodar, prefiro uma coxa — Roger falou.

Anvrai nem lhe deu resposta. Ofereceu a primeira escolha para Tillie. A nutrição para a garota seria importante para a sobrevivência da filha. Ela o fitou com timidez, mas sem re­pulsa, como se não houvesse notado o rosto disforme.

— Muito... obrigada, sir Anvrai. Por isso e por tudo... Tenho certeza de que eu teria morrido, se não fosse por sua ajuda.

— Foi lady Isab...

— Não. Lady Isabel contou-me tudo o que o senhor fez e sou-lhe muito grata por isso. Belle e eu lhe agradecemos muito.

— Belle?

— Sim. — Tillie fitou com amor a filha em seus braços. — Eu lhe dei este nome em homenagem a lady Isabel.

— Bastante adequado — ele resmungou e afastou-se. Não havia lugar naquele casebre onde pudesse ficar longe da gratidão de Tillie e do constrangimento de Isabel. E de Roger.

— Como é que o senhor sabia o que fazer? — Tillie per­guntou-lhe. — Na minha aldeia, os homens eram impedidos de presenciar nascimentos de crianças.

— Eu sei. Esse é um costume arraigado.

— Então como é que o senhor...

— Quando eu era ainda um menino, estive presente duas vezes quando minha mãe deu à luz.

— Então lembrou-se...

Ele anuiu e observou como Tillie era jovem. Acreditou que ela mal tivesse entrado na idade de procriar.

— O que aconteceu com o escocês que a raptou? — Estava enojado. Não suportava a idéia de um homem ter coragem de abusar de uma criança.

— Aconteceu há algumas semanas — Tillie falou, com sua voz infantil. A menina tinha olhos azuis, nariz e faces pintal­gados com pequenas sardas. — Desabou uma forte chuva. O teto começou a desfazer-se. — Apontou o balde no meio da cabana. — A água entrava sem parar e então Cormac subiu no telhado para consertá-lo... ele caiu e quebrou o pescoço.

— Desde então, ficou sozinha?

— Fiquei. — Tillie não se revoltava. Apenas narrava os acontecimentos. — Pensei em voltar para Haut Whysile, mas eu não sabia o caminho. E com minha barriga aumentando a cada dia...

A garota deu de ombros e, com dedos sujos, afastou do rosto uma mecha de cabelos vermelhos. Era surpreendente que não houvesse morrido, tamanha a sua fragilidade.

Anvrai e Isabel se entreolharam, e um arco de tensão for­mou-se entre eles. Mas ela logo desviou o olhar, enrubescendo. Estreitou os lábios e continuou a fazer os bolinhos. Anvrai disse a si mesmo que ela nunca lhe parecera mais bela.

— Pensei que fosse morrer aqui dentro — Tillie afirmou com voz trêmula.

Anvrai observou Tillie estendida na cama e procurou afastar o pensamento de Isabel. A pobre moça tivera sorte de poder contar com o estoque de vegetais do escocês ou teria morrido

de verdade.

Por que não podia esquecer daqueles momentos com Isabel sob a beira do telhado? Da pele sedosa que nem mesmo com­binava com seus dedos ásperos? Todos estavam com proble­mas sérios que incluíam a continuidade da vida. Seria melhor refletir sobre essas questões cruciais.

— Tillie, haverá um povoado por perto ou alguma outra terra cultivada que seja de seu conhecimento?

— Eles mataram tantos normandos... — O queixo de Tillie tremia. — Quando nós... — As lágrimas fizeram um traço mais claro no rosto manchado.

Para seu alívio, a moça virou-se e escondeu o rosto no col­chão de palha. Não sabia lidar com choro de crianças, mas precisava saber se haveria a possibilidade de receberem visitas indesejáveis.

— Deve haver outras fazendas. — Tillie fungou. — Cormac tinha muitos amigos... os que atacaram minha aldeia. Alguns deles vinham aqui de vez em quando.

— Não viu nenhum deles depois da morte de Cormac? Tillie sacudiu a cabeça.

— Ninguém sabe o que aconteceu.

Roger deu uma mordida em um dos bolinhos e cuspiu em cima da mesa.

— Santo Deus, que coisa horrível! Isabel levantou-se num ímpeto.

— Farinha, água e sal não me permitem fazer nada mais saboroso, sir Roger! Mas se prefere bolinhos de verdade, sin­ta-se à vontade para fazer outros e mantenha os elogios para si mesmo!

Ela percebeu o olhar atento de Anvrai. Sentou-se de novo e, de cabeça baixa, começou a comer.

Por que esperavam que ela fizesse petiscos maravilhosos? Todos sabiam que Isabel Louvet, de St. Marie, não tinha habilidades culinárias.

Como também não tinha experiência com homens, ou po­deria entender por que Anvrai dissera que o beijo não fora certo.                                                                            

Para ela, fora um raro despertar, uma experiência sensual diversa de tudo o que conhecia. E desde que voltara para a choupana, Anvrai se conservara distante. Fora obrigada a acei­tar a idéia de que, se não fosse em virtude da chuva pesada, Anvrai não teria retornado.

Ele teria coragem de abandoná-los e continuar sozinho o trajeto para a Inglaterra? Não havia dúvida que ele poderia sobreviver sem nada do que haviam trazido da caverna. Anvrai era perito em vários campos de atividade. Um deles era en­fraquecê-la com apenas um beijo.

Sentia-se constrangida de compartilhar daquele pequeno espaço com Anvrai depois do que acontecera. Ainda mais depois que passara a ignorá-la.

— Desculpe-me, lady Isabel — pediu Roger, sem notar a tensão que a envolvia.

Isabel não respondeu para não dar asas à própria frustração e arrepender-se mais tarde. O mancebo não tinha culpa se ela nada entendia de cozinha, nem que nada sentisse quando ele a tocava.

Aquilo não fazia sentido. Roger era atraente e gentil. Era dono de Pirou e sua família era uma das favoritas do rei. Seria o marido ideal.

Roger terminou de comer, deixou a mesa, enrolou-se em uma manta de peles e estendeu-se ao lado do fogo. Fechou os olhos e tornou a dormir, apesar do choro da recém-nascida. Isabel fitou-o, aborrecida. Anvrai continuou a comer e segu­rou-lhe o pulso, quando ela fez menção de retirar da mesa a tigela com bolinhos.

— Se quiser me dar mais um...

Isabel não podia acreditar no que testemunhava. Anvrai co­meu a segunda porção sem fazer sequer uma careta! A raiva que sentia abrandou-se. Ele engolira aquela coisa horrorosa sem se queixar. Com um nó na garganta, afastou-se da mesa e foi ajudar Tillie.

A criancinha continuava a exercitar os pulmões sem trégua. Isabel levantou Belle no colo e apoiou no ombro a face miúda. Bateu-lhe levemente nas costas como vira as amas-secas fazerem com as crianças.

Um pouco depois Belle arrotou. O barulho foi um tanto exagerado para uma criança de poucas horas de vida. Isabel riu, satisfeita por ter outra coisa para pensar, além das próprias deficiências e do espaço exíguo daquele casebre. Pôde deli­ciar-se com o pequeno milagre que tinha nas mãos, pois Belle logo se acalmou e permaneceu acordada.

— Veja, Tillie, parece mentira, mas Belle está olhando para as chamas.

De costas para Anvrai, observou Roger dormindo o sono dos justos. Como se não tivesse nenhuma preocupação nesse mundo. Admitiu que ele era um dos homens mais bonitos que já conhecera. Era jovem — tinha pouco mais do que os dezenove anos dela — e sem dúvida chegaria a tornar-se um ca­valeiro valoroso como Anvrai. Seus ombros estreitos haveriam de alargar-se. Sua voz engrossaria. Sua barba ficaria mais den­sa. Seu toque haveria de inflamá-la.

E, com certeza, Roger não desdenharia seu beijo.

Anvrai recriminou-se por não ter ido embora enquanto ti­vera oportunidade. Caminhara muito durante a noite, sabendo que poderia chegar ao destino apesar da tempestade de outono. Em poucos dias, poderia chegar em solo inglês.

Mas se houvesse deixado Isabel, Tillie e a criança aos cui­dados de Roger, o destino deles seria trágico. Todos morreriam.

Fora um tolo em incomodar-se com a sorte alheia. Cumprira com seu dever em relação a Isabel. Nada o impedia de tomar o próprio rumo. Havia comida suficiente, um abrigo razoável e todos os instrumentos necessários para sobreviver. Nada mais justo do que pôr-se a caminho... antes de ser obrigado a passar outra noite ao lado de Isabel.

Fora um grande erro ter ido atrás de Isabel na chuva, oferecer-lhe carícias e um pouco de amor, como se Anvrai d'Ar­ques tivesse alguma coisa a oferecer a uma dama bem-nascida. Ou como se lady Isabel Louvet, educada no convento de St. Marie, o houvesse escolhido para esposo.

As duas premissas não poderiam estar mais afastadas da realidade.

Isabel estava sentada na beira da cama de Tillie, segurando Belle no colo. Anvrai foi afetado por uma onda de ciúme que não tinha o direito de sentir. Roger compartilharia da cama de Isabel. Ela seguraria nos braços os herdeiros da casa de Neuville e os amamentaria. Seria dona de um castelo, rica pro­prietária de terras e títulos.

Anvrai andou de um lado a outro, sentindo-se tão aprisio­nado como se ainda estivesse preso com as algemas escocesas. O mais sensato seria procurar um lugar no barracão para dor­mir onde não houvesse goteira no forro.

Roger abriu os olhos e fitou-o com irritação.

— O senhor não poderia ficar quieto? Que tal sentar-se ou deitar e dormir?

— Como o senhor, sir Roger? Não. Minha mente está fer­vendo. Tenho de preocupar-me em sair daqui e levá-los em segurança até o castelo de Kettwyck. Depois, sem perda de tempo, terei de reunir-me com o rei Guilherme para irmos ao encontro do rei escocês.

— Para onde o senhor pretende se dirigir?

Anvrai não tinha certeza. Durham pareceu-lhe uma locali­zação provável. Acreditava que ali pudesse obter informações sobre onde estariam reunidos os navios e a tropa do monarca. - Irei para o leste. Guilherme pretende encontrar-se com o rei Malcolm em seu próprio território e obrigá-lo a terminar com os ataques na Nortúmbria.

— Um empreendimento ambicioso, sem dúvida.

— Mais modesto do que o de Hastings.

— Eu era muito jovem quando ocorreu a batalha de Has­tings — explicou Roger.

A conversa serviu para distrair a atenção de Anvrai. Ele ficava perturbado ao escutar as palavras de Isabel, que entre­tinha a jovem mãe com uma de suas história antigas.

— Eu imagino que fosse mesmo.

Naquele combate feroz haviam lutado muitos pajens e es­cudeiros bem mais novos do que os doze ou catorze anos que Roger deveria ter na ocasião. Em Hastings, Anvrai contava com pouco mais de vinte anos. Assim mesmo enfrentara a dura batalha com bravura e recebera muitas honrarias do rei Guilherme. Mas nenhuma propriedade.

— Meu senhor pediu-me para ficar em Rouen durante a invasão. Ele... eu estava...

— Engajados de outra forma, sem dúvida — Anvrai termi­nou a frase, fitando Isabel.

Acariciando as costas de Belle, ela beijou-lhe a penugem da cabeça. Ele sentiu um enrijecimento na virilha ao lembrar-se da textura e do sabor dos lábios de Isabel. As bolhas nas mãos dela haviam cicatrizado quase por completo e as unhas quebradas, adquirido contornos mais arredondados. Trazia os cabelos amarrados na nuca com um pedaço de cordão. Apesar da túnica rota que vestia, Isabel continuava com a aparência elegante e majestosa de uma soberana.

Observou Roger enrolado na manta como se fosse um menino. Somente uma mulher de pouco tino poderia satisfazer-se em um casamento com um homem frívolo como sir Roger. E Isabel não era nenhuma tola.

Anvrai murmurou uma imprecação para si mesmo e em­purrou a porta. Uma rajada de frio úmido entrou no casebre e Roger queixou-se em voz alta. Teve de fechar a porta e sentiu-se ainda mais aprisionado do que antes.

Voltou para o meio do recinto minúsculo. Tillie fazia es­forço para sair da cama. A jovem pôs os pés para fora e le­vantou-se. Teria caído, se Isabel não a amparasse.

— Tillie, por favor... — Isabel, apreensiva, tentou impedi-la de andar.

— Preciso ir lá fora, milady — Tillie respondeu em um sussurro. — Eu...

— Não daria para... — Isabel olhou em volta. — Será que não existe outra maneira de... resolver o problema aqui dentro?

Tillie negou, com gestos veementes de cabeça.

— Preciso ir para fora.

Anvrai não se surpreendeu com a aflição de Tillie. Apesar de ter dado à luz na presença de estranhos, era uma mocinha tímida e, assim como Isabel, certamente não usaria o urinol dentro da cabana.

Isabel segurou Belle com um braço e ajudou Tillie com o outro. Obrigou Tillie a calçar os sapatos e pôs uma das mantas nos ombros da garota. As duas deram um passo largo por cima de Roger, empurraram Anvrai para o lado e foram até a porta. Abriram-na. Do lado de fora, a chuva forte cedera e se trans­formara em uma garoa. Isabel deteve-se repentinamente. Virou-se e deixou o bebê no colo de Anvrai.

— Segure-a até voltarmos.

Ele não poderia ter ficado mais surpreso. Admitiu que não derrubara a criança por ter reflexos rápidos.

Isabel falara com secura e sem o encarar. Depois de cobrir-se com uma manta, pegara um dos fachos breados e acesos, e saíra com Tillie, deixando a porta entreaberta.

Anvrai fechou-a e fitou o bebê de pele vermelha e enrugada que estava em seus braços. A pequena Belle tinha olhos azuis e uma covinha em cada face. Cinco dedos em cada mãozinha. Belle empurrou o cueiro e Anvrai contou dez dedinhos mi­núsculos.

Uma sensação estranha e desagradável oprimiu-lhe o peito. Desejou não ter descoberto aquela cabana solitária perdida na margem da floresta. Assim não teria de recordar antigos so­frimentos. Também não teria visto Isabel chorando do lado de fora, infeliz e molhada. E não perderia o controle de maneira indesculpável.

Inspirou fundo e gemeu, aborrecido. Talvez fosse um tolo, mas não era nenhuma ama-seca.

Tillie estava muito fraca. Isabel iluminou o caminho e aju­dou a garota a chegar até a latrina. Esperou-a satisfazer as necessidades fisiológicas e alegrou-se por poder ficar alguns minutos afastada da indiferença de Anvrai. Alarmou-se com o grito repentino de Tillie.

— Está saindo muito sangue — Tillie gemeu. — Será que vou morrer, lady Isabel?

— Não, Tillie, claro que não. — A voz firme não demons­trou a falta de convicção que a invadia no momento.

Isabel sentia-se desamparada, sem a presença de uma mu­lher mais experiente. Talvez Anvrai soubesse de algum recurso para atenuar a hemorragia de Tillie. Afinal, ele demonstrara um bom discernimento sobre nascimentos de crianças.

— Espere um pouco, Tillie. Não saia daí. Trarei alguns panos para estancar o sangramento.

Deixou o facho com Tillie e retomou à choupana no escuro. Seria injusto que aquela menina houvesse passado por tantas provações, incluindo rapto, estupro e um ano de cativeiro, para depois morrer de parto. Deu graças ao Bom Deus por ter im­pedido para si mesma um destino semelhante.

A lembrança de sua irmã veio-lhe outra vez à mente. Teria Kathryn conseguido livrar-se dos captores ou fora forçada a submeter-se? Estaria grávida de algum escocês?

Isabel entrou na choupana e parou. Anvrai estava sentado na cama e segurava Belle no colo. A pequena criatura suga­va-lhe a ponta do indicador. Ele levantou o olhar e, ao vê-la, corou intensamente e tossiu.

— Belle não parava de berrar. Quer a mãe...

— Tillie ainda está na latrina. Ela... ela está sangrando mui­to. Tenho receio de que Tillie... — Isabel emocionou-se e aper­tou os lábios que tremiam — ...possa morrer.

Chorando, passou por ele e pegou alguns panos limpos.

— Vou voltar para lá. Anvrai tocou-a no ombro.

— Espere aqui. Eu a trarei de volta para a cama. — Ele entregou-lhe a criança e saiu, sem esperar resposta.

Isabel encostou a face na cabeça de Belle e soluçou. E se Tillie morresse? Seria como condenar Belle à morte. Não haveria meios de alimentar o bebê sem a mãe. Ajoelhou-se e, em prantos, rezou por mãe e filha. Nem mesmo a experiência de Anvrai poderia cessar a hemorragia de Tillie.

Ele voltou logo depois, carregando Tillie. Deitou-a cuidado­samente na cama, tirou-lhe os sapatos e cobriu-a com a manta.

— Está sentindo cólicas? — indagou, como um pai zeloso.

— Estou — Tillie respondeu com voz trêmula e fraca. Isabel aproximou-se e ficou em pé ao lado de Anvrai.

— A mocinha está com boas cores — ele comentou, con­victo, mas franzindo a lesta com preocupação. — Não conheci nenhum soldado a ponto de morrer de hemorragia que esti­vesse com uma aparência tão saudável.

— Talvez não seja incomum perder muito sangue após o parto — Isabel sugeriu.

Roger apoiou-se em um cotovelo e não disfarçou a irritação.

— Será que haveria uma possibilidade de falar mais baixo para que eu possa dormir?

Isabel escandalizou-se com a frieza de Roger. Não aceitava o fato de ele não entender que a pobre moça não era culpada pelo que lhe acontecera. Tillie precisava de ajuda e contava apenas com eles para dar-lhe algum apoio no momento.

Roger a condenaria caso o Barba Negra houvesse con­seguido estuprá-la? Sentiu um frio na boca do estômago, ao desconfiar da resposta. Acreditava que até o próprio pai a re­jeitaria.

Somente Deus poderia socorrê-la, se ficasse grávida de al­gum escocês.

Não estava tão certa quanto à reação de Anvrai. Ele vinha se mostrando muito bondoso para com Tillie e a filha, embora demonstrasse às vezes um pouco de relutância.

Anvrai ignorou as queixas de Roger, embora estivesse an­sioso para afastar-se dali.

— Creio que lady Isabel está certa — Anvrai disse a Tillie e saiu de perto da cama.

Foi até o outro lado do recinto, onde remexeu na despensa de Cormac. Isabel cismou que Anvrai pretendia empacotar suprimentos para seguir viagem na manhã seguinte. Ou talvez para sair naquela mesma noite. Seus sentimentos para com os demais e até em relação a ela não seriam suficientes para detê-lo.

Observou-o de maneira furtiva. Anvrai lavou a tigela que ela usara para fazer os bolinhos e iniciou um preparativo di­verso com o que trouxera da despensa.

Encantada com a agilidade das mãos que trabalhavam, Isabel embalou Belle nos braços, enquanto Tillie tornava a adormecer. Anvrai não levantou o olhar. Concentrou-se em misturar ingredientes na vasilha, e Isabel ficou à vontade para perscru­tar-lhe a fisionomia. As cicatrizes se agrupavam ao redor da órbita ocular esquerda, mas uma delas atravessava a face es­querda, do olho até o lado do queixo.

Isabel já vira homens que usavam tapa-olho e refletiu por que ele não fazia a mesma coisa. Se a cavidade ocular ficasse coberta, o semblante de Anvrai não pareceria tão intimidante, tão... assustador.

Anvrai mexeu as substâncias com força durante alguns mi­nutos e depois ergueu uma bola de massa. Passou farinha nas mãos, tomou a sovar. Puxou e empurrou mais um pouco. De­pois deixou a massa em cima de uma tábua e cobriu-a com a tigela. Ergueu o olhar e viu-se espreitado.

— Isto é pão — ele explicou.

Isabel anuiu. Ela deveria ter imaginado que Anvrai soubesse preparar aquele alimento básico. Desde que haviam fugido da aldeia escocesa, ele só demonstrara competência e confiabilidade.

Belle adormeceu. Isabel deitou a criança na cama ao lado da mãe e resolveu preparar um lugar para dormir. Havia pouco espaço disponível, pois a cama e a mesa ocupavam quase todo o recinto. Roger estava deitado perto do fogo e o balde ocu­pava o centro.

Ela o esvaziou e deixou-o de novo no lugar. Pegou uma manta e estendeu-a no chão. Como não havia lugar perto de Roger, concluiu que Anvrai teria de ficar a seu lado. Adorme­ceu, inquieta. Receava que ele resolvesse ficar sentado em um canto, só para não deitar-se perto dela.

 

Os cinco sentidos de Anvrai só percebiam Isabel. Dormin­do, ela se encostara nele para aquecer-se. Recriminou-se, mas não teve coragem de evitá-la. Seriam poucos momentos de intenso prazer, em que poderia tê-la nos braços sem maiores conseqüências.

Isabel escondeu a cabeça sob seu queixo e a respiração aquecia-lhe o pescoço. O busto pressionava-lhe o peito e An­vrai sentiu a excitação aumentar de encontro às pernas de Isa­bel. Gemeu e ela encostou-se ainda mais.

Uma verdadeira tortura.

De modo irracional, abraçou-a pela cintura e puxou-a para mais perto. A vontade de possuí-la era imensa, mas teria de contentar-se com muito menos. Não haveria mais beijos, nem carícias de paixão. O que acontecera entre eles não poderia se repetir e fora uma aberração.

O jovem noivo de Isabel estava deitado do outro lado do balde. Se houvesse espaço ao lado de Roger, certamente ela teria ali se deitado.

Recobrando o juízo, tirou o braço do corpo de Isabel. Afas­tou-se, mas ela voltou a aconchegar-se. Devia estar com frio. Por isso procurava aquecer-se. Na certa não havia outro mo­tivo. Demorou para conciliar o sono e acordou várias vezes com o choro de Belle que exigia as atenções da mãe.

Isabel e Roger nem se mexiam.

Antes do amanhecer, despertou de vez. Descobriu-se abra­çado com Isabel que dormia de costas para ele, bem encostada. Inalou profundamente a fragrância do pescoço delicado. Er­gueu-se, passou por cima dela e saiu da cabana.

Fazia frio, mas felizmente não chovia. Poderiam retomar a viagem e distanciar-se cada vez mais da Escócia.

No caminho, para a latrina, deteve-se com uma idéia em mente. Não poderiam abandonar a garota normanda. Isabel Louvet jamais admitiria uma barbaridade dessas.

O grande problema era Tillie ainda não estar em condições de caminhar. Pelo menos não os muitos quilômetros que te­riam de percorrer. No céu escuro, os primeiros sinais da ma­drugada a leste. Já passara o tempo da colheita e o inverno não tardaria a chegar. O frio ficaria pior com o passar dos dias e das semanas.

Virou-se para trás. Fitou o casebre e suspirou. Se adiassem demais a jornada, seria melhor ficar ali mesmo. Ficariam aper­tados, mas o casebre ainda resistiria como abrigo adequado contra o mau tempo. E se fossem cuidadosos, teriam comida até a próxima primavera.

Porém Anvrai não desejava retardar o retorno à Inglaterra. Muito menos seria capaz de manter a sanidade, se tivesse de passar meses enfiado naquele quarto ao lado de Isabel e do noivo.

Juntou um pouco de lenha e entrou. Tillie e Isabel já esta­vam acordadas. Isabel segurou o bebe e Tillie foi até a casinha do lado de fora.

Anvrai bateu na bota de Roger para acordá-lo. O rapaz fez uma careta.

— Não me amole!

Anvrai deu um sorriso de escárnio.

— Levante-se, sir Roger. Hoje o senhor terá de ganhar seu sustento.

— O que o senhor está querendo dizer com isso? — O jovem levantou-se a contragosto.

Anvrai pegou as armadilhas e cutucou-o em direção à porta.

— Temos trabalho para fazer, antes do desjejum.

Sem dar importância ao olhar intrigado de Isabel e muito menos aos protestos de Roger, rumou para a floresta. O rapaz tinha aparência patética, vestido com a túnica enorme do er­mitão e com a calça rasgada. Por compaixão, quase o deixou na cabana com as mulheres.

Quase.

— Ajustaremos os laços bem cedo e teremos carne fresca para o jantar.

— O quê? Vamos ficar aqui?

A pergunta de Roger ajudou-o a decidir-se. Não deixariam Tillie para trás. Também não esperariam até ela estar em con­dições de enfrentar uma marcha forçada como aquela.

— Ficaremos o tempo necessário para construir uma liteira reforçada o suficiente para carregar Tillie e o bebê.

Roger parou. Ou melhor, empacou.

— Não sou carpinteiro — o rapaz afirmou, impertinente.

Também não era caçador nem guerreiro. Na verdade, Roger nada fizera para ajudá-los na difícil escapada. Isabel se em­penhara muito mais. Matara o chefe escocês e, indiretamente, provocara o incêndio. Havia sugerido que fugissem no bote. Remara em situação de emergência. Costurara a túnica que ele vestia no momento. Isabel não era a beldade de cabeça oca que lhe parecera a princípio. Não fazia sentido Isabel escolher Roger para marido.

— Sir Roger, tente descobrir ninhos de pássaros. Pode re­colher todos os ovos que encontrar.

— Eu não sou...

— Um sobrevivente?

— O que está querendo insinuar?

— O senhor não quer comer?

— Mas é claro que sim.

— Aqui não há ninguém para servi-lo, milorde — Anvrai foi irônico. — Se quiser comer, terá de merecer a comida por meio de seu trabalho.

Assim como Isabel fizera. Com mãos empoladas e hema­tomas pelo corpo, fizera a parte dela... e a de Roger, um jovem convencido e detestável.

Estava mais do que na hora do rapaz empenhar seus mús­culos, quase inexistentes na verdade, em vez de depender de Isabel e de quem mais se dispusesse a tomar conta dele.

— Deveríamos partir sem a garota e seu bebê.

Anvrai nem se dignou a responder àquela maldade e come­çou a preparar a primeira arapuca.

— Tillie estava aqui há quase um ano... ela tem comida...

— Seu pai não a deixaria.

— Meu pai? O que o senhor sabe a respeito dele?

— Lutei a seu lado em Hastings. E depois em Romney. Ele é um homem honrado.

— Ele deve estar ansioso pela minha volta. Esperar até que possamos viajar com a garota...

— Se quiser sair à nossa frente, não faça cerimônia. — Anvrai foi categórico. — Tenho certeza de que lady Isabel dará preferência a esperar até que possamos levar a moça e a criança.

O lorde murmurou algo ininteligível e recolheu ovos de um ninho que encontrou no matagal. Anvrai tinha certeza de que o rapaz não se atreveria a seguir sozinho. Ele era um inútil, mas não estúpido.

— Quando eu levar lady Isabel a Pirou, terei uma tropa de cavaleiros para proteger a propriedade — Roger afirmou com orgulho. — Não me arriscarei a outro ataque como o que tivemos em Kettwyck.

— As províncias do sul são bem mais seguras, sir Roger.

— Estou consciente disso — Roger Neuville retrucou, pe­tulante. — Porém, mesmo no sul, eu não arriscaria a segurança de minha mulher.

Anvrai resolveu fazer uma indagação, embora temesse a resposta.

— O senhor pediu a lady Isabel para ser sua esposa? O jovem sacudiu a cabeça e levantou as sobrancelhas.

— Não. Mas lorde Henri deu-me a bênção pessoalmente na noite da festa. Nós nos casaremos assim que retomarmos ao castelo de Kettwyck.

Eles começaram a caminhar de volta para a choupana.

— E se a família de lady Isabel houver morrido no ataque?

— Será mais um motivo para casar-me com ela e tirá-la de Kettwyck.

Anvrai não gostou de admitir que se tratava de uma parti­cularidade que não havia considerado antes. Não queria levar Isabel a Kettwyck, antes de ficar conhecendo o destino de seus pais e de sua irmã. Seria muito melhor levá-la a Belmere e esperar as notícias lá. Roger poderia querer assegurar seus direitos de noivo... e também de guardião.

O som de vozes próximas e vindas da trilha deixou-o alerta. Parou de imediato.

— Vá para a choupana — ele instruiu o rapaz em voz baixa. — Vá por trás e evite a trilha. Apague o fogo e proteja as mulheres, se for necessário.

Roger agarrou-lhe o braço.

— Para onde o senhor vai?

— Fique quieto e escute.

O moço arregalou os olhos e apurou os ouvidos. Só então escutou a conversa dos que se aproximavam.

— Homens vêm vindo pela vereda — Anvrai comentou.

— Darei um jeito para eles não chegarem até a cabana.

— Como assim?

— Vá! — ordenou, ao perceber que os estranhos estavam muito perto.

Furtivamente, Anvrai apressou-se até o caminho estreito que chegava muito perto da choupana de Tillie. No momento, o mais sensato seria esconder-se para observar os camaradas e ver para onde se dirigiam. Não seria sensato confrontar-se com um grupo de escoceses, se eles não pretendiam visitar Cormac.

Estavam em seis. Um número pequeno de inimigos, mas excessivo para enfrentá-los sozinho. Mesmo se Roger fosse capaz de empunhar a acha-d'armas que estava no barracão, o rapaz não poderia enfrentar nem dois, quanto mais três homens.

Os sujeitos seguiram rumo ao sul, sem se desviar para a casa de Tillie. Não demonstraram a menor intenção de visitar Cormac. Apesar disso, Anvrai seguiu-os, mantendo-se escon­dido entre as árvores, preocupado em elaborar uma estratégia para proteger Isabel. Falhara na primeira vez. Não tinha in­tenção de repetir o erro.

Permaneceu oculto e observou a parada dos escoceses para comer. Teve esperança de que não percebessem a existência do casebre, nem notassem o cheiro de fumaça que escapava pela chaminé. Mas se fizessem menção de aproximar-se, com certeza daria um jeito de matar dois ou três, antes que che­gassem perto de Isabel.

Se Roger pudesse derrotar um que fosse, ele enfrentaria os que restassem.

Em todo caso, preferia evitar um combate. Estava a uma boa distância dos escoceses. Eles conversavam e riam. Um deles levantou-se e apontou para a casa de Cormac. Anvrai levou a mão ao punho do montante e preparou-se para o ata­que. Eles riram de novo, antes de retomar o trajeto inicial rumo ao sul, aparentemente esquecidos da cabana.

Ele seguiu-os por mais alguns quilômetros até que, em uma encruzilhada, dividiram-se em dois grupos. Três deles conti­nuaram o trajeto inicial e os outros três foram para o oeste.

Só então Anvrai descontraiu-se.

A passos rápidos, iniciou a volta. A segurança deles era relativa. Em última análise, estavam vulneráveis na cabana situada muito próxima à vereda por onde passavam inúmeros viajantes. Era preciso partir.

Passava do meio-dia quando chegou. Tillie estava sentada ao pé do fogo, amamentando a filha. Escrupulosa, cobrira o seio e a cabeça de Belle com um pano fino. Roger, recostado na parede, sentado sobre os joelhos, pegara a acha do telheiro e a conservava a seu lado.

— Onde está lady Isabel?

— No telheiro — Tillie respondeu. — Depois da morte de Cormac, levei as coisas dele para lá. Milady foi examinar os objetos e ver se daria para aproveitar algo.

Alguém havia assado os pães que Anvrai preparara na noite anterior. Faminto, ele cortou um pedaço e foi até o barracão. Escutou a voz de Isabel cantarolando uma melodia suave.

Ela se virou e deu um grito.

— Oh! O senhor me assustou!

— Peço-lhe desculpas — Ele fez uma cortesia.

O lugar era imundo e provavelmente deveria ter ninhos de animais nocivos em quantidade.

— Sir Anvrai, veja o que encontrei. — Isabel pegou o ar­chote e foi até o fundo do telheiro.

No chão havia uma grossa camada de palha e diversos pe­daços de madeira, além de ferramentas. Partes de uma carroça espalhavam-se pelos cantos e davam a impressão de serem

passíveis de reaproveitamento. Anvrai refletiu que, limpando um pouco a desordem, teria lugar para trabalhar.

Isabel virou-se para ele, exibindo um par de calças de tecido xadrez usado por camponeses da Escócia. Depois mostrou-lhe uma túnica de lã rústica, luvas com separação apenas para o polegar e uma capa de tecido pesado.

— Achei que poderiam servir para o senhor. São muito grandes para sir Roger. Ah, agora vejo que serão pequenas... O senhor tem ombros largos e suas pernas...

Ela apertou as peças de encontro ao peito, desconcertada pelas próprias palavras. Anvrai permitiu-se alguns momentos de satisfação ao imaginar que Isabel lhe admirava o físico.

— Elas serão úteis para Tillie. — Ele pegou a capa e exa­minou-a. — Não vai demorar muito e os dias se tornarão mui­to frios.

— O senhor pensa em levá-la conosco, não é verdade?

— Claro que sim, milady.

— Mas ela não será capaz de agüentar um trajeto tão longo a pé.

— Tillie viajará naquilo. — Anvrai apontou a carroça tom­bada, foi até onde as peças do veículo se encontravam espa­lhadas e tirou o entulho do estrado.

— A carroça está quebrada.

