Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
AVENTURA NA ILHA
— Vamos então depressa — opinou Filipe, a quem tardava chegar ao ar livre. — Venham, que estou ansioso por sentir o calor do Sol.
— Tenho de atar primeiro o lingote de qualquer maneira — declarou João, que continuava transportando com jeito o pesado pedaço de cobre. — Mas que se passa, Jaime? Que tem?
Smugs tinha soltado tal exclamação que os rapazes assustaram-se. — Olhem para ali! — exclamou ele apontando a lanterna para os primeiros degraus. — Os homens subiram ao poço e destruíram propositadamente a escada cá no fundo, para que não pudéssemos trepar no caso de nos evadirmos da cela. Não quiseram correr qualquer risco. Não podemos sair, estamos prontos! Não há processo de trepar sem o auxílio de uma escada.
Desesperados, contemplavam os degraus destroçados. A Didi soltou um lúgubre pio, como se houvesse compreendido.
Mas não chegaram até à caverna. Apenas começaram a descer a passagem principal estacaram horrorizados. Qualquer coisa avançava em catadupas na sua direcção; qualquer coisa escura, poderosa e ameaçadora.
— As águas já entraram — gritou Smugs. — Voltemos para trás e refugiemo-nos no ponto mais alto. À fé de quem sou, o mar esvazia-se todo para dentro das minas!
O gorgolejante ruído das águas, brotando de todos os cantos, ouvia-se agora claramente. Era um som aterrador aquele, um marulhar de águas como se fossem sugadas com violência e empurradas por forças ocultas. Até Jaime Smugs estava assustado. Correram os três para o poço principal a toda a velocidade. Estavam num ponto mais elevado do que os túneis à volta mas não tardariam a ser atingidos pelas águas também...
COMEÇARAM AS PERIPÉCIAS.
Era na verdade do mais extraordinário.
Ali estava Filipe Mannering estendido ao comprido debaixo de uma árvore, esforçando-se por resolver os problemas de álgebra e, não obstante não ver ninguém nas proximidades, ouviu distintamente uma voz que se lhe dirigia.
«Não sabes fechar a porta, idiota?», dizia a voz no mais impaciente dos tons. «E quantas vezes é preciso dizer-te que limpes os pés?»
Filipe sentou-se e, endireitando-se, estendeu a cabeça para olhar bem à sua volta pela terceira vez, mas a encosta estendia-se a perder de vista de ambos os lados, inteiramente destituída de qualquer presença, fosse ela homem, mulher, rapariga ou rapaz.
«É perfeitamente estúpido», dizia Filipe para consigo. «Não há aqui porta para fechar nem capacho onde limpar os pés. Quem quer que está a falar deve ser doido varrido. Em todo o caso, isto não me agrada. Uma voz misteriosa, sem corpo, impressiona qualquer pessoa.»
Um focinhito cor de chocolate surgiu da gola da camisola de Filipe. Pertencia a um ratinho castanho, um dos muitos animais seus predilectos. Com uma das mãos, começou a coçar-lhe a cabeça, o que fazia o animalzinho franzir o nariz de satisfação.
«Fecha a porta, palerma», gritou a voz. «E nada de fungar. Onde meteste o lenço?»
Aquilo começava a passar as marcas e Filipe gritou por sua vez:
«Cala-te aí! Ninguém está a fungar. Mas, vamos a saber, quem és tu?»
Nada de resposta. Filipe sentia-se intrigado. Era deveras estranho e singular. Donde viria, naquela manhã luminosa, tão insólita voz a dar ordens impertinentes naquela soalheira mas solitária encosta? E voltou a berrar:
«Estou a trabalhar. Se queres conversa salta cá para fora para eu te ver.»
«Está bem, tiozinho» respondeu a voz num tom inesperadamente suave, como que a pedir desculpa.
«Diabo!» exclamou Filipe. «Eu não suporto isto. Tenho de decifrar o mistério. Se conseguir saber donde vem a voz talvez descubra o possuidor da mesma.» Berrou novamente: «Onde estás tu? Vamos, aparece para eu ver quem és.»
«Lembra-te de uma vez para sempre que já te disse vinte vezes que é feio assobiar», respondeu a voz, com intimativa. Filipe estava mudo de espanto. Ele não estivera a assobiar, era pois mais que evidente que o dono da voz devia ser completa-mente louco. Filipe teve de repente a impressão de que lhe desagradaria travar conhecimento com tão estranha personagem. Seria preferível voltar para casa sem a avistar.
Olhou cuidadosamente à sua volta. Não fazia ideia donde viria a voz mas estava talvez inclinado a pensar que era de qualquer ponto à sua esquerda. Pois bem, desceria sossegadamente a colina pela direita, abrigando-se sempre que pudesse com as árvores para que elas o escondessem um pouco.
Apanhou os livros do chão, meteu na algibeira o lápis pôs-se de pé com cautela. Não coube, porém, em si de espanto quando ouviu estrepitosas gargalhadas.
Esquecendo-se de que tinha resolvido ser cauteloso disparou em correria pela encosta abaixo à procura de abrigo no meio do arvoredo. O riso parou instantaneamente.
Filipe permaneceu debaixo duma grande árvore, à escuta, com o coração a bater descompassadamente. Como gostaria de encontrar-se em casa, junto dos outros! E ali, mesmo por cima da sua cabeça, a voz falou outra vez.
«Quantas vezes já te disse que limpasses os pés?» Nesse momento soou o mais incrível dos guinchos, o que fez com que o pobre rapaz, tranzido de terror, deixasse cair os livros, e ao olhar para o cimo da árvore mais próxima viu uma linda catatua cinzenta e vermelha com uma grande poupa que o pássaro sacudia para cima e para baixo. Contemplou-a Filipe com os olhos pretos brilhantes, a cabeça inclinada sobre o lado e fazendo com o bico um barulho bastante dissonante.
Filipe pôs-se a contemplar o pássaro, que lhe devolveu o olhar. Depois levantou uma pata provida de garra com a qual começou a coçar a cabeça muito pacientemente, continuando a baixar e a levantar a poupa. A seguir falou:
«Nada de fungar», declarou em tom ameno. «Não sabes ter maneiras? Fecha a porta, idiota».
«Diabo», observou Filipe, atónito. «Eras então tu que falavas, rias e gritavas! Sempre me pregaste um valente susto!» A catatua deu o mais bem imitado dos espirros. «Onde está o teu lenço?» Filipe riu-se.
«Tu és realmente um pássaro espantoso», disse ele. «O mais inteligente que jamais vi. Donde é que te escapaste?»
«Limpa os pés», respondeu a catatua com severidade, e Filipe continuou a rir. Ouviu-se nesta altura uma voz de rapaz que gritava, lá no fundo da colina. «Didi, Didi, Didi, onde estás tu?» A catatua abriu as asas, e com um guincho estridente desapareceu num voo na direcção de uma casa existente no sopé da colina. Filipe seguiu com o olhar o rumo que a ave tomara.
«Foi um rapaz que a chamou do jardim da Casa da Colina, a casa onde eu estou», pensou. «Teria vindo também para receber explicações? Gostaria bem que assim fosse. Seria divertido ter uma ave daquelas em casa. É bem triste ter de estudar nas férias e uma ave palradora alegraria certamente um pouco o ambiente».
Filipe fora atacado pela escarlatina no período anterior e por sarampo logo a seguir e, por isso, havia grandes falhas no seu aproveitamento escolar. O director da escola tinha escrito aos tios de Filipe, aconselhando-os a que o mandassem passar algumas semanas a casa de um dos professores para recuperar o tempo perdido. Com grande desgosto de Filipe, o tio concordara imediatamente — e lá estava ele a ter de estudar Álgebra, Geografia e História durante as férias grandes, em vez de estar a divertir-se com a sua irmã Dina na sua Casa do Penhasco, perto do mar.
Ele gostava do Sr. Roy, o professor, mas aborreciam-no os dois outros alunos que, também, devido a terem estado doentes, estavam como ele a recapitular as lições. Um deles era muito mais velho do que Filipe e o outro um pobre e queixoso ente, incessantemente apavorado com todos os insectos e bichinhos que Filipe apanhava e invariavelmente trazia consigo. O rapaz dedicava grande amizade a todos os animais e tinha uma habilidade muito especial para lidar com eles e para lhes inspirar confiança.
Descia agora, apressado, a colina, ansioso por saber se um outro aluno viera juntar-se ao grupo de explicandos de férias. Se era o dono da catatua, devia ser alguém com interesse, mais interessante, pelo menos, do que o lorpa do Samuel e mais divertido do que o pobre piegas Olivério.
Ao abrir a cancela do jardim estacou, de olhos muito abertos. Na sua frente estava uma rapariguinha dos seus onze anos. Tinha cabelo ruivo encaracolado e olhos verdes e uma imensidade de sardas manchava-lhe a pele muito clara. Fitou em Filipe uns olhos admirados.
— Viva — disse, favoravelmente impressionado com a aparência da rapariga, que vestia calções curtos e uma camisola de malha. — Estás por cá?
— Parece-me bem que sim — respondeu a rapariga a sorrir. — Mas não vim para estudar, vim só para fazer companhia ao João.
— Quem é o João? — perguntou Filipe.
— É meu irmão — respondeu a rapariga. — Ele tem de estudar. Gostava que visses as notas dele no período passado. Foi o pior em tudo. Ele é realmente esperto, simplesmente não quer ralar-se. Diz que há-de ser ornitólogo e que não vale a pena aprender datas, nem cabos, nem poemas, nem coisas desse género.
— Que vem a ser um... um... esse nome esquisito que disseste?— perguntou Filipe, enquanto pensava consigo como seria possível alguém ter tal quantidade de sardas na cara como aquela pequena.
— Ornitólogo? É uma pessoa que gosta muito de aves e se dedica ao seu estudo — respondeu a rapariga. — Não sabias isso? O João é doido por pássaros.
— Sendo assim, ele devia gostar de viver no sítio onde moro — retorquiu Filipe imediatamente. — Eu vivo num lugar solitário e muito selvagem da costa onde há montes de aves marinhas. Eu também gosto muito de pássaros, mas não sei grande coisa acerca deles. Ouve cá, aquela catatua pertence ao João?
— Sim — afirmou a rapariga. — Já a tem há quatro anos. Chama-se Didi.
— Foi ele quem a ensinou a dizer tanta coisa? — inquiriu Filipe, pensando que, ainda que João tivesse sido classificado como o último da aula, conseguiria com certeza as notas mais altas a ensinar catatuas a falar.
— Isso sim — disse a rapariguinha, sorrindo ao mesmo tempo que franzia e piscava os olhos. — A Didi aprendeu sozinha todos aqueles ditos... apanhou-os do nosso tio, que é o velho mais impertinente do mundo, iria jurar. Os nossos pais morreram e por isso passamos sempre as férias com o tio Alfredo, o que o contraria bastante. A governanta também nos detesta, pelo que a nossa estadia lá se torna pouco agradável. Mas uma vez que eu esteja ao pé do João e desde que ele esteja perto das suas adoradas aves, ambos nos sentimos contentes. Relativamente contentes.
— Então, o João foi mandado para cá tal como eu, para aprender alguma coisa, não? — perguntou Filipe.—Tu é que tens sorte... podes brincar, passear e fazer o que te apetecer enquanto nós suamos nas lições.
— Não é bem assim, porque eu fico com o João. Como nunca fico com ele no tempo das aulas, estou satisfeitíssima por poder estar junto dele durante as férias. Eu acho que ele é um rapaz interessante.
— A minha irmã Dina não tem a mesma opinião a meu respeito— disse Filipe. — Estamos sempre à bulha. Olá... este é que é o João?
Um rapaz subia o carreiro na direcção de Filipe. Pousada no seu ombro esquerdo estava a Didi, acariciando-lhe a orelha com o bico e murmurando ao mesmo tempo qualquer coisa. O rapaz, enquanto coçava a cabeça da catatua, olhava admirado para Filipe com uns olhos verdes como os da irmã. O cabelo era mais ruivo ainda e a sua cara tão integralmente coberta de sardas que seria impossível encontrar-se nela uma clareira. Dava a impressão de existirem sardas sobre sardas.
— Viva, seu Pintinhas — saudou Filipe, sorrindo.
— Viva, seu Trunfa — respondeu João, retribuindo o sorriso.
Filipe levou a mão à cabeça e apalpou a madeixa de cabelos que sempre lhe crescia à laia de penacho no alto da cabeça e que não havia água nem escova capaz de acamar de vez.
«Limpa os pés!», ordenou Didi com severidade.
— Ainda bem que encontraste Didi facilmente — comentou a rapariga. — Ela não se sente bem em casa estranha e deve ter sido por isso que fugiu.
— Não foi para longe, Maria da Luz — respondeu João. — Aposto que o amigo Trunfa apanhou um susto, se é que a ouviu lá para a encosta.
— Ouvi realmente — declarou Filipe, começando a narrar aos dois o que acontecera. Riram ambos a bom rir acompanhados pela catatua, que soltava as mais sonoras gargalhadas numa imitação perfeita.
— Sério, estou radiante por Maria da Luz e tu terem vindo para cá — afirmou Filipe com uma satisfação como não sentia há muito. Agradavam-lhe bastante os dois irmãos de olhos verdes e cabelos ruivos. Ficariam amigos e por certo que lhes mostraria a sua colecção de animais preferidos; e que belos passeios dariam todos juntos! «João era alguns anos mais velho do que Maria da Luz, devia ter aí uns catorze anos, um tudo-nada mais do que ele próprio», pensava Filipe. «Que pena Dina não estar lá também, para serem quatro. Dina tinha onze anos, estava mesmo a calhar; somente, com o seu temperamento impulsivo e natureza turbulenta, era capaz de transtornar-lhes um bocado a vida.» «Como Maria da Luz e João são diferentes de mim e Dina!», continuava Filipe a pensar. «Era mais do que evidente que Maria da Luz adorava João e Filipe nunca poderia imaginar Dina sempre atrás dele, suspensa das suas palavras, ansiosa por adivinhar-lhe os desejos, como acontecia com Maria da Luz e o irmão».
«Paciência... as pessoas não são todas iguais», continuava a pensar o rapaz só para si. «Dina é boa camarada apesar de tudo, mesmo que estejamos sempre a discutir e a guerrear. Deve estar bem aborrecida na Casa do Penhasco sem mim e aposto que a tia Lena a tem moído com trabalho.»
Foi bem divertida, naquele dia, a hora da merenda. A Didi, a catatua, empoleirada no ombro de João, a fazer observações a todo o momento; Maria da Luz com os olhos risonhos, arreliando o grande e pachorrento Samuel e fazendo encavacar o tímido Olivério constantemente. A atmosfera ia talvez variar e animar-se um pouco.
E realmente assim foi. Porque estudar nas férias era bem menos desagradável agora que tinha João e Luzinha por companheiros.
NOVAS AMIZADES
O Sr. Roy, o explicador nas férias, obrigava os pequenos a estudar porque era essa a sua obrigação. Recapitulava com eles toda a santa manhã, repetindo e tornando a repetir a matéria com toda a paciência, certificando-se de que todos o acompanhavam nas suas explicações e exigia dos alunos aturada atenção, o que aliás conseguia de todos os outros, mas não de João, o qual não dava atenção a coisa alguma a menos que tivesse penas.
— Se estudasses a Geometria tão atentamente como estudas a vida das aves serias o melhor da aula — lamentava-se o Sr. Roy. — Consegues fazer-me perder a paciência, João Trent. Nem supões como me desesperas.
«Sirva-se do lenço», interrompeu impertinentemente a catatua.
O Sr. Roy deu um estalo com a língua, sinal de aborrecimento. — Ainda um dia torço o pescoço a este pássaro. Com a mania de não poderes estudar sem ter a Didi pousada no ombro e a obstinação de Filipe de trazer consigo toda a sorte de bichinhos embirrentos, esta aula está a ficar positivamente intolerável. A única pessoa que parece fazer alguma coisa de aproveitável é Maria da Luz, afinal a única que não está cá para estudar.
Maria da Luz era dedicada ao estudo. Agradava-lhe estar sentada ao lado do irmão, tentando fazer os mesmos exercícios que lhe tinham sido entregues. João, esse divagava, inclinado sobre os livros, a pensar em corvos e pelicanos enquanto Maria da Luz ia resolvendo os problemas do caderno que tinha na frente. Gostava também de observar Filipe na expectativa de ver que novo bicho ele tiraria de dentro da manga, da gola ou do bolso. Na véspera, uma enorme lagarta de extraordinário colorido tinha-lhe saído rastejando da manga, com grande aborrecimento do Sr. Roy, e naquela manhã mesmo um ratito abandonara o seu esconderijo na camisola de Filipe, para fazer uma viagem de reconhecimento, enfiando, intrépido, pelas calças do Sr. Roy.
Isto perturbou a classe em peso durante uns bons dez minutos, enquanto o Sr. Roy, indubitavelmente de péssimo humor, tentava desalojar o intruso. O Sr. Roy era habitualmente um homem paciente e bondoso, mas dois rapazes como João e Filipe eram, numa aula, motivo de distúrbios suficiente para fazer perder a paciência a um santo.
As manhãs eram passadas geralmente a estudar com afinco. A seguir ao almoço preparavam-se as lições para o dia seguinte e só as tardes eram completamente livres. Como havia apenas quatro rapazes, o Sr. Roy podia dedicar-se a cada aluno individualmente, preenchendo assim as falhas de cada um. Mas estas férias não estavam a ser tão proveitosas quanto o esperava o Sr. Roy, que era um óptimo explicador.
Samuel, o maior de todos, era lento e estúpido. Olivério era piegas, tinha pena de si próprio pelo mero facto de ter de trabalhar no que quer que fosse. João era absolutamente impossível, por vezes tão desatento que parecia pura perda de tempo o tentar ensinar-lhe qualquer coisa, e era incapaz de interessar-se por outra coisa que não fossem pássaros. «Se me nascessem penas faria provavelmente dele tudo quando quisesse», tinha chegado a pensar o Sr. Roy. «Nunca na minha vida vi alguém com tal loucura por todas as aves. Iria jurar que distingue os ovos de qualquer pássaro existente na superfície da Terra. Não há dúvida que o rapaz é inteligente mas de nada lhe aproveita a inteligência visto que não se serve dela senão para aquilo por que se interessa».
Filipe era o único que dava mostras de grande progresso, embora também o atormentasse com os seus vários bicharocos à volta dele. Aquele rato! Só de pensar naquele bicho a trepar-lhe pela perna acima o Sr. Roy sentia calafrios.
De facto, Maria da Luz era a única que estudava com vontade e sem necessidade. Tinha vindo unicamente por não ter querido separar-se de João, o seu original mano.
João, Filipe e Maria da Luz em breve se tornaram amigos inseparáveis. A afeição que ambos tinham por todos os animais mais estreitava essa amizade. João nunca tinha tido um rapaz por companheiro e por isso apreciava amplamente os gracejos e as partidas do seu recente amigo. Maria da Luz gostava também de Filipe mas tinha uns certos ciúmes da simpatia que o irmão mostrava por ele. A Didi tinha um fraco por Filipe e palrava entusiasticamente sempre que o rapaz a acariciava.
A catatua tinha sido, ao princípio, uma fonte inesgotável de sensaborias para o Sr. Roy, por lhe interromper constantemente as explicações. Logo por pouca sorte o professor tinha costume de fungar, e a Didi não lhe perdoava, chamando-o implacavel-mente à ordem sempre que o facto sucedia.
«Nada de fungar!», fazia a catatua em tom de reprovação, o que bastava para que os cinco pequenos desatassem a rir. Por esse motivo o Sr. Roy proibiu que a Didi estivesse na classe.
Mas o resultado foi contraproducente, porquanto a Didi, furiosa por ter sido relegada para o jardim e não poder empoleirar-se no ombro do seu idolatrado dono, dum arbusto fronteiro à janela não parava de fazer em voz alta observações mordazes que pareciam intencionalmente dirigidas ao infeliz Sr. Roy.
«Não digas disparates», interrompia o animal quando o professor ia no meio da explicação de qualquer teoria ou facto histórico.
O Sr. Roy fungava então, exasperado.
«Onde meteste o lenço?», perguntava logo a Didi.
O Sr. Roy, assomando à janela, soltava imprecações contra a catatua, fazendo gestos para assustar a ave e para a obrigar a voar para longe.
«Maroto», fazia a Didi sem se afastar uma polegada. «Vou mandar-te já para a cama por seres tão traquinas.»
Nada havia a fazer com um pássaro como aquele. Por isso, o Sr. Roy desistiu e autorizou que a Didi se empoleirasse novamente no ombro de João. O rapaz estudava com mais vontade com a catatua junto dele e a Didi não era mais turbulenta dentro de casa do que fora dela.
De qualquer maneira, o Sr. Roy sentir-se-ia muito feliz quando terminasse aquele curso de férias e os quatro rapazes, bem como a rapariguinha, voltassem para casa em companhia da catatua e dos outros animalejos que Filipe desencantava.
Filipe, Maria da Luz e João deixavam todas as tardes o simplório Samuel e o bisonho Olivério a fazer companhia um ao outro e, a seguir à merenda, saíam os três juntos. O assunto da conversa dos rapazes versava todos os animais e pássaros que já haviam visto e Maria da Luz escutava atenta, tropeçando de quando em quando ao tentar igualar-lhes as passadas largas
e rápidas.
Sem se importar com distâncias nem com a rudeza dos caminhos, a rapariguinha seguia-os sempre, na intenção de não perder de vista o irmão nem por um só momento.
Algumas vezes Filipe impacientava-se com Maria da Luz. «Livra, que sorte Dina não se agarrar a mim como a Maria da Luz se agarra ao João», pensava ele. «Custa a crer como o João pode tolerar isto».
Mas João tolerava. Embora muitas vezes parecesse não dar pela presença de Maria da Luz, não lhe dirigindo a palavra durante horas, nunca se irritava nem se zangava com ela. «Logo a seguir aos seus pássaros, é ela o que ele tem de mais querido», pensava Filipe, «e ainda bem que ele é tão amigo da irmã já que ela pouco mais tem no mundo».
Os três pequenos estavam agora um pouco a par da vida uns dos outros. «Os nossos pais morreram num desastre de avião», tinha-lhe dito João. «Nem já nos lembramos deles. Fomos depois viver com o tio Alfredo, único parente que nos resta, que é velho e rabujento e está sempre a implicar connosco. A Sr.a Sofia, a governanta da casa, odeia-nos por lá passarmos as férias... mas para fazer uma ideia do que é a nossa vida basta ouvir o que diz a Didi». «Limpa os pés! Pára de fungar! Vai já mudar de sapatos! Onde tens o lenço? Quantas vezes é preciso dizer-te que é feio assobiar? Não sabes fechar a porta, idiota!»
Filipe ria com vontade. — Se a Didi repete o que ouve na vossa casa, por certo que não têm um momento de sossego — comentou ele. — A nossa vida também não é um mar de rosas, mas sempre é um tudo-nada melhor do que a vossa.
— A tua mãe e o teu pai morreram já também? — perguntou Maria da Luz, fitando Filipe com os seus grandes olhos verdes, que lhe lembravam os de um gato.
— O nosso pai morreu e não deixou dinheiro — respondeu Filipe. — Mas ainda temos mãe, embora não viva connosco.
— Porquê? — inquiriu Maria da Luz admirada.
— Porque tem de trabalhar — respondeu Filipe. — Dirige uma galeria de arte, o que lhe dá o suficiente para nos sustentar. Recebe encomendas de quadros, desenhos, cartazes e coisas desse género; contrata os artistas para os trabalhos e recebe depois uma comissão. É das melhores na sua profissão mas poucas vezes a vemos.
— Ela é boa para vocês? — perguntou João que, por nunca ter conhecido a mãe, se interessava sempre pelas dos outros. Filipe acenou a cabeça afirmativamente.
— É óptima — respondeu ele, relembrando a cara bonita da mãe, onde se destacavam uns olhos muito vivos. Tinha orgulho na inteligência da mãe, mas no íntimo sentia grande tristeza ao lembrar-se de que parecia sempre exausta quando sucedia vir a correr fazer-lhes uma visita. «Um dia», pensava Filipe, «um dia, mais tarde, chegaria a sua vez de ganhar dinheiro, de olhar pelas coisas para que sua mãe, que tanto trabalhara toda a vida, pudesse finalmente descansar».
— Então também vives com um tio como nós? — perguntou Maria da Luz, afagando um pequeno esquilo cinzento que espreitava, deitando a cabecita de fora, duma das algibeiras de Filipe.
— Sim. Dina e eu passamos todas as férias em casa da tia Lena e do tio Renato — respondeu Filipe. — O tio Renato é uma pessoa impossível, sempre a comprar velhos livros e documentos, que estuda e arquiva a seguir. Tem dedicado a vida a tentar reconstituir a história da região em que vivemos, onde se deram antigamente batalhas, incêndios e mortes.
Ele quer escrever uma história completa... mas como leva anos a certificar-se da veracidade dum só facto, terá de viver até aos quatrocentos anos, segundo julgo, antes de completar um quarto da sua obra.
Os dois irmãos soltaram uma gargalhada, imaginando um sábio velho, mal-humorado e curvado sobre livros amarelecidos e poeirentos. «Que tempo tão mal empregado», pensou Maria da Luz, tentando também imaginar como seria a tia Lena.
— Como é a tia Lena? — perguntou ela. Filipe franziu o nariz.
— Um pouco azeda — disse. — Não muito, na verdade. Excesso de trabalho, falta de dinheiro, sem ter ninguém que a ajude nos trabalhos da casa, a não ser o velho Jau, o único criado que temos, uma espécie de faz-tudo. Ela faz da pobre Dina uma escrava... Comigo já desistiu, mas Dina tem medo dela e faz tudo o que ela manda.
— Como é a tua casa? — perguntou Maria da Luz.
— Uma casa muito velha, enorme e pitoresca, meio arruinada, construída há séculos a meio de um rochedo escarpado, fortemente batida pelo vento e quase submersa pelas ondas em dias de tempestade. Mas eu por nenhuma outra a trocava. É selvagem, estranha e solitária e ouve-se constantemente à nossa volta o canto das aves marinhas. Havias de gostar de lá ir, Pintinhas.
João também pensou que havia de gostar. A sua era uma casa banal, igual a todas as outras do bairro, numa pequena cidade, e a descrição da casa de Filipe pareceu-lhe excitante. O mar, o vento e as aves marinhas... Fechando os olhos parecia-lhe vê-las, pairando em bandos.
«Acorda, mandrião, acorda», fazia a Didi, dando bicadas ao de leve na orelha de João. Este abriu os olhos e começou a rir. A catatua tinha às vezes a rara habilidade de dizer as palavras precisas no momento oportuno.
— Quem me dera ir a tua casa — disse ele a Filipe. — Dá a impressão de ser um lugar propício a acontecimentos inesperados, movimentadas peripécias, empolgantes aventuras.
Em Lippinton, onde vivemos, não há memória de que alguma coisa desusada tenha algum dia acontecido.
— Mas na Casa do Penhasco também não acontece grande coisa — replicou Filipe, metendo novamente o pequeno esquilo numa das algibeiras e tirando da outra um ouriço-cacheiro pequenino, cujos espinhos não estavam ainda endurecidos e desenvolvidos. Parecia inteiramente satisfeito por fazer da algibeira de Filipe a sua morada e aí viver na companhia de um caracol que se conservava cautelosamente dentro da casca.
— Que bom seria podermos voltar para casa todos juntos — desejou João. — Gostaria de conhecer a tua irmã Dina, se bem que na minha ideia ela deva ser arisca como uma gatinha selvagem. E, mais do que tudo, eu queria ver todas essas aves que povoam a costa. Como invejo a tua sorte de viveres numa casa quase a cair de velha, meia arruinada!
— Não é assim tão aliciante como pensas. Quando se tem de acarretar água quente durante milhas se se quer tomar um banho...—retorquiu Filipe, levantando-se do relvado no qual tinha permanecido sentado, junto dos companheiros. — Vamos, são horas de voltar para casa. Não é natural que chegues algum dia a ir à Casa do Penhasco e se lá fosses não te agradaria com certeza. Assim, de que serve falar nisso?
DUAS CARTAS E UM PLANO
No dia seguinte Filipe recebeu uma carta de Dina, que mostrou aos novos amigos.
— A pobre Dina está a passar um mau bocado — explicou ele. — Felizmente já não falta muito para eu deixar isto, porque a vida corre-lhe ainda pior quando lá não estou.
Escrevia Dina:
«Querido Fil,
Nunca mais te resolves a vir para casa! Não é porque tenhas algum préstimo além de zaragatear comigo, mas isto por cá está cada vez mais só, sem ninguém além dos tios, porque o Jau está a ficar estúpido de todo. Imagina que me aconselhou ontem a nunca sair de noite e, sobretudo, a não ir para os rochedos, porque andam por lá a vaguear «coisas ruins». Está completamente louco.
As únicas coisas que vagueiam à minha volta são as aves marinhas que apareceram este ano aos milhares.
Peço-te por tudo que não tragas contigo desta vez para casa qualquer daqueles horríveis animalejos. Sabes bem quanto os detesto e creio mesmo que morrerei se ousares trazer algum morcego. Sobretudo não tentes atirar-me à cara bichas-cadelas como fizeste o ano passado, pois asseguro-te que levarás com uma cadeira na cabeça.
A tia Lena continua a obrigar-me a trabalho rijo. Esfrego, lavo e limpo a casa de ponta a ponta, ninguém sabe para quê, porque não há memória de alguém nos visitar. Estou morta porque acabem as férias para voltarmos para a escola. Quando chegas! Que bom seria se pudéssemos ambos arranjar maneira de ganhar algum dinheiro! A tia Lena aflige-se de morte por não poder pagar as contas e o tio pragueja e diz que não tem dinheiro e que não lho daria ainda que o tivesse. Certamente a mãe mandaria algum dinheiro se se lhe pedisse mas já é tão triste que ela tenha de trabalhar tanto e viver assim tão longe de nós, para a sobrecarregarmos ainda mais. Conta-me coisas acerca do Pintinhas e da Luzinha, que tanto gostaria de conhecer. Parecem-me bastante simpáticos.
Tua irmã muito amiga, Dina».
«Esta Dina deve ser bem apanhada», pensava João enquanto lia a carta e a devolvia a Filipe.
— Aqui tens, Trunfa — disse João. — Olá!... Lá está o Sr. Roy a acenar por mim. Deixa ver o que ele quer. Mais exercícios, certamente.
Pelo mesmo correio havia chegado uma carta da governanta do tio Alfredo para o Sr. Roy, que depois de a ler a mostrava agora a João. Era incisiva e curta e a sua leitura encheu de tristeza o rapaz.
Dizia a carta:
«Caro Sr. Roy,
O Sr. Trent partiu uma perna e não quer cá os pequenos durante o resto das férias.
Deseja saber, portanto, se o senhor poderá encarregar-se de tomar conta deles. Confiado na afirmativa, envia um cheque para as despesas necessárias. Peço-lhe que me mande as crianças dois dias antes do recomeço das aulas para me ajudarem a tratar-lhes da roupa.
Muito respeitosamente, Sofia Miggles».
— Oh, Sr. Roy! — resmungava João, ao qual, por muito que o desgostasse a casa do tio Alfredo, mais lhe desagradava a ideia de permanecer com o Sr. Roy, na companhia do piegas Olivério, que ficaria também, o que era ainda pior do que voltar para junto dum tio irascível.
— Não percebo por que a Maria da Luz e eu não podemos voltar para casa, se o tio nunca nos deixa chegar-lhe ao pé.
O desejo que o próprio Sr. Roy tinha de que o rapaz ficasse não era porventura maior do que o de João. Só a ideia de que teria de suportar por mais um só dia que fosse aquela catatua, enchia-o de horror. Nunca em toda a sua vida havia tido tanta raiva a qualquer coisa como a que dedicava agora à Didi. Rapazes malcriados ainda ele podia tolerar, mas aves palradoras impertinentes... isso não era com ele!
— Mas... — objectou o Sr. Roy, contraindo os lábios e olhando de soslaio para a Didi—...mas eu não posso conservar-te cá. Aliás, é pura perda de tempo, porque não aprendes as coisas mais elementares. Mas que há-de fazer-se? O vosso tio não vos quer decididamente em casa e manda-me um generoso cheque para cobrir as despesas; mas eu já tinha planeado uma excursão com o pequeno Olivério. Se ao menos descobrisse algum sítio de confiança para onde vos mandar...
João voltou para junto de Maria da Luz e de Filipe com uma cara tão triste que a irmã, agarrando-lhe na mão, perguntou aflita:
— Que foi? Que aconteceu?
— O tio não nos quer lá em casa — informou João, e explicou o conteúdo da carta — e o Sr. Roy não pode ter-nos cá... Ao que parece estamos sós no mundo, Maria da Luz!
22
As três crianças olharam-se pensativas. Foi então que Filipe teve um momento de inspiração.
Puxando pelo braço de João, e quase derrubando a Didi do seu pouso, exclamou entusiasmado:
— João, vem para minha casa! Podeis vir ambos comigo para a Casa do Penhasco. A Dina ficaria radiante e tu poderias observar os pássaros sempre que quisesses. Que lhes parece? Maria da Luz e João olharam um para o outro excitados e maravilhados. Pensavam quão maravilhoso devia ser viver naquela casa em ruínas, com um tio sábio, uma tia irascível, um criado semilouco e o barulho do mar a toda a hora...
João abanou a cabeça, soltando um suspiro. Ele sabia que quase sempre os projectos das crianças não se realizavam quando submetidos à apreciação das pessoas crescidas.
— É escusado pensar nisso — respondeu ele. — O tio Alfredo diz provavelmente que não, e o Sr. Roy, esse, diz de certeza: «E os vossos tios ver-se-iam a braços com quatro crianças em vez de duas.»
— Mas tu podias dar-lhes o cheque — objectou Filipe — e garanto-te que a tia Lena ficaria satisfeitíssima por poder pagar com ele as contas em atraso.
— Ó Filipe, ó João, vamos todos para a Casa do Penhasco! — pedia Maria da Luz com os seus grandes olhos verdes a brilhar. — Seria a melhor coisa do mundo! Bem sabes, João, que não somos desejados aqui, e vais ver que o Sr. Roy mata a Didi qualquer dia se ela continuar a ser inconveniente para ele.
A Didi deu um guincho aterrador e escondeu a cabeça no pescoço de João. — Descansa, Didi — disse aquele —, que eu não deixo que ninguém te faça mal. Maria da Luz, parece-me que não adianta pedir ao Sr. Roy que nos deixe ir com o Filipe; certamente ele considera do seu dever olhar por nós e temos de cá ficar.
— Nesse caso passamos por cima da opinião dele — sugeriu Maria da Luz agitadamente. Os dois rapazes olharam para ela, admirados, sem responder. Aí estava uma ideia, ir sem licença... e porque não?
— Se aparecêssemos todos juntos na Casa do Penhasco seria um facto consumado — afirmou Filipe, realmente em dúvida se de facto seria ou não acertada aquela ideia. — Uma vez lá, os meus tios não teriam coragem de expulsar-nos e eu convenceria a tia Lena a telefonar ao Sr. Roy a explicar-lhe tudo, pedindo-lhe ao mesmo tempo que mandasse o cheque.
— O Sr. Roy ficará contente por ver-nos longe — declarou Maria da Luz, pensando como seria bom conhecer Dina — e o tio Alfredo não se importaria com certeza. Vamos, João, vamos
com Filipe.
— Está bem — assentiu João, concordando prontamente. — Iremos todos os três. Quando há comboio, ó Trunfai Iremos até à estação com o pretexto de que nos vamos despedir de ti e no último minuto saltamos para o comboio e partimos também.
— Belo! — disse Maria da Luz, exultante.
«Onde meteste o lenço?», guinchou a Didi, pressentindo a agitação e balouçando-se, apoiada no ombro de João. Mas ninguém pareceu ligar-lhe importância. «Pobre Didi», resmungou a catatua, em tom desgostoso. «Pobre Didi!».
João acariciou a catatua ao mesmo tempo que ia pensando nos pormenores da projectada fuga. — Podemos levar as nossas malas para a estação na noite anterior juntamente com a tua — lembrou ele. — Ninguém notará seguramente a falta da nossa bagagem no sótão. Compraremos também os bilhetes nessa noite. E, a propósito, quem tem dinheiro?
Os três juntaram todo o dinheiro que possuíam, o que era pouco mais do que o custo dos bilhetes.
Partiriam, pois, todos juntos! Agora, que a resolução estava tomada, parecia-lhes impossível que surgisse qualquer coisa que pudesse contrariar a sua decisão.
Fizeram-se, portanto, os planos e na véspera da partida de Filipe, quando a bagagem deste foi tirada para baixo, João conseguiu retirar também a sua sem ninguém dar por isso, e meteu-a num grande armário que havia no seu quarto. Maria da Luz pôde assim fazer as malas à vontade, sem testemunhas.
— Posso levar a minha bagagem para a estação no carrinho? — perguntou Filipe ao Sr. Roy. Como era esse o costume, o professor concordou com um movimento de cabeça, lamentando que, em vez de ser um rapaz a partir, não fossem dois e a catatua.
Os rapazes lá arrumaram as bagagens no carrinho de mão sem serem vistos e largaram para a estação na melhor das disposições. Afinal fugir era bastante fácil. Samuel e Olivério não tinham dado por coisa alguma. O primeiro estava demasiadamente excitado com a sua próxima partida para casa e Olivério excessivamente infeliz com a perspectiva de ficar sozinho para se preocuparem com o que quer que fosse.
Na manhã seguinte, Filipe despediu-se cortesmente do Sr. Roy.
— Adeus, Filipe. Não te portaste mal — redarguiu o professor.
Filipe apertou a mão do Sr. Roy, que recuou ao ver um ratito que pretendia sair da manga do casaco de Filipe, o qual se meteu novamente para dentro.
— Como podes andar com tais bicharocos contigo? — observou o Sr. Roy com uma fungadela valente.
«Onde meteste o lenço?», fez a catatua, pousada, como de costume, no ombro de João.
— Podemos ir com Filipe à estação, Maria da Luz e eu? — perguntou João ao Sr. Roy. A Didi deu uma estrondosa gargalhada e João, com uma palmada leve, intimou-a a que se calasse. «Está calada! Não há motivo para risota».
«Menino maroto», pronunciou a Didi como se percebesse o que se passava no espírito do rapaz.
— Sim, podem ir despedir-se de Filipe — respondeu o Sr. Roy, a quem agradava a ideia de ver-se livre da catatua por pouco tempo que fosse.
Assim, lá foram os três pequenos, rindo à socapa.
A Didi, porém, antes de sair teve ainda uma palavrinha para ele: «Não sabes fechar a porta?».
O Sr. Roy deu um dos seus estalos característicos em sinal de desagrado e bateu a porta com força, ouvindo-se ainda o gargalhar da catatua enquanto os três pequenos iam descendo pela estrada.
«Se tivesse a sorte de nunca mais tornar a pôr a vista em cima de tal pássaro», dizia o Sr. Roy para consigo, mal sabendo que o seu desejo estava em vias de tornar-se realidade.
João, Maria da Luz e Filipe chegaram cedo à estação. Lá estava a bagagem, que o carregador pôs no comboio, numa carruagem completamente vazia que lhes indicou. Ninguém tentou detê-los porque ninguém imaginava que dois deles iam fugidos. Sentiam-se livres, entusiasmados mas um tanto nervosos ao
mesmo tempo.
— Oxalá os teus tios não nos façam vir outra vez recambiados para cá — disse João, dando palmadas amigáveis na Didi para aquietá-la. O bicho não gostava do barulho dos comboios, os quais invectivava para que não apitassem. Uma senhora idosa que ia a entrar para a carruagem, ao ouvir um dos aterradores guinchos da Didi, reconsiderou e foi procurar lugar o mais longe
que pôde.
Por fim, o comboio arrancou, fazendo ruídos roufenhos, o que fez com que a catatua, excitada, o aconselhasse a que se servisse do lenço. Uma vez em marcha, já fora da estação, os três pequenos vislumbraram ao longe, no fundo da encosta, a casa em que tinham vivido durante algumas semanas.
— Afinal cá vamos nós — observou Filipe, satisfeito. — Foi extremamente fácil fugir, não acham? Ena, que divertido vai ser com vocês em casa! Dina, quando nos vir, vai dar pulos de
contente.
— Cá vamos para a Casa do Penhasco — cantarolou Maria da Luz —, para junto das ondas, do vento e do mar! Cá vamos os três a caminho da Casa do Penhasco!
Sim, a caminho da Casa do Penhasco... e das mais espantosas e extraordinárias peripécias que jamais qualquer das três crianças havia sonhado... A caminho da Casa do Penhasco e a caminho da aventura!
A CASA DO PENHASCO.
O comboio corria velozmente através dos campos, passando por muitas estações e parando apenas em algumas. Seguia na direcção da costa, deixando para trás os montes que se erguiam altaneiros, os rios prateados, o casario das grandes cidades.
Chegaram a uma região de costas abruptas e a brisa do mar entrava pelas janelas. — Já se sente o cheiro a maresia — afirmou João, que tinha uma vaga reminiscência do mar por tê-lo visto apenas uma vez.
O comboio parou por fim numa pequena e solitária estação. — Cá estamos — avisou Filipe. — Vamos sair. Eh, Jau! Aqui estou. Trouxeste a velha carripana?
João e Maria da Luz viram um homem de cor dirigir-se para eles. A pele era muito preta, os dentes muito brancos, e revirava os olhos de maneira especial. A correr atrás dele vinha uma rapariga que parecia um pouco mais velha do que a Maria da Luz e era alta para a idade. Tinha, como Filipe, o cabelo ondulado e castanho e, no alto da cabeça, como ele, o mesmo penacho.
«Outro Trunfa», pensou João, «apenas um pouco mais impetuoso. Deve ser Dina».
De facto era Dina, que viera com Jau na velha carripana a cair aos bocados. Estacou admirada ao ver Maria da Luz e João. Este último sorriu e Maria da Luz, sentindo-se subitamente intimidada por esta decidida e desempenada rapariga, escondeu-se atrás do irmão. Dina ficou ainda mais espantada com a Didi, que ordenava nesse momento a Jau que limpasse os pés imediatamente.
«É melhor que tenhas cuidado com a língua», respondeu Jau abruptamente, falando com o pássaro como se fosse gente.
A Didi, com a poupa em riste, rosnou como um cão furioso. Jau ficou-se a olhar intrigado.
— Isso ser pássaro? — perguntou a Filipe.
— Claro, que outra coisa havia de ser? — respondeu Filipe. — Jau, põe essa bagagem, que pertence aos meus amigos, no carro, junto com a minha.
— Eles vir para cá também? — inquiriu Jau com o maior espanto. — Dona Lena não dizer nada de vir amigos, não dizer não.
— Quem são eles, Filipe? — perguntou Dina, acercando-se
do grupo.
— Dois amigos que conheci em casa do Sr. Roy — respondeu Filipe. — Depois te conto tudo. — E piscou o olho a Dina para lhe dar a entender que não lhe poderia explicar enquanto Jau estivesse presente. — Este é o Pintinhas, de quem já te falei e Maria da Luz que também já conheces através das cartas.
Os três apertaram-se solenemente as mãos. A seguir entraram todos para o carro, que seguia às sacudidelas com as bagagens na traseira. Jau levava o carro com velocidade, de maneira peri-gosíssima no parecer de Maria da Luz, que se agarrava onde podia, visivelmente amedrontada.
Passaram por montes áridos, rochosos e nus. Pouco depois, avistaram ao longe o mar, que rochedos escarpados deixavam entrever aqui e além. Aquela era sem dúvida uma encosta agreste e solitária, com as casas abandonadas e em ruínas à beira dos caminhos.
— Foram incendiadas nas batalhas de que te falei — disse Filipe. — E ninguém se deu ao trabalho de as reconstruir. Da Casa do Penhasco ainda alguma coisa escapou.
— Aquele é o rochedo sobre o qual foi construída a Casa do Penhasco — informou Dina, apontando um enorme rochedo, íngreme e abrupto, onde se salientava uma torre pequena e arredondada.
— A Casa do Penhasco está fora do alcance das ondas - disse Filipe —, mas nas noites de tempestade a água bate nos vidros das janelas quase com tanta força como nos rochedos e na praia.
Tudo isto era, para Maria da Luz e João, deveras empolgante. Devia ser excitante estar em casa e sentir a espuma das ondas batendo de encontro às vidraças, e secretamente desejaram que se desencadeasse uma tempestade tremenda enquanto lá estivessem.
— Dona Lena estar à espera de tanta gente? — perguntou Jau, de súbito, evidentemente intrigado com a presença das duas crianças desconhecidas. — Ela não dizer nada a mim disso.
— Ah, não disse? Que estranho! — respondeu Filipe. Didi deu uma gargalhada e Jau franziu o nariz em gesto de desagrado. Uma coisa era certa: ele não ia morrer de amores pela Didi e João ficou particularmente mal impressionado com o olhar com que o pretalhão mimoseou a sua ave favorita.
Dina, de repente, empurrou Filipe, ao mesmo tempo que
soltava um grito agudo. — Que horror, um rato no teu pescoço!
Vi o focinho dele a espreitar por baixo da gola. Sacode-o já,
bem sabes que não suporto ratos.
— Cala-te lá e não sejas palerma — repontou Filipe com
azedume. Dina teve então uma das suas fúrias. Agarrando a gola do casaco do irmão sacudiu-a, tentando assustar o rato e desalojá-lo do seu esconderijo. Filipe, com um encontrão, fez desequilibrar a irmã, que bateu com a cabeça de encontro à capota do carro. Imediatamente Dina deu uma valente bofetada em Filipe. Maria da Luz e João estavam ambos mudos de espanto.
— Animal! — explodiu Dina. — Era melhor que não tivesses voltado para casa. Vai-te embora e leva contigo os teus horríveis amigos.
— Eles não são horríveis — afirmou Filipe em tom mais brando. — São até bem divertidos. E, certificando-se de que Jau não o ouvia, murmurou-lhe ao ouvido. — Eles fugiram de casa do Sr. Roy a meu conselho. O tio deles indemnizará a tia Lena das despesas da estadia e ela poderá, assim, pagar a tal conta de que falaste. Percebes agora?
A cólera de Dina passou-lhe com a mesma rapidez com que tinha vindo. Esfregando a cabeça dorida, pôs-se a olhar interessada para Maria da Luz e para o irmão. Que diria a tia Lena? Onde iriam eles dormir? Aquilo iria ser divertido.
Jau continuava a conduzir imprudentemente o carro pela estrada pedregosa e esburacada. João perguntava a si mesmo como havia um carro capaz de aguentar tão desastrada maneira de conduzir. Subiram a ladeira até ao rochedo e seguiram depois por um atalho escuso que descia, serpenteando, até à casa.
Subitamente começou a ouvir-se o mar a rugir e, em cima, a meio da encosta, avistou-se a Casa do Penhasco, taciturna e sombria. O carro parou e todos saltaram para fora. João contemplou aquela casa de aspecto tão estranho num lugar tão curioso. Antigamente teriam existido duas torres mas uma delas tinha ruído.
A casa, construída com grandes pedras acinzentadas, não obstante ser pesada e feia, tinha ao mesmo tempo um certo ar de grandeza, enfrentando o mar, sobranceira e austera como que lançando um desafio à ventania e ao mar irrequieto. João volvia agora os olhos para a água. Volteando em círculos no ar viam-se centenas de aves marinhas de todas as espécies. Era um verdadeiro paraíso de pássaros selvagens. O coração do rapaz rejubilou de contentamento. Aves às centenas, aos milhares! Poderia estudá-las a seu bel-prazer, procurar-lhes os ninhos, fotografá-las à vontade!
Uma mulher veio abrir a porta e olhou admirada para as quatro crianças. Era magra e tinha o cabelo grisalho e crespo.] O seu aspecto era o de uma pessoa cansada e precocemente envelhecida.
— Viva, tia Lena! — gritou Filipe, galgando os degraus de pedra. — Cá estou de volta!
— Bem vejo — respondeu ela, dando-lhe na cara um beijo repenicado. — Mas estes... quem são?
— São meus amigos, tia Lena — explicou Filipe, muito
sério. — Não podiam ir para casa porque o tio deles partiu uma perna e eu trouxe-os para cá visto que ele paga todas as despesas a quem tomar conta deles.
— Filipe! Mas como te atreveste a fazer uma coisa dessas? Aparecer assim com pessoas sem me prevenires! — objectou a tia Lena, secamente. — Onde vou deitá-los, não me dirás? Sabes muito bem que temos falta de espaço.
— Podem dormir no quarto da torre — sugeriu Filipe.
O quarto da torre! Que maravilha! João e Maria da Luz estavam fascinados.
— Mas não temos lá camas — ripostou, em tom desagradável, a tia Lena. — Terão de ir-se embora. Podem passar cá esta noite e irem-se embora depois.
Maria da Luz estava quase a chorar. Havia na voz da tia Lena uma aspereza que ela não podia suportar. Compreendeu que não a queriam lá e sentiu-se muito infeliz. Mas João pôs-lhe o braço à volta do pescoço e abraçou-a com força.
Ele estava firmemente resolvido a não se ir embora. Depois de ver todos aqueles pássaros, pairando e volteando nos ares, cortando rápidos os espaços... quem lhe dera poder contemplá-los longamente, deitado sobre os penhascos! Decididamente não
se iria embora!
Entraram todos em casa com Jau carregando as malas. A tia Lena olhou a Didi com olhos francamente desfavoráveis.
— Uma catatua ainda por cima! — resmungou.—Pássaro embirrante, guinchador e barulhento! Nunca gostei de aves pal-radoras. Bem basta a infinidade de animais que arrastas para casa, quanto mais agora ainda uma catatua para completar a
colecção.
«Coitadinha da Lena! Coitadinha da Lena», fez a Didi inesperadamente. A tia Lena, atónita olhou para o pássaro.