— Mas poderá ser consertada. Isabel inclinou a cabeça de lado.

— O senhor também é capaz de fazer isso, sir Anvrai?

— Sou.

Ele disse a si mesmo que não poderia se transformar em um homem atraente para agradar-lhe. Não tinha condições de adquirir uma propriedade para tornar-se um marido rico. Tam­bém não esquecia a própria inabilidade para conceder segu­rança a ela ou a qualquer outra mulher.

— Assim que eu consertar a carroça, partiremos. Aqui es­tamos muito expostos ao olhar dos escoceses que transitam por aquele caminho.

Isabel concordou e desviou o olhar, com uma timidez que não lhe era usual.

— Eu... eu fiz algo para o senhor.

Anvrai levantou uma sobrancelha. Isabel confeccionara a túnica que ele vestia e fizera os bolinhos horríveis da véspera. E nunca a vira demonstrar acanhamento.

Isabel pegou um pedaço redondo de couro negro amarrado em um fio fino também de couro. Mas pareceu arrepender-se em seguida. Atirou a peça em uma prateleira lateral.

— Não tem importância. Eu não deveria.

Curioso, Anvrai rodeou-a, com intenção de pegar o objeto da prateleira. Isabel afastou-se e, de costas, apenas alguns cen­tímetros a separaram de Anvrai. Ele pôs a mão esquerda na prateleira próxima à cintura dela e sentiu a fragrância dos ca­belos negros. Segurou-a pelo abdômen, puxou-a de encontro a si e estremeceu ao sentir o contato dos quadris macios.

Isabel mexeu-se e Anvrai recuou, incapaz de suportar por mais tempo aquele tormento. Não deveria deitá-la no feno e usufruir dos prazeres sensuais que Isabel poderia proporcio­nar-lhe. Jovens da nobreza criadas em conventos não entrega­vam a inocência a cavaleiros rudes. Caso isso viesse a ocorrer, certamente Isabel se arrependeria de tamanha impropriedade.

— Mostre-me o que milady fez! — disse rudemente.

Ele mesmo não entendeu o motivo por ter falado com gros­seria. Melhor assim. Teriam de manter-se afastados e ele pre­cisava ocupar a mente com outros temas que não fosse o desejo que sentia por Isabel. Apanhou a peça que fora descartada.

— Um tapa-olhos?

Por isso Isabel ficara envergonhada. Devia ser embaraçoso para ela. Anvrai nunca escutara ninguém comentar abertamen­te sobre a falta de seu olho ou sobre suas cicatrizes. Até aquele momento, nenhuma pessoa verbalizara o que todos reconhe­ciam. Que sir Anvrai d'Arques, cavaleiro famoso, era um ho­mem repulsivo.

— Perdoe-me, sir Anvrai. Foi presunção de minha parte. Eu não deveria...

— Lady Isabel, minhas cicatrizes são o testemunho do de­saparecimento de minha família. Eu também poderia ter se­guido o mesmo caminho. — Ele se afastou, surpreso por ter confessado fato tão doloroso.

— Sua família? O que aconteceu com eles e com o senhor, sir Anvrai?

Isabel levantou a mão para tocar-lhe o rosto, mas ele virou a cabeça.

— Uma rápida incursão de tropas bárbaras na casa de meu pai resultou na desgraça que sempre se segue a esses ataques. Tudo o que não pôde ser levado, foi incendiado. Os que ou­saram enfrentar os atacantes foram mortos. Eu fui deixado para trás, sem um olho e muito ferido.

— E sua família?

— Milady não é uma contadora de histórias? — Anvrai amassou a venda. — Quem sabe algum dia poderá entreter uma platéia com detalhes de minha...

— Não! Eu...

Ele se virou e fitou-a com ódio, sabendo que a ira não se justificava. Isabel não pretendera insultá-lo ou fazer bisbilho­tices. Nem mesmo entendia por que Isabel se interessava por sua história. Mas acabou lhe contando as circunstâncias que causaram a morte de sua família e o afastaram de seus direitos hereditários.

— No começo, eu me escondi nos aposentos de meus pais. Eles entraram lá, onde meu pai tinha ido à procura de minha mãe, de minha irmã e de mim. Os nórdicos atravessaram-lhe o peito com uma lança. Levaram tudo o que era valioso e incendiaram a propriedade.

Ele teve a impressão de sentir aquele cheiro de fumaça que o rodeara na ocasião.

— Por favor, não precisa falar disso, sir Anvrai.

Isabel tocou-lhe o braço, mas Anvrai não se deteve. Se ela achava o rosto dele tão horrível, ficaria sabendo por que ele não o cobria.

— Tentei puxar meu pai para longe do fogo, mas ele tinha certeza de que não resistiria ao ferimento. Pediu-me para que eu encontrasse minha mãe e Beatrice, e as escondesse no porão secreto que havia sob a residência, onde nem o fogo nem os escandinavos haveriam de entrar. Elas teriam permanecido se­guras onde estavam, mas eu insisti em cumprir as ordens de meu pai. Os atacantes nos pegaram. Eles seguraram a mim e a minha irmã, e nos forçaram a olhar a violação e a morte de minha mãe.

Anvrai viu o lábio de Isabel tremer e seus olhos encherem-se de lágrimas. Será que ela não entendia que não adiantava chorar? Ele nunca relatara os acontecimentos daquele dia e arrependeu-se de ter começado a contar os fatos para Isabel. Não queria a piedade dela. Esperava apenas sua compreensão. Isabel teria de entender por que deixava aquelas cicatrizes hor­ríveis à vista de todos e por que não podia responsabilizar-se pela segurança de ninguém.

— Tentamos evitar a tragédia de todas as maneiras. Implo­ramos para que poupassem a vida dela e nos pusessem a salvo de testemunhar aquele horror. Fomos seguros com brutalidade e recebemos provocações. Finalmente pareciam ter cedido às nossas súplicas. Mas o consolo não durou mais de um segundo. Um deles perfurou o olho de Beatrice com uma lança e ma­tou-a. O que estava comigo possuía um pequeno punhal e... por isso sobrevivi ao ferimento.

— Quantos anos o senhor tinha? — Isabel limpou uma lá­grima que lhe escorria pela face.

Anvrai ficou aliviado por constatar que ela não se entregava a um pranto convulsivo.

— Oito.

Isabel fitou-o sem pestanejar, com uma expressão indefi­nível. Mas sem sinal de repulsa.

— O senhor era... eu apenas... — ela engoliu em seco. — Peço-lhe perdão, sir Anvrai. Como eu já lhe disse, foi presun­ção de minha parte.

Isabel encontrava-se profundamente envergonhada. Deve­ria ter suposto que Anvrai tinha motivos para deixar expostas as marcas do infortúnio que o atingira, A crueldade a que sobrevivera dava-lhe o direito de mostrar o rosto da maneira que quisesse. Murmurou mais um pedido de desculpas e saiu do telheiro, contendo as lágrimas. Era evidente que a piedade não lhe agradava e sabia que ele odiaria vê-la chorar por sua causa. Sem dúvida, devia considerar uma penitência passar a vida mostrando o rosto desfigurado para quem quisesse ver.

Cedeu ao pranto quando se encontrou bem longe da cabana. Como uma criança de oito anos poderia ser responsável pela proteção da família inteira? Uma tropa de cavaleiros não conseguira proteger Kettwyk dos agressores escoceses. Não con­siderou justo o pai de Anvrai ter encarregado o filho de pro­teger a mãe e a irmã.

Abalada pela história que acabara de escutar, foi até o regato e caminhou à beira das águas cristalinas. Anvrai era o homem mais corajoso que já conhecera. Era um guerreiro impetuoso e justo. Entretanto, ela se fascinara com as pequenas coisas. A maneira como ele cuidara do ferimento de seu pé, a eficiên­cia e a gentileza com que ajudara Tillie. A tolerância para com o comportamento desagradável e infantil de Roger. A honra­dez presente em cada gesto, mesmo que não fosse refinado. Havia coisas que...

Um som a distância chamou-lhe a atenção e assustou-a. Vozes masculinas em altos brados ecoavam a partir da trilha.

Apressada, voltou para a clareira, ao mesmo tempo em que Anvrai saía da choupana. De início, pareceu aliviado ao vê-la, mas logo a expressão traduziu preocupação extrema.

— Homens estão vindo nesta direção... — Isabel começou a falar, mas era óbvio que os outros também já haviam es­cutado.

— São amigos de Cormac — Tillie avisou-os.

— Quantos são? — Anvrai perguntou.

A garota empalideceu e agarrou-lhe o braço.

— Eu conheço três... Por favor, milorde, por favor! Não deixe que eles me machuquem!

A expressão de Anvrai não poderia ser mais resoluta. Em­bora não lhe tivesse agradado chegar na hora do parto de Tillie, os escoceses teriam de matá-lo antes de ficar com ela. Isabel entendeu seu pensamento e sentiu-se mais confiante.

— Devem ser os mesmo homens que eu segui antes.

— Eles carregam achas e espadas — Tillie revelou, ater­rorizada. — Eles b... bebem m... muita c... cerveja e riem mui­to, c... contando as crueldades que cometem.

Anvrai segurou o ombro de Tillie.

— Será que poderia esperar até eles chegarem? — ele per­guntou em voz baixa.

— Aqui no pátio? Não! Por favor, não faça isso comigo!

— Tillie, eu lhe garanto que tudo dará certo. Eu a manterei segura. Preciso que faça o que lhe pedi. Os escoceses devem pensar que nada mudou, quando alcançarem a clareira. E so­mente sua presença poderá convencê-los disso.

Anvrai voltou-se para Isabel.

— Por favor, pegue o bebê e vá para dentro. Não faça ba­rulho. Sir Roger, acompanhe-a, mas esteja pronto para sair com a acha assim que escutar meu primeiro golpe com a es­pada. Teremos de apanhá-los de surpresa.

Anvrai falou com Tillie que estava paralisada pelo medo:

— Tillie, acalme-se. Confie em mim. quando digo que a protegerei.

Tillie engoliu em seco e anuiu.

— Ótimo. O sucesso do plano está em suas mãos. Tillie fitou Anvrai, espantada.

— Fique aqui, como se nada houvesse de errado — ele explicou. — Quando eu chegar e surpreendê-los, quero que saia correndo. Entendeu bem, Tillie?

— S... sim, m... milorde.

Isabel não conseguia mexer-se. As pernas não lhe obede­ciam. Anvrai pretendia enfrentar sozinho três escoceses. Uma verdadeira loucura!

— Sir Anvrai! — gritou, com Belle nos braços. — O senhor não poderá fazer isso sozinho!

— Não. Contarei com auxílio de sir Roger. Agora vá para dentro, milady!

A estratégia de Anvrai deixou-a zonza. Teria de ficar dentro da cabana com Belle, enquanto Tillie serviria de isca para os escoceses. E a coitada da moça teria de fugir, assim que a batalha começasse.

Aquilo não acabaria bem!

 

Isabel olhou em volta. Cama, mesa, cadeiras, um banco... Não havia nada no casebre que pudesse ser usado como arma. Só se fosse a cadeira ou o banco de três pernas, caso precisasse proteger a si mesma e a Belle.

— Meu Deus — Roger murmurou, em pé na porta, espe­rando pelo sinal de Anvrai.

O rapaz parecia pouco à vontade com a acha-d'armas na mão.

Em minutos, escutou a chegada dos escoceses que cumpri­mentaram Tillie em altos brados. Seguiu-se um grito coletivo de surpresa e o som estridente de metais.

Ela entreabriu a porta. Anvrai estava engajado em uma luta com dois homens corpulentos. Um terceiro jazia no chão. De Tillie, nem sinal.

— Vá, sir Roger! — gritou, enquanto deitava Belle. — Vá antes que eles o vejam! — Empurrou-o porta afora, pegou uma cadeira e seguiu-o.

— Lady Isabel, entre! — Anvrai gritou.

Um dos escoceses viu Isabel e Roger saindo da choupana, e virou-se para enfrentar o rapaz. Roger usou a arma pesada, mas o oponente levava vantagem. Assim mesmo lutou com valentia até tropeçar no camarada que fora derrubado e esta­telar-se no chão. Apavorada com a queda de Roger que poderia significar uma sentença de morte, Isabel levantou a cadeira e quebrou-a nas costas do agressor, ao mesmo tempo em que Anvrai derrubava o terceiro escocês.

A intervenção de Isabel enfraqueceu o oponente de Roger e forneceu ao jovem cavaleiro a abertura de que ele necessi­tava. Porém o jovem rapaz hesitou demais. O escocês atacou de novo e deu uma cutilada no braço de Roger. Isabel gritou e Anvrai agiu de imediato, acertando o camarada com a espa­da. O homem caiu em meio a uma poça de sangue e ali mesmo expeliu o último suspiro.

Fez-se um silêncio completo no pátio. Não havia vento e nenhum pássaro chilreou nas proximidades. No ar, um frio espectral. Isabel sentia náuseas. Apesar do horror à destruição e à morte, não podia desfitar os três defuntos. Com as pernas bambas, nem viu quando Anvrai estendeu a mão para Roger e ajudou-o a ficar em pé. Neuville cobriu o ferimento do braço e queixou-se da pontaria feliz do inimigo.

Anvrai virou-se para Isabel, embainhando a espada.

— Milady ficou maluca? Deveria ter ficado dentro de casa com o bebê. O que pretendia fazer?

— Eu...

— Se fosse atingida por uma daquelas espadas, poderia estar estendida ali, ao lado deles! Quem sabe, junto com sir Roger! — Anvrai passou a mão nos cabelos, demonstrando irritação.

Isabel mal podia raciocinar, ainda mais depois da explosão de Anvrai.

— Eu pensei... apenas em...

— Não diga mais nada! — Ele a fitou com expressão dura e fria. — Da próxima vez, siga minhas instruções. Somente um de nós tem experiência de lutas e milady me faria um grande favor, se não esquecesse disso.

— Tillie... — Isabel engoliu em seco. — Onde está Tillie?

— Não vi para onde foi — Anvrai retrucou, antes de voltar para o telheiro. — Mas não deve ter ido longe.

Ela nem se admirou por Anvrai não ter visto a garota fugir, considerando-se que ele enfrentara sozinho os três escoceses. Com certeza, Isabel Louvet não fora a única pessoa que agira sem bom senso. O perigo a que Anvrai se expusera suplantava tudo o que ela já testemunhara. Anvrai d'Arques arriscara a vida para protegê-los.

Isabel caminhou de volta para a cabana, pensando em pro­curar Tillie. Admirava-se com a perícia de Anvrai e ao mesmo tempo o temia. Não havia motivos para ele estar com raiva. Com certeza não se dera conta de que ela pusera aquele es­cocês fora de combate, facilitando-lhe a oportunidade de matá-lo. Roger poderia muito bem ter matado o homem com a acha. Anvrai não precisaria ter interferido.

Aborrecida, escutou o choro de Belle. Entrou correndo, pe­gou a menina no colo e embalou-a até sossegá-la. E a si mes­ma. O ódio de Anvrai a fizera entender os motivos práticos por que ele não cobria o olho vazado. Seus oponentes tende­riam a subestimar a perícia de um guerreiro cego de um olho.

Por outro lado, a deformidade perturbava qualquer um.

Anvrai era um guerreiro extraordinário. E era difícil acei­tar um fato inequívoco. As mãos que manejavam o montante com tanta perícia eram as mesmas que haviam segurado Belle com tanta gentileza. Inspirou fundo e estremeceu. Nesse mo­mento Roger entrou, tirou a túnica e examinou o ferimento.

— Sir Anvrai encontrou-a. Ele quer falar com milady.

— Tillie está bem?

O mancebo deu de ombros e sentou-se à mesa. Isabel saiu. levando Belle. Com cuidado para não pisar nos cadáveres, foi até o barracão, mas não encontrou ninguém dentro.

— Tillie? — chamou, inquieta.

Anvrai encontrara Tillie a alguma distância da clareira, es­condida atrás de um pinheiro alto que tinha muitos ramos bai­xos e espalhados. Muito pálida, com o olhar fixo, tremia sem parar.

— Aqui! — ele gritou, ao ouvir a voz de Isabel. A ferocidade da batalha e o receio pela vida de Isabel o haviam enfraquecido. Lidar com uma jovem frágil era mais desafiador do que enfrentar três escoceses sedentos de sangue. O que ele realmente queria era torcer o pescoço de Roger. O rapaz tivera um péssimo desempenho, quase fora morto e pu­sera a vida de todos em risco. Achava que Isabel nem mesmo percebera a gravidade do fato. Ela chamou de novo. — Ela está aqui na mata!

Tillie parecia muito aterrorizada e Anvrai tinha esperança de que Isabel pudesse persuadi-la a reagir.

Isabel aproximou-se e afastou um dos ramos que escondiam Tillie. Sem largar Belle, abaixou-se e, ignorando a presença de Anvrai, expressou-se com doçura.

— Tillie, fale comigo... eu trouxe Belle.

Tillie apenas choramingou baixinho. Só então Isabel levan­tou o olhar para Anvrai. Ela mesma se encontrava abatida, tanto pela explosão de temperamento dele, como pela barbárie da luta.

— Os homens estão mortos, Tillie. Sir Anvrai os matou. Tillie estremeceu e fitou-a, perplexa.

— Minha querida, eles não podem causar-lhe mais sofri­mentos. Venha.

Isabel usou um tom de voz baixo e tranqüilo, na medida exata para um convencimento. Anvrai recriminou-se. Não de­veria ter sido tão ríspido com Isabel. Nunca antes gritara com uma mulher. Mas as atitudes dela desnorteavam qualquer um. Graças ao Bom Deus, fora bem-sucedido. Tivera sorte. Nem queria pensar na hipótese da morte de Isabel. Tillie abraçou-se, sem parar de tremer.

— Eles... estão mortos?

— Estão, minha querida.

— Aqueles homens... vieram duas vezes aqui. Eles... eles me machucaram...

A sensação de inutilidade que invadiu Anvrai não lhe agra­dou nem um pouco. Se pudesse, mataria aqueles miseráveis uma segunda vez, só para vingar o que haviam feito a Tillie.

Porém nada poderia ser alterado. Levantou-se e voltou para a clareira. Deixou Tillie aos cuidados de Isabel que saberia como contornar o pânico da jovem mãe.

Não se surpreendeu pelo fato de Roger não haver removido os corpos e nem se aborreceu por isso. Tillie poderia testemu­nhar a morte de quem dela abusara e talvez esquecesse o terror. Seria a melhor forma de tranquilizá-la.

Teriam de sair dali com a maior brevidade possível. A de­mora na volta dos escoceses para suas aldeias ocasionaria a formação de grupos de busca que iriam à procura dos desapa­recidos. Anvrai não queria arriscar-se a outro confronto. Urgia consertar a carroça. Iriam embora ao amanhecer.

— Sir Roger!

A porta da cabana estava fechada. Os mortos jaziam no pátio, assim como a cadeira quebrada, uma lembrança do flerte de Isabel com a morte. Ela arriscara a vida para salvar o rapaz. Anvrai sentiu na boca o gosto de bílis ao lembrar-se disso.

O escocês poderia ter se virado. Ao vê-la, não teria pensado duas vezes em usar a espada.

Entrou no casebre. O jovem amado de Isabel estava sentado, sem a túnica. Apertava um pedaço de pano no ferimento. — Ainda está sangrando — o infeliz afirmou. Anvrai sacudiu a cabeça, desolado. Conhecera outros como Roger. Homens cujo pensamento não ia além dos próprios problemas. Mesmo assim, Isabel se expusera à morte por causa dele. Ela devia gostar muito de Roger apesar de... Anvrai pigarreou.

— Há muito trabalho para ser feito. Vista-se e vamos lá para fora.

Roger fitou-o com rosto inexpressivo.

— Enquanto eu conserto a carroça, o senhor cavará um buraco fundo o suficiente para enterrar os escoceses.

Roger tirou o pano do braço e expôs a ferida.

— Acho que não vai dar para cavar nada...

— Lady Isabel poderá dar alguns pontos nesse corte mais tarde. Amarre-o com uma bandagem bem apertada e faça uma cova grande para que os corpos não sejam percebidos.

Sem vontade de discutir, Anvrai voltou para o pátio. Isabel vinha com Belle no colo, conversando com Tillie. Parou e fitou-o, mas Anvrai não se deteve. Ele deveria desculpar-se pela aspereza, mas tudo o que dissera fora correto. Se falasse com ela naquele momento, não resistiria a uma pergunta. Valeria a pena arriscar a vida pelo amor de sir Roger?

Anvrai achou uma pá no celeiro e deixou-a do lado de fora para que Roger a encontrasse. Esperava que o rapaz viesse queixar-se da tarefa. Irritado como estava, diria poucas e boas para o imprestável.

Com muita força, ergueu a carroça e puxou-a para a clareira. À luz do dia, teria uma idéia melhor do que precisaria ser feito. Para acalmar-se, o melhor seria jogar aquela porcaria de cima de um despenhadeiro. Mas o resultado não seria muito prático. Além disso, não havia nenhum penhasco por perto.

Decidido, pôs mãos à obra. O trabalho seria um bom jeito de tirar Isabel e Roger de seus pensamentos. Eles tinham sido feitos um para o outro e Deus que os abençoasse. O cavaleiro incompetente e sua formosa dama. O filho mimado de um nobre e a jovem voluntariosa. O noivo imaturo e sua bela, corajosa e impetuosa noiva.

Disse uma imprecação e voltou ao barracão para escolher as ferramentas das quais iria necessitar. No chão, o tapa-olho que Isabel fizera. Levantou a peça e lamentou ter lhe contado a história de seu passado. Poderia ter dito apenas que preferia ficar ao natural. Não compreendia por que relatara os aconte­cimentos que haviam destruído sua família, coisa que nunca fizera antes.

Ajeitou o tapa-olho no rosto e não sentiu diferença. Ainda era o guerreiro cego de uma vista, o filho que falhara no cum­primento do dever para com seu pai. Amarrou as tiras finas na cabeça. Não queria ofender a sensibilidade de Isabel. Queria poupá-la de continuar a ver a órbita ocular vazia.

Pegou as ferramentas e arrastou a roda quebrada para o local onde deixara a carreta. Aprontá-la para um bom uso seria uma tarefa e tanto. E trabalho era exatamente do que precisava.

Os tremores de Tillie continuaram por mais uma hora e Isabel entendeu os motivos. Cormac e os amigos haviam abu­sado de Tillie de maneira bárbara. Era um milagre que a garota tolerasse a presença de sir Roger e ser tocada por sir Anvrai. Felizmente, os dois homens estavam fora da cabana, quando ela voltara com a moça. As duas tiveram de rodear os corpos estendidos na clareira, e Tillie, mesmo sem os olhar diretamente, notara o cenário terrível. Embora atordoada, pareceu respirar com maior confiança. Quando Belle começou a cho­rar, Isabel abriu a porta da cabana.

— Venha, Tillie, sua filha está com fome.

Ela entregou a menina nos braços da mãe, mas teve de guiar Tillie até a cadeira, desamarrar-lhe o corpete e ajeitar Belle em seu peito.

— Segure-a, minha querida. Ponha seu braço em volta dela... assim mesmo.

Dobrou uma manta e pôs sob a criança para apoiá-la en­quanto Tillie não se recuperava do estado de choque. Temia que a moça deixasse cair o bebê.

A garota precisava de uma distração, de outra coisa para pensar. Uma opção seria inventar uma história para Tillie es­quecer seus algozes mortos, mas os pães frescos chamaram-lhe a atenção. Da lembrança de que partiriam logo surgiu a idéia de ter alimentos prontos para a viagem.

— Quer ajudar-me, Tillie? Eu gostaria de aprender a fazer pão. — Ela tirou uma tigela da prateleira e deixou-a sobre a mesa. — Primeiro, a vasilha. — Riu, ironizando a si mesma. — Agora, a farinha. — Entre os vários sacos de grãos, esco­lheu o que continha cevada. — Quanto devo pôr, Tillie? Tillie pareceu sair do torpor em que se encontrava. — Está vendo aquela caneca na prateleira? Pode enchê-la duas vezes.

Eufórica por haver conseguido o interesse de Tillie, seguiu as instruções da jovem mãe e preparou a massa da mesma maneira que Anvrai fizera na noite anterior. Ela o observara com atenção e dissera a si mesma que era apenas para aprender a arte da panificação. Admitiu que não conseguia tirar os olhos daquelas mãos fortes que sovavam a mistura de farinha, água e sal.

Mãos diferentes das de Roger. Dedos longos de pontas gros­sas, capazes tanto de proteger como prover de alimentos os que necessitavam. As características de Anvrai eram as que ela sempre temera nos homens. Grande, arrogante, não refinado, às vezes até grosseiro. Comparado com Roger, Anvrai poderia ser classificado como bárbaro.

Sempre acreditara que seria melhor escolher um marido de nível social semelhante ao seu. Assim, as diferenças de com­portamento seriam mínimas. Um homem como sir Roger. Ele sabia dançar, falava corretamente e conhecia os protocolos.

Nunca vira Anvrai dançar e muitas vezes ele falava com rudeza. Ainda assim, seu coração disparava todas as vezes em que olhava para aquele cavaleiro alto de rosto desfigurado. As diferenças entre ambos a intrigavam e a atraíam. Anvrai era um guerreiro intrépido e amava a justiça. Isabel começava a justificar a reação violenta que ele tivera ao vê-la chegar no meio da luta com os escoceses. Fora uma atitude intempestiva e perigosa. Tarde demais, ela entendeu que distraíra a concen­tração de Anvrai. O que poderia ter ocasionado um final bem diverso.

Sovou a massa e lamentou o comportamento impulsivo. Ne­nhuma heroína de suas histórias teria agido de maneira seme­lhante. Deveria desculpar-se por haver posto em risco o resul­tado da luta.

Seguindo as explicações de Tillie. fez dois pães. Depenou o peru que Roger havia trazido, tirou as tripas, lavou-o e pôs a ave no espeto. Não sabia como tirar a pele de lebres e, no­vamente, começou a executar a tarefa sob orientação de Tillie. Animada, pois não gostava de sentir-se inútil, pegou a faca e resolveu fazer o trabalho do lado de fora.

Tirar o couro do animal não era tão fácil como lhe parecera a principio, mas conseguiu um sucesso razoável na execução do trabalho. Voltou para dentro, cortou a carne, mergulhou os

pedaços em um caldeirão com água e vegetais e levou tudo ao fogo.

Tirou Belle dos braços da mãe e embalou a criança, canta­rolando suavemente.

— Tillie, creio que será melhor dormir um pouco.

Belle arrotou e adormeceu. Isabel ajudou Tillie a acomo­dar-se na cama. Pôs o bebê ao lado da mãe e saiu da choupana.

Sem vontade de deparar-se com a raiva justificada de An­vrai, foi à procura de Roger. Encontrou-o a uma certa distân­cia, cavando um buraco e falando consigo mesmo. Com cer­teza, praguejava. Espantada, percebeu que ele preparava a cova dos escoceses. O ferimento do braço estava empapado de sangue. Mesmo assim, Roger trabalhava sem descanso. Nem parecia o rapaz delicado que ela conhecera.

— Sir Roger, o ferimento...

— Provavelmente me matará antes da sepultura ficar pronta.

— Deixe-me cavar um pouco. Vá trocar a atadura. Encon­trará panos limpos lá dentro.

Roger riu com amargura.

— E deixar que o bastardo a veja executando minha tarefa? De jeito nenhum!

— Então irei buscar uma bandagem nova para o senhor.

— Traga um pouco de água fria, também. Esse sol está muito quente.

Roger continuou a resmungar e Isabel imaginou a dor que ele estava sentindo no braço. Entretanto, apesar do sofrimento, aquele trabalho era necessário. Eles se encontravam muito ex­postos naquele lugar. Quando os escoceses dessem pela falta dos três amigos de Cormac, poderiam vir à procura deles. Era imprescindível que saíssem dali o quanto antes. No máximo em dois dias. Dois dias para reiniciar a difícil jornada.

Voltou para a cabana. Tillie e Belle dormiam placidamente. Os acontecimentos do dia tinham sido extenuantes para Tillie. A garota precisava descansar e fortalecer-se antes da viagem. Rasgou um pano limpo em tiras e foi até o córrego, levando o balde. Encheu-o com água fresca e voltou até onde Roger se encontrava.

Ele não disse uma só palavra de agradecimento, mas Isabel teve certeza de que a troca do curativo e beber água fria haviam sido de seu agrado.

Endireitou os ombros e resolveu ir ao encontro de Anvrai. Ele também gostaria de matar a sede com água fresca. Talvez até aceitasse o gesto como uma oferta de paz.

Deixou Roger entregue às escavações e encaminhou-se ao telheiro, carregando o balde.

Entrou e quando Anvrai se virou, Isabel perdeu o fôlego. Ele estava usando o tapa-olho.

A pequena lâmina redonda de couro transformara o rosto dele. Além de cobrir o traço mais chocante, que era a ausência do globo ocular, escondia também as cicatrizes mais profun­das, e o efeito era impressionante, pois sem a visão pavorosa do rosto parcialmente deformado, destacava-se o olho direito, perfeito, verde e brilhante, sombreado por cílios espessos. As maçãs do rosto altas eram atraentes e o nariz tinha linhas retas e aristocráticas. O queixo era bem delineado e másculo. Isabel fitou-lhe os lábios e lembrou-se do sabor e da textura deles sobre os seus.

— O s... senhor está u... usando...

Um movimento brusco foi perceptível no queixo de Anvrai.

— Milady, não tenho a menor intenção de ofender-lhe a sensibilidade e o bom gosto.

— O senhor... — cerrou os dentes, irritada. — Faça o que achar melhor, sir Anvrai.

Ele era uma pessoa intolerável!

Isabel largou o balde com água e voltou para o casebre. Ocupou-se com tarefas domésticas e preparativos para a via­gem. Gêneros alimentícios teriam de ser empacotados. Resol­veu levar também as roupas que havia encontrado. Eram coisas que lhes poderiam ser úteis.

Intrigada, não deixava de pensar na transformação de An­vrai. Precisava vê-lo novamente para comprovar se as mudan­ças fisionômicas não tinham sido produto de sua imaginação às vezes fértil em demasia. Era de se esperar que ele não hou­vesse alterado a atitude brusca. Mesmo com as piores marcas cobertas, ele ainda se sentia responsável pela destruição da família e, por isso, relutava em assumir responsabilidade pela segurança dos que o acompanhavam.

Quando Isabel resolveu voltar ao telheiro, os corpos dos escoceses já haviam sido retirados da clareira. A carroça estava a prumo, ao lado das ferramentas. Anvrai não se encontrava por perto. Ela foi até o local onde Roger estivera cavando. O rapaz observava o trabalho de Anvrai, que empunhava a pá. Os defuntos encontravam-se alinhados de um lado.

— Lady Isabel, procure na cabana linha e agulha para fechar o corte do braço de sir Roger — Anvrai falou com rispidez.

— O senhor fará a sutura?

— Não, milady. A senhora se encarregará disso!

— Eu? Mas eu nunca... — Ela inspirou fundo e endireitou as costas, determinada. — Está bem. Farei o que o senhor está me pedindo.

Ela faria qualquer coisa para sobreviver ao infortúnio por que passavam e não demonstraria nenhuma suscetibilidade, ainda mais diante de uma pessoa tão impertinente quanto Anvrai! Ele poderia até ser um guardião. Mas ela, lady Isabel Louvet, de St. Marie, mostraria que era uma mulher decidida e enérgica.

Ele tirou a túnica pela cabeça, jogou-a no chão e continuou a cavar, vestido apenas com o calção. Ela se virou depressa para não ver o tórax largo e musculoso e o rosto que se transformara. Era perturbador demais. Apressou-se até a cabana.

Tillie continuava a dormir. Isabel virou a carne no espeto e mexeu o conteúdo da panela. Não queria pensar no físico que Anvrai desnudava com tanto descaramento, nem no pró­prio coração que disparava com tanta facilidade. Muito menos na pulsações fortes que experimentava nas partes mais sensí­veis de seu corpo. A reação que sentia por Anvrai era um despropósito.

Tratou de concentrar-se na difícil incumbência que a aguar­dava. Suturar o braço de Roger.

Fitou de esguelha a cesta de costura que estava no chão ao lado da cama. Pensar no que teria de fazer deixava-a enjoada. Mas haveria de conseguir, a qualquer custo. Recordou-se do que Tillie suportara durante os poucos anos de sua vida. Dar alguns pontos na pele de Roger pareceu-lhe uma inconveniên­cia bem menor.

Estava escurecendo quando Roger entrou, irritado, resmun­gando.

— Ficarei satisfeito em ver o fim desse selvagem insupor­tável! Ele não é nada melhor de que os miseráveis escoceses!

Ela não respondeu. Podia estar aborrecida com Anvrai, mas não havia como negar que ele salvara a vida de todos, inclusive a de Tillie. Atribuiu o péssimo humor de Roger ao ferimento que o incomodava. Nem queria pensar na dor que ele suportara enquanto cavava a sepultura.

— Veja. — Neuville estendeu o braço com a atadura en­sopada de sangue. — Ainda não parou de sangrar.