— Como sabe ela o meu nome? — perguntou com o maior espanto.
Claro que Didi não lhe sabia o nome. Lena era apenas um dos nomes por que às vezes a designavam, e ela própria dizia: «Coitadinha da Lena» como podia dizer: «Coitadinha da Didi» Mas, sentindo instintivamente que havia impressionado aquela mulher de voz áspera, repetiu em tom triste, como se estivesse prestes a desfazer-se em lágrimas:«Coitadinha da Lena! Coita dinha da minha querida Lena!»
— Nunca vi coisa assim! — admirou-se a tia Lena, olhando a catatua com melhores olhos. Tantas vezes a tia Lena se sentira doente, cansada e deprimida sem que ninguém parecesse dar por isso, nem tão-pouco lhe tivesse dirigido palavras de conforto. E era agora um pássaro que tinha pena dela e lhe falava num tom mais afável do que ninguém há já muitos anos.
A tia Lena sentiu que o caso era um pouco estranho, mas também bastante agradável.
— Podes levar um colchão para o quarto da torre e dormir com o rapaz... como se chama ele? — dirigiu-se a tia Lena a Filipe. — A pequena pode dormir com Dina. A cama é pequena mas é a que há. Se trazem para cá pessoas sem me prevenir, não podem esperar que eu tenha as coisas preparadas.
As crianças deliciaram-se depois com uma boa refeição. A tia Lena era boa cozinheira. Preparou-lhes uma espécie de chá-jantar, ao qual elas fizeram bem as honras. Nada mais tinham comido ainda além das sanduíches que o Sr. Roy tinha mandado preparar para Filipe... e um pacote de sanduíches não dá para muito quando tem de ser partilhado por três crianças esfomeadas.
Dina deu um espirro e a catatua repreendeu-a com voz autoritária:
«Onde meteste o teu lenço?»
A tia Lena olhou a ave com manifesta admiração.
— É precisamente isso que eu passo a vida a dizer a Dina — observou ela. — Este pássaro parece-me um prodígio de sensatez.
A Didi era sensível à admiração da tia Lena.
«Coitadinha da Lena, coitadinha da querida Lena», papagueava ela, com a cabeça inclinada para o lado e um olho a luzir para a tia Lena.
— A tia Lena gosta mais da catatua do que de ti — comentou, sorrindo, Filipe ao ouvido de João.
Depois de comerem, a tia Lena levou Filipe ao escritório, à presença do tio. Bateram à porta e entraram. O tio Renato estava inclinado sobre uma rima de papéis amarelecidos que examinava com o auxílio de uma lente. — Com que então já de volta? Trata de portar-te bem e sobretudo não me apareças à frente. Vou ter muito que fazer durante estas férias — resnungou ele.
— Renato, Filipe trouxe dois pequenos com ele... e uma catatua — disse dum jacto a tia Lena.
— Uma catatua? — exclamou o tio Renato. — Uma catatua? E para quê?
— Renato, a catatua pertence a um dos pequenos que vieram com Filipe — esclareceu a tia Lena — e ele queria que os pequenos cá ficassem.
— Impossível ficarem connosco. Quanto à catatua, tanto me faz — respondeu o tio Renato. — Deixa-a ficar se te apraz e se não a queres manda-a embora. Deixa-me em paz. Tenho que fazer. — E novamente se inclinou sobre os documentos. A tia Lena deu um suspiro e fechou a porta atrás de si. «Ele está de tal maneira interessado no passado que não quer saber do presente», pensava ela, falando alto. «Bom, não há dúvida de que tenho eu de falar com o Sr. Roy, que deve estar em cuidado por causa destas crianças».
Dirigiu-se para o telefone. Filipe foi-lhe na peugada, ansioso por saber o que diria o professor. Dina espreitou da sala de estar e Filipe apontou para o telefone. Se ao menos o Sr. Roy estivesse zangado e não quisesse tornar a receber João e Maria da Luz... E se a tia Lena achasse que o dinheiro do cheque era suficiente para valer a pena deixá-los ficar...
INSTALAÇÃO NA CASA DO PENHASCO
Antes que a tia Lena se pusesse em contacto com o Sr. Roy, pareceu que decorrera um século. O professor estava aflito sem saber o que pensar. Como João e Maria da Luz não tinham voltado, ele supusera a princípio que tivessem ido dar um dos seus passeios costumados e que João, tendo encontrado algum pássaro estranho, se tivesse esquecido das horas.
Como, porém, o tempo ia passando sem que os dois pequenos regressassem, estava seriamente inquieto. Não lhe ocorrera que tivessem ido com o Filipe senão teria logo telefonado para casa dos tios do rapaz.
Ficou imensamente aliviado ao saber pelo telefonema da Sr.a Sullivan, a tia de Filipe, que as crianças estavam com ela sãs e salvas.
— Chegaram na companhia de Filipe — disse ela com certa aspereza. — Não faço ideia como é que alguém pôde consentir que fizessem uma coisa destas porque de maneira nenhuma posso tê-los cá.
O Sr. Roy ficou desolado. Estivera por momentos convencido de que o problema do alojamento de João e Maria da Luz e daquela abominável ave ia ficar resolvido, mas eis que tudo parecia voltar ao princípio.
— Bom, Sr.a Sullivan — concluiu o Sr. Roy amavelmente, ainda que no íntimo se sentisse com pouca disposição para amabilidades —, peço-lhe então mil desculpas. Os pequenos foram despedir-se de Filipe e este deve tê-los persuadido a acompanhá-lo. É realmente pena que não possa olhar por eles até ao fim das férias porque tenho a certeza de que se sentiriam muito felizes junto de si e de Filipe. Certamente os pequenos devem ter-lhe explicado que o tio não pode tê-los lá esta época e me mandou Um cheque avultado na esperança de que eu pudesse tomar conta deles. Teria muito prazer em remeter-lhe este cheque, Sr.a Sullivan, no caso de querer encarregar-se das crianças, estando o Sr. Trent de acordo, evidentemente.
Houve então uma pausa. — De quanto é o cheque? — perguntou a tia Lena.
Seguiu-se outra pausa depois que o Sr. Roy indicou o montante da quantia que lhe havia sido enviada. «Era sem sombra de dúvida uma avultada soma», pensou a Sr.a Sullivan rapidamente. «E não iria gastar grande coisa com o sustento das crianças. Estaria atenta para que deixassem Renato em sossego. A pequena Maria da Luz poderia ajudar Dina na lida da casa e ela própria teria finalmente possibilidade de pagar umas quantas contas, o que muito a aliviaria».
O Sr. Roy aguardava esperançado do outro lado do fio sem poder admitir a possibilidade de voltar a ter a catatua em casa. João era suportável, Maria da Luz encantadora, mas a tal Didi era intolerável.
— Bom — disse a Sr.a Sullivan no tom de voz de quem está preparada para ceder. — Bom, deixe-me cá pensar. Vai ser um tanto difícil visto que lutamos com falta de espaço. Isto é, a casa é enorme, mas grande parte está em ruínas e é demasiadamente ventosa para ser habitável. No entanto, talvez nos possamos acomodar se voltarmos a ocupar os quartos da torre...
Filipe e os outros, que ouviam distintamente tudo o que a Sr.a Sullivan dizia, entreolharam-se radiantes. — A tia Lena consente! — sussurrou Filipe. — Oh, João, vais ver que vamos ter o quarto da torre só para nós! Eu sempre desejei lá dormir e fazer dele o meu quarto, mas a tia Lena nunca me deixou.
— Seria grande bondade da sua parte, Sr.a Sullivan, se quisesse livrar-me da responsabilidade de tomar conta das crianças — dizia o Sr. Roy sinceramente. — Vou telefonar de seguida ao Sr. Trent. Deixe o caso comigo e asseguro-lhe que pode ficar descansada. Quanto ao cheque seguirá imediatamente e se por acaso for preciso mais algum dinheiro peço-lhe que me informe, que eu providenciarei sem demora.
Acredite que não tenho palavras para lhe agradecer este enorme favor. Os pequenos são fáceis de levar, e Maria da Luz é um encanto. Há só aquela abominável catatua... tão atrevida... mas talvez possa arranjar-lhe uma gaiola...
— A catatua não me faz transtorno — atalhou a Sr.a Sullivan, cujas palavras surpreenderam grandemente o Sr. Roy. A Didi deu um berro que foi ouvido pelo professor através do telefone. Se a Sr.a Sullivan gostava da Didi é porque era sem dúvida uma mulher notável!
Pouco mais foi dito. A Sr.a Sullivan afirmou que escreveria ao Sr. Trent, depois de voltar a falar com o Sr. Roy. Entretanto encarregar-se-ia de olhar pelas crianças até ao fim das férias.
Os quatro pequenos viram com um suspiro de alívio a tia desligar o telefone.
— Muito obrigado, tia Lena. Eu e a Dina estamos contentíssimos por os nossos amigos ficarem connosco. E Verá que não incomodaremos o tio e que a ajudaremos o melhor que pudermos.
«Querida Lena!», fez a Didi com meiguice.
Deixando o ombro de João, voou para o de Lena, com grande espanto das crianças. Valente Didi! Ia tentar conquistar a tia Lena...
«Avezinha pateta!» disfarçou a tia Lena não querendo dar mostras da sua satisfação.
«Viva o Rei!», fez inesperadamente a Didi, e todos riram.
— Filipe, tu e o João têm de ficar com o quarto da torre — disse a tia Lena. — Venham comigo para ver o que será preciso arranjar. Dina, leva a Luzinha ao teu quarto e vejam se querem ficar lá as duas, ou se ela prefere dormir no antigo quarto de Filipe. Como há uma porta de comunicação entre eles, parece-me que seria melhor ficar cada uma no seu quarto.
Dina foi de bom grado examinar com Maria da Luz os quartos. Esta lamentava não poder ficar mais perto de João, e o quarto da torre era um pedaço afastado do local onde ela iria dormir. João levou a Didi e acercou-se de uma das janelas mais altas, sentando-se sobre uma arca para contemplar as aves marinhas que se moviam velozes nas alturas no seu voar incessante.
Filipe acompanhou a tia ao quarto da torre. Sentia-se imensamente feliz porque, tendo-se tornado deveras amigo de João e de Maria da Luz, quase lhe custava ainda acreditar que realmente tivessem tido a sorte de ficar a viver com eles durante algumas semanas.
Atravessaram ambos um corredor lajeado e chegaram a uma estreita escada de pedra em espiral onde o frio era intenso. Subiram os degraus e, depois de voltas sucessivas, desembocaram finalmente no quarto da torre. Este, de forma absolutamente circular, tinha paredes espessas e três janelas estreitas, uma das quais dava para o mar. Não tinha quaisquer vidraças, o que dava motivo à existência de correntes de ar e a que lá dentro se ouvisse fortemente o grito das aves marinhas e o fragor das ondas ecoando na torre.
— Receio que este quarto seja demasiadamente frio para vocês — disse a tia Lena, mas Filipe abanou a cabeça com energia.
— Não nos importamos. Se as janelas tivessem vidros teríamos de abri-las, tia Lena. Está óptimo e vamos sentir-nos lindamente cá em cima. Olhe, até temos uma velha arca de carvalho
para guardar a roupa... e um banco de madeira... e podemos trazer lá de baixo um tapete. Só precisamos de um colchão.
— Bem, é impossível trazer uma cama por estas escadas acima — declarou a tia Lena. — Terão de contentar-se com um colchão. Tenho um já muito usado mas que deve servir. Vou mandar Dina cá acima com um pano e uma vassoura para limpar um pouco isto.
— Muito obrigado mais uma vez, tia Lena, por tornar tudo isto possível — disse Filipe, meio intimidado, porque tinha um certo medo daquela tia com quem vivia sempre durante as férias, mas que apesar disso não conhecia muito bem. — Espero que o cheque do Sr. Trent a compense de todas as despesas e estou certo de que o João e a Maria da Luz não a obrigarão a gastar muito.
— Filipe, meu filho, não quero que penses que estou a fazer disto um bicho de sete cabeças, mas a verdade é que a tua mãe, que não tem estado bem ultimamente, nada tem podido mandar que se pareça com o que enviava habitualmente... e, como sabes, as vossas mensalidades na escola são bastante avultadas e eu tenho andado aflita sem saber o que hei-de fazer. Já és suficientemente crescido para compreenderes que o tio Renato não é pessoa capaz de prover ao sustento de uma casa e — continuou ela, fechando a tampa da arca e voltando para o sobrinho uma cara angustiada — o pouco que tenho depressa se vai.
Filipe ouvia-a alarmado. A mãe estava doente e a tia Lena não tinha recebido a pensão do costume... tudo isto lhe dava motivos de preocupação.
— Que tem a mãe? — perguntou.
— Está muito magra e esgotada e diz que tem uma tosse horrível — respondeu a tia Lena. — Os médicos mandaram-na descansar uns poucos de meses, de preferência à beira-mar... mas como pode ela deixar de trabalhar?
— Não volto para a escola — declarou Filipe sem hesitar — e arranjo um emprego qualquer. Não posso consentir que ela se mate a trabalhar por nossa causa.
— Não podes fazer isso. Bem vês, ainda não tens catorze anos sequer. Não... agora, que vai entrar o dinheiro do senhor Trent, ficaremos um pouco mais aliviados.
— Esta casa é grande de mais para nós — disse Filipe dando-se de repente conta do parecer cansado da tia. — Tia Lena, porque vivemos aqui? Porque não nos mudamos para uma casinha pequena, seja lá onde for, mas em que não tenha de trabalhar tanto e onde não esteja tão só?
— Eu bem gostaria — respondeu a tia Lena com um suspiro
— mas quem compraria uma casa destas, meia a cair, num sítio tão desabrigado e triste? Além disso nunca convenceria o teu tio a mudar-se. Ele tem amor a esta casa, a toda esta costa, e sabe mais a respeito dela do que ninguém em todo o mundo. Bem... não adianta desejarmos isto ou aquilo. Temos de continuar assim até que Dina e tu tenham idade para ganhar, cada um, a sua vida.
«Então arranjarei uma casa para a mãe, e ela, Dina e eu viveremos contentes todos juntos», ia pensando Filipe enquanto, com a tia, seguia pelas escadas abaixo para ir buscar o colchão. Chamou por João e os dois lá conseguiram, depois de porfiados esforços, transportar o colchão através da estreita escada de caracol. A Didi encorajava-os com guinchos e arremedos, que faziam Jau, o preto, carregar o sobrolho. Este parecia convencido de que a catatua dava aqueles guinchos para o arreliar, e a Didi que por sua vez percebera a aversão do preto por ela, soltava-lhe inesperadamente, sempre que se lhe apresentava ocasião, os mais insólitos gritos ao ouvido.
Jau carregara para cima uma mesa pequena e a mala de João. Depois de colocar ambas as coisas no quarto da torre pôs-se à janela a olhar. «Parece extremamente mal humorado», pensou Filipe. «Não que o tivesse visto alguma vez bem disposto, mas está ainda mais carrancudo do que habitualmente».
— Que foi, Jau? — perguntou Filipe, que nenhum medo tinha do criado. — Viste coisa ruim?
As crianças troçavam da casmurrice de Jau, que afirmava aparecerem ali «coisas», mas o preto não estava, ao que parece, com disposição para gracejos.
— A Sr.a Dona Maria Helena não devia servir-se deste quarto
— afirmou ele. — Não devia, não, e eu já disse a ela muitas vezes que neste quarto há feitiço. Quando se levanta o nevoeiro avista-se daqui a Ilha das Trevas e isso dá azar.
— Não sejas estúpido, Jau — observou, rindo, Filipe. «Não sejas estúpido, Jau», repetiu a Didi numa imitação
exacta da voz de Filipe.
— Mim falar verdade, menino Filipe — replicou Jau, em tom de reprovação. — Fuja de olhar pela janela deste quarto, que tem coisa ruim, por se avistar a ilha das Trevas. A ilha tem mau olhado; houve lá homens maus, que faziam crueldades. Sempre veio de lá mal, até onde a gente se lembra.
Concluído este aviso lúgubre, o preto partiu pelas escadas abaixo a revirar os olhos nas órbitas para voltar a olhar para os dois rapazes com ar carrancudo.
— Companhia agradável, não te parece? — comentou Filipe, enquanto ajudava o João a desenrolar o colchão. — É meio doido pela certa. Também para estar cá e sujeitar-se aos trabalhos que tem a seu cargo tem de ser imbecil. Em qualquer outro sítio ganharia incomparavelmente mais dinheiro.
— Que ilha das Trevas é essa a que ele se refere? — perguntou João, acercando-se da janela. — Que nome singular! Mas eu não enxergo ilha alguma.
— É raro distinguir-se daqui — informou Filipe. — Fica nesta direcção, para Leste, e está rodeada por uma fileira de recifes contra os quais as vagas se quebram, elevando-se a alturas consideráveis. Está continuamente envolta em neblina e ninguém lá vive há muitos anos.
— Quem me dera lá ir! — exclamou João. — Deve haver nessa ilha milhares de pássaros absolutamente mansos e amigos, que eu daria tudo para ver.
— Mansos e amigos? Que queres dizer, Pintinhas? — exclamou Filipe, sem compreender. — Olha para os pássaros daqui... até a Didi os assusta!
— Ah, mas é que os pássaros da ilha das Trevas desconhecem completamente o homem — objectou João — e não aprenderam, portanto, a ser cautelosos nem prudentes. Poderia tirar belas fotografias. A sério, adorava lá ir!
— Pois sim, mas não podes — disse Filipe. — Eu próprio nunca lá fui, nem ninguém, que eu saiba. Que te parece?
O colchão ficará bem aqui? Não convém ficar demasiadamente perto das janelas senão a chuva molha-o e as chuvas nesta região são bastante frequentes.
— Põe-no onde te aprouver — disse João, absorto a sonhar com a ilha enevoada e com aves nunca vistas. Quem sabe se habitariam lá raças desconhecidas. Poderia até encontrar ninhos e ovos raros, e tirar de tudo isto as mais belas fotografias do mundo. João estava absolutamente decidido a ir, se houvesse oportunidade, à ilha das Trevas, a despeito das histórias fantásticas e aterradoras de Jau. — Já podemos ir para baixo, para junto das raparigas — disse Filipe, pondo dentro da arca a última peça de roupa. — Não pode dizer-se que a tua ajuda me tenha servido de muito. Anda, Didi.
Desceram a escada estreita até ao andar inferior, onde estavam os outros. Que agradável era agora pensar nas semanas que iriam passar ali sem estudos nem lições — a nadar, remar e escalar montes e penhascos. Muito iriam divertir-se por certo!
DECORRERAM OS DIAS
As raparigas tinham resolvido ocupar os dois quartos. Eram uns quartos tão exíguos que seria bem mais fácil conservar dois quartos arrumados de que um só com duas pessoas a dormir nele.
— Ficaríamos sem nos podermos mexer se tentássemos guardar todas as tuas coisas no meu quarto — tinha dito Dina, com inteira aprovação de Maria da Luz. Esta última tinha ido ver o quarto da torre, que lhe agradara muito.
Muito gostaria de ter também um quarto sem vidraças, «devia ser quase tão bom como dormir ao relento», pensava a rapariguinha, debruçando-se de uma das janelas e deliciando-se com a brisa do mar a passar-lhe por entre os cabelos.
Os quartos das duas raparigas também davam para o mar, mas numa direcção diferente da dos rapazes, de modo que a ilha das Trevas não poderia ser avistada dali. João pôs Maria da Luz a par do que Jau dissera e a rapariguinha pareceu ficar razoavelmente assustada.
— Não vale a pena afligires-te. Jau tem um opulento repertório de lendas e histórias macabras — disse Filipe com uma gargalhada. — Nada há de verdadeiro em tais histórias e creio que se diverte apenas a assustar as pessoas.
Era uma sensação estranha dormir pela primeira vez na Casa do Penhasco. Maria da Luz manteve-se por largo tempo acordada, atenta ao som cavo das ondas ao quebrarem-se lá em baixo de encontro às rochas. Ouvia também o barulho do vento, de que tanto gostava. Que diferente era isto da cidadezinha pacata em que o tio Alfredo vivia e onde tudo parecia semi-adormecido. Ao menos ali havia barulho e movimento, o cheiro da maresia, o vento do mar a bater-lhes na cara.
Na solidão da Casa do Penhasco tudo podia acontecer por mais fantástico e extraordinário que fosse.
Também João, no quarto da torre, não tinha podido ainda conciliar o sono. No colchão a seu lado, Filipe dormia. João levantou-se e foi até à janela. O vento açoitava com força as janelas fronteiras ao mar e rodopiava sem cessar dentro do quarto. O rapaz deitou a cabeça de fora da janela e vislumbrou, rompendo através das nuvens, uma Lua pálida. Lá em baixo, as águas revoltas em remoinhos galgavam por sobre as rochas negras cada vez mais alto, porque a maré vinha subindo. A espuma, batida pelo vento, saltitava no ar e João iria jurar que sentia na cara uns salpicos, a respeito da grande altura da torre. Ao passar a língua pelos lábios, soube-lhe deliciosamente a sal.
Um pássaro piou, cortando o silêncio da noite. Era um pio dolorido e triste e João, impressionado, ficou-se absorto a imaginar a espécie a que aquele pássaro pertencia. Seria alguma ave rara? O mar rolava e o vento, em rajadas fortes, bramia. Era Verão mas a Casa do Penhasco estava situada numa região tão particularmente ventosa que era constantemente assolada por vendavais.
De repente, João deu um salto, sentindo qualquer coisa tocar-lhe no ombro. O coração batia-lhe com força. Mas era apenas a Didi e João riu divertido.
A Didi dormia sempre com João onde quer que ele estivesse. Geralmente empoleirava-se na cabeceira da cama com a cabeça escondida debaixo da asa; mas desta vez não havia cabeceira, apenas um colchão estendido directamente no chão.
Didi lá arranjou um poleiro pouco confortável na borda da arca. Mas ao ouvir João levantar-se para ir à janela, voou para o seu poleiro habitual e aninhou-se-lhe no ombro, pregando-lhe assim um susto.
«Vai para a cama, maroto», ordenou a catatua. «Vai já para a cama».
João sorriu. A Didi era engraçada quando calhava ter ditos a propósito. Coçou-lhe a cabecita, falando-lhe em voz baixa para não acordar Filipe.
«Vais ver como te armo amanhã um poleiro», dizia-lhe. «Bem sei que não podes dormir em cima dessa arca. E agora vou deitar-me. Está uma noite agreste, mas eu gosto. E tu?»
Voltou para a cama a tremer de frio, mas depressa se sentiu aquecer, aninhando-se de encontro às costas de Filipe, e adormeceu para logo sonhar com milhares de aves marinhas, dirigindo-se para ele com a maior mansidão para que as fotografasse.
De princípio Maria da Luz e João estranharam um pouco a vida na Casa do Penhasco depois de tantos anos passados numa casa vulgar duma cidadezinha banal.
Não havia electricidade, nem água quente e fria a correr das torneiras. Não havia lojas a cada esquina, nem um jardim como o do bairro deles.
Havia candeeiros de petróleo, que tinham de ser arranjados e limpos todos os dias, e velas para acender. A água tinha de ser tirada dum poço muito fundo e João estava muito interessado no poço.
Num pátio pequeno, aberto nos penhascos, estava o poço que abastecia a casa de água e, com grande surpresa dos dois pequenos, a água era doce.
— A água é pura e perfeitamente boa para beber — tinha dito Dina, tirando da corda um balde cheio. — A água desce por entre os penhascos, muito abaixo do fundo do mar, cristalina, pura e fria como gelo. Ora provem.
Era agradável ao paladar e tão fria como qualquer outra água gelada que tivessem bebido em dias quentes de Verão. João espreitou para dentro do poço escuro e profundo.
— Gostaria imenso de descer ao poço montado no balde para ver que fundura tem — disse ele.
— Passarias um mau bocado se ficasses preso e não pudesses tornar a subir — comentou Dina com uma gargalhada. — Vamos, João, vem ajudar-me e não fiques para aí especado a sonhar. Tu andas sempre a sonhar.
— E tu, com os teus repentes e impaciências... — lançou-lhe Filipe à queima-roupa, ao que Dina respondeu com um olhar de poucos amigos.
Era de temperamento exaltado e facilmente assomadiça.
— Se tivesses de fazer metade do trabalho de que nos incumbiram, à Luzinha e a mim, terias de ser também repentista — ripostou ela. — Anda, Maria da Luz, deixemo-los a desenvencilharem-se das suas tarefas, se bem que os rapazes não sirvam para grande coisa.
— Também me parece melhor que te vás embora antes que apanhes uma bofetada — gritou-lhe Filipe, desatando a fugir na direcção oposta para que Dina se lançasse furiosa atrás dele. Maria da Luz ficava admirada e chocada com as contínuas zaragatas deles, mas em breve percebeu que as zangas lhes passavam tão depressa como vinham e acabou por habituar-se a elas.
Fazer as compras era um caso complicado e significava que Jau tinha de ir na velha Dona Elvira duas vezes por semana até à aldeia mais próxima, com uma longa lista do que havia a comprar. Quando se esquecia de alguma coisa teriam de passar sem ela até à próxima vez. Os legumes eram produzidos por um pedaço de terra, tratado por Jau, existente numa depressão do rochedo para as bandas das traseiras da casa.
— Porque não vamos com o Jau dar um passeio de automóvel?— sugeriu uma manhã Maria da Luz, mas Filipe abanou a cabeça.
— É escusado — disse ele. — Temos pedido ao Jau centenas de vezes e ele nunca acedeu. Recusa-se terminantemente e diz que nos atira do carro abaixo se nos metermos lá dentro para ir com ele. Uma vez em que teimei e me escondi no carro ele cumpriu a ameaça e atirou-me cá para fora.
— Ora o grande animal! — exclamou João, atónito. — Não percebo como vocês o aturam.
— Mas quem pensas tu que queria vir servir-nos nestas remotas paragens? — observou Diná. — Ninguém! E o próprio Jau é porque é semilouco.
Em todo o caso Maria da Luz pediu a Jau que a levasse com ele quando fosse às compras.
— Não — disse o preto com aspereza.
— Deixa, Jau — disse Maria da Luz com olhar suplicante. Geralmente ela conseguia aquilo em que punha empenho mas com Jau não levava a melhor.
— Já disse que não — repetiu o pretalhão, e afastou-se com os braços a balouçar desajeitadamente. Maria da Luz ficou-se pensativa a olhá-lo. Que hediondo ele era! Porque não havia de levá-los no carro às compras? Só para os arreliar, decerto.
Era bem divertido viver na Casa do Penhasco, apesar de todas as dificuldades. Por exemplo, banhos quentes só podiam ser tomados uma vez por semana. Isto é, podiam tomar-se todos os dias se alguém acendesse o fogão de cobre e quisesse carregar a água durante milhas, através de corredores lajeados, para um quarto acanhado a que davam o nome de casa de banho.
Depois de ter experimentado fazer isto uma vez, João compreendeu que não era realmente de grande importância tomar banho na Casa do Penhasco visto que poderia, em substituição, tomar dois ou três banhos de mar por dia.
Às raparigas foram distribuídas tarefas caseiras, das quais se desenvencilhavam o melhor que podiam, e a tia Lena encarregava-se da cozinha. O tio Renato não aparecia nem para as refeições. Era a tia Lena quem lhas levava ao escritório e as crianças mal davam pela presença dele na casa.
Os rapazes foram encarregados de tirar água do poço, trazer a lenha para a cozinha e encher o depósito do fogão. Revezavam-se com as raparigas para a limpeza e arranjo dos candeeiros, o que ninguém gostava de fazer por ficarem todos enfarruscados.
Jau cuidava do carro e da horta, esfregava o chão e limpava as janelas quando ficavam sujas da espuma salgada e fazia toda uma infinidade de outros serviços. Tinha um barco só dele, sólido e de boa construção, com uma vela pequena.
— Ele deixar-nos-á andar nele? — perguntou João.
— Nem penses nisso — respondeu Filipe com desdém. — E não te lembres de servir-te dele sem licença; ele batia-te sem dó. Aquele barco é tudo para ele, e não nos deixa sequer lá pôr os pés.
João foi vê-lo de perto. Era na verdade um belo barco e devia ter custado bom dinheiro. Tinha sido pintado recentemente e mostrava estar na melhor afinação. Tinha remos, um mastro, uma vela e uma boa porção de apetrechos de pesca.
João desejaria ardentemente poder ir nele um dia e fazer-se ao largo.
Enquanto assim estava em frente do barco, cogitando se devia ou não arriscar-se a saltar lá para dentro e deixar-se balouçar ao sabor das ondas, apareceu o preto com uma expressão ainda mais carrancuda do que habitualmente.
— Que faz o menino aqui? — inquiriu ele, com os olhos a rolar de tal maneira que deixavam a descoberto as esclerótidas. — Este barco é só meu.
— Está bem, está bem — disse João, irritado. — Não posso olhar para ele?
— Não — disse Jau, cada vez mais zangado.
«Maroto», fez a Didi e deu um guincho aos ouvidos de Jau, o qual ficou capaz de torcer-lhe o pescoço.
— És simpático, não haja dúvida — comentou João, batendo em retirada e sentindo-se subitamente amedrontado pelo obstinado preto. — Mas fica sabendo que ainda um dia hei-de andar num barco e não serás tu quem mo impedirá.
Jau ficou a olhar para João, que se ia afastando, com os olhos semicerrados, faiscando de cólera. Ora o atrevido do rapaz! Jau se encarregará certamente de impedi-lo de fazer o que lhe aprouver.
CURIOSA DESCOBERTA
Se não fosse Jau, a vida na Casa do Penhasco, uma vez as crianças integradas nas suas tarefas diárias, seria muito agradável. Havia tão grande variedade de diversões... nadar ao abrigo da enseada nas águas tranquilas, o que era delicioso; explorar as grutas sombrias e húmidas; pescar à linha de cima das rochas, entusiasmava-as porque conseguiam apanhar às vezes grandes peixes.
Mas Jau estragava sempre tudo com os seus ralhos e contínuas interferências, aparecendo sempre onde quer que as crianças estivessem. Se estavam a tomar banho, a sua cara negra aparecia por trás dos penhascos. Se estavam a pescar ia ter com eles às rochas, a rabujar porque estavam a perder tempo.
— Oh, deixa-nos em paz, Jau! — exclamava Filipe impacientemente. — Parece que alguém te nomeou nosso guardião. Por favor, vai lá para os teus afazeres e deixa-nos fazer o que nos apetece. Descansa que não fazemos tolices.
— A Sr.a Dona Maria Helena disse-me que vigiasse os meninos todos e não lhes deixasse correr nenhum perigo, tá ver? — dizia Jau com ar embirrento.
— Não, não estou a ver nada. Só te vejo a ti a meter o nariz onde não és chamado e a estragares todos os nossos divertimentos. É melhor que não continues a espreitar-nos, achamos isso detestável.
Maria da Luz ria à socapa. Era preciso coragem da parte de Filipe para falar ao pretalhão daquela maneira. Que grande impecilho ele era, na verdade! Como seria divertido se ele não fosse um desmancha-prazeres e não andasse sempre de mau humor! Poderiam passear e pescar no barco dele, e sair de carro e fazer piqueniques.
— Mas só por ser tão imbecil e rabujento não podemos fazer nada disso — dizia Maria da Luz. — Vejam lá! Podíamos tentar mesmo navegar até à ilha das Trevas como o João tanto queria para ver se há lá pássaros ou não. Tudo isto podia fazer-se se ele fosse amigo de fazer vontades.
— Nem ele é amigo de fazer vontades nem nunca na vida nós iremos à ilha das Trevas, e se lá chegássemos a ir aposto que não encontraríamos sombra de pássaros em sítio tão inóspito — concluiu Filipe. — Venham, temos de explorar a gruta grande que ontem descobrimos.
Era realmente divertido explorar as grutas ao longo da praia. Algumas, em forma de túnel, estendiam-se bem profundamente pelo interior dos rochedos. Outras tinham buracos esquisitos no tecto, que levavam a outras grutas. Filipe explicou que em tempos remotos os homens se serviam das grutas para se esconderem e armazenar o contrabando. Mas agora nada mais existia além de algas e conchas vazias.
— Que pena não termos uma lanterna eléctrica — lamentou João ao extinguir-se a sua sexta vela. — E daqui a pouco acabam-se as velas. Ainda se aqui perto houvesse uma loja aonde dar um pulo e comprar uma lanterna. Pedi ontem ao Jau que me comprasse uma, quando foi no carro às compras, mas, claro, não a comprou.
— Olhem! Aqui está uma enorme estrela-do-mar! — exclamou Filipe, aproximando a vela do chão húmido da gruta. — Reparem, é com certeza um exemplar gigante.
Dina ficou arrepiada. Ela detestava os bichos rastejantes tanto quanto Filipe gostava deles. — Não lhe toques e não te lembres de trazer isso para o pé de mim!
Mas Filipe gostava de a arreliar e, apanhando do chão a enorme estrela-do-mar, de cinco longos braços, caminhou para junto da irmã. Dina enfureceu-se.
— És mesmo bruto! E eu que te tinha dito que não pusesses esse bicharoco ao pé de mim. Se lhe deito a mão, mato-o.
— As estrelas-do-mar não morrem — declarou Filipe. — Se cortares uma ao meio, tornam-lhe a crescer as pernas e num fechar de olhos tens duas estrelas em vez de uma. Olha para ela, Dina. Apalpa-a... achas que cheira bem?
Filipe atirou com a grande estrela à cara da irmã. Dina, aterrorizada, deu tal empurrão a Filipe que este, cambaleando, se desequilibrou e caiu desastradamente no solo. A vela apagou-se, ouviu-se um grito de Filipe, seguido de um estranho ruído roçagante, e depois o silêncio.
— Eh, lá, Trunfa! Magoaste-te? — gritou João, levantando a vela ao alto. Com grande espanto viu que Filipe tinha desaparecido. Lá estava a estrela-do-mar no chão, sobre as algas, mas do rapaz nem sinal.
As três crianças examinavam perturbadas os enormes novelos de algas suspensas das paredes da gruta e espalhadas pelo chão. Para onde teria ido Filipe?
Dina estava assustada. Era verdade que tinha querido acertar em Filipe de rijo, mas não certamente com a intenção de fazê-lo desaparecer da face da terra.
— Filipe! Estás escondido? Sai cá para fora, palerma! — gritou ela.
Ouviu-se uma voz abafada:
— Céus... mas onde estou eu?
— É a voz do Trunfa — afirmou João. — Mas onde estará ele? Tem de estar dentro da gruta.
Os pequenos ergueram ao mesmo tempo as três velas e examinaram cuidadosamente a pequena gruta, de tecto baixo, cheia de algas e exalando um forte cheiro a bafio. A voz de Filipe soou novamente sem se compreender de onde, parecendo assustada.
— Ouçam lá, onde estou eu?
João avançou com precaução para o montão de sargaços escorregadios em que Filipe caíra quando Dina o empurrara. De repente, parecendo perder o pé e com grande espanto das duas raparigas, que o olhavam estupefactas, desapareceu também como que enfiando-se pelo chão coberto de algas.
A luz tremulante das velas as raparigas esforçavam-se por descobrir o que acontecera a João e tiveram então a explicação
do mistério. No chão da gruta existia uma abertura, oculta pela profusão dos sargaços, os quais haviam cedido ao peso dos dois rapazes. Escorregando pelas algas, deviam ter ido dar a uma segunda gruta. Que coisa singular!
— Foi por ali que eles se sumiram — assinalou Dina, apontando para um sítio escuro entre os montões de algas. — Espero que não tenham partido alguma perna. Seremos nós capazes de os puxar cá para cima?
João tinha caído mesmo em cima do desgraçado Filipe, quase o derrubando. A Didi, sentindo-se esquecida na gruta superior, deixou escapar um grito estridente. Detestava aquelas grutas sombrias, mas nunca abandonava João. Agora, que o dono desaparecera repentinamente, o animal estava seriamente assustado.
«Cala-te, Didi», ordenou Dina, dando um pulo de medo ao grito do pássaro. — Olha, Luzinha, cá está um buraco mesmo no meio dos sargaços. Anda com cautela, não vás tu desaparecer também. Segura aqui na vela e vamos ver se consigo descobrir ao certo o que aconteceu.
O que se passara era na verdade muito simples. Primeiro, Filipe caíra através do buraco noutra gruta que havia por baixo daquela, e a seguir João caíra sobre ele. Filipe sentia-se algo assustado e confundido e agarrou-se ao João com quanta força tinha.
— Que aconteceu? — perguntou ele.
— Um buraco no chão da gruta — elucidou João, tentando às apalpadelas avaliar a extensão da gruta em que tinham caído. De todos os lados paredes rochosas. — Se não me engano, esta gruta é extremamente pequena... Eh, lá, meninas, alumiem a abertura para ver se conseguimos distinguir alguma coisa.
A chama duma vela brilhava agora por sobre as cabeças dos dois rapazes e estes principiaram a enxergar alguma coisa à sua volta.
— Isto não é uma gruta, é um corredor — esclareceu João, surpreendido. — Ou antes, o princípio dum corredor. Onde irá ele ter?
Mesmo ao interior das rochas, possivelmente.
- Emprestem-nos uma vela — gritou Filipe, já mais senhor de si. Vejam bem! Cá está a Didi...
«Não sabes fechar a porta?», gritou esta numa voz esganiçada, pendurando-se com força no ombro de João, satisfeita por estar novamente na companhia do dono. Começou a assobiar mas disse a seguir a ela própria que era feio assobiar.
— Está calada, Didi — respondeu João. — Olha Filipe, há realmente uma passagem por aí acima, horrivelmente escura e acanhada. E que cheiro exala! Dina, depressa, passa para cá a tua vela!
Dina, deitada de bruços sobre o monte das algas, lá conseguiu por fim estender o braço através do buraco e entregar a João a vela acesa. O corredor tinha um aspecto estranho e misterioso.
— E se fôssemos explorá-lo? — propôs Filipe, espicaçado pela curiosidade. — Dir-se-ia um corredor subterrâneo até à Casa do Penhasco e não resta dúvida de que é uma passagem secreta.
— Parece-me mais uma fenda no rochedo, sem ir ter a nenhum sítio especial — retorquiu João. — Didi, não me dês bicadas na orelha com tanta força, não tarda que voltemos para o ar livre. Eh, meninas, não querem vir daí? Nós estamos tentados a ir pelo corredor fora.
— Não, obrigadinha — acudiu prontamente Maria da Luz, a quem não agradava a ideia de caminhar por sobre as algas numa passagem estreita e escura através dos rochedos. — Ficamos aqui até que vocês voltem, mas não se demorem muito. Já só nos resta uma vela. Vocês têm fósforos, para o caso de se apagar a vela?
— Tenho alguns — respondeu João, apalpando a algibeira. — Bom, até já e não caiam pelo buraco.
Os dois rapazes deixaram para trás a escura abertura sob a qual haviam permanecido e encetaram a ascensão pelo húmido corredor. As raparigas já não lhes ouviam as vozes nem os passos. Esperavam pacientemente cá em cima, a tremer de frio, alumiadas por uma luz vacilante.
Os rapazes demoravam a voltar e as rapariguinhas começavam a ficar impacientes e assustadas. Que podia ter-lhes acontecido? Espreitaram pelo buraco através dos montes de algas e puseram-se à escuta. Nem o mais leve som se ouvia.
— Santo Deus! Parece-te que devemos ir atrás deles? — observou Maria da Luz angustiadamente. Ela morreria de medo se tivesse de subir aquele corredor secreto e negro, tinha a certeza. Mas no caso de João precisar de auxílio não hesitaria em saltar para baixo e ir ter com ele.
— Talvez seja melhor irmos chamar o Jau e persuadi-lo a que venha ajudar-nos — opinou Dina. — Terá de trazer uma corda, se não me engano. Os rapazes nunca serão capazes de trepar pelo buraco e subir cá para cima sem auxílio.
— Não, nada vamos dizer ao Jau — discordou Maria da Luz, que detestava profundamente o preto e lhe tinha medo. — Esperemos mais um poucochinho. Talvez o corredor seja muito comprido.
E era bem mais do que os rapazes esperavam. Seguia às voltas e reviravoltas através dos rochedos, sempre a subir. Estava escuro como breu e a luz difusa da vela não iluminava satisfatoriamente. De vez em quando batiam com a cabeça no tecto, que muitas vezes não tinha mais altura do que a dos ombros dos rapazes.
Havia menos humidade à medida que avançavam e já não se sentia o cheiro das algas, mas o ar era viciado e difícil de suportar.
— Este ar é mau — declarou Filipe com voz opressa. — Custa-me a respirar. Por duas ou três vezes me pareceu que a vela se ia apagar e isso quer dizer, Pintinhas, que o ar é muito rarefeito. Mas devemos estar perto do fim do corredor, com certeza.
Neste momento deparou-se-lhes uma subida muito a pique, que podia até tomar-se por uns degraus toscos. A passagem terminava repentinamente numa parede rochosa. Os rapazes estavam perplexos.
— Isto não é então uma passagem propriamente dita — afirmou Filipe desapontado. — Não passa de uma longa fenda nos rochedos, como tu dizias, mas eu iria jurar que isto são mesmo degraus, e tu?
A luz da vela, agora perto do chão, mostrava distintamente os degraus. Não restava dúvida, alguém os havia talhado na rocha propositadamente... mas com que fim?
João, ao erguer novamente a vela, soltou uma exclamação.
— Olha! Aquilo não é um alçapão secreto, ali em cima? E é mesmo ali onde o corredor conduz... a uma porta secreta! Que dizes... vamos tentar abri-la?
Sem sombra de dúvida, lá estava uma porta-alçapão, de madeira, vedando a saída do corredor, no cimo dos degraus. Ainda se conseguissem fazê-la mover! Onde iriam depois dar?
NAS CAVES
— Vamos empurrá-la os dois ao mesmo tempo — propôs Filipe, entusiasmado.
— Vou pousar a vela nesta saliência.
E assim fez. A seguir, ele e o João empurraram com força o alçapão, erguendo os braços acima da cabeça. Uma nuvem de pó caiu sobre eles, obrigando-os a fechar os olhos.
— Livra! — exclamou Filipe, esfregando os olhos. — Anda, vamos tentar novamente. Eu senti-a mover-se.
Tentaram outra vez e a porta cedeu de repente. Entreabriu-se algumas polegadas e voltou a fechar-se, ocasionando segunda nuvem de poeira.
— Arranja um pedregulho para nos apoiarmos — aconselhou João, vermelho de excitação. — Mais um empurrãozinho e conseguiremos abri-la num minuto.
Encontraram três ou quatro pedras lisas, que colocaram umas sobre as outras, contra a porta. Empurraram com quanta força tinham e com grande satisfação viram a porta avançar e tombar para trás com enorme estrondo. Ao cimo dos degrau existia agora uma abertura espaçosa, de forma rectangular.
— Dá-me uma ajuda, João — pediu Filipe. João deu-lhe tamanho impulso que ele entrou como uma bala pela abertura dentro, indo cair sobre o chão pedregoso. A escuridão era completa, não se viam dois palmos à frente do nariz.
— Passa cá a vela, Pintinhas, para eu te dar um reboque — disse Filipe. Mas quando ia a agarrar a vela, esta apagou-se de repente.
— Bolas! — exclamou Filipe. — Oh, céus, mas o que será aquilo?
— A Didi pela certa que voou para o ar — opinou João. A Didi não se tinha manifestado durante todo o caminho
através do corredor secreto, amedrontada pela escuridão e pela estranheza do ambiente e não largara o ombro de João.
Filipe ajudou João a içar-se e procurou os fósforos na algibeira, para acender outra vez a vela.
— Onde te parece que estamos? — inquiriu ele. — Eu não faço a mínima ideia.
— É como se fosse o fim do mundo — respondeu João. — Espera, agora já se vê alguma coisa.
À luz da vela, os dois rapazes olharam em redor.
— Já sei onde estamos — disse Filipe, repentinamente. — Nas caves da Casa do Penhasco. Olha, lá estão as caixas de provisões, latas de conservas e mais trapalhada.
— Pois estão, realmente — concordou João. — Que belo armazém tem a tua tia aqui em baixo. Eia, isto é uma verdadeira aventura. Supões que os teus tios saberão da passagem secreta?
— Creio que não — disse Filipe —, senão a tia Lena ter-nos-ia certamente falado nela. Eu não conheço lá muito bem esta parte das caves, deixa-me ver... onde será a porta?
Os dois rapazes vaguearam pela cave à procura da saída e encontraram uma forte porta de madeira, mas que, com grande espanto deles, estava fechada à chave.
— Que azar! — disse Filipe, contrariado. — Agora teremos de voltar outra vez por aquele corredor acanhado, mas não me sinto lá com grande vontade disso. De qualquer maneira esta não é a porta que dá para a cozinha, porque essa tem vários degraus. Deve ser então a porta que veda uma parte das caves, porque não me lembro dela.
— Escuta, parece que vem aí alguém — declarou João, que tinha o ouvido apurado.
— Pois vem, e é o Jau — respondeu Filipe, que ouvira a tosse do preto, tão sua conhecida. — Escondamo-nos, não quero contar-lhe a nossa descoberta. Ficará só entre nós quatro. Coloca depressa o alçapão novamente no seu lugar e escondamo-nos aqui atrás deste vão.
Vejamos se será possível escapulirmo-nos depois de ele abrir a porta. Apaga a vela.
Fecharam sem barulho o alçapão e, imersos em profunda escuridão, esconderam-se atrás do vão abobadado, perto da porta. Ouviram Jau meter a chave na fechadura. A porta abriu-se e o preto surgiu; a sua face parecia horrenda à luz difusa da lanterna que trazia. Deixando a porta aberta, encaminhou-se para o fundo da cave, onde estavam os víveres.
Os rapazes calçavam sapatos de borracha e podiam ter-se escapado sem que Jau desse por isso... mas Didi escolheu exactamente esse momento para fazer uma imitação da tosse cavernosa do preto. Sons lúgubres ecoaram na cave e a lanterna de Jau caiu com estrondo no chão. Partiu-se o vidro, apagou-se a luz e Jau, dando um grito de terror, largou a fugir pela porta fora, sem olhar para trás. Na passagem roçou pelos rapazes e soltou novo guincho de medo.
Didi, entusiasmada com o resultado da sua imitação, deu um gemido aterrador, o que fez com que Jau apressasse a corrida pelas escadas acima até à porta que abria para a cozinha. Aí tropeçou desastradamente, assustando por sua vez a tia Lena.
— Que tens? Que aconteceu?
— Há coisas ruins lá em baixo — disse Jau ofegante, tão cinzento quanto um negro pode parecer.
— Coisas ruins? Que queres dizer com isso? — perguntou a tia Lena, em tom severo.
— Coisas a gemer, a guinchar e a agarrar-se à gente — elucidou Jau, deixando-se cair numa cadeira, a revirar os olhos de tal maneira que só se lhe via o branco resplandecente.
— Disparate! — disse a tia Lena, mexendo vigorosamente qualquer ingrediente numa panela. — Não compreendo porque foi preciso ires às caves sem necessidade de coisa alguma lá de baixo e havendo ainda aqui batatas de sobra. E agora acalma-te antes que venham os meninos. Ficariam assustados se te vissem nesse estado.
Os dois pequenos estavam capazes de morrer de riso ao verem o desgraçado Jau a fugir aterrorizado pela escada acima, berrando a plenos pulmões.
— Com que então, Jau, virou-se o feitiço contra o feiticeiro? — comentava João. — Tu, que pretendes atemorizar-nos cons-tantemente com histórias tolas de coisas fantásticas que aparecem de noite... apanhaste um susto valente.
— Olha, deixou a chave na fechadura — disse Filipe, que tinha tornado a acender a vela. — Vamos guardá-la, e se alguma vez quisermos servir-nos desta passagem poderemos sair por aqui, e abrir a porta com esta chave.
Colocou na algibeira a chave e sorriu, malicioso. Talvez o preto pensasse que tinha sido uma daquelas aparições, de que falava constantemente, que lhe levara a chave.
Os rapazes estavam agora na parte das caves sua conhecida. Filipe contemplava com interesse a porta por onde tinham vindo.
— Não sabia que havia outra dependência a seguir a esta para lá das caves — disse ele. — Nem compreendo como nunca até aqui tinha dado por aquela porta.
— Essas caixas devem ter estado empilhadas em frente dela a dissimulá-la — sugeriu João. Havia uma porção de caixas vazias ao pé da porta e agora, pensando nisso, Filipe lembrava-se de as ter visto numa enorme pilha, todas as vezes em que fora às caves. Haviam sido propositadamente postas em pilha em frente daquela porta. Uma partida de Jau, sem dúvida com o propósito de impedir as crianças de entrar na divisão onde eram armazenadas as mercadorias. Que estúpida ingenuidade! Pois bem, Jau já não poderia impedi-los de lá entrar.
«Podemos voltar pela passagem secreta ou pela porta, visto que tenho agora a chave, pensou Filipe, agradando-lhe a ideia de ultrapassar em astúcia o preto quando lhe aprouvesse.
— Estas escadas vão de facto ter à cozinha, não é verdade?— perguntou João, apontando os degraus. — Achas que poderemos ir por aqui, em segurança, sem sermos vistos? Senão crivam-nos de perguntas embaraçosas.
— Eu safo-me lá para cima, abro uma nesga da porta e vejo se há alguém nas proximidades — disse Filipe. E assim se foram pelas escadas acima. Jau tinha saído e a tia Lena já lá não estava. A cozinha ficara deserta e silenciosa. Os rapazes puderam escapar-se para a porta da rua e correr pelo carreiro até aos rochedos sem ninguém dar por isso.
— As raparigas devem estar intrigadas com o que possa ter-nos acontecido — disse João, lembrando-se de repente de Dina e de Maria da Luz, esperando pacientemente por eles na caverna onde existia o buraco que dava ingresso ao corredor. — Que tal? Pregamos-lhes um susto? Elas estão à espera de nos ver voltar pelo corredor secreto e nunca esperarão que regressemos por este lado.
Encaminharam-se para as rochas, pela praia, chegaram às cavernas que tinham explorado nessa manhã e encontraram logo a que tinha o buraco. As duas raparigas, sentadas junto dele, discutiam com ansiedade o que haviam de fazer.
— É preciso ir buscar auxílio — dizia Maria da Luz. — Com certeza aconteceu-lhes alguma coisa.
Filipe descobriu novamente a enorme estrela-do-mar, a causadora de todo aquele reboliço. Apanhou-a sem fazer ruído e, rastejando pelo chão da caverna, chegou ao pé da pobre Dina. Com toda a precaução colocou-lhe a estrela-do-mar no braço nu ao longo do qual ia escorregando, repulsivamente.
Diná pôs-se de pé dum salto, soltando um grito mais agudo do que os mais aterradores da Didi. — Ah!... já cá estás, grande animal! Espera que eu te agarro! Vou arrancar-te todo o cabelo que tens na cabeça, detestável criatura!
Enraivecida, Dina saltou sobre Filipe, que fugiu para a praia, correndo, exultante, pela areia. Maria da Luz abraçou-se a João. Tinha-se afligido muito ao ver que o irmão não voltava.
— João! Querido João, que te aconteceu? Esperámos tanto tempo! Como voltaram por outro lado? Onde vai dar o corredor?
Os gritos, os berros e os guinchos de Dina e Filipe tornavam impossível a João responder, especialmente agora que a Didi participava do motim, guinchando como um comboio ao passar num túnel.
Entre Dina e Filipe travava-se renhida luta. A rapariga, fora de si, agarrara o irmão e batia-lhe com quanta força tinha.
— Isto é para aprenderes a não me atirares com bichos para cima. Que porcaria! Sabes muito bem quanto detesto anima-lejos. Hei-de arrancar-te todos os cabelos.
Filipe desprendeu-se e fugiu, deixando nas mãos de Dina alguns cabelos. Esta virou-se para os outros com os olhos a faiscar.
— É um autêntico bruto. Durante uns dias não lhe falo. Só tenho pena que seja meu irmão.
— Foi uma brincadeira — começou João. Mas isto ainda agravou mais as coisas. Dina enfureceu-se também com ele e parecia tão exaltada que Maria da Luz, alarmada, chegou a pensar que teria de ir em auxílio de João se ela desatasse a bater-lhe.
— Não quero saber mais de qualquer de vocês — explodiu Dina, indo-se embora furiosa.
— Assim não ouves o que queríamos contar a respeito das nossas descobertas desta manhã — disse João. — Não importa, contamos-te a ti, Maria da Luz, e olha que foi uma verdadeira aventura.
Dina tinha-se afastado, enraivecida, mas lembrou-se de repente de que ficara sem saber onde ia dar o corredor secreto. Esqueceu-se imediatamente da zanga, e fez marcha atrás.
Viu Maria da Luz com os dois rapazes. Filipe virou-lhe as costas quando ela chegou. Mas as zangas de Dina iam-se com a mesma rapidez com que vinham.
Pôs a mão no braço de Filipe e disse:
— Desculpa, Filipe. Afinal que vos aconteceu naquela passagem secreta? Estou morta de curiosidade.
A paz reinava novamente e em breve as rapariguinhas ouviam, ansiosas e entusiasmadas, tudo o que os dois rapazes tinham para contar.
— Foi uma autêntica aventura, digo-vos eu — rematou João. Assim era... e outras surgiriam no porvir!
UM BARCO DESCONHECIDO.
As raparigas não queriam entrar no corredor subterrâneo por mais que os rapazes tentassem convencê-las. Sentiam calafrios ao pensar no túnel muito estreito aos ziguezagues na escuridão, e, ainda que concordassem que devia ser muito empolgante, não se sentiam com vontade de se aventurarem a subi-lo.
— Com certeza Dina tem medo que uma estrela-do-mar gigante trepe por ela acima — dizia Filipe desgostoso—; quanto a Maria da Luz não passa de uma criança.
Não foi possível demovê-las nem mesmo beliscando-lhes o seu amor-próprio, se bem que as raparigas nunca se cansassem de falar sobre esse assunto.
No dia seguinte os rapazes desceram às caves e descobriram que Jau tinha voltado a empilhar as caixas em frente da segunda porta, que ficava assim completa-mente escondida. Era estranho, mas ele fazia frequentes vezes coisas estúpidas e absurdas. Fosse como fosse, eles estavam de posse da chave, o que significava alguma coisa.
O tempo tornara-se esplêndido e quente. O Sol brilhava num céu sem nuvens e os pequenos, que passavam grande parte do tempo na praia em fato de banho, depressa ficaram morenos como ciganos. Filipe, Maria da Luz e Dina eram os que passavam mais tempo na água. João, delirante com as aves marinhas que infestavam a costa, passava o tempo a estudar o voo das águias e gaivotas, dos corvos, das andorinhas, e não queria a irmã ao pé dele com grande desgosto desta.
— As aves já quase me conhecem — explicava ele —, mas não te conhecem a ti. Para seres uma menina bonita, fica com os outros. E depois não seria correcto abandonarmos ambos Dina e o Trunfa.
E só em tais condições Maria da Luz deixava de ser a sombra de João. Acompanhava os outros, mas geralmente sabia onde João se encontrava, e, quando eram horas de ele voltar, ela lá estava à espera de vê-lo aparecer.
Dina achava-a um tanto pateta. Ela nunca seria capaz de ficar assim ansiosa à espera de Filipe. — Eu até fico satisfeitíssima quando o vejo pelas costas — dizia ela para Maria da Luz. — Que embirrento ele é! Quase me ia fazendo enlouquecer o ano passado quando me pôs debaixo do travesseiro uma enorme quantidade de bichas-cadelas que, no meio da noite, começaram todas a andar.
Até à Maria da Luz aquilo soava horrivelmente. Porém, já se habituara a Filipe e às suas excentricidades. Ainda que estivesse com calções de banho seria capaz de trazer escondido qualquer espécie de animal. Na véspera tinha sido um par de caranguejos, mas quando acidentalmente se sentara em cima de um deles e fora mordido, tinha chegado à conclusão de que os caranguejos eram melhores no mar do que fora dele.
— Em todo o caso gosto muito que o Pintinhas leve a Didi consigo quando vai em busca dos pássaros — observou Dina. — Não que eu embirre com a Didi, mas como lhe dá agora para imitar o pio de todas as aves que aparecem, é um bocado enjoa-tivo. Admira-me que a tia Lena tenha engraçado tanto com ela.
A tia Lena tinha-se tomado de afeição pelo bicho. Era um animal astucioso que sabia que lhe bastaria murmurar «Coita-dinha da querida Lena» para conseguir o que quisesse dela. Jau tinha apanhado a sua conta quando se esquecera, no dia da ida às compras, de trazer as sementes de girassol para a Didi. Os pequenos tinham pulado de contentes com a valente descompostura que o casmurro do preto apanhara.
O encontro do tio Renato com a Didi não fora positivamente um sucesso. Numa tarde quente, a catatua voara através da janela aberta do escritório no qual o tio Renato, dobrado sobre livros velhos e papéis, passava os dias. A Didi pousou silenciosamente sobre a estante e olhou à volta com interesse.
«Quantas vezes é preciso dizer-te que é feio assobiar?», fez o pássaro rispidamente.
O tio Renato, perdido nos seus alfarrábios, voltou à realidade com um estremeção. Nunca na sua vida havia visto uma catatua e esquecera-se completamente de que havia agora uma na sua própria casa. Intrigado, levantou a cabeça para ver onde partia tão desusado palavriado.
A Didi permaneceu calada por algum tempo e o tio Renato concluiu que se tinha enganado e curvou novamente a cabeça sobre os papéis.
«Onde meteste o lenço?», perguntou a Didi desabridamente.
O tio Renato, persuadindo-se de que a sua mulher havia entrado no aposento, porque a Didi imitava perfeitamente a voz da tia Lena, procurou às apalpadelas o lenço na algibeira.
«Rapazinho obediente», fez a catatua. «Agora não te esqueças de limpar os pés».
«Não estão sujos, Lena», disse, surpreendido, o tio Renato, pensando estar a falar com a mulher. Estava confuso e contrariado. A mulher não costumava vir interrompê-lo daquela maneira para fazer-lhe recomendações inúteis. Voltou-se para a mandar embora e não a viu.
A Didi tossiu com tosse cavernosa tal qual como Jau. O tio Renato, agora com a convicção de que também o preto se encontrava no seu escritório, ficou indignado. Porque havia de vir hoje toda a gente ter com ele e arreliá-lo? Era por de mais insuportável.
«Vai-te embora», disse ele, dirigindo-se a Jau. «Tenho que fazer».
«Oh! Seu mau!», fez a catatua, em tom de reprovação. Tossiu outra vez e deu a seguir um espirro. Depois, por momentos, tudo recaiu em completo silêncio.
O tio Renato mergulhou outra vez no estudo, esquecendo completamente a interrupção. Mas a Didi não gostava de ser ignorada dessa maneira. Voou da estante e foi pousar na cabeça do tio Renato, dando um silvo parecido com o de uma locomotiva.
O desgraçado do tio Renato deu um pulo, agarrou-se à cabeça, desalojou a Didi e deu um berro que fez comparecer imediatamente no local a tia Lena. A Didi despediu janela fora soltando simuladas gargalhadas.
— Que aconteceu, Renato? — perguntou, alarmada, a tia Lena.
O tio Renato estava furioso. — Toda a manhã tem sido um vaivém de gente a entrar e a sair, a dizer-me para limpar os pés, para não assobiar e por fim alguém me atirou não sei o quê à cabeça — resmungou ele.
— Ah... era simplesmente a Didi — elucidou a tia Lena a sorrir.
— Simplesmente a Didi! Mas que vem a ser a Didi? — berrou o tio Renato, furioso por ver a mulher sorrir dos seus aborrecimentos em vez de os lamentar.
— É uma catatua — explicou a tia Lena. — Uma catatua que pertence ao rapazinho.
O tio Renato tinha esquecido completamente Maria da Luz
e João. Abriu muito os olhos e olhou para a mulher como se ela tivesse endoidecido.
— Qual rapaz e qual catatua? — inquiriu ele. — Lena, tu estás doida!
— É incrível como te esqueces das coisas, Renato — disse, suspirando, a tia Lena. E lembrou-lhe a vinda dos dois pequenos e identificou a Didi. — É o mais inteligente pássaro que possas imaginar — afirmou a tia Lena, agora inteiramente conquistada pela Didi.
— Seja como for — disse o tio Renato, inflexível. — O que te digo é que se essa ave é tão inteligente, como afirmas, ela saberá afastar-se do meu caminho... ou então apanhará com o que eu tiver à mão se tornar aqui a entrar.
A tia Lena, lembrando-se da péssima pontaria do tio Renato para atirar qualquer coisa, e olhando para a janela, pensou que seria conveniente mantê-la fechada ou um belo dia iria dar com tudo partido. Mas que paciência era precisa para suportar tantas arrelias e preocupações! Se não eram os pequenos, clamando por mais comida, era Jau a afligi-la; se não era Jau, era a catatua, e se não era a catatua, era o marido, ameaçando partir tudo e atirar coisas ao ar. A tia Lena fechou com energia a janela e saiu porta fora, batendo-a com força.
«Não atires com a porta», manifestou-se a Didi do corredor. «Quantas vezes é preciso...»
Mas pela primeira vez a tia Lena não mostrou agrado a Didi. «Tu és má», disse ela rispidamente, «muito má».
A Didi lançou-se pelo corredor fora com um berro de indignação. Iria à procura de João. Ele era sempre bom e meigo para ela. Mas onde estava o João?
João não ficara junto dos outros. Fora até ao alto do rochedo, munido do seu binóculo de campanha. Deitado de barriga para o ar mirava encantado os pássaros que volteavam rápidos sobre a sua cabeça. A Didi fez do peito do rapaz campo de aterragem, o que lhe causou um bom estremeção.
«Ah! És tu, Didi! Tem cuidado com as unhas, por quem és, olha que só tenho o fato de banho em cima. E fica caladinha senão assustas os pássaros. Sabes que já hoje vi cinco espécies diferentes de gaivotas?».
João cansou-se por fim de estar deitado. Sentou-se, sacudiu a Didi e olhou à sua volta. Colocou novamente o binóculo em posição, perscrutou o horizonte, ao longe, para o lado do mar, na direcção da ilha das Trevas, que até então não tinha conseguido distinguir.
Mas nesse dia, ainda que as montanhas em redor estivessem ocultas pela neblina, sem se saber porquê, a ilha divisava-se claramente, emergindo do mar, para o lado do Poente.
«Olha», disse João com admiração, «lá está a tal ilha misteriosa que Jau diz ter feitiçaria, e com que clareza a vejo hoje daqui! Lá está o contorno dos montes e distinguem-se até com nitidez as ondas, acabando em espuma de encontro às rochas!»
Se havia ou não pássaros na ilha, João não podia saber porque as lentes não eram suficientemente potentes para reproduzir outras imagens além da própria ilha e da suas colinas. Mas o rapaz estava certo de que os pássaros existiam lá em profusão.
«Pássaros raros», disse para consigo. «Aves hoje em dia já desconhecidas de toda a gente, que encontraram ali refúgio e ali permanecem ano após ano e que devem ser mansas como cordeiros. Com a breca! Quem me dera lá ir! Mas que grande arrelia que o Jau não nos empreste o barco! Poderíamos facilmente chegar à ilha se o mar estivesse tão calmo como está hoje. Maldito Jau!»
O rapaz, com o auxílio das lentes, percorreu a vista pela costa recortada, e, de repente, ficou atónito, fixando qualquer coisa que divisava ao longe. Não podia ser um barco a remos, movendo-se ao longo da costa, distante aproximadamente uma milha. Certamente que não, visto Jau afirmar que ninguém a não ser ele possuía um barco por muitas milhas em redor e a tia Lena dissera que ninguém morava nas vizinhanças da Casa do Penhasco num círculo de pelo menos seis ou sete milhas.
«Não obstante, anda alguém naquele barco lá no mar alto, a ocidente daquele rochedo», pensou João intrigado. «Quem será? É Jau, forçosamente».
O barco estava distante de mais para se identificar quem o tripulava. Podia ser Jau e podia não ser, mas João chegou à conclusão de que devia ser ele. Observou o Sol. Ia já baixo, portanto, deviam ser horas de jantar. Como ia voltar para casa e lhe ficava em caminho iria verificar se o barco de Jau estava amarrado no sítio do costume. Se lá não estivesse então o homem do barco era Jau.
Mas o barco estava lá, no local costumado, fortemente amarrado, balouçando levemente sobre as águas da pequena enseada perto de casa.
E lá andava também Jau na praia a apanhar pedaços de madeira para o fogão. Então era porque alguém das redondezas possuía também um barco.
João foi a correr contar aos outros, que ficaram muito espantados mas contentes. — Temos de descobrir quem é e aca-maradar com ele. Depois talvez ele nos leve à pesca no barco — disse Filipe imediatamente. — Ainda bem, Pintinhas, que o teu velho binóculo te ajudou a descobrir alguma coisa mais do que pássaros.
— Amanhã iremos ter com ele — declarou João. - O que eu mais ardentemente desejava era ter uma oportunidade de ir à ilha das Trevas para ver se lá existem pássaros desconhecidos. Sinto que hei-de lá ir mais tarde ou mais cedo, é uma espécie de pressentimento.
— Nada se diz a Jau a respeito de termos descoberto que há nas proximidades alguém que também tem um barco — preveniu Dina. — Estraga-nos sempre tudo e fica radiante quando impede que façamos aquilo que queremos.
Portanto, nada disseram a Jau nem à tia Lena sobre o desconhecido do barco. No dia seguinte iriam procurá-lo e falar com ele.
Mas algo ia acontecer antes do dia seguinte chegar!
AVENTURA NOCTURNA.
Nessa noite João não conseguia dormir. Uma Lua muito redonda espreitava pela janela. O luar incidia-lhe na cara enquanto deitado, olhando a Lua, pensava nas gaivotas que havia visto deslizarem no ar ao sabor do vento e nos enormes corvos pretos pousados nas rochas, abrindo desmedidamente os bicos para engolir os peixes que iam apanhando.
E veio-lhe à ideia a ilha das Trevas tal como a vira nessa manhã. Parecera-lhe atraente e misteriosa lá ao longe, tão solitária e deserta. No entanto, alguém lá havia vivido outrora. Porque não viveria agora lá ninguém? Seria tão inóspita que ninguém pudesse habitá-la? Como seria realmente?
«Quem sabe se poderei vê-la também esta noite ao clarão da Lua cheia?», pensou João. Deslizou pois pelo colchão, sem acordar Filipe, chegou à janela e olhou para fora.
O mar estava brilhante e prateado com o luar a incidir sobre ele. Aqui e além havia enormes manchas negras devido às sombras dos rochedos. A água estava mais calma do que habitualmente e o vento caíra. Um leve murmúrio chegava aos ouvidos de João, que continuava à janela.
De repente, arregalou os olhos manifestamente surpreso. Sobre a água divisava-se muito ao longe um barco à vela que se dirigia para a praia. Mas de quem seria o barco? João semi-cerrava os olhos mas não conseguia distinguir. Um barco à vela a dirigir-se para a Casa do Penhasco no meio da noite! Era deveras singular!
«Vou acordar o Trunfa», pensou e foi até ao colchão. «Trunfa! Filipe! Acorda e vem à janela».
Em meio minuto Filipe estava plenamente acordado e debruçado sobre a estreita janela, na companhia de João.
Ao ver o barco à vela deu um assobio e acordou a Didi que, assarapantada, veio pousar no ombro do dono.
— Será Jau o tripulante do barco? — perguntou Filipe.— Não pode saber-se a esta distância se é dele o barco ou não, mas, de toda a maneira, o melhor é descermos à praia para ver chegar o barco. Anda, Pintinhas. Mesmo assim admira-me que Jau tenha saído a esta hora, visto que nos está sempre a falar das «coisas» que vagueiam de noite pelos rochedos... mas naturalmente não é Jau.
Enfiaram os calções e as camisolas e calçaram os sapatos de solas de borracha e aí vão eles pela escada de caracol abaixo. Em breve desciam o atalho escarpado, por entre as rochas. Sob o luar, o barco vinha entrando, impelido pela brisa da noite.
— É o barco de Jau — afirmou Filipe por fim. — Vê-se agora perfeitamente que é Jau quem vem dentro. Vem só, mas traz carga, seja o que for.
— Talvez tenha andado à pesca — lembrou João. — Vamos pregar-lhe um susto, Filipe.
Os rapazes foram de rastos até ao sítio em que o barco ia amarrar. Jau ferrou a vela e a seguir começou a remar para a praia na direcção da pequena enseada em que costumava sempre prender o barco. Os rapazes acocoraram-se atrás da rocha. Jau, depois de atracar, manobra que fez com destreza e rapidez, pôs-se a enrolar o cabo à amarra. Voltou-se depois para ir buscar a carga que trazia... e, nesse preciso momento, os rapazes saltaram sobre ele, dando gritos à pele vermelha e fazendo oscilar violentamente o barco.
Jau, apanhado de surpresa, perdeu o equilíbrio e, deslizando pela borda fora, foi cair na água, com enorme espadanar, mas emergiu imediatamente; a expressão que o luar permitia divisar na sua cara nada de bom prometia. Saltou lesto para fora da água, sacudiu-se como um cão e apanhou um pedaço de corda grossa.
— Diabo, ele vai desancar-nos — disse João para Filipe. — É melhor fugirmos enquanto é tempo.
Mas o corpanzil possante do negro, que brandia a corda, vedava-lhes o caminho.
— Agora vão ver o que sucede aos meninos que andam a espiar de noite — resmungou por entre-dentes.
João ia a esquivar-se mas Jau deitou-lhe a mão. A corda vibrou no ar e o rapaz deu um grito. No mesmo instante Filipe acertou em Jau um valente pontapé, e o preto, com uma contracção de dor, largou João. Os rapazes correram então a bom correr pelo atalho escarpado que conduzia a casa e Jau foi-lhes imediatamente no encalço.
— A maré está a encher —• sussurrou João, que sentia a água pelos tornozelos. — Temos de retroceder senão seremos apanhados pelas águas e esmagados de encontro às rochas.
— Não podemos voltar para trás senão seremos espancados sem dó nem piedade por Jau — argumentou Filipe, ofegante. — João, vamos para a gruta. Talvez possamos escapar-nos pelo corredor secreto. Temos de o conseguir forçosamente. Eu nem faço ideia do que Jau será capaz de fazer; enfurecido como está, será até capaz de matar-nos.
Completamente aterrados, os rapazes escorregaram para o interior da caverna. Os passos de Jau chapinhavam lá mais atrás. Ah, agora estavam caçados! Ele lhes contaria um conto! Não seriam eles que fugiriam outra vez da cama de noite!
Os rapazes deram com o buraco que procuravam, e, metendo-se por ele abaixo, desapareceram na escuridão do estreito corredor. A respiração ofegante de Jau, do lado de fora da caverna de cima, chegava até aos ouvidos dos rapazes, que só anseavam por que Jau lhes não fosse na peugada. E não foi. Permaneceu fora, junto da entrada, à espera que os rapazes saíssem. Não fazendo a menor ideia de que existia naquele local uma passagem secreta, ali ficou especado, resfolgando, com o pedaço de corda pendendo-lhe da mão. Uma onda maior chegou-lhe aos joelhos e Jau resmungou. A maré estava a subir com rapidez. Se os rapazes não viessem para fora imediatamente ficariam encurralados para o resto da noite.
Uma outra onda subiu e deu-lhe quase pela altura da cintura. Era uma onda tão forte que Jau abandonou a toda a pressa o seu posto e começou a bater em retirada para não se arriscar a ser despedaçado contra as rochas pela força da maré.
«Deixá-los passar a noite na caverna; eu me encarregarei deles ao romper da manhã, monologou Jau com ar soturno. «Logo que a maré comece a descer lá estarei para lhes dar uma ensinadela que os faça arrepender de serem abelhudos».
Mas os rapazes não estavam especados a tremer de frio no interior da caverna. Iam já pelo corredor acima, mas desta vez na mais completa escuridão. A passagem era bastante aterradora, mas não tão terrível como Jau.
Por fim, chegaram ao alçapão, abriram-no e, depois de passarem para o solo pedregoso das caves, tornaram a fechá-lo atrás de si.
— Agarra-te à minha mão — disse João, tremendo de medo e de frio. — Vamos tentar descobrir agora a outra porta. Eu não sei para que lado fica, mas tu sabes orientar-te, não é verdade?
Filipe julgava que sabia, mas verificou que se enganava e os dois rapazes levaram o seu tempo a desencantar a porta das caves. Apalparam as paredes de laje uma por uma, até que por último e depois de toparem com caixas de todos os tamanhos e feitios, se lhes deparou a porta. Não estava fechada à chave.
Felizmente que eles tinham tirado a chave. Filipe, com um leve empurrão, fê-la abrir-se. Do outro lado, a pilha das caixas desmoronou-se e caiu no chão com um estrondo tremendo, o qual ecoou fortemente pelas caves fora. Os pequenos estacaram à escuta receosos de que alguém, ouvindo, viesse ver o que se passava. Mas ninguém veio. Empilharam então novamente as caixas o melhor que puderam e, galgando os degraus, passaram à cozinha onde o luar entrava a jorros.
Onde estaria Jau? Ainda à espera deles à entrada da caverna?
Mas Jau já lá não estava. Dirigira-se para o barco, cujas amarras apertara fortemente e do qual tirara uma porção de coisas. Tomara a seguir o atalho pedregoso. Entrara em casa e fora para o seu quarto, junto da cozinha, regozijando-se com a ideia de que os dois rapazes tiritavam, presos na caverna. Foi então que um enorme estrondo lhe chegou aos ouvidos.
Não era mais do que o desmoronar da pilha das caixas, mas isso é que Jau não adivinhava. Ali ficou, no meio do quarto, como se estivesse pregado ao chão. Que barulho teria sido aquele? Não se atrevia a ir ver do que se tratava, mas se tivesse ido teria visto dois vultos atravessarem sorrateiros a cozinha enluarada, na direcção da entrada, e correrem escada acima, cautelosos como ratos.
Não tardou muito que os dois rapazes estivessem deitados, contentes por se verem sãos e salvos. Riram, escarninhos, à ideia de que Jau continuava esperando por eles em vão. E lá em baixo, no seu quarto, Jau ria de mofa ao pensar que no dia seguinte lá estaria à espera, à entrada da caverna, de corda na mão, para dar àqueles rapazes uma boa sova.
E todos adormeceram por fim.
Jau foi o primeiro a levantar-se. Empilhou a lenha que apanhara na praia junto do fogão da cozinha e, depois de concluída esta e outras pequenas tarefas, atou então a corda à cintura. Era tempo de descer até à praia e apanhar os rapazes que sairiam cá para fora logo que a maré baixasse o suficiente.
De repente, parou espantado sem querer acreditar no que os seus olhos viam... Alegres como pardais, acabavam de entrar na cozinha as quatro crianças, tagarelando em voz alta.
— Que há para o pequeno almoço? Livra, que estou com fome.
— Passaram bem a noite, rapazes? Nós dormimos lindamente.
— E nós também. Devemos ter dormido a sono solto. — Estas palavras pronunciou-as Filipe, e João fez coro com ele, radiante, ao ver a admiração e a incredulidade estampadas na cara negra de Jau. — É certo, dormimos como pedras. Mesmo que a Didi tivesse imitado o comboio a apitar não nos teria acordado.
— Que há para o pequeno almoço, Jau? — perguntou Dina. As rapariguinhas já sabiam da aventura que aos dois rapazes sucedera na noite anterior e colaboravam com eles para intrigar Jau. Evidentemente que ele supusera, até há pouco, estarem os rapazes na caverna.
— Os meninos estiveram a dormir toda a noite no quarto da torre? — perguntou finalmente Jau, que não se recobrava do espanto.
— Onde querias que tivéssemos estado a dormir? — perguntou Filipe com atrevimento. — Na ilha das Trevas, talvez?
Jau voltou-lhes as costas, confundido e sem saber já o que pensar. Então não podiam ter sido estes dois rapazes os da noite passada. Era verdade que não lhes pudera ver convenientemente a cara, mas iria jurar que eram Filipe e João. Mas via agora que era praticamente impossível. Ninguém poderia ter conseguido sair da caverna em plena maré cheia... e, no entanto, os dois rapazes ali estavam. Era incompreensível e desconcertante. Aquilo não lhe agradava.
«Irei agora à caverna e estarei alerta a ver quem de lá sai», pensou por fim, «e ficarei a saber quem andou a espiar-me ontem à noite».
E lá foi; mas, embora tivesse vigiado durante duas horas, ninguém de lá saiu, o que aliás não era de admirar visto que não estava lá ninguém...
— Jau anda absolutamente às aranhas com o que se passa
— comentou João, rindo, enquanto espreitava o preto do cimo do atalho. — Que bem fizemos em não falar a ninguém na existência da passagem secreta! Calhou às mil maravilhas ontem à noite.
— A estas horas já Jau imagina que tu e o Filipe eram duas «coisas» daquelas com que passa a vida a atemorizar-nos — comentou Dina. — Que grande pateta ele nos saiu! Com certeza que pensa que somos uns bebés a tremer de medo com todas as histórias que ele se lembra de nos contar.
Que faremos hoje depois de terminadas as nossas tarefas?
— perguntou Maria da Luz, dando brilho ao candeeiro que estivera a limpar.
— Está um dia tão lindo... não poderíamos organizar um piquenique, nas rochas, ao longo da costa?
— Pois sim, e veremos se avistamos o homem que vi ontem num barco — disse João, recordando-se de repente.
— Seria esplêndido e depois talvez ele nos deixe andar de barco. Dina, pede à tia Lena se deixa que levemos o almoço connosco.
A tia Lena autorizou, e em meia hora puseram-se em marcha. Passaram por Jau no caminho, o qual estava cuidando da horta à borda do rochedo, para os lados das traseiras da casa.
— Dormiste bem a noite, Jau? — berrou-lhe Filipe. — Dormiste toda a noite, como um rapazinho ajuizado?
Jau, com ar de quem não achava graça alguma à brincadeira, fez um gesto de ameaça.
«Maroto!» guinchou a Didi elevando-se no ar. «Maroto!» «Vai já para a cama, maroto!»
Jaime Smugs.
— Para que lados viste o barco desconhecido, Pintinhas? — perguntou Filipe quando chegaram aos rochedos.
— Para as bandas daquelas rochas que entram pelo mar dentro — respondeu João, apontando. — Era um barco grandinho. Não faço ideia onde possa ficar guardado, uma vez em terra. Alguém deve viver para aqueles lados... mas não avistei casa alguma.
— Não há casas habitáveis para estes lados — informou Filipe. — Há muitos anos vivia gente nestes sítios, mas deram-se batalhas, atearam-se incêndios e presentemente só existem ruínas. Mas talvez haja para aí alguma cabana a cair que sirva a um solitário que pretenda umas férias em sossego.
Prosseguiram a marcha por sobre as rochas. A Didi fazia uns voos de vez em quando para acompanhar uma ou outra gaivota desconfiada, dando pios em tudo semelhantes aos das aves marinhas, mas mais estridentes.
Filipe apanhou uma enorme lagarta de cores vivas e meteu-a no bolso, com grande repugnância de Dina, que desde então se guardou de caminhar perto do irmão. A própria Maria da Luz ia um tanto de sobreaviso, não porque tivesse medo de animai-zinhos e bicharocos, mas porque não tinha particular empenho em carregar com lagartas e lagartixas, e isso podia muito bem acontecer no caso de Filipe lhe pedir ajuda para transportar qualquer novo exemplar que, uma vez na algibeira, fizesse perigar a vida dos outros ocupantes.
Seguiam alegres, gozando a agreste brisa do mar que lhes fustigava a cara, fazendo-lhes penetrar fortemente nas narinas o cheiro acre da maresia. Lá em baixo o mar intrépido rugia de encontro aos rochedos.
Sob os seus pés a erva era viçosa e lá no alto as aves corriam velozes. Que férias adoráveis, maravilhosas, eram aquelas!
Chegados a uma ponta do rochedo, aproximaram-se da borda. — Não vejo sinais de barco em parte alguma — declarou João.
— Tens a certeza de que não foi miragem? — perguntou Filipe. — É estranho que hoje nada se aviste e um barco não é assim tão fácil de esconder...
— Ali em baixo existe uma espécie de baíazinha — lembrou Maria da Luz, apontando para uma reentrância do rochedo onde havia uma praia pequena, de areia muito clara. — Podemos tomar banho e almoçar depois ali, que dizem? Está um vento terrível cá em cima e quase me custa falar.
Começaram então a descida íngreme pelos penhascos. Os rapazes iam na frente, seguidos pelas raparigas, que escorregavam aqui e além, mas depressa chegaram todos lá ao fundo sem que tivesse surgido qualquer contratempo.
Na praia, abrigada do vento agreste, o ar era suave e quente. Os pequenos desembaraçaram-se da roupa e correram para dentro da água. Filipe, que era um bom nadador, seguiu na direcção de uns rochedos negros, escarpados e pontiagudos, que se destacavam fora da água. Içando-se, conseguiu trepar até ao cimo e deixou-se então ficar, por momentos, a descansar.
Foi dali que, de súbito, avistou um barco, do lado de lá dos rochedos. Num recôncavo liso e fora do alcance das ondas estava o barco que João vira na véspera no mar. Da praia seria impossível alguém dar com ele visto que o recôncavo em que pousava o barco ficava oculto pelos rochedos.
«Com a breca!», exclamou Filipe, admirado. E, levantando-se, foi até lá. Era uma esplêndida embarcação, quase do tamanho da de Jau, com uma vela e um par de remos e na qual haviam pintado o nome de Albatroz.
«Esta é boa», disse Filipe, sem sair do seu espanto. «Mas que lugar estranho para guardar um barco... no meio dos rochedos! Seja quem for, o dono terá de nadar até aqui sempre que quiser servir-se dele.
É esquisito». — O barco está aqui atrás das rochas — gritou para os outros. — Venham cá vê-lo. Em breve todos estavam de roda do barco.
— Não há dúvida de que é aquele que vi — afirmou João. — Mas por onde andará o dono, que não se vê sinais dele em parte alguma?
— Almoçamos primeiro e depois damos uma vista de olhos pelas redondezas — aconselhou Filipe. — Vamos outra vez todos para a praia. Depois de comer separamo-nos e fazemos uma batida em busca do proprietário do barco.
Nadaram novamente na direcção da praia e, uma vez chegados, vestiram roupa enxuta e puseram a secar os fatos de banho encharcados; ansiosos por saborear as sanduíches que a tia Lena lhes havia arranjado, estenderam-se ao sol a preguiçar, cansados do esforço dispendido, sedentos e saboreando com apetite e satisfação o seu almoço.
— Nada há de melhor do que a comida quando se está com fome — comentou Maria da Luz, dando uma grande dentada na sanduíche.
— Eu estou sempre com fome — disse João. «Está quieta, Didi... roubaste-me o melhor da maçã. Trouxe no bolso sementes de girassol para ti, não sabes esperar?»
«Ai que pena, ai que pena!», fez Didi, imitando a voz da tia Lena quando se lamentava por qualquer coisa. «Ai que pena, ai que pena, ai que...»
— Oh! manda-a calar — disse Dina, que já sabia que a catatua seria capaz de repetir cem vezes sem parar uma nova frase. «Toma, aqui tens um pedaço da minha maçã».
Isso fez calar a Didi por algum tempo, entretida a dar bicadas no bocado da maçã.
Uma contenda entre Dina e Filipe esteve a ponto de surgir, motivada pela enorme lagarta que, saindo da algibeira do rapaz, caminhava impávida sobre a areia na direcção de Dina. Esta deu um guincho e preparava-se para arremessar uma concha gigante ao irmão quando João agarrou na lagarta e a enfiou na algibeira de Filipe.
— Tem juízo, Dina, a largarta não te come — disse ele. — Acalma-te e não comeces com bulhas; passemos o dia em paz.
Comeram até à última migalha. — Não vai ficar grande coisa para as gaivotas — opiniou Filipe, com indolência, sacudindo os papéis. — Olha para aquela gaivota novinha... mansa quanto pode ser.
— Quem me dera ter aqui a minha máquina fotográfica — disse João desconsolado ao contemplar a enorme gaivota que voava baixo. — Podia agora tirar-lhe um magnífico instantâneo, eu que ainda não tirei qualquer fotografia aos pássaros. Tenho de procurar amanhã a minha máquina fotográfica.
— Venham daí — disse Dina, pondo-se de pé dum salto. — Se vamos dar um giro em busca do homem do barco é tempo de começar. Aposto que sou a primeira a dar com ele.
Separaram-se, portanto, as raparigas por um lado, os rapazes por outro, caminhando sobre a areia quente junto dos rochedos que rodeavam a pequena praia. As duas raparigas viram logo que não poderiam ir longe porque os rochedos abruptos lhes vedavam o caminho.
Mas os rapazes conseguiram escalar a parte mais escarpada do rochedo que protegia a pequena enseada onde tinham estado a comer. Do outro lado do rochedo havia uma outra reentrância. Não existia praia, apenas rochas pequenas, lisas, erguendo-se, íngremes, até ao rochedo. Treparam por essas vertentes rochosas, contemplando os pequenos animais que habitavam nas poças e Filipe juntou um caramujo à colecção que tinha na algibeira.
— Há uma brecha no rochedo para aquele lado — disse João. — Vamos até lá.
Dirigiram-se pois para a abertura do rochedo e uma vez lá verificaram que era muito mais extensa do que esperavam. Um fio de água corria tremulante para o mar, vindo de alguma nascente situada a meia vertente do rochedo.
— Deve ser água doce — disse João. E, provando, ajuntou: — Assim é, de facto. Olha, Trunfa, o que está aqui...
Filipe olhou para onde João apontava e viu, flutuando numa das poças, uma ponta de cigarro meia desfeita.
— Esteve aqui alguém não há muito tempo — declarou João. — Senão a maré teria levado esta ponta de cigarro. Isto está a tornar-se empolgante.
Encontrada aquela prova de que havia alguém nas proximidades, os rapazes prosseguiam agora mais decididos ainda. Chegaram à fenda do rochedo... e ali, construída sobre o socalco e apoiada na vertente da rocha, via-se uma cabana em ruínas. A parede traseira era formada pelo próprio rochedo, o telhado tinha sido toscamente remendado e as paredes, a desmoronarem-se aqui e além, deviam tornar impossível viver lá durante o Inverno. Em todo o caso alguém ali morava presentemente, pois cá fora, estendida sobre um arbusto enfezado, estava uma camisa a secar.
— Olha — disse João, baixinho. — É aqui que vive o nosso homem. E que magnífico esconderijo ele arranjou!
Os rapazes caminharam sem barulho até perto da cabana. Esta era velhíssima e devia ter pertencido outrora a algum pescador. Dentro alguém assobiava.
— Que dizes, batemos à porta? — perguntou Filipe, com um sorriso contrafeito. Mas nesse momento a porta abriu-se e um homem apareceu no limiar, olhando para os dois rapazes com grande espanto.
Estes contemplaram por sua vez o estranho, sem dizer palavra, agradavelmente impressionados com a expressão da sua fisionomia. Vestia calções curtos e uma camisa ordinária, com o colarinho aberto. A sua cara vermelha e bem barbeada, onde se destacavam uns olhos brilhantes, tinha um não-sei-quê de simpatia. A cabeça, completamente calva no meio, era bem provida de cabelo à volta. Era alto e bem constituído e possuía um queixo pontiagudo.
— Òlá — saudou ele. — Vieram visitar-me? Que amabilidade...
— Avistei-o ontem no barco ao largo — dirigiu-se-lhe João, e viemos ver se o descobríamos.
— Foram muito simpáticos — respondeu o homem —, mas quem são vocês?
— Nós moramos na Casa do Penhasco — explicou Filipe.
- É uma casa distante daqui cerca de milha e meia e cuja existência não me parece que conheça.
— Conheço perfeitamente — disse o desconhecido inesperadamente—, mas julguei que só lá vivessem pessoas crescidas... um homem, uma mulher e um criado preto.
— De facto, só lá vivem habitualmente pessoas crescidas — continuou Filipe. — Mas minha irmã e eu passamos as férias na Casa do Penhasco com a tia Lena e o tio Renato. Desta vez trouxemos connosco dois amigos. Este é um deles... João Trent. Maria da Luz, ou Luzinha, a irmã dele, anda por aí com a minha irmã, Dina, e eu sou Filipe Mannering.
— Eu chamo-me Jaime Smugs — declarou o homem, sorrindo àquela catadupa de informações. — Moro aqui sozinho.
— E veio viver para aqui assim de repente? — perguntou Filipe, movido pela curiosidade.
— Sim, de repente. Foi uma ideia como outra qualquer.
— Não é lá muito interessante isto por aqui — declarou Filipe. — Mas veio com algum fim determinado.
O homem pareceu hesitar por um momento. — Bom, eu vim para estudar a vida dos pássaros, interesso-me pelos seus hábitos, sabes? E aqui há uma quantidade imensa de aves invulgares.
— Oh! — gritou João, no auge do entusiasmo. Também gosta de pássaros como eu? Eu tenho uma autêntica loucura por toda a casta de aves, desde que me conheço. E já vi aqui milhares dos que só conhecia dos livros.
E lançou-se numa descrição infindável de todas as aves que já vira,* enquanto Filipe bocejava. Jaime Smugs ouvia-o atento, mas sem dizer grande coisa. O entusiasmo de João parecia diverti-lo.
— Qual é o pássaro que tem maior empenho em ver, Sr. Smugs? — perguntou João, acabando finalmente de dissertar.
Jaime Smugs parecia reflectir. — Julgo — disse ele — que o que mais gostava era que me fosse dado ver o corvo marinho gigante.
João, estupefacto, olhou para ele quase com veneração. — O corvo marinho gigante! — exclamou com voz onde transparecia o espanto e a dúvida.
— Mas... mas a espécie não está actualmente extinta? Com certeza que já não existem corvos marinhos gigantes hoje em dia. A sério, acha realmente possível que se aviste algum?
— Nunca se sabe — disse Jaime Smugs. — Pode ser que reste ainda um ou dois nalguma região. Pense como seria emocionante dar com eles!
João, de emoção, tornou-se cor de tijolo e lançou um longo olhar na direcção do Oeste, para onde ficava a ilha das Trevas, envolvida em névoa.
— Iria jurar que encara a possibilidade da existência deles numa ilha deserta como aquela—disse, apontando para o Oeste. — Refiro-me, claro, à ilha das Trevas, da qual já ouviu falar, com certeza...
— Certamente que sim — respondeu Jaime Smugs. — Gostaria de poder lá ir, mas parece-me ser impossível.
— Leva-nos de vez em quando consigo no barco? — perguntou Filipe. - Jau, o nosso criado preto, tem um barco esplêndido, mas não nos deixa servir dele e nós bem gostaríamos de ir à pesca ou passear nele. Acha que é muito atrevimento pedir-lhe a si? Mas faço ideia de como deve sentir-se só aqui, não é assim?
— Sim, por vezes — respondeu Jaime Smugs. — Pois bem, iremos pescar e passear de barco juntos... e as vossas irmãs também. Vamos divertir-nos e ao mesmo tempo veremos se nos poderemos aproximar da ilha das Trevas. Combinado?
Os dois rapazes estavam no auge do entusiasmo*. Iriam finalmente fazer-se ao mar num barco à vela! Que partida para o velho Jau!... E abalaram para chamar as irmãs:
«Dina, Maria da Luz!», berrava João. «Venham conhecer o nosso novo amigo Jaime Smugs!»
UM ESTRATAGEMA... E UMA SURPRESA PARA JOÃO.
Jaime Smugs provou ser um amigo fixe, um amigo a toda a prova. Era um excelente companheiro, sempre pronto para a brincadeira, tolerante para com a Didi e mais tolerante ainda com a variadíssima colecção de bicharocos da predilecção de Filipe. Nem sequer disse palavra quando a última aquisição de Filipe, uma enorme aranha, lhe trepou para os calções. Levantando simplesmente a mão, apanhou a aranha, que depositou no joelho de Filipe.
Dina, como de costume, esteve em vias de ter um ataque de nervos, mas afortunadamente a aranha decidiu que a liberdade era bem melhor do que o cativeiro e, correndo para uma fenda da rocha, desapareceu.
As crianças visitavam Jaime Smugs quase todos os dias. Iam à pesca com ele no barco e traziam para casa belas presas, o que fazia Jau abrir a boca de espanto. Smugs ia-lhes ensinando as manobras da vela e em breve os quatro pequenos se sentiam capazes de manejá-la sozinhos. Gozavam intensamente o prazer de navegar ao sopro forte da brisa.
— É quase tão rápido como um barco a motor — comentou Filipe, extasiado. — Smugs, que bom foi tê-lo encontrado!
Com grande desapontamento de João, Jaime Smugs não parecia disposto a falar indefinidamente de pássaros nem tão-pouco quis acompanhar o rapaz nas suas buscas pelas rochas à procura das aves. No entanto, escutava de bom grado as dissertações de João e entregou-lhe um dia alguns livros modernos sobre aves, dizendo-lhe que os guardasse para si.
— Mas estão novos — protestou João. — Olhe, as páginas deste ainda não foram abertas... sinal de que não leu ainda o livro. Eu tenho tempo de lê-los depois.
— Não, podes ficar com eles — disse Jaime Smugs, acendendo um cigarro. — Um deles faz referência ao corvo marinho, que eu duvido que tenhamos a dita de encontrar algum dia. Ninguém mais o viu de há um século para cá.
— Talvez se encontre na ilha das Trevas... ou em qualquer outra ilha isolada e remota — opinou João, esperançado. — Quem me dera poder lá ir ver. Aposto que há lá milhares de pássaros duma extraordinária mansidão.
Este eterno assunto aborrecia sempre Dina, que fez mudar o rumo à conversa.
— Queria que visse a cara de Jau quando viu o produto da nossa pescaria de ontem — disse ela, rindo. — Ele disse, carrancudo: «Esses peixes nunca se apanham nas rochas, só se foram para o largo num barco».
— Mas vocês não lhe disseram como foi, pois não? — interpelou Jaime Smugs, com rapidez. Dina abanou a cabeça.
— Não, por certo. Estragava tudo se soubesse que temos andado de barco consigo.
— E os vossos tios sabem que vocês me conhecem? — Dina acenou com a cabeça desta vez.
— Porquê? — perguntou ela. — Não quer que eles saibam? Tem alguma importância eles saberem ou não?
— Bom — disse Jaime Smugs, coçando o alto da cabeça —, é que eu vim para aqui para estar isolado... e estudar as aves... e não desejo que venham incomodar-me. Com vocês é diferente, diverte-me, até, a vossa companhia.
Jaime Smugs vivia absolutamente só na cabana em ruínas. Possuía um bom carro, que guardava sob um toldo, no cimo do rochedo, o mais abrigado que era possível, e ia à cidade mais próxima fazer compras sempre que precisava. Trouxera consigo um colchão e mais meia dúzia de coisas indispensáveis para tornar a cabana um pouco mais habitável.
Os pequenos ficaram encantados quando souberam que ele, além do barco, tinha também um carro e pediram-lhe que os levasse com ele na próxima vez que fosse à cidade.
— Eu quero comprar uma lanterna eléctrica — disse João. — Jaime, lembra-se daquela estranha passagem secreta de que lhe falámos? É quase impossível atravessá-la à luz duma vela... e uma lanterna dava muito mais jeito. Se me levar no seu carro poderei comprar uma.
— Eu também queria uma — acrescentou Filipe. — Ouve, João, tu disseste que precisavas de comprar rolos para fotografias, visto que deixaste os teus em casa do Sr. Roy. E sem rolos não poderás fotografar os pássaros...
As rapariguinhas queriam também comprar coisas, portanto Jaime Smugs acedeu a levá-los no dia imediato. Na manhã seguinte os quatro precipitaram-se para o carro com ruidosas exclamações de júbilo.
— Jau também vai hoje à cidade — disse Dina, com riso de mofa. — Seria divertidíssimo se o topássemos, não acham? E, para ele, que enorme surpresa!
O carro de Jaime era realmente uma beleza. Os rapazes, que percebiam de automóveis, examinaram-no, maravilhados.
— É novo — disse João —, deste ano e rápido. O Smugs deve ser muito rico! Este carro deve ter custado uma fortuna. Com certeza que não tem dificuldades, Jaime?
— É conforme — disse Smugs, sorrindo. — E agora... a caminho!
E a caminho lá foram, avançando velozes, uma vez deixada para trás a difícil estrada da costa. O carro era provido de boas molas e deslizava que era uma maravilha.
— Com a breca, que diferença tem este do velho carro da tia Lena guiado por Jau! Vamos chegar à cidade dentro em pouco — dizia Dina satisfeita.
Efectivamente chegaram lá depressa. Jaime Smugs deixou o carro estacionado e seguiu sozinho, depois de ter combinado com os pequenos encontrarem-se num grande hotel, onde almoçariam juntos.
— Para onde irá ele? — disse João, seguindo-o com o olhar.
— Podíamos muito bem continuar todos juntos, tanto mais que eu queria que ele me levasse àquela loja onde há animais embalsamados, para ver os pássaros empalhados que lá há.
— Vê-se bem que quis ver-se livre de nós — acrescentou Dina, também um tanto despeitada. Era já muito amiga de Jaime Smugs e tinha poupado algum dinheiro para lhe oferecer um sorvete. — Naturalmente tinha negócios particulares a tratar.
— Que espécie de negócios? — perguntou Maria da Luz.— Ele deve fazer mais alguma coisa do que contemplar pássaros, parece-me. E mesmo isso não lhe tem tomado muito tempo desde que o conhecemos.
— Ele nunca nos disse que espécie de trabalho era o dele
— lembrou João. — Mas por que razão havia de fazê-lo? Ele não é como nós, sempre prontos a badalar seja o que for. As pessoas crescidas são diferentes. Vamos ver onde há uma loja que venda lanternas eléctricas.
Encontraram uma que as tinha, muito jeitosas, pequenas como eles queriam e com foco potente, o que os fez imaginarem-se já no corredor secreto iluminado à luz das lanternas. Compraram cada um a sua, incluindo as raparigas.
— Já não precisamos de acender velas no quarto — exclamou Dina —, basta servir-nos das lanternas.
Foram depois adquirir rolos para a máquina de João e compraram também rebuçados e biscoitos e um frasco de perfume concentrado para a tia Lena.
— É melhor comprarmos agora algumas sementes de girassol para a Didi, - lembrou João. A Didi deu um guincho. Estava empoleirada no ombro de João, como de costume, mas portando-se muito bem desta vez. Todos os transeuntes olhavam para ela, evidentemente admirados, o que deveras agradava ao animal. Exceptuando o facto de ter recomendado a um rapaz que passava que não assobiasse, a Didi manteve-se quase sempre calada. Estava satisfeita com as suas semente de que muito gostava e das quais devorou algumas na própria loja.
Os pequenos entretinham-se pelas montras à espera que a uma hora soasse para irem ter com Jaime Smugs ao hotel quando, inesperadamente, avistaram Jau.
Avançava pela rua no velho carro, buzinando para uma mulher que a atravessava. As crianças acotovelavam-se umas às outras, duvidando de que ele os visse, e quase desejando que isso acontecesse.
E assim foi. Primeiro deu com os olhos em Filipe, depois lobrigou João com a Didi pousada no ombro, e por fim as duas raparigas, mais atrás. Ficou de tal maneira admirado que deixou o carro quase sem governo pela rua, e ia atropelando um polícia.
—Eh, lá! Não vê o que faz? — berrou o polícia, enfurecido. Jau resmungou umas palavras de desculpa e voltou a procurar as crianças.
— Não é preciso fugir — disse João para os companheiros. — Ele não pode perseguir-nos com o carro. Continuem a andar e façam de conta que não o vêem.