Os hematomas dele haviam sumido, assim como a protu­berância na cabeça. Sir Roger era muito bonito. Tinha olhos azuis cristalinos e feições perfeitas. Era atraente e sua aparên­cia lembrava a finura dos bem-nascidos. Mas quando o fitava, Isabel não sentia nenhuma pulsação, nem coração acelerado, nem calor interno.

Removeu com cuidado a atadura do braço de seu preten­dente e perguntou a si mesma como poderia ter se enganado tanto a respeito dele. Roger era um dos favoritos de lorde Kettwyck. Se ela o escolhesse, seu pai ficaria muito satisfeito.

Henri Louvet chegaria a entender a superficialidade do va­lor de Roger ou a riqueza da família do rapaz o cegavam da mesma maneira que o rosto bonito e as boas maneiras a haviam encantado?

Os quatro e Belle haviam se aproximado da morte. Somente a bravura de Anvrai evitara mais uma vez um triste final ali mesmo, no pátio de Cormac.

Isabel fitou o braço do jovem cavaleiro sem ter idéia de como se iniciava uma sutura. Daquela vez, não teria Anvrai para dar-lhe instruções. Apertou as mãos para que não tremes­sem. Recordou-se que já fizera todos os tipos possíveis de costura... Aquele não deveria ser tão diferente dos demais.

Pediu a Roger para sentar-se na cadeira e agachou-se dian­te dele. Secou o sangue que ainda escorria, inspirou fundo e começou.

Depois de consertar a roda, Anvrai notou que o eixo estava gasto. Um ótimo motivo para ficar mais tempo no barracão, trabalhando até o escurecer. Esperava voltar à cabana quando todos já tivessem comido e estivessem dormindo. Quanto me­nos visse Isabel e quanto menos conversasse com ela, melhor. O compromisso de fidelidade de Isabel para com Roger o incomodava mais do que deveria. Por isso mesmo, deveria manter-se o mais afastado possível dela.

Por estar escuro, continuou a trabalhar com a iluminação de um archote. Fez um novo eixo e fixou nele as rodas. Ve­rificou o resultado e deu-se por satisfeito com a obra de car­pintaria. Separou as ferramentas que planejava levar na via­gem, guardou-as em uma sacola de couro e deixou tudo na parte de trás do estrado.

A carroça fora reforçada e suportaria o peso de Tillie e até Isabel. Anvrai receava usar o caminho principal. A experiência recente lhe mostrara que se tratava de uma via de comunicação de trânsito intenso. Não havia o menor interesse em encontrar outros viajantes.

A porta do barracão foi aberta e Isabel entrou. Trazia uma tigela grande com caldo de carne e legumes, e uma grossa fatia de pão.

— O senhor não veio para jantar conosco... O comportamento de Isabel pareceu-lhe tímido e recatado, como o das outras mulheres quando o encaravam pela primei­ra vez.

Aquela circunstância nova não lhe agradou. Isabel se acos­tumara às imperfeições de seu rosto e sempre o fitava normal­mente. Ainda mais naquela altura, quando ele se dispusera a usar o tapa-olho. Com certeza, Isabel devia achar que o aspecto dele havia melhorado. A história que ele contara obviamente era mais chocante do que seu rosto.

Anvrai ansiava por abraçá-la. Seria fácil tirar a túnica que ela vestia sobre a camisa rota e fina, e acariciar-lhe a pele sedosa. Lembrou a si mesmo que não tinha direito de fazer isso. Isabel não deveria ter vindo até ele.

Ela desviou o olhar e alegrou-se ao ver a carroça.

— Está pronta! — A voz suave permeou o ambiente.

— Está. — Ele aceitou a tigela que lhe era oferecida. — Sairemos amanhã cedo.

— Confesso que a estadia na choupana foi agradável. Se não estivéssemos na Escócia... Bem, eu...

— Lady Isabel, por que veio até aqui? Ela passou a mãos nas bordas da carroça.

— Vim para trazer-lhe o jantar.

Na verdade, era muito além disso. Fora horrível suturar o braço de Roger, e Isabel só pensava em como Anvrai enfren­taria um machucado daqueles. Roger se comportara como uma criança.

Anvrai era um homem de verdade. Um cavaleiro destemido que os protegera naquela tarde munido de uma espada e de um espírito atilado. Sir Anvrai emitia um potencial enérgico que a atraía irresistivelmente. Desde que fora levada de Kettwyck, vira a morte de perto várias vezes. Não queria pensar no que aconteceria a eles no dia seguinte ou no próximo. Também não gostava de imaginar o que teria acontecido, se a segurança deles estivesse aos cui­dados de sir Roger.

Ela deu alguns passos à frente e sentou-se em um toco de árvore que servia de banco. O archote iluminava a área de trabalho. O resto do barracão estava escuro.

— Lady Isabel...

— Sinto muito por ter aparecido na clareira de maneira tão brusca e impensada. — Isabel conservou os olhos baixos. — Foi um erro ignorar suas instruções. Espero que não fique com raiva de mim.

Mirou o rosto que parecia ter se transformado. Não notou irritação. E a intensidade da expressão com que ele a fitava deixou-a arfante.

Anvrai adiantou-se e acariciou-lhe os cabelos que emoldu­ravam o rosto. Isabel estremeceu, fechou os olhos e encostou-se nele.

— Milady não deveria ter vindo aqui. — Entrelaçou os dedos nos cachos sedosos e admirou-lhes o brilho.

A carícia, apesar de muito leve, arrepiou-a. Por fora e por dentro. Isabel queria que Anvrai continuasse. Queria as mãos dele em seus ombros, nos seios e nas pernas. Ansiava por seu beijo. Desejava sentir novamente a língua ávida.

— T... todos estão dormindo — afirmou, assombrada com a própria ousadia. — Tillie, Belle... e sir Roger.

Anvrai nada respondeu.

Fora uma tolice ter vindo ao celeiro, ela se recriminou. Sir Roger era seu futuro marido, não sir Anvrai.

— Hoje fomos abençoados pela sorte — Isabel sussurrou. — Ela haverá de continuar? Sobreviveremos ao amanhã e dor­miremos em solo inglês quando o dia terminar?

A indeterminação do futuro a assustava. Não temia exatamente a morte, mas temia morrer antes de sentir outra vez os braços de sir Anvrai em seu corpo.

Ergueu-se na ponta dos pés. Anvrai segurou-lhe os ombros e puxou-a mais para perto. Ele fitou-lhe o rosto, os olhos, o nariz e se deteve na boca.

Isabel teve a impressão de que uma fogueira fora acesa em seu interior. Quando Anvrai abaixou a cabeça para beijá-la, as chamas se alastraram. Sentiu as pontas dos seios enrijecidos e o então conhecido pulsar no baixo-ventre e entre as pernas. Sem imaginar do que se tratava, Isabel sentiu desejo de eli­minar o espaço entre eles e fundir-se com Anvrai, formando um só ser.

Certa de cometer uma imprudência, agarrou-se nos braços de Anvrai e cerrou as pálpebras. O calor e a rigidez daqueles músculos exalavam masculinidade. Apertada nos braços dele, experimentou no busto o palpitar intenso dos dois corações. Entreabriu os lábios e deliciou-se ao sentir o sabor da boca de Anvrai.

Ele a ergueu nos braços, carregou-a mais para o fundo do celeiro e deitou-a no chão forrado de palha. Deitou-se a seu lado e tomou a beijá-la. Tensa, Isabel arqueou as costas. Trêmula de desejo.

Anvrai passou a língua pelos lábios carnudos. A seguir mordiscou-os, saboreando cada movimento. Sugou-lhe o lábio inferior e Isabel pensou que não conseguiria mais respirar. Aérea, flutuava em um mar de sensações tormentosas.

Ela segurou a nuca de Anvrai e puxou-o mais para perto. Ele se moveu com delicadeza e beijou-lhe o pescoço. Soltou os cordões da túnica, afastou a camisa e acariciou-lhe um seio. Isabel refletiu que seria consumida pelo fogo interior. Por instinto, apertou as pernas, procurando alívio para a sensação primitiva que a invadia.

Ele beijou-lhe o ombro e deslizou para baixo a camisa, desnudando-a até a cintura. Desamarrou a própria túnica e voltou a deitar-se ao lado de Isabel.

Ela se maravilhava com as carícias e as provocações, e des­cobriu que também sabia como agradar-lhe.

Isabel não se contentava. Queria maiores sensações e ao mesmo tempo desejava aliviar o tormento a que era submetida.

De repente, Anvrai tentou afastar-se, mas ela o impediu de fazê-lo.

— Por favor...

Ele não teve como negar carícias mais íntimas e prazerosas. Dedos, lábios e língua se alternavam, como se pretendesse levá-la ao delírio. Isabel chegou a protestar diante de carinhos que lhe pareceram excessivos, mas logo esqueceu as reservas, invadida por ondas de deleite extraordinário.

Novamente Anvrai tentou afastar-se, mas Isabel o fez de­sistir do intento.

— Isabel, não devemos...

— Por favor, Anvrai, não me peça uma coisa dessas — implorou, ao vê-lo hesitar. — Por favor, Anvrai, faça amor comigo.

— Isabel, eu...

— Não sabemos o que nos reserva o amanhã. Poderemos estar mortos ao meio-dia... — Isabel falava e provocava-o ao mesmo tempo.

Anvrai admirava-se de ver como uma jovem inexperiente tinha um instinto que superava qualquer prática adquirida pelo exercício constante da arte de amar.

— Por favor, Anvrai...

Ele desistiu de raciocinar e, incapaz de conter-se, agiu de acordo com a paixão que o devorava há algum tempo. Foi uma loucura. Foi maravilhoso.

 

Nenhuma mulher se deitara com ele por vontade própria. Sempre relutavam até que lhes fosse oferecido um paga­mento polpudo. O que compartilhara com Isabel fora diferente de tudo o que ele já experimentara.

Anvrai saiu de cima de Isabel, sem crer no prazer que lhe fora oferecido como uma verdadeira dádiva divina. Isabel bei­jou-o no pescoço e Anvrai sentiu-se novamente pronto para amar.

— Foi muito melhor do que eu poderia ter imaginado.

— Para mim também.

Ele não estava preparado para a torrente de emoções que o avassalavam no momento. Fora um erro terrível ter feito amor com lady Isabel Louvet. Pior ainda fora ter lhe roubado a vir­gindade em um ato insano. Jamais poderia casar-se com ela. Isabel estava destinada a desposar um jovem rico. Ela se tor­naria a castelã de uma grande propriedade; e ele, Anvrai d'Arques, não poderia tornar-se seu marido. O papel ia muito além de suas possibilidades.

O futuro deles resumir-se-ia em um trajeto seguro até a Inglaterra. Isabel satisfizera a curiosidade. Ele, por sua vez, tinha certeza de que jamais encontraria nada semelhante com outra mulher.

Nada além disso.

— Milady deve voltar para a cabana.

— Eu preferia dormir aqui a seu lado. Ele engoliu em seco.

— E se Tillie precisar de seu auxílio?

Isabel sentou-se, desnuda. A camisa amarfanhada concen­trava-se na cintura. Os seios eram aprumados e fartos. Os bicos róseos estavam rijos e eretos por causa do ar frio.

— Tillie não vai necessitar de meu auxílio...

Isabel tirou a camisa e jogou-a para o lado. Depois empur­rou Anvrai d'Arques de costas no feno e deitou-se sobre ele.

— Além disso, preciso muito mais do senhor, do que Tillie precisa de mim.

 

Isabel esgueirou-se pela porta da choupana ao amanhecer, sem ser notada. Roger ressonava no lugar que escolhera para estender a manta. Tillie e Belle dormiam na cama.

Maravilhada pelo que ocorrera, admitiu que suas emoções se revolviam em um redemoinho. Não saberia expressar seus sentimentos em relação a Anvrai. Tinha apenas uma certeza. Ele fazia seu coração cantar e seu corpo retinir. Não se arre­pendia de ter feito amor com ele. Poderiam não sobreviver à volta para casa.

E se fossem abençoados com uma volta segura e tranqüila para Kettwyck? Isabel puxou a manta de pele até os ombros e desejou que os braços de Anvrai pudessem aquecê-la.

Seu pai jamais aceitaria a idéia de alguém como Anvrai d'Arques tornar-se marido de sua filha. Ele não era proprie­tário de terras e era provável que nem mesmo tivesse um ca­valo. Não tinha família, nem condições para fazer alianças estratégicas.

Deu um suspiro profundo e estremeceu. Olhou para Roger. Era pouco mais do que um garoto. Faltava-lhe entendimento e experiência do mundo. Ele ainda teria de amadurecer no corpo e na mente. Isabel imaginou-se casada com ele, criando seus filhos e administrando o castelo da família dele.

Imaginar tudo aquilo deixou-a com uma sensação de vazio na boca do estômago.

As chamas oscilavam sobre as feições bonitas de Roger, e Isabel concluiu que a avaliação que fizera do pretendente fora superficial. Inicialmente Anvrai não fora agraciado com res­peito ou consideração por parte dela. No entanto, ele se mos­trara um cavaleiro muito mais honrado e valoroso de que qual­quer outro de feições atraentes. O mérito dele jamais poderia ser mensurado por propriedades ou beleza física. Seu mereci­mento era muito superior a qualquer atributo físico ou à quan­tidade de bens que porventura possuísse.

Belle começou a choramingar. Isabel entendeu que teria de encarar o dia sem ter dormido à noite. Nada disso lhe impor­tava. As horas passadas ao lado de Anvrai haviam valido a pena. Acendeu o archote e aproximou-se da cama de Tillie. A garota pareceu ter se recuperado do trauma do dia anterior. Tillie bocejou, recostou-se e começou a amamentar a filha.

Isabel tomou a refletir na pouca idade de Tillie e na solidão que a garota enfrentava.

— Nós partiremos hoje, lady Isabel?

— Sim, Tillie. Essa é a previsão de sir Anvrai. Ele consertou a carroça. Assim mãe e filha poderão viajar sem se cansar em demasia.

— Para onde iremos, milady?

— Para a Inglaterra, é evidente. Acharemos um jeito de levá-la de volta para sua casa.

Tillie franziu a testa.

— Prefiro ficar com milady e com sir Anvrai.

Isabel enrubesceu, perturbada pela suposição de Tillie. Na certa ela imaginava que os dois tinham algum compromisso.

— Por favor, milady — Tillie implorou. — Pergunte a sir Anvrai se ele permitirá que eu os acompanhe na volta ao lar. Conheço as tarefas de uma casa, sei fazer muitas coisas, não tenho preguiça de trabalhar e...

— Tillie... — Não suportava a idéia de ter de separar-se de sir Anvrai e não queria comentar o assunto. — Veremos o que se pode fazer.

Isabel começou a juntar os pertences que teriam de levar. Não contaria para Tillie que não era casada com Anvrai, nem que a possibilidade de a jovem ficar com eles seria remota.

Roger acordou e foi para fora. Logo depois Anvrai trouxe a carroça para perto da cabana. Isabel escutou os dois homens conversando, sir Anvrai dando instruções ao rapaz.

Sentiu-se desapontada. Os acontecimentos da noite passada tinham sido muito significativos para ela. No entanto, Anvrai nem comentara a respeito de ela aceitar ou não o pedido de casamento feito por Roger a lorde Kettwyck. Não fizera ne­nhuma declaração, nem dissera que gostaria de casar-se com ela, apesar da noite maravilhosa que haviam compartilhado. No íntimo, Isabel tinha esperança de que Anvrai não a entre­garia a sir Roger sem protestar.

Segurou Belle no colo e encostou-a no ombro para que a criança arrotasse. Tillie aproveitou para ir até a choupana ar­rumar sua trouxa. O dia prometia ser carregado de incertezas. A carroça não passaria com facilidade pela floresta. Não po­deriam fazer o trajeto pela trilha principal ou outros espaços abertos que os deixariam muito expostos. Isabel tratou de con­centrar-se nas tarefas prioritárias para esquecer de Anvrai. Pelo menos por enquanto.

Roger entrou e pegou do chão a manta de pele onde dor­mira, mantendo imóvel o braço ferido.

— Milady está pronta? — ele perguntou, irritado,

— Quase. Sir Roger, deixe-me examinar o ferimento.

— Não se preocupe, lady Isabel. Está muito bem!

Roger parecia muito zangado. Na certa percebera a sua au­sência demorada e por isso deduzira que ela se encontrava com Anvrai. Ele poderia ter os mesmos motivos de Tillie para tirar suas conclusões.

Anvrai entrou sem dizer nada. Enrolou o colchão de palha da cama de Tillie e carregou-o até a carroça, onde o estendeu sobre o estrado. Isabel encostou os lábios na cabeça de Belle e seguiu-o com o olhar. Entristecia-se ao ver a distância que Anvrai fazia questão de interpor entre os dois. Nem mesmo falara com ela. Foi invadida por uma sensação de abandono.

Teria se enganado mais uma vez, como acontecera com a analise pouco profunda que fizera de sir Roger? Teria suposto que a paixão física fosse afeição ou até um sentimento mais profundo?

Estremeceu. Cometera um grande erro ao procurá-lo a noite passada. Anvrai mostrava frieza, e até um certo desdém, na­quela manhã.

Sentiu-se desamparada. Sem a menor esperança.

— Obrigada, milady. — Tillie aproximou-se por trás. — Eu ficarei com Belle agora.

Quando Isabel virou-se para entregar Belle para a mãe, An­vrai espalhava a terra com os pés para fazer desaparecer as marcas da roda.

O que houvera entre eles também fora apagado.

— Neuville — Anvrai chamou com rispidez. — O senhor puxará a carroça até chegarmos ao caminho. — Eu irei atrás para apagar as marcas da roda.

Não houve resposta. De maneira surpreendente, Roger não se lamuriou, apesar de carrancudo. Foi até o meio dos dois braços de madeira estendidos na frente da carroça, segurou-os e ergueu o veículo.

Anvrai perscrutou o pátio. Não havia rastros visíveis no chão. A cabana e o celeiro tinham sido fechados. Para dar a impressão de que Cormac estava ausente e pretendia voltar. Os corpos dos invasores escoceses tinham sido enterrados em uma cova bem funda, a uma boa distância da choupana. Os vestígios da sepultura tinham sido cobertos. Ninguém seria capaz de supor o que acontecera. Mas ele jamais esqueceria.

Isabel o procurara a noite passada espontaneamente. O tapa-olho sem dúvida fizera dele um amante menos desprezível. Mas para Isabel, ele nunca passaria disso. Um amante ocasio­nal. Aquele fora um erro grave e certamente não se repetiria. Isabel prosseguiria com a vida normal que tivera até a época do ataque. E se casaria com um noivo adequado para ela e para a família. Se não fosse com Neuville, seria com qualquer outro pretendente. Um homem que tivesse riqueza e poder para dar-lhe a segurança de que ela precisava.

Na carroça, havia lugar para Isabel. Mas ela preferiu aceitar os sapatos rústicos de Tillie e fazer a viagem a pé. Na certa relutava em aumentar o peso do veículo para Roger. Anvrai abafou a vontade de erguê-la e deixá-la em cima do estrado. Precisavam afastar-se da cabana de Cormac com urgência. Quanto maior a distância, melhor. Andar pela mata puxando a carreta demonstrou ser uma tarefa impossível, mesmo para dois homens. Por isso, Anvrai teve de modificar os planos. Decidiu que seguiriam pelo caminho menos irregular.

Quando chegaram à trilha, não houve mais preocupação em extinguir as pegadas. Marcas de rodas não eram incomuns. Foram pelo mesmo trajeto que os escoceses haviam percorrido no dia anterior. No local onde a vereda se dividia em duas, Anvrai apontou o lado esquerdo.

— Iremos para leste? — Isabel quis saber. Era a primeira vez que falava com ele, desde a saída do casebre de Cormac. Mesmo assim, por um motivo justificável.

— Ontem eu segui os seis escoceses — Anvrai respondeu. — Três foram para o leste. Os três que voltaram, haviam se­guido a rota meridional.

— Ah, o senhor pretende encontrar-se com os três restan­tes? — Roger caçoou.

Ela apertou o braço de Roger e Anvrai desviou o olhar. Não queria testemunhar a afinidade que existia entre eles. Uma demonstração clara de que os acontecimentos da noite anterior não haviam passado de um desvario momentâneo.

— Os três que chegaram até a cabana não deviam ter ido muito longe, sir Roger — ela interferiu. — Os outros devem estar a uma boa distância ou teriam aparecido por lá. Tenho certeza de que sir Anvrai prefere o trajeto onde tenhamos me­nor possibilidade de encontrar alguém.

Anvrai nada respondeu. Assumiu o encargo de puxar a car­roça e passou à frente de Isabel e de Roger, sem fornecer mais nenhuma explicação. O rapaz não podia ser tão estúpido a ponto de não entender por que rumavam para leste.

— Neuville — Anvrai chamou-o. — Vá na frente e vas­culhe o caminho. Será melhor ter certeza de que não seremos surpreendidos.

— Vá o senhor!

Anvrai preferia ir, pois confiava mais em si mesmo. Apenas pretendera aliviar a carga do rapaz, pois o braço devia estar doendo bastante. Embora a petulância de Roger fosse de per­der a paciência, resolveu não levar o caso adiante.

— Ótimo. Que arma o senhor prefere? Acha ou espada?

— Espada — o outro respondeu, com uma confiança que não tinha fundamento.

Anvrai duvidava que o pretendente de Isabel tivesse alguma experiência com qualquer uma das duas armas. Sem querer desconcertar o outro, tirou a espada do cinto e entregou-a ao rapaz. Apanhou a acha-d'armas na carreta e afastou-se.

— Sir Anvrai!

Ele escutou a voz de Isabel e virou-se. Ela abaixou o olhar, como que envergonhada por tê-lo chamado. No mesmo ins­tante, Anvrai sentiu uma agulhada de ansiedade. Por sua mente passaram os fatos da noite anterior. Beijara aqueles lábios, o pescoço, os seios e...

— Por favor, tome cuidado — Isabel encarou-o. Embora sua voz se mantivesse neutra, ela não pôde disfar­çar o pavor na expressão.

Anvrai supôs duas alternativas. Ou Isabel estava com medo dele ou receava ser deixada, ao lado de Tillie, sob os cuidados de Roger. Apertou as mãos em punho para não ceder à vontade de tocar em Isabel, puxá-la de encontro ao peito e beijá-la. O que seria um erro tão grande quanto o cometido na véspera.

Caminhou rapidamente pela trilha, prestando atenção aos detalhes, à procura de sinais de passagem recente por ali. Embora tivesse quase certeza de que não eram seguidos, procurou não adiantar-se em demasia. Caso algo acontecesse, teria de escutar um chamado de Isabel. Esperava não ter o infortúnio de encontrar outros viajantes e muito menos um povoamento escocês semelhante àquele do qual haviam escapado. Nenhum cuidado seria excessivo. Afinal andavam por uma via bastante utilizada.

Era preciso encontrar o quanto antes um cruzamento que os levasse para o sul. Não poderiam viajar indefinidamente para o leste.

Gostaria de ter melhor conhecimento de onde se encontrava, mas o território escocês não lhe era familiar e durante grande parte do cativeiro ficara inconsciente. Felizmente, Isabel pu­dera prestar atenção à trajetória.

Mais uma vez, refletiu que Isabel não era a jovem mimada e sem juízo que lhe parecera de início. Era compreensiva, in­teligente e sensata. Seu único defeito era o compromisso com sir Roger. Sem dúvida, Isabel o escolhera antes do ataque à propriedade de seu pai. Era bem provável que a família de Isabel houvesse sucumbido. Por isso tomava-se imperativo ca­sar-se com um homem que possuísse fortuna e posição social. O jovem rapaz continuava sendo excelente candidato a marido para Isabel. Apesar dessas considerações, seu desprezo por sir Roger não diminuía e era certo que o casamento se realizaria assim que chegassem a Kettwyck.

Sem querer deter-se no inevitável, pensou no próprio futuro. Suas posses, a armadura e o cavalo, poderiam ainda estar no castelo de Kettwyck. Pelo menos, fora onde os deixara na noite do assalto.

Chegara a aventar a hipótese de partir sozinho para Belme­re, assim que alcançassem território inglês. Roger e Isabel en­contrariam facilmente uma maneira de chegar a Kettwyck.

Concluiu que não seria um esquema prático. Teria de pegar a armadura em Kettwyck antes de ir ao encontro do rei Gui­lherme, que estava em campanha contra o monarca escocês. Mais satisfeito, pensou nas batalhas que o aguardavam.

Suas maiores habilidades eram operações militares e trei­namento de cavaleiros. Ansioso, aguardava o momento de reu­nir-se com a tropa de Belmere. O ataque a Kettwyck fora quase duas semanas antes.

Por esse tempo, lady Elena de Belmere já deveria estar no final de sua primeira gravidez. Lorde Osbern poderia acom­panhar o rei depois da esposa ter dado à luz.

De repente, imaginou Isabel na hora do parto e sentiu as pernas bambas. Se Isabel fosse sua esposa, não haveria de querer deixá-la tão rapidamente depois do nascimento de um filho. Lorde Osbern também hesitaria em deixar lady Elena? Aborreceu-se. Também não queria pensar em Isabel segu­rando o próprio filho ou o amamentando. Anvrai d'Arques não teria participação naquele processo.

O trajeto tornou-se mais irregular e Anvrai retornou para substituir o companheiro de viagem. Encontrou o rapaz parado e Isabel examinando os pontos da sutura. Roger estava com a cabeça inclinada e com os lábios muito próximos dos cabelos de Isabel.

Controlou uma onda súbita de ciúme. O que eles faziam não era de sua conta. Nem lhe competia avaliar o certo e o errado.

Foi até a parte traseira da carroça, pegou um dos jarros de água que haviam trazido e tomou um bom gole na boca do frasco.

— O que o senhor viu lá adiante? Algum sinal da Inglaterra? — Roger não escondeu o sarcasmo.

Anvrai não deu resposta e fez uma pergunta:

— O que houve com seu braço?

— Além de um ferimento com espada? Nada que deva preo­cupá-lo.

Isabel cerrou os dentes. Os dois que se matassem! Pouco lhe importava. Roger se comportara de Maneira odiosa a ma­nhã toda e Anvrai não poderia ter sido mais indiferente. Os dois eram intoleráveis!

Adiantou-se mais um pouco, quando foi alcançada por Tillie. A garota veio com Belle no colo e algumas faixas de pano.

— Milady poderia segurar Belle enquanto eu... — Tillie apontou um espaço com árvores e moitas compactas.

— Claro.

Ela segurou o bebê no colo e afastou-se para não constran­ger Tillie e permitir-lhe a privacidade. Belle, de olhar arrega­lado, parecia admirar-se com o mundo que acabava de conhe­cer. Era uma criança muito bonita de olhos azuis que já de­monstravam vivacidade. Os cabelos finos e esparsos eram cla­ros. Isabel imaginou como seria um filho seu e de Anvrai.

Beijou o bebê e sentiu uma onda de calor diante de tal pensamento. Ele demonstrara grande carinho por Belle. Sorriu. O corpinho inteiro da criança quase cabia em uma daquelas mãos grandes, fortes e carinhosas.

— O que houve com sir Anvrai hoje? — Tillie perguntou, ao voltar. — Desde que ele pôs a venda no olho, parece ter ficado pouco amistoso.

Isabel deu de ombros. Roger também estava irritado e não poderia culpá-lo. O ferimento inchara e ficara mais vermelho de tanto puxar a carroça. Oferecera-se para ajudá-lo, mas Ro­ger respondera com rudeza, afirmando que era um homem tão capaz quanto Anvrai.

— Não vamos falar sobre homens. Conte-me a respeito de sua família.

Tillie fez um gesto negativo com a cabeça.

— Não tenho parentes. Vim para a Inglaterra a serviço de uma família de nobres. Depois de tanto tempo, ninguém em Haut Whysile espera a minha volta. Nada me impede de acom­panhar milady e sir Anvrai.

— Tillie... sir Anvrai não é meu marido.

A garota esbugalhou os olhos.

— Eu pensei que... Milady dormiu nos braços de sir Anvrai na noite em que chegaram à cabana de Cormac, quando Belle nasceu. E a noite passada... Perdão, milady, por dizer o que eu disse. Eu não deveria...

— Está bem, Tillie. — Isabel enrubesceu com os comen­tários da mocinha e inspirou fundo. — Nós três fomos rap­tados, assim como lhe aconteceu. Mas conseguimos escapar. Nós tivemos de contar uns com os outros para podermos so­breviver.

Tillie sentou-se sobre uma rocha larga e chata aquecida pe­lo sol.

— Eles... — Tillie abaixou o olhar e apertou Belle de en­contro ao peito. — Os escoceses foram muito violentos. Ras­garam minhas roupas e agiram como animais. Foram cruéis e selvagens. — Tillie começou a chorar e as lágrimas molharam seu corpete. — Pensei que eles fossem me matar quando... quando... — Tornou a encarar Isabel. — Não tive pena quando Cormac caiu e quebrou o pescoço. Acho que se ele não tivesse morrido, eu o teria matado.

Isabel agachou-se diante de Tillie e comoveu-se com o olhar assustado. Não podia imaginar os horrores a que Tillie fora submetida. Era terrível saber que uma menina daquela idade tivesse sido tão brutalmente usada.

— Acho que eu mesma o teria matado se ele aparecesse na minha frente agora.

Foi um comentário sincero. Naqueles dias na cabana, co­meçara a sentir-se como a irmã mais velha de Tillie e com uma incrível vontade de protegê-la. As duas tinham passado por experiências duras, embora a de Tillie fosse muito mais devastadora. Jurou a si mesma que jamais abandonaria a pobre garota. Tillie sempre teria um lugar a seu lado.

Tillie soluçou e limpou as lágrimas com as costas da mão.

— Milady matou o escocês que a raptou? Isabel engoliu em seco e assentiu.

— Ele se descuidou antes de poder causar-me algum mal. Eu o matei.

Tillie fungou e sorriu através das lágrimas.

— Bem-feito! A morte foi muito menos do que ele merecia!

— Tem razão, Tillie. — Isabel acariciou as costas de Belle. Pelo menos a criança era parecida com a mãe. Não seria uma lembrança contínua do escocês que estuprara Tillie.

— Lady Isabel?

— Sim?

— Milady acha que sir Roger irá na frente esta tarde e nós ficaremos com sir Anvrai?

Isabel não soube responder, mas compartilhou das esperan­ças de Tillie. Felizmente as mesmas se concretizaram no re­gresso ao local onde haviam deixado os dois homens. Roger estava de saída. Quando se virou com um olhar de ódio, foi visível uma marca vermelha na face do rapaz. Proveniência provável de um soco. Roger se comportava com impertinência e infantilidade.

Com certeza os dois homens haviam discutido. Isabel considerou o mau humor de Anvrai não convidativo para perguntas. Nem o afastamento de Roger abrandou-lhe o estado de ânimo. Puseram-se novamente a caminho. Tillie foi deitada no colchão como antes e acabou adormecendo com o balanço da carreta. Isabel aproximou-se de Anvrai para caminhar a seu lado.

— Milady deveria ir sentada no estrado, Sentir-se-á exausta no final do dia.

— Muita bondade sua em preocupar-se com o meu bem-estar. — Ela nem acreditou que pudesse usar de tamanha frieza com o homem que lhe proporcionara momentos tão maravilhosos na noite passada.

Apesar disso, desejou impedi-lo de prosseguir o trajeto e... Isabel não sabia o que dizer ou o que deveria fazer. Ansiava por abraçá-lo. Queria que ele a olhasse como se a desejasse acima de tudo. Mas Anvrai continuava de olhar fixo à frente, ele mantinha a indiferença e a reserva.

— Não quero que milady atrase nossa viagem amanhã. Ela engoliu o desapontamento. A única inquietação de Anvrai era com a viagem.

— Meu pé está cicatrizado.

— Fico feliz em sabê-lo — O comentário foi feito com um alheamento que desmentiu as palavras.

Continuaram a andar em silêncio e Isabel procurou um assunto que o interessasse.

— Por quanto tempo o senhor acha que poderemos conti­nuar para leste?

— Não poderei dizer-lhe. Espero que encontremos logo o caminho para o sul.

— Com os escoceses fomos para o norte e o oeste. Pare­ce-me que esta trilha vai para leste.

— É, vai.

— Se continuarmos por aqui, alcançaremos o mar.

— Isso é pouco provável. Chegaremos primeiro a uma al­deia ou uma cidade.

— Por que diz isso?

— Esta vereda mostra sinais de ter sido muito percorrida. Creio que leve a algum local povoado.

Isabel não havia pensado nisso. De qualquer modo, ficou feliz por Anvrai estar conversando com ela. Ele já se encon­trava menos irritadiço.

— Será que atingiremos Dunfermline?

— Não sei. Não conheço a Escócia. Esses territórios são estranhos para mim. — De repente Anvrai a fitou. — Se pu­déssemos chegar ao rio Tees...

— Por quê? O leito dele vai para o sul?

— É onde o rei Guilherme está reunindo suas tropas. Ela franziu o cenho.

— Como é que o senhor sabe disso?