Desceram assim a rua, conversando e fingindo não ver Jau, nem atentando nos seus berros e gesticulações.
Jau não queria acreditar no que via. Como teriam as crianças vindo ali parar? Não havia eléctrico, nem comboio, nem camioneta que se pudesse tomar. Nem sequer tinham bicicletas e a distância era enorme para que pudessem ter vindo a pé.
Mas como estavam então elas ali?
O preto apressou-se a arrumar o automóvel para ir atrás dos pequenos e interrogá-los. Saltando do carro, lançou-se-lhes no encalço, mas nesse momento transpunham eles a porta do grande hotel onde tinham combinado encontrar-se com Jaime Smugs, desaparecendo pela escadaria acima.
Jau não ousou entrar no hotel para segui-los e quedou-se no fundo do grande lanço de escadas, lançando às crianças um olhar de atónita reprovação. Já era de admirar tê-los encontrado na cidade, mas muito mais espantado ainda era vê-los eclipsar-se dentro do mais caro dos hotéis daquela cidade.
Jau sentou-se no fundo das escadas na intenção de esperar até que saíssem e nessa altura pregaria com eles dentro do carro para os levar para casa e havia de dizer à Sr.a Dona Lena onde os tinha encontrado. Ela não iria ficar muito contente ao saber que tinham andado a esbanjar, em hotéis caros, dinheiro ganho à custa de tantos sacrifícios, quando tão bem podiam ter trazido de casa um pacote de sanduíches.
As crianças riram a bom rir enquanto subiam as escadas.
Jaime Smugs estava à espera deles no vestíbulo. Indicou às raparigas onde podiam ir pentear-se e lavar as mãos. Voltaram a encontrar-se ao fim de alguns momentos e dirigiram-se todos à sala de jantar para almoçarem.
Foi um almoço em cheio. As crianças comeram tudo o que lhes puseram na frente e terminaram com os sorvetes maiores que até àquele dia tinham visto.
— Oh, Jaime, isto foi estupendo — exclamou Dina, recostando-se na sua confortável cadeira e soltando um suspiro. — Simplesmente maravilhoso, um banquete autêntico! Mil vezes obrigada.
— Dá-me ideia de que estamos na companhia de um milionário — comentou Maria da Luz, reparando nas notas que Smugs dava ao criado para pagar a conta. — Ai, comi tanto que julgo que não serei capaz de me levantar nem de andar.
João lembrou-se de Jau e calculou que o preto estivesse ainda à espera deles. Levantou-se e foi certificar-se.
Espreitou pela janela que dava para a entrada principal do hotel. Lá estava Jau pacientemente sentado no fundo da escada. João foi juntar-se aos outros, meneando a cabeça.
— Este hotel tem saída para as traseiras? — perguntou a Jaime Smugs.
Este, olhando-o surpreendido, respondeu: — Tem, porquê?
— Porque o amigo Jau está lá fora à nossa espera, junto da porta principal. — Smugs sacudiu a cabeça com ar de compreensão.
— Bom, então sairemos sorrateiramente pela porta das traseiras — concordou ele. — Vamos, de qualquer maneira é tempo de nos irmos embora. Compraram tudo o que precisavam?
— Sim — responderam os pequenos, e marcharam atrás dele. Smugs conduziu-os para as traseiras do hotel, que davam para uma ruazinha sossegada. Levou-os para o local onde tinha deixado o seu 'carro e todos se arrumaram lá dentro, felizes por terem passado um dia tão agradável.
Largaram em grande velocidade para a beira mar e desceram do carro no sítio mais próximo da Casa do Penhasco.
Subiram o rochedo a correr, desejosos de chegar antes de Jau.
Jau não chegou senão uma hora depois, com ar carrancudo e furioso. Arrumou o carro e dirigiu-se para casa. A primeira coisa que viu foi o grupo das quatro crianças que brincavam nos rochedos. Parou e olhou-os demoradamente, cheio de admiração.
Fosse como fosse havia um mistério e Jau estava decidido a descobrir do que se tratava. Ele não iria deixar-se enganar por quatro crianças. Nanja ele!
JAU VÍTIMA DE NOVA PARTIDA
Jau meditou sobre o mistério que representava as crianças encontrarem-se na cidade e sem meio de condução terem chegado a casa antes dele. Portanto, concluiu que alguém lhes devia ter dado uma boleia.
Assim, dispôs-se a vigiá-los de perto, procurando ter sempre que fazer junto do local onde os miúdos se encontrassem. Se eles iam para a praia lá estava Jau a apanhar os cavacos arremessados à praia pela maré. Se eles ficavam em casa, Jau ficava também. Se eles subiam aos rochedos, Jau seguia-os de perto. Isto contrariava enormemente os pequenos.
— Ele há-de seguir-nos até descobrir tudo o que diz respeito a Jaime Smugs, ao seu barco e ao automóvel — afirmou Maria da Luz. — Nós não temos conseguido encontrar-nos com ele durante todo o dia de hoje e se Jau continua a seguir-nos desta maneira também lá não iremos amanhã.
Era impossível iludirem a vigilância de Jau. Ele era um hábil espião de crianças e depressa elas se fartaram de tão aturada perseguição.
As duas raparigas subiram nessa noite ao quarto da torre para discutir o assunto com os rapazes.
— Descobri — afirmou João de repente. — Descobri como havemos de armar-lhe uma esparrela que o deixará terrivelmente embaraçado.
— Como é? — perguntaram os outros.
— Ora, vamos todos pelas cavernas — respondeu João. — Descemos pela abertura da passagem secreta, passamos às caves cá de casa e de lá esgueiramo-nos e, enquanto Jau fica à nossa espera na praia, vamos nós ter com Jaime aos rochedos.
— Ena, que bela ideia! — louvou Filipe.
As raparigas duvidavam do resultado, porque na verdade nenhuma delas estava interessada na travessia da passagem secreta. No entanto... agora todos tinham lanternas e era uma boa ocasião de fazer uso delas.
No dia seguinte, com Jau na peugada, as quatro crianças e a Didi desceram à praia.
— Jau, deixa-nos em paz, pelo amor de Deus! — rogou Filipe. — Nós vamos para as cavernas, onde nenhum mal pode acontecer-nos. Vai-te embora!
— A Sr.a Dona Maria Helena disse que eu ter de olhar pelos meninos — insistiu Jau. Ele já havia pronunciado esta frase centenas de vezes, mas eles sabiam que esta não era a verdadeira razão.
Nada divertia mais Jau do que aborrecer os outros. Além disso, tinha resolvido meter o nariz em tudo o que as crianças fizessem.
Dirigiram-se para as cavernas. Jau vagueava cá por fora e ia aproveitando o tempo a apanhar umas aparas de madeira, que deitava para um saco.
As crianças escaparam-se pela abertura que conduzia ao corredor secreto e aí, com as suas lanternas acesas, avançaram por ele.
As raparigas não estavam a gostar daquilo. Não suportavam aquele cheiro e quando descobriram que em certo ponto havia dificuldade de respirar, assustaram-se de verdade.
— Bom, agora não vão voltar para trás — observou Filipe, empurrando Dina para a fazer andar. — Já vamos em mais de metade do caminho. Anda, Dina, não nos deixas prosseguir.
— Não me empurres — disse Dina. — Eu posso parar quando me apetecer.
— Acabem lá com isso — interveio João. — Aposto que haviam de armar zaragata mesmo que estivessem num barco a afundar-se ou num avião prestes a precipitar-se no solo. Vá, Dina, não sejas palerma.
Dina estava prestes a começar uma discussão com João quando a Didi desatou a tossir, imitando Jau com tanta perfeição que as crianças pensaram que o preto tinha descoberto a passagem. Calaram-se todos e apressaram-se a retomar a marcha.
— Descansem que foi a malvada da Didi — elucidou João, aliviado, quando a Didi voltou a tossir.
Seguiram sempre para diante até que chegaram ao fim do subterrâneo. Todos se puseram a olhar para o alçapão, acima deles, brilhantemente iluminado pelas quatro lanternas.
O alçapão cedeu com um estalido. Os rapazes treparam para a cave e de lá ajudaram as raparigas a subir. Fecharam o alçapão e dirigiram-se para a porta da cave, que estava fechada e abriram-na.
As caixas do outro lado caíram com um barulho muito seu conhecido.
Depois de passarem o limiar da porta, fecharam-na, voltando a empilhar novamente as caixas. Subiram então os degraus que davam para a grande cozinha. Ninguém lá estava, o que foi para eles uma sorte.
Já fora de casa, encaminharam-se para os rochedos, tomando pelo atalho, para que não fossem vistos da praia, e apressaram-se a ir ter com o seu amigo Jaime Smugs.
Fungavam de riso ao pensarem no amigo Jau lá em baixo, na praia, aguardando que eles saíssem das cavernas.
Jaime Smugs estava a retocar o seu barco e acenou-lhes alegremente quando os viu aproximarem-se.
— Vivam — saudou ele —, porque não apareceram ontem? Senti a vossa falta.
— Foi por causa do Jau — informou João —, que nos segue como uma sombra. Naturalmente suspeita de que arranjamos algum amigo com automóvel e anda doido para saber quem é.
— Bom, nada lhe digam — rogou Smugs, apressadamente. — Guardem isso para vocês. Eu não quero Jau a espiar nas redondezas. Ele não me parece boa pessoa.
— Que está a arranjar no barco? — perguntou João. — Vai sair nele?
— Pensei nessa possibilidade — respondeu Smugs. — Está um belo dia, o mar está bastante calmo, apesar desta brisa... até tinha pensado na hipótese de me aproximar da ilha das Trevas.
Seguiu-se um silêncio revelador da emoção das crianças. A ilha das Trevas! Todas elas ambicionavam vê-la de perto, mas então João... esse queria até desembarcar lá! Se, ao menos, Jaime os quisesse levar consigo...
João olhou na direcção do Poente. Não conseguiu ver a ilha porque continuava a haver uma névoa à superfície do mar, mas sabia exactamente onde ela ficava. O seu coração bateu mais apressadamente. O grande corvo marinho podia talvez existir lá. De qualquer maneira, mesmo que não fosse esse, havia com certeza todas as outras espécies de aves marinhas e naturalmente tão mansas quanto podia ser. E poderia levar a máquina fotográfica... poderia...
— Jaime... por favor, por favor, leve-nos consigo! — pediu Maria da Luz. — Oh, leve-nos! Nós portar-nos-emos bem, e, sabe, agora que já nos ensinou a velejar podemos dar-lhe uma boa ajuda.
— Bom... eu tencionava levá-los — respondeu Smugs acendendo um cigarro, e olhando em redor, com ar sorridente, para as crianças.
— O passeio era para ontem, mas como vocês não apareceram decidi esperar até hoje. Iremos esta tarde e levaremos merenda connosco. Têm de despistar Jau outra vez. Se ele os vê sair do meu barco é capaz de vos obrigar a voltar para casa.
— Oh, Jaime! Nós estaremos aqui logo a seguir ao almoço — afirmou João, com os olhos muito verdes a brilhar.
— Milhões de agradecimentos — disse Filipe.
— Será possível vermos de perto a ilha das Trevas? — perguntou Maria da Luz excitadíssima.
— Não poderemos lá desembarcar? — interveio Dina.
— Não me parece — respondeu Smugs. — Bom, a ilha está rodeada por uma cadeia de traiçoeiros recifes e embora tenha existido uma passagem, que provavelmente ainda existe, eu não conheço a sua localização. Não posso, pois, correr o risco de nos afogarmos todos.
— Oh! — foi a exclamação das desapontadas crianças. Por elas estavam absolutamente dispostas a correr o risco de naufrágio, só para terem o prazer de alcançar aquela curiosa ilha.
— O melhor que vocês têm a fazer é pedir à vossa tia que lhes dê o almoço mais cedo e despacharem-se — aconselhou Jaime. — Eu não quero partir muito tarde daqui. A maré vai ajudar-nos, mas é preciso sair de cá bastante cedo.
— Óptimo — disseram os quatro, pondo-se de pé dum salto. — Adeuzinho, Jaime, até logo. Traremos a merenda connosco... Será tão boa quanto nós pudermos conseguir para o compensar de ter esperado por nós.
Voltaram para casa, falando todo o tempo do passeio de barco. Jau dissera tais coisas daquela desolada ilha que as crianças não podiam deixar de se sentir emocionadas com a possibilidade de a verem de perto.
— Provavelmente Jau ainda está na praia, espiando a saída das cavernas — disse João. As crianças assomaram cautelosamente à beira do rochedo e espreitaram para baixo. Sim... lá estava Jau na praia. Como ele iria ficar raivoso!
E ei-los a caminho da Casa do Penhasco, à procura da tia Lena.
— Tia Lena, não poderíamos almoçar mais cedinho e levarmos depois alguma coisa para a merenda? — perguntou Filipe. — Isto dar-lhe-ia muito trabalho? Nós ajudaremos a arranjar a merenda e prometemos não nos importar muito com a quantidade.
— Há uma empada na despensa — respondeu a tia Lena depois de pensar um bocado, e também alguns tomates e umas maçãs assadas. Dina, põe tu a mesa e os outros tiram o almoço. Eu farei algumas sanduíches para a vossa merenda e podem levar também o bolo de ginjas. Luzinha, és capaz de pôr a chaleira ao lume? Vou arranjar-vos um termo com chá, se quiserem.
— Obrigado, tia Lena — disseram os miúdos e começaram logo a arranjar as coisas. Também puseram um talher na mesa para a tia mas ela abanou a cabeça.
As crianças sentiram-se pesarosas. Realmente a tia Lena estava com mau parecer. Filipe pôs-se a pensar se a mãe dele teria mandado mais algum dinheiro à tia Lena, ou se ela estaria em dificuldades, mas não gostava de tocar nesses assuntos diante dos outros. Depressa almoçaram e ultimaram os preparativos da merenda e prontamente se puseram todos a caminho.
Jau ainda não lhes tinha aparecido. O preto continuava a tomar conta, à entrada das cavernas, agora bastante intrigado já e muito aborrecido pelo desaparecimento dos quatro pequenos, mas mantinha-se na convicção de que não poderiam escapar-lhe. Por fim acabou por entrar também na caverna e chamar por eles.
Claro que nenhuma resposta obteve, como era de calcular. Novamente chamou. «Bom, se eles se perderam também não se perde grande coisa», disse para consigo. Decidiu-se então a ir ter com a Sr.a Dona Helena e contar-lhe o sucedido.
Se assim pensou, melhor o fez. As crianças já tinham saído e a tia Lena andava em arrumações. Lançou a Jau um olhar perscrutador. — Por onde tens andado toda a manhã? — perguntou ela. — Precisei de ti!.
— A olhar pelas crianças — respondeu o preto. — Elas meteram-se nas cavernas lá em baixo e parece-me que se perderam. — Fartei-me de chamar por elas.
— Não sejas idiota, Jau — disse a tia Lena. — Estás mas é a desculpar-te com os pequenos para andares a mandriar. Sabes muito bem que eles não estão nas cavernas.
— Sr.a Dona Maria Helena, vi eles entrar para lá mas não os vi sair — começou Jau, ferido na sua dignidade. — Eu estava na praia e estive lá até agora, não estive? E eu garanto, Sr.a Dona Maria Helena, que os meninos entraram nas cavernas e estão lá ainda.
— Isso é que não estão — declarou a tia Lena com firmeza. — Acabaram de sair daqui para um piquenique. Chegaram cá, pediram o almoço mais cedo e foram-se. Portanto, não me voltes com esses disparates a dizer que se perderam nas cavernas.
A boca de Jau abriu-se de mal contida admiração. Não podia acreditar no que ouvia. Não tinha ele passado toda a manhã à entrada da caverna? As crianças não podiam, portanto, ter saído de lá sem serem vistas.
— Não faças essa cara de pasmo — exclamou a tia Lena em tom decidido. — Sacode essa preguiça e faz qualquer coisa. Terás de fazer esta tarde o que deixaste por fazer esta manhã. Eu acredito que os meninos tivessem entrado para as cavernas mas o certo é que arranjaram maneira de se escapar mesmo nas tuas barbas, sem dares por isso. E agora não fiques para aí especado como um boneco empalhado, que me fazes nervos.
Jau sacudiu-se, fechou a boca e retirou-se pacatamente para os seus afazeres. Estava embasbacado de todo. Lembrou-se então duma certa noite em que andara perseguindo dois rapazes, que tomara por Filipe e João, naquelas mesmas grutas... tinha subido a maré entretanto, aprisionando os rapazes, mas na manhã seguinte eles já lá não estavam.
E agora as quatro crianças haviam feito o mesmo. Jau pensou que tudo aquilo era deveras misterioso e já não estava a gostar que, uma vez mais, as crianças o tivessem enganado. Para onde teriam elas ido? Não, essa tarde não era propícia a investigações, sobretudo com a sua senhora naquela péssima disposição.
A ILHA DAS TREVAS À VISTA.
As crianças atravessaram os rochedos o mais depressa possível para junto de Jaime Smugs e do seu barco. Este estava a postos para a partida. Depois de arrumados o pacote das sanduíches, o bolo e o termo trazido por elas, Smugs colocou ao pé o seu pacote de bolachas e chocolates e todos entraram para o barco.
Jaime trouxera o barco para a praia em lugar de escondê-lo por trás dos rochedos. Empurrou-o depois pela água fora até o pôr a flutuar. Saltou-lhe então para dentro e remou até o levar para longe dos rochedos.
— E agora — disse ele, uma vez deixados os rochedos bem atrás e quando iam já em pleno mar — agora, meus rapazes, icem essa vela e vejamos como se saem.
Os rapazes içaram a vela facilmente. A seguir revezaram-se ao leme e Jaime estava contente com o trabalho deles. — Vocês honram o mestre — louvou com ar de aprovação. — Estou convencido de que já seriam capazes de se fazer sozinhos ao mar neste barco.
— Oh! Jaime... será possível que nos deixe ir? — perguntou João, com ansiedade. — Pode ter confiança em nós e verá que não o faremos arrepender-se.
— Talvez deixe um dia — respondeu Smugs. — Mas teriam de prometer-me que não se afastariam muito.
— Certamente, prometemos seja o que for — declararam as crianças com sinceridade. Que bom seria partirem sozinhos no barco de Jaime!
O vento estava de feição, e o barco, ganhando velocidade, balouçava agora um tanto, de vez em quando, ao sabor da ondulação. Mas o mar estava perfeitamente calmo.
— Como isto é lindo — exclamou João — e como é agradável ouvir o estalar da vela açoitada pelo vento, e o marulhar da água quebrando-se de encontro ao barco, e o silvo cadenciado da brisa... Dina e Maria da Luz deixavam que as suas mãos sulcassem a água fresca e suave. A Didi, empoleirada na vela grande, olhava à sua volta, cheia de interesse. A ave dificilmente mantinha ali o equilíbrio e tinha de recorrer às asas para se manter no seu pouso, mas parecia apreciar tanto o passeio como as próprias crianças.
«Limpa os pés e fecha a porta», palrava ela a Jaime Smugs, quando o via a olhar. «Quantas vezes é preciso dizer...»
«Cala-te, Didi», gritaram todos ao mesmo tempo. «Não sejas malcriada com o Jaime ou vais pela borda fora».
A Didi, com uma estrepitosa gargalhada, elevou-se no ar e acercou-se de um casal de assustadas gaivotas às quais aconselhou que se servissem do lenço. Depois, com um guincho estridente, fez as gaivotas fugirem apavoradas e retomou o seu pouso contente consigo mesma. Ela gostava de causar sensação, quer fosse entre seres humanos, quer em pássaros ou animais de qualquer espécie.
— Ainda não consigo distinguir a ilha das Trevas — comentou João que perscrutava atentamente o horizonte. — Para que lado fica, Jaime? — Parece-me que perdi o sentido de orientação, aqui em pleno mar alto.
— Naquela direcção — respondeu Smugs, apontando. — Os pequenos seguiram com a vista o ponto que o seu dedo indicava, mas nada viram. Em todo o caso era emocionante sentirem que a «ilha enfeitiçada», como lhe chamava Jau, estava cada vez mais ao seu alcance.
O barco deslizava veloz e o vento refrescou um pouco à medida que iam avançando. Os cabelos das raparigas eram atirados ora para trás ora para os seus rostos. Smugs soltou uma imprecação quando o vento lhe arrebatou o cigarro que tinha entre os lábios e o lançou para longe.
— Se a Didi tivesse algum préstimo voaria atrás dele para mo trazer — disse Jaime, piscando o olho à catatua.
«Coitadinha da Didi», fez o pássaro tristemente, sacudindo a cabeça. «Pobre Didi, mas que pena... mas que pena...»
João atirou-lhe uma concha e ela, dando uma gargalhada, parou de palrar. Smugs tentou acender outro cigarro, tarefa que o vento tornava muito difícil.
Daí a momentos, João soltou um grito: — Olhem! Terra à vista! Não será a ilha das Trevas? Deve ser.
Todos olharam atentamente. Destacando-se da bruma, lá estava a terra à vista, sem sombra de dúvida.
— Sim, é realmente a ilha — confirmou Jaime muito interesssado. — Uma grande ilha.
O barco aproximava-se. A distância, cada vez mais curta, podia distinguir-se a natureza rochosa e acidentada da ilha, à volta da qual as águas turbilhonavam constantemente. A espuma formada pela rebentação das ondas era arremessada a grandes alturas e viam-se, dispersos aqui e ali, emergindo do mar, altos rochedos escarpados.
Estava agora cada vez mais perto. O mar era bravo e encapelado e Maria da Luz começou a empalidecer. Era a única que não tinha qualidades de bom marinheiro. Mas era corajosa, não disse palavra, e daí a pouco a sensação de enjoo começava a desaparecer.
— Vejam agora a cadeia de recifes que rodeia a ilha — indicou Jaime Smugs. — São traiçoeiros como tudo e se bem me parece vários barcos se despedaçaram de encontro a eles. Manobraremos em volta a ver se conseguimos descobrir alguma entrada. Mas não passaremos daí, por isso não adianta pedirem para irmos mais além.
O Albatroz, sacudido pelas vagas, balouçava fortemente e a pobre Maria da Luz voltava a sentir-se mal. — Experimenta trincar uma bolacha — disse Jaime Smugs, notando o mau parecer da rapariguinha. — Talvez dê resultado e te faça passar o enjoo. De facto, Maria da Luz seguiu o conselho, o enjoo passou e pôde continuar a gozar o passeio como até aí. A ilha das Trevas estava realmente em conformidade com o nome. Tanto quando a distância permitia distinguir era absolutamente deserta e o seu aspecto revelava a mais completa desolação. Parecia constituída por rochedos que se elevavam, formando colinas no centro da ilha.
Espaçadas aqui e além, algumas árvores e manchas de verde destacavam-se no solo nalguns pontos. As rochas, negras em toda a ilha, apresentavam no entanto uma curiosa tonalidade de vermelho na orla do litoral.
— Milhares e milhares de pássaros, como eu pensava — observou João, olhando através do binóculo, cheio de entusiasmo. — Pai da vida... olhe bem para eles, Jaime.
Mas Smugs não abandonava o leme. Era arriscado navegar perto de uma cadeia de recifes num mar tão agitado. Abanando a cabeça, disse, dirigindo-se a João: — Eu acredito no que os teus olhos vêem. Vai-me dizendo as espécies que reconheces.
João desfiou uma lista de nomes. — Jaime, há um nunca acabar de pássaros! — gritou ele. — Oh! Vamos atracar à ilha! Arranje alguma maneira de atravessar a cadeia dos recifes, peço-lhe por tudo, Jaime.
— Não — declarou Jaime com firmeza. — Já disse que não. Seria tarefa perigosa aportar à ilha, mesmo que conhecêssemos a rota, quanto mais desconhecendo-a. Não iria arriscar as vossas vidas só para ver de perto uma multidão de pássaros... os mesmos que se vêem na Casa do Penhasco em qualquer altura.
O barco prosseguia no seu caminho, contornando a ilha e evitando a traiçoeira cadeia de rochedos sobre os quais se quebravam as ondas com fragor, fazendo bailar a espuma no ar a grande altura. Era um espectáculo de entusiasmar, e as crianças, exultantes, sentiam vontade de dar gritos de satisfação.
João via com maior nitidez a ilha por causa do seu binóculo, que mantinha colado aos olhos, observando os milhares de aves, pousadas ou a voar, que a sua vista podia abranger. Filipe tocou-lhe no braço.
— Deixa cá dar também uma espreitadela — disse ele. — Passa cá o binóculo.
João não estava muito pelos ajustes porque receava perder a oportunidade de ver o corvo marinho gigante, mas finalmente lá se resolveu a emprestar o binóculo a Filipe. Este último, que não tinha particular interesse nas aves, percorreu a vista pela costa... e soltou uma exclamação.
— Olá! Há ainda casas ou quaisquer construções na ilha. Actualmente desabitadas por certo.
— Pois claro — disse Jaime Smugs. — Foram abandonadas há séculos. Não compreendo como alguém podia viver aqui. Não pode ter sido por causa da pesca ou para cultivar a terra, porque o solo é ermo e estéril.
— Julgo que o que vejo não são mais do que ruínas, sobre a encosta — disse Filipe. — Mas não posso dizer com segurança.
— Ninguém se avista por lá... ou algumas das «coisas ruins» de que Jau falava? — perguntou Dina, rindo.
— Não, absolutamente nada — elucidou Filipe. — Mas, vê tu pelo binóculo, Dina, e a seguir tu, Luzinha. Não admira que lhe tenham chamado a ilha das Trevas, tão desolado e sombrio é o seu aspecto. Nem um único ser vivo além das aves aquáticas.
As raparigas serviram-se por sua vez do binóculo e não ficaram bem impressionadas com a ilha. Era árida e feia e toda ela tinha um ar de abandono e desolação.
A embarcação continuava circundando a ilha a distância dos recifes que a defendiam. O único ponto susceptível de dar entrada ficava um pouco para Oeste. Aqui o mar era menos bravo e, apesar das ondas subirem alto, não havia rochedos fora da água.
— Aposto que é a única entrada da ilha — observou João.
— Pois sim, mas não tentaremos transpô-la — retorquiu Jaime Smugs imediatamente. — Vamos deixar a ilha e procurar aproar a águas mais mansas. Desceremos então a vela e comeremos a nossa merenda suavemente embalados pela ondulação, em lugar de sacudidos no vaivém destas águas revoltas. A pobre Maria da Luz está outra vez muito pálida.
João lançou um último olhar através do binóculo e soltou tamanho berro que Dina quase perdeu o equilíbrio e a Didi caiu do seu alto pouso.
— Que se passa? — perguntou Jaime Smugs, estremecendo.
— Um corvo marinho gigante! — gritou João, com o binóculo colado aos olhos. — É... é uma ave enorme com asas muito curtas coladas ao corpo, à maneira dos pinguins. É um corvo marinho gigante!
Jaime deu o leme a João por um instante e pegou no binóculo, mas, não vendo corvo marinho algum, restituiu-o novamente ao excitado rapaz, cujos olhos verdes brilhavam de alegria.
— Deve ter sido uma torda mergulhadeira — elucidou ele —, que tem grandes semelhanças com os pinguins, como sabes, mas tu deixaste-te influenciar pela tua imaginação, meu rapaz. Tenho a convicção de que não se tratava de um corvo marinho gigante.
Mas João estava absolutamente convencido de que não se tinha enganado. Não podia voltar a vê-lo mas, mesmo depois de terem deixado a ilha para trás, o pequeno continuava a tentar segui-lo com o olhar. O corvo marinho estava lá, porque ele tinha a certeza de que vira um. Como podia Jaime dizer que era uma torda mergulhadeira?
— Jaime... peço-lhe, volte, volte para trás — rogou João sem poder conter-se. — Eu sei que era um corvo marinho... um corvo marinho gigante. Vi-o de relance. Imaginem. O que diria o mundo se soubesse que eu tinha encontrado um corvo marinho gigante, uma espécie considerada extinta há muito tempo.
— As pessoas não ligariam importância alguma a isso — cortou Jaime Smugs secamente — com excepção de meia dúzia de entendidos, que talvez se entusiasmassem um pouco. Acalma-te, portanto... receio bastante que estejas completamente iludido.
Mas João não podia conter-se.
Sentou-se, com uma expressão excitada nos olhos febris, a cara afogueada e o cabelo desalinhado pelo vento. A Didi, sentindo o nervosismo do dono, veio pousar-lhe no ombro e debicar-lhe a orelha para lhe chamar a atenção.
— Era um corvo marinho gigante, era, era — insistiu João, e Maria da Luz agarrou-lhe no braço e apertou-lho. Também ela estava completamente convencida de que era um corvo marinho gigante... e, ainda que não estivesse, não seria ela quem o iria confessar para não armar em desmancha-prazeres. Dina e Filipe eram mais cépticos a este respeito e não acreditavam que fosse um corvo marinho gigante.
Comeram todos a merenda quando chegaram a águas mais calmas, com o pano descido e o barco sem governo. João nem tocou na comida, apenas conseguiu engolir o chá.
Maria da Luz, como lhe tinha passado o enjoo, estava esfomeada e comeu a sua merenda e a de João. Os outros também estavam com fome. Tinha sido uma tarde cheia de emoções.
— Deixa-nos realmente um dia tripular sozinhos o seu barco, como nos prometeu? — perguntou João de repente. Jaime Smugs olhou-o bem de frente.
— Somente se prometerem não se afastarem muito — disse ele. — Nada de explorações no sentido de encontrarem o corvo marinho gigante na ilha das Trevas.
Como era esta, no fundo, a ideia de João, o sangue aflui-lhe ao rosto. — Está bem — concedeu ele, por fim. — Eu prometo não ir à ilha das Trevas no seu barco, Jaime. Mas podemos então sair sozinhos umas vezes por outras?
— Sim, podem. Parece-me que realmente vocês já sabem manejar um barco à vela e que nenhum mal vos acontecerá se saírem com tempo calmo.
A expressão de João era de grande contentamento. Ele bem sabia o que havia de fazer. Não faltaria à palavra dada a Jaime... não iria à ilha no barco dele... mas nada o impedia de ir no barco de outra pessoa. Havia de praticar mais vela e remo no barco de Jaime e, logo que se sentisse apto, meter-se-ia no barco de Jau e nele chegaria à ilha.
O plano era audacioso e arrojado, mas João estava tão emocionado com a ideia de encontrar o corvo marinho gigante, cuja espécie era considerada extinta, que se sentia com forças para meter ombros a qualquer tarefa arriscada. A passagem através das rochas tinha a certeza de que a encontraria. Enrolaria a vela quando estivesse próximo das rochas e remaria. O barco de Jau era grande e pesado mas João pensava que poderia manejá-lo bem. Calou-se muito bem calado porque Jaime estava ali e ele não devia saber de nada. Ele era um alegre e simpático companheiro mas também um homem, e as pessoas crescidas tinham o costume de impedir que as crianças se arriscassem um pouco. Portanto, João continuou calado, embalado pelo balanço do barco e pelas suas ideias audaciosas, sem ligar importância à conversa dos outros, nem à troça de que era alvo.
— Ele não está aqui, está acolá, na ilha, em busca do corvo marinho gigante — comentava Dina a rir.
— Pobre João... o passarolho até lhe tira o apetite! — exclamou Filipe.
— Vá, acorda — disse-lhe Smugs, dando-lhe uma palmada.
— Não sejas bicho-do-mato.
Depois da merenda decidiram voltar para a casa a remos, revezando-se. Smugs queria que eles se habituassem a pegar nos remos, o que muito os divertia.
João, que queria ganhar prática, remava vigorosamente, pensando na sua futura ida à ilha.
— Bem... eis-nos de volta sãos e salvos — observou Jaime quando o barco aproou à praia. Os rapazes saltaram ligeiros e puxaram-no para terra. As raparigas desembarcaram também, trazendo com elas o termo. Jaime, então, puxou pelo barco e pô-lo a seco.
— Então, adeuzinho — disse ele —, foi uma bela tarde. Voltem amanhã, se quiserem, e eu deixá-los-ei dar um passeio curto.
— Oh, mas isso é óptimo! — gritaram todos. — Obrigado!
— e Didi repetiu-lhes o grito, como um eco: «Obrigado, obrigado, obrigado!»
«Caluda!», ordenou João, com uma gargalhada, mas a Didi não deixou de repetir até casa. «Obrigado, obrigado, obrigado!»
— Divertiram-se esta tarde? — perguntou-lhes a tia Lena logo que eles chegaram.
— Muitíssimo — respondeu Dina. — Está melhor da dor de cabeça, tia Lena?
— Nem por isso — respondeu a tia, que tinha um ar cansado. — Parece-me que esta noite me deitarei cedo se fores levar a ceia ao tio em vez de mim.
— Claro que irei — disse Dina, embora não tivesse gostado muito daquele pedido porque tinha um certo medo daquele tio sábio e extravagante.
Jau, que entrava naquele momento, fitou as quatro crianças.
— Onde se meteram? — perguntou ele, com aspereza. — E para onde foram depois de terem entrado nas cavernas?
— Viemos para casa — disse Filipe, com uma cara de surpresa que muito enfureceu Jau. — Não nos viste? Acabámos agora de chegar de um piquenique, amigo Jau. Mas porque é todo esse interesse pelos nossos passos? Quererias vir também connosco?
Jau resmungou qualquer coisa com ar zangado, logo imitado pela Didi que, a seguir, soltou uma gargalhada irritante. Jau olhou o pássaro com um olhar de ódio irreprimível.
— Não façam pouco do Jau — disse a tia, enfastiada —, ele hoje está impossível, tremendamente malcriado e mandrião. Não apareceu cá em cima durante toda a manhã. Bom, vou-me deitar.
— João, ajuda-me a levar as coisas para o tio Renato — pediu Dina quando a ceia estava pronta. — A bandeja está muito pesada e o Filipe foi não sei para onde, como de costume. Escapa-se sempre que há alguma coisa para fazer.
João agarrou na pesada bandeja e seguiu Dina, que se dirigiu para o escritório do tio. Bateu à porta. Uma voz respondeu e Dina imaginou ter ouvido: «Entre!»
Entraram. A Didi ia no ombro de João, como habitualmente. — Trazemos-lhe a ceia, tio — disse Dina. — A tia Lena foi deitar-se. Estava muito cansada.
«Coitadinha da Lena, coitadinha da querida Lena», fez a Didi com voz lamurienta. O tio Renato, espantado, levantou a cabeça. Vendo a catatua, agarrou num pesa-papéis.
Imediatamente a ave voou para fora do quarto e o tio Renato pousou outra vez o pesa-papéis. — Não me deixem entrar aqui esse animal — disse ele asperamente. — Que pássaro impertinente! Pousa aí a bandeja. E tu quem és, meu rapaz?
— Sou João Trent — respondeu, surpreendido por poder haver alguém tão esquecido. — A minha irmã, Maria da Luz, e eu já lhe fomos apresentados no dia em que aqui chegámos, senhor. Não se lembra?
— Nesta casa há crianças a mais — observou o tio Renato, com ar rabujento —, nem se pode trabalhar em sossego.
- Oh, tio... que injustiça, nós não o incomodamos nada! —
repontou Dina, indignada.
O tio Renato estava curvado sobre um velho mapa. João deitou-lhe uma olhadela.
— Este mapa representa uma parte desta costa-—sugeriu ele, e esta é a ilha das Trevas, não é?
Apontou a linha exterior da ilha, cuidadosamente desenhada no grande mapa. O tio Renato concordou com um gesto.
— Já lá foi alguma vez? — perguntou João, ansioso. — Nós vimo-la esta tarde.
— Nunca lá fui nem tenho vontade — disse o tio Renato, com intimativa.
— Eu vi lá um corvo marinho gigante — disse João orgulhoso. O tio Renato não se mostrou muito impressionado.
— Tolice, essas aves deixaram de existir há que tempos! O que viste foi um pinguin. Não sejas tonto, meu rapaz.
João ficou contrariado. Somente Maria da Luz dava alguma importância à sua grande descoberta... mas essa, ele bem o sabia, até seria capaz de acreditar se ele afirmasse que tinha visto na ilha o Pai Natal. Contemplou com olhar firme aquele homem velho e excêntrico.
O tio Renato olhou também para ele.
— Posso observar esse mapa, senhor? — rogou João subitamente, pensando na possibilidade de ver nele marcada a passagem através da cadeia dos recifes.
— Porquê? Interessas-te por acaso por este género de coisas?
— perguntou o tio Renato, muito admirado.
— Tenho um interesse muito especial pela ilha das Trevas
— respondeu João. — Por favor, deixe-me ver o mapa.
— Tenho um maior, não sei onde, em que está representada a ilha em pormenor — disse o tio Renato visivelmente satisfeito por ver alguém tão interessado nos seus mapas. — Ora deixa cá ver onde ele está...
Enquanto ele o foi procurar, João e Dina, tiveram tempo para observar o grande mapa da costa. Lá estava a ilha das Trevas, cercada por rochas. Apresentava uma forma curiosa parecida com um ovo com um inchaço no meio dum dos lados, e uma costa muito recortada. Ficava situada a oeste da Casa do Penhasco.
João dobrava-se sobre o mapa, em entusiástica observação. Se o tio Renato lho emprestasse!
— Olha — disse ele para Dina. —Aqui, vês? Aposto que é no sítio em que eu esta tarde disse que era a passagem. Vês esta colina representada no mapa? A passagem das rochas é justamente do lado oposto.
Se alguma vez lá quisermos ir, o que ardentemente desejo, somente precisamos de localizar este monte, o mais alto da ilha, se bem me parece. Depois é procurar a entrada nos rochedos do lado oposto ao monte. Facílimo!
— Parece fácil aí no mapa, mas aposto que é muitíssimo mais difícil lá no mar — respondeu-lhe Dina. — Tu falas como uma pessoa que está na disposição de lá ir, mas, João, tu bem sabes da promessa que fizemos a Jaime Smugs. Não podemos quebrá-la!
— De mais sei eu, pateta — retorquiu João, que nunca na vida tinha faltado a uma promessa. — Os meus planos são outros. Dir-te-ei mais tarde.
Com grande desapontamento viram ambos que o tio Renato não conseguira encontrar o mapa da ilha, e este não o ia ele emprestar a João.
— Certamente que não — replicou ele, olhando-o com ar ofendido. — Essa é uma carta muito antiga... tem alguns séculos de existência. Nem por sombras eu lhes passaria isto para a mão. Vocês dariam cabo dela ou perdê-la-iam. Eu sei bem o que são os miúdos.
— Não sabe, não, tio — declarou Dina. — O tio nem faz ideia como nós somos. Raramente nos vê... Vá lá, empreste-nos o mapa...
Mas nada persuadiria o velho a separar-se do seu precioso mapa. Portanto, deitando um último olhar ao desenho da ilha circundada por aquele curioso anel de rochedos, com uma brecha no meio deles, João e Dina abandonaram o desarrumado escritório.
— Não se esqueça da ceia, tio — gritou Dina para dentro enquanto fechava a porta. O tio Renato emitiu um resmungo à guisa de resposta. Estava já embrenhado no seu trabalho outra vez. A bandeja da ceia ficou desprezada a seu lado.
— Aposto que se esquece dela — disse Dina. E tinha razão. Quando, no dia seguinte, a tia Lena foi ao escritório, para o arrumar como de costume, lá estava a bandeja da ceia sobre a mesa, com o prato da carne e a salada, a empada e o doce, tudo intacto.
— És pior do que uma criança — ralhou a tia Lena. — Sim, pior do que uma criança, Renato.
UM ESTRANHO ACONTECIMENTO E UM BELO PASSEIO.
Naquela noite João explicou aos companheiros o seu plano, de cujo resultado eles a princípio duvidaram, mas que acabou por emocioná-los.
— E encontraremos nós a passagem? — perguntou Maria da Luz.
— Com toda a facilidade — respondeu João, que uma vez decidido a fazer qualquer coisa não conhecia dificuldades. — Eu vi a passagem, esta tarde, tenho a certeza, e no mapa vi-a outra vez. E Dina também a viu.
«Dina também a viu, Dina também a viu», repetiu a Didi, mas ninguém lhe prestou atenção. Excitadíssimos, todos falavam ao mesmo tempo.
— Uma vez que eu me tenha treinado no barco de Jaime, nenhum medo tenho de pegar no de Jau — declarou João.
— Se ele chega a descobrir, deixa-te meio morto — interveio Filipe. — Como vais conseguir que ele não saiba?
— Escolherei um dia em que ele vá no calhembeque às compras — respondeu João prontamente. — Já pensei em tudo. Logo que ele saia no carro, ponho o barco na água e espero estar de volta antes de ele ter chegado. Se não o conseguir... bem, então, nada haverá a fazer. Vocês têm de entretê-lo de qualquer maneira... inclusivamente, fechando-o na cave.
Os outros fungaram de riso. Aquela ideia de fechar Jau à chave pareceu-lhes soberba.
— Mas espera — lembrou Filipe —, nós não vamos contigo também? Tu não podes ir só.
— As raparigas não vão — declarou João com firmeza. — Eu não me importo de me arriscar, mas não estou disposto a fazer correr o mais pequeno risco às raparigas. Tu, Filipe, claro, podes vir se quiseres.
— Eu cá também vou — disse prontamente Maria da Luz, que não estava disposta a deixar ir o irmão sem ela para uma aventura arriscada.
— As coisas são como são e tu não podes ir de maneira alguma — retorquiu João firmemente. — Não sejas tola, Maria da Luz. Tu só estragarias tudo se fosses. Teríamos de ser demasiado cautelosos se tu ou a Dina estivessem a bordo, não nos atrevendo a correr o mais leve risco.
— Mas eu não quero que te arrisques — choramingou Maria da Luz, com os olhos cheios de lágrimas.
— Não sejas tão piegas — retorquiu João. — Porque não te portas como a Dina e não deixas de me atrapalhar quando eu pretendo fazer qualquer coisa? Dina não se preocupa com os riscos que Filipe possa correr.
— Não — disse Dina, perfeitamente segura de que Filipe era muito capaz de se desenvencilhar sozinho. — Mas, apesar disso, quem me dera que nós pudéssemos ir também.
Maria da Luz reteve as lágrimas. Ela não queria ser desmancha-prazeres do irmão — mas era realmente terrível pensar que ele podia naufragar ou mesmo afogar-se. Ah! Como ela desejava que os corvos marinhos gigantes não tivessem alguma vez existido... Se eles nunca tivessem existido, não podiam ser agora uma espécie extinta e já ninguém tinha tanto empenho em encontrar qualquer exemplar.
Naquela noite João mal passou pelo sono.
Deitado na cama, pensava e tornava a pensar na ilha e nos seus pássaros e mal podia conter-se e esperar pela ocasião em que pudesse navegar até lá para ver se, de facto, era um corvo marinho gigante ou não o que ele tinha nessa tarde descoberto com o binóculo. Talvez conseguisse bastante dinheiro se fosse capaz de apanhar um daqueles corvos. Dado que eles não podem voar mas somente nadar, talvez fossem tão mansos que se deixassem apanhar facilmente.
Deviam existir ali uns três ou quatro corvos marinhos gigantes. Como seria maravilhoso fazer semelhante descoberta!
João levantou-se e foi à janela. Olhou na direcção do Poente, para o lado onde ficava situada a ilha. Não havia Lua naquela noite e a princípio nada conseguia distinguir, mas ao aplicar intensamente a vista para Oeste, com o pensamento fixo na ilha, ficou muito admirado ao ver algo de peculiar.
Cerrou os olhos e voltou a olhar. Parecia ver uma luz a brilhar, além, sobre o Poente, no sítio onde devia ser a ilha. Enquanto a observava apagou-se lentamente e depois voltou a aparecer. «Não pode ser uma luz real», disse para consigo João. «Ou, pelo menos, não pode vir da ilha. Deve ser proveniente de algum barco, fazendo sinais ao longe».
A luz vinda do Oeste tornou a desaparecer, desta vez para não voltar a brilhar. João dispunha-se a sair da janela e voltar para a cama, convencido de que se tratava de uma luz proveniente de algum barco, mas, antes de chegar à cama, o que quer que fosse chamou-lhe a atenção. A estreita janela fronteira à sua, que dava para o pico do rochedo, destacava-se no escuro fracamente iluminada por qualquer claridade vinda do exterior. João contemplou-a pasmado.
Correu à janela e olhou para fora. A luz vinha do alto do rochedo. Alguém tinha acendido uma fogueira lá em cima ou tinha uma potente lanterna. Quem seria? E com que fim acenderiam aquela luz no meio da noite? Seria algum sinal para um barco que errasse pelo mar?
O quarto de João era o mais alto da Casa do Penhasco e a torre na qual estava situado erguia-se acima do cume do rochedo. Mas por mais que ele se debruçasse e esticasse o pescoço, para ter maior campo de visão, não conseguia perceber que espécie de luz era a que vinha do cimo do rochedo, nem de que ponto exacto ela partia. Decidiu então ir investigar.
Sem acordar Filipe, enfiou uns calções, o casaco e os sapatos e correu sem ruído pelas escadas abaixo. Pouco depois já ele subia o caminho que levava ao cimo do rochedo, mas quando alcançou o topo não se via luz alguma nem tão-pouco vestígios de qualquer fogueira nem cheirava a fumo. Era, na verdade, desconcertante.
Foi andando pelos rochedos, tropeçando aqui e além e, de repente, teve um dos maiores sustos de toda a sua vida. Alguém, de repente, o agarrou, segurando-o com força.
— Que andar a fazer cá por cima? — perguntava Jau, sacudindo-o vigorosamente e deixando-o quase sem respiração. — Vá, diga, que andar aqui a fazer?
Demasiadamente assustado para conseguir fugir à verdade, João confessou. — Vi uma luz do quarto da torre e vim ver do que se tratava.
— Eu já ter dito que há «coisas» durante a noite nos rochedos, não ter? — rugiu Jau com voz assustadora. — Bem, as «coisas» são luz e gemem e gritam às vezes e só Deus sabe que mais serem elas capaz de fazer. Não dizer eu já para não andarem a vaguear de noite?
— E tu, que andas a fazer cá fora? — perguntou João, que começava a dominar o medo.
Jau deu-lhe nova sacudidela, sentindo grande contentamento por ter finalmente um dos pequenos à sua mercê.
— Também vim ver que luz ser esta — grunhiu ele. — Vê. Ora aí está o que estava a fazer cá fora. Mas são sempre as tais «coisas» que vêm atrapalhar tudo. Agora vai prometer-me nunca mais voltar a sair do seu quarto durante a noite, nunca mais.
— Eu não te prometo coisa alguma — retorquiu João, que tentava agora libertar-se. — Larga-me, grande bruto. Estás a magoar-me.
— Magoarei muito mais se não prometer não sair durante a noite — ameaçou o preto. — Tenho um pedaço de corda aqui, vê? Tenho-a guardada comigo à espera de si e de Filipe.
João estava assustado porque Jau era imensamente forte, vingativo e cruel. Voltou a tentar libertar-se, empregando a maior violência, ao sentir que Jau estava a desatar a corda que trazia à volta da cintura. Foi a Didi que salvou a situação. A catatua, dando por falta de João no quarto da torre, onde pacificamente
dormia no poleiro que o rapaz lhe tinha armado, vinha à procura do dono. Não conseguia estar separada dele por muito tempo.
Na altura em que João considerava a hipótese de pregar em Jau uma forte dentada, a Didi, irrompeu junto deles, soltando um grito de satisfação.
«Didi», gritou João. «Didi! Morde-lhe! Morde-lhe!»
O animal cravou com alegria o seu bico adunco na parte mais carnuda do braço do preto, que largou logo João, soltando um grito dilacerante.
Ainda tentou agredir a Didi, que nesse momento já se encontrava fora do seu alcance, espreitando a oportunidade para um novo ataque.
Desta vez arrancou um bocado de orelha a Jau, que gritou desesperado. — Chame esse pássaro ou torço-lhe o pescoço!
João desapareceu pelo atalho. Quando já se encontrava fora do alcance de Jau, chamou pela Didi. «Didi! És uma amiga às direitas».
Dando ainda uma última bicada na outra*orelha do preto, a Didi afastou-se, dando um guincho e foi pousar no ombro de João, emitindo ruídos suaves ao seu ouvido. O dono ia-lhe coçando a cabeça com ternura, enquanto se dirigia para casa, com o coração a bater-lhe apressadamente.
«Não ouses atravessar-te no caminho de Jau, Didi», disse-lhe ele. «Se agora te apanha a jeito torce-te, com certeza, o pescoço. Não sei bem o que lhe fizeste mas foi decerto muito doloroso».
João acordou Filipe e relatou-lhe os acontecimentos. — Suponho que a luz fosse de um navio que andava no mar — disse ele—, mas não faço ideia de que espécie de luz seria a outra. Jau disse que tinha ido lá acima para investigar, mas ele pensa que é proveniente das tais «coisas» de que está sempre a falar. Livra! Quase que fui esfolado por ele, Filipe. Se não fosse a Didi ainda me teria visto em maiores apuros.
«Valente Didi!», disse Filipe, e, encantada, a Didi repetiu as suas palavras.
«Valente Didi, valente Didi, valente...»
«Basta!», disse João, e a Didi calou-se.
João enfiou-se bem dentro da cama. — Estou exausto — disse ele. — Espero desta vez adormecer depressa. Há pouco não o consegui, a pensar e repensar na ilha das Trevas.
Mas desta vez não tardou a adormecer profundamente e sonhou com um grande mapa que representava a ilha. Depois era um barco a tentar alcançá-la e Jau agarrando-o e impedindo-o a ele e ao barco de lá chegar.
Na manhã seguinte as crianças estavam felizes com a ideia de irem dar um passeio sozinhos no barco de Jaime Smugs. Partiram cedo, depois de se terem despachado rapidamente das suas obrigações. Jau estava com uma terrível disposição naquela manhã. Andou a rondá-los, de cara franzida, e deitando olhares a João e à Didi, com o ar de quem estava impaciente por lhes deitar a mão.
Pela primeira vez há muito tempo não os perseguiu nem tentou descobrir-lhes a pista. É que a tia Lena estava decidida a obrigá-lo a trabalhar um bocado naquele dia e destinou-lhe uma série de tarefas das quais sabia que não lhe seria possível livrar-se facilmente sem ser descoberto.
— Hoje vou à cidade — disse-lhes Jaime quando chegaram perto da sua cabana em ruínas. — Preciso de comprar um martelo, pregos e algumas tábuas para remendar a minha casa. Caíram já mais alguns bocados da parede e a noite passada nada parou com o vendaval... pelo menos dentro desta barraca parecia um furacão, portanto tenho de fazer alguns consertos. Querem vir comigo fazer compras na cidade, como da outra vez?
— Não, obrigado — respondeu João, prontamente. — Preferimos sair no seu barco, Jaime. Está um dia bastante sereno e seremos cautelosos.
— Claro que vocês ainda se lembram da promessa que fizeram — objectou Smugs, olhando a direito para João. O rapaz acenou afirmativamente.
— Eu não me afastarei muito — disse ele, e os outros prometeram outro tanto.
Foram despedir-se de Jaime Smugs e esperaram até que ele desaparecesse, guiando com perícia, no caminho tortuoso que conduzia à cidade.
Então, dirigiram-se para o local onde se encontrava o barco. Jaime tinha-o deixado no ancoradouro habitual, a enseada rochosa e escondida. As crianças ainda não tinham percebido porque o guardava ali, mas julgavam que era por ter medo que lho roubassem enquanto estivesse ausente.
Tinham de ir a nado para o local onde se encontrava o barco e assim fizeram depois de terem metido a roupa seca dentro de um saco de oleado que Jaime Smugs lhes tinha emprestado para esse fim. Filipe transportou-o preso às costas.
Alcançaram as rochas e ultrapassaram-nas para alcançarem a plataforma lisa, fora do alcance das ondas, para onde o barco tinha sido arrastado. Desataram o saco de oleado e vestiram as roupas secas. Deitaram os fatos de banho para dentro do barco e arrastaram-no para a água.
Havia bastante água naquele sítio e o barco deslizou com facilidade, quase sem um salpico. As crianças lançaram-se à uma para dentro do barco e os rapazes empunharam os remos.
Com alguma dificuldade conseguiram afastar o barco de junto das rochas, remando para o mar largo. Tiveram então de proceder à tarefa de içar a vela, agora sem a ajuda de Jaime Smugs.
— Deve ser fácil para nós — disse João, confiante, puxando por vários cabos. — Ainda ontem fizemos isto sozinhos.
Mas ontem Jaime Smugs gritara-lhes várias ordens e agora ninguém havia que os ajudasse se se atrapalhassem. Apesar de tudo a vela lá subiu, depois de algum tempo. Dina quase que ia sendo lançada pela borda fora, mas conseguiu agarrar-se a tempo. Ficou, no entanto, muito zangada.
— Tu fizeste de propósito, Filipe — disse ela, voltando-se para o irmão, que estava a tentar desembaraçar diversos cabos. — Vamos, pede desculpa! O Jaime Smugs disse que a bordo não se fazem partidas nem brincadeiras parvas.
— Cala o bico! — ordenou Filipe, que ficara repentinamente preso numa corda que parecia querer esganá-lo. — João, dá aqui uma ajuda.
— Segura na cana do leme, Dina — ordenou João. — Eu vou ajudar o Trunfa. Dina! Não me ouves? Segura aqui para eu poder ajudar o Filipe.
Mas foi a própria Dina, percebendo subitamente que o irmão estava realmente em maus lençóis quem foi em seu auxílio e o desenvencilhou.
— Obrigado — agradeceu Filipe. — Diabos levem estes cabos! Parece-me que desatei cabos de mais. A vela está como deve ser?
Assim parecia. O vento enfunou-a e o barco começou a deslizar. Como era divertido! Sentiam-se todos muito importantes, assim de posse de um barco, entregues a si mesmos e executando todas as manobras por suas próprias mãos. Mas o barco era demasiadamente grande para ser tripulado por crianças. João olhou por sobre o mar na direcção onde se levantava a ilha das Trevas. Um dia viria em que lá havia de ir... em que ali desembarcaria, olharia à sua volta, e quem sabe o que poderia encontrar! A imagem dum corvo marinho gigante surgiu no seu espírito e, distraindo-se, fez mudar o rumo ao barco, o que fez com que a vela cambasse de repente tendo a retranca, no seu rápido trajecto, quase embatido na cabeça das crianças acocoradas.
— Idiota! — gritou Filipe, indignado. — Deixa-me mas é pegar na cana do leme. Estamos dentro de água não tarda nada se continuas a brincar assim.
— Desculpem — rogou João —, distraí-me a pensar numa coisa: como será quando formos no barco de Jau? Quando pensas que estaremos aptos, Filipe? Em dois ou três dias?
— Sim, parece-me que nessa altura já o poderemos fazer — respondeu Filipe. — Isto é fácil para quem é rápido e lhe apanha o jeito. Eu começo a conhecer a direcção do vento e a sua força e a sentir-me mais à vontade a bordo. Aquilo de que a pobre Maria da Luz nunca será capaz. Olha como ela está a ficar amarela. — Eu sinto-me bem — disse Maria da Luz corajosamente. O barco acabara de entrar numa zona de mar agitado e o estômago da pobre Luzinha não se conformava com isso. Mas nada poderia persuadi-la a deixar que os outros partissem sem ela, mesmo que soubesse de antemão que iria estar enjoada todo o tempo. Maria da Luz era muito valente.
Passado algum tempo, os pequenos enrolaram a vela e pegaram nos remos. Tiveram o cuidado de se lembrar da promessa feita e não se afastaram demais, pensando que também lhes faria bem praticarem um pouco de remo.
Foram-se revezando, um após outro, e depressa se habituaram a manobrar o barco para onde queriam, mesmo sem o auxílio do leme.
Depois voltaram a içar a vela e navegaram na direcção da praia, sentindo-se orgulhosos e contentes consigo. Quando se aproximaram mais da costa viram Jaime Smugs, já de volta, a acenar-lhes com a mão.
Foram até à praia e, uma vez aí chegados, puxaram o barco. — Bravo! — esclamou Jaime. — Estive a observá-los no mar. Saíram-se muito bem. Podem dar outro passeio amanhã.
— Muito obrigado — disse João. — E esta tarde não poderíamos sair outra vez? A Dina e a Maria da Luz não poderão vir porque a tia Lena precisa delas, mas eu e Filipe podemos.
As raparigas sabiam que João queria ver se ele e Filipe seriam capazes de manejar o barco sem mais ajuda, em treino para a viagem que planeavam fazer no barco de Jau. Ficaram, pois, caladas, por muita vontade que tivessem de acompanhá-los. Jaime Smugs consentiu que os dois saíssem sozinhos, nessa tarde, se assim lhes aprouvesse.
— Eu não vou — disse ele. — Tenho de dar uma volta ao meu aparelho de rádio, que tem um desarranjo qualquer.
Jaime Smugs tinha um aparelho de rádio maravilhoso, o melhor que os rapazes até então tinham visto. Estava colocado no fundo da cabana e não havia estação que Jaime não conseguisse apanhar. Mas só ele lhe mexia.
— Bom, nós cá estaremos então esta tarde — disse João, todo contente. — É muita amabilidade da sua parte emprestar-nos assim o seu barco.
— Tenho muito prazer nisso — disse Jaime Smugs com um sorriso. A Didi logo o imitou.
«Tenho muito prazer nisso, tenho muito prazer nisso, pobre Didi, limpa os pés, deixa lá, muito prazer, muito prazer...»
— Ah!... isto faz-me lembrar — contou João, recordando a aventura da noite anterior. — Jaime, ouça lá esta. — E embrenhou-se numa pormenorizada descrição da sua aventura no rochedo com Jau, a qual Smugs escutou com a maior atenção.
— Viste então umas luzes? — perguntou ele. — Ao longe, no mar, e sobre os rochedos? É boa. Não me admira que tenhas querido investigar o que se tratava. Segundo as aparências, também Jau teve a mesma curiosidade de descobrir a origem das luzes. Mas se me permites que te dê um conselho, sempre te digo que não entres em guerra aberta com Jau senão até onde a prudência o permitir. Ele não tem boa pinta e dá-me a impressão de ser um antagonista perigoso.
— Não, é só um tanto maluco e detesta crianças, mas aquilo no fundo é só estupidez e não creio que se atreva a fazer-nos grande mal — retorquiu Filipe. — Ele está há anos em nossa casa.
— Ah, sim?—perguntou Jaime, interessado. — Bom naturalmente em tua casa teriam grande dificuldade em arranjar quem o substituísse se o despedissem. Em todo o caso... tenham cuidado com ele.
Os rapazes foram-se embora acompanhados pelas raparigas. Filipe estava disposto a levar a rir a advertência de Jaime, mas João tomou-a mais a sério. Ainda não se tinha esquecido do susto que apanhara na véspera, quando se sentira agarrado pelo preto.
«Parece-me que o Jaime Smugs tem uma certa razão», pensou João, sentindo um leve arrepio. «Jau pode tornar-se um adversário deveras perigoso».
ESTRANHAS DESCOBERTAS
Nos três dias que se seguiram as crianças treinaram-se no remo e na vela até que o barco de Jaime deixou de ter segredos para eles; já o manejavam quase tão bem como o próprio dono, que se mostrava muito contente com eles.
— Eu gosto de ver as crianças dedicarem-se às coisas com afinco, ainda que isso represente um trabalho penoso — disse ele. — Até a boa da Didi se apegou a isto, pousada na vela, perdendo o equilíbrio a cada balanço, mas nem por sonhos pensando abandonar-vos. E com respeito à Luzinha, sempre direi que é a melhor de vocês todos, porque teve de lutar contra o enjoo a maior parte do tempo.
Naquela tarde, depois de terem ido primeiro certificar-se de que Jau estava no pátio das traseiras a tirar água do poço, as crianças foram examinar cuidadosamente o barco dele, para ver se o podiam tripular sozinhos.
Detiveram-se a olhá-lo a balouçar na água. Era maior do que o do Jaime, mas não muito, e tiveram a nítida impressão de que se sentiriam nele à vontade.
— Que pena a Didi não poder remar — lamentou João. — Pegaria no terceiro par de remos e faríamos uma turma de truz.
«De truz», gritou a Didi. «De truz. Viva o rei».
«Pateta», disse Filipe afectuosamente. Ele gostava já tanto da Didi como João ou Maria da Luz e a catatua afeiçoara-se-lhe depressa. — Ouve, Pintinhas, gostava de saber quando é que Jau vai outra vez à cidade. Estou ansioso por experimentar o barco. E tu?
— Eu também — respondeu João. — Não posso deixar de pensar naquele corvo marinho gigante que vi. Só serei feliz no dia em que conseguir vê-lo de mais perto.
— Não conseguirás descobri-lo, aposto — disse Filipe. — Mas que divertido seria se chegasses um dia a casa com um ao colo! A Didi é que iria ficar cheia de ciúmes...
Os pequenos ficaram radiantes quando a tia Lena anunciou que Jau iria às compras no dia seguinte. — Por isso, se quiserem alguma coisa têm de lhe dizer — disse ela. — Ele já tem uma grande lista de coisas para nos trazer e vocês podem-na aumentar com o que quiserem, mas dêem-lhe o dinheiro.
Acrescentaram à lista das compras uma pilha para a lanterna. Dina tinha-se esquecido uma noite de apagar a lanterna e a pilha gastara-se, razão por que era necessário arranjar outra. João juntou também outro rolo para a máquina. Tirara inúmeras fotografias a todas as aves aquáticas visíveis da Casa do Penhasco e agora queria um rolo para levar consigo à ilha das Trevas.
No dia imediato aguardaram impacientes a partida de Jau. Este parecia agir com irritante lentidão. Finalmente, lá pôs o carro em andamento e tirou-o do barracão arruinado em que ficava guardado, saindo em marcha atrás.
— E agora, meninos, vejam lá se não fazem maldades enquanto cá não estou — recomendou ele, voltando para eles a sua cara negra, de olhos desconfiados, como que pressentindo que o queriam ver longe por qualquer razão especial.
— Bem sabes que nunca fazemos maldades — redarguiu Filipe. — Diverte-te... e não te apresses a voltar. Vamos enfim respirar um pouco sem a tua enfadonha presença.
Jau franziu o sobrolho e, carregando no acelerador, partiu como um raio na direcção da cidade.
— Não sei como esta carripana tão velha aguenta tais tratos de polé — comentou Filipe, seguindo com a vista o carro, que torneava o rochedo, para depois desaparecer numa curva da estrada do outro lado. — Bom, já se foi. E agora não percamos tempo. A esperada oportunidade chegou.
Muito excitadas, as crianças correram para a praia e dirigiram-se para a grande embarcação. Os rapazes meteram-se lá dentro e Dina soltou a amarra e deu-lhe um forte empurrão.
— Sejam prudentes — exclamou Maria da Luz com ansiedade, cheia de pena por não poder saltar também como eles para dentro do barco. — Peço-lhes por tudo que sejam prudentes.
— Fica descansada — gritou-lhe João, e a Didi repetiu como um eco: «Fica descansada, fica descansada, fecha a porta e limpa os pés!»
As rapariguinhas ficaram na praia a vê-los remar e, mais tarde, quando já se encontravam ao largo, viram-nos içar a vela. O vento era favorável e iam-se afastando com velocidade considerável.
— Aí vão eles a caminho da ilha das Trevas — comentou Maria da Luz. — Vamos a ver se João traz o corvo marinho gigante.
— Eu aposto que não traz — observou Dina que, muito sensatamente, achava que só por milagre isso seria possível.
— O que admito é que encontrem a entrada dos recifes sem dificuldade. Parece que se vão saindo menos mal, não achas?
— Acho que sim — concordou Maria da Luz, semicerrando os olhos para seguir o barco, que começava a ser difícil de distinguir em virtude da neblina que pairava sobre as águas. Da ilha das Trevas nem o mais pequeno vislumbre. — Oxalá que tudo lhes corra bem.
Os rapazes seguiam lindamente. Chegaram à conclusão de que, embora o barco de Jau fosse mais pesado e mais complicado de manejar do que o de Jaime, não era contudo muito difícil de manobrar. O vento era mais do que suficiente e deslizavam vertiginosamente sobre a água. Era engraçado sentir o balouçar cadenciado, o ímpeto do vento contra a vela retesada e o galgar das ondas à sua volta.
— Não há nada como um barco — comentou João, contente.
— Hei-de ter um, só meu, um dia.
— Custam imenso dinheiro — disse Filipe.
— Bom, nesse caso terei de ganhar imenso dinheiro — retorquiu João — e comprarei um barco estupendo para ir até ilhas longínquas, desabitadas e onde haja pássaros. Não achas que vai ser maravilhoso?
— Quem me dera poder ver a ilha — volveu Filipe. — Esta neblina é uma maçada. Calculo que vamos na boa direcção.
Antes de verem a ilha chegou-lhe aos ouvidos o fragor das ondas, arremessando-se de encontro aos recifes que a rodeavam, e, de repente, depois do que lhes havia parecido uma longa distância percorrida, a ilha surgiu e os rapazes sentiram a cara fustigada pela água salgada que as ondas, ao quebrarem-se nos rochedos, espalhavam à volta.
— Cuidado! Vamos direitinhos aos recifes — gritou Filipe, alarmado. — Arreia o pano, que temos de remar. Não podemos aguentar o barco com este vento, que está a tornar-se muito forte e nos arrasta com velocidade demasiada.
Arrearam pois a vela, pegaram nos remos e começaram a remar. João tentou localizar a colina mais alta, mas era bastante mais difícil dar com ela na realidade do que apontá-la no mapa. As elevações pareciam todas mais ou menos das mesmas dimensões. Os rapazes continuaram a remar, circundando a cadeia dos recifes e evitando a corrente que corria para a ilha.
— Há uma colina mais alta para a esquerda, vês? — apontou João subitamente. — Puxa nessa direcção, Trunfa. Isso mesmo, parece-me que é aquela a colina que procuro.
Fizeram força nos remos com energia, sentindo o peito a arfar e as camisolas húmidas de suor. Então, logo que a colina apareceu claramente, os rapazes viram com grande contentamento uma interrupção no círculo dos rochedos, uma fenda estreita, é certo, mas indubitavelmente uma abertura através da qual um barco podia passar.
— Agora... cautela — preveniu Filipe. — Este bocadinho é traiçoeiro. — Atenção. Podemos ser desviados do nosso rumo e arremessados contra os recifes. Apesar de nenhum estar à vista nesta passagem, podem existir por baixo da água, e então o fundo do barco ficaria em pedaços. — Cautela, Pintinhas, cautela!
João usava de toda a prudência. Tudo dependia de conseguirem ou não franquear a passagem. Ambos, com uma expressão ansiosa e tensa nos rostos, remavam cuidadosamente. A Didi não articulava palavra; percebera que os pequenos estavam aflitos.
A passagem era estreita e comprida e representava tarefa exaustiva conduzir o barco a bom termo através dela. Numerosas correntes pareciam à compita arrastá-lo para um lado e para o outro. Em determinada altura sentiram que o fundo do barco fora arranhado por alguma rocha não muito profunda.
— Mas que grande tangente — comentou Filipe com a voz velada. — Sentiste aquele tremendo raspão?
— Se senti! — ripostou João. — Livra! Mas parece que sempre escapámos desta. Olha, Trunfa, isto é formidável. Atravessamos agora um canal de águas absolutamente tranquilas!
Para além da cadeia de recifes havia um canal de águas calmas, azuis, transparentes, brilhando à luz do Sol. Era um tanto estranho contemplá-las depois daquelas ondas revoltas que galgavam os rochedos e cujo rugido se ouvia ainda.
— Estamos agora a dois passos da ilha — observou Filipe, radiante. — Vamos... estou terrivelmente cansado, isto é, os meus braços. Mas temos de desembarcar, estou morto por explorar a ilha.
Procuraram à sua volta um sítio bom para atracarem. A ilha era na realidade essencialmente rochosa, mas existia, a certa altura, uma reentrância onde a areia alvejava. Os rapazes resolveram atracar ali.
Foi fácil atracar e puxar o barco para cima, para a praia, se bem que essa operação tirasse aos rapazes toda a energia que lhes restava, mas Jaime Smugs havia-lhes ensinado o truque para rebocar o barco e em breve estavam prontos a encetar a exploração da ilha das Trevas.
Treparam à falésia que ficava por trás da reentrância e relancearam um olhar perscrutador sobre aquele lado da ilha.
Foi a enorme profusão de aves o que primeiro lhes chamou a atenção. Milhares e milhares de todas as espécies, forma e tamanhos, que faziam uma grazinada ensurdecedora. Quase não deram pela presença dos rapazes, que as contemplavam maravilhados.
Mas não eram tão mansas como supunham. As que estavam pousadas fugiram voando à sua passagem. João ficou desapontado.
— É estranho — disse ele. — Sempre imaginei que as aves, numa ilha deserta onde o homem não tivesse chegado, seriam absolutamente mansas. É o que, aliás, dizem todos os livros que tenho lido. Mas estas são completamente bravias, nem sequer nos deixam chegar-lhes ao pé.
Havia algumas árvores escassas, que tinham crescido em lugares abrigados, mas dobradas para os lados pela força do vento que assolava a ilha. Nalguns pontos do solo destacavam-se tufos de relva hirta em manchas isoladas. Mas a rocha nua era o que predominava na maior parte dos sítios.
Os rapazes, deixando atrás de si a falésia, caminharam para o interior, com o piar de milhares de pássaros soando-lhes aos ouvidos, e dirigiram-se para a colina que se erguia no centro da ilha.
— Quero ver que espécie de construções são aquelas que vi através do binóculo — disse João, relembrando-se. — E, por Deus, é preciso que eu descubra um corvo marinho gigante. Ainda nem vestígios vi da existência deles, mas continuarei sempre à procura.
Pobre João, esperando encontrar um corvo marinho gigante a todo o momento e só vendo em lugar dele todos os pássaros já seus conhecidos da Casa do Penhasco! Era de desanimar. Não que ele esperasse encontrar um bando de corvos marinhos gigantes, mas seria maravilhoso dar com um, um só, ao menos.
Viram uma enorme quantidade de pinguins, com os seus bicos de forma curiosa, águias, gaivotas, corvos marinhos e outros pássaros. Era um verdadeiro paraíso de aves e João ficou estático, perdido na contemplação de tal imensidade. Como gostaria de passar uns dias naquela ilha e tirar dezenas de fotografias!
Quando chegaram às colinas, descobriram uma garganta que serpenteava através delas. A relva era aqui mais abundante e viam-se algumas florinhas silvestres e ervas marinhas. Poucos vidoeiros enfezados cresciam sobre as vertentes.
Entre os montes havia um pequeno vale, atravessado por um riacho que ia desaguar no mar, do outro lado da ilha. Os rapazes foram examiná-lo de perto, porque as suas águas lhes pareceram de uma curiosa tonalidade.
Tinham de facto um tom estranho. — É uma espécie de vermelho acobreado — lembrou João, intrigado. — Qual será a causa? Olha, lá estão as tais estranhas construções naquela colina ali em cima. E repara, Trunfa, as rochas têm aqui outra cor. Agora são encarniçadas, em vez de pretas, e muitas delas parecem de granito. É singular, não achas?
— Parece-me bem que não estou a gostar desta ilha — disse Filipe, com um arrepio. — É solitária e... pressente-se aqui qualquer coisa de ruim.
— Isso é influência das histórias de Jau — comentou João a rir, se bem que ele próprio não estivesse também muito bem impressionado com o aspecto da ilha. Era desolador e triste e nenhum outro som se ouvia além do piar incessante das aves marinhas, volteando no ar.
Treparam até ao meio da encosta para examinarem as «construções». Era difícil determinar o que eram, tão velhas e arruinadas estavam, reduzidas a pouco mais do que montes de escombros e pedras. Não parecia terem servido, alguma vez, como casas de habitação.
Foi nesse momento que Filipe descobriu, junto de uma das tais «construções», algo de muito extraordinário. Excitadíssimo, chamou logo João.
— Anda cá, João! Vem aqui ver isto! Um enorme buraco pela terra dentro... assustadoramente profundo!
João correu até à abertura e espreitou lá para dentro. Era um buraco grande, com cerca de seis pés de diâmetro, que entrava tão profundamente pela terra abaixo que era impossível ver o fundo.
— Para que será?
Deitaram uma pedra por ele abaixo, na intenção de a ouvirem cair na água. Mas nada. Ou não era realmente um poço ou era tão fundo que o som da pedra ao cair na água se perdia a distância.
— Não me apetecia nada cair lá dentro — observou Filipe. — Espera! Há uma escada lá em baixo... A cair de velha é certo, mas não deixa de ser uma escada.
— Isto é misterioso — concluiu João, desorientado. — Vamos dar uma volta; talvez descubramos qualquer coisa que nos ajude a esclarecer tão intrincado problema. Um buraco até às profundidades da terra numa ilha deserta! Para que diabo poderá servir?
JAU ZANGADO.
Com grande surpreza dos rapazes, mais buracos estreitos e profundos iam aparecendo, todos eles nas imediações das curiosas e velhas «construções».
— Isto não podem ser poços — afirmou João. — É impossível. Nunca se viu alguém ter necessidade de tantos. Devem ser perfurações, cavadas bem fundo pela terra dentro, por qualquer razão especial.
— Teriam existido minas por aqui? — perguntou Filipe, lembrando-se de que as minas de carvão têm sempre uns poços, abertos até grandes profundidades, para os mineiros poderem penetrar e extrair o carvão.—Achas que serão minas antigas? Minas de carvão, por exemplo?
— Não, de carvão não — respondeu João. — Não sei dizer-te de quê, por enquanto, mas descansa que havemos de descobrir. O teu tio sabe com certeza. Seria formidável se fossem minas de ouro! Nunca se sabe.
— Bem, elas devem ter sido exploradas há centenas de anos — disse Filipe. — Não deve já restar aqui ouro nenhum, ou estariam ainda hoje em exploração. Ouve, e se fôssemos lá abaixo?
— Não sei — disse João, receoso. — Os velhos degraus não devem estar em muito bom estado, ou estarão? E uma queda de dezenas de metros seria o nosso fim.
«Que pena, que pena!», rematou a Didi.
— Sem a menor dúvida seria uma pena — concordou Filipe, fazendo uma careta. — Bom, então talvez seja melhor não descermos. Ena! Aqui está outro poço, João. E este é bem maior.
Os rapazes espreitaram lá para dentro e repararam que a escada estava em muito melhores condições do que as outras.
Ainda se aventuraram a descer alguns degraus mas depressa voltaram para cima porque se sentiam oprimidos pela escuridão e pela falta de ar e de espaço.
Foi então que fizeram uma descoberta que os surpreendeu ainda mais do que a dos poços. Não muito longe dali, amontoadas sob uma saliência da rocha, estavam algumas latas de conserva de carne e de frutos.
Esta descoberta era tão extraordinária que os dois rapazes mal podiam crer no que se lhes deparava. Ficaram-se parados, a olhar para as latas, enquanto a Didi, esvoaçando, as inspeccionava de perto para ver se conteriam alguns restos aproveitáveis para petiscar.
— De onde supões que isto provenha? — perguntou João por fim. — Que coisa fantástica! Algumas estão bastante ferrugentas, mas outras parecem absolutamente novas. Quem poderia ter vindo para esta ilha? Mas para quê? E onde viverão?
— Isto é mistério — respondeu Filipe. — Vamos dar uma volta por aí, enquanto aqui estamos, e talvez encontremos alguém. O melhor será irmos com cautela porque, é claro como água, quem quer que viva aqui não tem interesse em que se saiba.
Apesar de terem feito um reconhecimento cuidadoso da ilha, os rapazes nada viram nem ninguém que pudesse justificar o mistério do monte das latas. Admiraram a cor avermelhada das rochas do lado da ilha fronteiro ao oceano, assim como o tom avermelhado das águas do riacho que para ali corria a precipitar-se no mar. Também para aquelas bandas os pássaros eram em maior número e João lançava olhares perscrutadores na ânsia de ver algum corvo marinho gigante. Mas nenhum conseguiu enxergar, o que bastante o desapontou.
— Então não tiras fotografias? — perguntou Filipe. — Tinhas dito que tiravas. Vá, despacha-te, porque não poderemos demorar-nos muito mais.
— Dizes bem, vou tirar agora algumas — respondeu João. Foi esconder-se atrás de uma rocha, sítio favorável para focar as avezinhas nos ninhos. Quando só já lhe restava uma película, um pensamento atravessou-lhe o espírito.
— Vou tirar um instantâneo do monte das latas — anunciou ele. — As raparigas podem duvidar quando lhes contarmos uma história tão incrível, mas ficarão convencidas se lhes mostrarmos a fotografia.
Fotografou, portanto, a pilha de latas depois do que, com um último olhar ao enorme e silencioso poço da mina, os rapazes regressaram para junto do barco. Ele lá estava, no mesmo sítio, fora do alcance das águas.
— Bem, esperemos agora que a nossa viagem de regresso seja tão boa como a da vinda — disse João. — Tenho estado a pensar se Jau já terá voltado. Desejo ardentemente que as raparigas tenham dado conta do recado e se tenham encarregado dele de qualquer maneira.
Puseram o barco a flutuar e saltaram lá para dentro. Remaram pelo manso canal na direcção da passagem entre os recifes, onde a espuma era arremessada bem alta pela rebentação das ondas que de ambos os lados ali embatiam. Desta vez conseguiram evitar a rocha na qual anteriormente haviam raspado o fundo do barco, e remaram com bastante facilidade através da passagem.
Tiveram apenas algumas dificuldades mesmo à saída porque o mar estava picado a valer. O vento tinha mudado e o mar estava mais áspero. Subiram o pano e tomaram o rumo da costa, em grande estilo, exultantes, com o vento a fustigar-lhes a cara, atirando-lhes para cima, de vez em quando, fortes borrifos de água.
Ao aproximarem-se mais da costa, após aquela longa corrida, lobrigaram as duas raparigas que os esperavam e acenaram-lhes. Dina e Maria da Luz responderam, acenando também. Depressa o barco se encontrava deslizando para o ancoradouro e os rapazes saltavam para fora, prendendo-o em seguida à amarra.
— Então sempre encontraste o corvo marinho gigante? — gritou Maria da Luz.
— Jau já voltou? — perguntou Filipe.
— Vocês nunca mais chegavam — comentou Dina, impaciente por ouvir contar tudo.
— Foi uma aventura magnífica — concluiu Filipe. — E Jau, já voltou?
Todas estas perguntas foram feitas ao mesmo tempo. A mais importante de todas era: — Havia Jau voltado ou não?
— Sim — informou Dina, abafando o riso. — Chegou há perto de uma hora. Nós estávamos à espreita, e por sorte ele foi direito às caves, com umas caixas que trouxe no carro. Nós seguimo-lo, e ele, depois de abrir a porta interior, entrou na cave com as caixas — na cave que tem o alçapão — e então nós, que sabíamos onde vocês tinham posto a chave, fomos por ela e zás, fechámo-lo lá dentro. Está para lá há imenso tempo, aos murros à porta, berrando como um possesso.
— Bom trabalho! — disseram ambos satisfeitos. — Assim nunca saberá que saímos no barco dele. Mas como demónio vamos pô-lo cá fora sem que ele saiba que fomos nós quem o fechou lá dentro?
— Temos de pensar nalgum estratagema — disse Dina, e os rapazes encaminharam-se para casa, dando tratos à imaginação.
— O melhor será eu deslizar até lá sem barulho dando simplesmente volta à chave quando ele estiver a descansar — propôs Filipe. — Ele não pode permanecer eternamente a dar murros na porta. Assim que parar um segundo, a retomar fôlego, eu introduzo a chave na fechadura, dou volta à lingueta e esgueiro-me a seguir pelas escadas acima. Quando Jau experimentar novamente o puxador, este cede sem que ele saiba porquê.
— Esplêndido — concordaram os pequenos, entusiasmados. Parecia-lhes que aquele era um meio extremamente simples de soltar o preto sem que ele suspeitasse da sua interferência no caso.
Filipe, empunhando a chave, desceu à cave o mais silenciosamente que pôde. Uma vez lá em baixo, ouviu Jau martelando na porta. O pequeno esperou até que ele parasse para respirar e introduziu então a enorme chave na fechadura. Depois, ouvindo o preto tossir, nesse momento preciso deu volta à chave e retirou-a da fechadura. A porta estava agora só no trinco e Jau estaria liberto quando lhe aprouvesse. Filipe disparou em corrida na direcção das escadas, atravessando a cave, galgou os degraus e irrompeu pela cozinha, onde era aguardado pelos outros.
— Estará cá fora dum momento para o outro — disse ofegante. — Safemo-nos lá para fora e assim que o virmos caminharemos calmamente para casa como se tivéssemos acabado de regressar dum passeio. Vai ficar desnorteado de todo.
Correram todos para as rochas e, do alto do rochedo, espreitavam de quando em quando cá para baixo, para ver quando Jau aparecia. Em voz baixa os rapazes contaram o que haviam descoberto na ilha das Trevas.
Elas ouviam-nos boquiabertas. Buracos fundos como poços pela terra dentro; um regato cujas águas eram vermelhas; um monte de latas de conserva vazias; como era singular e inesperado! Sobretudo para quem tinha ido em busca de pássaros!
— É absolutamente necessário que lá voltemos para descobrir onde vão dar aqueles buracos — disse João. — Temos também de descobrir se outrora existiram naquela ilha minas de qualquer espécie. O teu tio Renato é que deve saber, com certeza.
— Pois deve — concordou Dina. — Quem me dera poder deitar a mão àquele mapa antigo da ilha de que nos falou... aquele que ele não conseguiu encontrar. Deve conter dezenas de indicações interessantes, não lhes parece?
A Didi emitiu um dos seus guinchos, à laia de apito de locomotiva, o que significava que tinha avistado o seu fidagal inimigo Jau. Os pequenos viram-no então cá em baixo, olhando para todos os lados, evidentemente à procura deles. Imediatamente, pondo-se de pé dum salto, tomaram pelo atalho e caminharam despreocupadamente para casa.
Jau viu-os e veio ao seu encontro com a raiva estampada na cara negra. — Fecharam-me lá dentro — gritou ele. — Vou fazer queixa à Sr.a Dona Maria Helena. Devia bater-lhes!
— Fechámos-te lá dentro? — admirou-se Filipe, fazendo um ar completo de espanto. — E onde? No teu quarto?
— Lá em baixo, na cave — disse Jau, com voz furiosa.
— Cá está a Sr.a Dona Maria Helena. Eu lhe direi o que me fizeram. Sr.a Dona Maria Helena, os meninos fecharam-me, dentro da cave, à chave.
— Não digas disparates — respondeu a tia Lena. — Tu bem sabes que a porta da cave não tem fechadura e os meninos foram a um passeio. Não vês que acabam de chegar a casa... como queres que te tenham fechado na cave? Estás maluco decerto.
— Fecharam-me lá dentro — repetiu Jau, obstinadamente, lembrando-se de repente que a existência da cave interior era um segredo só dele conhecido e que, portanto, seria melhor não entrar em pormenores ou a tia Lena iria ela própria certificar-se à cave e descobriria a porta que ele tanto se empenhava em dissimular.
— Eu não o fechei à chave — disse Filipe, honestamente.
— Estive bem longe toda a manhã.
— E eu também — disse João, dizendo a verdade. A tia Lena acreditou nas afirmações dos rapazes e como sabia que as crianças andavam sempre juntas, calculou que as raparigas tinham estado com eles. Então como poderia qualquer deles ter feito uma travessura a Jau? E, de qualquer maneira, pensava a tia Lena, a porta da cave não tinha fechadura; mas o que quereria Jau dizer na sua? Não devia estar bom da cabeça.
— Anda, vai tratar das tuas obrigações — disse secamente. — Estás sempre com uma espada desembainhada contra estes pequenos, a acusá-los disto e daquilo. Deixa-os em paz que eles são bons e ajuizados.
A opinião de Jau era diferente. Com um dos seus arremessos característicos, articulou, em surdina, qualquer imprecação e voltou para a cozinha.
Os pequenos, ao entrarem em casa, piscaram os olhos uns para os outros. Ainda bem que a tia Lena estava do lado deles. Mesmo assim, Jau ia acumulando vinganças e tinham de estar alerta.
«É estranho», pensou João. «A tia Lena diz que ele é inofensivo e Jaime Smugs diz que ele é perigoso. Há forçosamente um que não tem razão».
RUMO À ILHA NOVAMENTE
E agora, que haviam de fazer? Deveriam contar a Jaime Smugs a sua aventura? Ficaria ele zangado porque eles, fugindo à promessa, sem no entanto a terem praticamente quebrado, tinham ido à ilha num outro barco? As crianças decidiram que ele, com certeza, iria ficar deveras zangado, porque tinha ideias bem assentes acerca de compromissos de honra e do valor da palavra de uma pessoa.
— Bom, nós também temos — observou João. — Eu nunca faltaria à minha promessa e não faltei. Apenas achei maneira de rodear a questão.
— Sim, mas vocês bem sabem o que é gente crescida — lembrou Dina. — Eles não encaram as coisas como nós. Naturalmente, quando formos crescidos, também seremos assim, mas esperemos lembrar-nos nessa altura como era a nossa maneira de pensar enquanto fomos crianças e compreendamos os rapazes e raparigas desse tempo.
— Mas tu já estás a falar como as pessoas crescidas — cortou Filipe, com tristeza. — Pára lá com isso.
— Não me fales assim — respondeu Dina, encolerizada. — Lá porque eu estava a dizer verdades...
— Cala o bico — replicou Filipe, o que lhe valeu logo um murro que o atingiu numa orelha. Ele respondeu-lhe imediatamente com uma bofetada que ressoou como um tiro de pistola.
— Grande bruto! — gritou ela. — Sabes muito bem que os rapazes nunca devem bater nas raparigas.
— Eu não bateria em raparigas medianamente tratáveis, como a Maria da Luz, por exemplo — ripostou Filipe —, mas tu não vais com palavras. E fica sabendo desde já que se me tornas a socar, respondo-te com o que se chama uma bofetada em cheio!
— Oh, João, chama-lhe bruto — tornou Dina; mas João, se bem que nunca tivesse batido em qualquer rapariga, não podia deixar de concordar que, a maior parte das vezes, Dina tinha o que merecia.
— Tu não devias usar tanto as tuas mãos — respondeu-lhe ele. — Tens a mão leve e muito pronta a distribuir murros e já sabes de há muito que Filipe, muito naturalmente, não está pelos ajustes.
— Sai da minha vista e domina o teu mau génio — disse-lhe Filipe, sentindo a orelha a arder-lhe. Maria da Luz começara a dar mostras de estar aflita. Detestava extraordinariamente estas zaragatas entre irmão e irmã.
— Vá, põe-te ao fresco — insistiu Filipe. Dizendo isto levou a mão ao bolso e sacou de uma caixa onde guardava havia dias um escaravelho admiravelmente domesticado. Dina sabia que a intensão dele era atirar-lhe com o bicho para cima. Deu um grito e desapareceu do quarto.
Filipe tornou a colocar a caixa na algibeira, depois de ter deixado o enorme escaravelho dar uma volta sobre a mesa. Sempre que ele levantava o dedo o insecto corria apressadamente para ele. Era realmente extraordinário o amor que todos os animais tinham por Filipe.
— Não o devias ter encerrado numa caixa — observou Maria da Luz. — Tenho a certeza de que ele detesta isso.
— Ah, sim? Então repara bem. — Dizendo isto, Filipe voltou a exibir a caixa, abriu-a, tirou de lá o escaravelho e colocou-o na cabeceira da mesa.
Pegando na caixa, apenas entreaberta, foi pô-la um pouco afastada, ao centro.
O bichinho, depois de ter feito uma exploração conscienciosa do local, dirigiu-se para a caixa, examinou-a, saltou-lhe para dentro e instalou-se pacificamente.
— Ora aí tens! — demonstrou Filipe, fechando a caixa e guardando-a na algibeira. — Ele não teria entrado voluntariamente para a caixa se detestasse lá estar, pois não?
— Bom... naturalmente gosta mas é de andar contigo — respondeu Maria da Luz. — A maior parte dos escaravelhos devem detestar viver em caixas.
— Filipe faz dos bichos o que quer — observou João, com um sorriso. — Tenho a certeza de que ele era capaz de treinar pulgas e exibi-las num circo.
— Que triste ideia — disse Maria da Luz, com ar desgostoso. — Mas para onde terá ido Dina? Como eu gostava que vocês não zaragateassem tanto. Estávamos tão bem a combinar o que havíamos de fazer a seguir.
Dina, que tinha saído do quarto, furiosa e com a cara a arder da bofetada que Filipe lhe dera, vagueava pelo corredor que ia dar ao quarto do tio, maquinando uma maneira de se vingar do irmão. De repente, a porta do escritório abriu-se e o tio espreitou para fora.
— Ah, és tu, Dina? Tenho o meu tinteiro vazio — disse ele, com voz lamurienta. — Porque será que ninguém o enche?
— Eu vou buscar-lhe o frasco da tinta — respondeu Dina, e dirigiu-se ao armazém onde a tia o guardava. Trouxe-o até ao escritório do tio e encheu-lhe o tinteiro e, quando se voltava para sair, reparou que numa cadeira próxima estava um mapa. Era exactamente aquele que o tio tinha andado a procurar em vão, aquele maior onde estava representada a ilha das Trevas. A rapariguinha deteve-se a observar o mapa, cheia de interesse.
— Oh, tio, afinal está aqui o mapa de que nos tinha falado. — É verdade que dantes havia minas na ilha?
— Olha lá, onde ouviste tu isso? — perguntou o tio, espantado. — Isso é história antiga. Sim, havia lá minas, há centenas de anos, minas de cobre, e ricas minas elas eram. Mas esgotaram-se há séculos. Agora já lá não existe cobre.
Dina curvou-se sobre o mapa. Descobriu com alegria que lá estavam marcadas as aberturas das minas, que entravam pela terra dentro. Quanto dariam os rapazes por ver aquilo!
O tio já tinha novamente voltado aos seus papéis, completamente esquecido da presença da sobrinha. Dina agarrou no mapa e esgueirou- se calmamente para fora do quarto. Como Filipe iria ficar contente com o mapa!
Havia esquecido completamente a zanga que tivera. Esta era a sua melhor faceta — não era rancorosa e as fúrias depressa lhe passavam. Correu novamente para o corredor que conduzia ao quarto onde os outros tinham ficado. Abriu a porta de par em par e irrompeu por ele dentro.
Os três rapazes ficaram espantados perante a expressão de radiosa alegria que se lhe pintava no rosto. Maria da Luz não achava maneira de se habituar às bruscas mudanças de disposição de Dina. Filipe olhou-a, desconfiado, com cara de poucos amigos.
Dina lembrou-se então da zaragata anterior. — Oh! — disse ela. — Desculpa ter-te batido, Filipe. Ouve cá, eu encontrei o velho mapa da ilha. Que dizes tu a isto? E o tio Renato disse-me que existiram lá há muito tempo ricas minas de cobre, que estão agora completamente esgotadas. Portanto, aqueles poços devem ter sido entradas para o fundo das minas.
— Eia! — comentou Filipe, tomando o mapa das mãos de Dina e desdobrando-o. — Que rico mapa! Bravo, Dina, tu és bem esperta!
Deu uma palmada amigável nas costas de Dina, o que a fez corar de prazer. Eles andavam sempre como o cão e o gato, mas nada dava mais satisfação à rapariguinha do que um elogio do irmão. As quatro crianças debruçaram-se sobre o mapa.
— Cá está a passagem dos recifes claramente marcada — disse Dina. Os rapazes acenaram, concordando.
— Deve ter ali existido sempre — disse João. — Calculo que tenha sido este o único caminho de que os antigos mineiros podiam servir-se para ir à ilha e voltar. — Que emocionantes deviam ser as suas idas e vindas, nos seus barcos, levando para lá os mantimentos e transportando cobre para cá! Com a breca, bem gostava de poder descer e ver como são as minas por dentro.
— Vejam, todos os velhos poços estão marcados — disse Filipe, apontando-os com o dedo. — Este deve ser o que tinha o monte de latas ao pé. Olha, Pintinhas, cá está o riacho. Agora percebo a razão por que tem aquela cor encarniçada. Aposto que é por causa dos depósitos de cobre que existem ainda nas colinas.
— Quem sabe se ainda existe lá cobre, então — disse Dina, cheia de excitação. — Pepitas de cobre! Quem me dera encontrar algumas.
— O cobre encontra-se em veios — rectificou Filipe, mas talvez se encontre inteiro e em pepitas também. Olhem, porque não vamos nós, só por brincadeira, até à ilha para descer às minas e explorar um pouco aqueles sítios? Podia ser que conseguíssemos encontrar pepitas de cobre, quem sabe?
— Não deve haver lá nada — disse João. — Ninguém abandonaria uma mina enquanto lá houvesse cobre para ser extraído. E estas foram abandonadas há centenas de anos.
— Há qualquer coisa colada nas costas do mapa — observou Maria da Luz de repente. As crianças voltaram-no e viram um mapa mais pequeno, apenso ao primeiro. Alisaram-no para o poderem observar e, de princípio, não conseguiram saber se estava direito ou de pernas para o ar, quando Filipe deixou escapar uma exclamação.
— Claro! É um mapa das galerias subterrâneas da ilha... É um mapa das minas. Olhem para estas passagens e galerias e estes canais de drenagem para fazer escoar as águas. Ora esta! Uma parte destas minas está abaixo do nível do mar.
Era maravilhoso contemplar o mapa onde podia ver-se o labirinto dos túneis abaixo da superfície da ilha. Existiria evidentemente uma vasta área minada, numa parte da qual as minas desciam mais baixo do que o nível do mar.
— Esta secção, então, está mesmo por baixo do leito do mar — disse João, apontando. — Singular sensação trabalhar ali, sabendo o mar a rolar incessantemente por cima das rochas que servem de tecto!
— Eu cá não havia de gostar muito disso — disse Maria da Luz, com um arrepio. — Estaria sempre com o pavor de que o tecto abatesse e o mar inundasse o sítio onde estivesse a trabalhar.
— Ouçam, nós temos absolutamente de voltar outra vez à ilha — declarou Filipe, excitado. — Sabem o que me parece? Que há gente a trabalhar presentemente nessas minas.
— E que te leva a pensar assim? — perguntou Dina.
— Aquelas latas de conservas — continuou Filipe. — Sem dúvida que alguém se alimenta de comida enlatada. E nós não conseguimos avistar ninguém, pois não? Então, é porque deviam estar a trabalhar no fundo das minas. Vocês verão como esta é a solução do mistério.
— Vamos ter amanhã com o Jaime para lhe contar tudo e levamos o mapa para lhe mostrar — disse Dina, emocionada. — Ele nos dirá o que devemos fazer. Não acho bem que exploremos as minas sozinhos. Não sei porquê, sentia-me mais segura se Jaime estivesse connosco.
— Não — disse João, rápido. — Nada diremos ao Jaime. Todos três olharam para ele surpreendidos.
"— Mas porque não? — perguntou Dina.
— Bem... porque eu tive uma ideia repentina. Tenho a impressão de que é um amigo dele, ou amigos, que estão a trabalhar naquelas minas. Estou certo de que o Jaime veio viver para aqui para se aproximar deles e lhes levar comida e o mais de que precisarem e aposto que ele não tem o barco para outra coisa. Deve ser segredo e, por isso, ele não gostaria de nos saber ao facto do que quer ocultar. Provavelmente nunca mais nos deixaria andar no barco.
— Mas, João, tu deves estar a exagerar. O Jaime veio só cá passar umas férias. Ele anda a estudar a vida das aves — disse Filipe.
— Mas ele, na verdade, observa muito pouco essa vida — tornou João. — Contenta-se com ouvir as minhas dissertações acerca dos pássaros daqui, não se dando sequer ao trabalho de falar sobre eles. Garanto-te que comigo não seria assim se alguém me desse essa oportunidade. E nós não fazemos ideia do trabalho dele porque nunca no-lo disse. E aposto qualquer coisa com vocês em como ele e os seus amigos estão a explorar a mina de cobre da ilha. Eu não sei a quem as minas pertencem — se é que elas pertencem de facto a alguém — mas tenho a convicção de que se alguém suspeitasse da existência de cobre nas minas ficaria muito bem calado com a descoberta, na esperança de poder extrair para si boas pepitas de cobre.
João, sem fôlego, parou de falar. A Didi murmurou então a nova palavra aprendida.
«Cobre, cobre, cobre. Dá-me um cobre, cobre...».
— É ou não é inteligente? — perguntou Maria da Luz. Mas ninguém prestava atenção aos ditos da Didi. O assunto em questão era demasiadamente importante para ser interrompido por uma catatua.
— Vamos pôr tudo em pratos limpos a Jaime Smugs propôs Dina, que não gostava de mistérios sem solução.
— Não sejas tola — retorquiu Filipe. — O João já explicou porque era melhor não deixar o Jaime compreender que já lhe demos com o jogo. E talvez ele nos chegue a dizer um dia de moto próprio. Vai ficar espantado quando souber que nós já tínhamos adivinhado tudo.
— Tornaremos a ir brevemente no barco de Jau — declarou João. — Desceremos ao poço maior e faremos uma pequena exploração. Depressa ficaremos a saber se lá há ou não alguém. Levaremos o mapa connosco e não nos perderemos, visto que todas as passagens e as galerias subterrâneas se encontram marcadas nitidamente.
Era excitante falar sobre estes segredos. Quando poderiam eles partir novamente para a ilha? Deveriam desta vez levar as raparigas com eles ou não?
— Bom, parece-me que desta vez nos vamos arranjar ainda melhor — disse Filipe. — Não houve muito perigo da outra vez, desde que encontrámos a passagem através do círculos de recifes.
Tenho a certeza de que alcançaremos agora a ilha facilmente e poderemos levar as raparigas também.
Dina e Maria da Luz tinham ficado emocionadas. Aspiravam por uma oportunidade de partir imediatamente, mas Jau não se afastava de casa o tempo suficiente para lhes permitir apoderarem-se do barco. Por outro lado, ele havia saído para o mar duas ou três vezes.
— Vais pescar? — perguntou Filipe. — Porque não nos levas contigo?
— Não estou para ter aborrecimentos com crianças assim
— disse o negro, no seu modo de falar firme. Fez-se de vela e afastou-se tanto que o barco deixou de se ver e esfumou-se no nevoeiro que parecia sempre suspenso sobre o horizonte, do lado do Poente.
— Segundo todas as aparências, ele pode perfeitamente ter ido para a ilha — observou João. — Desapareceu completamente e só espero que, ao menos, traga algum peixe para o nosso jantar de hoje.
E trouxe realmente. O barco regressou depois da hora da merenda e a miudagem ajudou-o a transportar para casa um belo cesto de peixe.
— Bem podias ter-nos levado também, se não fosses mau
— disse Dina. — Nós também sabemos lançar linhas.
No dia seguinte, Jau foi outra vez à cidade, para grande júbilo da pequenada. — É hoje o seu dia de saída — disse a tia Lena — e vocês terão de fazer alguns trabalhos que lhe competem. Os rapazes vão tirar a água que é precisa para todo o dia de hoje.
Os pequenos foram para o poço e desceram o pesado balde, deixando desenrolar a corda até que atingisse a água. João espreitou sobre a borda.
— Tal qual como um dos poços da ilha — disse ele. — Dá à manivela, Trunfa. Aí vem ele!
As crianças apressaram-se a cumprir as tarefas de que a tia Lena as tinha encarregado. Então, depois de se certificarem de de que o carro já tinha deixado o barracão, pediram à tia Lena para levarem consigo o almoço e correram direitos ao barco de Jau.