— Sir Hugh Bourdet contou-me na noite em que o castelo de Kettwyck foi assaltado. Eu planejava deixar a propriedade de seu pai na manhã seguinte para reunir-me com meus ho­mens e ir ao encontro de Guilherme.

O esforço de puxar a carroça refletiu-se no rosto de Anvrai. Ele levava o veículo pesado e rústico com maior velocidade do que a conseguida por Roger. Gotas finas de suor colavam-se em sua fronte. Apesar do frio, o sol brilhava e Isabel consi­derou a temperatura amena. Para Anvrai, era quente demais. Ele desamarrou os cordões da túnica e desnudou o peito. Isabel prendeu a respiração, sentindo vontade de acariciar os músculos poderosos e os...

Com grande esforço, voltou a atenção para a conversa.

— Ficaríamos mais seguros se encontrássemos a tropa do rei.

— Sem dúvida nenhuma.

— O rio Tees passa perto de Dunfermline?

— Não, é mais ao sul. Ele passa pelo território inglês.

— O rei Guilherme pretende reunir o exército lá e ir para o norte?

— Isso mesmo.

Andaram mais um pouco em silêncio e Isabel pensou em todas as possibilidades. Poderiam sair da trilha compactada e tentar outro trajeto em solo mais irregular. O que ocasionaria perda de tempo. Se encontrassem um despenhadeiro ou terras intransitáveis, teriam de voltar.

— Gostaria de saber se a corte da rainha Margarida está próxima.

Anvrai não respondeu. E nem poderia, pois não sabia onde estavam.

— Quando Margarida saiu da Inglaterra com seu irmão, o rei, uma tempestade forçou o navio a procurar refúgio no porto do rei Malcolm. Dizem que a tempestade foi miraculosa.

— Miraculosa? — ele zombou.

— E por que não?

— Por que Malcolm encontrou com a rainha Margarida e o rei Edgar e ofereceu abrigo para a família. Edgar aceitou o convite. Não houve milagre nenhum,

— O rei Malcolm casou-se com Margarida quando ela che­gou a Dunfermline — Isabel afirmou, embora conhecesse pou­co da história a respeito de Edgar e de sua irmã. — Foi muito romântico, não foi? Ele deve ter se apaixonado por ela e...

— Lady Isabel, sou um soldado. Não entendo nada de ro­mances.

Ela se virou para que Anvrai não lhe visse o desaponta­mento. Ele se recusava a admitir que emoções poderosas ha­viam se interposto entre ambos. Emoções essas que ela era incapaz de ignorar.

— Nem eu, sir Anvrai — ela respondeu com voz impas­sível. — Sempre tive pretensões de ordenar-me na ordem de St. Marie em Rouen.

— O que seria um grande desperdício.

Anvrai a fitou por algum tempo, procurando algo para dizer, mas desistiu. Voltou a atenção para o caminho à sua frente, sem outros comentários.

— Eu... eu... nunca planejei casar-me. Como já expliquei, sempre tive vontade de seguir a vida religiosa e manter-me... donzela.

Ele continuou em silêncio. Contraiu os músculos do queixo e apertou os lábios.

— Não é que eu agora me sinta... impura. Entretanto... Isabel não saberia explicar seus sentimentos. Tinha certeza de que não deveria ter passado a noite no celeiro. Mesmo as­sim, não se arrependia, como seria de esperar de uma jovem com vocação religiosa. Se qualquer desgraça ocorresse nessa jornada perigosa, poderia conservar para sempre a memória da intimidade ocorrida entre eles.

Não adiantaria pensar no passado e muito menos imaginar que poderia compartilhar de um futuro ao lado de Anvrai d'Arquês. Embora o costumeiro, depois de uma situação como aquela, seria a obrigação de sir Anvrai casar-se com ela assim que ultrapassassem os portões de Kettwyck.

Seu pai fora bem claro a respeito dos requisitos a serem preenchidos por um futuro pretendente. Deveria ser um ho­mem de boa família, linhagem nobre e muitas posses. Desejava, sobretudo, um homem que fosse estreitamente relacio­nado com o rei Guilherme.

Roger de Neuville preenchia todas as condições necessárias. Antes, ela teria concordado com o pai. Naqueles poucos dias de sofrimento, afastada de sua família, aprendera que um rosto atraente não refletia o verdadeiro caráter de um homem.

Observou as mãos de Anvrai, enquanto ele puxava a carroça com Tillie e o bebê. Ele afirmara não ter família nem proprie­dades. A tragédia ocorrida com sua irmã e sua mãe era fonte constante de perturbação. A presente viagem, com todos os percalços nela inerentes, deviam lembrá-lo de tudo o que per­dera. Mais do que antes, ele parecia ansioso para ver-se livre dela e dos outros.

— O monarca está aguardando sua presença no rio Tees?

— Sim, está.

— O senhor conhece bem Sua Majestade?

Ele assentiu, mas mostrou-se relutante em falar de seu re­lacionamento com o rei Guilherme.

— O senhor o acompanhou desde a Normandia?

— Isso mesmo. Vim com Osbern de Belmere. Lutamos lado a lado na batalha de Hastings e fomos para o norte...

— As terras do barão Osbem são limítrofes com as de mi­nha família, não são?

— Correto.

— O rei Guilherme concedeu propriedades de muito va­lor a meu pai e a todos os cavaleiros que foram leais a ele, não foi?

— Milady está querendo saber por que ele não fez o mesmo comigo?

Anvrai d'Arques considerou a si mesmo o maior de todos os tolos da Grã-Bretanha. Permitira-se aqueles momentos de perdição ao lado de Isabel e mergulhara na pior espécie de decepção. Enganar a si mesmo. Apesar de supor que levaria todos de volta a Kettwyck sãos e salvos, convencera-se de que aquele dia de viagem seria o último que passariam juntos. Fi­zera amor como se não houvesse futuro, como se Isabel jamais tivesse de voltar a Kettwyck e casar-se com sir Roger.

— O senhor recusou-se a aceitar o prêmio oferecido por Guilherme? Depois de tudo o que aconteceu com sua família, posso entender por que o senhor não gostaria de...

Ele riu com amargura.

— Sua Majestade não me perdoou por eu ter recusado uma solicitação sua.

— Acho que não entendi bem. O senhor recusou-se a acatar as ordens do rei?

— Guilherme pediu-me para ficar em Winchester, com a finalidade de treinar seus cavaleiros.

— E o senhor Não o fez?

Anvrai negou com um gesto pausado de cabeça.

— Não se tratou de uma recusa formal. Eu simplesmente pedi a Sua Majestade para ficar ao lado de lorde Osbern de Belmere.

Isabel apoiou uma das mãos no braço de Anvrai, o que o fez diminuir o ritmo da caminhada.

— O senhor queria afastar-se da tropa do rei?

— Isso mesmo.

Já enfrentara muitas operações militares. Talvez o suficiente para preencher duas existências. Se houvesse ficado com o exército real, teria enfrentado uma infinidade de caminhadas longas e penosas, e outro tanto de batalhas. Em vez disso, tivera meses de paz em Belmere.

— O rei Guilherme deveria respeitar sua eficiência de guer­reiro.

Ele deu de ombros.

— Isso não fez diferença. Passei quatro anos a serviço de Guilherme, nos quais enfrentei todos os combates a seu lado. Muito mais do que muitos de seus barões favoritos. Mas o rei preferiu não me recompensar.

Anvrai não soube precisar se a expressão de Isabel era de descrença ou de indignação. Mas isso também não importava. Ele era um cavaleiro sem propriedades, um servidor leal que não merecera os favores do rei.

— Eu permaneci a serviço do barão de Osbern.

— Treinando cavaleiros?

— Exatamente.

Eles continuaram o trajeto durante mais algum tempo sem nada dizer. Anvrai estava certo de que Isabel não compreendia. Ele treinava cavaleiros para Osbern, mas não fizera o mesmo para o rei Guilherme. Entretanto eram duas ocupações diver­sas. Se permanecesse com o rei, não teria visto o fim das ba­talhas. Ao lado do barão Osbern, mantinha os homens de Bel­mere de prontidão para o caso de um ataque e também para atuarem ao lado do rei, se fossem requisitados.

— Então não há esperança de que Sua Majestade um dia...

— Isabel, é de seu conhecimento que sou um cavaleiro sem nenhuma posição social ou posses. Não prevejo nenhuma mu­dança de atitude de Guilherme a meu respeito.

Admitiu que nunca experimentara o prazer que tivera du­rante os momentos íntimos ao lado de Isabel. Ela viera à pro­cura de companheirismo e perdão, consolo e segurança. Por mais maravilhosa que a noite houvesse sido, nada mudara. Mesmo se resolvesse aceitar o pedido do monarca e ir para Winchester, onde treinaria e comandaria o exército de Gui­lherme, não poderia levar Isabel. Também não poderia empe­nhar o coração em um envolvimento que não lhe dizia respeito. A tarde chegou e quando Tillie acordou, pararam para que a mãe pudesse amamentar Belle. Isabel sentou-se ao lado da protegida e Anvrai caminhou um pouco à frente, disposto a examinar os arredores.

Ela imaginou mais uma vez a si mesma embalando e dando de mamar ao próprio filho. Se o pai fosse sir Anvrai, era certo que teria filhos de cabelos escuros e não loiros como os de Belle.

 

— Pelas barbas do profeta! — exclamou Anvrai, des­gostoso pela inutilidade de seu raciocínio. Sempre estivera satisfeito com a vida que levava. A doce Isabel trincara a fragilidade daquele contentamento e lhe mos­trara tudo o que estava faltando.

Adiantou-se até encontrar Roger, que vinha em sentido con­trário.

— Não encontrei nada suspeito. Não creio que haja mora­dores por aqui.

— E uma ramificação para o sul? O rapaz sacudiu a cabeça.

— Pelo menos não distingui nenhuma cabana nem aldeias ao longo do trajeto. Esta noite poderemos dormir em segu­rança.

— Fique com as mulheres — pediu Anvrai — e leve-as o mais longe possível daqui, antes que escureça.

— O que o senhor pretende fazer?

— Esquadrinhar o território mais para o sul. — Andar com Isabel revelara-se um suplício. Passava o tempo inteiro pensando em como a beijara e em como... — Não podemos con­tinuar indefinidamente para o leste.

Roger nada argumentou e Anvrai embrenhou-se pela flo­resta, rumo ao sul. Ele podia sair de perto de Isabel, mas temeu que ela não deixaria seus pensamentos.

— Quando ele retornará? — perguntou Isabel, nervosa pela ausência de Anvrai.

Roger ocupava-se em acender uma fogueira.

— Não faço a menor idéia. Sir Anvrai está a procura de um caminho para o sul. Será melhor parar de andar de um lado a outro.

— Sir Roger, logo ficará escuro. Ele a fitou com olhar acusador.

— Certamente milady, mais do que todo o mundo, não du­vida que sir Anvrai possa tomar conta de si mesmo.

Ela não duvidava... mas sentia-se insegura sem a presença de Anvrai. Eles ainda se encontravam em território escocês. Tudo poderia acontecer. O céu permanecia claro, mas a tem­peratura cairia bastante, assim que o sol se escondesse. Fize­ram uma refeição modesta consumida em silêncio só quebrado pelos choramingos ocasionais de Belle.

Isabel e Tillie esforçaram-se para não permitir que o bebê chorasse, com receio de incomodar Roger e também para não atrair atenções indesejáveis ao pequeno acampamento. Feliz­mente Belle dormiu a maior parte do tempo. Depois de mamar, ficou deitada no colo da mãe, virando os olhos azuis para os lados, como se examinasse o ambiente.

— Sir Roger, talvez fosse interessante preparar algumas arapucas. Precisaremos de carne para amanhã — Isabel fez elocução com voz suave. — Restou-nos pouca quantidade de..

— Não entendo nada de armadilhas. — Roger fitou-a com franca hostilidade. — Quando sir Ciclope voltar, irá incum­bir-se da caça.

Isabel se irritou com a referência cruel à deformidade facial de sir Anvrai e cruzou os braços na altura do peito.

— Pensei que o senhor houvesse trazido aqueles pássaros...

— Foi sir Anvrai. Ele é o seu mais poderoso caçador.

Depois de aceso o fogo, Roger atirou nele palha seca e mais alguns gravetos.

— Não deixe que ele se apague — avisou e afastou-se com a acha.

Isabel quedou-se imóvel por alguns instantes. Ao sentir o olhar atento de Tillie, ocupou-se em juntar ramos secos e pequenos pedaços de madeira. Manteve um olhar atento ao caminho, esperando ver Anvrai surgir a qualquer momento. Ou melhor, o mais depressa possível.

— Milady acredita que sir Anvrai voltará?

A pergunta de Tillie deixou-a assustada, embora ela se es­forçasse para nada demonstrar. Por que Anvrai haveria de retomar? Suas chances de so­brevivência seriam muito maiores, se ele continuasse o trajeto sozinho. Não precisava dela, nem de Tillie e muito menos de sir Roger. Sem acompanhamento, poderia viajar mais rápido e furti­vamente, mesmo em terrenos perigosos.

Abraçou-se e procurou afastar um frio repentino e intenso. Para não deixar Tillie perceber que se preocupara com a pergunta, afastou-se do local onde haviam erguido o acampamen­to e foi em direção oposta àquela seguida por Roger.

Sentiu um aperto no coração. Deu um suspiro trêmulo e piscou para afastar as lágrimas. Com o crepúsculo, a vereda tornava-se mais escura e as árvores de cada lado pareciam impenetráveis.

Tillie, Roger e ela eram um peso para Anvrai. Mas tinha certeza de que ele não os abandonaria. Por mais que se res­sentisse pela responsabilidade que lhe fora imposta, fizera tudo possível para mantê-los em segurança. A honradez fazia parte da natureza de Anvrai d'Arques.

Fungou mais uma vez e limpou as lágrimas com o nó dos dedos. Recusava-se a crer no pior. Anvrai demorava-se para voltar por ter ido longe demais à procura da salvação deles. Aquele seria certamente o único motivo para uma ausência prolongada. Nada tinha a ver com o que se passara entre eles. Ou será que...

Quando pretendera falar a respeito dos próprios sentimen­tos, Anvrai a silenciara com um beijo ou com um daqueles carinhos que a faziam esquecer do mundo.

Encostou a testa em uma árvore e inspirou fundo para tentar acalmar-se. Inútil. As lágrimas continuavam a descer silencio­samente. Era ridículo chorar, depois do que acontecera. Uma noite...

— Isabel.

Virou-se ao escutar a voz de Anvrai. Ele se aproximou e estendeu a mão. Ela correu para vencer a pouca distância que havia entre eles e jogou-se nos braços dele.

— Eu estava tão preocupada!

Anvrai enlaçou-a, proporcionando-lhe calor e consolo. Ela pressionou o rosto no peito largo e deu um suspiro estremecendo. O coração de Anvrai batia forte e ritmado. O corpo dele era quente e tinha odor almiscarado. Ela perdeu a capacidade de raciocinar.

Anvrai deslizou as mãos nos braços de Isabel e recuou. Ela i o fitou, sem distinguir-lhe as feições na penumbra.

— Achei que havia nos abandonado — ela afirmou com voz débil. — Como demorou a voltar...

— Isabel, prometi levá-la de volta à Inglaterra.            

— Eu sei, mas o senhor esteve zangado comigo o dia todo.

— Isso não é verdade.

— Mas o senhor estava tão...

— Isabel, nada mais poderá acontecer entre nós. — Ele recuou. — Milady sabe disso tão bem quanto eu. Sir Roger foi o pretendente escolhido por milady e aprovado por seu pai. Mesmo se eu quisesse desposá-la, não teria nada para lhe oferecer.

Isabel imaginou que não suportaria a dor que lhe queimava o peito ao ver Anvrai afastar-se. Jamais gostaria de sir Roger ou de outro homem da mesma maneira como gostava de Anvrai. Porém ele deixara claro que não a queria. Levantou a barra da túnica velha que envergava e limpou as lágrimas que ainda não haviam cessado de resvalar por sua face.

Anvrai olhou para trás a tempo de ver Isabel erguer a túnica rasgada e enxugar as lágrimas. Não se alegrava por ter lhe causado sofrimento. Somente lamentava ter lhe arrebatado a inocência. Recriminava-se por não ter sido mais forte para resistir à atração que sentia por ela. Teria de fazê-la acreditar que lhe era indiferente, mesmo que seu maior desejo fosse levá-la para uma cama e explorar os limites da paixão que o alucinava.

Isso jamais poderia ocorrer. Quanto antes aceitassem o fato, melhor seria para os dois.

Ele seguiu o cheiro da fumaça e logo encontrou Roger e Tillie no acampamento, em silêncio e sentados em lados opos­tos, separados peia fogueira. Ambos lhe pareceram tensos.

Isabel chegou logo depois e acomodou-se ao lado de Tillie. Mesmo sem o olhar, sua perturbação era quase palpável. Cos­tas eretas, ela sentou-se sobre as pernas. Anvrai não pôde dei­xar de pensar em como as pernas eram macias e sensíveis nos lugares certos, e com que calor elas o haviam recebido.

Roger não a merecia. Dificilmente o rapaz se transformaria em um homem admirável. Ele era incapaz de fazer o mínimo necessário à sua sobrevivência. Ficava esperando ser servido até mesmo por Isabel e ressentia-se pela presença de Tillie, alegando que ela retardava a viagem.

A mancha ocasionada pelo tapa que levara dele ainda não sumira. A face estava vermelha, mas não houvera danos maio­res. Pelo menos dali para a frente o rapaz seguraria a língua antes de falar de Tillie.

Isabel levou a mão à boca e bocejou. Anvrai foi até a carro­ça apanhar o colchão. Sacudiu-o para redistribuir a palha, tor­nou a colocá-lo na carroça e apanhou as mantas que haviam trazido.

— Lady Isabel, por favor, utilize a cama junto com Tillie. Sir Roger e eu ficaremos nas proximidades.

Roger resmungou mas nada disse. Anvrai apanhou os sacos de alimentos, amarrou-os com cordas e suspendeu-os em uma árvore mais distante de onde iriam dormir. Não queria atrair carniceiros.

Isabel e Tillie preparavam-se para dormir, enquanto Roger continuava sentado ao pé do fogo. Anvrai enrolou-se com uma manta e entrou embaixo da carroça. Deitou-se de lado, mas não conseguiu adormecer. Tudo errado. Deveria estar abraçado com Isabel.

Depois de dormir com ela, via-se impossibilitado até de cochilar com os braços vazios.

A chuva ameaçou-os durante todo o dia seguinte. Anvrai construiu um baldaquino de peles para proteger Isabel e Tillie, caso a chuva despencasse. Tiveram sorte. O tempo manteve-se estável e eles percorreram vários quilômetros em direção ao sul. Tiveram uma certa dificuldade com o solo irregular do caminho descoberto por sir Anvrai no dia precedente. Porém, mesmo se fosse necessário dar uma guinada para leste ou oeste, com certeza logo chegariam no território amigo da Normandia.

— Vejam — Roger chamou-lhes a atenção. — Este atalho vai para leste.

Anvrai não notara o desvio na véspera. Ou não reparara por estar perdido em pensamentos tristes ou então haviam chegado mais longe do que ele no dia anterior.

— Estou cansado de arrastar esta droga de carroça por cima de buracos e de raízes expostas — sir Roger queixou-se. —Deveríamos ir por ali.

— Concordo — sir Anvrai replicou. — Não haverá trans­tornos prováveis se formos naquela direção por algum tempo.

— Sir Anvrai, agora eu posso caminhar — Tillie afirmou, — Levarei Belle e uma sacola. Se todos...

— Não, senhora. Seu bebê tem apenas quatro dias. O parto ainda é muito recente. A senhora continuará na carroça.

Anvrai não se preocupava com as reclamações de Roger a respeito do solo, mas sim com o conforto de Isabel. Ela não se lamentava, mas começara a mancar havia mais de uma hora. Não duvidava que os sapatos emprestados haviam ocasionado bolhas.

Enquanto prosseguiam, sir Anvrai procurava por ervas que depois seriam usadas em um cataplasma. Colhia as plantas e deixava-as em um dos cantos da carroça.

No final do dia, uma chuva leve começou a cair. Anvrai procurou dos dois lados do caminho uma área coberta em meio às árvores.

A sorte parecia favorável, ele pensou. Chegaram a uma pe­quena clareira onde fora erguida uma igreja de pedras e ma­deira. Se estivesse deserta, seria um excelente abrigo para pas­sarem a noite.

— Esperem aqui — sir Anvrai avisou-os.

Puxou a espada e, pé ante pé, aproximou-se da construção. Escondeu-se entre as árvores e deixou o grupo para trás à sua espera.

Em questão de segundos, Isabel estava a seu lado. A sorte os abandonara. Foram cercados por cavaleiros uniformizados que os rodearam como um enxame de abelhas.

As flechas voaram e antes de que sir Anvrai pudesse esconder Isabel às suas costas, uma seta atingiu-a.

— Meu Deus!

Um sacerdote saiu correndo da igreja e admoestou os guerreiros escoceses. O comandante deu um grito de advertência quando Anvrai abaixou a espada e ajoelhou-se ao lado de Isabel.

O ataque parou tão repentinamente como havia começado.

Expressando-se em latim, o sacerdote insistiu para que Anvrai carregasse Isabel para dentro da igreja. Embora conscien­te, ela estava com olhar opaco e parecia não enxergar. Empa­lidecera e respirava em ritmo acentuado.

Com cuidado, para não machucar ainda mais a coxa onde a flecha havia se alojado, sir Anvrai ergueu-a e carregou-a para o interior do pequeno templo. Ao mesmo tempo, um gru­po de soldados escoltava uma dama bem vestida até o pátio externo.

— Milorde é normando — o sacerdote deduziu, apontando a nave central à frente.

— Sim. Estávamos procurando abrigo — sir Anvrai expli­cou ao padre.

— O grupo não pretendia causar malefício à rainha?

— Santo Deus! Eu jamais pensaria em uma coisa dessas. Eu nem mesmo sabia da presença de Sua Majestade aqui.

— Milorde estará seguro nesta casa de Deus — o sacerdote assegurou.

Anvrai procurou um local para deitar Isabel. Nada viu, exceto o piso frio de pedra. Foi até o altar, rodeou-o e chegou até uma porta pesada de madeira. Empurrou-a com o pé e entrou nos aposentos privativos do sacerdote.

Atravessou o primeiro recinto, chegou ao dormitório do clé­rigo e deitou Isabel na cama que encontrou ali.

— Precisarei de ataduras — disse Anvrai, sem desviar os olhos de Isabel. — O senhor teria alguma coisa que...

O sacerdote entregou-lhe um chumaço de tecido alvo.

— Isabel — sir Anvrai falou em voz baixa —, tentarei não machucá-la muito...

Ele pressionou o pano no ferimento para estancar o sangue. O grito de Isabel acertou-o como uma espada no coração.

— Terei de arrancar a flecha, Isabel. — Fitou o sacerdote. — Segure os braços de milady.

Anvrai estudou uma posição para manter imóveis as pernas dela. Segurou a haste de madeira, apertou os dentes e engoliu em seco. Tinha experiência em lidar com ferimentos de qual­quer natureza, mas nunca enfrentara uma pele tão delicada.

— Isabel — sir Anvrai enxugou o suor da testa —, prepa­re-se. Procure não se mexer.

Ele segurou a flecha e preveniu a si mesmo para não fra­quejar diante da tarefa difícil que o aguardava. Murmurou uma prece e puxou. Isabel deu um grito e a flecha não saiu. Anvrai

arrepiou-se.

— Perdoe-me, Isabel. Eu...

— De novo... — ela sussurrou. — Tente novamente.

Isabel cerrou os olhos com força e apertou as mãos do sa­cerdote. Enquanto aguardava pelo sofrimento, lágrimas escor­riam-lhe pelo canto dos olhos.

Se não soubera definir seus sentimentos por Isabel antes, naquela altura Anvrai tinha certeza de que a amava.

Ele segurou-lhe a perna com firmeza e arrancou a seta de um só golpe e com toda a força. Isabel deu um grito abafado e desmaiou.

O ferimento sangrou em abundância. Anvrai apertou um pedaço de tecido limpo na ferida aberta, e o sacerdote soltou as mãos de Isabel e recuou. Anvrai disse a si mesmo que fora melhor ela estar inconsciente. Esperava conseguir limpar e su­turar o estrago antes que Isabel acordasse. Também não queria que Isabel testemunhasse o tremor de suas mãos.

— Sou sir Anvrai d'Arques — apresentou-se ao sacerdote. — Ela é Isabel Louvet, de St. Marie. O pai de milady é um dos barões mais estimados pelo rei Guilherme.

O padre fez o sinal-da-cruz.

— Qual foi o infortúnio que os trouxe até aqui? Anvrai fez um relato sobre os acontecimentos em Kettwyck, a captura deles e os percalços que se seguiram.

— Depois de nossa fuga. encontramos uma garota normanda que está escondida no caminho estreito de terra batida, ao lado de sir Roger de Neuville.

— Sou Ingeld, vim para cá com Edgar Aedieling e suas irmãs... Bem, o senhor quer que eu fique com milady, enquanto vai buscar os outros? Receio que não lhes agradará a aproxi­mação de um estranho.

Anvrai não queria afastar-se de Isabel, mas reconheceu o acerto do raciocínio de Ingeld. Ele mesmo teria de falar com sir Roger e Tillie. Fitou mais uma vez Isabel que se encontrava imóvel na cama modesta do sacerdote. Amarrou-lhe uma atadura aper­tada no local do ferimento, cobriu-a com uma manta e cur­vou-se para beijar-lhe a testa.

Relutante, saiu do quarto do sacerdote e apressou-se até o local onde havia deixado sir Roger e Tillie. Não encontrou ninguém. Pela primeira vez, teve de admirar a precaução do rapaz. Sir Roger encontrara um esconderijo para si mesmo e para Tillie.

— Sir Roger! — chamou. — Estamos seguros.

Roger não tardou em sair de trás de um aglomerado de árvores. Tillie seguiu-o, apertando Belle nos braços.

— Lady Isabel foi ferida — explicou. — Levei-a até uma igreja próxima e o sacerdote ficou com ela para eu vir buscá-los.

— O que houve? Como foi? — sir Roger eriçou-se. — Houve luta? Pelo jeito, o senhor conduziu-nos para dentro de um vulcão em chamas!

Anvrai já se culpara mais uma vez por não ter podido de­fender Isabel. Mas não deixaria o rapaz perceber essa fraqueza.

— Sir Roger, pensei que o senhor já houvesse aprendido a refrear a língua! Será que vai precisar de outra lição?

Anvrai lhe endereçara um tapa bem dado, quando o man­cebo se queixara do peso da carroça desajeitada e sugerira que deixassem Tillie entregue à própria sorte,

O medo no olhar de Tillie impediu-o de marcar a outra face do sujeito ranzinza.

Anvrai foi até ao local onde haviam deixado a carreta e puxou-a até a igreja. Tillie e sir Roger foram atrás dele, sem fazer comentários. Depois de deixar o veículo rústico próximo aos aposentos do sacerdote, reuniu os pertences dos três e as ervas medicinais que havia colhido durante o dia.                

Entrou no quarto. Isabel não se movera. O padre acendera o fogo para esquentar o recinto e a cobrira com mais uma manta. Escutou sir Roger chamá-lo de dentro da igreja.

— Falarei com ele — padre Ingeld ofereceu-se. — Faça o que puder por milady.

Mais uma vez sir Anvrai recriminou-se por haver exposto Isabel ao perigo. Por sua culpa, ela fora gravemente ferida.

Tinha poucos recursos à mão. As ervas serviriam somente para usar nas bolhas que deveriam ter surgido com o uso de sapatos inadequados. Restava-lhe apenas rezar e esperar que o organismo de Isabel fosse forte o suficiente para se recuperar. Agachou-se ao lado dela e segurou-lhe a mão.

— Isabel — sussurrou.

Ela gemeu, levantou uma das mãos e acariciou-lhe o rosto.

— Terminou? Anvrai anuiu.

— Milady desmaiou.

— Ainda estou sentindo a flecha...

— Lady Isabel! — Roger entrou correndo e ajoelhou-se em uma das pernas, ao lado da cama. Ela tirara a mão do rosto de sir Anvrai. — A senhora está viva!

— Parece que sim, sir Roger.

— Milady não deveria ter corrido de nós daquela maneira. Eu a teria protegido. — O rapaz fitou sir Anvrai com ressen­timento.

— Onde está... Tillie?

— Veio comigo. Está bem, assim como Belle.

Anvrai afastou-se e deixou espaço para Tillie aproximar-se.

— Milady... — Tillie sufocou um grito. — Sua perna!

A perna ferida estava exposta e as ataduras ficavam cada vez mais vermelhas.

— Ela ainda está sangrando! — Tillie gritou, assustada. — Sir Anvrai não poderia ajudá-la?

Isabel umedeceu os lábios ressequidos.

— Seria melhor deixarmos que ele...

Roger afastou-se e deu espaço suficiente para sir Anvrai fazer a medicação.

Anvrai ajoelhou-se e, com extremo cuidado, removeu a ata­dura. Isabel agarrou-lhe o braço, enquanto ele trabalhava.

Ele não se importou com as unhas que o machucavam. A dor que sentiu lembrou-o do espírito combativo de Isabel. Do fogo interior que a mantivera combativa naquela noite terrível no rio. E de todos os cuidados que dedicara a Roger durante a estadia na caverna. Fez uma oração e pediu para essa índole guerreira ajudá-la a vencer a morte mais uma vez.

— Padre Ingeld, o senhor dispõe de medicamentos?

— Tenho alguma coisa. Use o que for necessário. — O sacerdote abriu uma arca do outro lado do recinto e tirou de seu interior uma pequena canastra que entregou a Anvrai. — Preciso ir agora. O senhor pode ficar em meu quarto o tempo que quiser. Use o meu estoque à vontade. Deus o abençoe.

— Muito obrigado, padre Ingeld. — Anvrai sensibilizou-se com a inesperada generosidade do religioso saxão.

Tillie arrumou um canto para deitar Belle. Enquanto Anvrai cuidava de Isabel, Tillie se ocupava com os preparativos da refeição da filha.

— Sir Roger — pediu Anvrai —, por favor vá até o lado de fora e, antes que chova, traga o colchão que veio na carroça.

Passaram a noite em um espaço maior que a cabana de Tillie. Roger dormiu em um sofá na antecâmara. Tillie ama­mentou Belle e acomodou-se ao lado de Isabel para dormir.

Anvrai trouxe para perto da cama uma das cadeiras do padre e nela sentou-se. Observou o sono pesado de Isabel e preocu­pou-se com a palidez crescente do rosto bonito.

As horas passavam, e Isabel não parava de se mexer, pro­curando uma posição mais confortável. Ele se agachou e se­gurou-lhe a mão.

— Isabel, tente descansar — pediu Anvrai.

Isabel abriu os olhos. A princípio pareceu confusa, mas logo o entendimento suavizou-lhe a expressão.

— Agora estou me lembrando...

Ele pôs uma das palmas da mão na testa de Isabel, mas não detectou nenhum sinal de febre. Ela tornou a se mexer e fez uma careta de dor.

Desejou ter sido ele o ferido. Uma cicatriz a mais em seu corpo pouco teria importado. Além disso, seus músculos eram mais compactos. A profundidade do ferimento não teria sido tão significativo em sua própria coxa.

Despejou um pouco de cerveja em uma caneca e ajudou Isabel a erguer a cabeça.

— Beba. — Anvrai levou a vasilha aos lábios dela. Isabel tomou alguns goles, segurando em sua mão e Anvrai encorajou-a a terminar o conteúdo. No momento, um pouco de embriaguez lhe faria bem. Isabel desamarrou os fitilhos da túnica que vestia sobre a camisa.

— Ajude-me, Anvrai.

Ela se inclinou para a frente e puxou a peça que a mantinha trajada com pudor. Sem isso, ficaria praticamente despida.

— Isabel, por favor, tenha calma. É preciso descansar.

— Isto me incomoda.

Anvrai tirou-lhe os braços das mangas e lembrou-se da últi­ma vez em que fizera aquilo. Fazia apenas duas noites desde que a segurara nos braços e que haviam feito amor.

Com um gemido, Isabel deslizou para o lado e deixou es­paço para que ele se sentasse a seu lado.

— Eu teria contado essa história de maneira diferente — ela comentou.

— Sim... nós nunca teríamos sido seqüestrados nem levados de Kettwyck.

— Não, o rapto teria de fazer parte do enredo ou eu nunca o teria conhecido.

Isabel dirigia a conversa para um caminho perigoso e ina­ceitável para eles. Saber que ela estava deitada a seu lado, quase nua sob o cobertor, era uma tortura considerável.

— Milady sempre teve o talento de um poeta? — sir Anvrai, de maneira proposital, mudou o sentido da conversa.

Ele não cessava de pensar nas horas que haviam passado juntos, ciente de que o fato não poderia repetir-se. Fora im­prudente e irresponsável ao concordar com o receio de que a viagem era ameaçadora e que poderiam morrer no caminho, encarando cada noite como se fosse a última.