Desamarraram o cabo e puseram o barco em movimento com os dois rapazes a remar de rijo. Logo que se encontraram no mar largo, içaram a vela. - Cá vamos nós, rumo à ilha das Trevas - exclamou Dina radiante. - João, estou contentíssima por também nós termos vindo com vocês. Foi detestável terem-nos deixado ficar da outra vez.
- Trouxestes as lanternas? - perguntou Filipe a Maria da Luz.
- Trouxe, estão junto dos mantimentos - afirmou ela.
- Vamos precisar delas nas minas - disse Filipe, com ar excitado. Isto é que é uma aventura - ir descer a minas antiquíssimas, onde possivelmente andariam homens em busca de cobre. - Um arrepio de emoção percorreu o corpo de Filipe.
O barco à vela, tripulado com perícia pelas quatro crianças, navegava veloz, não tardando muito que, através da névoa que usualmente envolvia a ilha, se começasse a vislumbrar-lhe a forma.
- Ouvem o bater das ondas de encontro às rochas? - perguntou João. As raparigas acenaram com a cabeça. Esta era a parte perigosa, mas tinham esperanças de que os rapazes encontrassem a passagem nos recifes tão facilmente como anteriormente e de que tudo corresse bem.
- Lá está a colina grande - disse João de repente. - Arreiem a vela, meninas. Devagarinho... está bem. Cuidado com esse cabo, Maria da Luz. Não. Não, esse não. Está bem agora.
A vela estava descida. Os rapazes pegaram nos remos e começaram a remar, com precaução, na direcção da brecha entre os rochedos. Agora sabiam já onde ela estava. Por lá entraram e começaram a procurar o recife que vinha quase até ao de cimo de água, preparados para o evitar. O fundo do barco ainda lhe tocou de raspão, o que bastante assustou Maria da Luz, mas depressa se acharam nas águas tranquilas que corriam cintilantes em volta da ilha, entre a praia e o círculo dos recifes.
Maria da Luz soltou um suspiro de alívio. Sentira-se um pouco enjoada, seriamente assustada e estava ainda muito pálida, mas vendo a ilha tão perto logo lhe voltaram as forças. Abicaram à pequena praia sem novidade e conseguiram pôr o barco em seco na areia. - Agora partamos para as colinas - ordenou João. - Eia, outra vez pássaros aos milhares. Nunca na minha vida vi tal quantidade. Se ao menos pudesse dar com o corvo marinho!
- Talvez eu te descubra um - disse Maria da Luz, desejando ardentemente que assim fosse. - Filipe, para que lados fica o riacho vermelho e o monte de latas? É por aqui perto?
- Em breve os verás - respondeu Filipe, alargando o passo e adiantando-se dos outros. - E através desta pequena passagem que vai dar à colina.
Sem demora se lhes deparou o riacho cor de cobre, correndo para o vale através das colinas. João parou para ajeitar as coisas que levava. - Esperem um pouco. Onde ficava exactamente o poço maior?
As raparigas tinham soltado exclamações ao avistarem várias perfurações no solo e as estranhas construções em ruínas perto delas. Deve ter existido uma espécie de muros à volta das bocas dos poços - observou João, pensativo.- E onde pára o monte de latas? Era por aqui que ele estava. Olhem, meninas. Ali está o poço!
Todos se precipitaram, à uma, para o grande buraco redondo e espreitaram para dentro. Não havia sombra de dúvida de que a escada que conduzia ao fundo do poço estava visivelmente em muito bom estado. - Este é o poço que os homens estão a explorar - disse Filipe. - É o único que tem uma escada segura.
- Não fales tão alto - aconselhou João em voz baixa. - Não calculas como o som ressoa no fundo destes poços.
- Onde estão as tais latas de que nos falaram? - perguntou Maria da Luz.
- Além... junto daquela rocha - respondeu Filipe. - Vai lá vê-las se quiseres.
Filipe apontou o foco da lanterna para o fundo do poço mas pouco ou nada se distinguia e o aspecto era pouco acolhedor, assaz sinistro. Como seria aquilo lá em baixo? Estariam realmente lá homens? Era necessário que não fossem descobertos por eles. As pessoas crescidas ficam sempre contrariadas quando as crianças metem o nariz em assuntos que lhes não dizem respeito.
- João, não encontro as latas - disse Maria da Luz. Filipe teve um gesto de impaciência. Que palermas eram todas as raparigas! Nunca conseguem encontrar coisa alguma. Encaminhou-se para elas para lhes mostrar o monte das latas.
Então estacou, atónito. O local debaixo da rocha estava vazio. Não estava lá absolutamente nada. Alguém tinha levado as latas.
- Já viste isto, João? - disse Filipe, esquecendo-se de baixar a voz. - Todas aquelas latas desapareceram. Quem as teria levado? Bom, isto prova simplesmente que há gente nesta ilha, gente que cá esteve depois da última vez que aqui viemos. Isto é deveras empolgante, digo-vos eu!
NO FUNDO DAS MINAS
Maria da Luz olhou à sua volta, um pouco assustada, sempre à espera de ver surgir alguém detrás de uma das rochas.
- Não me agrada a ideia de que talvez aqui haja gente, que não sabemos se é boa ou má - disse ela.
- Não sejas pateta - disse João. - Eles estão no fundo das minas. Vamos descer agora a este poço, para ver o que somos capazes de descobrir?
As raparigas não queriam, mas Maria da Luz pensou que seria bem pior ficar cá em cima, só com Dina, do que descer também juntamente com os rapazes. Portanto, declarou que também iria, e Dina, que não estava disposta a ficar sozinha, imediatamente disse que iria também.
Filipe abriu no chão o mapa das galerias subterrâneas e acocoraram-se todos à roda para o estudarem.
- Vejam, este poço vai ter ao centro de um perfeito labirinto de passagens e galerias - mostrou Filipe. - Deveremos tomar por esta passagem aqui? É uma espécie de rua principal que vai ter à parte das minas cavadas mesmo por baixo do mar.
- Não, por aí não - disse Maria da Luz, alarmada. Mas os outros três votaram porque fosse tomada aquela direcção, portanto não houve mais que discutir.
«Ouve, Didi, se tu queres vir connosco, não poderás fazer barulho», preveniu João. «Senão os mineiros que estiverem perto ouvem-te e descobrem-nos, percebes?»
«Pico, pico, surupico», fez a Didi com solenidade, coçando a cabeça com o pé.
«És um pássaro tonto», observou João. «E agora lembra-te bem do aviso: não te atrevas a palrar nem a gritar».
Dirigiram-se para a boca do poço. Todos se debruçaram, olhando para dentro com ar solene de expectativa. A aventura era emocionante, mas pareceu-lhes de repente assaz arriscada.
- Vamos - decidiu Filipe, começando a descer a escada.
- Nada de mal poderá acontecer-nos, mesmo que sejamos descobertos. Aliás, a razão que nos trouxe a esta ilha foi o tentar descobrir o corvo marinho gigante, para regozijo do Pintinhas. Mesmo que fôssemos apanhados, poderíamos dizer que manteremos o bico calado. Se os homens forem amigos de Jaime Smugs, devem ser pessoas capazes e nós podemos tirar partido da amizade que nos liga a ele.
Iniciaram então a descida pela escada do enorme poço. Antes de terem chegado a meio desejavam já nunca ter empreendido tal proeza. Nunca lhes passara pela cabeça que tivessem de descer tão fundo. Dir-se-ia que se encaminhavam para o centro da Terra, a descer, a descer continuamente na escuridão, a qual era agora rasgada pelos focos de quatro lanternas eléctricas.
- Vocês, meninas, vão bem? - perguntou Filipe, com ansiedade. - Calculo que devemos estar quase a chegar ao fundo.
- Já nem sinto os braços - disse Maria da Luz, que não era tão forte como os outros. Dina, essa era mais como um rapaz, tanto na intrepidez como na força.
- Paremos para descansar um pouco - propôs João.
- Livra, a Didi já me pesa no ombro. E decerto também porque tenho os braços cansados de me segurar com tanta força à escada.
Pararam uns momentos a descansar, depois do que prosseguiram na descida. Então, Filipe soltou uma exclamação surda:
- Olhem, estou no fundo!
Com grande satisfação, os outros juntaram-se-lhe. Maria da Luz sentou-se no chão porque os joelhos lhe doíam já tanto como os braços. Filipe fez incidir o foco da sua lanterna em todas as direcções.
Encontravam-se numa passagem francamente larga. As paredes e o tecto eram de rocha que brilhava, com um tom encarniçado, à luz das lanternas. A passagem principal ramificava-se noutras laterais, pequenas e estreitas.
- Faremos o que estava combinado e tomaremos por esta galeria maior, que me parece ser uma espécie de rua principal das minas - declarou Filipe.
João apontou o foco da sua lanterna para uma das passagens mais pequenas.
- Olhem! - disse ele. - O tecto abateu ali. Não poderíamos ir naquela direcção mesmo que quiséssemos.
- Livra, espero que o tecto desta não nos caia em cima - disse Maria da Luz, olhando para cima, cheia de medo. Nalguns sítios a galeria estava escorada por grossos toros de madeira, mas a maior parte era talhada na rocha rija.
- Vamos, isto é suficientemente resistente - disse João com impaciência. - Vocês não concordam que é emocionante estar a dezenas de metros abaixo da terra, metidos em minas de cobre tão velhas como as velhas colinas?
- É estranho! O ar é aqui tão fresco, não acham? - notou Dina, lembrando-se do cheiro a bafio da passagem secreta da Casa do Penhasco.
- Estas minas têm com certeza boas entradas de ar - explicou Filipe, tentando recordar-se da maneira como trabalham as tomadas de ar das minas de carvão. - Uma das coisas a que em primeiro lugar se atende, quando se começa a minar o solo, é a renovação do ar, pelo sistema de correntes de ar em movimento nos túneis e a drenagem das águas, para que não se dêem inundações na mina.
- Eu detestava trabalhar numa mina - disse Maria da Luz, com um arrepio. - Nós já estaremos debaixo do mar, Filipe?
- Ainda não - respondeu aquele. - Devemos estar a meio do caminho. Olá, aqui está uma dependência bem cuidada, vejam que grande é esta cave!
O subterrâneo alargava-se naquele sítio, formando um enorme compartimento, que mostrava sinais bem evidentes de haver sido trabalhado por muitos homens. Nas paredes rochosas eram bem visíveis os sinais deixados pelas picaretas, e João, com uma exclamação de espanto, correu para um canto e apanhou o que parecia ser a cabeça de um pequeno martelo de bronze.
- Olhem - disse ele, com orgulho, para os seus companheiros, isto deve ser parte de uma ferramenta partida, das que eram usadas pelos mineiros da antiguidade. É feita de bronze, uma liga de estanho e cobre. Ena, os rapazes lá na escola vão ficar cheios de inveja!
Isto fez com que os outros olhassem em redor, na esperança de também encontrarem qualquer coisa, e Maria da Luz fez uma descoberta que causou sensação. Não era qualquer ferramenta, de bronze, mas um pedaço de lápis, de um tom amarelo vivo.
- Sabem a quem isto pertence? - disse Maria da Luz, com os olhos verdes, brilhando à luz das lanternas, como os dum gato. - Pertence a Jaime Smugs. Eu vi-o, tomando notas com ele, no outro dia. Tenho a certeza de que é do Jaime.
- Então, é porque ele deve cá ter estado e perdeu-o por acaso - disse Filipe, estremecendo. - Não há dúvida, nós calculámos bem! Ele não anda a estudar os costumes das aves; e vive junto da costa, com o automóvel e o barco, porque pertence ao grupo dos homens que trabalham nesta velha mina. Traz-lhes comida e o mais de que precisam. O manhoso do Jaime, que não nos disse nem uma palavra a este respeito!
- Bem, não é natural que se conte a vida toda às crianças que se conhecem - objectou Dina. - Como ele ficaria surpreendido se soubesse que nós lhe descobrimos o segredo! Quem sabe se andará por cá neste momento?
- Qual, nada disso, pateta - atalhou Filipe prontamente. - O barco não estava na praiazinha, pois não? E não há outro processo para cá chegar senão de barco.
- Tinha-me esquecido disso - disse Dina. - Mas agora, de qualquer maneira, já não tenho medo de me encontrar com os mineiros misteriosos desde que sei que eles são amigos do Jaime. Mas, apesar de tudo, sempre será melhor que eles não dêem pela nossa presença. São capazes de imaginar que não podem confiar em crianças e tornarem-se um tanto difíceis de aturar.
Examinaram bem a dependência. Estava escorada com velhos toros de madeira, alguns dos quais quebrados, de maneira que o tecto ia gradualmente cedendo. Alguns degraus carcomidos iam dar a uma outra espécie de compartimento, num nível superior, mas aí o tecto tinha ruído e as crianças não puderam lá entrar.
- Sabes o que eu penso? - lembrou João, subitamente, parando e voltando-se para os outros companheiros que atrás dele examinavam a cave. - Parece-me que aquela luz que eu vi
no mar, uma destas noites, não provinha de qualquer navio, mas sim desta ilha. Os mineiros estavam a dar sinal, pedindo mantimentos, e a luz do rochedo era um sinal de Jaime a dizer-lhes que lhes trazia mais.
- Sim, mas a luz vinha do nosso rochedo e não do de Jaime - objectou Filipe.
- Pois sim, mas tu bem sabes que somente da parte mais alta do rochedo poderia ser avistado um sinal feito das bandas da enseada da ilha - argumentou João.
- Se alguém estivesse na colina que há no meio da ilha e acendesse uma fogueira ou fizesse sinais com uma poderosa lanterna somente poderia ser visto do nosso rochedo e nunca do de Jaime. Portanto, ele deve ter ido ao nosso rochedo naquela noite para responder ao sinal.
- Deves ter razão - concordou Filipe.- O maroto do Jaime deve ter andado a vaguear pelas redondezas da Casa do Penhasco... e tu viste que os seus sinais luminosos também chamaram a atenção de Jau. Não admira que esse patife diga que há «coisas» ruins que vagueiam à noite, coisas essas que ele muito teme! Deve ter ouvido muitas vezes Jaime e visto luzes sem saber a que atribuí-las.
- Provavelmente Jaime veio à ilha no barco, logo que lhe foi possível trazer nova provisão de comida - alvitrou João. - Levou consigo as latas vazias e aí está a explicação do desaparecimento delas. O maroto do Jaime! Que magnífico segredo traz com ele e somos nós os únicos a sabê-lo.
- Quem me dera poder dizer-lhe tudo o que sabemos - disse Maria da Luz. - Não percebo porque não o fazemos. Tenho a certeza de que ele até gostaria que lhe contássemos.
- Bom, o que nós podemos é deixar escapar algumas palavras para lhe darmos a entender que temos conhecimento do que se passa e deixá-lo adivinhar o resto - admitiu Filipe. - Então, se ele adivinhar, poderá abrir-se connosco e teremos então ocasião de ter uma bela conversa acerca das minas, na qual ele nos falará de toda a espécie de coisas interessantes.
- Sim, será exactamente isso que faremos - concordou João.
- Vamos explorar até um pouco mais adiante. Sinto-me como se conhecesse este subterrâneo de cor e salteado.
A passagem desviava-se um pouco para a esquerda e o coração de Filipe deu um pulo. Ele sabia pelo mapa que quando a galeria principal se desviasse para a esquerda passariam a estar debaixo do próprio leito do mar. Era de toda a maneira um pouco inquietante caminhar por baixo do mar profundo.
- Que barulho será este? - perguntou Dina. Todos se puseram à escuta. Ouvia-se um longínquo e curioso ruído, como de uma pancada contínua, que nunca cessava.
- Máquinas dos mineiros?-lembrou Filipe. Mas, de repente, compreendeu o que era. - Não. É o ruído do mar a rugir, lá em cima, sobre as nossas cabeças. É o que isto é!
Assim era de facto. As crianças quedaram-se a escutar aquele distante e surdo ruído. Era o mar a rolar sem descanso no seu leito de rochedos, açoitando as rochas no seu caminho, fazendo soar continuamente a sua voz cava e cadenciada.
- Tem a sua graça estar por baixo do próprio mar - disse Maria da Luz, com uma pontinha de receio, que a fez estremecer. Estava tão escuro e o ruído era tão estranho!
- Não acham que está imenso calor aqui? - perguntou ela, com o que os outros concordaram. Estava, por certo, quente no fundo das minas de cobre.
Continuaram o seu caminho através da mina sem nunca deixarem a galeria principal e evitando as outras muitas passagens laterais que a esta vinham continuamente desembocar e que provavelmente iam dar a outros pontos de exploração das enormes minas.
- Se nos desviarmos desta galeria principal poderemos perder-nos - avisou Filipe, e Maria da Luz soltou um suspiro. Ainda não lhe tinha ocorrido a ideia de que podiam perder-se. Como seria horrível vaguear por aquelas minas, quilómetros e quilómetros sem fim, sem nunca encontrar mais o poço que os levaria à superfície!
Chegaram a um sítio onde viram subitamente brilhar uma luz. As crianças tinham notado, ao voltar duma esquina, que parecia começar a haver uma certa claridade, e assim que dobraram uma curva da galeria deparou-se-lhes uma outra caverna iluminada por uma potente lâmpada. Estacaram, no maior dos espantos.
Chegou-lhes depois aos ouvidos um ruído, um ruído estranho, que não era o rugir surdo do mar, mas um matraquear que eles não conseguiram reconhecer, seguido de um estrondo e novamente, o matraquear.
- Descobrimos o sítio onde os mineiros trabalham - disse João em voz baixa, mas excitadíssimo. - Recuemos um pouco. Nós podemos vê-los, mas é preciso que eles não nos vejam a nós!
PRISIONEIROS NOS SUBTERRÂNEOS.
As crianças encostaram-se o mais que puderam à parede, tentando ver o que existia na caverna à sua frente, piscando os olhos por causa da intensidade da luz.
Na caverna havia caixotes e grades de madeira e nada mais. Ninguém se via. Mas, não muito longe, estava alguém a trabalhar, provocando aquele estrondoso barulho matraqueante.
- Voltemos para trás - aconselhou Maria da Luz, assustada.
- Não. Olhem, há uma passagem que parte daqui - segredou Filipe, projectando o facho da lanterna para dentro de um escuro túnel próximo. - Desceremos de rastos por este túnel e talvez topemos com os mineiros a trabalhar por aqui perto.
Arrastaram-se todos ao longo do túnel, junto das paredes rochosas, quando uma pedra se desprendeu do tecto. O susto da Didi foi tão grande que soltou um guincho e fugiu do ombro de João.
«Vem cá já, Didi!», ordenou João, com medo que a catatua se perdesse. Mas a Didi não voltou para o seu ombro. O rapaz, aos tropeções, voltou para trás em busca dela, assobiando baixinho, como costumava fazer para a chamar para junto dele. Os outros não deram pela sua falta e continuaram pelo túnel lenta e penosamente.
Foi então que tudo se desenrolou repentinamente. Alguém, caminhando apressado, surgiu do outro lado do túnel com uma lanterna, cuja luz envolveu imediatamente os três pequenos. Estes recuaram até à parede, procurando não ficar encandeados pela luz da lanterna. O homem que a trazia ficou estático de surpresa.
- Olá! - exclamou ele, numa voz profunda e áspera. - Isto ultrapassa tudo o que possa imaginar-se!
- Levantou a lanterna mais alto para poder ver melhor os pequenos e Voltando a cabeça chamou então: -José! Anda cá ver isto. Tenho aqui uma coisa que vai fazer-te arregalar os olhos de espanto.
Um outro homem veio rapidamente ter com ele. Era alto e escuro na sombra. Soltou uma exclamação quando viu as três crianças.
-Olá! Mas que é isto? - admirou-se ele. - Crianças!
Como vieram elas cá parar? Serão de carne e osso ou estarei a sonhar?
- São crianças, não há dúvida - disse o que aparecera primeiro. Dirigiu-se-lhes depois e a sua voz era dura e áspera.
- Que fazem aqui? Com quem vieram?
- Nós viemos sozinhos - disse Filipe.
O homem riu estrondosamente. - Não, não acredito. Nada ganham em tentar impingir-nos essa balela. Quem vos trouxe aqui? E para quê?
- Nós viemos sós, num barco - disse Maria da Luz, indignada. - Nós conhecemos a passagem através dos rochedos e viemos ver a ilha.
- E porque desceram cá abaixo? - perguntou José, aproximando-se. As crianças puderam então ver como ele era e não lhes agradou o seu aspecto. Tinha uma venda preta sobre um dos olhos e o outro fitava-os com maldade. Os seus lábios estavam tão cerrados que chegava a parecer que não os tinha. Maria da Luz desviou-se dele.
- Vamos a saber, porque vieram cá abaixo? - indagou novamente José.
- Bem... nós encontrámos a entrada do poço e descemos para ver as velhas minas - disse Filipe. - Nós não o comprometeremos, não tenha medo.
- Comprometer-nos? Que queres dizer com isso? Que sabes tu, rapaz? - perguntou José, com aspereza.
Filipe não respondeu. Ele não sabia aliás o que dizer. José fez ao companheiro um sinal com a cabeça e este foi colocar-se por detrás das crianças. Agora não podiam tentar escapar-se para qualquer dos lados.
Maria da Luz começou a chorar. Filipe colocou um braço sobre os seus ombros, perguntando a si mesmo o que seria feito de João. Maria da Luz procurou-o também com o olhar e começou a chorar mais alto quando deu pela falta do irmão.
- Maria da Luz, não digas a estes homens que João desapareceu - segredou-lhe Filipe.
- Se eles se lembrarem de nos aprisionar, João poderá escapar-se e trazer socorro. Portanto nem uma palavra a respeito dele.
- Que segredos são esses? - perguntou José. - Ouve meu rapaz, tu não queres que aconteça mal às tuas irmãs, pois não? Ou queres? Então, diz-nos exactamente tudo o que sabes e talvez vos deixemos ir embora.
O tom de voz do homem alarmou Filipe, que pela primeira vez teve consciência do perigo que possivelmente corriam. Aqueles homens eram cruéis e não iriam de boa mente deixar que três crianças penetrassem no seu segredo. Podiam mantê-los prisioneiros nos subterrâneos, bater-lhes e até matá-los à fome. Quem sabe do que seriam capazes? Filipe decidiu-se a dizer um pouco do que supunha ser verdade.
- Olhe lá - disse ele, voltando-se para José -, nós sabemos muito bem para quem vocês trabalham, sabe? Ele é muito nosso amigo e tenho a certeza de que ficará zangadíssimo se nos fizerem algum mal.
- Ah, sim? - replicou José, em tom zombeteiro. - E quem é esse formidável amigo?
- Jaime Smugs! - respondeu Filipe, seguro de que a simples alusão ao nome de Jaime remediaria tudo.
- Jaime Smugs? - repetiu o homem em tom de mofa. - E quem é esse tipo? Nunca na minha vida ouvi tal nome.
- Não pode deixar de saber quem é ele - continuou Filipe, desesperadamente. - É ele quem vos traz mantimentos e quem vos faz sinais. Você sabe isso tão bem como eu. É impossível que não conheça Jaime Smugs e o seu barco, o Albatroz.
Os dois homens olharam intensamente para as crianças. Depois falaram um para o outro com rapidez numa língua estrangeira. Pareciam sobremaneira intrigados.
- Esse tal Jaime Smugs nunca foi nosso amigo - afirmou José, depois de uma pausa. - Foi ele que vos disse que nos conhecia?
- Não - respondeu Filipe - nós é que supomos.
- Então supuseram mal - disse o homem. - Venham connosco. Vamos instalá-los em qualquer sítio até que decidamos o que deve fazer-se aos meninos que metem o nariz onde não são chamados.
Filipe calculou que iam prendê-los em qualquer parte dos subterrâneos e ficou furioso e amedrontado. As raparigas estavam alarmadas. Dina não chorava mas Maria da Luz, que se sentia abandonada sem João ao pé dela, continuava a chorar sem cessar.
José empurrou Filipe, para o obrigar a caminhar na sua frente, e conduziu as crianças através de um estreito corredor perpendicular àquele onde tinham estado. No fim desta galeria havia sido colocada uma porta. José destrancou-a e empurrou as crianças para uma caverna onde existiam alguns bancos e uma pequena mesa sobre a qual José colocou a lanterna.
- Aqui estarão em segurança - disse ele, com um hediondo sorriso de malícia. - Bem seguros. E não vou matar-vos à fome, não tenham medo.
As crianças ficaram sós. Ouviram o trancar da porta, com força, e o morrer de passos que se perdiam na distância. Maria da Luz continuava a chorar.
- Isto é que é pouca sorte! - declarou Filipe, tentando dar um tom alegre às suas palavras. - Não chores, Luzinha.
- Como é que estes homens não sabem quem é Jaime Smugs? - perguntou Dina, intrigada. - Nós sabemos que ele deve trazer-lhes comida e muito provavelmente transportar-lhes o cobre que extraem.
- É fácil de concluir - respondeu Filipe, tristemente.
- Com certeza que o amigo Jaime nos deu um nome suposto. Realmente soa a falso - Smugs (1) - nunca ouvi tal apelido, agora que me ponho a pensar nisso.
- O quê, achas que esse não é o seu verdadeiro nome?
- perguntou Dina. - É essa então a razão por que estes homens dizem que não o conhecem! Abóbora! Ainda se ao menos soubéssemos o seu nome verdadeiro, tudo se arranjaria.
*1. Smugs significa janota, peralta. - (N. do T.)
- Que fazemos agora? - choramingou Maria da Luz. - Não gosto de estar presa numa mina e debaixo do mar ainda para mais. É simplesmente horrível.
- Mas olha que é uma aventura verdadeiramente emocionante. Maria da Luz - disse Filipe a tentar confortá-la.
- Detesto as aventuras emocionantes se estou metida no meio delas - choramingou Maria da Luz. Os outros partilhavam aliás da mesma opinião e Filipe conjecturava no que seria feito de João.
- Que lhe terá acontecido? - congeminava ele. - Espero que esteja são e salvo. Se assim é, ele tentará libertar-nos.
Porém, naquele momento João estava longe de estar a salvo. Seguindo pelo túnel em busca da Didi, entrara noutro corredor, encontrara a catatua, voltara para trás e perdera-se então. Não fazia, portanto, a menor ideia de que os seus companheiros tivessem sido apanhados. A Didi, no seu ombro, palrava-lhe de mansinho.
Era Filipe quem tinha o mapa. Assim, uma vez perdido, João não tinha maneira de se orientar e descobrir qual era a galeria principal. Entrava num túnel, depois noutro, deparavam-se-lhe vários, que estavam bloqueados, voltava para trás e recomeçava outras tentativas ao acaso.
«Didi, perdemo-nos», disse João. Começou a gritar, uma e outra vez, tão alto quanto podia, e a sua voz, ecoando pelos túneis fora, voltava a soar, como por encanto, perto dele sussessivas vezes. A Didi guinchava também mas nenhuma voz lhe respondia.
As crianças, fechadas na cela, caíram em silêncio por fim. Nada havia a fazer, nem mais a dizer. Maria da Luz descansou a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa e estava tão cansada que depressa adormeceu. Filipe e Dina aninharam-se nos bancos e tentaram também dormir. Mas não o conseguiram.
- Filipe, temos absoluta necessidade de escaparmos daqui! - exclamou Dina, desesperada.
- Isso é fácil de dizer - respondeu Filipe amargamente - mas difícil de realizar. Como queres tu que nos escapemos duma
caverna situada nas profundezas de uma mina de cobre por debaixo do mar, numa caverna que possui uma sólida porta de madeira trancada por fora? Não sejas tonta.
- Tenho uma ideia, Filipe! - exclamou Dina, por fim. Filipe soltou um gemido. Nunca se aproveitava grande coisa das ideias de Dina, que em regra não passavam de fantasias.
- Ouve bem, Filipe - tornou Dina, muito séria -, olha que a minha ideia é bastante boa.
- Bom, um dos dois homens, José ou o outro, mais tarde ou mais cedo há-de voltar aqui, com comida - começou Dina. - Quando ele entrar começamos todos a respirar a custo e com as mãos na cabeça e a gemer.
- Para quê? - perguntou Filipe, admirado.
- Para julgarem que este ar está tão viciado, que nos custa a respirar e que estamos intoxicados. Então talvez ele nos deixe sair para a galeria, para respirarmos melhor, e tu, como se fosses a cambalear, chegas perto dele, dás-lhe um pontapé na lanterna e nós fugimos com quanta força temos.
Filipe endireitou-se e olhou a irmã com admiração. - Parece-me que realmente tiveste uma ideia aproveitável - disse ele, e Dina sorriu prazenteira. - Sim, é boa, se bem me parece. Temos de acordar Maria da Luz para a pôr ao corrente, visto que ela tem de desempenhar também o seu papel.
Acordaram então Maria da Luz e explicaram-lhe o plano. Concordando que o plano devia ser bom, começou logo a suspirar e a segurar a cabeça, gemendo dum modo convincente. Filipe sacudiu afirmativamente a cabeça.
- Muito bem - disse ele -, todos faremos o mesmo quando ouvirmos o José ou o companheiro aproximar-se. Agora, enquanto temos tempo, é melhor eu localizar a nossa posição no mapa dos subeterrâneos e ver qual é a direcção que devemos tomar logo que tivermos atirado a lanterna do homem por terra.
Abriu o mapa sobre a mesa e começou a estudá-lo. - Pronto - disse por fim. - Já sei onde estamos. Aqui fica a grande caverna que estava iluminada. Vêem? E aqui é o pequeno corredor onde fomos agarrados. Cá está o túnel por onde nos trouxeram, e esta é a cave onde estamos agora encarcerados.; Agora ouçam, meninas: logo que eu tenha dado um pontapé na lanterna agarrem-se à minha mão e conservem-se bem junto de mim. Eu tomarei pelo caminho certo e iremos direitos ao poço da mina outra vez. Subiremos então, e como devemos encontrar o João em qualquer lado, correremos imediatamente para o barco.
- Óptimo - disse Dina, estremecendo. Naquele momento preciso soaram do lado de lá da porta passos que se aproximavam.
A FUGA - MAS... E JOÃO?
A tranca foi retirada e a porta abriu-se. No limiar apareceu José, trazendo consigo um prato de bolachas e uma enorme lata de sardinhas, já aberta. Colocou também sobre a mesa uma caneca com água.
Então, surpreendido, olhou para as três crianças. Filipe parecia sufocado ao rolar do banco para o meio do chão. Dina fazia os mais estranhos ruídos, apertando com força a cabeça entre as mãos. Maria da Luz dava a impressão de estar prestes a vomitar e soltava sons roucos impressionantes.
- Que se passa? - perguntou José.
- Ar! Queremos ar! - rouquejou Filipe. - Estamos sufocados! Ar! Ar!
Dina deixou-se também cair para o chão. José levantou-a e levou-a para a porta e arrastou depois os outros para o corredor. Pensou que as crianças deviam estar quase a sufocar. O ar da cela devia estar completamente viciado.
Filipe esperou uma oportunidade e caminhou na direcção de José aos trambolhões, como quem não se aguenta de pé. Quando se aproximou suficientemente, levantou o pé direito e aplicou um pontapé na lanterna que José trazia na mão. Esta caiu, estilhaçando-se no chão, com um tilintar de vidros partidos.
Tudo ficou às escuras. Ouviu-se um grito de José. Filipe, sem perder tempo, procurou as mãos das duas aterradas raparigas, a quem guiou rapidamente para diante, empurrando-as na direcção] do túnel da esquerda. José, perdido na escuridão, pôs-se a andar às apalpadelas e a gritar pelo companheiro.
- Gustavo! Eh, Gustavo! Traz uma lanterna! Depressa! Estes malditos catraios enganaram-me. Eh, Gustavo!
Filipe, tentando não perder o sentido de orientação, instava as raparigas a andarem mais depressa. Os seus corações batiam tanto que faziam doer e Maria da Luz sentia-se agora como que ameaçada de sufocar deveras. Depressa os gritos de José lhes ficaram para trás e se encontraram na galeria principal, a mesma que poucas horas antes tinham percorrido. Filipe fazia agora uso da sua lanterna eléctrica e era agradável ver o radioso e cintilante facho de luz cortar o negrume que os envolvia.
- Graças a Deus, enveredámos pelo caminho certo - disse Filipe, parando para escutar. Não conseguiu ouvir senão o emba- ] ter do mar contra os rochedos, por cima das suas cabeças. Fez incidir o foco da lanterna à sua volta. Sim, era de facto esta a galeria principal. Óptimo!
- Podemos descansar um pouco? - pediu Maria da Luz, ofegante.
- Não, - respondeu Filipe -, esses homens lançar-se-ão em nossa perseguição logo que arranjem outra lanterna e calcularão que nos dirigimos para a boca do poço. Vamos, não há tempo a perder.
As crianças recomeçaram a correr, mas pouco depois, com grande aflição, ouviram gritos atrás deles. Isto significava que os homens os perseguiam e, o que era pior, lhes iam ganhando terreno. Maria da Luz estava tão apavorada que mal podia correr.
Chegaram finalmente ao grande poço, tão profundo que as crianças não conseguiram ver-lhe a boca, lá no alto, e da claridade do dia nem um ténue vislumbre.
- Subam vocês à frente - recomendou Filipe com ansiedade. - Tu primeiro, Luzinha. Desembaraça-te o mais que puderes.
Maria da Luz começou a trepar. Seguia-se-lhe Dina e Filipe no fim.
As vozes dos homens soavam agora distintamente. Então, de repente, emudeceram e Filipe não voltou a ouvi-los mais. Que teria sucedido?
Havia acontecido uma coisa inesperada. A Didi, que andava com João, vagueando pelos túneis, ao ouvir tumulto a distância, ficou tão excitada que desatou aos gritos. João e a catatua continuavam completamente perdidos no labirinto de corredores e galerias quando os ouvidos apurados da Didi sentiram os homens. A ave começou a berrar e a guinchar.
«Limpa os pés! Fecha a porta! Eh, eh, Lena, põe a chaleira ao lume!»
Os homens, ouvindo aquela voz gritar, supuseram que seriam as crianças. - Andam perdidos - disse José, parando. - Não encontraram o caminho do poço. Estão desnorteados e gritam por socorro.
- Deixa-os gritar - disse Gustavo desabridamente. - Eles não serão capazes de encontrar o caminho do poço. Deixá-los andar perdidos até morrerem de fome.
- Não - discordou José. - Não podemos fazer uma coisa dessas. Que explicação arranjaremos nós se alguma patrulha de salvamento dá com eles a morrer de fraqueza? O melhor é irmos-lhes no encalço e apanhá-los. Devem estar mais ou menos naquela direcção.
Abandonaram, pois, a galeria principal na ideia de encontrarem as crianças no local donde partiram os gritos. Novamente chegou até eles a voz da Didi.
«Limpa os pés, idiota, limpa os pés!»
Isto deixou os homens perplexos. Continuaram na direcção de onde vinha a voz, mas João e a Didi tinham tomado por outro corredor lateral, e os dois homens, na sua pressa, passaram sem darem pela presença deles. A Didi calara-se e os homens suspenderam a marcha.
- Já não os ouço - declarou José. - É melhor irmos até ao poço. Eles podem ter encontrado a saída, no fim de contas, e não podemos consentir que eles se nos escapem até termos decidido que volta havemos de dar a isto tudo.
Retrocederam, pois, e voltaram novamente ao poço. Ao olharem para cima, uma chuva de pedrinhas caiu sobre eles.
- Diabo! Os miúdos estão lá em cima! - gritou José, começando a subir imediatamente a escada.
As crianças estavam quase no cimo. Maria da Luz, porém, sentia que as pernas e braços se recusavam a subir mais um só degrau que fosse. Mas afinal lá se aguentaram e ela conseguiu alcançar o cimo e saltou para fora, deixando-se cair para o chão, exausta. Seguiu-se-lhe Dina, que se sentou, soltando um fundo suspiro. Por fim saiu Filipe, também cansado, mas decidido a não repousar nem por um só segundo.
- Tenho a certeza de que aqueles homens nos vêm no encalço - afirmou ele. - Não temos, pois, um minuto a perder. Venham, meninas. Temos de conseguir chegar ao barco e afastar-nos antes que alguém se nos atravesse no caminho.
Estava a escurecer. Que quantidade de tempo eles deviam ter estado lá em baixo! Filipe ajudou as raparigas a levantar-se e encaminharam-se todos para a praia. O barco lá estava, graças a Deus.
- Eu não quero partir sem o João - lamuriou Maria da Luz, obstinadamente, com o coração a bater de ansiedade pelo seu querido irmão. Mas Filipe içou-a para dentro do barco sem mais delongas.
- Não há tempo a perder - disse ele. - Vamos. Nós mandaremos socorros a João logo que nos seja possível. Custa-me também suportar a ideia de o deixar para trás, mas tenho de vos pôr a salvo em lugar seguro antes de mais nada.
Dina pegou num par de remos e Filipe no outro. Em breve os dois levaram o barco rapidamente através das calmas águas do canal, até lá onde as vagas ribombavam com fragor de encontro aos recifes. Filipe sentiu-se tomado de enorme ansiedade. Uma coisa era atravessar o estreito, entre as rochas, em pleno dia, e outra, bem diferente, era fazê-lo quase de noite.
Ainda ouviu gritos, mas estavam já demasiadamente longe da praia para que pudesse distinguir-se aí quem quer que fosse. José e Gustavo, depois de terem trepado até à boca do poço, haviam corrido até à praia, onde se puseram à procura do barco.
Mas não havia lá nenhum. A maré estava a encher e não havia sequer uma marca deixada na areia que indicasse o sítio onde o barco estivera. De facto, quando as crianças lá chegaram, o barco quase que flutuava e tinha sido uma sorte que ele não se tivesse afastado sozinho.
- Não há cá nenhum barco-disse Gustavo. - Como é que os fedelhos cá chegaram? É singular. Eles devem ter-se escapado num barco, não podem estar ainda nos subterrâneos. É melhor fazermos sinais esta noite para mandar cá vir alguém. É preciso avisá-los de que uns miúdos deram connosco nos subterrâneos.
Voltaram para trás e desceram novamente ao poço, sem suspeitar de que uma das crianças continuava perdida nas minas. O pobre João lá andava ainda, a tentar encontrar uma saída num labirinto de túneis que lhe pareciam cada vez mais iguais uns aos outros.
Entretanto Filipe, Maria da Luz e Dina conseguiram, com grande sorte, encontrar a passagem através dos recifes. Na realidade foi o ouvido apurado de Maria da Luz que muito os ajudou. Ela ouviu o barulho forte das ondas a baterem nas rochas e o ouvido dela captou uma diminuição desse ruído. «É ali que deve existir a brecha», pensou ela, «visto que o barulho ali é menor». Segurando a cana do leme tentou encaminhar o barco para onde julgava ser a passagem e com tanta felicidade o fez que acertou, o barco deslizou pelo meio dos escolhos, roçando a quilha uma vez mais naquela rocha que quase vinha até à superfície e eis que se acharam em pleno mar, embalados pelo rolar das ondas.
Como conseguiu içar a vela naquela semiescuridão e levar o barco até ao seu destino foi coisa que Filipe nunca conseguiu explicar. Ele estava desesperado; era preciso que as raparigas chegassem sãs e salvas a casa e por isso meteu mãos à obra com < toda a coragem. Quando finalmente alcançou o ancoradouro sob] o rochedo não conseguiu sair do barco. Repentinamente os seu» : joelhos foram-se abaixo e não conseguia dar um passo.
- Tenho de esperar um ou dois minutos - disse ele para Dina. - Fraquejam-me as pernas, mas isto passa depressa.
- Tu foste extraordinariamente hábil - louvou Dina, palavras que, partindo dela, tinham um alto significado.
Amarraram finalmente o barco e encaminharam-se para casa. A tia Lena veio ter com eles à porta, imensamente assustada.
- Onde se meteram? Tenho estado tão preocupada por vossa causa que perdi a cabeça de aflição. Até me sinto mal.
Estava muito pálida e com ar de doente. Enquanto falava tartamudeou um pouco e Filipe correu para ela, amparando-a para que não caísse.
- Coitadinha da tia Lena - disse ele, levando-a para dentro com tanto jeito quanto lhe foi possível e ajudando-a a deitar-se sobre o sofá.
- Estamos tão pesarosos por termos feito com que se afligisse assim! Eu vou buscar água... não, Dina, vai tu.
Algum tempo depois a tia Lena disse que se sentia um pouco melhor, mas era evidente que estava doente. - Ela não aguenta abalos destes - explicou Dina, voltando-se para Maria da Luz. - Um dia em que Filipe quase caiu do alto do rochedo, ela esteve alguns dias doente. Estas coisas fazem-lhe mal ao coração e terei de ir metê-la na cama.
- Nem uma palavra sobre o desaparecimento de João - avisou Filipe em voz baixa. - Isto seria o bastante para lhe provocar um ataque de coração.
Dina levou a tia para cima, amparando-a o melhor que soube e Filipe foi à procura de Jau. Ainda não tinha voltado. Óptimo! Portanto não dera pela falta do barco. Olhou para Maria da Luz, que estava muito pálida, com uma expressão de cansaço nos olhos verdes. O rapazinho ficou cheio de pena dela.
- Que se há-de fazer quanto ao João? - perguntou Maria da Luz, com um soluço. - Temos de o ir salvar, Filipe.
- Bem sei - concordou aquele. - Bom... à tia Lena nada poderemos dizer... ao tio Renato seria o mesmo que nada e só se fôssemos idiotas contaríamos ao Jau. Portanto, parece-me que não nos resta senão o nosso amigo Jaime.
- Mas... tu disseste que era melhor não dizer ao Jaime que estávamos a par do segredo dele.
- Bem sei. Mas agora tem de ser, uma vez que João ficou sozinho na ilha. Jaime terá de lá ir dizer aos seus amigos que João é um compincha e ele se encarregará de o fazer voltar são e salvo. Portanto, não te apoquentes, Maria da Luz.
- Vais falar com ele já de seguida? - perguntou Maria da Luz, por entre lágrimas.
- Irei logo depois de ter comido alguma coisa - prometeu Filipe, que, de repente, se sentiu tão esfomeado que se achava capaz de comer um pão inteiro com meio quilo de manteiga e mais um frasco de compota. - Também devias comer alguma coisa, Maria da Luz, estás branca como a cal. Animo! João estará brevemente connosco e ainda havemos de nos fartar de conversar e rir a valer.
Dina voltou para baixo nesse momento e tratou de arranjar alguma coisa para comerem. Os pequenos estavam esfomeados, até mesmo a Maria da Luz. Dina concordou que o que tinham a fazer era ir ter com Jaime Smugs e conseguir que ele fosse em busca de João antes que os homens dessem com ele.
- Os mariolas devem estar tão furiosos por lhes termos escapado que são capazes de tratar mal o João - lembrou Dina, mas logo se arrependeu do que dissera. Luzinha ficara assustada a valer.
- Não sejas pateta - disse Filipe, levantando-se. Tu não serias capaz de atravessar os rochedos numa noite tão escura. Até podias despenhar-te lá em baixo. Bom... até logo. Não me demoro.
O rapaz meteu-se a caminho, pelo atalho que levava ao cume do rochedo, e foi à procura de Jaime.
Viu ao longe as luzes do carro de Jau, voltando para casa e ouviu distintamente o ruído do motor.
Apressou então o passo para não ser visto.
«O Jaime vai ficar espantado quando me vir», pensou ele. «Ficará intrigado, sem saber quem lhe bate à porta a uma hora tão tardia da noite».
Mas infelizmente Jaime não estava lá quando Filipe chegou à cabana. E agora, que havia de fazer?
UMA CONVERSA COM JAIME -E UM SOBRESSALTO.
Filipe ficou consternado. Não lhe tinha ocorrido a possibilidade de Jaime não estar em casa. Era terrível! Filipe sentou-se num banco e tentou pensar, mas estava tão cansado que se sentia incapaz de raciocinar.
«Que farei agora? Sim, que hei-de fazer?», pensava ele e parecia-lhe que de nada mais seria capaz de se lembrar. «Que farei eu agora?»
A pequena cabana estava às escuras. Filipe permanecia sentado no banco, com as mãos caídas entre os joelhos. Então, deu conta de qualquer coisa no fundo da cabana e voltou-se para examinar do que se tratava.
Com grande espanto viu uma luz vermelha que brilhava intensamente. Logo a seguir desapareceu, voltou a acender-se novamente, para se extinguir e tornar a reaparecer outra vez. E assim continuou durante alguns minutos, enquanto Filipe tentava pensar o que seria e por que razão estariam fazendo o que parecia serem sinais. Por fim, levantou-se e foi direito à luz. Esta era produzida por uma pequena lâmpada, ao lado do aparelho de telefonia. Filipe examinou-o. Experimentou alguns botões. Ouviu-se música vinda do aparelho quando mexeu num dos botões e um código em Morse seguiu-se-lhe quando ele experimentou um dos outros. Então, por acaso, reparou que por trás da telefonia havia um pequeno telefone, muito mais pequeno do que todos os outros que tinha visto até ali. «Dir-se-ia», pensou ele, «um telefone de algibeira».
Levantou-o do descanso e imediatamente ouviu uma voz. Levou o auscultador ao ouvido.
- Daqui Y2 - disse a voz. - Fala Y2. Daqui Y2.
Filipe escutava atónito. Então decidiu responder.
- Está lá! - disse. - Quem fala?
Houve um momento de silêncio. Y2, evidentemente, fosse ele quem fosse, estava surpreendido. Uma voz cautelosa ouviu-se então através do telefone.
- Quem fala daí?
- Um rapaz chamado Filipe Mannering - respondeu Filipe. - Eu vinha à procura de Jaime Smugs, mas ele não está cá.
- Quem? - perguntou a voz.
- Jaime Smugs. Mas ele não está - repetiu Filipe. - Mas, diga-me, quem fala daí? Quer deixar algum recado para Jaime? Creio que ele voltará dentro de pouco tempo.
- Há quanto tempo saiu ele? - perguntou Y2.
- Não sei - disse Filipe. - Espere... pareceu-me ouvir alguém. Aí está ele, julgo eu.
Com grande alegria pousou o telefone. Ouvira em baixo os passos de alguém que chegava, assobiando. Não podia deixar de ser Jaime.
Assim era. Entrou de lanterna em punho e ficou tão admirado de encontrar ali Filipe que estacou, sem dizer palavra.
- Estou tão contente por já ter voltado! Depressa! Está ao telefone uma pessoa que quer falar consigo. Diz que é Y2.
- Falaste com ele? - perguntou Jaime, com manifesta surpresa na voz. Pegou no auscultador e falou em frases curtas.
- Está Y2? Daqui L4.
A voz perguntava naturalmente agora quem era Filipe.
- Um rapaz que mora aqui perto - respondeu Jaime. - Que novidades há?
Daqui por diante tudo quanto Jaime disse foi: «Sim. Está claro. Depois lhe direi. Obrigado. Não, ainda nada. Adeus». Quando acabou de falar, voltou-se para Filipe.
- Ouve, meu rapaz - disse ele. - Tens de compreender de uma vez para sempre que, quando cá vieres e eu não estiver, não deves, sob qualquer pretexto, mexer nas minhas coisas nem interferir naquilo que só a mim diz respeito.
Nunca, até ali, Jaime lhe falara com tanta severidade. Filipe ficou sem pinga de sangue. Que diria Jaime quando soubesse que eles tinham descoberto o seu segredo? Então é que ele iria pensar que estavam a ser demasiadamente intrometidos.
- Desculpe, Jaime - disse Filipe desajeitadamente. - Eu não tinha a menor intenção de ser metediço.
- Porque vieste cá a estas horas da noite?
- Jaime, este lápis é seu? - perguntou Filipe, tirando do bolso o pequeno lápis amarelo. Esperava que, quando o visse, Jaime se lembrasse logo de que o tinha perdido no fundo das minas de cobre e adivinhasse, sem que Filipe dissesse mais nada, que as crianças estavam de posse do seu segredo.
- Sim, é meu. Mas não vais dizer-me que é para me entregar um lápis que me vens procurar a estas horas? Para que vieste tu cá, afinal?
- Oh, Jaime, não esteja zangado comigo - disse o pobre Filipe. - Sabe... nós conhecemos o seu segredo e sabemos o que está aqui a fazer. Sabemos a razão porque vai à ilha... sabemos tudo.
Jaime escutava isto tudo, boquiaberto, como se não pudesse acreditar no que ouvia. Olhava para Filipe com os olhos semi-cerrados, o sobrolho carregado, e a sua boca tomou a forma de uma linha. Por um momento a sua cara metia medo.
- Tu vais dizer-me imediatamente o que queres dizer com tudo isso - trovejou, com uma voz apavorante. - Que história é essa do meu segredo? E o que é esse tudo que vocês sabem?
- Bem - disse Filipe, desesperadamente. - Nós sabemos que, com os seus amigos, tenta explorar novamente as minas de cobre e que veio para cá com o barco e o carro para levar comida aos seus amigos e para trazer o cobre que eles forem encontrando. Sabemos que esteve no fundo das minas, a falar com os homens, sabemos que nos deu um nome falso... Mas, por quem é, Jaime, não julgue que alguma vez pensámos em denunciá-lo... Desejamos até que consiga toneladas e toneladas de cobre.
Jaime ouvia ainda de cara franzida, mas à medida que Filipe ia falando os olhos retomavam a sua habitual vivacidade e a sua cara voltava a ter a expressão do Jaime que Filipe tão bem conhecia.
- Bem, bem, com que então vocês sabem todas essas coisas? E que mais sabem? Como conseguiram chegar à ilha? Não no meu barco, espero.
- Não - respondeu Filipe, aliviado por lhe ver novamente uma expressão amiga. Levámos o de Jau, que tinha ido às compras. Fomos logo direitos às minas, onde encontrámos o seu lápis. Mas não gostamos dos seus amigos que lá estão. Eles prenderam-nos, são horríveis, e mesmo quando lhes falámos em si, dizendo que éramos seus amigos, responderam que não o conheciam, e não nos queriam deixar vir embora.
- Vocês disseram que conheciam o Jaime Smugs? - perguntou este. Filipe acenou com a cabeça afirmativamente.
- Que homens viram lá? - A voz de Jaime tornara-se outra vez áspera e fazia as perguntas de maneira ríspida e cortante.
- Vimos dois, um chamado José e outro Gustavo - informou Filipe. Jaime tomou nota no seu livro de apontamentos. - Como eram eles?
- Eram... mas o Jaime deve conhecê-los - respondeu Filipe, admirado. - Além disso, eu não pude observá-los muito bem; umas vezes estava quase às escuras e outras vezes a luz encandeava-me a vista. Vi só que o José era alto e moreno e tinha um dos olhos tapado por uma venda, e é tudo. Mas o Jaime sabe com certeza melhor do que eu como é que eles são.
- Viram alguém ou alguma coisa mais? - perguntou Jaime. Filipe abanou a cabeça. - Não. Ouvimos outros mineiros a trabalhar, fazendo um terrível e matraqueante barulho. Como sabe, devem ter encontrado uma parte da mina ainda rica em cobre. Jaime, tem sido encontrado muito cobre? Irá ficar rico?
- Ouve lá, tu não vieste aqui esta noite para me contar isto - disse Jaime, subitamente. - Que vieste cá fazer?
- Eu vim para lhe dizer que embora Dina, Maria da Luz e eu tivéssemos conseguido escapar, enganando José, fomos obrigados a deixar João e a Didi para trás. E estamos muito aflitos por causa dele. Bem vê, ele pode muito bem ficar perdido para sempre naqueles subterrâneos por baixo do mar. Ou, então, pode ser apanhado por aqueles seus amigos, que o vão tratar mal porque devem estar fulos de raiva por lhes termos pregado aquela peça.
- João ficou lá? Na ilha? No fundo das minas? - perguntou Jaime, com expressão extraordinariamente preocupada. -Meu Deus, mas isso é muito sério! Porque não começaste por me dizer isso? Com a breca, ou eu me engano muito ou vocês deitaram tudo a perder!
Jaime mostrava-se descontente e perturbado. Dirigiu-se para o aparelho de rádio, mexeu nos botões e, com grande admiração de Filipe, começou a falar, com sons curtos e agudos, uma língua que o rapaz não entendia.
«É tanto aparelho receptor como transmissor», pensou Filipe. «Isto tudo é assaz misterioso. Com quem está o Jaime a falar? Terão todos eles o mesmo patrão que dirige a exploração das minas de cobre? Deve haver grandes dinheiros neste negócio. Que sensaboria se deitámos realmente tudo a perder. Que quereria Jaime dizer? Como poderíamos nós ter-lhe estragado tudo? Ele não tem mais do que ir à ilha falar aos comparsas e dizer-lhes que soltem João e está tudo acabado. Devia saber que pode confiar em nós quanto a não darmos com a língua nos dentes».
Jaime voltou-se por fim. - Temos de ir buscar o barco imediatamente - declarou ele. - Vamos embora!
Com as lanternas eléctricas a iluminar-lhes o caminho, dirigiram-se para o barco. Jaime começara a arrastá-lo para fora quando soltou uma exclamação tão forte que quase fez o coração de Filipe saltar-lhe do peito.
- Quem terá feito isto?
Jaime dirigiu o foco da lanterna para o interior do barco e Filipe viu, com consternação e horror, que alguém tinha perversamente arrombado o fundo do barco de tal maneira que a água entrava a jorros através dos vários rombos.
Jaime arrastou novamente o barco para a praia com uma cara carrancuda. - Sabes alguma coisa acerca disto? - pergguntou a Filipe.
- Claro que não. Quem poderia ter sido? Que coisa horrível!
- Bem, o barco não pode ser utilizado antes de ser reparado - continuou Jaime. - Mas é necessário chegar à ilha das Trevas de qualquer maneira. Teremos de ir no barco de Jau. Vamos. Mas, cautela, é preciso que ele de nada desconfie. Já se sabe de mais a este respeito, já há gente também de mais metida nisto.
Iniciaram então a caminhada por sobre os rochedos, mas o pobre Filipe estava tão cansado que mal podia acompanhar o andar de Jaime. Chegaram à Casa do Penhasco, desceram o atalho na falésia e encaminharam-se para o local onde costumava estar amarrado o barco de Jau.
Mas, com enorme desgosto e desespero, verificaram que o barco não estava lá. Havia desaparecido!
OUTRA PASSAGEM SECRETA
Depois de Filipe sair, Maria da Luz e Dina tentaram Pegar cada uma na sua costura e dar alguns pontos, mas as mãos de Maria da Luz tremiam tanto que só conseguiu picar os dedos.
- É melhor eu ir ter com o tio Renato e dizer-lhe que a tia Lena foi deitar-se por se sentir adoentada - declarou Dina. - Anda daí, Luzinha.
As duas raparigas dirigiram-se ao escritório, bateram à porta, entraram, e Dina contou ao tio o que se passava a resPeito da tia. Ele acenava com a cabeça, parecendo nem sequer ouVir.
- Tio Renato - disse Dina -, tem por acaso mais algum mapa da ilha das Trevas ou algum livro a tal respeito?
- Não - respondeu o tio. - Mas espera, parece-me que há um livro acerca desta Casa do Penhasco. Sabias que isto foi um centro de transacções ilícitas e secretas há uns dois ou três séculos atrás? Julgo até que havia uma passagem para a praia.
- E há - confessou Dina. - Nós conhecemo-la.
O tio Renato ficou muito excitado e fê-la contar tudo o que sabia a respeito da passagem.
- Quem diria! - murmurou ele. - Eu pensava que estivesse há muito soterrada. Mas estas passagens secretas, cavadas na rocha, conservam-se anos e anos. No entanto, penso que aquela que, por baixo do mar, ia até à ilha das Trevas deve estar coberta de água há muito tempo.
As raparigas olharam fixamente o velhote com grande espanto. Finalmente, Dina conseguiu falar.
- Tio Renato, quer dizer que havia uma outra passagem secreta desde aqui, por baixo do mar, até à ilha? Como é Possível sendo uma tão grande distância?
- Pelo menos diz-se que havia - declarou o tio. - Aquele livro diz qualquer coisa a esse respeito. Agora, por isso, onde pára ele?
As raparigas esperaram com a maior ansiedade até que o tio Renato o encontrou finalmente. Dina quase lho arrancou
das mãos.
- Obrigada, tio - disse ela e, antes que ele a proibisse de o levar dali, desapareceram as duas, em grande velocidade, pela porta da sala de estar. Outra passagem... e desta vez indo dar mesmo à ilha! Fantástico! Com certeza que o tio Renato estava enganado.
- No entanto, é bastante provável que seja assim - admitiu Dina, excitada. - Eu sei que esta costa está crivada de túneis e passagens, e é até bastante conhecida por essa razão. Algumas regiões são, assim, notáveis, como sabes. Naturalmente, a passagem está ligada às minas que se estendem mesmo por baixo do leito do mar. É uma extensão de quilómetros, como vimos.
Abriram então o curioso livro antigo. Não conseguiram ler o que estava impresso, em parte porque a tinta tinha quase desaparecido e também a forma das letras, diferente da usual, lhes era desconhecida. Folhearam-no página por página em busca de mapas ou gravuras.
O livro era aparentemente a história da Casa do Penhasco, que datava de há centenas de anos. Noutros tempos devia ter sido quase um castelo, fortemente edificado sobre um penhasco rochoso, tendo o mar a defendê-lo pela frente e o rochedo pela retaguarda. Agora, claro, estava meio em ruínas e a família vivia apenas na parte da casa ainda em condições de poder ser habitada.
- Repara, Luzinha - disse Dina, apontando para um estranho e velho mapa. - A Casa do Penhasco era assim nos tempos idos. Que casa soberba! Olha para estas torres... e que bela fachada tinha!
E foram virando as páginas até que chegaram a uma com uma espécie de diagrama desenhado. As raparigas estudaram-no com cuidado. Então, Maria da Luz soltou uma exclamação.
- Eu sei o que é isto... é a passagem secreta, desde as caves da casa até à praia. Não é?
Assim era de facto. Sobre isso não restavam dúvidas. As raparigas sentiram-se entusiasmadas. Talvez que o livro mostrasse a outra passagem também.
Havia mais dois ou três mapas-diagramas, alguns tão desbotados que se tornava impossível decifrar o que representavam. Dina deu um suspiro.
- Quem me dera saber esta escrita antiga. Se conseguisse decifrar isto poderia saber se algum destes mapas representa ou não a outra passagem secreta, a que vai dar à ilha. Que coisa magnífica seria o seu descobrimento, emocionante a valer! O que irão os rapazes dizer quando lhes contarmos que existe um caminho para a ilha por baixo do mar?
Isto fez com que Maria da Luz pensasse em João e uma expressão preocupada tomou-lhe outra vez o rosto. Onde estaria o irmão? Teria Filipe encontrado Jaime Smugs e ido com ele no barco à procura de João? Estariam naquela altura já de volta, trazendo-o são e salvo?
Enquanto assim pensava, ouviu a voz de Filipe no corredor que dava para a sala de estar. Levantou-se de um salto. Seria possível, Jaime e Filipe já de volta, trazendo João com eles? Que depressa tinham vindo! Correu para a porta cheia de alegria.
Mas na sua frente apenas se encontravam Filipe e Jaime... sem João.
- Onde está o João? Não o foram procurar? Onde está ele?
- Alguém inutilizou o barco de Jaime - explicou Filipe, entrando na sala. - Fomos a seguir procurar o de Jau, mas não estava no ancoradouro. Naturalmente Jau anda a fazer uma das suas pescarias nocturnas. Estamos, portanto, encravados... sem saber que fazer.
As raparigas olharam-nos com desalento. Sem barco não havia processo de ir em busca do pobre João! Os olhos de Maria da Luz encheram-se de lágrimas ao pensar no irmão, perdido nas galerias sem fim, no meio daqueles homens perigosos, prontos a agarrá-lo para o prender. Sentia algum conforto, lembrando-se que a Didi estava com ele.
- É verdade, Filipe - exclamou Dina, lembrando-se de repente. - Sabes o que nos disse o tio Renato esta noite? Que havia um túnel subterrâneo por baixo do mar que ia dar às minas de cobre da ilha! Ele também sabia da existência da outra passagem secreta, mas julgava que já não estivesse em estado de ser usada, e ficou muito admirado de que assim não fosse. Filipe, achas que o túnel que vai dar à ilha ainda estará transi-tável? Terá sido inundado pelo mar ou terá abatido? Ah, como eu desejava que fôssemos capazes de descobrir tudo isso!
Jaime mostrara-se subitamente atento e interessado, agarrando imediatamente o livro que Dina segurava. - Este livro antigo diz respeito a esta casa? - perguntou ele, ao que Dina assentiu com a cabeça.
- E vem aí marcada a nossa passagem secreta, aquela que nós descobrimos sozinhos, e calculo que a outra também aí esteja, mas não conseguimos perceber os mapas nem os caracteres antigos.
- Mas percebo eu - disse Jaime, e embrenhou-se logo na decifração do livro, voltando as páginas lentamente, saltando duas ou três de vez em quando, à procura de pormenores sobre o caminho que levava à ilha das Trevas.
Repentinamente começou a ficar excitado e a folhear o livro mais precipitadamente. Examinou primeiro um mapa, com muita atenção, e depois o outro. A seguir fez uma estranha pergunta:
- Qual é a profundidade do vosso poço?
- O nosso poço? - perguntou Filipe, admirado. - Ui! É fundíssimo, mais ou menos como o da mina lá na ilha, quer-me parecer. Vai mais abaixo que o nível do mar, mas a água não é salgada, evidentemente.
- Ora escutem - disse Jaime, ao mesmo tempo que, em linguagem bem corrente, ia lendo algumas das anotações, para que os pequenos percebessem. A seguir voltou a um dos mapas onde se via o corte de um poço profundo, penetrando pela terra dentro. - Vêem? - indicou Jaime. - A passagem que vai ter à ilha parte do fundo do vosso poço. Era, aliás, perfeitament natural que assim fosse e eu próprio teria chegado a essa conclusão se tivesse reflectido sobre o assunto. A possibilidade de poder ir por baixo do mar até às minas só pode admitir-se forçosamente por uma estrada abaixo do nível do mar, e o único ponto nessas condições aqui é o poço, claro está!
- Caspité! - disseram as crianças a um tempo. - O poço'
- Nem por sombras lhes tinha passado pela ideia. Que extraorDinário que aquilo era!
- Mas... o poço tem água no fundo - observou Filipe
- Não pode passar-se através da água.
- Pois não; mas olha - indicou Jaime Smugs, apontando para o mapa. A entrada para a passagem é acima da linha de água do poço. Vês? Isto devem ser degraus, se bem me parece, cavados numa entrada na parede do poço, subindo ligeiramente até à passagem que atravessa a própria rocha. Uma passagem natural, se não me engano, tal como tantas outras ao longo desta costa, que alguém descobriu e seguiu e que, com o auxílio de picaretas e pólvora, transformou numa passagem transitável.
- Já percebo - admitiu Filipe, interessadíssimo. - Provavelmente quando cavaram o poço alguém deu pelas galerias nas profundezas, explorou-as e descobriu uma espécie de subterrâneo natural. E, tal como o Jaime diz, seguiu-a e passou a fazer uso dela. Jaime, vamos nós lá abaixo ver se realmente é assim.
- Mas não agora, a meio da noite - respondeu Jaime prontamente. - Vocês já tiveram hoje aventuras de sobra., vamos mas é deitar-nos.
- Mas... e o João? - perguntou Maria da Luz com os olhos verdes muito abertos, revelando a ansiosa inquietação em que estava.
- Esta noite nada poderemos fazer- declarou Jaime suave mas firmemente. - De qualquer modo, se o apanharam ja está apanhado, e se não foi, tentaremos ir amanhã em seu auxílio. Mas não é a estas horas da noite que vamos descer ao poço dentro de um balde. Portanto, teremos de aguardar.
Esta noite durmo contigo no quarto da torre.
Filipe ficou satisfeito; não lhe agradava a solidão naquela noite. As raparigas tiveram de ir para a cama, apesar de protestarem, afirmando que não se sentiam cansadas, e Filipe subiu com Jaime pela escada de caracol para o pequeno e invulgar quarto da torre. Uma vez ali, indicou a Jaime qual a janela de onde, de vez em quando, se avistava a ilha.
Sentou-se depois na cama para tirar os sapatos, mas o seu cansaço era tal que só o esforço de alargar os atacadores foi suficiente para o prostrar. Caiu sobre o colchão, fechou os olhos e mergulhou num sono profundo, completamente vestido, como estava. Jaime olhou para ele e sorriu-se. Estendeu-lhe o cobertor por cima e em seguida encostou-se à janela a pensar. Acendeu um cigarro e deixou-se ficar por largo tempo a reflectir.
O dia seguinte lhes diria se ainda haveria ou não um caminho da Casa do Penhasco até à ilha. Jaime estava convencido de que já não existia. Era certo que a outra passagem se conservava ainda, mas a verdade é que esta era minúscula comparada com a passagem em questão, a qual tinha o mar a desgastá-la durante muitos e muitos anos. Uma brecha, um fio de agua a infiltrar-se e a passagem estaria inundada em poucas semanas. Então ficaria impraticável.
Por fim, Jaime estendeu-se ao lado do rapaz adormecido e mergulhou por sua vez em profundo sono. Foi Filipe quem o acordou, aos safanões.
**Jaime! Já é manhã! Vamos ao pequeno-almoço para tentarmos depois a passagem do poço. Despache-se!
Depressa chegaram cá abaixo, encontrando já ali as raparigas,à cozinhar presunto com ovos para o pequeno-almoço.
- Que é feito de Jau? - perguntou Filipe, surpreendido.
- Ainda não voltou da pesca - respondeu Dina, enquanto tirava um ovo estrelado da frigideira. - Aqui tem, Jaime. Agora vou fazer um para ti, Filipe. Ainda bem que Jau não está de volta ainda, senão havia de ficar intrigadíssimo com a presença de Jaime cá em casa. Pensaria de certo que era muitíssimo suspeito.
- Ele pode aparecer aí de um momento para o outro - lembrou Maria da Luz. - Portanto, é melhor apressarmo-nos antes que ele chegue. Não me agradaria nada vê-lo rondar a boca do poço enquanto nós andássemos em explorações lá por baixo.
Acabaram com a refeição rapidamente. Dina já tinha ido ao quarto da tia levar-lhe alguma coisa, como ao escritório do tio. Segundo ela, a tia Lena afirmara estar a sentir-se um pouco melhor, pensando até em se levantar mais tarde; quanto ao tio Renato, Dina iria jurar que se não deitara.
- Realmente, eu acredito que ele trabalha durante toda a noite - disse Dina. - Mas, vamos a saber, já todos acabaram de comer? A louça ficará por lavar até voltarmos.
Dirigiram-se todos para um pequeno pátio que ficava nas traseiras da casa, apoiado na parte escarpada do rochedo. Jaime inclinou-se sobre a borda do poço. Era de facto muito, muitíssimo profundo.
- Vamos descer dentro do balde? - perguntou Filipe.
- Talvez pudéssemos, se houvesse um suficientemente grande
- disse Dina. - Mas não caberemos de maneira alguma neste, nem sequer a Maria da Luz.
- Sabem - disse Jaime, tirando a sua enorme lanterna do bolso -, eu penso que se este poço é realmente o único caminho para a entrada da passagem que vai dar à ilha devia haver uma escada. Não estou a ver gente subindo e descendo dentro de baldes.
- Bem, escada não há - disse Filipe, senão eu já tinha dado por ela.
Jaime iluminou as paredes do poço com a lanterna, examinando-as cuidadosamente. - Olha - disse para Filipe. - Não há de facto qualquer escada, mas vês aquelas peças de ferro cravadas na parede, ali em baixo? Aquilo é que foi posto ali para apoiar quem quer que quisesse descer a este poço, servindo como degraus. Agarravam-se com as mãos ao ferro de cima e desciam pouco a pouco tenteando com o pé o degrau seguinte.
- Claro! - disse Filipe, com entusiasmo. - Tem razão, Jaime. Era essa a forma usada para descer aos poços noutros tempos. Aposto em como quando havia lutas por estes sítios muitos devem ter-se servido deste poço como refúgio, mesmo desconhecendo a existência da passagem lá ao fundo. Vamos, Jaime. Vamos a isto. Estou em ânsias por começar a descida.
- Bom, é tempo de partirmos. Vamos então - disse Jaime.
- Eu vou na frente. Vigia a chegada de Jau, Dina.
UMA VIAGEM POR BAIXO DO MAR.
Jaime não conseguia chegar aos primeiros degraus de ferro. Filipe teve de ir buscar uma corda, que foi atada fortemente a um varão de ferro do muro do poço. Jaime, deixando-se escorregar por ela, pôde então colocar os pés no primeiro dos degraus.
- Eu vou bem - disse ele. - Tu vem logo que possas, Filipe. Deixa-me descer primeiro mais alguns degraus, mas, por amor de Deus, vê lá se não escorregas.
As raparigas ficaram. Na verdade, só de pensarem que teriam de descer a um poço profundo, escuro e húmido, tendo por único apoio para as mãos e para os pés apenas os ferros cravados nas paredes, era suficiente para as aterrar, e ao verem os dois desaparecer no escuro não puderam deixar de estremecer.
- É duro ter-se ficado para trás mas, francamente, acho mais duro ainda ter de descer por ali abaixo - comentou Dina. - Anda daí. Já que os não podemos ver nem ouvir, é melhor voltarmos para a cozinha e fazer qualquer coisa que seja preciso. Muito se demora o Jau!
Voltaram para casa, tentando imaginar como Jaime e Filipe iriam progredindo na descida. Estes iam devagar mas com segurança; os varões cravados no muro pareciam estar tão firmes como quando os haviam ali colocado.
Era um árduo empreendimento aquele, que teria mesmo sido impossível levar a cabo se não fosse a existência inesperada de umas plataformas de descanso cavadas de vez em quando na parede do muro. A primeira que apareceu deixou Jaime intrigado até que percebeu o que aquilo era.
Tratava-se de uma espécie de nicho, na parede do poço, com uma profundidade suficiente para uma pessoa entrar e descansar.
A princípio, Jaime quase pensara que seria aí a entrada da passagem e surpreendeu-o que a tivesse alcançado tão depressa. Mas depressa compreendeu qual a utilidade de tais reintrâncias e, bem-dizendo tão engenhosa ideia, aí descansou por alguns momentos. Foi a seguir a vez de Filipe descansar também, enquanto Jaime prosseguia na descida, procurando com o pé o contacto do degrau seguinte.
Pareceu-lhe um tempo imenso aquele que gastaram na descida e realmente levou-lhes cerca de uma hora. Utilizaram-se de todos os nichos de descanso, mas, apesar disso, sentiam-se exaustos. Subitamente, a luz da lanterna que Jaime levava presa ao cinto cintilou na água escura. Haviam chegado ao fundo.
- Cá estamos! - gritou Jaime para cima. - Vou agora ver se dou com a entrada.
Foi fácil encontrá-la, porque estava logo ali, na parede do poço, uma brecha arredondada, como que um pequeno túnel. Jaime enfiou lá para dentro. Era viscoso, escuro e mal cheiroso.
«É notável como o ar se conserva fresco», pensou Jaime. «Mas durante toda a descida do poço senti uma aragem soprando à minha roda; deve haver portanto qualquer espécie de sistema de correntes de ar que o vai renovando.
Esperou por Filipe e depois partiram através do que devia seguramente ser uma das mais estranhas vias do mundo: um caminho por baixo do leito do próprio mar. De começo, o túnel era estreito e ligeiramente a subir, tendo mesmo alguns degraus, e os dois tiveram de se baixar para poder prosseguir na marcha. Mas, depois de um bocado andado, alargava-se e tinha mais altura. Continuava a ser viscoso e bafiento, mas já ambos se tinham habituado ao ambiente.
A passagem começou então a descer abruptamente, por vezes com acentuado declive. Havia toscos degraus nas partes de maior inclinação, de forma a permitir um caminhar menos escorregadio, mas estavam tão viscosos que até um cabrito montês teria escorregado. Jaime caiu com um baque, quase imediatamente seguido de Filipe.
- Tira o teu pé de cima do meu pescoço - gritou Jaime, tentando levantar-se. - Não há dúvida de que devo estar lindo!
Lá foram andando, andando sempre. A certa altura a passagem deixou de descer e tornou-se plana. Era inteiramente constituida por rocha dura; não havia terra nem areia, nem calcário - simplesmente rocha muito negra, com estranhos reflexos a rebrilhar aqui e além.
Uma vez por outra, o túnel estreitava tanto que se tornava extremamente difícil o acesso. - Ainda bem que não somos gordos - disse Filipe, encolhendo o estômago para poder passar. - Apre, que isto é apertado! Ter-se-ão as rochas aproximado neste sítio com o decorrer dos anos ou acha que a passagem tenha sido sempre assim estreita?
- Parece-me que deve ter sido sempre assim - respondeu Jaime. - Isto é uma fenda absolutamente natural do leito rochoso por baixo do mar. É extraordinária; apesar de eu já ter ouvido falar de outras como esta em diferentes partes do mundo tenho a impressão de que nesta costa há muitas mais.
Na passagem o calor apertava. Às vezes, o ar era difícil de respirar e tanto o homem como o rapazinho se sentiam meio abafados; dir-se-ia existirem bolsas de vácuo. Mas os dois seguiam sempre para a frente, com o clarão das lanternas reflectindo-se nas paredes viscosas e escuras nas quais reluziam, aqui e além, estranhas fosforescências. Filipe tinha a sensação de que estava a sonhar, impressão que comunicou ao seu companheiro.
- Bem, mas não estás - respondeu-lhe a voz tranquila de Jaime. - Estamos num estranho lugar, mas perfeitamente real. Isto nada tem de sonho. Queres que te dê um beliscão?
- Talvez seja boa ideia - respondeu Filipe, que realmente se sentia bastante confuso e tonto, depois de tanto tempo metido naquele corredor escuro e estreito. Jaime beliscou-o tão fortemente que Filipe deu um berro.
- Basta! - Já estou bem acordado e não a sonhar. Ninguém se lembraria de sonhar com tamanho beliscão.
De repente, Jaime sentiu qualquer coisa passar-lhe por cima dos pés; olhou para baixo muito admirado, apontando ao mesmo tempo para o chão o foco da sua lanterna. Com grande surpresa viu um ratito, que o olhava admirado. Jaime estacou estupefacto.
- Ora esta! - exclamou ele. - Um rato! Um rato aqui! De que viverá ele? Que coisa inacreditável! Nunca poderia supor que algum animal pudesse viver cá tão em baixo, nesta passagem sob o mar.
Filipe riu-se. - Ora! Isso é apenas o Bigodes, o meu ratito predilecto. Deve ter-me fugido da manga e saltado para fora.
- Pois é melhor que volte a saltar para dentro dela se tem amor à pele - comentou Jaime. - Nenhum animal sobreviveria aqui por muito tempo.
- Ele voltará quando lhe apetecer - opinou Filipe. - Nunca me abandona por muito tempo.
Por duas ou três vezes pararam para descansar porque o caminho era árduo e difícil. Seguia durante um certo tempo a direito e, de repente, por espaços, descrevia sucessivos ângulos rectos para seguidamente voltar a ir de novo a direito. Filipe começou a conjecturar quanto tempo mais durariam as pilhas da sua lanterna. De súbito, sentiu-se assustado com a ideia de poder ficar às escuras. E se a lanterna de Jaime se esgotasse também?
Mas Jaime sossegou-o. - Tenho outra pilha aqui no bolso - disse ele. - Portanto, não te aflijas. Não há novidade. E, a propósito, lembro-me agora de que trouxe comigo um pacote de rebuçados. Com certeza que esta terrível jornada se tornaria mais suportável se fôssemos trincando um ou dois.
Houve um descanso enquanto Jaime procurava nos bolsos. Encontrou os rebuçados e logo ambos começaram a chupar com entusiasmo. «Não havia dúvida de que tudo parecia mais fácil quando se tinha na boca um enorme e saboroso rebuçado», pensava Filipe.
- Quanto acha que já andámos, Jaime? Metade do caminho?
- Não sei dizer-te - respondeu Jaime. - Olá! Mas que é isto aqui?
Parou e dirigiu em frente o foco da lanterna.
O caminho parecia estar bloqueado. - Esta agora! - Provavelmente foi o tecto que abateu. Se assim é estamos prontos. Nem sequer trazemos qualquer coisa que nos ajude a desobstruir isto.
Mas, com grande alívio, verificaram que a derrocada era pequena e, com as forças combinadas de ambos, a rocha maior que lhes cortava o caminho foi removida para um dos lados e puderam prosseguir.
- Jaime, já reparou que as rochas estão a mudar de cor? - fez notar Filipe, depois de muito caminharem às apalpadelas ao longo do túnel. - Já não são pretas, mas encarniçadas. Parece-lhe que isso quererá dizer que estamos perto das minas?
- Provavelmente estaremos - admitiu Jaime. - O que é bastante prometedor. Não sei há quantas horas aqui andamos metidos, mas já me parecem um século. Já vai sendo tempo de nos irmos aproximando dessa maldita ilha.
- Ainda bem que comemos bem ao pequeno-almoço - lembrou Filipe -, mas, mesmo assim, já começo a sentir-me esfomeado outra vez. Foi pena não termos trazido connosco alguma coisa de comer.
- Eu trouxe uma boa porção de chocolate - animou-o Jaime. - Dou-te já algum se é que ainda não se derreteu. Está tão quente cá em baixo que não me admiraria nada.
E estava, de facto, muito mole, mas não se tinha derretido. Era um belo chocolate. Levemente amargo, mas realmente delicioso para o esfaimado rapaz. Ele ia seguindo aquele monótono caminho, sentindo as paredes viscosas, onde luziam de quando em quando reflexos acobreados e imaginando quanto lhes faltaria ainda para chegar ao fim.
- Trouxeste por acaso o mapa contigo? - exclamou Jaime, subitamente. - Esqueci-me de recomendar-te que o trouxesses porque em breve teremos necessidade dele.
- Trouxe, vem no meu bolso - respondeu Filipe. - Olhe... a passagem está a alargar-se enormemente!
Assim era. Desembocava-se subitamente num enorme espaço aberto que era evidentemente o término das minas.
«Devia ter sido ali que o cobre se havia esgotado», pensou Filipe. «Que grandes minas devem ter sido e ao mesmo tempo que ricas!»
- Bem, chegámos finalmente - disse Jaime em voz baixa. - Não te esqueças de que daqui em diante é preciso evitar todo o barulho, Filipe. Temos de tentar encontrar João, se possível for, sem atrairmos as atenções.
Filipe estava espantado. - Mas, Jaime - perguntou ele -, porque não vai ter onde os seus amigos estão a trabalhar e não lhes pergunta onde está o Pintinhas? Para que andar com pezinhos de lã e bico calado? Não consigo perceber.
- Eu cá tenho as minhas razões - respondeu Jaime -, e ainda que as desconheças, peço-te que as respeites, Filipe. Vamos, passa para cá o mapa.
Filipe tirou-o da algibeira. Jaime pegou nele e abriu-o sobre uma rocha plana, fez incidir a luz da sua lanterna sobre ele e estudou-o cuidadosamente. Por fim apontou para determinado sítio.
- Olha - indicou ele. - Aqui está o local onde nos encontramos, vês? Mesmo no extremo das escavações. Isto que parte daqui parece-me ser o princípio da passagem submarina, mas não tenho a certeza. Agora, diz-me, por qual destas muitas galerias tomaram vocês quando vieram à ilha e desceram à mina?
- Bom, aqui é o poço por onde descemos - indicou Filipe, apontando para o sítio onde ele estava representado no mapa. - E este é o caminho principal que seguimos; cá está a cave iluminada. Foi por estas alturas que ouvimos o matraquear e o ruído dos homens a trabalhar.
- Belo - disse Jaime, satisfeito. - Tenho já uma ideia bem clara do sítio por onde iremos agora. Tão silenciosamente quanto nos for possível, dirigimo-nos para a galeria principal e veremos se poderemos localizar João em qualquer sítio, ou pelo menos ouvi-lo.
Caminharam com as maiores precauções pela passagem principal, à qual muitas outras galerias laterais vinham dar. Jaime colocou os dedos diante da lanterna para que não passasse luz de mais. Ainda não estavam perto da gruta onde as crianças tinham visto a luz brilhante e ouvido os ruídos, mas Filipe sabia que lá haviam de chegar, mais tarde ou mais cedo.
- Pst! - fez Jaime, estacando tão bruscamente que Filipe foi esbarrar nele. - Ouvi qualquer coisa. Pareciam passos.
Quietos, escutaram. Era terrível estar ali parado, envolto em completa escuridão, a ouvir o ruído das águas movendo-se sem parar sobre o leito rochoso do mar por cima das suas cabeças. Também Filipe teve a impressão de ouvir qualquer rumor como que de alguém cujo pé tropeçasse numa pedra solta.
Seguiu-se então completo silêncio. Começaram a andar novamente e uma vez mais lhes pareceu terem ouvido um ruído, agora mais próximo. Jaime iria jurar que ouvia a respiração de alguém ali muito próximo. Conteve a respiração, à escuta.
Mas provavelmente essa outra pessoa que estava escondida continha também a sua porque Jaime nada mais conseguiu ouvir. Era assustador. Deu mais alguns passos, seguido de Filipe.
Chegaram de repente a uma curva e Jaime contornou-a às apalpadelas, uma vez que as lanternas tinham sido apagadas logo que tinham ouvido o ruído. Quando Jaime, depois, procurou a parede alguém a alcançou ao mesmo tempo, vindo do lado oposto, e antes que Filipe percebesse o que se passava, ouviu fortes imprecações e sentiu que Jaime lutava violentamente» corpo a corpo, com alguém mesmo na sua frente. Demónio, o que estaria a passar-se agora?
UMA DESCOBERTA EXTRAORDINÁRIA.
Entretanto, que tinha acontecido a João e à Didi? Variadas coisas e algumas delas espantosas e inacreditáveis.
João não tivera conhecimento de que os outros tinham escapado... De facto, ele nem sequer chegara a saber que eles tinham sido aprisionados. Seguira atrás da catatua e perdera-se. Os homens, como nós sabemos, tinham ouvido os gritos da Didi, algumas horas depois, quando iam em perseguição de Filipe e das raparigas, mas tinham tomado por outra passagem e não os tinham apanhado.
Assim, para ali andava o pobre João, perdido e aterrado com a desolada Didi bem aferrada com as unhas ao seu ombro. O rapaz vagueou naquele labirinto de galerias, topando sempre com mais e mais velhos túneis e passagens abandonadas. Estava receoso de que a pilha da lanterna se acabasse, estava cheio de medo de uma infinidade de coisas.
«Posso ficar aqui perdido para sempre», pensou. «Talvez esteja a muitos quilómetros da passagem principal».
Encontrou-se de repente num sítio onde o tecto estava furado e concluiu que se encontrava sob outro poço. «Claro, havia uma quantidade deles», pensou João, com o coração em alvoroço. «Agora felizmente poderei trepar e alcançar o ar livre.
Mas, com grande desapontamento, verificou que não havia processo de se içar até à boca do poço. Escada ou corda, ou fosse o que fosse que tivesse existido ali, tinha apodrecido ou caído e não havia processo algum de aproveitar aquela saída.
Era terrível estar ali no fundo, sabendo que lá em cima estava a liberdade, a luz do dia e o ar puro, e sem ter meio de os alcançar.
«Se eu fosse uma rapariga, começava já para aqui a chorar», disse João em voz alta, suspeitando de que qualquer coisa parecida com lágrimas lhe chegara aos olhos. «Mas como sou rapaz só me resta sorrir e aguentar».
Esforçou-se por sorrir. A Didi ouvira as poucas palavras com a cabeça descaída para o lado.
«Põe a chaleira ao lume», fez ela, com voz afectuosa. Isto fez com que João sorrisse com gosto.
«És uma pateta», disse ele com meiguice. O caso agora é saber para onde devo seguir. Provavelmente percorro sempre as mesmas passagens, sem nunca avançar. Mas, espera, os poços estão todos situados na ilha, portanto devo ter voltado para trás de qualquer modo porque, a certa altura, nós estávamos todos debaixo do leito do mar. Tanto quanto me lembro todos os poços vão dar ao túnel mais ou menos a direito. Vou tomar por aqui a ver se, por sorte, alcanço o poço principal. Se assim for poderei subir por ele.
João continuou às apalpadelas e foi ter a uma parte bloqueada, impossível de transpor. Teve, portanto, de retroceder um bocado e recomeçou para ir dar apenas a um ponto em que o tecto havia abatido. Era deveras desanimador. A Didi, já cansada de tão longa viagem por corredores escuros, soltou um verdadeiro bocejo.
«Põe a mão diante da boca», palrou a ave muito severamente. «Quantas vezes já te disse para fechares a porta? Viva o rei!»
«O teu bocejo fez-me bocejar também», disse João, sentando-se. «Que dizes a um descanso, Didi? Sinto-me terrivelmente cansado».
Encostou-se para trás, de encontro à parede rochosa, fechou os olhos e caiu num torpor que durou uma ou duas horas. Quando acordou mal sabia onde estava e quando se lembrou ficou amedrontado. Levantou-se com a Didi firmemente empoleirada no seu ombro.
«Nada ganho em me assustar», disse de si para si, com convicção. «É andar sem parar e mais tarde ou mais cedo lá se há-de ir dar a qualquer parte.
Fora enquanto ele andava às apalpadelas através das muitas passagens que a Didi gritou com força ao ouvir o barulho provocado pelos perseguidores das crianças. Mas João, que nada ouvira, enveredara por uma passagem tortuosa antes de os homens ali chegarem. Não sabia ele quão próximo havia estado do poço maior. Naquele momento, porém, desembocou na galeria principal.
«Será este o túnel principal que vimos no mapa?», pensou ele. «Naturalmente é. Se ao menos tivesse uma luz mais forte! Oxalá que esta não se me vá acabar agora; já me parece mais fraca do que era».
Começou a descer a passagem e viu depois alguns degraus toscos que conduziam a um nível superior. Por curiosidade subiu-os e viu-se numa outra passagem, que ia ter evidentemente a outra mina. Escorregou e caiu contra a parede, desalojando uma pedra ou pequena rocha, que caiu ruidosamente. João levantou a lanterna para ver donde ela caíra, temendo um desabamento.
Mas não. A lanterna iluminou qualquer coisa que rebrilhava, dum vermelho acobreado, «uma espécie de pedra grande e irregular», pensou João. De repente, fez-se luz no seu espírito e compreendeu que aquilo não devia ser uma pedra mas... sim, devia ser... uma enorme barra de cobre! Eia, que maravilha! Seria capaz de transportá-la?
Com as mãos trémulas, o rapaz deslocou a barra cuidadosamente do lugar. Estava numa espécie de prateleira formada por uma fenda na rocha. Teria sido ali escondida há muito tempo, ou tê-lo-ia sido recentemente por algum dos actuais mineiros? Estaria no seu lugar? A isto não sabia João responder.
Era realmente pesada mas podia com ela. Um lingote de cobre! O rapaz ia repetindo estas palavras em voz baixa. Era quase tão bom como encontrar um corvo marinho gigante; não tão extraordinário, claro, mas quase tanto. Que diriam os outros?
João pensou que, mais do que nunca, agora teria de evitar dar de cara com os mineiros. Seriam capazes de tirar-lhe o lingote.
Ele podia pertencer-lhes legalmente, mas queria ao menos ter o prazer de o mostrar aos outros, como um achado seu, antes de entregá-lo a alguém.
O rapaz voltou para a galeria principal com o lingote nas mãos. Teve de pendurar a lanterna no cinto, pois não podia segurá-la ao mesmo tempo que o cobre e era-lhe bastante difícil caminhar agora, porque a lanterna iluminava para baixo em vez de o fazer para diante.
«Olá!», monologou João, parando de repente ao ouvir um barulho lá ao longe. «Parece-me que vou a dirigir-me na direcção daquele barulho que nós já ouvimos antes, o matraquear das máquinas dos homens. Quem sabe se estarei também perto de Filipe e das raparigas?
Avançando, chegou a uma passagem, com uma curva apertada, e eis que se depara novamente a caverna iluminada por uma forte luz. A última vez que a tinha visto estava vazia, mas desta vez havia lá gente. Homens estavam a abrir os caixotes e as grades de madeira que as crianças já tinham visto. João contemplava a cena perguntando a si próprio o que havia dentro das caixas.
«Encontro-me agora na mesma passagem em que estava quando a Didi fugiu e eu fui atrás dela», pensou João. «Só queria saber o que foi feito dos outros. Céus! Como é bom ver uma luz a brilhar outra vez. Se eu me acocorar aqui atrás desta saliência da rocha não me parece que eles possam ver-me».
A Didi estava absolutamente calada. O brilho da luz assustava-a depois de tão longa permanência na escuridão. Espreitando o que podia ver, aninhou-se no ombro do rapaz.
Nos caixotes e nas grades havia latas de conservas de carne e fruta. João sentiu-se esfomeado ao vê-las, pois há muito tempo que nada comia. Os homens abriram várias latas, deitaram as conservas em pratos de esmalte e começaram a comer, conversando uns com os outros. João não conseguia ouvir o que diziam e sentia-se tão esfomeado que esteve para se encaminhar para eles e pedir-lhes de comer.
Mas eles tinham cara de poucos amigos. Vestiam somente calças presas na cintura e nada mais. Estava tanto calor na mina que era impossível trazer muita roupa. João também gostaria de ter só os calções, mas, por outro lado, sabia que as garras da Didi o magoariam ao pousar-lhe no ombro.
Os homens acabaram a refeição, dirigiram-se para uma passagem, ou galeria, ao fundo da caverna e desapareceram. O baru-rulho matraqueante voltava a ouvir-se. Evidentemente que os homens haviam recomeçado a trabalhar.
João rastejou através da caverna iluminada pela luz que provinha de três lanternas penduradas do tecto e examinou as latas abertas. Havia um resto de carne nas latas e umas rodelas de ananás numa outra. Acabou com elas num ápice. Pensou que nunca na sua vida provara coisa tão deliciosa como aqueles restos.
Decidiu-se a ir sorrateiramente até à passagem para onde os homens se tinham encaminhado ao voltar para o trabalho. Devia ser interessante ver como os homens trabalhavam numa mina de cobre. Servir-se-iam de picaretas, ou de dinamite? Que estariam eles a fazer para provocar tanto barulho? O som parecia vir de uma máquina grande em plena actividade.
De rastos, atravessou a passagem e, então, foi ter a outra espécie de caverna, e muito admirado ficou com o que viu. Havia ali cerca de doze homens ocupados com uma série de máquinas que matraqueavam e batiam, fazendo um barulho ensurdecedor, o qual se repercutia por toda a caverna. Havia também um motor de qualquer espécie que contribuía para a barulheira.
«Que estranha maquinaria!», pensou João, observando. «Como diabo teriam eles transportado cá para o fundo das minas tudo isto? Devem ter trazido peças soltas e feito depois a montagem cá em baixo. Apre, que isto é assaz movimentado e que barulho faz!»
João olhava aturdido. Estariam eles a extrair o cobre com o auxílio daquelas máquinas? Ele sabia vagamente que muitos metais tinham de ser aquecidos ou fundidos ou trabalhados de qualquer maneira até ficarem puros. Pensou que devia ser isto o que eles estavam a fazer. Era, portanto, claro que o cobre destas minas não se achava em barras como aquela que naquele instante tinha nas mãos.
Um dos homens limpou a testa e dirigiu-se para perto do esconderijo de João. O rapaz fugiu apressadamente e entrou numa pequena reentrância à espera que o homem passasse. Este voltou trazendo uma caneca com água. João deixou-se estar escondido no recanto por mais uns minutos, comprimindo-se contra o que julgava ser a parede. Mas, subitamente, a parede deu um pouco de si e o rapaz caiu para trás. Então, acendendo a lanterna, viu que não se tratava de uma parede mas de uma sólida porta de madeira que comunicava com uma espécie de cela, no género daquela onde as outras crianças tinham estado prisioneiras.
Ouvindo passos, entrou precipitadamente para o compartimento e fechou a porta. Os passos afastaram-se e João voltou a acender a lanterna para ver o que o rodeava.
A cela estava repleta de pacotes e mais pacotes de papéis, amontoados por tamanhos em apertados maços. João contemplou-os e voltou a examiná-los novamente com os olhos a piscar, estupefacto.
Naquela cave, que parecia uma cela, estavam milhares de pacotes de dinheiro em notas. Havia pacotes de notas de uma libra, de cinco libras e de dez libras. Ali estavam todas arrumadinhas, uma fortuna suficiente para fazer de qualquer pessoa um milionário numa só noite.
«E esta? Agora é que não resta dúvida de que devo estar a sonhar», pensou João, esfregando os olhos. «Não há que ver, é o mais fantástico dos sonhos! Dentro de um minuto estarei acordado e a rir. Não há memória de as pessoas descobrirem coisas destas... um tesouro numa caverna debaixo do solo. Ou então talvez eu esteja no meio de um maravilhoso conto de fadas. É absolutamente impossível... o melhor é acordar já!»
UM MAU BOCADO E UM ENCONTRO INESPERADO.
Mas João não acordou pela simples razão de que não estava a dormir.
Estava bem acordado, mirando aquela fortuna colossal em papel-moeda. Aquilo não fazia sentido. Porque estaria o dinheiro armazenado ali naquela cela subterrânea? A quem pertenceria? Porque não o poriam num banco como era costume?
«Provavelmente os homens que trabalham nestas minas estão a extrair cobre em grande quantidade, o qual vendem secretamente, guardando aqui o dinheiro que lhes rende», pensou João. Estava tão completamente aturdido à vista de tal riqueza empilhada mesmo na sua frente que nem ouviu os passos que se aproximavam da porta da caverna onde se encontrava.
O homem que abriu a porta e topou com o rapaz na cela ficou mais surpreendido do que o próprio João. Estacou, boquiaberto, a olhar para ele, e com os olhos parecendo querer saltar-lhe das órbitas. De repente, arrastou o rapaz rudemente para fora e empurrou-o para o compartimento onde a maquinaria trabalhava.
— Olhem! — gritou ele. — Olhem para isto! Encontrei-o no armazém...
A máquina parou de repente. Os homens cercaram João e o seu captor e um deles aproximou-se mais. Era José.
Tinha uma expressão de maldade, e a venda negra que usava sobre um dos olhos dava-lhe uma aparência sinistra. Sacudiu João tão fortemente que o rapaz ficou sem poder respirar e caiu para o chão logo que José lhe largou o braço.
— Onde estão os teus companheiros? — gritou ele. — Trata de falar, ouviste? — Com quem estão vocês? E que andam todos a fazer cá em baixo? Que sabes tu?
João apanhou o seu lingote de cobre, olhou em redor à procura da Didi, que tinha voado assustada para o tecto da caverna e tentou pensar na melhor resposta a dar. Os homens não prestaram a menor atenção ao lingote de cobre, o que muito surpreendeu João, que estava com receio de que eles lho tirassem logo.
— Não sei o que é feito dos outros — disse ele por fim.
— Nós viemos todos juntos para a ilha, dois rapazes e duas raparigas, e a certa altura eu separei-me deles.
— Quem mais estava com vocês? — perguntou José. — Não me venhas dizer que vocês, miúdos, vieram sozinhos.
— Isso é que viemos — insistiu João. — Ouça, a quem pertence aquele dinheiro?
Os homens que o rodeavam fizeram tal burburinho que João olhou à sua volta, sentindo-se pouco à vontade. José carregou o sobrolho e olhou de soslaio para os homens.
— Aqui há gato — disse ele, e os companheiros acenaram a cabeça. Voltou-se depois para João. — Agora escuta — disse ele. — Vejo que sabes muito mais do que mostras. Ouviste alguma coisa da boca de alguém, não foi? Bom, ou tu nos dizes tudo o que sabes ou talvez nunca mais tornes a ver a luz do dia. Percebeste? Estamos entendidos.
Entendia-se perfeitamente e João começou a tremer. A Didi soltou um grito que os fez dar a todos um salto.
— Eu não sei o que quer dizer com isso — respondeu João, já desesperado. — Nós só sabemos que alguém trabalha nas minas actualmente para extrair cobre, e que Jaime Smugs lhes vinha trazer mantimentos no seu barco. É tudo quanto sei, com toda a verdade.
— Jaime Smugs — repetiu José. — Foi o que os outros disseram. Mas quem é esse Jaime Smugs?
João ficou embaraçado. — Então não é esse o nome dele?
— perguntou.
— Qual é o verdadeiro nome dele? — gritou subitamente José, tão ameaçadoramente que João com o susto deixou cair o seu precioso lingote, pensando que o homem lhe ia bater. Aquele caiu sobre o pé de José, que o apanhou e o mirou, curioso.
— Que pedra é esta que trazes aqui? — perguntou de mau modo. — Vocês serão malucos? Uma catatua, uma pedra pesada... Jaime Smugs... minas de cobre. Vocês são todos doidos.
— A mim parece-me que este gaiato sabe mais do que diz — interveio Gustavo, pondo-se ao lado de João.
— Que dizes se o fecharmos durante um ou dois dias sem lhe dar de comer? Verás como se lhe desprende a língua. E uma boa sova?
João fez-se pálido mas não se mostrou amedrontado. — Eu nada mais sei além do que já lhes disse — teimou ele. — Que queriam que eu soubesse mais? Há, então, algum mistério?
— Levem-no daqui — disse asperamente José. Ele falará quando estiver meio morto de fome.
Gustavo empurrou o rapaz pelo ombro com brutalidade e arrastou-o para fora, conduzindo-o para a mesma cela onde as outras crianças haviam estado presas. No momento, porém, em que ele empurrava o rapaz lá para dentro a Didi desceu num voo picado e enterrou na cara do homem o bico adunco. Gustavo, levantando as mãos para defender a cara largou a lanterna, que se apagou.
João esgueirou-se para o lado e, de rastos, encaminhou-se sem barulho para fora da cela. A Didi, não sabendo onde ele estava, voou para dentro e pousou sobre a mesa, em completa escuridão.
«Então agora, então agora, que pena», fez ela em tom bem alto. A porta da cela bateu. Gustavo fechara a catatua pensando que era João falando sozinho lá dentro. Nem sequer lhe passou pela cabeça que a ave pudesse falar.
Deu a volta à chave. A voz da Didi, que palrava baixinho, ouvia-se ainda, embora nem João nem Gustavo distinguissem já as palavras. Quando Gustavo ia para se retirar apareceu José.
— Meteste-o lá dentro? — perguntou, projectando o foco da sua lanterna na porta fechada.
— Sim — disse Gustavo. — Está para lá a resmungar, ouve-se daqui. Eu digo que ele é louco.
Os homens puseram-se à escuta e a voz da Didi ouvia-se claramente através da porta: «Que pena, que pena!»
— Ele está com pena de si mesmo, não está? — disse José, dando uma tão terrível gargalhada que o rapazito, de medo, ficou sem pinga de sangue. — Pois depressa terá mais pena ainda.
Os homens voltaram para a caverna e em breve o matraquear voltou a ouvir-se. João ergueu-se do seu esconderijo. A Didi tinha-o salvo de um terrível castigo — pobre Didi, que não sabia que lhe salvara a vida! João dirigiu-se à porta na intenção de a abrir e soltar o animal.
A chave, porém, não estava na fechadura. Um dos homens devia tê-la levado. Portanto, a Didi estava prisioneira, absolutamente encarcerada, e ali teria de ficar até que alguém a libertasse.
De qualquer maneira João, porém, estava em liberdade. «Quer parecer-me que em tudo isto há qualquer coisa que não bate certo», pensou o rapaz. «Seja o que for, mas todo aquele dinheiro junto e aquela estranha maquinaria... Os homens são maus, não podem ser amigos de Jaime. Nós enganámo-nos a esse respeito».