Admitiu que agira daquela Maneira por ser incapaz de conter o desejo que sentia por ela e não porque os possíveis perigos o deixassem apreensivo. Isabel tomou mais cerveja e a manta deslizou até a cintura. Ficaram expostos os ombros e seios sob a cambraia fina e rota.

Isabel segurou-lhe um dos joelhos e sir Anvrai esforçou-se para ignorar a excitação que o invadia. Tornou a cobri-la até o pescoço e recriminou-se por sentir tais emoções, enquanto ela padecia com um ferimento tão grave.

— Eu comecei a contar histórias quando fui para a abadia com Kathryn, um ano mais nova de que eu. Ela sentia muita falta de nossa casa e de nossa mãe. Para distraí-la, iniciei com as narrativas que eu ouvira quando criança. Histórias de St. Martin de Tours, de St. Eligious e outras. Kathryn se acalmava com elas. Depois a abadessa começou mandar outras meninas que se encontravam tristes, para que eu as distraísse.

— As crianças não achavam as histórias enfadonhas? — sir Anvrai deu uma risada.

— Não da maneira como eu as relatava.

Era possível imaginar os detalhes que ela acrescentava às narrações sérias e respeitáveis da vida dos santos. Isabel fe­chou os olhos, como se houvesse adormecido novamente, mas continuou a falar, com voz suave e tentadora:

— Será que tornarei a ver Kathryn?

— Ninguém poderá lhe garantir. Nesta altura, suposições devem ser vistas com cautela. Posso prometer-lhe apenas que farei o possível para levá-la de volta a Kettwyck. Depois... — Deu de ombros. — Outras promessas não poderei fazer.

Isabel suspirou, sem tirar a mão do joelho de Anvrai. O toque era uma doce tortura.

Que lugar é este?

— Uma igreja. — Ele procurava não pensar no desejo forte de deitar-se ao lado de Isabel, abraçá-la com força e pressionar o rosto em seus cabelos.

 

Isabel escutou vozes do lado de fora. As chamas haviam se extinguido. Alvorecia. Dormira um sono intermitente durante a noite. Mesmo assim procurara não se mexer muito, para que Anvrai pudesse descansar.

Assim que o som das conversas o acordaram, sir Anvrai levantou-se e desembainhou a espada. Uma batida na porta do quarto contíguo acordou sir Roger e Tillie. Isabel tentou sair da cama, apesar da forte dor no joelho.

— Fique deitada — avisou Anvrai.

— Sir Anvrai, é Ingeld — um homem chamou.

Isabel lembrou-se de quem se tratava. Era o sacerdote que lhes dera abrigo. Puxou a coberta até o pescoço, enquanto Anvrai se dirigia à antecâmara para abrir a porta.

Os homens conversaram em voz baixa e Isabel não distin­guiu as palavras. Teve a impressão de que várias pessoas ha­viam entrado e fechado a porta. Um pouco depois, Anvrai reapareceu, ao lado de um guerreiro escocês alto.

O sacerdote os seguia, escoltando uma mulher jovem de cabelos loiros.

— Vossa Majestade, apresento-lhe lady Isabel Louvet, de St. Marie. Milady, tenho a honra de apresentar-lhe Margarida, rainha da Escócia.

Isabel fez outra tentativa de sair da cama, dessa vez segu­rando a manta diante de si. Margarida impediu-a a tempo.

— Por favor, lady Isabel, permaneça na cama.

A rainha usava um vestido azul com peles nos punhos e no decote. O franzido sob o busto procurava disfarçar a gravidez de poucos meses.

— Padre Ingeld contou-nos sobre o seu infortúnio — Margarida explicou.

Isabel encolheu os ombros e desejou ardentemente não estar tão mal vestida. Não era justo conhecer a rainha da Escócia, envergando uma camisa puída.

— Nós não temos o costume de atacar viajantes desconhe­cidos. — Margarida virou-se para Anvrai. — Pode embainhar sua espada, cavaleiro. Vim apenas para reparar o malfeito.

Ele deixou a espada na cama ao lado de Isabel, mas não se descontraiu. Esteve a ponto de pegar a arma novamente, quando mais dois homens entraram no quarto carregando um gran­de baú de madeira.

— Por favor, lady Isabel, queira aceitar estas lembranças... Peço-lhe que venha à fortaleza de Dunfermline, onde poderá usufruir da hospitalidade do rei.

— Nós lhe agradecemos imensamente. Majestade — An­vrai antecipou-se à resposta. — Assim que lady Isabel estiver recuperada e em condições de viajar, eu a levarei a Dunfermline. Por enquanto, ficaremos aqui, se padre Ingeld puder dar-nos abrigo por mais uma ou duas noites.

— Mas claro...

Da antecâmara, sir Roger ouvira a conversa. Passou pelos guardas e entrou no quarto.

— Não vejo nenhum impedimento para que eu não possa ir com Vossa Majestade. Não precisamos ficar todos aqui. É muito apertado para tantas pessoas.

Apesar das roupas que vestia, sir Roger não deixara de ser um jovem atraente. A rainha deixou-se vencer pelo charme do rapaz que sorriu com doçura e fez uma cortesia profunda.

Isabel nem podia crer que um dia fora susceptível àqueles encantos. Segurou na mão de sir Anvrai que a apertou de ime­diato, antes de ir até a porta e ficar ao lado de Tillie. A rainha Margarida aproximou-se da cama e apoiou a mão no ombro de Isabel.

— Milady, sinto imensamente por esse mal-entendido. Acredito que os sentinelas estão muito preocupados com mi­nha segurança. Mandarei meu médico particular para exami­ná-la. E torno a reiterar o pedido. Venha para Dunfermline o quanto antes.

— Obrigada, Majestade. Irei assim que estiver em con­dições.

Roger seguiu a rainha e fechou a porta atrás de si. Não dirigiu uma só palavra a Isabel. Nem um adeus. Como também não demonstrou o menor interesse de indagar sobre o ferimen­to. Seguiram-se alguns minutos de silêncio e ela sentiu-se ali­viada pela partida dos dois. Tillie aproximou-se com Belle nos braços.

— Milady, o que poderei fazer para ajudá-la? Sua perna...

— Está doendo bastante, Tillie. Mas preciso levantar-me. Onde fica o reservado?

 

Anvrai sentiu-se inútil diante do sofrimento de Isabel. Pior ainda do que quando estava acorrentado na prisão escocesa. Cada careta ou gemido o atingiam no fundo da alma. Ah, se pudesse aliviar-lhe a aflição!

Abriu o baú trazido pelos soldados da rainha.

— Acho que são roupas femininas.

— Deixe-me ver — ela pediu, inspirando fundo por causa da dor que, apesar de tudo, era superada pela curiosidade.

— Um guarda-roupa inteiro, Isabel.

Ele ergueu uma túnica vermelha-escura, um saiote de linho e uma camisa delicada de cambraia. Calção, ligas e um belo par de sapatos. Havia também alguns trajes para Tillie. De­baixo de tudo, duas túnicas de tamanho grande, calção e botas masculinas.

Levantou a cabeça e viu Isabel chorando. Franziu a testa.

— O que houve? Essas roupas não a...

— Preciso de um banho. Não posso vestir roupas tão finas neste estado. — Fungou e procurou conter as lágrimas que continuavam a sulcar as faces empoeiradas.

— Todos nós estamos sujos. — Sir Anvrai consternou-se pela tristeza demonstrada por Isabel. — Não acha que estas roupas serão muito melhores do que os trapos que está ves­tindo?

Ela anuiu e deitou-se. Fechou as pálpebras, procurando adormecer. Anvrai foi para a antecâmara. Tillie estava sentada em uma cadeira, amamentando Belle.

— A rainha também lhe trouxe roupas. Estão na arca — sir Anvrai disse, antes de sair.

A incapacidade de ajudar Isabel pesava sobre seus ombros. O estoque de poções do padre Ingeld era precário. Pouco se aproveitava além da agulha afiada e dos fios de seda que usara para suturar a perna de Isabel.

Felizmente não demorou para a chegada do séqüito que trazia o médico do rei, outro saxão. Desmond era um homem enrugado, grisalho, de barba longa e que usava manto negro. Poder-se-ia dizer que se tratava de um personagem de um dos contos de Isabel. Viera com três sentinelas, dois nobres normandos e uma dama.

Aproximaram-se da igreja e desmontaram. Um dos nobres ajudou a dama ricamente vestida a descer. Anvrai foi até a entrada e todos olharam com interesse, sem a repulsa usual dos que o viam pela primeira vez. Disse a si mesmo que talvez fosse pelo fato de as cicatrizes mais horrendas estarem escon­didas sob o tapa-olho.

— Sir Anvrai!

O mais idoso dos dois nobres aproximou-se e estendeu mão em um cumprimento.

— Sou Robert de Montaigu e esta é lady Symonne de Montbray.

Anvrai curvou-se sobre a mão de Symonne e foi apresen­tado a Honfroi de Vesli.

— Onde está a dama ferida? — o clínico indagou, impa­ciente com as frivolidades. Ele carregava uma sacola de couro com alça presa ao ombro.

— Sem dúvida — lorde Honfroi concordou, com um floreio — gostaríamos de ver logo quem sofreu o ferimento.

— Os senhores são normandos. — Sir Anvrai cruzou os braços na altura do peito e barrou-lhes a passagem para o quar­to do sacerdote. Ninguém entraria ali até que ele entendesse o motivo para a presença deles. — Como vieram parar em Dunfermline?

A dama adiantou-se.

— Sir Anvrai, há muitos normandos na fortaleza do rei Malcolm. Cada um chegou por uma razão diferente...

— A maioria por estar descontente com o rei Guilherme. Ali esperamos o seu beneplácito — Honfroi explicou.

— Ou uma mudança na política que nos permita retornar às nossas propriedades — Robert acrescentou.

— Sir Anvrai, não pretendemos fazer-lhes nenhum mal — interveio Symonne. — Apenas queremos dar boas-vindas ao senhor e a lady Isabel e convidá-los para fazer parte de nosso pequeno encrave.

Os guardas escoceses permaneceram impassíveis. Anvrai não notou nenhuma simulação no discurso dos normandos. Afastou-se e deixou-os entrar.

Conduziu o médico até a cama onde Isabel estava deitada com os olhos fechados e tocou-lhe na mão. Desmond entrou e deixou a sacola na cadeira ao lado da cama.

— Milady... — Anvrai foi cerimonioso. Não pretendia de­monstrar nenhum tipo de familiaridade.

Não seria conveniente que esses cortesãos voltassem car­regados de boatos.

Ela abriu os olhos e sorriu, apesar das faces contraídas quan­do fazia algum movimento.

— O médico está aqui para vê-la — avisou-a. Desmond afastou a manta de cima da perna de Isabel e Anvrai apressou-se em empurrar os normandos curiosos para fora do quarto. Não lhe agradavam olhares bisbilhoteiros. O curandeiro tirou a bandagem que fora enrolada por Anvrai.

— Um pouco mais de luz, por favor.

Anvrai trouxe a candeia que estava em cima da mesa e segurou-a no alto para iluminar bem a área do ferimento.

Desmond apertou a região em volta do talho e Isabel gritou. De imediato, Anvrai segurou-lhe a mão e Isabel pressionou a face nas mãos apertadas. Apesar do propósito de não demons­trar intimidade, Anvrai entrelaçou os dedos nos cabelos sedo­sos e acariciou-lhe a nuca. Isabel esforçava-se ao máximo para ficar imóvel.

— Os pontos estão cicatrizando muito bem — Desmond afirmou, sem se dar conta do elo que unia Anvrai e a enferma. —- Até onde a flecha penetrou? Atingiu o osso?

Isabel arrepiou-se.

— Acho que não. — respondeu Anvrai.

— Ótimo.

— O médico tirou da sacola vários potes pequenos de barro e duas algibeiras. De uma delas, despejou um pó sobre o ferimento.

— Sir Anvrai, pode conseguir um pouco de água quente?

— Sem dúvida.

— E panos limpos.

Isabel soltou a mão de sir Anvrai que se encaminhou à antecâmara. Encontrou Tillie quase escondida em um canto, sentada com Belle no colo. Anvrai pediu-lhe para procurar tecidos limpos de linho e tirou uma panela com água de cima do fogo. Voltou ao quarto, seguido por Tillie.

Ele seguiu as instruções de Desmond e pôs um pouco de água fria na caçarola. Ensopou um pedaço de pano e fez uma compressa sobre o ferimento sobre o qual Desmond já havia espalhado um ungüento escuro.

— Deixarei estes medicamentos com o senhor. Desmond entregou a sir Anvrai os potes e as algibeiras.

Descreveu os conteúdos e os modos de utilização.

— A cura de ferimentos desse tipo é um processo delicado. Lady Isabel, seria melhor irmos para a fortaleza. A rainha já preparou aposentos para recebê-la.

— Por favor, eu não gostaria de sair daqui por enquanto, este é um lugar sossegado. Eu preferia não viajar até que mi­nha perna estivesse curada.

Desmond concordou.

— A tranquilidade é essencial para a cura. — O médico encheu pela metade uma caneca com água e acrescentou uma porção de pó de uma das pequenas bolsas. — Beba. Isso a ajudará a descansar. — Virou-se para sir Anvrai. — Se houver alguma dificuldade, por favor não se acanhe e mande chamar-me. São ordens da rainha.

Desmond foi até a porta e voltou-se antes de abri-la.

— Lady Isabel, os que vieram comigo gostariam de falar-lhe antes de nossa volta a Dunfermline.

Anvrai teria preferido mandá-los embora. Isabel precisava descansar, mas o instinto o advertia da importância de manter relações amistosas com os normandos na corte da rainha.

Anvrai explicou que se tratava de normandos, hóspedes do rei Malcolm, e Isabel anuiu.

Desmond abriu a porta e acenou para os outros membros da comitiva. Eles entraram sem vacilar, liderados por Symonne. A dama apressou-se até a cama de Isabel e segurou-lhe a mão.

— Pobrezinha... Milady teve de suportar uma experiência

muito penosa.

— Agradeço sua bondade, lady...

A dama apresentou a si mesma e a seus companheiros. Eles conversaram com Isabel a respeito dos conhecimentos mútuos na Inglaterra, na França e das dificuldades enfrentadas diante do rei Guilherme.

Isabel mostrou-se cansada, mas Anvrai não chegou a pedir-lhes que se retirassem. Symonne anunciou logo suas intenções.

— Lady Isabel, nós a deixaremos repousar, mas a espera­remos em Dunfermline. Vá para lá assim que estiver mais forte. Dunfermline é um lugar bastante civilizado.

Eles se despediram e foram embora.

Isabel não demorou a adormecer e Anvrai também saiu do quarto. Tillie acompanhou-o, deitou Belle no colchão e come­çou a varrer o chão.

— Vou caçar — disse Anvrai a Tillie, inquieto demais para ficar ocioso.

Juntou os objetos necessários que haviam trazido da cabana de Tillie e que se encontravam na carroça, e foi em direção à floresta. O encontro de Isabel com os nobres normandos solidificara sua determinação de manter-se afastado dela. Assim que a perna estivesse cicatrizada, iriam para a fortaleza de Dunfermline. Isabel teria a companhia de Roger, além de todos os normandos que lá se encontrassem.

Com a ajuda da rainha Margarida, ela teria condições de voltar ao regaço da família e prosseguir com os planos matrimoniais. Em breve, lady Isabel Louvet, de St. Marie, não teria mais necessidade dos préstimos de sir Anvrai d'Arques.

Anvrai encaminhou-se para leste, rumo a Dunfermline. Imaginou se a rainha teria conhecimento de que o marido es­tava prestes a empreender uma batalha contra o exército do rei Guilherme, Seguiu a trilha até ela se transformar em uma estrada, atravessou-a, tornou a entrar na floresta e continuou. Pretendia aproximar-se da fortaleza, sem ser percebido.

Não demorou muito e sentiu o cheiro de água salgada. No­tou várias aves marinhas voando em círculos. Chegou ao des­penhadeiro que se erguia majestoso sobre o oceano e foi até a beirada, de onde enxergou o castelo do rei Malcolm.

A distância, parecia ter sido construído sobre o rochedo, bem acima do mar e rodeado por uma floresta densa. Era praticamente inacessível, exceto por um caminho estreito que ter­minava nos portões de ferro que o guardavam.

Depois de observar atentamente o conjunto, voltou por onde viera. Chegou aos arredores da igreja, montou as armadilhas e esperou a tarde escurecer. Foi até o pátio, lavou-se no poço, puxou um balde com água e carregou-o para dentro. Os apo­sentos do sacerdote não pareciam os mesmos. Imaculadamente limpos. Deduziu que Tillie lavara e esfregara todos os cantos.

— Tillie, encontrou uma tina para banho?

— Não, sir Anvrai — Tillie respondeu. — Mas certamente o sacerdote deve ter uma. Não estará do lado de fora?

Anvrai deu a volta na igreja e descobriu um armário enorme encostado em uma das paredes. Nas prateleiras internas, vários tipos de ferramentas. No fundo, uma tina de tamanho razoável que poderia ser usada para tomar banho.

Carregou a cuba para dentro. Deixou-a ao lado da lareira, no dormitório onde Isabel continuava dormindo. Passou a hora seguinte carregando água, aquecendo-a até ferver e jogando-a na cuba.

— Encontrei uma pedra de sabão — Tillie sussurrou e en­tregou-lhe a barra sem fragrância.

Anvrai continuou a encher a tina durante mais algum tempo, até Isabel descerrar lentamente as pálpebras, acordando aos poucos.

— Anvrai?

A fisionomia de Isabel continuava triste e ela estava com os lábios contraídos. Apesar de sonolenta, os olhos estavam alertas. Viu a tina com água quente e lágrimas desceram por suas faces. Anvrai chegou até a beira da cama e abaixou-se a seu lado.

— Achei que um banho a deixaria feliz, Isabel. Por que está chorando?

Ela acariciou-lhe o rosto com leveza. Passou a ponta do polegar do nariz à face deformada.

— E deixou. Muito, muito contente. Por favor, poderia me ajudar?

Anvrai pretendia deixar a tarefa aos cuidados de Tillie, mas foi incapaz de recusar o pedido. Anuiu e fechou a porta intermediaria. No outro quarto, a moça descansava ao lado da filha. Ele voltou e viu Isabel lutando para tirar a camisa.

Anvrai engoliu em seco e deu-lhe as costas. Precisava pre­parar-se para vê-la sem roupas, para sentir-lhe o corpo quando a carregasse para dentro da banheira.

Acendeu as velas e recriminou-se. Claro que poderia fazer tudo sem se envolver ainda mais. O convívio deles estava qua­se terminado. Quando o ferimento de Isabel estivesse cicatri­zado, a rainha Margarida se encarregaria de equipá-los de modo condigno para a viagem à Inglaterra.

Virou-se ao ouvir os ruídos de Isabel que tentava sair da cama. Ela gemeu e desequilibrou-se. Teria caído, se ele não corresse para ampará-la. Levantou-a nos braços. A manta es­corregou, assim como o cataplasma. Anvrai carregou-a, cons­ciente da nudez exuberante de Isabel.

Pensou em deixá-la na banheira e sair em seguida. Com cuidado, baixou-a dentro da água. Isabel fechou os olhos, suspirou e encostou a nuca na beira da tina. Anvrai nunca vira uma imagem tão sensual. Não pôde impedir a si mesmo de embriagar-se naquela visão, apesar de sua determi­nação em sair dali.

O estímulo foi instantâneo. Ele recuou para não ver os seios fora da água, nem as pernas dobradas com as coxas expostas. Os pontos feitos com fios negros não maculavam aquele con­junto adorável.

— Isto é um presente dos céus, mesmo sem sabão... — Isabel suspirou.

A mente de sir Anvrai foi sacudida. Lembrou-se da barra que deixara sobre o consolo da lareira.

Isabel enfiou a cabeça dentro da água e imergiu o corpo todo. Quando voltou à superfície, sir Anvrai entregou-lhe o sabão e preparou-se para sair.

— Por favor, Anvrai, preciso de ajuda. — A rede foi lan­çada novamente.

A água quente acalmou a dor incessante na perna, mas não o desapontamento ao ver Anvrai tão ansioso para deixá-la.

Estremeceu, inclinou-se para a frente e puxou os cabelos por cima do ombro.

— Pode lavar-me as costas?

Anvrai fitou a porta, encheu os pulmões de ar e ajoelhou-se ao lado da cuba. Pegou o sabão das mãos de Isabel e espumou as palmas. Com cuidado, esfregou-lhe os ombros e as costas de um dos lados. Isabel levou os braços para a frente e Anvrai repetiu os movimentos do outro lado, evitando o contado com o seio.

Tratou-a como se ela fosse um tesouro muito frágil.

Isabel não era nenhuma criatura débil. A dor na coxa cedera um pouco e se transformara em um padecimento mais supor­tável depois do cataplasma aplicado pelo médico.

Anvrai enfiou as mãos na água para tirar delas a espuma e Isabel temeu que ele fosse embora.

— Anvrai, por favor, ajude-me a lavar os cabelos.

— Isabel, eu...

Pelo tom de voz de Anvrai, ele não era tão insensível quanto queria demonstrar.

— Acho que não poderei fazer isso sozinha. — Isabel pegou o sabão e esfregou-o nos cabelos. Virou-se um pouco de lado e levantou as duas mãos para lavá-los.

Anvrai fitou-lhe o busto e Isabel percebeu o pomo-de-adão subir e descer. Foi o suficiente para os bicos dos seios endu­recerem, ansiosos para serem tocados.

Anvrai pigarreou e tirou o sabão das mãos de Isabel. Fric­cionou-lhe a cabeça até Isabel suspirar de prazer. Ela se incli­nou para trás e descontraiu-se, afastando as pernas.

A respiração de Anvrai tornava-se arfante e Isabel desejou que ele esquecesse os cabelos. — Isabel...

A voz profunda de Anvrai vibrou pelo corpo de Isabel como se fosse uma carícia física. Anvrai continuou a lavar-lhe os cabelos compridos e suas mãos deslizaram pelo busto macio. Isabel puxou-lhe a cabeça e Anvrai deixou cair a barra na água.

O beijo molhado foi extremamente sensual. Anvrai pres­sionou os lábios nos de Isabel e com a língua, abriu caminho para saborear-lhe o interior da boca. Com as palmas ensaboa­das, Anvrai lavou Isabel com cuidado e erotismo, sem deixar nenhum ponto esquecido. Sabia exatamente o grau de pressão que deveria imprimir às carícias que a levariam ao prazer, mas deteve-se um pouco antes.

Anvrai interrompeu o beijo e enfiou a mão na água para recuperar o sabão.

— Deite-se, Isabel.

Ela seguiu as instruções.

— Agora feche os olhos. Isabel assim o fez.

Anvrai recomeçou a tarefa de lavar-lhe o corpo, mas dessa vez com um pedaço de pano. Quando Isabel pensou que não suportaria mais aquela tortura, abriu os olhos e percebeu a admiração na fisionomia de Anvrai.

— Isabel, nunca vi mulher mais linda.

— Anvrai, leve-me para a cama.

— Não devemos, Isabel. Sua perna está ferida. Além da dor, há o perigo de uma inflamação...

— Por favor, Anvrai. Quase não estou sentindo mais dor... Anvrai prosseguiu com os afagos íntimos e Isabel pensou que o coração fosse explodir. Ele se afastou e voltou com um balde contendo água limpa. Levantou Isabel e jogou a água tépida sobre ela. Tirou-a do banho e deixou-a em pé defronte à lareira. Enxugou-a com uma toalha de linho e imprimiu re­verência aos movimentos.

Isabel chegou a esquecer do ferimento na perna. Seus sen­tidos estavam voltados para Anvrai. Ele a carregou para a cama e Isabel observou-o, fascinada, enquanto ele tirava as próprias roupas. Anvrai começou com os sapatos. Depois desamarrou a túnica que Isabel costurara, puxou as mangas, tirou-a pela cabeça e deixou-a em uma cadeira próxima. O cinto largo, o calção e as meias tiveram destino idêntico.

Encantada, Isabel não o desfitava. Anvrai despejou mais um balde de água na tina. Entrou na banheira pequena demais para ele e lavou-se depressa. Isabel pegou a toalha seca que permanecera na cama e estendeu-a na direção de Anvrai.

Ele hesitou antes de se aproximar. Isabel sentou-se na cama. e secou-lhe a pele úmida, beijando cada local que enxugava. Passou a toalha para trás, com intuito de secar-lhe as costas. Enquanto isso, Anvrai espalhava-lhe os cabelos molhados.

A masculinidade palpitante de Anvrai era perturbadora. Isabel deixou cair a toalha e acariciou o corpo de Anvrai, sem falsos pudores. Era como se quisesse trazer para fora o fogo que queimava em seu interior. Os gemidos guturais de Anvrai encorajavam-na a prosseguir.

Anvrai abraçou-a e deitou-a na cama.

— Isabel, eu não queria machucá-la.

— Não se preocupe, Anvrai. Estou bem. Não poderá cau­sar-me nenhum tipo de sofrimento. — Isabel afastou-se para ceder-lhe espaço. — Venha para mim.

Anvrai rendeu-se aos encantos e ao apelo sensual de Isabel.

Eles fizeram amor de maneira intensa. A faísca instantânea que ardia entre ambos era inegável. Por mais que se esforças­se, sir Anvrai não conseguia resistir e falhava em sua deter­minação de manter-se longe de Isabel. Era uma atração má­gica, como se ele houvesse sido enfeitiçado. Além da beleza de Isabel, suas qualidades o fascinavam. Coragem, capacidade de decisão, inteligência, bondade e altivez.

Isabel, por sua vez, Não se conformava por ter sido tão in­fantil e não ter entendido antes a dimensão do verdadeiro caráter de Anvrai. Destemido, honrado, bondoso e justo. De nada importava o rosto deformado por cicatrizes ou a falta de um olho. Sir Roger era belo, tinha os dois olhos e não enxergava um palmo adiante do nariz. Além disso era egoísta e fútil.

Anvrai abraçou a amada e os dois adormeceram.

Anvrai acordou no meio da noite com muito calor. Estra­nhou o fato, pois o fogo estava quase extinto.

Isabel dormia e sua respiração tornara-se ruidosa. O calor vinha do corpo de Isabel. Ele se apoiou em um dos cotovelos e apalpou-lhe a testa.

Estava ardendo de febre.

Anvrai levantou-se e examinou os frascos deixados pelo médico, à procura de casca de salgueiro. Felizmente encontrou o medicamento. Despejou um pouco em uma caneca, adicio­nou água e voltou para a cama.

— Isabel — ele sussurrou, mas não obteve resposta. Sacu­diu-a levemente pelo braço. — Acorde, Isabel.

Ela sacudiu a cabeça, porém não se voltou para Anvrai.

— Acorde, Isabel — insistiu ele. — Olhe para mim. Isabel gemeu, sem abrir os olhos. Anvrai levantou-lhe a cabeça e apoiou a borda da caneca em seus lábios.

— Beba, Isabel.

Ela tornou a gemer e tentou empurrá-lo. Ele não desistiu.

— É amargo — Isabel queixou-se.

— Eu sei, mas ajudará a baixar a febre.

Anvrai não se importou com a reclamação. Se ela nada dissesse, seria mau sinal.

— Quero ver como está sua perna, meu amor.

— Minha perna... meu coração... — Isabel suspirou. — Qualquer parte que lhe agradar, sir Anvrai.

Isabel delirava. Anvrai tirou-lhe as mechas de cabelos do rosto e descobriu-a. Iluminou o ferimento com a vela de cera,; Uma substância viscosa e sanguinolenta drenava da sutura. A região em volta estava avermelhada e quente. Anvrai fez uma prece silenciosa e implorou a Deus pela vida de Isabel. Putrefação e febre era o que se poderia esperar de pior. Anvrai foi até a antecâmara e acordou Tillie.

— Preciso de sua ajuda.

A rapariga sentou-se e esfregou os olhos, confusa.

— Às suas ordens, milorde.

Apesar de sonolenta, levantou-se e seguiu-o.

— Fique com lady Isabel, enquanto vou buscar água fresca.

— O que houve, sir Anvrai?

— Lady Isabel está com uma febre muito alta.

Anvrai não transpareceu a preocupação que lhe corroía o peito, nem o remorso que lhe esmagava o coração. Recrimi­nava-se por ter feito amor com Isabel, quando deveria ter in­sistido para que ela repousasse. O mais certo seria tê-la levado, mesmo se tivesse de forçá-la, à fortaleza do rei. Se estava bem para fazer amor, poderia ter viajado a curta distância até Dunfermline.

Foi até o poço e encheu um balde. Quando voltou, Isabel não havia se movido.

— Tillie, molhe um pano e passe nos braços de lady Isabel.

A garota fez o que lhe fora pedido, apesar dos gemidos de desconforto da enferma. Anvrai sentou-se na beira da cama e aproximou a vela. Pressionou a pele que rodeava o ferimento e extraiu mais líquido leitoso misturado com sangue.

— Isso não é bom — Tillie afirmou, com a testa franzida. — Existe algum recurso para ser empregado?

— Com certeza.

Anvrai foi até a antecâmara e pegou uma faca pequena de dentro do guarda-louças. Voltou para o quarto e sentou-se ou­tra vez ao lado de Isabel. Encostou a lâmina nas suturas que havia feito.

— Santa Mãe de Deus! — Tillie exclamou em um sussurro.

— É preciso — afirmou Anvrai, circunspecto. — O veneno deve ser retirado.

Isabel gritou e tentou empurrá-lo quando ele cortou os pontos.

— Sinto muito, Isabel. Não há outro meio de curar esse ferimento.

Infecção podia matar. Anvrai vira cena semelhante em inú­meras ocasiões. Não podia permitir que aquilo ocorresse dessa vez. Não com Isabel.

Uma das algibeiras de Desmond continha calêndula. Des­pejou um pouco das folhas em pó em uma caneca e adicionou água. Misturou o produto até obter uma consistência pastosa e espalhou na ferida aberta.

— Milady está tremendo, sir Anvrai — Tillie avisou-o.

— A água está muito fria. Suspenda as compressas, en­quanto eu aqueço um pouco a água. Deixe os braços e as pernas descobertas.

Anvrai acabou mandando Tillie de volta para a cama. Ele mesmo continuou a banhar os braços e as pernas de Isabel com água morna até os tremores cessarem. Mas a pele conti­nuava quente e Isabel, agitada.

— Abrace-me, Anvrai. Venha deitar-se comigo.

— Estou aqui, Isabel. Durma.

Puxou uma cadeira para perto da cama e cochilou de maneira intermitente. Acordava ao menor movimento que Isabel fazia.

Quando amanheceu, Anvrai decidiu levar Isabel à fortaleza do rei Malcolm, onde Desmond poderia atendê-la. Admitiu ter um vasto conhecimento sobre ervas medicinais e métodos de cura. Mas Desmond era, sem a menor sombra de dúvida, um homem instruído. Ele teria possibilidade de curar Isabel.

Isabel, inconsciente, veio deitada no colchão estendido no estrado da carreta. Tillie protestara, dizendo que poderia ir a pé até Dunfermline, pois o trajeto era curto. Anvrai recusara o pedido e a fizera viajar sentada ao lado de Isabel até chega­rem à fortaleza do rei. Eles foram pela estrada e depois pelo caminho estreito até chegar ao castelo.

Dois sentinelas escoceses montavam guarda no portão e mais quatro vigiavam os arredores do alto do barbacã de ma­deira. Os guardas deveriam ter sido avisados da identidade de Anvrai d'Arques e o grupo foi admitido sem demora.

Passaram pelas estrebarias e demais edificações protegidas pela muralha. Anvrai não se deteve para falar com nenhum dos nobres bem vestidos que circulavam pelos jardins do pátio e estacionou a carroça diante do salão nobre. Pegou Isabel no colo e carregou-a escada acima, seguido por Tillie, que trazia Belle.

A porta foi aberta antes de ele chegar ao último degrau. Roger de Neuville apareceu, seguido por um escocês vestido com trajes suntuosos e dois criados.

— Desmond está aqui? — Anvrai fez a pergunta sem diri­gir-se a ninguém em particular e também sem se deter.

— Não será difícil encontrá-lo, sir Anvrai — um dos ho­mens respondeu e seguiu-o.

O recinto enorme estava vazio. Viam-se duas poltronas de espaldar alto, um sofá de grandes dimensões diante da lareira de pedra e uma mesa comprida situada sobre um tablado. O junco fresco do chão deixava o ambiente com aroma agradá­vel. Em uma das paredes, inúmeras mesas de cavalete fechadas que na cena eram armadas no recinto imenso para receber os convidados do rei e da rainha.

Uma das servas fez uma mesura e saiu à procura de Des­mond, enquanto Anvrai atravessava o salão nobre.

— Cuilén, ele poderá levá-la aos meus aposentos — disse Roger. — Sir Anvrai, Cuilén é o mordomo do rei Malcolm.

Anvrai limitou-se a um ligeiro gesto de anuência com a cabeça, antes de seguir a criada e Roger pela escadaria que dava acesso ao primeiro pavimento.

— Não se incomode, sir Roger. Sua Majestade, a rainha, ordenou que um aposento especial fosse aprontado para lady Isabel — Cuilén avisou-os, vindo atrás deles.

Caminharam pelo corredor e entraram no quarto indicado pelo mordomo. O aposento era pequeno, aconchegante e bem mobiliado.

A criada abriu o cortinado da cama de baldaquino e Anvrai deitou Isabel com cuidado.

Roger franziu a testa.

— O que foi que houve com lady Isabel? Ela me parecia bem ontem de manhã, quando a vi pela última vez.

— O ferimento, sir Roger. — A paciência de Anvrai, já no limite, não suportava incluir a estupidez do rapaz.

Por não ter a menor experiência de lutas, não imaginava o perigo de uma infecção quando dera as costas à noiva, sem maiores preocupações.

— Vamos precisar de água quente e panos limpos para a atadura — Anvrai avisou a serva.

A moça fez mais um cortesia e saiu. Anvrai cobriu Isabel com um lençol fino.

— Há quanto tempo ela está assim? — Roger estreitou os lábios e sacudiu a cabeça.

— A febre veio durante a noite e a partir daí a piora foi progressiva — explicou Anvrai.

Tillie sentou-se ao pé da cama com a filha no colo. Acor­dada, Belle não chorava. Anvrai foi até a porta para procurar Desmond e deparou-se com Symonne.

— Soube de sua chegada, sir Anvrai — a dama afirmou.

Symonne era uma beldade loira, pouco mais velha que Isa­bel, e usava um traje mais ostentoso de que o da própria rainha. Tinha-se a impressão de que a riqueza da nobre normanda não fora abalada, apesar das desavenças com o rei Guilherme.

Desmond entrou no quarto e mandou todos saírem, exceto sir Anvrai e Tillie.

Sir Roger protestou com veemência.

— Desmond, o noivo de milady deveria permanecer — opi­nou Symonne, fitando Anvrai com severidade.

Anvrai irritou-se, mas felizmente Desmond não dera ouvi­dos ao comentário de Symonne. Anvrai nada respondeu e es­perou que os solicitados deixassem o quarto. Explicou ao mé­dico os procedimentos que efetuara. Banhos frios, pó de casca de salgueiro para beber e o cataplasma de calêndula que usara sobre o ferimento.

Desmond examinou Isabel. Colou o ouvido sobre seu peito para escutar os batimentos cardíacos. Depois comprovou a pul­sação no pescoço, braço e pé.

— Eu teria de efetuar uma sangria — o médico justificou-se. — Mas como lady Isabel já perdeu muito sangue, o equi­líbrio delicado pode ser rompido, com consequências trágicas.

Anvrai concordou, aliviado por não ter de ajudar Desmond na drenagem das veias de Isabel. O homem idoso tirou o lí­quido de uma erva e fez com que Isabel bebesse o remédio. Alguns minutos depois, Isabel dormia profundamente e não reagiu quando Desmond tirou a atadura e aplicou na ferida uma mistura estranha de odor forte e penetrante.

Anvrai disse a si mesmo que Isabel, mesmo doente, conti­nuava sendo a mulher mais bela que ele já vira. Repetiu, como se já não soubesse, que ela não era nenhuma esnobe de cabeça vazia. Tinha tanta coragem e determinação como o mais va­lente dos cavaleiros de Belmere.

Anvrai cobriu-a melhor, deixando para fora do lençol ape­nas a perna ferida. Não queria vê-la exposta nem aos olhos de Desmond. O que era ridículo, pois estava convicto de que ja­mais poderia aspirar à posição de pretendente de Isabel Louvet.

Tão cedo não se tornaria o dono de uma grande propriedade, o que o faria parecer aceitável aos olhos de lorde Henri, se ele estivesse vivo.

A situação era impossível. Não poderia levá-la para Belmere nem para Winchester, onde estava a tropa do rei. Nem deveria pensar nessas hipóteses. Novamente Isabel se encontrava em situação difícil por causa dele. Cada vez mais ficava provado que ele era incapaz de tomar as providências adequa­das para manter Isabel em segurança.

Desmond deixou o quarto e Tillie foi levada ao dormitório dos criados. Anvrai ficou sozinho com Isabel. Andou de um lado para o outro, alerta aos gemidos e movimentos incons­cientes. Ajoelhou-se ao lado da cama e segurou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos e encostou o rosto na palma macia.

— Nós não poderemos ficar juntos, Isabel — Anvrai sussurrou, mesmo sabendo que ela não o poderia escutar.

Talvez a sentença verbalizada pudesse convencê-lo daquela verdade. A visão da palidez de Isabel o deixava muito pertur­bado. Aquele vinha sendo seu pior pesadelo.

Um barulho interrompeu-lhe as tristes divagações e ele se virou para a porta. Symonne estava parada na soleira.

— Uma circunstância infeliz abateu-se sobre a afilhada da rainha Mathilda — ela afirmou.

— Sir Roger, como sempre, não consegue manter a boca fechada — respondeu Anvrai, antes de levantar-se e andar até a janela.

— Teria sido melhor que a ligação de Isabel com a rainha da Inglaterra fosse ignorada nos domínios do rei escocês.

— Não tenha receio de mim, cavaleiro Anvrai — Symonne disse, com gentileza. — Foi meu marido quem não recebeu favores do rei Guilherme. Por outro lado — Symonne abaixou o tom de voz —, eu ainda tenho um relacionamento cordial com Guilherme.

— Como assim?

— De tempos em tempos, encontro uma maneira de fazer chegar informações úteis aos ouvidos do rei.

— Tais como...

— Um exemplo. No momento conheço detalhes do exército de Malcolm que vai para o norte ao encontro de nosso rei. Sei quantos são os arqueiros e o número de espadachins.

Anvrai arregalou os olhos. Uma informação como aquela tinha um valor inestimável.

— Milady sabe onde o rei Guilherme se encontra e como fazer chegar a mensagem até ele?

Isabel gemeu e murmurou o nome de Anvrai sem acordar. Symonne virou-se para observar a enferma.

— Lady Isabel não gosta de sir Roger — ela comentou. Anvrai não respondeu àquela declaração que fora destinada a arrancar alguma confissão mais íntima. Apesar do que Sy­monne lhe contara, tinha por hábito desconfiar de quem se mostrava amigo demais. Era provável que estivesse enganado a respeito de Symonne. Mas não custava tomar cuidado.

Symonne fitou-o com expressão interrogativa, procurando entender. Anvrai perguntou a si mesmo há quanto tempo a dama loira estivera na porta, analisando-o e... escutando.

— Mandei um mensageiro, meu primo, espreitar o exército do rei Malcolm. Felizmente, ninguém na corte notou-lhe a ausência. Se a rainha houvesse percebido sua partida, ele poderia ter um castigo não muito leve.

Anvrai raciocinava com rapidez. Seria uma grande vanta­gem ficar sabendo, antes de marchar para o campo de batalha, da verdadeira situação das forças inimigas e também qual a sua localização. Se Symonne se arriscara tanto para obter tais dados, era provável que planejasse levá-los ao conhecimento do rei Guilherme.

 

Isabel sentiu os olhos secos. Ardiam muito. A boca tinha gosto amargo e a língua parecia grossa. Procurou levantar-se. Conseguiu o intento com muita lentidão e grande dose de sacrifício.

Onde estaria Anvrai?

O quarto era diferente. Demorou alguns minutos para en­tender que não estava nos aposentos do sacerdote. Também não estava sozinha como lhe parecera a princípio. Tillie estava deitada com Belle em um catre ao lado da cama. As duas dormiam.

Quando viera para esse lugar? Admirou-se por não ter ne­nhuma lembrança dos acontecimentos.

Afastou as madeixas úmidas do rosto e notou que estivera transpirando. O corpo suado a incomodava. Cada movimento aumentava a dor na coxa. Lembrou-se de um sofrimento ter­rível na perna que parecia ter melhorado.

Desejosa de tomar um banho como somente Anvrai sabia preparar, teve de contentar-se em usar a água quente que estava em uma panela na lareira para fazer as abluções. Limpou os dentes, lavou a boca e sentiu-se melhor.

Na outra parede, viu encostada a arca que fora mandada para os aposentos da igreja. Abriu a tampa e tirou uma camisa limpa.

Mancando, foi até a lareira e acrescentou mais lenha às chamas. Procurou não fazer ruído para não acordar Tillie nem Belle.                                                                      

Onde estaria Anvrai?

Desde a fuga da aldeia escocesa, haviam passado todas as noites um na companhia do outro. Seu desejo mais ardente era que nunca mais se separassem.

Teria de convencê-lo de que tudo daria certo. Voltou para a cama e tornou a deitar-se. Dormiu até a luz da manhã atravessar as janelas estreitas. Belle, acordada, exi­gia comida em altos brados. — Tillie, onde...

A pergunta de Isabel foi interrompida por Roger que entrou no quarto sem bater.

— Disseram-me que a sua febre havia cedido. Na opinião de Desmond, o pior já passou. Onde estaria sir Anvrai?

Isabel puxou a manta até o queixo e esperou Roger apro­ximar-se. Bem vestido, como estivera em Kettwyck, barbeado, com os cabelos bem aparados, atraente e bem-arrumado, atrai­ria a atenção de qualquer jovem.

Então por que não ficava contente ao vê-lo? Talvez por saber que o rosto bonito escondia uma centena de defeitos. E o rosto deformado de Anvrai, uma centena de qualidades.

— As criadas providenciarão um banho — afirmou Roger. — E mais tarde, uma refeição.

— Estamos na fortaleza de Dunfermline?

— Isso mesmo, lady Isabel. Milady estava muito doente para ficar na igreja. Sir Anvrai não tem capacidade para cuidar de enfermos graves.

— Quando... foi que sir Anvrai me trouxe para cá? Ele a fitou de esguelha.

— Milady não se lembra... Há quatro dias, lady Isabel. Es­teve febril e delirando a maior parte da semana.

Ela fitou o céu pela janela do quarto. Deitada, não podia ver o solo nem as árvores. Teve um acesso de náusea ao supor que estivesse em um quarto no alto de uma das torres. O dia estava cinzento e caía uma chuva fina, miúda e persistente. E continuaria nublado até que Anvrai voltasse para ela.

Tinham dormido juntos há quatro dias ou mais?

Persistia uma vaga lembrança de Anvrai neste quarto, se­gurando-lhe as mãos, tocando em sua testa, falando em voz baixa e terna.

O médico saxão viera e lhe machucara a perna. Parecia ter queimado o ferimento e se impacientara com a falta de cola­boração da paciente.

— Tillie me ajudará a tomar banho — ela contestou. Roger sacudiu a cabeça em uma negativa firme.

— Lady Isabel, há outras criadas muito mais experientes que lhe prestarão um serviço digno de uma dama nobre.

— Eu quero que Tillie fique para me ajudar. Roger aproximou-se da lareira.

— Milady é muito teimosa.

Ela deu de ombros. Seus defeitos não eram da conta de sir Roger.

As criadas entraram com uma tina, seguidas por servos que traziam água quente. Roger, embora contrafeito, não teve outra escolha a não ser deixar o quarto.

Tillie deitou Belle de costas no catre e a menina ali permaneceu, feliz, agitando braços e pernas.

Isabel levantou a barra da camisa e começou a retirar a atadura amarrada em volta da coxa. Tillie ajudou-a na tarefa.

— Sir Anvrai teve de cortar os fios da sutura.

Ao tirar a última camada de pano, Isabel viu a ferida ver­melha e inflamada. Estremeceu.

— O velho grisalho e barbudo advertiu sir Anvrai que mi­lady poderia não sobreviver.

— Desmond, o médico?

Tillie anuiu, com vários gestos positivos de cabeça.

— O doutor usou várias poções, uma pior que a outra. — A garota fez cara de nojo.

— Ficará uma bela cicatriz. — Embora isso não lhe impor­tasse.

Talvez Anvrai d'Arques se conscientizasse de que Isabel Louvet, de St. Marie, não era tão frágil como ele pensava que fosse.

— Tem razão — Tillie concordou em voz baixa, emocio­nada. — O importante é milady estar viva.

Isabel abraçou a garota com força e Tillie retribuiu, trêmula de emoção. Jamais abandonaria a garota cujo destino provavelmente fora idêntico ao de Kathryn. Pigarreou, para disfarçar o nó na garganta que ameaçava transformar-se em pranto.

— Por favor, Tillie, teste a água do banho.

Tillie verificou a temperatura, acrescentou água quente e deu-se por satisfeita. Isabel tirou a camisa e entrou na banheira.

— Tillie, onde está sir Anvrai? Tillie levantou os ombros.

— Provavelmente dormindo. Ele ficou a seu lado o tempo todo, enquanto milady estava inconsciente.

As palavras de Tillie deixaram-na mais tranqüila, mas a confiança desvaneceu-se ao final do dia. Anvrai não apareceu. Tillie era uma companhia agradável. Permaneceu a seu lado, costurando e fazendo remendos.

A noite chegou e Anvrai não veio.

No dia seguinte, Tillie voltou ao quarto sem a filha. Rece­bera uma cama no dormitório das criadas e outras mulheres haviam se oferecido para cuidar do bebê.

— Milady! Eu deveria ajudá-la a vestir-se.

— Já estou vestida — retrucou Isabel, aborrecida.

— Deixe-me ver então seus cabelos. Eu os escovarei e fa­remos um penteado. Milady terá de encontrar-se com a rainha!

Isabel não demonstrou entusiasmo. Mas deixou que Tillie se azafamasse em arrumar-lhe os cabelos e ajeitar os detalhes do vestido. Quando Roger entrou, não conseguiu disfarçar o desapontamento.

Ele insistiu em ampará-la para descer a escadaria.

— Posso andar sozinha, sir Roger.

— Há um número grande de degraus, lady Isabel — ele insistiu.

— Obrigada, sir Roger, eu me arranjo. Descerei devagar. No convento, aprendera a controlar a vertigem apoiando-se na parede da escadaria quando era preciso descê-la. Naquele momento, fez o mesmo. Evitou olhar para adiante do balcão; apesar de ansiosa para encontrar Anvrai. Acreditava que seu nome fora incluído na lista dos que a acompanhariam na au­diência com a rainha Margarida. Chegou ao degrau inferior e estranhou não ver Anvrai entre a multidão que se aglomerava no salão nobre.

— A rainha Margarida está à sua espera, lady Isabel — avisou Roger.

Ele a conduziu através do ambiente lotado de damas bem vestidas e cavalheiros aprumados. Os nobres formavam pe­quenos grupos que conversavam em voz baixa.

Perto da lareira havia uma cadeira vaga. Do lado oposto, sentava-se a rainha que segurava no colo uma criança pequena. O vestido não era luxuoso, mas o tecido esbanjava a boa pro­cedência. Margarida usava um xale de lã fina preso no ombro com um broche redondo de ouro lavrado que tinha no centro um conjunto de granadas vermelho-escuras.

— Lady Isabel. — A rainha recebeu-a com um sorriso. — Estive rezando por sua recuperação.

— Obrigada, Majestade. Considero-me uma felizarda por suas preces terem sido atendidas. — Tentou fazer uma reve­rência, mas a perna ferida não o permitiu.

— Por favor, sente-se. — O menino no colo da rainha pôs o polegar na boca e encostou-se no peito da mãe. — Meu filho, Edward.

— Um lindo garoto.

Isabel experimentou alívio por poder sentar-se. Ainda zonza pela caminhada, gostaria de contar com o braço forte de Anvrai para ampará-la.

Pelo menos vinte normandos os rodeavam, entre homens e mulheres de todas as idades. A rainha Margarida tomou a sor­rir e dirigiu-se aos circunstantes.

— Por favor, damas e cavalheiros, apresentem-se.

Roger mantinha um relacionamento amistoso com todos, em particular com duas jovens muito bonitas. Os normandos se apresentaram, um a um, e disseram palavras que Isabel não escutou.

Onde estaria Anvrai? Anvrai teria ido para Belmere sem lhe dizer nada?

Apavorou-se. Nem mesmo conseguia responder ao que lhe era perguntado. Roger nomeou-se interlocutor oficial de Isabel e deu as respostas por ela.

Isabel só pensava em encontrar Anvrai, assim que a audiên­cia terminasse.

— Aqui sempre tem sido enfadonho nas semanas que pre­cedem o Dia de Todos os Santos — a rainha afirmou, depois de algum tempo. — Celebraremos sua recuperação, lady Isa­bel. Cuilén — ela chamou o homem que se mantinha afastado do círculo dos normandos —, cuide disso para nós. Amanhã teremos um banquete com muita música e vinho à vontade. Isso abrilhantará os dias tristonhos.

De um dos cantos mais escuros do salão, Anvrai observou Isabel empalidecer e largar-se na poltrona. Ela estava exausta e Roger deveria tê-la levado ao quarto há algum tempo.

O rapaz ainda não amadurecera, apesar de todas as adversidades que enfrentara. Era uma pena que as experiências pelas quais havia passado não o tivessem deixado mais perspicaz. Aquela altura, sir Roger parecia-lhe o mesmo jovem despreocupado que cortejara Isabel nos jardins do lorde de Kettwyck.

Não se surpreenderia se Neuville voltasse a receber as aten­ções de Isabel. Sir Roger tinha boa aparência e a estrutura franzina ganhara alguns músculos. O valor de seu patrimônio e a afiança com o rei Guilherme não haviam mudado. Roger de Neuville era exatamente o tipo de marido que lorde Henri gostaria de aceitar para a filha.

— Sir Anvrai.

Ele se virou. Symonne se aproximara, vestida com uma capa negra. Segurou-o pelo braço e cobriu os cabelos com o capuz.

— Venha comigo.

Anvrai olhou Isabel mais uma vez e saiu com Symonne. Seguiu-a pelo pátio até a estrebaria. Lá dentro, os cavalariços limpavam e escovavam os animais.

— Tenho algo para lhe mostrar. — Symonne levou-o até a baia mais afastada.

Dentro do cercado, estava um magnífico cavalo ruão cas­trado. As narinas do animal se alargaram quando viu Symonne. Anvrai acariciou-lhe o focinho.

— Ele foi treinado para vencer rapidamente grandes dis­tâncias — ela explicou.

— Suas pernas são longas e musculosas.

— Ele o levará para o norte — Symonne abaixou o tom de voz —, onde as tropas do rei Guilherme se encontrarão com as do rei Malcolm. Leve minha mensagem para o rei e volte antes que alguém note sua ausência. Anvrai ergueu a sobrancelha.

— Pensei que milady tivesse seu próprio mensageiro. Symonne sacudiu a cabeça com desalento.

— O rei Guilherme não conhece meu primo. Ele provavel­mente será morto ao se aproximar das tropas e nem chegará a entregar minha mensagem. Será um risco inaceitável, agora que conto com sua colaboração.

— Quem poderá afirmar que eu não serei assassinado antes de poder dizer uma única palavra?

— Sir Anvrai, eles o reconhecerão. Até eu sabia quem o senhor era, ainda que sua aparência não seja tão repulsiva como diziam ser. Perdoe-me, mas ouvi falar que seu rosto cheio de cicatrizes era assustador. — Embora fosse uma tarefa difícil, lady Symonne procurou não proferir as palavras como um insulto. — O senhor é muito mais apropriado para essa missão de que sir Ranulf.

Anvrai passou a mão pelos músculos flexíveis do pescoço do cavalo, das costas e dos flancos, enquanto considerava o teor da proposta de Symonne. Na verdade, ficar em Dunfermline afastado de Isabel era um verdadeiro inferno. Ela estava em segurança e o ferimento cicatrizava depressa. Dentro de poucos dias, ela se encontraria em condições de prosseguir viagem rumo à Inglaterra. O que acontecesse a partir dali não era mais sua responsabilidade.

— Precisarei de um mapa.

 

Isabel passou mais um dia sem ver Anvrai. Vestiu-se com esmero para a festa da rainha Margarida. Camisa dourada e túnica carmim com enfeites dourados. Tillie ajudou-a com um penteado de tranças que foram presas em um coque baixo. Satisfeita com o resultado, Isabel imaginou que, ao vê-la, Anvrai não mais a evitaria.

As esperanças começaram a desmoronar quando Roger apa­receu para conduzi-la até o salão. Sem sir Anvrai, não encon­trava nenhuma disposição para celebrações.

A música foi iniciada assim que eles desceram a escada. Isabel encontrou uma excelente desculpa para não dançar. O ferimento na perna. Coxeando com exagero, sentou-se ao lado da rainha. Entreteve-se em observar a confraternização de escoceses e normandos no salão nobre.

Reconhecia que sir Anvrai tinha certo interesse por ela. Mesmo assim, ele a abandonara, deixando-a entregue aos cui­dados de sir Roger. A mensagem implícita não poderia ser mais clara. Anvrai chegara a verbalizar várias vezes a neces­sidade de um distanciamento. Mesmo assim, ela não perdera a esperança...                                                                     .

— Lady Isabel, as iguarias de nosso repasto não estão lhe agradando? — a rainha indagou, gentil.

A rainha Margarida sentava-se à direita de Isabel. Roger, à esquerda, mantinha uma conversa animada com a dama que estava a seu lado.

— Perdoe-me, Majestade, eu... — Isabel ruborizou-se. — Creio que meu apetite deve ter sido afetado pela enfermidade.

A rainha concordou.

— Ainda bem que milady gostou do vinho.

Isabel fitou a própria taça que fora completada pelo menos duas vezes. Não saberia dizer se o sabor lhe.agradava ou não.

— Mais uma vez, Majestade, peço que me desculpe. Sei que esta noite serei uma péssima companhia. Não me encontro bem-disposta.

— Se é assim, minha querida, talvez fosse melhor milady voltar aos seus aposentos. — A rainha Margarida agia com solicitude materna, embora fosse pouco mais velha de que Isa­bel. — A culpa é minha. Eu deveria ter esperado mais um pouco. Ainda é cedo para trazê-la ao convívio social.

— Não, Majestade, não é isso. É que eu...

Isabel não conseguiu articular mais nenhuma palavra. An­vrai entrou no salão nobre, acompanhado por Symonne. O casal encaminhou-se para ocupar lugares na extremidade do tablado, mas a rainha acenou-lhes com a mão, pedindo para que se aproximassem. Anvrai e Symonne aceitaram a convo­cação, mas evitaram olhar para Isabel.

Anvrai e a dama normanda curvaram-se diante da rainha.

— Majestade — disse Anvrai com firmeza —, venho pe­dir-lhe permissão para ir a Kettwyck. Tenho de informar a lorde Henri que sua filha se encontra em segurança e pedir-lhe uma escolta para levá-la de volta para casa.

Anvrai estava ansioso para livrar-se de sua presença, Isabel refletiu, amargurada. Nem mesmo queria esperar ela se recu­perar e poder acompanhá-lo.

— Espere um pouco, sir Anvrai — Roger interveio. — Lady Isabel está noiva e por isso...

— Sir Roger, o senhor não é meu...

— Lady Isabel, Sua Majestade já me concedeu permissão para ir a Kettwyck e depois viajar até a propriedade de minha família. Lorde Henri não é o único que está preocupado.

— O senhor poderia ir junto, sir Roger — a rainha pretendeu solucionar o problema. — Deixem lady Isabel conosco. Ela será muito bem cuidada em minha corte.

— Não! — Os dois homens responderam em uníssono. Isabel ergueu-se, sem conter a fúria. Era intolerável ser ignorada tanto por Anvrai quanto por sir Roger. Nenhum deles queria ficar em Dunfermline com ela. No caso de sir Roger, podia considerar uma bênção. Ficaria feliz em ver-se livre dele. Mas sir Anvrai...

— Com sua licença, Majestade. Estou muito cansada e minha perna está latejando. Eu lhe agradeço pelo fino banquete e pelas diversões tão bem escolhidas.

Isabel fez um reverência que não comprometeu o desconforto alegado. Atravessou o salão apinhado de gente, rezando para que ninguém a seguisse. Mesmo subindo a escada devagar, a perna doía tanto quanto o coração.

Roger era mesmo um grande idiota, Anvrai revoltou-se.

Graças a isso, o plano arquitetado com auxílio de Symonne fora reduzido a escombros. Ir para a Inglaterra seria uma razão legítima para sair de Dunfermline. A única que lhe permitiria viajar com autorização da rainha.

Pretendera sair às claras e rumar para Kettwyck de maneira ostensiva. Quando estivesse longe de Dunfermline, voltaria em direção ao norte e para Abernethy, onde estava localizada a esquadra de Guilherme. Cumpriria sua missão com rapidez, levaria a mensagem para Guilherme e iria para Belmere. Ninguém em Dunfermline desconfiaria de nada. Nem mesmo Isabel.

— Teremos de mandar sir Roger ao encontro do rei Gui­lherme — Symonne argumentou, aborrecida, caminhando ao lado de Anvrai, depois de terem saído do salão nobre.

— Não — Anvrai discordou da idéia.

O rapaz não tinha argúcia nem sutileza para ir ao encontro do exército de Guilherme, passar ao largo de Dunfermline e voltar a Kettwyck. Anvrai levantou a cabeça e observou a ja­nela do quarto às escuras de Isabel. Lamentou tê-la aborrecido. Fora fácil decifrar-lhe o amuo na fisionomia delicada. Tivera de congregar toda a sua força de vontade para não ir atrás dela.

— O senhor não confia nas habilidades de sir Roger — afirmou Symonne.

Anvrai fitou o chão. Não lhe cabia a responsabilidade de consolar Isabel, muito embora aquele fosse seu maior desejo.

— Eu o conheço bem. Estivemos juntos em circunstâncias desfavoráveis — explicou ele a Symonne.

— De qualquer forma, temos de avisar Guilherme que o rei Malcolm pretende ir a seu encontro.

Anvrai concordou e tratou de concentrar-se no assunto em questão. Duncan, filho de Malcolm de seu primeiro relacio­namento, poderia ser um refém valioso. Para Guilherme seria vantajoso saber da presença do rapaz e também ficar informa­do sobre detalhes do exército de Malcolm. Muitas vidas po­deriam ser salvas, tanto escocesas quanto normandas, se fosse possível evitar uma batalha.

— Será preciso encontrarmos um motivo para os senhores se ausentarem de Dunfermline por alguns dias.

— Lady Symonne, ou eu ou sir Roger teremos de ficar com lady Isabel. Dunfermline é território inimigo. Lady Isabel é afilhada da rainha Mathilda. Ela poderia ser usada como refém em um contragolpe. O que seria ainda mais grave.

— Leve-a com o senhor.

— Não.

Symonne arqueou uma sobrancelha diante da negativa abrupta.

— Seria muito perigoso, lady Symonne.

— Ficar aqui poderá ser pior.

Anvrai não queria arriscar-se a tirá-la de Dunfermline, expondo-a novamente ao perigo. Isabel ficaria mais segura ali, mesmo sob os cuidados de Roger. Ninguém pensaria em rap­tá-la nem ela seria vítima de outra flecha.

— Voltarei antes que dêem por minha falta.

— Eu não teria tanta certeza. A rainha Margarida é bem astuta. Não é fácil enganá-la.

A situação se complicava e aumentavam os riscos para a integridade de Isabel. Anvrai angustiava-se pela noção de que seria difícil protegê-la. Com a guerra em perspectiva, todos ficariam expostos. Recriminou-se.

Não podia esquecer o ornar de Isabel. Ela acreditava que fora descartada e nada poderia ser mais falso. Ele a desejava em todos os minutos dos dias... e das noites. Mas preferia perder Isabel naquela altura dos acontecimentos do que arris­car-se a perder o coração e a alma mais tarde.

— Talvez a rainha Margarida possa reconsiderar a idéia de mandar sir Roger a Kettwyck — Anvrai conjeturou. Se ela souber que ele...

— Sir Anvrai, a rainha Margarida não mudará de opinião. — Symonne contestou. — A rainha é muito determinada em suas decisões.

Ele não gostava de subterfúgios. Por sua vontade, iria diretamente para Abernethy ou Stirling, onde os exércitos de Guilherme estavam acampados.

— Tive uma idéia! — exclamou Symonne, passando o braço no de Anvrai. — Deixaremos Dunfermline juntos. Meu marido tem uma cabana de pesca em uma praia não longe daqui. Farei com que pensem que iremos para lá com a fina­lidade de um encontro amoroso clandestino.

E Isabel ficaria pensando o pior. Ela imaginaria que o in­teresse dele por Symonne era de natureza bem diversa da real. Anvrai soltou-se do braço de Symonne e passou a mão nos cabelos.

— Deve haver outra maneira...

— O senhor pode pensar em outra razão para sumir de Dunfermline?

Ele suspirou e permaneceu em silêncio por alguns minutos.

— Eu poderia fingir-me de doente e ficar em meu quarto.

— E os criados? E Desmond? A rainha certamente mandará aquele velho feiticeiro cuidar de sua enfermidade. A rainha Margarida não quer que vassalos do rei Guilherme encontrem a morte em Dunfermline. E na ausência do rei Malcolm, Sua Majestade torna-se mais cuidadosa ainda.

Eles pararam diante da casa onde Symonne morava.

— E o que diria seu marido, se milady desaparecesse co­migo por uns dias?

— Richard? — Symonne deu uma risada amarga. — Ele tem pouco interesse por mim. Richard passa a maior parte do tempo embriagado. — Suspirou, lânguida. — Essa é a história de minhas noites. Mas o senhor, sir Anvrai... — Symonne aproximou-se até seu busto encostar no peito musculoso e le­vantou a cabeça. Os lábios de ambos ficaram a poucos centímetros de distância. — Quando o senhor voltar de Abernethy, talvez possamos fazer um uso prazeroso e verdadeiro da cabana de caça.

Anvrai retraiu-se, desinteressado na oferta de Symonne.

— Milady, o oferecimento é tentador, mas eu... — Depois de tudo o que ocorrera entre ele e Isabel, uma ligação daquele tipo lhe parecia inconseqüente. — Milady é casada...

Ele sentiu um nó na garganta ao imaginar a reação de Isabel quando ouvisse falar sobre tal relacionamento e tratou de mudar de assunto.

— Milady poderia fornecer-me uma prova? Alguma coisa que pertença à rainha Margarida?

— Para que finalidade?

— Tenho em mente falar também com o rei Malcolm. — Anvrai não se considerava um menino de recados.

Symonne arqueou as sobrancelhas.

: Traga-me um objeto de uso pessoal da rainha Margarida. O rosário, talvez. Isso me daria -passe livre para chegar ao monarca escocês.

— E o que fará depois?

— Direi que fui mandado para dar-lhe informações sobre a superioridade das tropas do rei Guilherme. Falarei sobre os navios em Tay e sobre a armada que fechou as saídas de Stirling.

Symonne inclinou a cabeça de lado e fitou-o com admi­ração.

— Tem razão. O rei Malcolm seria um tolo em compro­meter seu exército contra o poderio do rei Guilherme.

— Se eu conseguir executar meu plano, milady terá de prometer-me não descuidar da segurança de lady Isabel.

— Com toda a certeza. Assim que ela estiver em condições de viajar, nós a tiraremos de Dunfermline.

— Ainda temos o problema daquela garota — ele a lem­brou. — Lady Isabel não partirá sem levar Tillie e o bebê.

— Isso sem dúvida tornará a fuga mais complicada, mas eu darei um jeito.

Combinaram de encontrar-se no dia seguinte pela manhã e Anvrai foi embora. Voltou à fortaleza e subiu a escadaria. Pensou em como explicar tudo a Isabel, sem piorar as coisas. Resolveu nada dizer. Seria mais conveniente que Isabel pen­sasse o pior a respeito dele. Assim ela poderia quebrar todos os liames porventura existentes.

 

Anvrai cavalgou para o norte. O cavalo era inteligente, tinha andar seguro e seguia pelos caminhos tortuosos a galope. Pre­cisava convencer-se de que Symonne e seu primo haveriam de tirar Isabel de Dunfermline antes da rainha Margarida tomar conhecimento de sua missão. Caso contrário, Isabel correria perigo de tornar-se uma refém.

Já estava escuro quando alcançou o exército do rei Guilher­me acampado a leste de Stirling. Um grande número de tendas fora erguido em uma clareira. No centro do acampamento, uma estrutura enorme de lona que mais parecia uma residência. Sentinelas armados postavam-se na entrada. Anvrai desmontou e levou o cavalo até a barraca principal.

— Alto! — um dos guardas gritou.

Vários guerreiros desembainharam a espada. Anvrai levan­tou as mãos espalmadas, para demonstrar que não empunhava nenhuma arma.

— Sir Anvrai! — Um deles o reconheceu. — Abaixem as armas, homens!

A aba de lona que servia de porta foi descerrada e Robert du Bec apareceu na entrada.

— Anvrai — ele estendeu a mão. — É uma surpresa en­contrá-lo aqui. O senhor está muito longe de Belmere.

— E o senhor nem pode imaginar o que aconteceu. Trago notícias para o rei Guilherme.

— Entre, entre. — Robert estava curioso. — Conversare­mos mais à vontade lá dentro.

O rei Guilherme estava sentado a uma mesa no meio da tenda, examinando mapas. Escutou o barulho e levantou o olhar. Fitou os recém-chegados com severidade.