Meteu cautelosamente pela galeria sem se atrever a acender a lanterna. Se ao menos conseguisse encontrar o poço... Talvez os outros tivessem dado com ele e estivessem lá no cimo à sua espera. Ou teriam já abandonado a ilha, deixando-o para trás? Seria ainda dia ou já teria caído a noite?
João caminhou às apalpadelas, galeria após galeria, lamentando não ter a Didi por companheira. Sentia-se só e assustado, quereria ter alguém com quem falar. Como seria bom estar junto dos outros!
Por fim estava tão cansado que se sentia sem forças para ir mais longe. Aninhou-se a um canto, fechou os olhos e caiu num sono agitado. Dormiu horas a fio, de pura fadiga, os membros entorpecidos devido à posição desconfortável em que permanecia deitado. Também a Didi, na cela, acabou por adormecer, aborrecida e intrigada, sentindo a falta do dono tanto como este sentia a sua.
Quando acordou, João levou a mão ao ombro à procura da Didi, como tantas vezes fazia, mas a ave não estava lá. Recordou-se então. A Didi ficara prisioneira e, graças a ela e à sua habilidade em falar como gente, ele, João, estava livre.
Sabia agora muitas coisas. Sabia do tesouro escondido, das estranhas máquinas, tão bem escondidas naquelas cavernas subterrâneas por qualquer misteriosa razão, que os homens que trabalhavam com elas eram maus. Nada os faria deter se pensassem que alguém descobrira o seu segredo, fosse ele qual fosse.
«O que há a fazer, o que tenho de fazer, é escapar-me e ir contar tudo quanto sei», pensou ele.« Não sei porquê mas sinto que tenho obrigação de ir à Polícia. Gostaria de contar a Jaime, porque penso agora que ele não está ligado a esta gente, embora não tenha ainda a certeza. De qualquer maneira a coisa é esta... eu tenho de dizer a alguém».
O rapaz recomeçou, portanto, o seu infindável caminhar pelas
minas fora, atravessando toda a casta de passagens, agora à já fraca luz da sua lanterna eléctrica.
Subitamente, esta apagou-se de vez. João deu-lhe umas pancadinhas e desaparafusou-lhe o fundo, que apertou novamente. Mas a pilha estava gasta, a lanterna não mais daria luz, a não ser depois de carregada outra vez e isso era-lhe totalmente impossível naquele momento.
Então, sentiu-se verdadeiramente assustado. Só havia agora uma esperança de conseguir sair dali — a de encontrar, por boa sorte, o poço que levava à superfície, mas essa era uma fraca probabilidade.
Continuou a vaguear às apalpadelas, com uma mão estendida na sua frente e transportando o lingote com dificuldade debaixo do braço, segurando-o com a ajuda da outra mão. Pareceu-lhe, de repente, ouvir qualquer coisa. Parou à escuta. Não, não era nada.
Prosseguiu o seu caminho, mas, subitamente, estacou. Sentia que estava gente ali muito perto. Não seria aquilo a respiração de alguém? Manteve-se alerta, no escuro, sustendo a respiração. Mas nada se ouvia. «Talvez a outra pessoa esteja também retendo a respiração», pensou ele.
Recomeçou a andar e, subitamente, esbarrou violentamente de encontro a alguém. Seria José ou Gustavo? Começou a lutar desesperadamente e o outro agarrou-se a ele com firmeza, magoando-o no braço. O lingote, caindo-lhe das mãos, atingiu-lhe um pé em cheio.
«Irra, ai o meu pé, o meu pé», gemeu o pobre João.
Seguiu-se um profundo silêncio, depois o brilhar poderoso do foco duma lanterna eléctrica, e uma voz exclamando, cheia de espanto: — Mas é o João!
— Pintinhas! — gritou também a voz de Filipe, o qual correu para João a dar-lhe uma amigável palmada nas costas. — Pintinhas! Que felicidade darmos contigo desta maneira!
— Trunfa! Jaime! — exultou João, com voz entrecortada pela emoção de tão inesperada alegria.
Ah, que satisfação a de ouvir novamente uma voz amiga, depois de tantas horas de negra solidão! A alegria de ver Filipe, com o seu tufo de cabelos que teimava em conservar-se de pé. E Jaime, de sorriso afável e olhos alegres, com a sua amiga condescendência de pessoa crescida! João, naquele momento, estava bem contente por ter a seu lado um homem feito. As crianças podem meter-se em coisas e empreendimentos até determinado ponto, mas chega muitas vezes a altura em que têm de recorrer aos adultos.
João engoliu ruidosamente em seco e Jaime deu-lhe uma pancadinha nas costas. — É esplêndido tornar a ver-te, João. E aposto que tens muitíssimo que contar.
— E tenho — confirmou João. Tirando o lenço, assoou-se com força. Sentiu-se então muito melhor. — Onde estão as raparigas?
— Sãs e salvas, lá em casa — respondeu Filipe. — Ontem, nas minas, a certa altura, demos pela tua falta, João. Fomos depois aprisionados mas conseguimos escapar, fugimos pelo poço, metemo-nos no barco e fizemo-nos à vela, já quase de noite. Fui depois à procura do Jaime Smugs e aqui o tens. Não pudemos vir no barco dele porque foi inutilizado, não sabemos por quem... e também o barco de Jau não estava no lugar costumado.
— Então como conseguiram chegar até cá? — perguntou João, atónito.
— Há uma passagem por baixo do mar desde a Casa do Penhasco até aqui — respondeu Filipe. — Que dizes a isto? Descobrimo-la num velho livro que descreve lá a casa. Levou-nos séculos a cá chegar. Foi realmente um mau bocado, simplesmente tenebroso. Mas cá estamos.
João estava verdadeiramente espantado ao ouvir a descrição da maneira como eles haviam chegado e fez-lhes uma série de perguntas, cheio de impaciência. Mas Jaime tinha também algumas a fazer a João. — Tudo isto tem muito mais importância do que possas pensar, João — disse ele. — Vamos sentar-nos. Tenho a impressão de que tu vais desvendar um grande mistério.
ESCLARECEM-SE MUITAS COISAS.
— Tenho várias coisas estranhas para lhe contar — começou João, com vivacidade. — Em primeiro lugar, que pensam vocês que se me deparou? Uma caverna absolutamente atulhada de dinheiro... dinheiro em notas! Quanto a mim, parece-me que devem estar lá muitos milhares e milhares de libras. Não podem mesmo fazer uma ideia...
- Ah! — atalhou Jaime Smugs, numa voz cheia de contentamento. — Ah!, isso é que são novidades. Belo, João!
— Vi também umas máquinas a trabalhar — prosseguiu o rapaz, contente por ver que as suas descobertas tinham tanto interesse para Jaime. — E um motor. Pensei que era para derreter ou calcinar o cobre, ou lá o que é que tem de se lhe fazer, mas uma das tais máquinas parecia uma máquina de impressão.
— Ah, ah! — exclamou Jaime, com crescente satisfação na voz.—Isso são informações magníficas. É fantástico! João, acabas de solucionar um mistério que dura há cinco anos... Um mistério que traz embaraçado o Governo e toda a Polícia há muito tempo.
— Que mistério? — perguntou o rapaz.
— Já sei — interrompeu Filipe, excitado. — Jaime, aquela maquinaria é para fazer notas falsas, não é?
E o dinheiro em notas que o João descobriu é o que foi armazenado depois de impresso. Será levado desta ilha e depois passado pelos gatunos ou pelos seus chefes.
— Deste no vinte — disse Jaime. — Tem-se andado atrás desta quadrilha há anos e não conseguíamos saber onde é que eles tinham instalada a oficina nem de onde vinha o dinheiro. As notas que eles fazem são excelentes imitações e somente um perito consegue diferenciá-las das notas autênticas.
— Jaime, então os homens não estão a explorar a mina!
— gritou João, pasmado. — Estávamos enganados a esse respeito. Eles escolheram estas velhas minas não para extrair cobre mas para esconder as máquinas impressoras e para fazer todo o trabalho a ocultas e em segurança. Que bem imaginado! Que grandes espertalhões!
— Muito espertos, na verdade — apoiou Jaime, sorrindo.
— Somente precisavam de um intermediário, alguém que pudesse vir à ilha trazer-lhes comida e outras coisas e levasse de retorno para o chefe, quem quer que ele seja, maços de notas falsificadas. Pois quem levantou suspeitas foi exactamente o intermediário.
— Quem é esse intermediário? — perguntou João interessado. — Alguém nosso conhecido?
— Claro — disse Jaime. — Julguei que vocês adivinhariam imediatamente; é nada mais nada menos do que o Jau.
— Jau! — exclamaram os dois rapazes, e num relâmpago viram como tudo batia certo no que dizia respeito ao negro.
— Sim, ele tinha um barco e bastava-lhe dizer que ia pescar nele para poder ir à ilha e voltar — lembrou Filipe. — Podia ir durante a noite também se lhe apetecesse. Aqueles sinais que o João notou eram feitos pelos homens da ilha e era Jau quem lhes respondia do cimo do rochedo, naquela noite em que João o foi encontrar.
— Pois era — disse João, recordando-se. — E quando ele ia no carro fazer compras, devia levar com ele algumas dessas notas falsas para as entregar aos tais chefes, quem quer que sejam. Não admira que ele não nos quisesse levar com ele no carro ou no barco; tinha medo de que nós desconfiássemos de qualquer coisa.
— Lembras-te daquelas caixas e grades de madeira metidas na segunda cave da casa, atrás daquela porta que ele disfarçava com pilhas de caixotes? — perguntou Filipe. — Aposto que não pertencem à tia Lena. Tenho a certeza de que eram armazenamento de provisões, esperando vez para atravessarem o mar até à ilha, na próxima saída de Jau no barco.
— E aquelas histórias a respeito de «coisas» ruins que andavam de noite nos rochedos eram simplesmente para nos assustar e impedir que saíssemos durante a noite, pois poderíamos topar com alguma coisa que estivesse a fazer — prosseguiu Filipe. — Santo Deus, como tudo agora bate certo, não é verdade?
— Assim parece — disse Jaime, com voz divertida, que tinha estado a ouvir toda esta conversa com muito interesse.
— Mas porque veio Jaime viver para esta costa numa barraca arruinada? — perguntou João, subitamente. — Era realmente para estudar a vida dos pássaros?
— Claro que não — disse Jaime rindo. — Eu nunca supus encontrar um verdadeiro amador de pássaros quando vos disse que esse assunto me interessava. Tu quase me apanhaste por umas poucas de vezes. Tive de ver vários livros sobre aves, que não tinham para mim o menor interesse, para que não suspeitasses de que nada sabia acerca deles, João. Foi um tanto desagradável para mim. Eu não podia, claro, dizer que era um membro da Polícia destacado para vigiar Jau e as suas manobras.
— Mas como sabia o Jaime que Jau estava manobrando? — perguntou Filipe.
— Bom, ele é há muito tempo conhecido da Polícia — respondeu Jaime. — Já havia estado metido em negócios de moeda falsa e nós desconfiávamos de que ele tivesse agora alguma coisa a ver com este negócio de impressão em grande escala, que partia dum sítio desconhecido, e pensámos que seria conveniente vigiá-lo, uma vez que sabíamos onde estava. Tem uma espantosa habilidade para desaparecer; há-de haver cinco anos que trabalha para a tua tia como criado e moço de recados e ninguém suspeitaria de que ele é um tipo com uma enorme ficha na Polícia. Mas um dos nossos homens viu-o um dia na cidade e descobriu onde é que ele trabalhava. Então, eu vim para cá este Verão, para o ter debaixo de olho.
— E que vespeiro foi desinquietar — acrescentou João.
— Jaime... nós demos alguma ajuda?
— Pois deram — concordou Jaime —, embora sem o saberem. Foi por vosso intermédio que fiquei com a certeza de que era Jau o intermediário, e que era para a ilha das Trevas que ele se dirigia continuamente. Um dia vim cá e fiz uma pequena exploração das minas. Foi então que perdi um lápis, naturalmente. Mas tenho de confessar que eu nada encontrei que me fizesse suspeitar de que havia gente nas minas falsificando notas em máquinas impressoras escondidas.
— Mas descobrimo-las nós — disse João com orgulho.
— Que vai o Jaime agora fazer?
— Bom, ontem à noite falei pela rádio aos meus superiores. Disse-lhes que tinha a certeza do que aqui se passa, e que ia dirigir-me à ilha para procurar alguém que se perdera nas minas. Pedi-lhes que se preparassem para brevemente arrumar o assunto.
— E que farão eles? — perguntou João excitado.
— Só o saberei quando voltar e relatar tudo. É melhor irmo-nos embora. Tornaremos pela passagem subterrânea, pelo caminho que nos trouxe a mim e ao Filipe.
— Naturalmente foi o Jau quem arrombou o seu barco
— lembrou Filipe. — Deve ter desconfiado de qualquer coisa e provavelmente sabia que o Jaime era nosso amigo.
— O Jau é um grande velhaco e espertalhão — respondeu Jaime, levantando-se e distendendo os músculos. — E a sua esperteza consiste em fazer-se passar por parvo. Vamos.
— Jaime... eu queria ir soltar a Didi— disse João subitamente.— Não a posso deixar aqui. Os homens matá-la-iam... ou então morrerá de susto ou de fome. Não poderíamos ir buscá-la?
— Não — respondeu Smugs —, há coisas muito mais importantes a fazer.
— Oh, Jaime, vamos soltá-la — rogou Filipe, que sabia que Didi era para João o que um cão era para muita gente. — Só temos de pegar no mapa, encontrar a passagem principal e procurar as cavernas. João reconhecerá a cela onde a Didi está encerrada. Tenho a impressão de que é a mesma onde as raparigas e eu estivemos presos.
— Bem... então vamos a isso depressa — anuiu Jaime, ainda indeciso. — E cuidado... nada de barulho. Não podemos de forma alguma denunciar a nossa presença.
Abrindo o mapa, localizaram o sítio em que estava a passagem principal e iniciaram a marcha. Não levou muito tempo até alcançarem a galeria maior, por onde avançaram cautelosamente.
Jaime Smugs ouviu novamente o matraquear das máquinas a trabalhar. De expressão carrancuda, escutava com toda a atenção. Sim, aquilo eram realmente máquinas de impressão.
No momento preciso em que se dirigiam para a caverna que servia de prisão à Didi ouviram um ruído de vozes. Acocoraram-se de encontro à parede, não ousando quase respirar.
— É o José — segredou Filipe, pondo a boca junto ao ouvido de Smugs.
Três homens estavam junto da porta da cela onde a catatua se encontrava, à escuta, espantados. Da cela vinha uma voz que falava cada vez mais alto. Podiam distinguir-se as palavras:
«Nada de fungar, já te disse! Onde meteste o lenço? Quantas vezes já te disse para limpares os pés? Coitadinha da Didi, coitadinha da Didi! Põe a chaleira ao lume!»
— O rapaz endoideceu — disse José para os outros dois. Era evidente que pensavam ser João quem mantinham preso ali dentro.
«Partidinha!», fez a Didi, dramaticamente, começando a imitar em seguida o ruído de uma locomotiva apitando ao entrar num túnel.
— Perdeu o juízo — concluiu Gustavo desconcertado. Ouviu-se então um tremendo guincho e um dos homens disse subitamente.
— Isto é um bicho palrador, é o que é. O rapaz trouxe consigo um bicho desses com ele.
— Abre a porta e vamos ver — propôs Gustavo. José meteu a chave na fechadura. A porta abriu-se e a Didi imediatamente voou cá para fora com um guincho que os assustou a todos. Os homens iluminaram a cela com a lanterna.
Estava vazia. José encarou Gustavo ferozmente.
— Idiota! Meteste o bicho lá dentro e deixaste fugir o rapaz. Merecias um tiro.
Gustavo contemplava a cela vazia. Era verdade, somente a catatua ali tinha estado.
—- Ora — disse Gustavo — o gaiato deve estar perdido para sempre nestas minas e nunca mais dá sinal de si. É bem feito.
— Nós somos uns idiotas, Gustavo — disse José com azedume. — Em primeiro lugar deixámos os miúdos enganarem-nos e agora o rapaz.
Deixando a porta aberta, foram-se na direcção da caverna iluminada. João teve um sobressalto. A Didi tinha subitamente pousado sobre os seus ombros e estava fazendo os mais carinhosos ruídos. Fingia morder-lhe a orelha e com o bico emitia ruídos a imitar beijos e demonstrava com toda a sua atitude o maior regozijo. João ia-lhe coçando a cabeça, sentindo tanta alegria como ela.
— Agora partamos sem demora — ordenou Jaime em voz baixa. Deixaram a passagem, caminhando apressadamente à luz das lanternas. Ainda não tinham andado muito quando ouviram distintamente passos que se aproximavam.
— É alguém que vem do poço grande — disse João em voz baixa. Apagaram as lanternas e esperaram. Os passos soaram mais perto, pesadamente. Quem quer que fosse trazia uma lanterna deveras potente. Não podiam distinguir quem era, e, ao tentarem ocultar-se numa pequena reentrância, João tropeçou e caiu, fazendo barulho. A Didi gritou.
O foco de luz encandeou-os e uma voz áspera soou na escuridão:
«Fiquem quietos ou disparo!»
Jaime Smugs estendeu a mão para acalmar os rapazes. Havia qualquer coisa naquela voz que os obrigava a obedecer. Quem assim falava não hesitaria em disparar.
Os três ficaram imóveis na galeria, piscando os olhos. João e Filipe conheciam aquela voz. Mas de quem seria?
De repente, num relâmpago, fez-se-lhes luz no espírito. Claro que sabiam.
— É o Jau — gritou João. — Jau, que estás aqui a fazer?
— É isso o que pergunto a vocês três — respondeu Jau, numa voz fria e ameaçadora. O foco da sua lanterna incidia em cheio na cara de Jaime. — Com que então você está aqui também. Eu inutilizei-lhe o barco mas vejo que descobriram o velho caminho por baixo do mar, não é assim? Pensam que são muito espertos... mas foram espertos de mais. Vão ter um mau bocado com que não contavam... um muito mau bocado.
APANHADOS
O revólver que Jau segurava na mão brilhava no escuro. Jaime estava furioso consigo próprio. Se não tivesse consentido em ir à procura da malfadada catatua nunca isto teria acontecido. Jau era rijo e não se deixaria facilmente enganar como José e Gustavo.
— Voltem-se, ponham as mãos no ar e caminhem na minha frente — ordenou Jau. — Ah, cá está o tal animalejo. Temos umas boas continhas a ajustar. Não faz mal, chegou agora a ocasião.
João, percebendo que a intenção de Jau era disparar contra a catatua, deu-lhe uma pancada que muito surpreendeu a Didi. Esta voou para o tecto, dando guinchos de indignação. «Foge, Didi, foge!», gritou João.
A Didi ficou-se perdida na escuridão. Sentira que por qualquer razão não a queria perto dele. Tendo pressentido o perigo, lá foi seguinto o pequeno grupo, mantendo-se bem cá atrás, longe de Jau, voando dali para acolá, silenciosamente, como um morcego.
Os três bem depressa se acharam fechados na cela que conheciam. Jau, que tinha gritado por José, fechou ele mesmo a porta. Os prisioneiros ouviram-nos depois afastar-se.
— Parece-me bem que estamos metidos numa camisa de onze varas, — comentou Jaime. — Porque teria eu concordado em voltar para trás à procura da catatua? Podemos perder todos a vida por causa disso, e estes patifes poderão pôr-se ao fresco com os seus milhares de notas falsas e espalhá-las por toda a parte. Somos agora nós os culpados.
— Estou muito arrependido de lhe ter pedido para voltarmos em busca da Didi — respondeu João cabisbaixo.
— Eu tive tanta culpa como tu — acrescentou Jaime, acendendo o seu cigarro. — Apre, que está calor aqui em baixo!
Depois de lhes parecer terem decorrido séculos, a porta voltou a abrir-se e Jau entrou com José, Gustavo e mais dois ou três homens atrás.
— Viemos apenas para vos comunicar um saudoso adeus
— começou Jau, com a pele negra a brilhar à luz da lanterna.
— Está concluída a nossa tarefa aqui. Vocês apareceram no fim, Jaime Smugs, da Polícia. Tarde de mais para fazer alguma coisa. Temos a maior quantidade de notas de que jamais poderemos necessitar.
— Vão então pôr-se ao fresco, não é verdade? — disse Jaime com calma.
— Destruindo as máquinas, fazendo desaparecer qualquer rasto e levando convosco todos os maços de notas falsas que tinham armazenado. Mas não pensem que escaparão facilmente. As máquinas serão encontradas destruídas ou não e o vosso...
— Nada será encontrado, Jaime Smugs — ripostou Jau.
— Nem a mais pequena coisa. Pode vir a Polícia em peso a esta ilha que nunca encontrará coisa alguma que lhe possa servir de pista... nunca!
— Porquê? — perguntou Jaime, incapaz de esconder a sua surpresa.
— Porque vamos inundar as minas — esclareceu Jau, sorrindo perversamente e mostrando os seus dentes muito brancos.
— Sim, Jaime Smugs, estas minas serão inundadas. A água virá encher cada túnel, cada passagem, cada caverna, e esconder as nossas máquinas e todo e qualquer rasto do nosso trabalho. E receio que vos esconda também.
— Vocês não nos vão deixar aqui, certamente — disse Jaime.
— Deixem-me a mim se quiserem, mas levem estas crianças para cima convosco.
— Nós queremos desembaraçar-nos de todos vós — disse Jau, com as mesmas horríveis boas maneiras. — Podiam causar-nos complicações.
— Mas não podem ser cruéis a esse ponto! — gritou Jaime.
— Eles... eles não passam de umas crianças.
— Eu cumpro ordens — replicou Jau. Não parecia já o mesmo pobre-diabo meio parvo que os rapazes haviam conhecido antes; era agora um Jau completamente diferente e bastante temível.
— Como vão vocês inundar as minas? — perguntou Smugs.
— Muito facilmente. Minámos parte da passagem pela qual vieram da Casa do Penhasco, por baixo do leito do mar. Quando estivermos a salvo e em terra firme, ouvirão uma enorme explosão. A dinamite abrirá uma fenda no tecto dessa passagem submarina, por onde passará a água. Como bem pode calcular-se
as minas ficarão inundadas até ao nível do mar. É de prever, que não vai ser muito agradável para vocês nessa altura.
João tentava manter-se de pé para mostrar a Jau que não estava com medo, mas os seus joelhos quase não o aguentavam. Ele estava com medo, com muitíssimo medo, e Filipe também. Unicamente Jaime mantinha uma cara serena e até riu.
— Bom, sigam o mau caminho, na certeza de que não conseguirão escapar tão facilmente como imaginam. Sabe-se muito mais a respeito desta quadrilha e dos seus chefes do que vocês calculam.
Um dos homens disse qualquer coisa a Jau. Este assentiu. Os rapazes perceberam que faltava pouco para que o leito do mar fosse rompido. Então as águas entrariam em catadupas e cobririam todos os recantos da mina.
— Bem... adeus — disse Jau, sorrindo e mostrando os seus dentes extraordinariamente brancos.
— Até breve — respondeu Smugs, num tom bastante cortês. Os rapazes nada disseram. A Didi lá fora, na passagem, soltou uma gargalhada escarninha.
— Eu bem gostaria de dar cabo daquele pássaro antes de me ir embora — murmurou Jau ao sair da cela com os outros. Bateu a porta com força dando volta à chave.
Ouviram-se passos que se afastaram e depois fez-se silêncio. Jaime olhou para os rapazes.
— Animem-se — disse ele. — Ainda não estamos mortos. Vamos dar tempo a que estes tipos se afastem um pouco porque depois eu abro a porta e sairemos daqui.
— Abrir a porta? Mas como? — perguntou João.
— Eu cá sei o que digo — respondeu Jaime Smugs sorrindo, puxando de uma colecção de limas e chaves pontiagudas. Passados momentos estava ele a trabalhar a fechadura e daí a pouco a porta era aberta de par em par.
— Agora para o poço — exclamou Jaime. — Vamos, antes que seja tarde de mais.
Dirigiram-se para a galeria principal, ora andando, ora correndo, com destino ao poço grande. Levou-lhes um certo tempo a lá chegar.
Quando o alcançaram, e enquanto olhavam para cima buscando a ténue claridade da luz do dia, um ruído peculiar chegou-lhes aos ouvidos.
Era um som cavo e profundo, bem no interior das minas, cujo eco ribombava em volta de maneira singular.
— Jau disse a verdade — afirmou Jaime, muito sério. — Aquilo era dinamite a explodir. Se realmente o leito do mar foi perfurado as águas devem ter atingido a tal passagem subterrânea para as minas.
— Vamos então depressa — opinou Filipe, a quem tardava chegar ao ar livre. — Venham, que estou ansioso por sentir o calor do Sol.
— Tenho de atar primeiro o lingote de qualquer maneira — declarou João, que continuava transportando com jeito o pesado pedaço de cobre. — Mas que se passa, Jaime? Que tem?
Smugs tinha soltado tal exclamação que os rapazes assustaram-se. — Olhem para ali! — exclamou ele apontando a lanterna para os primeiros degraus. — Os homens subiram ao poço e destruíram propositadamente a escada cá no fundo, para que não pudéssemos trepar no caso de nos evadirmos da cela. Não quiseram correr qualquer risco. Não podemos sair, estamos prontos! Não há processo de trepar sem o auxílio de uma escada.
Desesperados, contemplavam os degraus destroçados. A Didi soltou um lúgubre pio, como se houvesse compreendido.
— Jaime, estou convencido de que talvez encontremos uma espécie de escadote naquela caverna espaçosa onde estavam as grades e os caixotes — lembrou João desesperadamente. — Parece-me que vi lá um. Quer voltar atrás para irmos ver? Não me parece que eles tenham destruído muito mais do que alguns degraus cá no fundo, pois bem sabiam que não poderíamos atingir os degraus superiores se nos faltassem os degraus da base da escada.
— Tens a certeza de que havia um escadote na tal caverna? — perguntou Filipe. — Eu não me lembro de o ter visto.
— Bom, é a nossa única probabilidade — disse Jaime. — Vamos voltar para trás em busca dele.
Mas não chegaram até à caverna. Apenas começaram a descer a passagem principal estacaram horrorizados. Qualquer coisa avançava em catadupas na sua direcção; qualquer coisa escura, poderosa e ameaçadora.
— As águas já entraram — gritou Smugs. — Voltemos para trás e refugiemo-nos no ponto mais alto. À fé de quem sou, o mar esvazia-se todo para dentro das minas!
O gorgolejante ruído das águas, brotando de todos os cantos, ouvia-se agora claramente. Era um som aterrador aquele, um marulhar de águas como se fossem sugadas com violência e empurradas por forças ocultas. Até Jaime Smugs estava assustado. Correram os três para o poço principal a toda a velocidade. Estavam num ponto mais elevado do que os túneis à volta mas não tardariam a ser atingidos pelas águas também.
— Vai ficar tudo ao nível do mar — considerou Jaime. Todas estas entradas lhe ficam abaixo, e muito, e a mina vai ser inundada até que as águas atinjam esse nível.
— Mas, Jaime, então morreremos — disse João com voz trémula.
— Sabes nadar? — perguntou Jaime. — Claro, ambos sabem. Bom, ouçam com atenção. Resta-nos apenas uma esperança. Quando a água encher este poço, temos de subir com ela, deixar que ela nos leve até acima. Conseguiremos conservar-nos flutuando se não nos deixarmos tomar de pânico, e quando atingirmos a parte da escada que não foi destruída treparemos então, utilizando os degraus. Agora digam-me: acham que são capazes de conservar o sangue frio para quando vierem as águas se deixarem levar por elas até à boca do poço?
— Somos — disseram os rapazes a um tempo. João voltou-se e olhou nervosamente para a galeria. Via a água lá adiante brilhando à luz da lanterna de Jaime. Era sem dúvida uma visão horrível.
— Jaime, isto será então o fim destas minas, não é verdade?
— perguntou Filipe. — Ninguém aqui mais poderá voltar?
— Ora, de qualquer maneira as minas já estavam esgotadas
— retorquiu Jaime. — João foi afortunado em ter encontrado um lingote para poder mostrar a toda a gente. Foi provavelmente escondido por algum mineiro de outrora que se esqueceu do sítio onde o havia posto...
— Tenho de o levar comigo — disse João. — Não pode deixar de ser. Mas como hei-de segurá-lo e nadar ao mesmo tempo? É tão pesado...
Jaime despiu a camisola e a camisa. Embrulhou o lingote nesta última, deu um nó nas mangas e atou-lhe em seguida um pedaço de fio. Vestiu novamente a camisola e pendurou o lingote ao pescoço.
— Um bocadito pesado — disse ele a sorrir —, mas irá em segurança. - Leva tu a Didi — que eu levo o lingote.
— Muito obrigado, Jaime — disse João. — Mas tem a certeza de que não o fará ir ao fundo?
— Seria difícil — afirmou Jaime, que era imensamente forte.
— A água está a aproximar-se — avisou nervosamente Filipe. — Olhem!
Todos olharam. As águas avançavam, aproximando-se da elevação por baixo do poço em que os três se encontravam.
— É horrivelmente negra — disse João. — Julgo que é a escuridão que a faz parecer tão preta. É horrivelmente negra.
— Ainda vai levar o seu tempo até que chegue ao nosso poço — opinou Jaime. — Sentemo-nos a descansar um pouco enquanto temos possibilidade disso.
Sentaram-se. O ratito amigo de Filipe saiu-lhe de dentro da manga e sentou-se depois nas patas traseiras. A Didi, vendo isto, deu um guincho.
«Limpa os pés, digo-te eu!», fez a ave.
«Vá lá, não assustes o Bigodes», ordenou Filipe. E puseram-se os três, enquanto esperavam, a observar as momices do ratinho. As águas revoltas gorgolejavam, inundando com fragor as passagens.
— Deve estar o que se chama a entrar em catadupas através da brecha do tecto da passagem submarina — disse Filipe. — Ouça, Jaime, a água correrá também no outro sentido, pela passagem subterrânea que vai dar à Casa do Penhasco... tornando a água do poço salgada?
— Bem, suponho que sim — afirmou Jaime, reflectindo. — O poço está abaixo do nível do mar, é evidente, e naturalmente este inundá-lo-á, passando através da entrada, na parede do poço, o que não é lá muito bom, Filipe. Significa que não mais poderão extrair água doce daquele poço e não faço ideia onde terão depois de ir buscá-la.
— Cá está já a água a dar-me nos pés — disse João, observando a água que avançava para eles. — Didi, fica quieta no meu ombro. Trunfa, onde está o Bigodes!
— No meu pescoço — respondeu Filipe. — Irra, que fria está a água!
Como havia muito calor nas minas a água parecia frigidíssima, gelada. Filipe, João e Jaime, de pé, olharam a água que rolava à sua volta e lhes chegava já aos tornozelos. Gradualmente, foi subindo até dar-lhes pelos joelhos.
Os três permaneciam sob a boca do poço à espera do momento em que a água os levantasse, permitindo-lhes nadar ou flutuar.
— Estou gelado — observou Filipe. — Não sabia que podia haver uma água tão fria.
— A água não está realmente muito fria — esclareceu Jaime —, mas como há aqui em baixo muito calor a água batendo de chofre dá-nos a sensação de estar gelada, visto que ainda não teve tempo de aquecer.
A água subiu-lhes até à cintura e, mais rapidamente depois, até aos ombros.
«Viva o rei!», gritou a Didi horrorizada, olhando do seu pouso, no ombro de João, a água negra e revolta que ia subindo.
Não tardou que Jaime e os dois rapazes perdessem o pé e começassem a nadar com dificuldade para se manterem à superfície da água no poço. — Há tão pouco espaço — afirmou João ofegante. — Estamos mesmo em cima uns dos outros.
Realmente o espaço era exíguo e seria tarefa exaustiva tentarem flutuar quando quase não tinham espaço para fazer os movimentos. A água subia constantemente.
Jaime havia colocado a pequena lanterna de Filipe entre os dentes, de maneira a iluminar em volta a parede do poço. Queria ver até onde a escada tinha sido inutilizada, se até muito acima ou se os homens teriam destruído apenas a parte inferior.
Tirou por fim a lanterna da boca.
— Estamos salvos! — exclamou ele. — A escada está intacta a partir daqui. Subimos bastante trazidos pela água e agora poderemos continuar pela escada. Eu vou ajudar-vos a trepar. Primeiro tu, João, com a Didi. Coitada, está assustadíssima.
João dirigiu-se para o lado do poço onde estava a escada. Jaime fez incidir nela a luz. João agarrou-se aos degraus e começou a içar-se. Depois, quando já havia percorrido uma boa distância, seguiu-se-lhe Filipe, e, por último, Jaime içou-se também, sentindo o lingote de cobre pesar-lhe fortemente no pescoço. Tinha sido extremamente difícil conservar-se à tona de água com ele, mas o certo era que o havia conseguido.
Lá foram subindo, subindo, subindo sempre, e parecia-lhes que iriam levar um século até que se aproximassem do cimo. Logo que haviam empreendido a escalada dos degraus tinham deixado de tremer de frio para passarem, com o esforço da subida, a sentir calor. As roupas colavam-se-lhes ao corpo, o que lhes dava uma desagradável sensação de desconforto. A Didi murmurava ao ouvido de João, lamentando a sua sorte. A pobre ave não estava a gostar desta parte da aventura. O ratinho amigo de Filipe também não. Quando dentro de água, trepara para a orelha do rapaz, que apenas mantinha de fora a cabeça. E ainda por cima, agora com aquelas roupas encharcadas com as quais decididamente não podia concordar, não havia processo de conseguir um sítio seco e quentinho onde se anichasse comodamente.
— Estamos quase lá —• gritou João para baixo. — Já falta pouco.
Eram notícias animadoras essas. E, sentindo novas forças ao verem aquela escalada extenuante prestes a chegar ao seu termo, trepavam agora mais ligeiros.
João foi o primeiro a pôr pé em terra ao mesmo tempo que a Didi lhe voava do ombro, soltando um guincho de alegria. Mas o rapaz estacou, atónito. Sentado calmamente na borda do poço estava um homem, empunhando um revólver.
«Mãos no ar», ordenou ele com voz áspera. «E nada de tentar passar palavra aos que vêm atrás. Quieto! Mãos no ar, já disse!»
BEM ESTÁ O QUE BEM ACABA
João, com as mãos ao alto, esperava horrorizado e boquiaberto. Teriam eles escapado para serem apanhados novamente? Nem sequer ousara gritar...
Filipe, ao saltar para fora, foi tratado do mesmo modo, e também ele ficou estupefacto e desolado. O homem do revólver permanecia silencioso, com a arma apontada para os dois rapazes, atento a quem mais viesse atrás deles.
Jaime saiu para fora, voltando as costas ao homem e recebeu ordem idêntica.
«Mãos no ar! Nada de tentar avisar quem vem atrás! Não se mexam!»
Jaime rodou sobre os calcanhares. Ia levantar imediatamente as mãos, mas tornou a deixá-las cair e desatou a rir.
— Está bem, Evaristo — disse ele —, mas podes baixar a arma.
Evaristo soltou uma exclamação. Colocou o revólver no cinto e avançou para Jaime de mão estendida.
— Ora vejam! — disse ele. — Fiquei aqui de guarda para o caso de haver ainda mais algum da quadrilha para sair, mas confesso que não esperava ver-te surgir.
Os dois rapazes, desconcertados e de olhos muito abertos, olhavam a cena sem compreender o que significava aquilo.
— Apanharam um susto, não foi? — disse Jaime, reparando na expressão de surpresa dos dois rapazes. — É o Evaristo, um dos nossos detectives e um grande amigo meu. Mas, Evaristo, o ver-te aqui dá-me grandes esperanças. Que aconteceu?
— Vem ver — disse Evaristo sorrindo e caminhando na frente. Todos seguiram o corpulento Evaristo pelo caminho através da encosta, até que desembocaram no campo raso e se dirigiram para a costa.
Aí deparou-se-lhes, de repente, uma cena interessante. Alinhados uns a seguir aos outros, de ar carrancudo, estavam os homens das minas. Jau fazia também parte do grupo e lia-se-lhe nos olhos uma expressão malévola e feroz. Dois homens estavam de guarda, cada um com o seu revólver e todos os prisioneiros haviam sido algemados.
— Lá está o Jau — gritou Filipe. Jau olhou para ele com ar duro no qual manifestava um enorme espanto. Com que então os rapazes e o tal amigo haviam conseguido escapar! Jau, imensamente admirado, dava tratos à cabeça sem conseguir compreender como era possível alguém ter fugido duma cela fechada à chave numa mina inundada e trepado por um poço cuja escada estava completamente inutilizada no fundo.
— Onde foram eles apanhados? — perguntou João pasmado. A Didi, ao ver Jau, voou-lhe à volta da cabeça aos guinchos, aos berros e aos gritos. Reconhecera o seu velho inimigo e pressentia que dali já nenhum mal lhe podia vir.
Evaristo sorriu ao espanto de João.
— Bem, aqui o Jaime Cunningham — disse, indicando Jaime, com um movimento de cabeça — conseguiu pôr-nos a par de muita coisa pela rádio, a noite passada, e nós, ligando os factos, chegámos à conclusão de que o melhor era pormo-nos a caminho imediatamente. Partimos então o mais depressa possível com rumo à ilha. Aqui encontrámos o barco de Jau e sinais de uma próxima partida: rimas de notas falsas empilhadas em grades de madeira na praia e várias espécies de documentos interessantes.
— Como chegaram cá tão rapidamente? Não há barcos por aqui perto, nesta costa — disse Filipe.
— Nós temos alguns barcos a motor muito rápidos — explicou Evaristo. — Tomámos dois deles e dirigimo-nos para aqui a toda a velocidade. Aí estão eles.
— Logo que descobrimos que a quadrilha havia terminado o trabalho e se preparava para se pôr ao fresco com as notas falsas, não perdemos a oportunidade — continuou Evaristo, sorrindo. — Colocámos um homem de guarda a cada um dos poços; nós não sabíamos qual deles era o usado pela quadrilha, até que por um deles surgiram em bicha todos os membros da seita. Fizemos-lhes então uma recepção à altura.
— Tal qual como nos fizeram a nós — notou João. — Foi um belo trabalho. Que vai fazer-se agora?
— Jaime Cunningham é que é o chefe da orquestra — disse Evaristo, e voltou-se para Jaime com expressão interrogativa. Este olhou para os miúdos com ar de quem pede desculpa.
— Desculpem ter-lhes dado um nome falso — disse ele. — Mas o meu nome verdadeiro é demasiadamente conhecido em muitos sítios para que me desse a conhecer, tendo entre mãos uma tarefa desta ordem. Por isso, tive de ser sempre Jaime Smugs para vocês.
— E continuará a ser — respondeu Filipe. — Sempre pensarei em si como tal, Jaime.
— Óptimo — disse Cunningham, sorrindo. — Seja Jaime Smugs. E agora que dizem quanto a metermos estes cavalheiros em segurança nos barcos a motor?
Os bandidos foram levados para os barcos. José conservava a venda sobre o olho, mas com o outro lançou tão feroz olhar à Didi que João chamou a ave para que se lhe empoleirasse no ombro. Se um olhar pudesse matar a Didi teria certamente caído redonda, fulminada por aquele olhar de José. O homem não podia esquecer como o pássaro tinha ficado preso em lugar de João, o que provavelmente fora a causa de toda aquela má sorte.
— Parece que vamos regressar no barco do nosso amigo Jau — disse Jaime para os rapazes. — Vamos. Deixemos sair primeiro os barcos a motor e depois partiremos nós. Eh, Evaristo, toma a direcção daquela casa; tu sabes: a Casa do Penhasco. Há lá um bom ancoradouro.
— Fixe! — gritou Evaristo, ao mesmo tempo que os barcos a motor largavam pelo mar fora, fazendo um barulho atroador. A seguir, Jaime e os rapazes partiram por sua vez no barco de Jau.
Os três barcos atravessaram em segurança a passagem dos recifes e entraram no mar largo.
— Felizmente tudo acabou em bem — disse Jaime, içando a vela e tomando o rumo de casa. — Mas devo confessar que houve momentos em que duvidei de que isto tivesse um bom fim.
Os rapazes também assim pensavam. Filipe perguntava a si mesmo como estariam as raparigas. Preocupadas já com certeza.
— Estou cheio de fome — declarou João. — Há séculos que não tenho uma boa refeição... sim, há séculos.
— Tens razão — concordou Jaime. — Mas não importa, já falta pouco para chegarmos, e, então, poderás regalar-te à tua vontade.
As raparigas e a tia Lena ouviram o barulho dos barcos a motor muito antes que estes chegassem à praia. Indo ver de onde provinha aquele barulho, ficaram admiradíssimas ao avistar dois grandes barcos a motor apinhados de homens e um barco à vela, parecido com o de Jau, a aproximarem-se da Casa do Penhasco.
— Mas que quererá tudo isto dizer? — exclamou a tia Lena, ainda pálida e com cara de doente. — Oh! Eu não aguento todas estas emoções!
Os barcos a motor aproaram aos ancoradouros no pequeno porto. As raparigas, que vinham descendo a correr, ficaram atónitas ao descobrirem Jau no meio de todos aqueles homens, e olhavam-nos atentamente, procurando descobrir os rapazes.
— Olhem cá — gritou Evaristo. — Procuram Jaime «qualquer coisa» e os rapazes? Vêm aí no outro barco. Têm por acaso cá um telefone?
— Temos, sim senhor — respondeu Dina. — Mas quem são estes bonecos, e porque está Jau no meio deles?
— Já vão saber tudo — disse Evaristo, saltando do barco. — Mas, antes de mais nada, preciso de telefonar. Quer dizer-me onde é, para ser uma menina bonita?
Evaristo, depois de fazer a ligação, pediu que lhe enviassem quatro ou cinco carros à Casa do Penhasco para levar os presos.
A tia Lena, com o coração a bater alvoroçadamente, escutava com o maior espanto. O que poderia significar tudo aquilo?
Não tardou a compreender logo que chegou o barco à vela e Jaime e os rapazes irromperam pela casa dentro. Fizeram-lhe a narrativa completa de todos os acontecimentos e ela deixou-se cair para trás, no sofá, horrorizada, ao ouvir contar que tipo perverso e perigoso era Jau.
— Esperto como uma matilha de raposas — concluiu Jaime. — Mas não lhe aproveitou a esperteza desta vez... graças a estas quatro crianças!
— É engraçado — comentou João. — Fomos à ilha à procura dum corvo marinho gigante e demos com um enorme bando de homens, trabalhando clandestinamente em máquinas de impressão no fundo das minas.
— Se eu soubesse que vocês andavam a fazer coisas dessas, tinha-os mandado todos para a cama — observou a tia Lena, o que fez com que todos rissem.
«Oh, Lena, menina feia, menina feia!», gritou a Didi, voando para o ombro da tia Lena.
Os carros chegaram quando Jaime e os rapazes estavam a meio de uma copiosa refeição. Os homens foram acomodados nos veículos, partindo rapidamente. Evaristo despediu-se e partiu com eles.
— Bom trabalho, Jaime! — disse ele. — E estes miúdos merecem também parabéns.
Receberam-nos às centenas. E os dois ou três dias seguintes foram tão excitantes que nenhuma das crianças conseguiu dormir bem de noite, porque foram levados a uma importante cidade próxima e tiveram de narrar a dois ou três cavalheiros tudo quanto sabiam.
— São importantes magistrados — tinha dito Jaime misteriosamente. — Grandes juizes. João, tens a fotografia daquele montão de latas que viste na ilha? Jau nega que tenha levado quaisquer mantimento» para lá mas encontrámos nas caves da Casa do Penhasco várias latas vazias que poderemos identificar por meio da tua fotografia.
E, assim, até a pequena fotografia das latas veio a ser útil e era um pouco o que Jaime chamava a «prova contra os prisioneiros».
Outra coisa que também foi muito apreciada foi o lingote de João. Este ficou desapontado ao saber que não tinha valor, mas, no entanto, como curiosidade e recordação duma grande aventura, tinha o seu interesse.
— Hei-de levá-lo comigo quando voltar para a escola para fazer presente dele ao nosso museu — afirmou João. — Todos os rapazes gostarão de vê-lo e tê-lo nas mãos e saber como o consegui arranjar. E que inveja vão ter! Não é qualquer pessoa que se perde no fundo de antigas minas de cobre e encontra um lingote escondido. A única coisa que lamento deveras é que nada valha, porque queria vendê-lo e repartir o dinheiro por nós todos.
— Sim — disse Maria da Luz —, isso teria sido maravilhoso. A parte do Trunfa seria suficiente para pagar os seus estudos e os de Dina e, assim, tanto a mãe como a tia não teriam necessidade de trabalhar tanto e poderiam descansar. É uma pena que não tenhamos podido obter muito dinheiro por ele.
Mas, afinal, não teve a menor importância porque uma enorme quantidade de dinheiro foi inesperadamente parar às mãos das quatro crianças. Tinha sido oferecida uma recompensa destinada a todo aquele que fornecesse qualquer informação que conduzisse à descoberta dos falsificadores, a qual foi naturalmente entregue às quatro crianças, embora Jaime tivesse recebido também a sua parte.
A mãe de Filipe veio à Casa do Penhasco quando soube da estranha e empolgante aventura e dos seus maravilhosos e inesperados resultados. Tanto João como Maria da Luz gostaram dela. Era bonita, alegre e bondosa, exactamente como deve ser uma mãe.
— Cá na minha opinião — disse João a Filipe — ela está a gastar-se naquele trabalho. É mãe primeiro do que tudo e devia viver numa casinha confortável e não fazer mais nada além de olhar por vós.
— É o que faremos — disse Dina com os olhos a brilhar. — Finalmente poderemos fazê-lo. Temos agora dinheiro suficiente para a mãe poder estar connosco e deixar de trabalhar daquela maneira. Já está tudo combinado. E que pensariam tu e a Luzinha de vir viver connosco, Pintinhas? Certamente que não quererão voltar para o pé do vosso tio velho e rabujento e mais a sua antipática governanta?
— Ah! — exclamou Maria da Luz, com os olhos verdes a brilhar como estrelas. E lançou os braços ao pescoço de Filipe, abraçando-o com força. Dina nunca tinha feito tal coisa, mas Filipe achou que era bastante agradável. — Ah, nada há de que mais gostássemos. A vossa mãe seria também nossa e poderíamos divertir-nos tanto todos juntos... Mas, achas que ela nos quererá lá?
— Com toda a certeza — respondeu Dina. — Pedimos-lhe isso com todo o empenho e ela respondeu-nos que desde que tem de aturar duas crianças também pode aturar quatro.
— E a Didi também? — perguntou João, a quem uma dúvida acudiu de repente ao espírito.
— Pois certamente! — disseram Dina e Filipe a um tempo. Nem podiam pensar que a Didi não fosse viver com eles.
— E o que acontecerá à tia Lena e ao tio Renato? — perguntou João. — Tenho muita pena da vossa tia por viver nesta casa em ruínas, trabalhando como uma escrava e a ter de tomar conta do vosso tio, sentindo-se só, infeliz e doente. Mas suponho que ele nunca quererá abandonar a Casa do Penhasco...
— Agora terá de o fazer. E sabes porquê? — perguntou Dina. — Porque a água do poço já não é doce. O mar entrou lá dentro, pela velha passagem do fundo, e a água tornou-se imprópria para beber. Custaria muito dinheiro abrir outro poço e o desgraçado do tio Renato terá de escolher entre ficar na Casa do Penhasco e morrer à sede ou ir viver para outro sítio.
Todos se riram. — Afinal Jau fez algum bem ao inundar as minas — declarou Filipe. — Forçou o tio Renato a decidir-se a ir viver noutro sítio e a tia Lena poderá enfim ter a casinha com que sempre sonhou e onde poderá viver em paz, em lugar de vegetar nestas ruínas; depois nem precisa do Jau para os trabalhos pesados.
— Oh, aquele horrível Jau! — exclamou Maria da Luz. — Como o detestava! Estou contente por saber que fica encarcerado por muitos anos e bons. Já serei crescida quando o soltarem e nessa altura nenhum medo terei dele.
Jaime chegou no seu automóvel, trazendo consigo uma caixa com garrafas de ginger-beer, porque agora ninguém podia beber água do poço. As crianças fizeram-lhe muita festa. Era bem agradável terem ginger-beer ao pequeno-àlmoço, à merenda e ao jantar. Para a tia Lena e para a mãe de Filipe trouxera Jaime uma enorme garrafa-termo cheia de chá quente.
— Ah, Sr. Jaime! — exclamou a mãe de Filipe com voz aguda, que a Didi imitou prontamente. — Que grande termo! Nunca vi nenhum desse tamanho. Muito obrigada.
Jaime ficou para o jantar, que foi muito alegre, especialmente quando o rato de Filipe lhe saltou da manga para cima da mesa e depois correu para o prato de Dina, que ficou muito enjoada, o que fez com que todos se rissem. Maria da Luz envolveu num olhar a alegre assistência e sentiu-se feliz. Ia, de então em diante, viver com uma pessoa crescida de quem gostava e com os seus amigos Filipe e Dina. Tudo era alegria, tudo acabara em bem.
Que feliz ideia a de terem, ela e João, escapado ao Sr. Roy, para fugirem com Filipe para a Casa do Penhasco!
— Isto foi uma grande aventura — disse Maria da Luz em voz alta. — Mas eu sinto-me feliz por já ter acabado. As aventuras são demasiadamente excitantes enquanto duram.
— Isso não — disse Filipe imediatamente. — O melhor duma aventura é enquanto está a desenrolar-se. Eu tenho bastante pena de que já esteja tudo acabado.
«Que pena, que pena!», festejou a Didi para ter a última palavra, como de costume. «Limpa os pés e fecha a porta! Põe a chaleira ao lume! Viva o rei!»
Enid Blyton
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