— Majestade — Anvrai fez uma reverência —, trago no­tícias de Dunfermline.

O rei Guilherme era quase tão alto quanto Anvrai, porém mais encorpado. Nas feições, estavam inscritas a vontade fér­rea e a determinação de assegurar a Inglaterra como seu reino. O que não vinha sendo uma tarefa muito fácil.

O monarca depositou um peso sobre as cartas geográficas para mantê-las abertas e levantou-se.

— Quais as novas, Anvrai? Fale logo.

— Duncan, o filho do rei Malcolm, vai para Abernathy com o pai.

O rei Guilherme cruzou as mãos nas costas e começou a andar de um lado a outro. Anvrai revelou o que sabia sobre o exército escocês. Número aproximado de armas e de homens e onde planejavam situar-se. Com o mapa que Symonne lhe entregara, descreveu os terrenos e a estratégia do rei Malcolm. O rei Guilherme ordenou a Robert para trazer dois de seus comandantes. Assim que eles chegaram, os homens estudaram os mapas e iniciaram uma discussão sobre as táticas para ven­cer o rei Malcolm.

— Onde está sua armadura, Anvrai? — o monarca pergun­tou, de testa franzida. — Eu queria que o senhor comandasse o lado norte do exército.

— Majestade, eu não tenho armadura. Cheguei a Dunferm­line depois de enfrentar vários contratempos.

Anvrai fez um breve resumo do que acontecera. Relatou o rapto de Isabel e explicou que, no momento, a afilhada de Mathilda encontrava-se na fortaleza do rei Malcolm.

— O senhor está se referindo à filha de Henri Louvet, lorde de Kettwyck?

— Sim, Majestade. E por isso articulamos um plano. Sir Ranulf de Montbray ficou encarregado de retirá-la de Dun­fermline antes que a rainha Margarida fique sabendo da derrota escocesa.

O rei Guilherme passou a mão no rosto.

— Isso seria insuficiente para evitar que mais algum mal acontecesse a lady Isabel. Minha rainha ficará muito preo­cupada.

Anvrai também. Mas ele resolvera manter-se afastado do caso. Uma vez encerrada a missão, retornaria para Belmere. De volta para a caserna e para os homens que comandava.

De volta para a sua existência rígida e sem graça.      

— Sir Roger de Neuville garantirá a segurança de lady Isabel Louvet?

— Sir Roger já partiu para Kettwyck. O rei Guilherme franziu a testa.

— Com a permissão da rainha Margarida?

Anvrai anuiu.                                                                

— Ele planejou mandar uma escolta normanda de volta a Dunfermline para levar lady Isabel a Kettwyck. Muito antes disso, lady Isabel estará longe de Dunfermline.

— Sir Anvrai, o senhor ainda não me contou tudo, não é verdade?

— Majestade, nada que seja pertinente aos assuntos do dia. Minha maior esperança é que lady Isabel possa sair da forta­leza do rei Malcolm antes que a rainha Margarida tome co­nhecimento de meus atos.

Anvrai tirou da algibeira amarrada no cinto um broche de ouro e pedras preciosas que Symonne lhe entregara.

— Majestade, com sua permissão, levarei este broche da rainha Margarida para o rei Malcolm. Como se eu tivesse de entregar-lhe uma mensagem da rainha.

O rei Guilherme examinou a jóia e revirou-a nas palmas calosas.

— O senhor disse que isto pertence à rainha Margarida?

— Sim, Majestade.

O monarca segurou o broche com o punho fechado e voltou a andar de um lado a outro.

— E como o senhor pretende ter acesso ao rei Malcolm?

— Estou pensando em apresentar-me como um mensageiro da rainha Margarida. Eu darei a ele uma avaliação superes­timada do exército anglo-normando. Implorarei, em nome da rainha, para que ele se entregue.

Sua Majestade considerou por alguns instantes a proposta de Anvrai d'Arques.

— Este é um bom projeto, Anvrai. Intimidado, Malcolm provavelmente não haverá de querer enfrentar uma batalha. Na atual conjuntura, eu preferia mil vezes uma negociação pacífica com os escoceses. — O rei devolveu-lhe o broche. — Seu plano é bem fundamentado, mas é preciso fazê-lo fun­cionar de maneira correta. Quando terminar a missão, volte rapidamente para Dunfermline e saia de lá com lady Isabel. Leve-a para Durham, onde nós nos encontraremos.

— Durham, Majestade?

As ordens do rei afastaram um peso dos ombros de Anvrai. Não teria de confiar em mais ninguém para retirar Isabel de Dunfermline. Alguns dias a mais de ausência de Belmere não fariam muita diferença.

— Essa notícia sobre o ataque a Kettwyck deixaram-me perturbado. O que houve com Henri Louvet? Ele sobreviveu?

— Não sei. Majestade.

O rei Guilherme mais uma vez recomeçou a andar de um lado a outro, com as mãos às costas.

— Henri Louvet não está entre nossos homens. Se ele foi assassinado, lady Isabel e sua irmã ficarão sob minha guarda.

E o futuro de Isabel seria decidido pelo rei Guilherme.

— Robert, mande dois cavaleiros a Kettwyck — o rei or­denou. — Quero saber a situação da fortaleza e as condições de Henri Louvet. Os homens devem voltar para Durham, onde aguardarão por minha chegada. Não me arriscarei a mandar lady Isabel a Kettwyck sem saber se o castelo foi ou não to­mado pelos escoceses.

— Sim, Majestade.

Robert fez uma mesura e despediu-se.

— Seja bem-sucedido em sua missão junto ao rei Malcolm. — O rei Guilherme encarou Anvrai com cenho franzido. — Será conhecido para sempre como o normando de um só olho que enganou o rei da Escócia.

Anvrai sacudiu a cabeça.

— Esse não é o tipo de notícia que um rei gostaria de ver divulgada, não é mesmo, Majestade?

O monarca deu uma leve risada, permitindo a si mesmo um pequeno momento de descontração.

— Acho que não. — Novamente sério, estendeu a mão em despedida. — Deus o acompanhe, Anvrai. Eu o encontrarei em Durham.

Anvrai não perdeu tempo. Saiu imediatamente rumo a Abemethy. Considerou os mapas que havia examinado em de­talhes e concluiu que chegaria às cercanias do acampamento do rei Malcolm bem antes da madrugada. Ainda poderia dor­mir algumas horas antes de encontrar-se com o rei da Escócia e voltar para Dunfermline antes do anoitecer.

 

— Lady Isabel, acorde.

Ela abriu os olhos e, entre assustada e sonolenta, viu o rosto de Symonne, no qual se refletia a luz bruxuleante de uma vela.

— O que houve? Aconteceu alguma coisa com sir Anvrai? Ele está longe há muitos dias e...

— Chegou o momento de sairmos daqui.

Isabel não confiava na dama normanda responsável pelo afastamento de Anvrai.

— Estamos no meio da noite e...

— Logo mais os guardas dos portões terão motivos para se distrair. Será necessário que nos apressemos ou perderemos a oportunidade de fugir.

Isabel pôs as pernas para fora da cama, enquanto a outra juntava numa sacola os pertences que nela caberiam.

— Rápido. Vista-se. Encontraremos sua criada e o bebê do lado de fora.

— Tillie? Para onde nós...

— Meu primo está à nossa espera com os cavalos perto da estrebaria. Espero que milady possa cavalgar.

— Posso, sim. Minha perna está dolorida, mas o corte está quase cicatrizado. Lady Symonne, o que aconteceu com sir Anvrai? Por que ele desapareceu? Ele sabe dos seus planos?

— Sir Anvrai está escondido na igreja de Culdee. Nós o encontraremos lá.

Eram muitas informações fantasiosas de uma vez só, Isabel cismou. Não tinha certeza se estava acordada, nem se tornaria a ver Anvrai. Além de não confiar em Symonne, não a supor­tava. A presunçosa a tratava como se não fossem verídicos os boatos que corriam de boca em boca. Todos em Dunfermline comentavam a respeito da bela dama normanda e seu novo amante vigoroso.

— Por que se mostra relutante, lady Isabel?

— Existe algum motivo para que eu possa confiar em milady?

Symonne suspirou e segurou-lhe as mãos.

— As aparências enganam, lady Isabel.

— O que milady quer dizer com isso?

— Tive de ausentar-me enquanto sir Anvrai esteve fora. Nós não estávamos juntos nos últimos dias.

Anvrai poderia muito bem ter mandado a amante inventar uma desculpa.

— Não estou entendendo. — Isabel experimentou um gosto amargo na boca.

— Agora não temos tempo para explicações — Symonne argumentou. — Precisamos nos apressar.

— Não me importo com suas explicações. — Isabel esfre­gou os nós dos dedos no peito, como se isso ajudasse aplacar a dor que sentia no coração.

Se Anvrai não estivera com Symonne... De qualquer forma, ele não a considerava uma pessoa em quem se poderia confiar. Ele fora embora, sem dizer para onde iria, sem ao menos se despedir. Permitira que ela pensasse o pior a respeito dele.

— Sir Anvrai não tem culpa — a outra tentou apaziguá-la. — Teve de agir com urgência. Não houve tempo para mais nada.

— Os atos de sir Anvrai não me dizem respeito — Isabel contrapôs, ainda mais aborrecida e confusa.

Anvrai partira com aquela mulher e a fingida ainda preten­dia fazê-la crer que não haviam estado juntos. Decerto Sy­monne imaginava que Isabel Louvet fosse uma idiota.

Todos em Dunfermline haviam tomado conhecimento dos encontros amorosos de Anvrai com aquela mulher na cabana de pesca do marido dela. Isabel fora a ultima a ficar sabendo do caso, embora devesse ter suspeitado bem antes. Desde a chegada a Dunfermline, Anvrai não a procurara mais, nem mesmo para uma conversa. E ela o vira várias vezes em uma prosa animada com a beldade normanda.

— Depois de termos saído daqui, poderemos esclarecer to­das as suas dúvidas, lady Isabel. Por enquanto terá de conten­tar-se com o que lhe contei.

A insistência quase dramática de Symonne acabou por con­vencer Isabel a segui-la. Elas atravessaram o salão nobre de­serto e escuro, e encontraram-se com Ranulf perto da cavala­riça. Ele ajudou Isabel a montar e fez o mesmo com Tillie.

A jovem mãe carregava Belle junto ao peito numa sacola de lã grossa pendurada por uma alça que passava pelo ombro. Depois de todos montados, seguiram pelas sombras forma­das pela parte interna da muralha da fortaleza. De repente, Ranulf fez um sinal e eles se detiveram. Um grande número de cavalos entrava a galope no pátio, pisoteando tudo o que encontravam pela frente. Instalou-se uma confusão que au­mentou a cada minuto. Seguiram-se gritos dos guardas que tentavam separar os garanhões alvoroçados das fêmeas ater­rorizadas. Enquanto isso, Ranulf conduzia, sem ser notado, o grupo para fora dos portões da fortaleza.

Com os sentinelas ocupados, a pequena comitiva de Ranulf alcançou a estrada ao largo da fortaleza do rei. Cavalgaram o mais rápido que a escuridão lhes permitiu.

Não se detiveram nem quando Anvrai os alcançou. Conti­nuaram na rota prevista até se aproximarem do mar. Quando chegaram à igreja, ainda não havia amanhecido.

Isabel teve vontade de falar com o dissimulado Anvrai d'Arques. Gostaria ao menos de perguntar-lhe por que a tro­cara por Symonne.

Isabel não disse uma só palavra. Mantinha-se imersa num silêncio assustador. Anvrai vinha na retaguarda e foi impos­sível não lhe notar a postura rígida. Ele sentiu um vazio interior e disse a si mesmo que Isabel na certa acreditara nos rumores que haviam se espalhado por Dunfermline.

Anvrai d'Arques e Symonne de Montbray eram amantes.

Symonne conhecia bem o caminho e eles não tiveram pro­blemas em alcançar o estuário. Desmontaram ao lado do longo ancoradouro e Anvrai recordou-se de quando haviam fugido da aldeia escocesa. Apesar das poucas esperanças de que so­brevivessem, o espírito corajoso de Isabel o inspirara. Naquela altura, composta e rígida, mantinha-se afastada dele e de olhar fixo nas águas escuras.

— Uma balsa nos levará ao outro lado. Por uma boa quantia de moedas, o barqueiro não fará comentários a respeito de nossa passagem — Symonne esclareceu.

— Até que receba uma oferta melhor — comentou Anvrai, desviando o olhar do rosto de Isabel.

Symonne discordou com um gesto de cabeça.

— Há cerca de um ano, durante uma travessia, evitei que o filho pequeno do barqueiro se afogasse. Ele me deve a vida de seu menino.

Chamaram o barqueiro que recusou o dinheiro de Symonne. O homem assegurou que a travessia de todos e o silêncio dele eram em pagamento pela vida de seu filho.

Isabel esperou no mais completo mutismo, segurando Belle no colo, enquanto os homens levavam os cavalos para a balsa. Anvrai refletiu se Isabel também estaria pensando na fuga terrível que haviam enfrentado no pequeno barco de vime rou­bado. Ela nada demonstrava. Ereta e orgulhosa, mantinha Bel­le de encontro ao peito.

Voltou a atenção para os cavalos. Prendeu-os com segu­rança para o trajeto que os levaria ao lado meridional do es­tuário. Ranulf prestou assistência a Symonne, que estava mais à frente. O barqueiro segurou o braço de Tillie e ajudou-a a embarcar.

— Permita-me levar Belle. — Anvrai aproximou-se, hesitante.

Ele segurou o bebê no colo e apertou a mão fria de Isabel na sua. Ao senti-la estremecer, teve de controlar-se para não a abraçar. Seria uma atitude inconveniente para ambos. Mas não pôde evitar a imagem de como seria carregar o próprio filho no colo e ao mesmo tempo abraçar os ombros de Isabel.

Depois do embarque de todos, a balsa afastou-se da margem e Anvrai devolveu a criança para Isabel. Recriminou-se pelos pensamentos infundados.

Seu futuro não incluía esposa e filhos. Além de sua situação econômica precária, aquele tipo de ligação era muito tênue e poderia ser perdida com facilidade.

A aurora chegou, clara e fria. A balsa aportou na margem sul. Isabel mordeu o lábio para impedir que o mesmo tremesse. Anvrai pouco falara com ela, mas também se mantivera afastado de Symonne.

— Lady Isabel — Anvrai avisou-a —. temos de sair daqui com presteza. Tillie não está acostumada a cavalgar. Ela virá comigo, se milady consentir em levar Belle.

A voz aveludada e profunda de Anvrai a acariciava. Ele se apressou em passar a sacola de lã do ombro de Tillie para o dela. Prendeu-lhe a tira na cintura, depois de afastar a capa.

Isabel cerrou as pálpebras com força para não chorar. Os movimentos de Anvrai representavam uma triste ironia depois de tudo o que ocorrera entre eles.

Com eficiência, mas sem dizer nada, Anvrai voltou Belle para a sacola e, carinhosamente, ajeitou a criança dentro.

— Sir Anvrai — Symonne chamou —, precisamos explicar o que houve, antes de prosseguirmos.

Ele deu de ombros.

— Diga o que quiser, lady Symonne.

Anvrai ajudou Isabel a montar, subiu no próprio corcel atrás de Tillie, incitou o cavalo para a frente e deixou-as para trás.

— Lady Isabel, eu já lhe havia dito que as aparências podem ser enganosas. E foi exatamente o que aconteceu. Nos últimos dias, nós pretendíamos enganar os habitantes de Dunfermline.

— Lady Symonne, ninguém foi enganado — Isabel retru­cou com frieza. — Todos ficaram cientes de seu relaciona­mento amoroso com sir Anvrai. O mínimo que ele deveria ter feito era...

— Milady entendeu mal minhas palavras. Sir Anvrai teve de deixar Dunfermline. Ele não se encontrava dentro das mu­ralhas da fortaleza. Nós não tivemos nenhum encontro, fosse amoroso ou por qualquer outro motivo. Escute.

Isabel teria saído a galope após as primeiras palavras por ela consideradas como mentirosas, se Symonne não a houvesse impedido, segurando-lhe as rédeas do cavalo.

— O rei Guilherme está na iminência de uma guerra com o rei Malcolm. Sir Anvrai foi ao encontro do rei Guilherme com informações sobre o exército escocês e depois dirigiu-se ao acampamento do rei Malcolm.

Isabel nada disse.

— Sir Anvrai não pretendia magoá-la.

Por que Anvrai não lhe revelara o projeto que tinha em mente? Isabel fitou a loira com olhar fulminante.

— Sir Anvrai arriscou-se muito por ter ido ao acampamento escocês. E nós nem sabemos se a manobra teve efeito positivo.

— Que manobra?                                                      

— Sir Anvrai deu ao rei Malcolm motivos para acreditar que os escoceses estavam em inferioridade numérica em relação ao exército do rei Guilherme. Afirmou ainda que a rainha Margarida desejava que ele chegasse a um acordo amigável com a Inglaterra.

Isabel observou a silhueta de Anvrai que se afastava. De­veria ter suposto que o comportamento dele nada tinha a ver com um sórdido caso amoroso.

E nem poderia ter. Anvrai d'Arques não tinha coração. — Quando a rainha souber do que houve, a primeira sus­peita recairá sobre mim, e milady poderia ser tomada como refém. Por isso tivemos de sair apressadamente da fortaleza do rei Malcolm.

Isabel teve assunto suficiente para pensar até o anoitecer, quando chegaram a uma estalagem aconchegante às margens de um rio caudaloso. Por ter cavalgado junto com Anvrai, Tillie tolerou bem melhor o dia de viagem. As pernas de Isabel formigavam e ela mal conseguiu manter-se em pé quando fi­nalmente desmontou.

O estalajadeiro saiu e tomou conta dos cavalos para os via­jantes poderem entrar. Deram-lhe os melhores quartos e a re­feição começou a ser preparada. Isabel procurou por Anvrai, mas ele só apareceu quando o repasto foi servido.

Anvrai a evitava, ela se convencera. Disso não havia como duvidar.

O jantar foi tranqüilo. A mulher do estalajadeiro tomou-se de amores por Belle e não parava de falar bobagens engraçadas para distrair o bebê. Todos riram com as brincadeiras, exceto Isabel, que estava determinada a falar com Anvrai. Queria sa­ber por que ele a deixara sem dizer nada e por que não o incomodara o fato de ela tirar as mesmas conclusões que os demais em Dunfermline.

Mas se Anvrai não se importava com ela, por que se apres­sara a voltar para a fortaleza a fim de ajudá-la na fuga? Ele poderia muito bem ter voltado para Belmere.

Tillie foi a primeira a retirar-se para dormir e Anvrai pre­parou-se para fazer o mesmo, antes de ser impedido por Isabel.

— Conte-me sobre sua viagem a...

— Aqui não, lady Isabel. — Anvrai apontou a criada com o olhar.

— Então vamos andar um pouco, sir Anvrai.

Ele a acompanhou ao pátio da estalagem e dali foram até a margem do rio, por onde perambularam.

— Por favor, sir Anvrai, conte-me o que aconteceu. — Ela queria ouvir o relato dos lábios dele. — Onde o senhor esteve?

Apesar da expressão inescrutável de Anvrai, foi possível sentir a tensão que o dominava. Talvez ele estivesse imerso em um grave dilema.

Porque depois de enfrentarem tantos perigos juntos, Anvrai não confiara nela o suficiente para contar-lhe a respeito da missão? Por que trocara confidências com Symonne?

— No acampamento do rei perto de Stirling — ele come­çou. — Levei para Sua Majestade informações úteis que sir Ranulf havia colhido dias antes.

— E quanto ao rei Malcolm?

Anvrai contou a Isabel que ele usara um broche pertencente à rainha Margarida para conseguir chegar até o rei escocês.

— Foi lady Symonne quem pegou a jóia?

— Foi.

A resposta de Anvrai fez com que ela se sentisse uma es­tranha.

— O senhor permitiu que eu fizesse um péssimo juízo a seu respeito.

— Pense o que quiser, milady.

Aquelas palavras causaram-lhe um sofrimento ainda maior, como se isso fosse possível.

— Nosso tempo de convivência está no fim. Assim que eu a deixar em Durham...

— Durham?

— Isso mesmo. Tenho ordens do rei Guilherme para levá-la até lá.

— Por que não vamos diretamente para Kettwyck? Anvrai cruzou as mãos às costas e desviou o olhar. —Milorde...

— Lady Isabel, ninguém sabe o que aconteceu em Kettwyck. O rei Guilherme...

— ...não tem conhecimento do que ocorreu a minha família, é isso?

— O rei mandou alguns homens a Kettwyck para verifica­rem a situação por lá. Eles voltarão a Durham com... ou sem... lorde Henri. Caso ocorra o pior, milady se tomará protegida do rei.

Isabel engoliu em seco.

— Isso... se meu pai houver morrido. Ele pigarreou, constrangido.

— Nesse caso, o rei tem intenção de vê-la bem casada e segura.

O desalento não poderia ser maior. Isabel sentiu os olhos lacrimejarem. Cerrou os dentes para evitar que o queixo tre­messe. Anvrai cruzou os braços na altura do peito, como se quisesse impedir o coração de palpitar.

— Lady Isabel, não olhe para mim como se eu fosse o herói de uma de suas histórias. Não sou o paladino de ninguém.

Anvrai forçou-se a ficar imóvel e rígido como uma rocha. Tomara-se muito ligado a Isabel, em detrimento da própria paz de espírito. Depois da febre que quase a vencera, era im­possível ignorar os sentimentos que o atormentavam.

Os dias da doença de Isabel tinham sido um verdadeiro martírio. Vê-la sofrer sem poder fazer nada deixara em peda­ços seu coração. O mais sensato seria deixá-la aos cuidados do rei Guilherme e recuar antes que os danos a sua alma se tornassem irreversíveis.

Desviou o olhar para não vê-la caminhar de volta à estala­gem de cabeça baixa e ombros caídos. Notara os olhos mare­jados de lágrimas. Ele a ferira profundamente. Porém, qual­quer palavra de consolo soaria no vazio. Nada tinha para ofe­recer a Isabel além do calor de seus braços .Isabel tinha direito a um lar de alto nível e um marido que a protegesse de maneira coerente. Era digna de um homem de posição elevada que pudesse oferecer-lhe muito mais do que ele poderia.

Os dois dias seguintes prosseguiram sem novidades. No terceiro, não encontraram nenhuma estalagem para passar a noite, mas Anvrai descobriu um celeiro abandonado onde puderam ficar abrigados do frio. O jantar foi simples. Carne e pão com­prados do estalajadeiro da noite anterior.

O acampamento foi modesto. Pouco falaram enquanto comiam. Passar os dias em cima do lombo do cavalo fora exte­nuante para as mulheres, desacostumadas a uma marcha for­çada como aquela. Mas isso tivera um resultado satisfatório. Estavam bem longe de Dunfermline, e Anvrai tinha convicção de que ninguém os perseguiria naquela distância.

Isabel recolheu-se ao mutismo anterior, mais como conseqüência às palavras duras que escutara do que por preocupação com a família. Ajudou Tillie a cuidar do bebê, embora sem o entusiasmo habitual. O olhar perdera o brilho e as faces pare­ciam mais encovadas.

Anvrai saiu para andar em meio à noite fria, com esperança de conseguir esfriar as frustrações que o devoravam. O desejo que sentia por Isabel tomava imperativo manter-se distante. Lamentou havê-la tratado tão mal.                                      

— O senhor está muito inquieto esta noite, sir Anvrai. — Symonne aproximou-se e surpreendeu-o.

— Volte para dentro, lady Symonne.

Ela não obedeceu. Anvrai afastou-se, mas foi seguido por Symonne.

— O que o está aborrecendo? Trata-se de lady Isabel, não é verdade? Por que a tem evitado?

— O assunto não foi aberto à discussão.

— Ora, milorde. Qualquer um pode ver que o senhor a ama.

— Lady Symonne, não sou nenhum pretendente sentimen­tal. Não tive educação que me permita pronunciar belas pala­vras, nem tenho ricas propriedades para oferecer a uma mu­lher. Nada tenho de meu, exceto a espada e um cavalo.

— Não seja tolo. Dê-lhe seu coração. — Symonne afastou-se, ondulando as saias amassadas.

O coração era mais uma coisa que não poderia entregar a Isabel.

Anvrai não agia como se ela lhe fosse indiferente, Isabel refletiu, confusa. Ele se importava mais do que desejava ad­mitir, mas escapava-lhe o motivo pelo qual Anvrai negava a ligação que se formara entre eles. Embora parecesse absurdo, Anvrai questionava a própria qualificação para tornar-se um bom marido.

Afirmara que não era um herói. No entanto, arriscara a vida várias vezes para protegê-la. Por que supunha que não fosse o homem adequado? Talvez Anvrai temesse perdê-la.

Ele procurara manter distância no trajeto para Durham, mas se preocupara com seu conforto durante a viagem. Chegara a carregá-la por um despenhadeiro, quando a altura excessiva a impedira de prosseguir.

Aquelas não eram atitudes típicas de um homem indiferen­te. Passava do meio-dia quando atingiram os portões da cidade de Durham.

— Oh, Céus! — Tillie murmurou, embevecida, à vista do castelo rodeado por ameias altas.

A construção ainda não fora terminada. Não havia altas muralhas de pedra. Isabel arrepiou-se ao contemplar a forta­leza. Lembrou-se de Kettwyck e da falha na proteção que os arruinara.

— Nós encontraremos o rei Guilherme? — Tillie pergun­tou, com ansiedade.

Isabel fitou Anvrai, à procura de uma resposta. Ele se li­mitou a dar de ombros, indiferente como de costume.

Ela não conhecia o traçado da região. Não tinha idéia para onde Anvrai fora, quando se encontrara com o rei, nem em que direção ficava Kettwyck. Estava perdida. Pela primeira vez desde sua captura, não saberia qual direção tomar de volta para casa. Também não imaginava como faria para Anvrai entender que não precisava ter medo de perdê-la.

— Acha que os enviados do rei Guilherme já chegaram a Kettwyck?

Isabel gostaria de saber se seus pais tinham ciência de que ela os esperava em Durham. Recusava-se a pensar que eles houvessem morrido. Enfrentara obstáculos em demasia para aceitar a idéia de perdê-los.

Também não queria perder Anvrai.

— Acredito que sim — foi Symonne quem respondeu. — A propriedade de seu pai não é muito longe de Dunfermline e eles partiram de Stirling.

O barulho dos cascos dos cavalos ecoavam nas pedras ar­redondadas da rua, enquanto se encaminhavam para uma es­talagem diante da qual se detiveram e desmontaram.

— Sir Anvrai — Isabel perguntou —, por que não paramos no castelo?

Ele não respondeu e continuou com a expressão endurecida, enquanto a tirava da sela e a deixava em pé no chão. Ela se permitiu a ousadia de passar-lhe as mãos na nuca e gostou de senti-lo estremecer.

— Isabel... — ele falou em um fio de voz.

Isabel compreendeu que a determinação dele em manter-se a distância havia sofrido um deslize.

Antes de sair, Anvrai recomendou para que fosse servida refeição para todos e preparado um banho para as mulheres. Fora um erro tomar Isabel nos braços e ajudá-la a desmontar. Quase perdera o controle ao encostar nela. Pior ainda. Ele a deixara em uma estalagem, em vez de levá-la ao conde Waltheof no castelo de Durham.

Nem a fortaleza nem as muralhas estavam prontas. Foi im­possível deixar de lembrar-se das condições de Kettwyck quando haviam sofrido o ataque. Pelo menos os soldados de Durham estavam armados e pareciam prontos para lutar se fosse necessário.

Atravessou os portões e aproximou-se do salão nobre do castelo. Desmontou diante da escadaria principal e entregou o cavalo a um jovem escudeiro, explicando que voltaria logo. Não pretendia demorar-se. A última noite ao lado de Isabel estava se aproximando.

Os guardas do conde Waltheof o encontraram no salão no­bre. Um deles levou-o até um gabinete privativo. Em um dos lados do recinto havia uma mesa pesada de madeira. Pratelei­ras de carvalho ocupavam duas paredes, onde se encontravam muitos livros e um grande número de objetos valiosos.

Waltheof estava em pé diante da janela, ricamente vestido e coberto de jóias. Anvrai saudou-o com uma reverência.

— Sir Anvrai d'Arques, pois não?

— Às suas ordens, milorde.

— Eu estava à sua espera. Por que não veio até aqui no momento de sua chegada?

Anvrai encolheu os ombros. Não poderia dizer ao conde que desejava manter Isabel a seu lado pelo menos por mais uma noite.

— Milorde, lady Symonne e lady Isabel estavam exaustas. Já estão bem acomodadas e dormindo. Eu as trarei amanhã cedo. Milorde tem notícias do rei Guilherme?

— Apenas que Sua Majestade está na Escócia — Waltheof respondeu. Serviu dois canecos com cerveja e ofereceu-lhe um deles. — Nada mais sei além disso.

— Milorde, o rei Guilherme mandou enviados especiais a Kettwyck. Há alguma notícia deles?

— Sim. Dois dos cavaleiros do rei Guilherme chegaram ontem a Durham, adiantando-se à comitiva de lorde Kettwyck.

Felizmente o pai de Isabel sobrevivera ao ataque. Eram boas notícias, mas não estavam completas.

— Lady Kettwyck está viajando em companhia do marido? Waltheof negou com um gesto de cabeça.

— Não, sir. Lorde Henri e vários cavaleiros estão a caminho de Durham. Sua esposa permaneceu no castelo, à espera de notícias da outra filha.

— Então a jovem também foi raptada.

— Infelizmente.

O conde mostrou-se pesaroso, sem imaginar o impacto que a notícia causaria em Isabel. Os dois homens tomaram cerveja e depois de alguns momentos Anvrai relatou a Waltheof o encontro que tivera com o rei Guilherme.

— Então não há como saber quando o rei chegará aqui.

— Não, milorde — Anvrai respondeu. — Se minha missão obtiver sucesso, Sua Majestade chegará em poucos dias. Tra­zendo um ou dois reféns.

Já era tarde quando Anvrai despediu-se do conde e voltou para a hospedaria. Ficou satisfeito ao ver que não havia luz nos quartos superiores. Cambaleou na entrada, sob o efeito da cerveja forte de Waltheof. Isabel deveria estar dormindo. Fe­lizmente. Protegida entre quatro paredes, ficaria mais algum tempo sem saber do triste destino de sua irmã. Os piores re­ceios a respeito de Kathryn haviam se confirmado.

Um menino recebeu-o e mostrou-lhe o quarto do segundo pavimento que lhe fora destinado. Anvrai ocupou o aposento e sentou-se na cama. Ensimesmado, fitou o fogo por algum tempo. Em seguida tirou os sapatos e a túnica. Estacou quando a porta foi aberta e Isabel apareceu na entrada. Ela deu dois passos à frente, virou-se, fechou a porta e trancou-a com a chave.

Era imprescindível mandá-la de volta para seu aposento, mas nenhum som saiu de sua garganta. Isabel aproximou-se, vestindo uma camisola diáfana que lhe desnudava um dos om­bros. A parte superior do busto ficava exposta.

— Anvrai, por que vem me evitando há tanto tempo?

— Bem, isso não é inteiramente verdadeiro.

Isabel chegou mais perto.

— O senhor esteve bebendo.

— É... — Anvrai pegou a túnica, ciente de que precisava vesti-la, mas Isabel inclinou-se na direção dele, segurou-lhe a mão e impediu-o de concretizar o objetivo. — Milady não deveria se curvar dessa maneira. Sua roupa é muito decotada.

Sem envergonhar-se, Isabel fitou o busto mas não se en­direitou.

— Sou assim tão repugnante?

— Isabel...

— O senhor fez de tudo para distanciar-se de mim. — Isabel apoiou a mão na coxa de Anvrai e impossibilitou-o de racio­cinar. Segundos depois, ela acariciou-lhe o peito.

— Milady...

Isabel interrompeu-o com dois dedos nos lábios.

— O tempo de conversar já se esgotou — sussurrou. — Beije-me, Anvrai.

A boca de Isabel estava perto demais e quando ela fechou os olhos, Anvrai rendeu-se. A sua ânsia era muito mais pode­rosa do que seu bom senso. Ele a sentou no colo e beijou-a.

Ah, como sentira falta de Isabel...

A pele macia e o perfume de sua pele.

Isabel desatou os fitilhos que prendiam a camisola e a peça deslizou suavemente até o chão.

Como sempre aquela nudez perfeita lembrava uma deusa do Olimpo.

A beleza irresistível de Isabel.

— Minha alma e meu corpo anseiam pelo senhor, Anvrai.

Anvrai não encontrou outra alternativa a não ser render-se aos encantos de Isabel que o fitava como se ele fosse o mais belo homem do reino.

Deitados em silêncio, procuravam recuperar o fôlego que voltava aos poucos. Isabel acariciou-lhe a nuca e Anvrai bei­jou-lhe a mão. À luz tremeluzente da vela, Anvrai observava cada traço das feições adoráveis de Isabel, enquanto ela, com a mão livre, acariciava-lhe, distraída, o quadril desnudo.

Como encontrar forças para deixá-la?

Tinha ordens do rei para velar pela segurança de Isabel. Quando lorde Henri chegasse, pela lógica, assumiria a respon­sabilidade pela filha e a levaria para casa. Não haveria mais motivos para permanecer em companhia de Isabel. Com a per­missão do rei Guilherme, voltaria a Belmere.

Isabel passou a ponta do indicador na beira do tapa-olho e depois nos cabelos de Anvrai. Ela o fitava com verdadeiro encantamento.

O tempo de que dispunham estava no fim. Anvrai recrimi­nou-se por tê-la deixado ficar, permitir que o seduzisse com palavras doces e enlevos femininos.

Nada daquilo teria lugar em seu mundo severo e vazio.

— Isabel...

Ela o beijou e Anvrai esqueceu mais uma vez o bom senso. Estava perdido. Isabel Louvet, de St. Marie, tomara posse de­finitiva de sua mente e de sua alma.

Precisou de grande energia para afastar-se de Isabel.

— Isabel, seu pai está vindo para Durham. Ele foi avisado de sua presença e vem buscá-la.

— Meu pai? — A paixão do olhar cedeu lugar a uma alegria imensa.

Anvrai anuiu.

— Isso mesmo. Lorde Henri escapou com vida ao ataque a Kettwyck. E o mesmo ocorreu com lady Kettwyck.

— E Kathryn? — A pergunta esperançosa foi mesclada com pavor.

— Ela foi levada.

 

Isabel estremeceu e lágrimas vieram-lhe aos olhos. Aquela era a notícia que esperara nunca ter de ouvir.

— Isabel, eu gostaria de poder dizer-lhe mais alguma coisa, mas não fiquei sabendo dos detalhes.

Ela sentou-se na cama e Anvrai cobriu-lhe os ombros com uma manta.

— Será que eles a procuraram, Anvrai?

— Presumo que sim, embora...

— Para que direção a levaram?

— Essa pergunta terá de ser feita a seu pai. Não sei de mais nada.

Anvrai a fez deitar-se e aconchegou-a como se pudesse pro­tegê-la do sofrimento que a abatia.

Pobre Kathryn. Teria encontrado um defensor para ajudá-la a escapar de seus captores, ou teria sido raptada, violada e engravidada como acontecera com Tillie?

— Ah, sir Anvrai — Isabel tremeu sem parar, antes de seguir em um pranto convulsivo.

Isabel acabou adormecendo nos braços de Anvrai. Ao acordar, as chamas da lareira estavam quase extintas e Anvrai ressonava a seu lado. A lembrança do que ficara sabendo a respeito de Kathryn deixou-a arrasada e sem forças para reagir.

— Isabel? — Anvrai estirou-se.

— Preciso voltar ao meu aposento.

— Fique mais um pouco comigo. — Anvrai abraçou-a.

— Mas os outros ficarão sabendo...

— Eu a acordarei antes do amanhecer — ele prometeu. — Depois a levarei até seu quarto.

Isabel concordou e deixou-se ficar no aconchego dos braços de Anvrai. Sentiu-se envergonhada por sentir tanto prazer en­quanto Kathryn poderia estar sob o jugo de algum bárbaro do norte.

— É injusto eu ficar aqui enquanto Kathryn...

— Isabel, nesta vida não há muita justiça — Anvrai afirmou com voz engasgada pelas lembranças trágicas. — Mas não se deve perder as esperanças. Tenha certeza de que seu pai está usando de todos os recursos ao alcance dele para encontrar Kathryn.

Isabel compreendeu que Anvrai estava com a razão. Ele tinha a prova de que a iniquidade imperava no mundo. Além do que acontecera com sua família, Anvrai fora muitas vezes injustiçado por causa de sua aparência.

Como Deus pudera permitir que eventos tão terríveis se abatessem sobre um menino? Não devia ser motivo de surpresa Anvrai ter endurecido o coração.

Isabel esgotara as lágrimas. O vazio interior nem lhe pos­sibilitava chorar mais. Kathryn estava perdida para ela. O mes­mo aconteceria com Anvrai. Nunca mais o veria. E mesmo se o visse, ela haveria de estar casada com outro e teria de su­portar a intimidade com alguém a quem não amava. Fizera urna tentativa desesperada para demonstrar a Anvrai que ela não representava mais um peso em sua infelicidade. E falhara. Sentira o afastamento emocional de Anvrai, mesmo antes do último estremecimento de seu clímax.

Antes do amanhecer, Isabel voltou sozinha para seu quarto. Fez a higiene, vestiu-se e prendeu os cabelos em uma trança simples. Não havia ninguém no corredor. Ela foi até o apo­sento de Anvrai, bateu levemente na porta e entrou. Ele não estava.

Desceu até o salão, esperando encontrá-lo. Não viu nin­guém. Escutou vozes na cozinha e sentiu cheiro de comida.

Tillie chegou, carregando Belle que chorava sem parar.

— Não quero que ela acorde todos na casa -— Tillie sacudia a filha nos braços, sem sucesso.

— Deixe-me ficar com ela — Isabel ofereceu-se e levou a criança até a janela, embalando-a suavemente.

Belle acalmou-se olhando a chuva que caía e deixava listras no vidro. O dia cinzento estava de acordo com o humor de Isabel.

Em pouco tempo seu pai chegaria e a levaria de volta para Kettwyck. E para longe de Anvrai. — Bom dia, lady Isabel!

Symonne entrava na sala, alisando os cabelos e desfazendo os vincos das saias.

— Vamos tomar o desjejum? — convidou Symonne.

As criadas vieram atrás, carregando travessas com vários tipos de iguarias.

— O conde Waltheof convocou-nos para irmos ao castelo — Symonne informou-a.

— Quando?

— Ontem à noite, quando soube de nossa chegada. Mas nós já estávamos instaladas aqui.

— E por que não fomos? Symonne sorriu com malícia.

— Milady deve saber que seu protetor não queria perdê-la tão depressa para o conde.

Com o coração batendo em descompasso, Isabel acomodou-se perto de Symonne e apoiou os lábios na cabeça de Belle. Nesse momento, Anvrai e Ranulf entraram na sala de jantar. Anvrai sentou-se a seu lado. Ela não escutou mais ruídos ou vozes. Não sentiu mais o cheiro apetitoso dos pratos. Seus sen­tidos estavam impregnados com a presença de Anvrai, Sentia-lhe a quentura do corpo e o odor masculino. Forte, mesclado com cheiro de cavalo e de couro.

— Alguma novidade? — perguntou Symonne.

— Sim. Cavaleiros chegaram hoje cedo à aldeia. Disseram que o rei Guilherme conseguiu um acordo com o rei Malcolm... sem derramamento de sangue — explicou Ranulf.

Symonne e Anvrai trocaram olhares exultantes de vitória.

— Então o senhor foi bem-sucedido — Isabel cumprimen­tou Anvrai, sentindo-se orgulhosa.

Na verdade, também experimentava uma grande dose de vergonha por ter duvidado dele. Deveria ter confiado em sua honra e integridade... e em tudo o mais.

— Sir Anvrai conseguiu um transporte coberto para as da­mas — Ranulf avisou-as. — Quando estiverem prontas, ire­mos para o castelo.

Indiferente às condições meteorológicas daquele fim de tar­de, Anvrai andava de um lado para o outro no passadiço, entre os merlões do castelo de Durham. Aquele era o único lugar onde Isabel não o procuraria. Ela era incapaz de controlar o pavor de locais altos.

Sua ânsia pelo amor de Isabel era tão grande quanto o pâ­nico que a paralisava. Encharcado pela chuva, recriminava-se por ser covarde e tolo. Entregá-la sob a proteção de lorde Walt­heof deveria ter-lhe trazido um senso de alívio. Entretanto, a liberdade recém-conquistada pareceu-lhe vazia.

Um grande número de cavaleiros aproximou-se da paliçada e foi interceptado pelos guardas, mas logo em seguida foram admitidos para dentro dos portões. Devia ser Henri Louvet que viera buscar a filha.

Anvrai voltou para o salão nobre de lorde Waltheof, onde estavam reunidos vários soldados normandos, alguns dos quais ele reconheceu. Lorde Henri encaminhou-se até ele assim que o viu. Parecia exausto, fraco e doente. Pagara um tributo à viagem cansativa.

— Sir Anvrai. — Ele apertou-lhe a mão efusivamente.

— Milorde. — Anvrai conduziu o pai de Isabel até uma poltrona. — Mandarei alguém buscar lady Isabel.

— Espere, sir Anvrai. Uma criada já recebeu ordens de chamá-la.

— Lady Isabel está bem? — Um jovem cavaleiro aproxi­mou-se e parou ao lado de lorde Henri. Era sir Etienne Taillebois, um dos pretendentes que comparecera em Kettwyck na noite em que o castelo fora atacado.

— O senhor ficou sabendo que sua filha foi ferida por uma flecha? — Anvrai perguntou a lorde Henri.

— Sim, sir Roger de Neuville contou-nos, de passagem por Kettwyck. Estávamos de partida para Dunfermline quando os homens do rei Guilherme chegaram. Por isso viemos para cá. Sir Anvrai, ela já está recuperada?

— Lady Isabel já sarou, milorde. Sir Roger não veio com o senhor?

— Sir Roger passou apenas uma noite em Kettwyck e vol­tou para Pirou. Estava ansioso para tranquilizar o pai — lorde Henri respondeu.

— Ah, claro. — Anvrai recriminou-se por não ter imagi­nado o óbvio.

— Conte-me mais sobre minha filha — lorde Henri pediu. — Sir Roger falou muito pouco. Disse apenas que ela fora ferida perto de Dunfermline.

— Milorde, sua filha é quem merece os louros de um bardo. Deixarei a ela a tarefa de revelar todos os detalhes da história. Lady Isabel ficará muito feliz por vê-lo.

Nesse minuto, Isabel Louvet entrou no salão nobre, seguida pelos servos que traziam vinho quente para os viajantes en­charcados. Henri e Anvrai levantaram-se à sua chegada. Lorde Henri apressou-se ao encontro da filha, a quem abraçou de­moradamente.

— Os escoceses abusaram dela? — quis saber Etienne, de­pois de levar Anvrai até um canto mais afastado.

— Não, felizmente. Nossos captores a destinavam para o chefe do clã — ele explicou ao jovem que tinha o olhar bri­lhante de curiosidade. — E lady Isabel o matou.

Etienne abriu a boca e arregalou os olhos, incrédulo.

— É a mais pura verdade — Anvrai assegurou. — Conse­guimos escapar, graças à atitude de lady Isabel.

Isabel era corajosa e criativa. Não havia mulher como ela em toda a Grã-Bretanha.

— Verdade? E ela fez isso antes de que o bárbaro lhe cau­sasse algum mal?

Anvrai fitou Isabel que sorria, feliz, enquanto as lágrimas não paravam de escorrer.

— Bem, o homem presenteou-a com alguns hematomas, mas lady Isabel dominou-o. Isabel dominara todos os percalços, erguera a cabeça diante de cada novo desafio e os enfrentara sem pestanejar.

— Depois de tudo por que passou, lady Isabel provavel­mente não será uma esposa dócil. — Etienne franziu o cenho.

— O senhor veio até aqui disposto a casar-se com lady Isabel? — Irritado ao extremo, Anvrai não saberia dizer onde encontrara voz para fazer tal pergunta.

Etienne analisou Isabel que se encontrava do outro lado do salão, junto ao pai.

— Ela continua formosa como sempre. E foi muito bem educada na abadia de St. Marie.

Anvrai concordou com um gesto leve de cabeça e sentiu o ácido corroer-lhe o estômago.

— Isso sem mencionar o fato de ela ter nascido nobre. Isabel fitou-os e sorriu. Passou a mão no braço do pai e conduziu-o até onde se encontravam Etienne e Anvrai.

— Papai, o senhor já conhece sir Anvrai, não é verdade?

— Sim. Aliás, tenho de agradecer-lhe profundamente por trazê-la de volta para mim, sã e salva.

Naquela altura, o conde Waltheof entrou, acompanhado de sua esposa. Logo todas as taças foram enchidas. Os homens de Kettwyck tomaram a bebida antes de se dirigir às barracas de Durham para dormir.

Lorde Henri caminhou com a filha até a lareira, conversan­do com lorde Waltheof e sua esposa, lady Judith.

Anvrai aproveitou a distração deles para desaparecer. Es­perava que ninguém notasse sua escapada.

— Papai, para onde foi sir Anvrai?

— Deve ter ido tratar de algum compromisso.

Isabel franziu o cenho, indecisa entre sair atrás de Anvrai ou permanecer ao lado do pai.

O conde Waltheof convidou Henri, Isabel e Etienne para se sentarem nas poltronas confortáveis diante do fogo, onde foram servidos de vinho quente e aromatizado.

— Papai, quais as notícias que o senhor tem a respeito de Kathryn? — Isabel perguntou, depois de alguns minutos de silêncio.

— Nenhuma — lorde Henri respondeu com um suspiro doloroso. — Mandei três comitivas para o norte e nenhuma ainda retornou.

— Diga-nos, lady Isabel, como foi que a senhora conseguiu escapar de seus raptores? — Judith interessou-se.

Judith era sobrinha do rei Guilherme, e seu casamento com um saxão fora importante sob o ponto de vista político. Tra­tava-se de uma mulher bondosa e hospitaleira. Apesar de tudo isso, Isabel não se encontrava com disposição para contar his­tórias. Teve de congregar toda a sua força de vontade para satisfazer a curiosidade dos demais.

A ausência de Anvrai a incomodava muito. Cumprida a missão, ele se encontrava livre para deixar Durham ao ama­nhecer. Seria preciso encontrar uma maneira de impedi-lo de regressar a Belmere. Para isso, contava com uma alternativa, talvez a única. Teria de convencer o pai que sir Anvrai d'Ar­ques, independentemente da posição social, seria o único ho­mem que ela aceitaria como marido.

Depois disso, teria de persuadir Anvrai de que ele era um marido tão valoroso como qualquer outro homem.

Lorde Henri empalideceu quando a filha relatou os fatos a respeito do chefe escocês Barba-Negra e o que tivera de fazer para fugir dele. O lorde idoso tamborilou os dedos nervosa­mente sobre a mesa lateral, diante da descrição das peripécias do pequeno barco de vime sobre as águas turbulentas do rio. Inclinou-se para a frente ao ficar sabendo dos escoceses que voltaram para a cabana de Tillie. Levantou-se num ímpeto no momento em que escutou os detalhes do ataque à igreja de Culdee, onde a filha fora ferida.

Henri cruzou as mãos às costas e andou de um lado a outro em frente à lareira.

— Foi sir Anvrai quem cuidou de você durante o período febril?

— Sim, papai. Sir Anvrai e Tillie se revezavam. Tillie é a serva normanda que foi levada de Haut Whysile há um ano.

Isabel contou a respeito de Desmond, o médico da rainha Margarida. Lorde Henri sacudiu a cabeça e murmurou para si mesmo algo que ninguém entendeu.

Judith maravilhou-se com a história de Isabel.

— Foi muito acertada a decisão do rei Guilherme em ne­gociar com o rei Malcolm. Nossas terras não serão devastadas. Ninguém será arrancado de seu lar, assim como aconteceu com milady.

— Sir Anvrai foi seu protetor, não foi? — Etienne indagou com certo sarcasmo.

— Nós nos encontrávamos em perigo na maior parte do tempo. Sir Anvrai tinha o conhecimento e a experiência ne­cessárias para fazer o que devia ser feito.

A verdade das palavras de Isabel Louvet ecoou no enorme salão, e ela percebeu o movimento sutil de anuência feito por seu pai.

Lorde Waltheof e lady Judith se retiraram para descansar logo depois. Etienne desculpou-se e saiu em seguida. Isabel ficou a sós com seu pai e, juntos, caminharam em direção à escadaria.

— Minha filha — lorde Henri falou antes de que ela pudesse desafogar seu coração. — Não imagina o alívio de minha alma, ao vê-la tão bela e saudável.

— Papai...

— Haveremos de encontrar sua irmã — lorde Henri afir­mou, atormentado, mas resoluto. — Com a ajuda de Deus e por Sua Graça, Kathryn voltará para nós sem nenhuma seqüela.

— Tenho rezado por ela todos os dias. E por todos os outros que foram raptados.

— Sir Anvrai d'Arques será bem recompensado por seu empenho. Pode estar certa disso.

— A respeito de sir Anvrai... — Isabel começou a falar e foi interrompida pelo pai.

— Um bom homem. Ele e sir Etienne contêm o mesmo estofo. São enérgicos e honrados... Ele será um bom marido.

— Isso mesmo, papai! É o que eu mais desejo! — Excitada, segurou as mãos do pai entre as suas. — Sir Anvrai é o ca­valeiro mais honrado de toda a Inglaterra. Se o senhor puder impedi-lo de voltar para Belmere, eu me casarei com ele tão cedo quanto...

— Sir Anvrai...

Consternada ao perceber o mal-entendido, ela franziu a testa.

— Sim, papai. Sir Anvrai d'Arques.

— Isabel, minha filha, Anvrai d'Arques não tem proprie­dades, nem posição social, nem futuro.

— Eu gosto de Anvrai, meu pai. Não me casarei com ne­nhum outro.

Sir Etienne podia ser um bom homem, mas ela não o amava.

— Falaremos disso amanhã, Isabel. E tarde e eu estou can­sado.

— Meu coração não mudará durante a noite, meu pai.

Henri Louvet suspirou. Pai e filha subiram a escada sem conversar e ele a deixou na porta dos aposentos dela.

Isabel entrou e parou diante das chamas que crepitavam na lareira. Não deu importância ao aposento aquecido. Almejava pelos braços fortes de Anvrai e pela calidez de seu amor.

Inquieta, andou de um lado a outro do aposento, convencida de que Anvrai não viria à sua procura. Refletiu na sensatez de repetir a ousadia da noite anterior. Tivera de imbuir-se da maior determinação possível para atravessar o corredor da es­talagem. Trajeto que, na verdade, se resumira a poucos passos.

Jogou o xale sobre os ombros, pegou uma vela e saiu do cômodo. Desceu até o pavimento inferior com relativa facili­dade, mas com rapidez, para não perder a coragem. Bateu levemente na porta de Anvrai que ficava na extremidade do salão. Não houve resposta.

Ela empurrou a porta e entrou. Não havia chamas na lareira e o recinto parecia não ter sido ocupado. Havia apenas uma túnica pendurada atrás da porta e uma lâmina de barbear sobre a mesa ao lado da cama. As duas peças pertenciam a Anvrai.

Deixou a vela sobre a mesa e abraçou-se. O quarto frio a deixou arrepiada. Não podia imaginar para onde Anvrai teria ido. Com certeza ainda não deixara Durham. Anvrai não via­jaria à noite e ainda mais com o tempo chuvoso que não me­lhorava.

Uma hipótese ocorreu-lhe. Sir Anvrai ficara sabendo que lorde Henri pretendia casá-la com sir Etienne e decidira afastar-se. Conhecia bem o modo digno dos pensamentos de sir Anvrai. Ele pretendia facilitar as coisas para ela, afastando-se.

Anvrai deixou Isabel com o pai e saiu para reunir-se com uma das patrulhas noturnas do conde Waltheof. Durante mui­tos anos, o rei escocês causara grandes estragos na vizinhança. O conde estava determinado a impedir que tais acontecimen­tos se repetissem. Sentinelas mantinham vigilância nos por­tões da aldeia e grupos de cavaleiros bem armados faziam a ronda no perímetro das muralhas. Todos alertas ao menor sinal de perigo.

A Anvrai agradava muito mais esse tipo de trabalho do que ficar sentado no salão nobre, trocando gentilezas com os no­bres. Para ele era muito simples passar as noites de guarda, enfrentando inimigos e refletindo sobre a próxima batalha. Nunca pensara em esposa ou filhos. E nem poderia. Nada tinha para oferecer a uma mulher. Nem terras, nem riquezas... nem mesmo o desejo de assumir a responsabilidade de uma família. Era lógico e cabível que Henri houvesse escolhido Etienne para desposar a filha.

Os dois formavam um belo casal. Etienne era um jovem de caráter que se comportava muito bem em um campo de bata­lha. Sua família não tinha o mesmo prestígio que a de Roger, mas ele era dono de uma valiosa propriedade na região de Hastings. Era um bom partido e seria um excelente marido para Isabel.

Anvrai murmurou uma imprecação feroz e teria arrebentado o punho em uma parede, se estivesse perto de uma.

Nenhum homem tinha o direito de gostar de Isabel! Nenhum a amaria como ele a amava! Por Deus, não haveria de permitir que Isabel se casasse com Etienne. Estava disposto a falar com lorde Henri e a prometer qualquer coisa para conseguir permissão para desposá-la. Nem que para isso tivesse de assumir o posto em Winchester. Ou que fosse preciso implorar a lorde Osbern por uma casa mo­desta em Belmere.

Por tudo o que era mais sagrado, convencera-se de que era capaz de prover abrigo, proteção e sustento a Isabel Louvet. Anvrai deixou para trás os sentinelas e retomou o caminho para o salão nobre, disposto a falar com lorde Henri. Porém, não chegou a concretizar seu propósito, pois os guardas gri­taram em sinal de perigo.

Anvrai desembainhou a espada e juntou-se aos outros ca­valeiros que haviam se reunido para expulsar possíveis inva­sores. Galoparam até os portões e descobriram, mesmo a dis­tância, que se tratava de um portentoso exército.

— E o rei! — Anvrai avisou-os e embainhou o montante. — Peguem o estandarte de Durham. Vamos sair e saudá-lo. Mandou um homem de volta ao salão para avisar o conde Waltheof da chegada de Sua Majestade, o rei Guilherme. De­pois liderou um contingente de cavaleiros de Durham ao en­contro do monarca. Todos iam satisfeitos, apesar do dia difícil que haviam enfrentado.

— Anvrai! — o rei Guilherme saudou-o jovialmente. — Pode ficar satisfeito. Sua estratégia revelou-se um sucesso.

— Obrigado, Majestade. É muito bom saber disso.

— O acordo foi assinado. Agora Malcolm é um de meus homens. Ele jamais seria capaz de derrotar nossas forças. Mas é bom saber que desta vez prevaleceu o bom senso, sem derramamento de sangue.

Anvrai concordou com um sorriso.

— Eu gostaria de saber como foi o encontro com Malcolm — o rei comentou. — Mas falaremos sobre isso mais tarde. Vamos nos apressar, antes que volte a chover.

Eles percorreram o rastrilho e atravessaram os portões do burgo, para desmontar em frente à entrada do salão nobre. O exército do rei dispersou-se, como de costume. Anvrai permaneceu ao lado do monarca e com ele subiu a escadaria.

— Milorde agiu com habilidade, Anvrai. Estamos muito satisfeitos.

— Obrigado, Majestade.

— Está disposto a aceitar o convite de vir para Winchester? Anvrai hesitou. O rei Guilherme fitou-o de esguelha, com curiosidade.

— Falaremos disso depois. Agora vamos entrar e descansar um pouco.

O conde Waltheof e lady Judith receberam o rei calorosa­mente e o convidaram para ir até o pequeno gabinete do conde. Anvrai ficou para trás.

— Peço sua permissão para retirar-me, Majestade. Preciso falar com lorde Henri.

— Permissão não concedida, Anvrai. Vamos. Preciso lhe falar.

Resignado a postergar a conversa com o pai de Isabel, An­vrai acompanhou o rei e os anfitriões.

Acalme-se, Anvrai. — O rei Guilherme sentiu-lhe a agitação— Majestade, decidi ir para Winchester. Eu farei...

— Tarde demais — o monarca respondeu. Não podia ser verdade!

Anvrai estava disposto a aceitar o convite do rei para que ele e Isabel pudessem se casar.

— Majestade, eu...

— Sua lealdade ficou muito tempo sem ser recompensada. — O rei foi até uma das janelas. — Pensei bastante nisso e resolvi agraciá-lo com o título de barão, junto com Rushmuth, suas terras, arrendatários e soldos.

— Majestade!

Anvrai sentiu-se atordoado. Jamais esperava por aquilo. Rushmuth era uma propriedade valiosíssima a oeste de Kettwyck. Morando ali, Isabel ficaria muito perto de sua família e ele teria recursos para ajudar na busca de Kathryn.

— Precisamos de um castelo em Rushmuth. Quero que construa uma fortaleza e defenda as fronteiras ao norte. Aceita minha oferta, Anvrai?

Ele inspirou fundo. Todos os obstáculos que o impediam de casar-se com Isabel haviam desaparecido como por milagre. Até mesmo seus próprios receios. Lorde Henri não teria motivos para desaprovar o casamento.

— Com o maior prazer, Majestade. Será uma grande honra aceitar seu oferecimento.

— Muito bem, E agora, creio que...

Uma batida na porta interrompeu a frase e Symonne entrou.

— Majestade — saudou ela, fazendo uma breve vênia, e então voltando-se para os outros, com o semblante aflito. — Lady Isabel não se encontra em parte alguma do castelo. Está desaparecida.

Anvrai pediu licença ao rei e juntou-se aos que esquadri­nhavam o castelo à procura de Isabel.

— Foi a aia de minha filha quem deu pela falta dela — disse Henri Louvet, desolado. — Não imagino para onde...

— Nós a encontraremos, lorde Henri — Anvrai garantiu.

Ele não se recordava de nenhum local do castelo que pu­desse oferecer perigo. Estava certo de que, se houvesse saído, Isabel não teria ido longe por causa do temporal que recome­çara a cair. Procurou acalmar-se, recusando-se a admitir a hi­pótese de ter acontecido alguma desgraça.

Interrogou as criadas e pediu a Etienne que organizasse uma busca pelas adjacências. Afastou-se com Tillie, ao notar-lhe o rosto molhado de lágrimas e a preocupação estampada no rosto miúdo.

— Tillie, onde você viu lady Isabel pela última vez?

— No salão, milorde. Estava conversando com lorde Henri. Quando vim ajudá-la a trocar-se para dormir, não a encontrei.

— Lady Isabel esteve no quarto? Tillie negou com um gesto de cabeça.

— Milady não mudou de roupa.

Apreensivo, Anvrai apegou-se à esperança de Isabel estar no quarto dele. Era, certamente, o único lugar do castelo onde não pensariam em procurá-la. Mas era possível que Isabel o estivesse aguardando lá.

Subiu a escada correndo, foi até o aposento que lhe fora destinado e abriu a porta. Mas não havia ninguém ali.

Foi a partir desse instante que Anvrai começou a se preo­cupar de verdade. A busca estendera-se por toda a fortaleza de Durham e Isabel não fora encontrada. Isso significava que ela saíra do castelo, entretanto o mau tempo impediria qualquer atividade externa. Para onde Isabel poderia ter ido?

Anvrai desceu as escadas, atravessou o salão nobre e foi para o pátio, onde correu até a torre do sentinela para subir ao passadiço da muralha. As gotas de chuva o fustigavam, mas nada deteria Anvrai naquele momento. Se Isabel fora pro­curá-lo, poderia estar em algum canto do reduto. Anvrai avis­tou-a assim que alcançou o passadiço elevado. Ela estava em pé, encostada ao parapeito, paralisada debaixo da chuva. An­vrai correu até ela, tirou a capa e envolveu-a nos ombros de Isabel. Não podia acreditar que ela tivesse subido até aquele local tão alto, apenas para encontrá-lo.

— Isabel...

Tomou-a nos braços e serviu de escudo para que Isabel não pudesse mais olhar para baixo. Apavorada, Isabel agarrou-se nele. Anvrai iniciou o caminho de volta, abraçado com Isabel, guiando-lhe os passos incertos.

Subitamente ela parou e afastou-se, esforçando-se para falar apesar do tremor.

— Isabel, o que foi que a fez subir até aqui?

— Eu... eu estava procurando... você. Vim para dizer que te amo, Anvrai d'Arques. Não me casarei com nenhum outro homem.

Anvrai engoliu em seco e tentou falar, mas nenhum som saiu de sua garganta. Estava comovido e encabulado diante da força de vontade de Isabel e do poder do sentimento que ela lhe devotava.

Beijou-a com amor. Um amor que jamais conhecera e que não poderia dedicar a mais ninguém, a não ser a Isabel.

Pegou-a no colo, desceu os degraus de pedra fria e atraves­sou o pátio em direção à ala residencial do castelo, com in­tenção de levar Isabel diretamente para o quarto. Mas teve de adiar seu plano, pois lorde Henri e lady Judith entraram, es­baforidos, no salão nobre.

— Isabel!

— Ela está bem, lorde Henri. Apenas molhada e com frio.

— Mas onde...

— Milorde, lady Isabel está encharcada até os ossos. — Anvrai não queria perder tempo com explicações. — Ela pre­cisa trocar de roupa e aquecer-se.

Tillie seguiu na frente com um castiçal, entrou no quarto e reavivou o fogo na lareira.

— O que mais quer que eu faça, milorde? — perguntou, ansiosa.

— Avise lorde Henri que lady Isabel vai descansar durante a noite e que se encontrará com ele pela manhã.

— Pois não, milorde. Farei isso imediatamente. — Tillie sorriu e foi até a porta.

As chamas aumentaram e Isabel estremeceu. Anvrai segu­rou-lhe as mãos, levou-as aos lábios e soprou-as, aquecendo-as da mesma forma que fizera semanas antes, depois da fuga da aldeia escocesa.

Como desejava aquela mulher! Jamais a deixaria afastar-se dele.

— Isabel, eu te amo muito... Meu coração será teu para todo o sempre.

Isabel beijou-o e encostou-se ao corpo dele de maneira insinuante. Anvrai abraçou-a com força e retribuiu o beijo com a intensidade de um homem apaixonado. Inalou o per­fume de Isabel e experimentou mais uma vez a suavidade de suas curvas.

— Isabel... — Anvrai pressionou a testa na dela. — É pre­ciso tirar essa roupa molhada.

— Com todo o prazer.

Anvrai ajudou-a a desamarrar os fitilhos, uma tarefa difícil por estarem ensopados. Não demorou muito para o vestido molhado deslizar para o chão. Anvrai enrolou Isabel em uma manta grossa e quente, ajoelhou-se diante dela e segurou-lhe as mãos.

— Isabel Louvet, aceita ser minha esposa?

O coração de Isabel disparou e inflou-se de tanta emoção. Ela não conseguiu falar. Limitou-se a assentir, com os olhos marejados de lágrimas, depois caiu de joelhos e fitou o rosto de Anvrai. Acariciou-lhe o queixo, as faces, a testa.

— Isabel, eu te amo — disse ele mais uma vez.

— Anvrai...

Isabel enxugou as lágrimas com o dorso da mão. Não ima­ginava que motivo levara Anvrai a mudar de idéia, mas agra­deceu aos Céus a intervenção divina.

— Anvrai, amo você e quero ser sua esposa.

Ele se pôs de pé e ajudou-a a fazer o mesmo. Com os braços ao redor do corpo esguio de Isabel, tornou a beijá-la. Depois estendeu os beijos para o pescoço, o ombro e o colo. Entre arrepios de prazer, Isabel encostou-se ainda mais no corpo rijo de Anvrai que ela tanto amava.

As chamas começaram a diminuir, mas Anvrai e Isabel ti­nham calor próprio para aquecê-los. Anvrai continuou a bei­jar-lhe a pele macia e quando chegou ao busto, ela sentiu os joelhos enfraquecerem.

— Você é tão linda, milady...

Entre beijos intermináveis, Anvrai despiu-se também e le­vou Isabel até a cama.

— E você, milorde, meu nobre e justo cavaleiro... — Isabel tirou o tapa-olho do rosto de Anvrai. — Permiti que meus olhos me enganassem. Eu não sabia como a beleza podia ser banal e ilusória. Amo o seu rosto, Anvrai. Mas quero que saiba de uma coisa. Não meço seu valor somente por seu semblante corajoso.

— Será então a minha habilidade na cama que a seduz? — Anvrai beijou-lhe os seios com volúpia.

— Certamente, milorde, — Isabel riu, deliciada. — E muito mais. Você é tudo o que eu amo e desejo. Nenhuma proprie­dade ou riqueza material poderia fazer com que meu amor fosse maior, pois ele já é imenso.

Anvrai continuou a acariciá-la intimamente até Isabel im­plorar pela consumação.

— Rushmuth — Anvrai sussurrou-lhe ao ouvido. — Você será minha baronesa de Rushmuth.

Isabel não entendeu o sentido daquelas palavras, mas o mo­mento não era para explicações.

— Anvrai, por favor...

Isabel acariciou-lhe os ombros largos e puxou-o para si.

— Quero ser sua, sir Anvrai d'Arques — sussurrou. — Para sempre...

— Sim, meu amor. Nada haverá de nos separar. Ficaremos juntos por toda a eternidade!

 

                                                                                Margo Maguire  

 

 

Leia outros romances históricos da autora Margo Maguire

 

 

A LEI DA PAIXÃO

A PRINCESA CELTA

A ÚLTIMA BATALHA

CORAÇÃO TRAIÇOEIRO

FEITA PARA AMAR

MEU AMOR, MEU INIMIGO

NOIVA INDOMADA

PROPOSTA DE NOIVADO

 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"